A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
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nestas vastas colmeias de cal e pedra, onde os homens teimam em se amontoar e lutar; e,<br />
através do constante deperecimento dos costumes e das simplicidades rurais, o mundo<br />
vai rolando a um egoísmo feroz. A primeira evidência deste egoísmo, é o desenvolvimento<br />
ruidoso da filantropia. Desde que a caridade se organiza e se consolida em instituição,<br />
com regulamentos, relatórios, comités, sessões, um presidente e uma campainha, e de<br />
sentimento natural passa a função oficial — é porque o homem, não contando já com<br />
os impulsos do seu coração, necessita obrigar-se publicamente ao bem pelas prescrições<br />
dum estatuto. Com os corações assim duros e os invernos tão longos, que vai ser dos<br />
pobres?...»<br />
Quantas vezes, diante de mim, nos crepúsculos de Novembro, na sua biblioteca<br />
apenas alumiada pela chama incerta e doce da lenha no fogão, Fradique emergiu dum<br />
silêncio em que os olhares se lhe perdiam ao longe, como afundados em horizontes de<br />
tristeza — para assim lamentar, com enternecida elevação, todas as misérias humanas!<br />
E voltava então a amarga afirmação da crescente aspereza dos homens, forçados pela<br />
violência do conflito e da concorrência a um egoísmo rude, em que cada um se torna cada<br />
vez mais o lobo do seu semelhante, homo homini lupus.<br />
— Era necessário que viesse outro Cristo! — murmurei eu um dia.<br />
Fradique encolheu os ombros:<br />
— Há-de vir; há-de talvez libertar os escravos; há-de ter por isso a sua igreja e a sua<br />
liturgia; e depois há-de ser negado; e mais tarde há-de ser esquecido; e por fim hãode<br />
surgir novas turbas de escravos. Não há nada a fazer. O que resta a cada um por<br />
prudência, é reunir um pecúlio e adquirir um revólver; e aos seus semelhantes que lhe<br />
baterem à porta, dar, segundo as circunstâncias, ou pão ou bala.<br />
Assim, cheios de ideias, de delicadas ocupações e de obras amáveis, decorreram os<br />
derradeiros anos de Fradique Mendes em Paris, até que no Inverno de 1888 a morte<br />
o colheu sob aquela forma que ele, como César, sempre apetecera — inopinatam atque<br />
repentinam.<br />
Uma noite, saindo duma festa da condessa de La Ferté (velha amiga de Fradique, com<br />
quem fizera num iate uma viagem à Islandia), achou no vestiário a sua peliça russa trocada<br />
por outra, confortável e rica também, que tinha no bolso uma carteira com o monograma<br />
e os bilhetes do general Terran-d’Azy. Fradique, que sofria de repugnâncias intolerantes,<br />
não se quis cobrir com o agasalho daquele oficial rabugento e catarroso, e atravessou<br />
a Praça da Concórdia a pé, de casaca, até ao clube da Rue Royale. A noite estava seca e<br />
clara, mas cortada por uma dessas brisas subtis, mais ténues que um hálito, que durante<br />
léguas se afiam sobre planícies nevadas do norte, e já eram comparadas pelo velho André<br />
Vasali a «um punhal traiçoeiro». Ao outro dia acordou com uma tosse leve. Indiferente<br />
porém aos resguardos, seguro duma robustez que afrontara tantos ares inclementes, foi<br />
a Fontainebleau com amigos no alto dum mail-coach. Logo nessa noite, ao recolher, teve<br />
um longo e intenso arrepio; e trinta horas depois, sem sofrimento, tão serenamente que<br />
durante algum tempo Smith o julgou adormecido, Fradique, como diziam os antigos,<br />
«tinha vivido». Não acaba mais docemente um belo dia de Verão.<br />
O Dr. Labert declarou que fora uma forma raríssima de pleuris. E acrescentou, com<br />
um exacto sentimento das felicidades humanas: -«Toujours de la chance, ce Fradique!»<br />
Acompanharam a sua passagem derradeira pelas ruas de Paris, sob um céu cinzento<br />
de neve, alguns dos mais gloriosos homens de França nas coisas do saber e da arte.<br />
Lindos rostos, já pisados pelo tempo, o choraram, na saudade das emoções passadas.<br />
E, em pobres moradas, em torno a lares sem lume, foi decerto também lamentado este<br />
céptico de finas letras, que cuidava dos males humanos envolto em cabaias de seda