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A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro

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uma invariavelmente contém, desde que homens, depois de outros homens, a tenham<br />

fomentado com interesse ou paixão.<br />

Assim se exercia esta diligente e alta Inteligência. Qual era, porém, a sua qualidade<br />

essencial e intrínseca? Tanto quanto pude discernir, a suprema qualidade intelectual<br />

de Fradique pareceu-me sempre ser — uma percepção extraordinária da Realidade.<br />

«Todo o fenómeno (diz ele numa carta a Antero de Quental, sugestiva através de certa<br />

obscuridade que a envolve) tem uma Realidade. A expressão de Realidade não é filosófica;<br />

mas eu emprego-a, lanço-a ao acaso e tenteando, para apanhar dentro dela o mais possível<br />

dum conceito pouco coercível, quase irredutível ao verbo. Todo o fenómeno, pois, tem,<br />

relativamente ao nosso entendimento e à sua potência de discriminar, uma Realidade —<br />

quero dizer certos caracteres, ou (para me exprimir por uma imagem, como recomenda<br />

Buffon) certos contornos que o limitam, o definem, lhe dão feição própria no esparso e<br />

universal conjunto, e constituem o seu exacto, real e único modo de ser. Somente o erro, a<br />

ignorância, os preconceitos, a tradição, a rotina e sobretudo a ILUSÃO, formam em torno<br />

de cada fenómeno uma névoa que esbate e deforma os seus contornos, e impede que a<br />

visão intelectual o divise no seu exacto, real e único modo de ser. É justamente o que sucede<br />

aos monumentos de Londres, mergulhados no nevoeiro... Tudo isto vai expresso dum<br />

modo bem hesitante e incompleto! Lá fora o sol está caindo dum céu fino e nítido, sobre o<br />

meu quintal de convento coberto de neve dura: neste ar tão puro e claro, em que as coisas<br />

tomam um relevo rígido, perdi toda a flexibilidade e fluidez da teenologia filosófica- só<br />

me poderia exprimir por imagens recortadas à tesoura. Mas você decerto compreenderá,<br />

Antero excelente e subtil! Já esteve em Londres, no Outono, em Novembro? Nas manhãs<br />

de nevoeiro, numa rua de Londres, há dificuldade em distinguir se a sombra densa, que<br />

ao longe se empasta, é a estátua dum herói ou o fragmento dum tapume. Uma pardacenta<br />

ilusão submerge toda a cidade — e com espanto se encontra numa taverna, quem julgara<br />

penetrar num templo. Ora para a maioria dos espíritos, uma nevoa igual flutua sobre as<br />

realidades da Vida e do Mundo. Daí vem que quase todos os seus passos são transvios,<br />

quase todos os seus juízos são enganos; e estes constantemente estão trocando o Templo<br />

e a Taverna. Raras são as visões intelectuais, bastante agudas e poderosas, para romper<br />

através da neblina e surpreender as linhas exactas, o verdadeiro contorno da Realidade.<br />

Eis o que eu queria tartamudear».<br />

Pois bem! Fradique dispunha de uma dessas visões privilegiadas. O próprio modo que<br />

tinha de pousar lentamente os olhos e detalhar em silêncio — como dizia Oliveira Martins<br />

— revelava logo o seu processo interior de concentrar e aplicar a Razão, à maneira de um<br />

longo e pertinaz dardo de luz, até que, desfeitas as nevoas, a Realidade pouco a pouco<br />

Ihe surgisse na sua rigorosa e única forma<br />

A manifestação desta magnífica força, que mais impressionava — era o seu poder de<br />

definir. Possuindo um espírito que via com a máxima exactidão; possuindo um verbo que<br />

traduzia com a máxima concisão — ele podia assim dar resumvs absolutamente profundos<br />

e perfeitos Lembro que uma noite, na sua casa da Rua de Varennes, em Paris, se discutia<br />

com ardor a natureza da Arte Repetiram-se todas as definições de Arte, enunciadas desde<br />

Platão: inventaram-se outras, que eram, como sempre, o fenómeno visto limitadamente<br />

através dum temperamento. Fradique conservou-se algum tempo mudo, dardejando os<br />

olhos para o vago. Por fim, com essa maneira lenta, (que para os que incompletamente o<br />

conheciam, parecia professoral) murmurou, no silêncio deferente que se alargara: — «A<br />

Arte é um resumo da Natureza feito pela imaginação».<br />

Certamente, não conheço mais completa definição de Arte! E com razão afirmava um<br />

amigo nosso, homem de excelente fantasia, que «se o bom Deus, um dia, compadecido<br />

das nossas hesitações, nos atirasse lá de cima, do seu divino ermo, a final explicação da

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