16.04.2013 Views

dom quixote à pro-cura da cura - programa de pós-graduação em ...

dom quixote à pro-cura da cura - programa de pós-graduação em ...

dom quixote à pro-cura da cura - programa de pós-graduação em ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO<br />

CELIA REGINA DE BARROS MATTOS<br />

DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA:<br />

UMA LEITURA HEIDEGGERIANA<br />

RIO DE JANEIRO<br />

2007


CELIA REGINA DE BARROS MATTOS<br />

DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA:<br />

UMA LEITURA HEIDEGGERIANA<br />

Tese <strong>de</strong> Doutorado apresenta<strong>da</strong> ao<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> Ciência <strong>da</strong><br />

Literatura (Poética), Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras,<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

como parte dos requisitos necessários <strong>à</strong><br />

obtenção do título <strong>de</strong> Doutor <strong>em</strong> Ciência <strong>da</strong><br />

Literatura (Poética)<br />

Orientador: Prof. Dr. Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro<br />

RIO DE JANEIRO<br />

2007


Mattos, Celia Regina <strong>de</strong> Barros<br />

Dom Quixote <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura: uma<br />

leitura hei<strong>de</strong>ggeriana / Celia Regina <strong>de</strong><br />

Barros Mattos – 2007<br />

429 f.<br />

Tese (Doutorado <strong>em</strong> Poética) –<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2007.<br />

Orientador: Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro<br />

1. Dom Quixote – Hei<strong>de</strong>gger. 2. Dom<br />

Quixote – Leitura Poética. 3. Dom Quixote<br />

– Pós-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. 4. Dom Quixote –<br />

Obra <strong>de</strong> arte. – Teses.<br />

I. Castro, Manuel Antonio <strong>de</strong> (Orient.) II.<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras. III. Título.


A<strong>pro</strong>va<strong>da</strong> <strong>em</strong> ____ / ____ / _____<br />

CELIA REGINA DE BARROS MATTOS<br />

DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA:<br />

UMA LEITURA HEIDEGGERIANA<br />

Tese <strong>de</strong> Doutorado apresenta<strong>da</strong> ao<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> Ciência <strong>da</strong><br />

Literatura (Poética), Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras,<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

como parte dos requisitos necessários <strong>à</strong><br />

obtenção do título <strong>de</strong> Doutor <strong>em</strong> Ciência <strong>da</strong><br />

Literatura (Poética)<br />

BANCA EXAMINADORA:<br />

____________________________________________________________<br />

Prof. Dr. Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro - Orientador<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

____________________________________________________________<br />

Profa. Dra. Angélica Maria Santos Soares<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

____________________________________________________________<br />

Profa. Dra. I<strong>da</strong>lina Azevedo <strong>da</strong> Silva<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

____________________________________________________________<br />

Profa. Dra. Ângela Maria Fabiano Men<strong>de</strong>s<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

____________________________________________________________<br />

Prof. Dr. Julio Aldinger Daloz<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

____________________________________________________________<br />

Profa. Dra. Martha Alkimin<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

____________________________________________________________<br />

Profa. Dra. Sílvia Cárcamo<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro


AGRADECIMENTOS<br />

Em respeito <strong>à</strong> Hierarquia<br />

agra<strong>de</strong>ço <strong>à</strong> “Outra Voz”:<br />

no meio <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>, a Voz<br />

abrir um livro ao acaso, a Voz<br />

escrever enquanto caminha, a Voz<br />

a palavra certa, na hora, a Voz.<br />

Até do orientador<br />

que, impaciente, alertou:<br />

“Teu prazo vai-se esgotar!”, a Voz.<br />

São meus Guias, são meus Mestres<br />

são meus santos?<br />

São Francisco, São Miguel<br />

são tantos que n<strong>em</strong> sei.<br />

Voz do <strong>da</strong>imon, voz do logos...<br />

Só sei que ela não é minha<br />

ou essa Voz não é “outra”<br />

é to<strong>da</strong>s; é uma só Voz.


Ao meu orientador<br />

T<strong>em</strong> nome anjo<br />

<strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> Santo<br />

É aquele que <strong>em</strong>mana<br />

É Santo que tudo une<br />

Se não t<strong>em</strong> parte com o “outro”<br />

Só po<strong>de</strong> ter <strong>dom</strong> <strong>de</strong> adivinho<br />

S<strong>em</strong> que na<strong>da</strong> se insinue<br />

N<strong>em</strong> mesmo que se pedisse<br />

lá estava tudo na pasta:<br />

ensaios, resumos, artigos<br />

do conceito ao paradoxo<br />

todos os “inter” e os “entres”<br />

tudo aquilo que fica no “meio”<br />

Se é preciso <strong>pro</strong>-duzir<br />

espontâneo se antecipa<br />

__ Se tocados pela imag<strong>em</strong>,<br />

qu<strong>em</strong> sabe, enxergam as “questões”?<br />

__ Questões, eu já disse:<br />

o que importa são as “questões”!<br />

Po<strong>de</strong> parecer que estamos<br />

mas isso não é brinca<strong>de</strong>ira<br />

fingir é coisa mui séria<br />

pergunte ao que finge ser dor<br />

a dor que <strong>de</strong> veras sente<br />

Emmanuel<br />

Antonio<br />

Educador<br />

<strong>de</strong> Só<br />

Isso já basta.


À Francisca Nóbrega, Laura e Lúcia Helena<br />

Não foi só “Iniciação”<br />

Ficaram também os pilares<br />

Ficou também a sen<strong>da</strong><br />

Aos amigos do Setor e do Departamento<br />

Sei b<strong>em</strong> <strong>da</strong> expectativa<br />

<strong>de</strong> ver a última doutora<br />

fechando com ouro<br />

a excelência do Departamento<br />

Obriga<strong>da</strong> pela tolerância<br />

Agora, arregaçar e tra-ba-lhar<br />

Ao amigo Júlio<br />

À Luciana<br />

O respeito e a admiração<br />

s<strong>em</strong>pre me incentivaram<br />

Trazia-me tudo s<strong>em</strong> pressa<br />

a ca<strong>da</strong> s<strong>em</strong>ana um pouco<br />

<strong>pro</strong>vocava-me<br />

franqueava as vias do assédio<br />

<strong>de</strong>ixava acontecer<br />

até o acontecer<br />

espontâneo, inesperado<br />

Foi ela que iniciou-me no ser<br />

E no t<strong>em</strong>po a<strong>pro</strong>ximou-me <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger


À família<br />

Agra<strong>de</strong>ço a paciência<br />

<strong>de</strong> esperar disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e <strong>de</strong> ouvir s<strong>em</strong>pre: espera!<br />

<strong>de</strong> alguém que tanto espera<br />

po<strong>de</strong>r ser só disponível<br />

Às crianças <strong>da</strong> família<br />

N<strong>em</strong> sei se ain<strong>da</strong> se l<strong>em</strong>bram<br />

N<strong>em</strong> sei se perguntam mais<br />

N<strong>em</strong> passeio na floresta<br />

N<strong>em</strong> piquenique <strong>em</strong> Paquetá<br />

N<strong>em</strong> tanto pela Tia Celia<br />

Aniversários, almoços e festas<br />

Se não ia a Tia Celia<br />

também, o “Loreco” não ia<br />

Aos amigos <strong>em</strong> geral<br />

Prometo não inventar<br />

na<strong>da</strong> mais que me tire <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

.................................................<br />

Trabalhava com afinco, s<strong>em</strong> pensar no que fazia<br />

doíam-lhe as pernas<br />

as costas<br />

os pés<br />

s<strong>em</strong> se importar <strong>pro</strong>sseguia<br />

Em noite especial não serviu<br />

foi servi<strong>da</strong><br />

Num só cochilo<br />

com doze homens fez a ceia<br />

a última ceia<br />

É personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> conto<br />

acho que se chama Teresa


Ao meu Pai:<br />

no t<strong>em</strong>po do Mestrado: “E Ele tinha a esperança que eu não tinha por mim”<br />

hoje: Obriga<strong>da</strong> por tamanha esperança.<br />

A todos os sobrinhos,<br />

a todos os jovens <strong>de</strong>ste mundo caduco,<br />

um ex<strong>em</strong>plo, uma sugestão:<br />

“Vai (...) ser poiesis na vi<strong>da</strong>”.:


SINOPSE<br />

Este trabalho é uma reflexão sobre o hom<strong>em</strong>: o<br />

lugar <strong>de</strong> “entre-ser” que ocupa no real; Cura; as<br />

questões; o agir e o consumar entre vi<strong>da</strong> e morte.<br />

Na leitura hermenêutica <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>de</strong> la<br />

Mancha, vi<strong>da</strong> e arte, manifestando-se <strong>em</strong><br />

experienciar e narrar, constitu<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> seu<br />

pensar essencial, e o resgatam, no século XXI, <strong>em</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s.


RESUMO<br />

MATTOS, Celia Regina <strong>de</strong> Barros. Dom Quixote <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura: uma leitura<br />

hei<strong>de</strong>ggeriana. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência <strong>da</strong><br />

Literatura (Poética) – Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2007.<br />

Este trabalho apresenta a obra Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha sob a perspectiva<br />

poético-ontológica, dividi<strong>da</strong> <strong>em</strong> três <strong>em</strong> périplos, ao modo <strong>de</strong> círculos hermenêuticos.<br />

Dom Quixote, o cavaleiro-filósofo, sai <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura e, entre nascimento e<br />

morte, experimenta os existenciais fun<strong>da</strong>mentais até o momento <strong>em</strong> que a<br />

conjugação angústia-morte inclui “po<strong>de</strong>r-ser” pastor e po<strong>de</strong>r morrer, no elenco <strong>de</strong><br />

suas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s essenciais. No epitáfio, no entanto, “La muerte no triunfó”. 1<br />

Des<strong>de</strong> então, passa por experiência originária; vira cavaleiro-hermeneuta; assume a<br />

missão <strong>de</strong> enfrentar a Essência <strong>da</strong> Técnica __ a face mais radical do pensar<br />

metafísico do Oci<strong>de</strong>nte __ , travesti<strong>da</strong> <strong>de</strong> cavaleiro. A luta, há muito anuncia<strong>da</strong>, é<br />

inevitável e, no apagamento <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, o esquecimento do ser como<br />

<strong>de</strong>stinação exige que Dom Quixote cumpra seu <strong>de</strong>stino heróico e liberte o Oci<strong>de</strong>nte<br />

do encantamento metafísico. Na clareira <strong>da</strong> <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, t<strong>em</strong> lugar uma<br />

batalha singular: o cavaleiro-Quixote-vi<strong>da</strong>, narrando-se <strong>em</strong> experienciar, dis-puta<br />

com o cavaleiro-Quixote-ficção o lugar <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e, no jogo <strong>de</strong>svelar-velar, o<br />

fi<strong>da</strong>lgo-cavaleiro-filósofo-hermeneuta-pastor-poeta, ampliando infinitamente seu<br />

espectro <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, cumpre seu <strong>de</strong>stino heróico. Dom Quixote vence<br />

como obra <strong>de</strong> arte.<br />

1 A morte não triunfou


ABSTRACT<br />

MATTOS, Celia Regina <strong>de</strong> Barros. Dom Quixote <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura: uma leitura<br />

hei<strong>de</strong>ggeriana. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência <strong>da</strong><br />

Literatura (Poética) – Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2007.<br />

This work observes the literary Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha in an ontological-<br />

poetic point of view divi<strong>de</strong>d in three periplus with the hermeneutical aspect. Don<br />

Quijote, the philosopher-Knight went out to search for Cure and between birth and<br />

<strong>de</strong>ath experiences the fun<strong>da</strong>mental existential until the conjugation anguish-<strong>de</strong>ath<br />

inclu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “can-be” pastor and “can die” in the list of its essencial possibilities.<br />

Nevertheless, in the epitaph “La muerte no triunfó”. From then on, Quijote faces the<br />

original experience, becames an hermeneutic-Knight and takes the mission to<br />

confront the Technic – the most radical face of the oci<strong>de</strong>ntal thinking – disguised as a<br />

Knight. The long ago announced fight is inevitable; and in the extinguishment of the<br />

mo<strong>de</strong>rnity the oblivion of the being as <strong>de</strong>stination imposes to Don Quijote the<br />

fullfillment of his heroic fate and set the occi<strong>de</strong>nt free from the metaphysical<br />

enchantment. In the gla<strong>de</strong> of post-mo<strong>de</strong>rnity, a singular battle takes place: the<br />

Knight-Quijote life, narrating himself in experiencing, dis-putes with the Knight-<br />

Quijote-fiction about the place of Truth and in the game of unveil-veil the noble-<br />

Knight-philosopher-hermeneut-pastor-poet amplifies his spectrum of possibilities and<br />

performs his heroic <strong>de</strong>stiny. Don Quijote wins as a masterpiece.


RESUMÉ<br />

MATTOS, Celia Regina <strong>de</strong> Barros. Dom Quixote <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura: uma leitura<br />

hei<strong>de</strong>ggeriana. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência <strong>da</strong><br />

Literatura (Poética) – Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2007.<br />

A travail présente l’oeuvre Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha sous la perspective<br />

poétique-ontologique, divisé en trois périples, au uioyen <strong>de</strong> tors herméneutiques.<br />

Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha le chevalier – filosophe sort afin <strong>de</strong> chercher sa “Cura”<br />

(Cure) et entre sa naissance et sa wort, il essaye les existentiels fon<strong>da</strong>mentales<br />

jusqu’au moment que la conjugaison entre l’angoïsse – mort y compris le pouvoir-<br />

être pasteur et le pouvoir mourir <strong>da</strong>ns la liste <strong>de</strong> ses possbilités essentielles, alors<br />

que, <strong>da</strong>ns son épitaphe « La muerte no triunfó ». Depuis lors, ilpasse par<br />

l’expérience originaire, il <strong>de</strong>viente le chevalier herméneute, il prend la mission <strong>de</strong> se<br />

mettre vis-<strong>à</strong>-vis la Thécnique – la face la plus radical du penser <strong>de</strong> l’occi<strong>de</strong>nt travesti<br />

en chevalier. La lute <strong>de</strong>puis long t<strong>em</strong>ps annoncé elle est inevitable ; et <strong>da</strong>ns<br />

l’effacernent <strong>de</strong> la modrnité, l’oubli du être comme une <strong>de</strong>stinatin exige que Don<br />

Quijote fasse honneur <strong>à</strong> son <strong>de</strong>stin heroïque et qu’il liberte l’occi<strong>de</strong>nt <strong>de</strong> son<br />

ensorcell<strong>em</strong>ent methaphysique. Sons la claclairière <strong>de</strong> l’après – mo<strong>de</strong>rnité, une<br />

singulière bataille a lieu : le chevalier – Quijote – vie, qui expose sus expériences,se<br />

batte contre le chevalier – Quijote – fiction pour conquérir sa vraie place et, <strong>da</strong>ns le<br />

jeu <strong>de</strong> se <strong>de</strong>voiler – se voiler, le noble-chevalier-philosophe-herméneute-pasteur-<br />

poète en donnant amplitu<strong>de</strong> infinitiv<strong>em</strong>ent <strong>à</strong> son espectre <strong>de</strong> possibilités, il fait<br />

<strong>de</strong>venir, e fait, son <strong>de</strong>stín héroique. Don Quijote fait <strong>de</strong> sa vie une vraie oeuvre<br />

d’art,une victoire complète.


SUMÁRIO<br />

AGRADECIMENTOS .................................................................................................................... iv<br />

DEDICATÓRIA ............................................................................................................................ viii<br />

SINOPSE ................................................................................................................................... ix<br />

RESUMO ................................................................................................................................... x<br />

EPÍGRAFE ................................................................................................................................. xv<br />

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 01<br />

Capítulo I<br />

1 o Périplo __ DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA ........................................................ 13<br />

1 O DIAGNÓSTICO DA LOUCURA ....................................................................................... 14<br />

1.1 DOM QUIXOTE E A RIGOROSA ANAMNESE .............................................................................. 16<br />

1.1.1 Por que lia tanto os livros <strong>de</strong> cavalaria? .................................................................... 17<br />

1.1.2 Por que abandonou a leitura e <strong>de</strong>cidiu ser cavaleiro? ............................................. 18<br />

1.1.3 O que pretendia, afinal, Dom Quixote, sendo cavaleiro? ......................................... 21<br />

1.1.4 Como se <strong>pro</strong>cessou a metamorfose? ........................................................................ 23<br />

2 A PROCURA DA CURA ÔNTICA, UM ERRO DE PERCURSO ......................................... 33<br />

2.1 HEIDEGGER, A CURA COMO MITO E A EXISTÊNCIA DO HOMEM ................................................. 34<br />

3 A QUE PAIDÉIA SERVE DOM QUIXOTE? ......................................................................... 38<br />

4 PARA FAZER TRAVESSIA, SÓ INVENTANDO MUNDO ................................................... 53<br />

4.1 DOM QUIXOTE INVENTA UM MUNDO ....................................................................................... 54<br />

5 PREPARANDO A CURA ..................................................................................................... 68<br />

5.1 INGREDIENTES FUNDAMENTAIS ............................................................................................. 70<br />

5.1.1 “De largo en largo” __ do nascimento até a morte ..................................................... 70<br />

5.1.1.1 O nascimento <strong>de</strong> Dom Quixote ................................................................................ 71<br />

5.1.1.2 A morte <strong>de</strong> Dom Quixote .......................................................................................... 73<br />

5.1.2 Para compreen<strong>de</strong>r o mundo, só com disposição ...................................................... 80<br />

5.1.2.1 Há algum t<strong>em</strong>or no ar? .............................................................................................. 82<br />

5.1.3 Do estar-lançado ao lançar-se na existência ............................................................. 88<br />

5.1.3.1 A pouca ocupação <strong>de</strong> Dom Quixote ........................................................................ 89<br />

5.1.3.2 Pra que tanta pre-ocupação? ................................................................................... 93<br />

6 CUIDANDO DE CURAR ...................................................................................................... 97<br />

6.1 TROCANDO A ESTRATÉGIA DIDÁTICA ..................................................................................... 98<br />

6.1.1 Do aprendizado ao diálogo como aprendizag<strong>em</strong> ...................................................... 100<br />

6.1.1.1 Diálogos <strong>em</strong> ca<strong>de</strong>ia __ a corag<strong>em</strong> <strong>da</strong> renúncia ........................................................ 108<br />

6.1.1.2 Enfim, uma aprendizag<strong>em</strong> ........................................................................................ 116<br />

6.1.1.3 Errância não re<strong>pro</strong>va ................................................................................................ 116<br />

6.1.2 A <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong> Dom Quixote .................................................................................... 121<br />

6.1.2.1 Silêncio, nesse falatório não há Cura que resista .................................................. 122<br />

6.1.2.2 Entre curiosas ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s ................................................................................... 127<br />

6.1.2.3 Nunca <strong>em</strong> Espanha houve tanto escritório ............................................................. 131<br />

7 TÉDIO, ANGÚSTIA, MORTE – AS DISPOSIÇÕES FUNDAMENTAIS ............................... 134<br />

7.1 O TÉDIO ............................................................................................................................... 134<br />

7.2 A ANGÚSTIA ......................................................................................................................... 137<br />

7.3 A MORTE .............................................................................................................................. 143<br />

8 SER PASTOR OU SER POETA, TUDO É POSSIBILIDADE ............................................... 146


Capítulo II<br />

2 o Périplo __ A VERDADE DO TEMPO DE QUIXOTE ............................................................ 156<br />

1 DOM QUIXOTE, O HERMENEUTA<br />

....................................................................................... 157<br />

1.1 O QUE SE SABE DA LOUCURA, O QUE SE SABE DA RAZÃO? ...................................................... 158<br />

1.2 UM MUNDO CHEIO DE CONTRADIÇÃO ...................................................................................... 171<br />

1.3 A OUTRA FACE DA MORTE ..................................................................................................... 188<br />

1.4 DOM QUIXOTE EM RETROSPECTIVA ........................................................................................ 191<br />

1.5 É TEMPO DE NEGOCIAÇÃO. QUAL O “PRETIO” DO TEMPO DE DOM QUIXOTE? ........................... 196<br />

2 MUDANDO DE DIMENSÃO, UMA DESCIDA AO OUTRO MUNDO .................................... 199<br />

2.1 “LA CUEVA DE MONTESINOS” ............................................................................................... 200<br />

2.2 DOM QUIXOTE ENTRA NA CAVERNA COMO FILÓSOFO ............................................................... 200<br />

2.3 DOM QUIXOTE SAI DA CAVERNA COMO HERMENEUTA .............................................................. 235<br />

2.4 A QUESTÃO DOS DOIS MUNDOS ................................................................................................... 246<br />

3 DOM QUIXOTE E SUA TAREFA .......................................................................................... 253<br />

4 TÁ DOMINADO, TÁ TUDO DOMINADO .............................................................................. 259<br />

4.1 A TÉCNICA DOMINA A ÉTICA ................................................................................................... 260<br />

4.2 A TÉCNICA DOMINA O HOMEM ................................................................................................ 269<br />

5 DO ENCANTAMENTO DA TÉCNICA AO ENCANTAMENTO POÉTICO ............................ 272<br />

5.1 PARA CONTAR E DESENCANTAR, NÃO BASTA FALAR; É PRECISO “FALAR” ................................ 284<br />

Capítulo III<br />

3 o Périplo __ A VERDADE DA OBRA DE ARTE ..................................................................... 287<br />

1 A OBRA DE ARTE E O TEMPO ............................................................................................ 288<br />

2 A PÓS-MODERNIDADE, É CHEGADO O TEMPO ............................................................... 300<br />

3 A POESIA E A “OUTRA VOZ” .............................................................................................. 303<br />

4 DE IMITAR A SER “O OUTRO”, HÁ MUITA DIFERENÇA .................................................. 308<br />

5 DESDE QUANDO, DOM QUIXOTE OUVE A VOZ? ............................................................. 313<br />

6 CRÔNICA DE UMA BATALHA ANUNCIADA ...................................................................... 324<br />

7 DA FORMA À FULGURAÇÃO, NESSE “FINGIR” SE MOVE DOM QUIXOTE ................... 335<br />

8 PENETRANDO NO TERRITÓRIO DA ARTE ........................................................................ 340<br />

9 DOM QUIXOTE, ANJO E DEMÔNIO DAS ARTES ............................................................... 341<br />

10 APROXIMA-SE A DIS-PUTA FINAL; É TEMPO DE AGIR ................................................. 352<br />

10.1 A HERMES O QUE É DE HERMES, A PAZ O QUE É DE PAZ ........................................................ 353<br />

11 DOM QUIXOTE VIDA, DOM QUIXOTE FICÇÃO: A LOUCURA COMO CONTRAPONTO 357<br />

12 DOM QUIXOTE, UMA LOUCURA “EXPERIENCIAL” ........................................................ 361<br />

13 DOM QUIXOTE FALA, CONTA E SE CONTA POETICAMENTE ....................................... 374<br />

14 A CORAGEM DO SALTO MORTAL .................................................................................... 381<br />

CONCLUSÃO ................................................................................................................................. 395<br />

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................ 407


“no soy tan loco ni tan menguado<br />

como <strong>de</strong>bo <strong>de</strong> haberle parecido”<br />

DON QUIJOTE


INTRODUÇÃO<br />

É surpreen<strong>de</strong>nte que a obra <strong>de</strong> Cervantes, Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha,<br />

garanta, passados tantos séculos, lugar privilegiado no “rank” <strong>da</strong> Literatura<br />

Universal. É surpreen<strong>de</strong>nte o espaço conquistado, somado ao fato <strong>de</strong> a obra ocupar,<br />

<strong>em</strong> diferentes <strong>pro</strong>porções, uma fração do imaginário do hom<strong>em</strong> do oci<strong>de</strong>nte,<br />

transformando-se <strong>em</strong> conhecido referencial <strong>de</strong>ssa cultura. É surpreen<strong>de</strong>nte e<br />

indiscutível que to<strong>da</strong>s as vezes que mencionamos o nome Quixote, mesmo s<strong>em</strong><br />

atentarmos se <strong>à</strong> obra ou ao personag<strong>em</strong>, o que mais imediatamente v<strong>em</strong> <strong>à</strong> mente <strong>de</strong><br />

todos é a “lou<strong>cura</strong>”, a história <strong>de</strong> um louco que luta com moinhos <strong>de</strong> vento. E mesmo<br />

que ninguém se disponha a ler a obra para a<strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>r-se <strong>em</strong> interpretações, é como<br />

se houvesse uma “falta”, o intrigante e sedutor rabisco esqu<strong>em</strong>ático ali permanece,<br />

<strong>de</strong>ixando impressa a sensação <strong>de</strong> um vazio adiado.<br />

Dispor-se a penetrar <strong>em</strong> obra tão vigorosa será s<strong>em</strong>pre um <strong>de</strong>safio, <strong>de</strong>safio<br />

que encontra sua primeira barreira no como. Indubitável é sua importância, mas<br />

sab<strong>em</strong>os ter sido ele mal compreendido ao longo do t<strong>em</strong>po. O como r<strong>em</strong>ete ao<br />

meio: é preciso um meio para atingir um fim. Que nome se dá ao meio como se<br />

chega a um lugar <strong>de</strong>terminado, no universo on<strong>de</strong> acontece a pesquisa?<br />

O significado grego <strong>de</strong> meta foi <strong>de</strong>sviado <strong>de</strong> seu sentido originário, sua<br />

dimensão ambígua, perfeitamente conforme <strong>à</strong> aletheia, caiu nas malhas <strong>da</strong> filosofia<br />

e se per<strong>de</strong>u. Não suportando o mostrar-se <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, tão inseguro e instável,


s<strong>em</strong> limites n<strong>em</strong> <strong>de</strong>finições, a filosofia faz, do logos, o fun<strong>da</strong>mento do ente,<br />

tentando fun<strong>da</strong>r o real na i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e na permanência.<br />

O real não mais precisa manifestar-se, foi-se <strong>em</strong>bora o espontâneo; a<br />

aletheia é obriga<strong>da</strong> a ce<strong>de</strong>r lugar a uma representação que se chama homoiosis:<br />

uma máscara b<strong>em</strong> feita <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>s<strong>pro</strong>vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> outra face; máscara estreita<br />

<strong>em</strong> seus limites, mas que, por outro lado, não oferece riscos: ou é o que fica e<br />

permanece ou não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro. E isso, há muito t<strong>em</strong>po, t<strong>em</strong> sido o que basta para<br />

estar-se <strong>de</strong> posse <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

B<strong>em</strong> sab<strong>em</strong>os por que paragens esse equívoco <strong>de</strong> percurso se esten<strong>de</strong>u,<br />

alcançando até o real <strong>da</strong> obra, restringindo-a a um ir e vir que vai do conceito <strong>à</strong><br />

teoria, <strong>da</strong> teoria ao conceito, <strong>da</strong> teoria <strong>à</strong> metodologia, recomeçando, novamente, a<br />

busca do conceito. A arte teve <strong>de</strong> submeter-se <strong>à</strong> nova or<strong>de</strong>m, <strong>à</strong> nova lógica, on<strong>de</strong> “o<br />

caminho, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e a vi<strong>da</strong>” é a “logia”. Tudo isso, para garantir e ter sob<br />

controle o aprendizado <strong>de</strong> uma disciplina que, <strong>em</strong> nosso caso, se chama Literatura.<br />

O que estamos fazendo é começar esta pesquisa apresentando, com toques<br />

sutis, esse t<strong>em</strong>a __ questão: a metodologia, ela mesma, nosso primeiro obstáculo,<br />

nossa primeira <strong>pro</strong>vocação.<br />

Muitos são os caminhos que conduz<strong>em</strong> a Dom Quixote; muitas são as<br />

reentrâncias por on<strong>de</strong>, escondido, po<strong>de</strong>mos surpreendê-lo; muitas as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> compreendê-lo. No acervo reunido nos quatro séculos <strong>de</strong> suas an<strong>da</strong>nças,<br />

esperar-se-ia encontrar, com traços b<strong>em</strong> marcados, seu completo e <strong>de</strong>finitivo perfil.<br />

Contraditoriamente, entretanto, nessa caminha<strong>da</strong>, clarões iluminaram vere<strong>da</strong>s,<br />

sugeriram atalhos, insinuaram fen<strong>da</strong>s, reunindo tanta força que seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

atração continua seduzindo, com o irresistível convite a novas buscas. Compreen<strong>de</strong>-<br />

se, assim, que vejamos sentido na voz que a ca<strong>da</strong> leitura se renova <strong>em</strong> sugestivo


ecado: “Des<strong>de</strong> o século XVII, Cervantes continua buscando o seu leitor” 2 , busca<br />

que faz<strong>em</strong>os nossa, a partir <strong>de</strong> agora.<br />

Esse recado, contudo, exige que não sejamos ingênuos, tomando-o na<br />

superfície. Caso o fizéss<strong>em</strong>os, a ilusão nos colocaria na trilha <strong>da</strong> crítica literária, e,<br />

insistentes nos caminhos já percorridos, correríamos o risco do aprisionamento na<br />

trama <strong>de</strong> sua b<strong>em</strong> teci<strong>da</strong> re<strong>de</strong>.<br />

O enfoque no leitor que o recado veicula nos brin<strong>da</strong> com a hipótese do<br />

arejamento. No entanto, isso nos cont<strong>em</strong>plaria só parcialmente, se acaso não<br />

encontráss<strong>em</strong>os, na obra, uma contun<strong>de</strong>nte resposta, essa sim dirigi<strong>da</strong> diretamente<br />

ao leitor: Léalos 3 .<br />

O que dá a essa resposta marca especialmente significativa é o lugar on<strong>de</strong><br />

ela se manifesta: a obra. O recado é o mesmo, mas é <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> obra que ele<br />

v<strong>em</strong>, <strong>de</strong>sviando com isso o foco do autor, concentrando-o na obra. S<strong>em</strong> contar que é<br />

o próprio Dom Quixote qu<strong>em</strong> se incumbe <strong>de</strong> transmiti-lo. Qu<strong>em</strong> há quatro séculos<br />

espera seu leitor, não é Cervantes, é Dom Quixote. Mas qual dos dois Quixotes, o<br />

personag<strong>em</strong> ou a obra?<br />

Cui<strong>de</strong>mos do caminho. Parece não restar dúvi<strong>da</strong>s sobre o caminho a<br />

percorrer. Este, inevitavelmente, exigirá gran<strong>de</strong> esforço, posto que estará na<br />

contramão <strong>de</strong> todos os já percorridos. Por ele tentar<strong>em</strong>os, mesmo esbarrando nos<br />

equívocos <strong>de</strong> percurso, resgatar <strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong> o significado <strong>de</strong> meta. Com ele<br />

surpreen<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os a obra com todo frescor, <strong>em</strong> seu vazio originário.<br />

Se no meio do caminho tinha uma re<strong>de</strong> e nessa re<strong>de</strong> ficou cativa a Aletheia,<br />

ela será nosso alvo <strong>de</strong> resgate.<br />

2 A impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> localizar a frase que seguramente está escrita <strong>em</strong> Espanhol (“Des<strong>de</strong> el siglo XVII, Cervantes sigue<br />

<strong>pro</strong><strong>cura</strong>ndo a su lector”) <strong>em</strong> algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa a<strong>da</strong>ptação, caso contrário, a per<strong>de</strong>ríamos.<br />

3 Leia (os livros <strong>de</strong> cavalaria)


Preten<strong>de</strong>mos lançar-nos numa aventura <strong>da</strong> qual na<strong>da</strong> sab<strong>em</strong>os. Antes<br />

mesmo <strong>de</strong> tomarmos a <strong>de</strong>cisão, é preciso disposição para enfrentar o incômodo <strong>da</strong><br />

incerteza, a insegurança do instável, o mal-estar do ambíguo, nossos companheiros<br />

<strong>de</strong> aventura e, ao contrário, transmutá-los <strong>em</strong> excitantes <strong>de</strong>safiadores.<br />

Do caminho, por enquanto, o único norte é o tortuoso <strong>de</strong> seu percurso, além<br />

disso, com na<strong>da</strong> mais se po<strong>de</strong> contar. Portanto, se t<strong>em</strong> razão Antonio Machado: “se<br />

hace camino al an<strong>da</strong>r” 4 , ponhamos o pé no caminho, contando com a orientação que<br />

o próprio caminho nos po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r. Se a obra é o nosso caminho, só seus guardiões<br />

nos po<strong>de</strong>m aju<strong>da</strong>r.<br />

Depois do convite <strong>à</strong> leitura, Dom Quixote nos seduz com uma viag<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

“infinitas cosas y maravillas [...] las cuales <strong>de</strong>spacio y a sus ti<strong>em</strong>pos te las iré<br />

contando en el discurso <strong>de</strong> nuestro viaje” 5 . Franqueado o espaço <strong>da</strong> obra, tudo o<br />

que ali acontece passa a ser nosso também. Afinal, como dispensar tamanha<br />

generosi<strong>da</strong><strong>de</strong>? Além <strong>de</strong> um companheiro <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>, fomos cont<strong>em</strong>plados com o<br />

carimbo que libera o passaporte no t<strong>em</strong>po, “a sus ti<strong>em</strong>pos”.<br />

Po<strong>de</strong>ríamos nos consi<strong>de</strong>rar <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente equipados para a viag<strong>em</strong>, não fosse<br />

Hermes, o Senhor dos caminhos. Foi por isso que Dom Quixote tomou, para si, a<br />

responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhar-nos. Ele conhece b<strong>em</strong> esse Senhor e, apesar do<br />

respeito que lhe t<strong>em</strong>, sabe <strong>de</strong> seus antece<strong>de</strong>ntes, há muito acompanha seu agir.<br />

A precoci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Hermes lhe confere a vantag<strong>em</strong> <strong>de</strong> li<strong>da</strong>r com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong><br />

seu sentido mais pleno. E, apesar <strong>da</strong> má fama <strong>de</strong> mentiroso, trapaceiro, velhaco e<br />

enganador, sua marca diferenciadora é a <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> do hom<strong>em</strong>. Junto com<br />

Dionísio, forma o par menos olímpico dos imortais. E Zeus, assim o redime:<br />

4 O caminho se faz ao an<strong>da</strong>r.<br />

5 Coisas infinitas e maravilhas [...] as quais, <strong>de</strong>vagar e a seu t<strong>em</strong>po, eu irei te contando nas conversas <strong>da</strong> nossa<br />

viag<strong>em</strong> (CERVANTES, Miguel <strong>de</strong>. Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha. Disponível <strong>em</strong>: , versão<br />

Proj. Gutenberg. Acesso <strong>em</strong>: 31 jul 2007, parte 2, capítulo XXIII, p.446).


“Hermes, tua mais agradável tarefa é ser o companheiro do hom<strong>em</strong>”. Por isso, não<br />

po<strong>de</strong>mos dispensar sua companhia.<br />

Se pelos caminhos o vimos roubando, seduzindo, metido <strong>em</strong> trapaças<br />

ardilosas, quando ao hom<strong>em</strong> são <strong>da</strong><strong>da</strong>s oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, po<strong>de</strong>-se estar seguro <strong>de</strong> que<br />

Hermes está por perto. Se o surpreen<strong>de</strong>mos na astúcia <strong>de</strong> amarrar galhos no rabo<br />

<strong>de</strong> animais, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apagar rastros e <strong>de</strong>sorientar, não nos é <strong>da</strong>do o<br />

direito <strong>de</strong> julgá-lo. Afinal, é a ele que cabe intermediar mortais e imortais, ele é o<br />

intérprete <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>uses, a própria palavra-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Com esse Deus, tudo é possível. Uma viag<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua companhia exigirá<br />

gran<strong>de</strong> investimento, mas s<strong>em</strong> ele, não há viag<strong>em</strong>. Não acredit<strong>em</strong>os ser possível<br />

viajar por seus caminhos, s<strong>em</strong> o pressentirmos escondido nas curvas, divertindo-se<br />

e escarnecendo <strong>de</strong> nós. É preciso, portanto, ser precavido; é preciso assimilar algo<br />

<strong>de</strong> sua esperteza; exercitar flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s; observar suas entra<strong>da</strong>s e saí<strong>da</strong>s <strong>em</strong> cena;<br />

reconhecer disfarces; treinar os truques do jogo. Enfim, familiarizar-se com o<br />

fingimento.<br />

Nosso com<strong>pro</strong>misso é resgatar a Aletheia __ missão dura e difícil. Ao longo do<br />

t<strong>em</strong>po, ela foi sendo encoberta por cama<strong>da</strong>s outras que acabaram sufocando-a,<br />

arrancando-lhe o que tinha <strong>de</strong> mais precioso: a dinâmica intrínseca <strong>à</strong> physis.<br />

Nasci<strong>da</strong> na abertura, ou melhor, sendo a própria abertura, livre para atuar na<br />

dinâmica do t<strong>em</strong>po, praticante assídua do jogo do escon<strong>de</strong>r, submeti<strong>da</strong>, entretanto,<br />

ao cativeiro, tinha que sucumbir; per<strong>de</strong>ra a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> do espontâneo e, s<strong>em</strong><br />

m<strong>em</strong>ória, insiste agora <strong>em</strong> escon<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong>finitivamente.<br />

A<strong>pro</strong>ximar-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>-aletheia t<strong>em</strong> se tornado ca<strong>da</strong> dia mais difícil, e nos<br />

sugere esforço no movimento <strong>de</strong> busca. Foi assim que, <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminado momento<br />

<strong>da</strong> obra, acreditamos ser correto o pôr-se <strong>em</strong> movimento <strong>em</strong> alguma direção,<br />

incansáveis na <strong>pro</strong><strong>cura</strong> <strong>da</strong> aletheia. Entretanto, ao <strong>de</strong>scobrirmos gran<strong>de</strong>


familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o universo vocabular que inclui “passos”, tanto como referente<br />

que permite <strong>de</strong>slocamento no espaço, como, também, compondo outro universo<br />

s<strong>em</strong>ântico: “a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira do último passo <strong>de</strong> uma longa seqüência <strong>de</strong> passos<br />

questionantes”, 6 perceb<strong>em</strong>os que qualquer <strong>em</strong>preendimento na linha <strong>da</strong> obra-<strong>de</strong>-<br />

arte precisa ir muito além do que nos chama a atenção mais diretamente, s<strong>em</strong>pre<br />

haverá algo por trás escondido.<br />

É esse “por trás escondido” que põe <strong>em</strong> movimento a obra, fazendo-a o<br />

espaço <strong>de</strong> abertura por excelência, aberturas abertas pelo insidioso <strong>pro</strong>vocar <strong>da</strong>s<br />

questões. Esses são os ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros “passos” <strong>em</strong> direção <strong>à</strong> obra <strong>de</strong> arte: os “passos<br />

questionantes”. Essas são as aberturas que mobilizam o hom<strong>em</strong> a um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />

agir efetivo: o mover-se nas questões.<br />

Orientados por Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro, nos foi possível esse salto: não<br />

abandonarmos o espacial; não per<strong>de</strong>rmos n<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixarmos que Dom Quixote perca o<br />

“passo”; mas nos sensibilizarmos, acima <strong>de</strong> tudo, para as questões, para o<br />

reconhecimento <strong>da</strong> dinâmica dos “passos questionantes” que traçam a trajetória que<br />

ca<strong>da</strong> um realiza <strong>em</strong> contato com a obra.<br />

Tomados <strong>de</strong>ssa consciência, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scartar <strong>de</strong> nossa abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong>,<br />

as questões, esse ingrediente essencial. E, se “a arte é o por-se <strong>em</strong> obra <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” e se “o sentido e vigor fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> “obra” <strong>de</strong> arte não v<strong>em</strong> <strong>de</strong>la, mas <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” 7 , parece que, por elas, já estamos sendo tomados [é preciso estar atento;<br />

não somos nós que nos movimentamos <strong>em</strong> sua direção, são elas, as questões, que<br />

nos tomam]. Parece então que, <strong>de</strong>pois do método e <strong>da</strong> metodologia, estamos sendo<br />

tomados pela primeira questão, a questão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte.<br />

6 HEIDEGGER, M. O originário <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Trad. Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro, parágrafo 158 (mimeo)<br />

7 CASTRO, Antonio Manuel <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 44


Ao nos <strong>de</strong>dicarmos a essa questão na obra Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha, não<br />

nos resta alternativa, senão trabalharmos tendo <strong>em</strong> conta a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do “entre”,<br />

no jogo ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Volt<strong>em</strong>os <strong>à</strong>s questões; antecipar<strong>em</strong>os assim suas facetas. Apesar <strong>de</strong> ser a<br />

obra <strong>de</strong> arte, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, um gran<strong>de</strong> feixe <strong>de</strong> questões, que se <strong>de</strong>sdobram<br />

ininterruptamente, algumas se mostram, pelo modo insidioso como se apresentam,<br />

mais essenciais. Assim, perceb<strong>em</strong>os que a mais essencial <strong>da</strong>s questões, ou as mais<br />

essenciais questões que “perpassam to<strong>da</strong>s as culturas <strong>em</strong> todos os t<strong>em</strong>pos e suas<br />

obras <strong>de</strong> arte” são: “A <strong>em</strong>ergência do hom<strong>em</strong> e o âmbito <strong>de</strong> sua atuação e <strong>de</strong> seu<br />

lugar <strong>de</strong>ntro do real – e o enigma do seu <strong>de</strong>stino” 8 .<br />

No acolhimento <strong>de</strong> Hermes como nosso orientador, optamos pela<br />

hermenêutica. Para surpreen<strong>de</strong>rmos a, ca<strong>da</strong> vez mais acua<strong>da</strong> e escondi<strong>da</strong>,<br />

aletheia, a travessia não po<strong>de</strong> ser linear, será preciso “trans-vertere”, será preciso<br />

franquear os caminhos percorridos ao espaço <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Foi por isso que, inseridos que estávamos num contexto <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>, na<br />

magnífica companhia <strong>de</strong> Dom Quixote, lhe sugerimos que ela fosse realiza<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

périplos. E assim o fiz<strong>em</strong>os: tratamos ca<strong>da</strong> périplo como uma questão, ou melhor,<br />

tratamos ca<strong>da</strong> périplo como <strong>de</strong>sdobramentos, todos <strong>de</strong> uma questão – a questão <strong>da</strong><br />

Cura que intitula nossa pesquisa.<br />

Périplo significa navegação, viag<strong>em</strong> para fora, que implica ir e vir: “ir para<br />

fora” e “vir para <strong>de</strong>ntro”, <strong>em</strong> contínuo movimento. Se a<strong>pro</strong>ximarmos a dinâmica do<br />

périplo <strong>à</strong> dinâmica <strong>da</strong> hermenêutica, ver<strong>em</strong>os ser<strong>em</strong> perfeitamente afins: a ca<strong>da</strong><br />

saí<strong>da</strong> e percurso completo para fora, perfazendo uma circulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, correspon<strong>de</strong> um<br />

outro, <strong>em</strong> sentido oposto. Mas o curioso é que ca<strong>da</strong> nova viag<strong>em</strong> não percorre<br />

8 CASTRO, Antonio Manuel <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 44.


jamais o mesmo caminho. Ou, mesmo que percorra, a ca<strong>da</strong> volta, o mesmo é<br />

s<strong>em</strong>pre novo, t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre novi<strong>da</strong><strong>de</strong> para mostrar.<br />

Não é permitido, entretanto, um rigor <strong>de</strong> planejamento; a ca<strong>da</strong> volta no círculo<br />

é preciso, sim, estar atento, mas s<strong>em</strong> expectativa. Na viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> navegação é<br />

preciso entregar-se, ao sabor <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, ao <strong>de</strong>ixar acontecer na espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>. É<br />

por isso que o jogo <strong>de</strong>svelar-velar reserva s<strong>em</strong>pre surpresas: mostra-escon<strong>de</strong>;<br />

dissimula; <strong>de</strong>ixa resquícios na l<strong>em</strong>brança; constrói pontes e lança-as até a m<strong>em</strong>ória.<br />

Nossa pesquisa é assim: uma viag<strong>em</strong> <strong>em</strong> três périplos, capitanea<strong>da</strong> pela<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ela também se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong> facetas aparent<strong>em</strong>ente<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e dissocia<strong>da</strong>s, mas que, no fundo, são a mesma. Aquela que parece<br />

apresentar-se com mais “cara” <strong>de</strong> ser a mesma, é “Cura”. “Cura” é a questão <strong>da</strong>s<br />

questões, por ser a que trata do que há <strong>de</strong> mais essencial na vi<strong>da</strong> do hom<strong>em</strong>: a sua<br />

humani<strong>da</strong><strong>de</strong>; por tratar do âmbito <strong>de</strong> atuação do hom<strong>em</strong>, tentando <strong>da</strong>r conta do<br />

lugar que ele ocupa <strong>de</strong>ntro do real. Esse é, diríamos, o primeiro nível <strong>de</strong> “Cura”,<br />

aquele que apresenta o hom<strong>em</strong> mais próximo <strong>de</strong> sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> tal modo que<br />

é narrado como mito originário.<br />

Cura, entretanto, vai além do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> si, do hom<strong>em</strong> como aquele que t<strong>em</strong><br />

por si mesmo cui<strong>da</strong>do. Se consi<strong>de</strong>rarmos o texto <strong>da</strong> citação acima, ver<strong>em</strong>os estar,<br />

<strong>de</strong>ntre as questões, também o <strong>de</strong>stino: “o enigma do <strong>de</strong>stino” 9 . Se seguirmos mais<br />

adiante, esbarrar<strong>em</strong>os ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> outra questão, esbarrar<strong>em</strong>os na arte: “as questões<br />

que perpassam to<strong>da</strong>s as culturas <strong>em</strong> todos os t<strong>em</strong>pos e suas obras <strong>de</strong> arte”.<br />

Digamos, então, que vamos apresentar As Três faces <strong>de</strong> “Cura”, ou “Cura”<br />

<strong>em</strong> três t<strong>em</strong>pos”, ou Três para<strong>da</strong>s obrigatórias <strong>de</strong> “Cura”. Tudo isso caberia como<br />

título. Ain<strong>da</strong> que não a vejamos tão explicitamente, <strong>em</strong> todos os lugares, com esse<br />

mesmo nome, “Cura” t<strong>em</strong> essa abrangência, porque é <strong>em</strong> “Cura” que está o hom<strong>em</strong><br />

9 CASTRO, Antonio Manuel <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 13.


<strong>em</strong> sua dimensão <strong>de</strong> “entre-ser”, o hom<strong>em</strong> como o único que dá acesso ao ser,<br />

aquele no qual, no existir, está <strong>em</strong> jogo o seu próprio ser. Isso inclui,<br />

inevitavelmente, o t<strong>em</strong>po e a arte.<br />

“Cura” é cui<strong>da</strong>do, logo, é marca incontestavelmente humana com a qual está<br />

essencialmente o hom<strong>em</strong> com<strong>pro</strong>metido. Assim está caracteriza<strong>da</strong> nossa pesquisa:<br />

<strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>r “Cura”, consi<strong>de</strong>rando sua abrangência – a obra-<strong>de</strong>-arte. Tanto na vi<strong>da</strong><br />

como na arte, “Cura está presente”, tendo o hom<strong>em</strong> como “inter”, como o “inter”-<br />

mediário, como “entre-ser”, na tarefa <strong>de</strong> cumprir sua travessia e <strong>de</strong>scobrir que sua<br />

essência é po<strong>de</strong>r-ser, é ser possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

É claro que essa travessia, <strong>de</strong> tão essencial, ultrapassa os limites <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e<br />

alcança a arte; a essência <strong>da</strong> arte é também ser possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nessa abrangência,<br />

essa é a nossa tese: o hom<strong>em</strong> e a arte têm igual essência – po<strong>de</strong>r-ser, ser<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No percurso <strong>de</strong>ssa investigação, nosso objetivo é buscar, na obra, o caminho<br />

que nos coloque na trilha do hom<strong>em</strong> e <strong>da</strong> arte, naquilo que, <strong>em</strong> sua abrangência, os<br />

acolhe e i<strong>de</strong>ntifica. E ”Cura” os i<strong>de</strong>ntifica.<br />

Nosso objetivo é <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>r o ponto crucial on<strong>de</strong> se cruzam hom<strong>em</strong> e arte. Por<br />

isso, estando, então, nesse universo __ um doutorado <strong>em</strong> Poética, que exige (usando<br />

a forte expressão espanhola) “estar metido hasta las coronillas” 10 num texto poético<br />

__ , esse é o espaço on<strong>de</strong> isso po<strong>de</strong> acontecer. É na obra-<strong>de</strong>-arte Dom Quixote <strong>de</strong> la<br />

Mancha, publica<strong>da</strong> <strong>em</strong> 1605 por Miguel <strong>de</strong> Cervantes, que isso po<strong>de</strong> acontecer: o<br />

acontecer poético, um acontecer <strong>de</strong>ntre os muitos aconteceres poéticos que nessa<br />

obra já tiveram lugar.<br />

No 1 o Périplo, nossa meta é alcançar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote, o fi<strong>da</strong>lgo<br />

que per<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e vira cavaleiro louco. Nossa viag<strong>em</strong> transcorrerá como <strong>pro</strong>-<br />

10 Estar envolvido até “o último fio <strong>de</strong> cabelo”.


<strong>cura</strong>. De tanto ler livros <strong>de</strong> cavalaria, Dom Quixote, seduzido pelo fascínio <strong>da</strong>quelas<br />

novelas, per<strong>de</strong>-se <strong>de</strong> si mesmo, é infectado pela imitação e assume personali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

imprópria.<br />

Sendo as novelas <strong>de</strong> cavalaria elabora<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ntro dos rigores <strong>da</strong> Paidéia,<br />

Dom Quixote tomou, para si, a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consertar o mundo, segundo os<br />

mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “la república cristiana” 11 , investindo-se <strong>da</strong> função <strong>de</strong> cavaleiro-filósofo.<br />

Além <strong>de</strong> estar “en<strong>de</strong>rezando tuertos y <strong>de</strong>sfaciendo agravios” 12 , além <strong>de</strong> sua fixação<br />

<strong>em</strong> fazer justiça com a força <strong>de</strong> seu braço e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sua espa<strong>da</strong>, cui<strong>da</strong> também<br />

<strong>de</strong> fazer to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>mais justiças, e sai pelo mundo pregando to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

veicula<strong>da</strong>s pelos livros <strong>de</strong> cavalaria, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas quais, <strong>de</strong> tanto acreditar, punha<br />

até <strong>em</strong> risco sua vi<strong>da</strong> para <strong>de</strong>fendê-las.<br />

A travessia <strong>de</strong> Dom Quixote nesse Périplo é <strong>em</strong> direção <strong>à</strong> Cura. A<br />

caracterizamos muito mais como <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>, por ser Cura um <strong>pro</strong>cesso ininterrupto do<br />

hom<strong>em</strong> enquanto resi<strong>de</strong> na terra. Nesse caso, entre vi<strong>da</strong> e morte, Cura jamais se<br />

esgota. A <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote acontece no mundo, configurando-se na obra<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu nascimento __ aos cinqüenta anos __ até a morte. Nessa travessia, Dom<br />

Quixote, entrando na vi<strong>da</strong>, optando por viver a cavalaria na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, t<strong>em</strong> a<br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se expor ao acontecer espontâneo, ao sentir e experienciar. Só<br />

assim Dom Quixote pô<strong>de</strong> e po<strong>de</strong> ser-no-mundo.<br />

O que se preten<strong>de</strong> no 1 o Périplo é que Dom Quixote faça a travessia e<br />

recupere o seu próprio, que <strong>de</strong>scubra que a sua essência é po<strong>de</strong>r-ser.<br />

Isso o mobiliza a um agir que, paulatinamente, o obrigará <strong>à</strong> renúncia. À<br />

medi<strong>da</strong> que ca<strong>da</strong> experienciar vai <strong>da</strong>ndo novos sentidos a seu viver, Dom Quixote<br />

vai renunciando <strong>à</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s adquiri<strong>da</strong>s no duro aprendizado <strong>de</strong> sua formação <strong>de</strong><br />

11 A República Cristã (CERVANTES, Miguel <strong>de</strong>. Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha. Disponível <strong>em</strong>:<br />

, versão Proj. Gutenberg. Acesso <strong>em</strong>: 31 jul 2007, parte 1, capítulo XLVII, p.294).<br />

12 Consertando injustiças e <strong>de</strong>sfazendo <strong>de</strong>sacertos (I<strong>de</strong>m, parte 1, capítulo XIX, p.101).


filósofo. E o cavaleiro-filósofo vai <strong>da</strong>ndo lugar ao fi<strong>da</strong>lgo que recobra, assim, a<br />

<strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong> que só o experienciar <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong> lhe conce<strong>de</strong>u.<br />

Como a essência do hom<strong>em</strong> é ser possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, é claro que não alcança<br />

Dom Quixote a sua essência, <strong>de</strong>finindo-se e enquadrando-se num <strong>de</strong>terminado<br />

perfil. Afinal, ao recobrar o próprio, Dom Quixote <strong>de</strong>scobre, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que é<br />

po<strong>de</strong>r-ser muitos.<br />

No 2 o Périplo, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> persegui<strong>da</strong> está inscrita no t<strong>em</strong>po – a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote. Mesmo que o cavaleiro não se movimente nesse Périplo,<br />

isso, entretanto, caracteriza uma viag<strong>em</strong> também. Por isso, nosso olhar para o 2 o<br />

Périplo t<strong>em</strong> uma dose <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança. Nele, mais parece que Dom Quixote está <strong>em</strong><br />

repouso, como se fizesse uma para<strong>da</strong> para reflexão. Trata-se <strong>de</strong> uma viag<strong>em</strong> ao<br />

centro <strong>da</strong> Terra. Dom Quixote entra <strong>em</strong> “La Cueva <strong>de</strong> Montesinos” 13 e, <strong>em</strong> seu<br />

interior, recebe revelações.<br />

Parece a<strong>pro</strong>ximar<strong>em</strong>-se, neste 2 o Périplo, o t<strong>em</strong>po e o <strong>de</strong>stino. Entretanto,<br />

<strong>em</strong>bora Dom Quixote tenha franqueado o circuito <strong>de</strong> Cura a todos os homens, a eles<br />

ficando muito atento para observá-los <strong>em</strong> diálogo com o mundo; <strong>em</strong>bora tenha<br />

lançado seu olhar ao “outro”, <strong>de</strong>tectando, com esse olhar, a extensão-<strong>de</strong>stino aliado<br />

ao t<strong>em</strong>po; esse repouso, essa para<strong>da</strong> aparente, caracteriza também uma viag<strong>em</strong>,<br />

viag<strong>em</strong> <strong>em</strong> nível mais <strong>pro</strong>fundo. No 3º Périplo, volta a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote,<br />

<strong>de</strong>ssa vez, obra <strong>de</strong> arte.<br />

Desse modo, po<strong>de</strong>mos assim resumir a travessia que, junto com Dom<br />

Quixote, far<strong>em</strong>os. No 1º Périplo, Dom Quixote, acreditando saber <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> na<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

si sabe. E sai <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>de</strong> si, sai <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura, sai <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>de</strong> sua<br />

essência.<br />

13 A caverna <strong>de</strong> Montesinos.


No trânsito entre o 1º e o 2º Périplos, Dom Quixote inicialmente vai conjugar<br />

sua missão <strong>de</strong> filósofo, com uma nova que estará anunciando-se: o hermeneuta, e<br />

assume a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> passar o gran<strong>de</strong> conhecimento, adquirido no 1º.<br />

Périplo, a todos os homens.<br />

Para b<strong>em</strong> realizar essa nova missão, Dom Quixote precisa passar por<br />

experiência originária, on<strong>de</strong> receberá, <strong>de</strong>ntre as gran<strong>de</strong>s revelações sobre o seu<br />

t<strong>em</strong>po, a maior <strong>da</strong>s revelações. Só aí se assume hermeneuta, aquele que, tendo<br />

sido escolhido para receber a mensag<strong>em</strong> dos <strong>de</strong>uses, t<strong>em</strong> como com<strong>pro</strong>misso<br />

transmiti-la aos <strong>de</strong>mais homens.<br />

No 3º Périplo, Dom Quixote, estando ain<strong>da</strong> <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>, precisa encontrar a<br />

forma digna para falar aos homens, não só a seus cont<strong>em</strong>porâneos espanhóis,<br />

como também a todos os homens do mundo.<br />

Depois <strong>de</strong> muito cavilar sobre o ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong> ou não-ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong><br />

arte, Dom Quixote, <strong>de</strong> maneira diferente <strong>da</strong> anterior, é novamente tomado pelos<br />

<strong>de</strong>uses e <strong>de</strong>scobre, afinal, a melhor forma <strong>de</strong> dizer aos homens a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: Dom<br />

Quixote, hom<strong>em</strong>, fi<strong>da</strong>lgo, cavaleiro, filósofo, hermeneuta, quer <strong>de</strong>scobrir sua<br />

essência e a persegue como obra <strong>de</strong> arte.<br />

Na viag<strong>em</strong>-travessia que realizar<strong>em</strong>os, a convite e junto com Dom Quixote,<br />

ter<strong>em</strong>os, por meta, <strong>de</strong>scobrir a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do hom<strong>em</strong>, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra, e, com isso,<br />

fazer a convocação geral para ocupação do mais digno e real lugar do hom<strong>em</strong>, o<br />

lugar <strong>de</strong> “entre-ser”, o único lugar on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> exerce sua maior gran<strong>de</strong>za do<br />

hom<strong>em</strong>: ser amoroso, estar aberto ao ser, entrar no jogo <strong>em</strong> que o amor assim se<br />

resume: o <strong>de</strong>svelamento ama o velamento. Estando no “entre-ser”, estará o hom<strong>em</strong><br />

no lugar do mais essencial idílio amoroso. Aceit<strong>em</strong>os todos o convite.


Capítulo I<br />

1 o Périplo<br />

DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA


1 O DIAGNÓSTICO DA LOUCURA<br />

“Yo sé quien soy”: 14 15 assim entra Dom Quixote no mundo ficcional criado por<br />

Cervantes. Abandona os livros e o lar, e vai ser cavaleiro.<br />

Depois <strong>de</strong> a personag<strong>em</strong> tanto ler os muitos “requiebros” __ floreios<br />

lingüísticos <strong>de</strong> Feliciano <strong>de</strong> Silva, seu autor preferido <strong>de</strong> novelas <strong>de</strong> cavalaria __ ,<br />

16 17<br />

somos informados, quase <strong>de</strong> chofre, <strong>de</strong> que “perdía el pobre Caballero el juicio”.<br />

Em fração <strong>de</strong> segundos, <strong>de</strong> fi<strong>da</strong>lgo vira cavaleiro. E, assim, entre ama<strong>da</strong>s e<br />

escu<strong>de</strong>iros, entre cavalos e armaduras, vai Dom Quixote impondo a cavalaria<br />

medieval <strong>à</strong> Espanha do século XVI, até o primeiro momento <strong>em</strong> que, <strong>de</strong>frontando-se<br />

com uma oposição ve<strong>em</strong>ente e radical <strong>de</strong> seu vizinho Pedro Alonso, que lhe diz não<br />

ser ele o cavaleiro que pensava encarnar “sino el honrado hi<strong>da</strong>lgo <strong>de</strong>l señor<br />

Quijana” 18 .<br />

E é nesse momento que, exasperado, Dom Quixote respon<strong>de</strong>: “Yo sé quien<br />

soy”. Seria a lou<strong>cura</strong> por trás <strong>de</strong> suas palavras? Dom Quixote, o “cavaleiro louco”, é<br />

talvez um dos lugares-comuns mais repetidos. Mas será Dom Quixote <strong>de</strong> fato<br />

Louco? E por quê o seria?<br />

14<br />

Eu sei qu<strong>em</strong> sou (1, V, p.35)<br />

15<br />

Ressaltamos que os três capítulos <strong>de</strong>sta tese foram baseados na obra Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, <strong>de</strong> Miguel <strong>de</strong> Cervantes.<br />

Entre outras, foram consulta<strong>da</strong>s as seguintes referências bibliográficas:<br />

CERVANTES, Miguel <strong>de</strong>. Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha. Barcelona: Juventud, 1955.<br />

Ibi<strong>de</strong>m. Disponível <strong>em</strong>: , versão Proj. Gutenberg. Acesso <strong>em</strong>: 31 jul 2007.<br />

Pela gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> citações, a partir <strong>da</strong>qui, optamos por registrar como referencial bibliográfico <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Cervantes,<br />

somente a forma numérica <strong>da</strong>s “partes”, <strong>em</strong> algarismos arábicos, e <strong>de</strong> “capítulos”, <strong>em</strong> algarismos romanos; as páginas<br />

refer<strong>em</strong>-se <strong>à</strong> fonte eletrônica, acima cita<strong>da</strong> [ex: (2, XXXII, p.487)].<br />

16<br />

Perdia o pobre cavaleiro o juízo (1, I, p.18)<br />

17<br />

Como aqui ocorre, <strong>em</strong> muitos outros ex<strong>em</strong>plos haverá enca<strong>de</strong>amento sintático entre as duas línguas: Português e Espanhol.<br />

18 E sim o honrado fi<strong>da</strong>lgo, o senhor Quijana (1, V, p.35).


Do muito que se falou sobre a lou<strong>cura</strong> no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote, <strong>da</strong>r<strong>em</strong>os<br />

preferência <strong>à</strong> palavra <strong>de</strong> Ortega y Gasset 19 , pois o pensador espanhol é um dos que<br />

mais se <strong>de</strong>dicaram <strong>à</strong> pesquisa do evento <strong>da</strong> leitura no século XVI e seu significado<br />

para a época. Entretanto, <strong>em</strong>bora ele reconheça ser a ficção impressa “la forma<br />

artística que nos involucre <strong>de</strong> la manera más íntima, ya que tiene lugar en nuestro<br />

<strong>pro</strong>pio espíritu” 20 , comenta com uma ponta <strong>de</strong> ironia que não era necessário ter sido<br />

tão singularmente suscetível <strong>à</strong> leitura, a ponto <strong>de</strong> passar “por la misteriosa<br />

experiencia <strong>de</strong> haber sido tomado – infectado espiritualmente por una obra <strong>de</strong><br />

ficción” 21 .<br />

Para ca<strong>da</strong> coisa existe a que lhe contrapõe e, sabe-se b<strong>em</strong> que a<br />

contraparti<strong>da</strong> <strong>da</strong> doença só po<strong>de</strong> ser a <strong>cura</strong>. Por mais que Dom Quixote, teimoso e<br />

<strong>de</strong> “cabeça quente”, pu<strong>de</strong>sse relutar, isto só seria por pouco t<strong>em</strong>po. Ce<strong>de</strong>ndo, afinal,<br />

acabaria concor<strong>da</strong>ndo, e partiria <strong>em</strong> suas an<strong>da</strong>nças <strong>à</strong> <strong>pro</strong><strong>cura</strong> 22 <strong>da</strong> <strong>cura</strong>.<br />

Alonso Quijano, <strong>de</strong> tanto ler livros <strong>de</strong> cavalaria tomou a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> fazer uma<br />

lou<strong>cura</strong>: <strong>de</strong>cidira por si mesmo e, a partir <strong>de</strong> si mesmo, ser cavaleiro an<strong>da</strong>nte.<br />

Mesmo que não radicaliz<strong>em</strong>os, avaliando sua <strong>de</strong>cisão como lou<strong>cura</strong>, é plausível que<br />

a ach<strong>em</strong>os estranha, pelo menos. Abandonar os livros que tanto o seduziam; <strong>de</strong> tão<br />

estranho, chega a parecer louco. É compreensível, pois, que se levant<strong>em</strong> hipóteses<br />

que a justifiqu<strong>em</strong>. O que o teria levado a ser cavaleiro, afinal? Achamos melhor,<br />

entregá-lo <strong>à</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> competente – um médico. Se essa foi a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> nosso<br />

herói, respeitando a avaliação <strong>de</strong> Ortega y Gasset, que a respeit<strong>em</strong>os também.<br />

Po<strong>de</strong> parecer simples, mas a <strong>pro</strong><strong>cura</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>pro</strong>mete ser longa. Só é<br />

19 C.f. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993.<br />

20 A forma artística que nos envolva <strong>da</strong> maneira mais íntima, visto que ocorre <strong>em</strong> nosso próprio espírito (Apud GILMAN, S.<br />

La novela según Cervantes. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993, p.25).<br />

21 Pela misteriosa experiência <strong>de</strong> ter sido tomado – infectado espiritualmente por uma obra <strong>de</strong> ficção (Ibi<strong>de</strong>m).<br />

22 Em outros momentos, a palavra será grafa<strong>da</strong> segundo Hei<strong>de</strong>gger: “<strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>”. Hei<strong>de</strong>gger caracteriza como “<strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>” a<br />

trajetória realiza<strong>da</strong>, por todo hom<strong>em</strong>, no <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> autoconhecimento.


possível contar, por enquanto, com algumas informações fragmenta<strong>da</strong>s,<br />

ouvi<strong>da</strong>s e li<strong>da</strong>s.<br />

Mesmo contrariando os <strong>pro</strong>cedimentos médicos <strong>da</strong> época <strong>em</strong> relação ao<br />

louco 23 , período <strong>em</strong> que os cui<strong>da</strong>dos <strong>pro</strong>fissionais não tinham lugar no espaço <strong>de</strong><br />

reclusão, ain<strong>da</strong> assim, po<strong>de</strong>ríamos aqui simular para Dom Quixote um atendimento<br />

nos mol<strong>de</strong>s dos t<strong>em</strong>pos atuais, e assim tentar enten<strong>de</strong>r a lou<strong>cura</strong> que o aflige e<br />

infecta. Qu<strong>em</strong> sabe assim não alcançamos a orig<strong>em</strong> e/ou as causas <strong>de</strong> sua<br />

“infecção”? Qu<strong>em</strong> sabe assim não po<strong>de</strong>ríamos compreen<strong>de</strong>r o porquê do caminho<br />

que toma?<br />

1.1 DOM QUIXOTE E A RIGOROSA ANAMNESE<br />

O médico começa fazendo uma anamnese durante o exame clínico <strong>de</strong> seu<br />

paciente. T<strong>em</strong> sentido que assim se <strong>pro</strong>ce<strong>da</strong>, retroce<strong>de</strong>ndo ao ponto <strong>em</strong> que ele não<br />

apresentava ain<strong>da</strong> sinais <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong>. Dom Quixote precisaria respon<strong>de</strong>r a perguntas<br />

<strong>de</strong> importância capital: 1) O que o levou a ler <strong>de</strong>scontrola<strong>da</strong>mente tantos livros <strong>de</strong><br />

cavalaria?; 2) E por que <strong>de</strong>cidiu abandonar a leitura, optando por torná-la “real”, com<br />

a <strong>de</strong>cisão tão radical <strong>de</strong> viver um personag<strong>em</strong> <strong>da</strong> cavalaria?; 3) O que pretendia,<br />

afinal, sendo cavaleiro?; 4) E como se <strong>pro</strong>cessou a metamorfose? 24<br />

Perguntado insistent<strong>em</strong>ente e <strong>pro</strong>vocado ve<strong>em</strong>ent<strong>em</strong>ente pelo médico <strong>à</strong>s<br />

r<strong>em</strong>iniscências acerca do princípio e evolução <strong>de</strong> sua doença, por mais que se<br />

23 Consultar, a este respeito, o primeiro capítulo <strong>de</strong> Jean Calmon Mo<strong>de</strong>nesi (MODENESI, J.C. O Dom Quixote <strong>de</strong> Foucault.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Papers, 2003), que traça contun<strong>de</strong>nte análise do modo como a lou<strong>cura</strong> era encara<strong>da</strong> e “trata<strong>da</strong>” nesta época.<br />

Foi no mesmo cenário mo<strong>de</strong>rno <strong>da</strong> afirmação crescente <strong>da</strong> razão mo<strong>de</strong>rna (ratio) e <strong>da</strong> ciência, que se começou a tentar<br />

“diagnosticar” a lou<strong>cura</strong>, com os assim diagnosticados passando a ser simplesmente “trancafiados” <strong>em</strong> locais próprios, asilos<br />

que <strong>pro</strong><strong>cura</strong>vam suprimir o <strong>de</strong>satino e a lou<strong>cura</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

24 A investigação <strong>de</strong>stas quatro perguntas constituirá o cerne <strong>da</strong>s próximas subsessões, <strong>de</strong> “1.1.1” a “1.1.4”.


esforçasse, Dom Quixote não conseguia atinar. Reconhec<strong>em</strong>os sua incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

respon<strong>de</strong>r com clareza, e <strong>de</strong>cidimos auxiliá-lo nas respostas; o avançado <strong>da</strong><br />

infecção era visível, já turvava sua mente.<br />

1.1.1 Por que lia tanto os livros <strong>de</strong> cavalaria?<br />

Esta é a primeira pergunta do suposto <strong>pro</strong>cedimento clínico <strong>de</strong> anamnese do<br />

relutante paciente. Muitas são as suposições sobre o mergulho histérico e radical <strong>de</strong><br />

Dom Quixote nos livros <strong>de</strong> cavalaria. Que o ócio era reinante naquelas terras, b<strong>em</strong> o<br />

sab<strong>em</strong>os; o encontramos <strong>em</strong> qualquer estudo sobre a obra: “y los más locos son los<br />

más ociosos”, 25 além <strong>de</strong> estar presente <strong>em</strong> comentários na própria obra: “Este [...]<br />

hi<strong>da</strong>lgo, los ratos que estaba ocioso, que eran los más <strong>de</strong>l año” 26 . O ócio era <strong>de</strong> tal<br />

modo presente que se estendia até as coisas: “[...] el famoso caballero don Quijote<br />

<strong>de</strong> la Mancha, <strong>de</strong>jando las ociosas plumas, subió sobre su famoso caballo Rocinante<br />

[...]” 27 . Qu<strong>em</strong> sabe o justificasse o tédio do cotidiano que acenava como uma<br />

ameaça constante. Tal ameaça, por sua vez, incitava <strong>à</strong> fuga, lançando todos os que<br />

o experimentass<strong>em</strong>, <strong>à</strong> qualquer lugar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fora do alcance do raio incômodo<br />

do tédio. Era preciso fazer algo para dissipar o tédio crescente na Espanha <strong>da</strong><br />

época.<br />

Pierre Vilar nos dá mostras, quando <strong>de</strong>screve o perfil <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> espanhola: “todo<br />

es divertirse en fiestas, jugar y cazar”; ou “no se habla <strong>de</strong> otra cosa que <strong>de</strong> las<br />

25<br />

E os mais loucos são os mais ociosos (VILAR, P. Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. 5.ed.<br />

Barcelona: Ariel, 1993, p.345).<br />

26<br />

Este fi<strong>da</strong>lgo, os momentos que ficava ocioso, que eram os mais do ano (1, I, p.18).<br />

27<br />

O famoso cavaleiro Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha, <strong>de</strong>ixando as ociosas plumas, montou sobre seu famoso cavalo<br />

Rocinante (1, II, p.21).


fiestas” 28 . Dom Quixote n<strong>em</strong> ia a festas, n<strong>em</strong> caçava; mas, como também nos alerta<br />

Vilar, antes <strong>de</strong> querer ser cavaleiro, agia do mesmo modo que todos “los <strong>de</strong> la<br />

España <strong>de</strong> 1600”: 29 preferia sonhar. Embora não fosse a festas, n<strong>em</strong> caçasse, lia;<br />

fazia parte <strong>da</strong>quele grupo, infectado pela mesma máquina literária que, como um<br />

furacão, sacudiu Madrid. Esse fenômeno está <strong>em</strong> sintonia com outro: a inchação do<br />

setor “terciário”, não <strong>pro</strong>dutivo, que absorveu uma boa fatia <strong>da</strong> mão <strong>de</strong> obra ociosa 30 .<br />

Dessa fatia, participavam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “los encantadores” – intelectuais, no melhor sentido<br />

<strong>da</strong> palavra, os que escreviam livros <strong>de</strong> cavalaria – até “los <strong>pro</strong>veedores <strong>de</strong> leyen<strong>da</strong>s”<br />

– <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> heróis <strong>da</strong> cavalaria que, <strong>à</strong> base <strong>de</strong> encomen<strong>da</strong>, <strong>de</strong>sdobravam<br />

aventuras <strong>em</strong> mirabolantes e repeti<strong>da</strong>s versões, do mesmo t<strong>em</strong>a, “me parece que,<br />

cuál más, cuál menos, todos ellos son una mesma cosa”, 31 como atesta o texto<br />

cervantino. E o público incansável, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o rei e o clérigo, até o hom<strong>em</strong> médio, se<br />

nutria <strong>de</strong>ssa literatura: “son leídos y celebrados [...] <strong>de</strong> todo género <strong>de</strong> personas”. 32<br />

V<strong>em</strong>os com isso que o mergulho <strong>de</strong> Alonso Quijano no universo literário <strong>da</strong><br />

cavalaria não é novi<strong>da</strong><strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>nte. Antes estava rigorosamente <strong>de</strong>ntro dos<br />

“mol<strong>de</strong>s vigentes” do espírito <strong>de</strong> sua época. Sabe-se que, na Espanha <strong>da</strong> época, a<br />

leitura transformara-se numa paixão, chegando <strong>à</strong>s raias do vício. Que a vi<strong>da</strong>, na<br />

Espanha do século XVI, não oferecia, ao fi<strong>da</strong>lgo, nenhuma saí<strong>da</strong> n<strong>em</strong> do ócio n<strong>em</strong><br />

<strong>da</strong> miséria parece ser evi<strong>de</strong>nte. No solo <strong>de</strong> Espanha, ou divertia-se <strong>em</strong> festas e<br />

caça<strong>da</strong>s ou se lia. E a própria obra também o test<strong>em</strong>unha: Dom Quixote e todos<br />

“pasaban las noches leyendo <strong>de</strong> claro en claro y los días <strong>de</strong> turbio en turbio”. 33<br />

28<br />

Tudo é diversão <strong>em</strong> festas, jogos e caça<strong>da</strong>s [ou] não se fala <strong>de</strong> outra coisa, senão <strong>da</strong>s festas (VILAR, P., op. cit.,<br />

p.336-337).<br />

29<br />

Os <strong>da</strong> Espanha <strong>de</strong> 1600. (VILAR, P. Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1993, p.344).<br />

30 Cf. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993, p.25.<br />

31<br />

Me parece que um mais, outros menos, são todos a mesma coisa. (1, XLVII, p.293).<br />

32<br />

São lidos e celebrados [...] por todo tipo <strong>de</strong> gente (1, L, p.304).<br />

33<br />

Passavam as noites <strong>de</strong> claro <strong>em</strong> claro e os dias <strong>de</strong> sombra <strong>em</strong> sombra. (1, I, p.18)


1.1.2 Por que abandonou a leitura e <strong>de</strong>cidiu ser cavaleiro?<br />

Por que este teria <strong>de</strong>cidido sair <strong>da</strong> ficção para a vi<strong>da</strong>, abandonando o tédio<br />

ocioso e a distração <strong>da</strong> leitura?<br />

O que nos oferece <strong>de</strong> concreto o texto é que Dom Quixote experimentava a<br />

ociosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, negligente a todo e qualquer agir. Não fazia na<strong>da</strong>; não trabalhava, não<br />

cui<strong>da</strong>va <strong>de</strong> suas terras, não <strong>pro</strong>duzia. Dom Quixote era pura estagnação: “olvidó casi<br />

<strong>de</strong> todo punto el ejercicio <strong>de</strong> la caza, y aun la administración <strong>de</strong> su hacien<strong>da</strong>” 34 . Duas<br />

causas po<strong>de</strong>m justificar esse quadro: é possível que o fato <strong>de</strong> ser tomado pela<br />

inativi<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>de</strong>vesse ao anúncio <strong>de</strong> uma nova época que se vinha instalando.<br />

Esta, talvez, já diss<strong>em</strong>inasse o impulso ao pensar. Po<strong>de</strong>-se também atribuí-lo <strong>à</strong><br />

mu<strong>da</strong>nça radical <strong>de</strong> hábito ali verifica<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> a velha leitura oral “estaba planead(a)<br />

al parecer (al igual que un manuscrito) para leerse en voz alta. Es <strong>de</strong>cir, se entonaba<br />

palabra por palabra, para regocijo <strong>de</strong> un <strong>em</strong>belesado grupo <strong>de</strong> oyentes” 35 __ era<br />

substituí<strong>da</strong> pela leitura silenciosa: “hacia 1605 un tal Alonso Quijano y otros que<br />

compartían su adicción <strong>de</strong>voraban <strong>de</strong> manera silenciosa” 36 .<br />

Do mesmo modo que essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> nova incitou o fi<strong>da</strong>lgo ao hábito<br />

<strong>de</strong>smedido <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> cavalaria, po<strong>de</strong> também ter contribuído para seu<br />

abandono. Ela <strong>pro</strong>vocava gran<strong>de</strong>s transformações no modo <strong>de</strong> viver <strong>da</strong> época.<br />

Como observa ain<strong>da</strong> Gilman 37 , não se po<strong>de</strong> imaginar o impacto <strong>de</strong> tal mu<strong>da</strong>nça.<br />

34 Abandonou quase <strong>de</strong> todo a prática <strong>da</strong> caça, e até mesmo a administração <strong>de</strong> seu patrimônio. (1, I, p.18).<br />

35 Estava planejado ao que parece (assim como um manuscrito) para ler-se <strong>em</strong> voz alta. Quer dizer, entoava-se palavra por<br />

palavra, para regozijo <strong>de</strong> um extasiado grupo <strong>de</strong> ouvintes. (Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México:<br />

Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993, p.18)<br />

36 Por volta <strong>de</strong> 1605, um tal Alonso Quijano e outros que compartilhavam seu vício <strong>de</strong>voravam <strong>de</strong> maneira silenciosa. (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

37 C.f. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993.


Estaria Dom Quixote, como atesta Pierre Vilar, mergulhado num vazio<br />

insuportável, ao que, na introdução, chamamos <strong>de</strong> “falta”? O psicanalista Mauro<br />

Maldonato 38 caracteriza essa patologia como “experiência do pânico”,<br />

caracterizando a doença como uma ligação <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong> com o “na<strong>da</strong>”. Haveria algo<br />

que o angustiasse? Estaria Dom Quixote angustiado ou bastava o tédio para tirá-lo<br />

<strong>da</strong> leitura <strong>de</strong>vocional e arr<strong>em</strong>essá-lo <strong>em</strong> terras medievais, <strong>pro</strong><strong>cura</strong>ndo, na magia<br />

perdi<strong>da</strong> e que impregnara aquele ambiente, uma fuga ou uma ponta <strong>de</strong> motivação?<br />

O que teria, afinal, levado Dom Quixote a tomar estranha <strong>de</strong>cisão, e a querer,<br />

assim, mergulhar na vi<strong>da</strong>, tentando experienciá-la?<br />

O mal po<strong>de</strong>ria estar na própria leitura. Impossível, diriam todos; a julgar pela<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Ortega y Gasset, que expressa um envolvimento pleno e <strong>pro</strong>fundo <strong>de</strong><br />

todos na leitura <strong>de</strong> vasta ficção disponível naquela época. O difícil é saber o<br />

significado dos gestos que acompanhavam a leitura: “<strong>de</strong>voraban <strong>de</strong> manera<br />

silenciosa, [...] sus labios aún se movían, [...] sus manos se contraían, [...] pasaban<br />

las noches leyendo” 39 . Correspon<strong>de</strong>ria esse gestual ao famoso e significativo<br />

“levantar <strong>da</strong> cabeça”, aludido por Roland Barthes 40 . Ou estaria sendo<br />

<strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente passiva sua leitura?<br />

Não era medo n<strong>em</strong> pânico, não era tédio, não era angústia? Havia sim um<br />

sentimento inexplicável que, talvez, Francisca Nóbrega 41 nos possa explicar: Po<strong>de</strong><br />

parecer contraditório que Dom Quixote estivesse mal, por influência <strong>de</strong> alguma falta.<br />

Segundo Francisca Nóbrega, tomando como base Riobaldo <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão<br />

Vere<strong>da</strong>s, a “falta” é a maior gran<strong>de</strong>za do hom<strong>em</strong>. Nesse caso, se no sertão um<br />

hom<strong>em</strong> também o experimentou, estaria Dom Quixote sentindo, na<strong>da</strong> menos, o que<br />

38 MALDONATO, Mauro. A beira do na<strong>da</strong>. Revista viver, mente e cerébro. [S.l.]: Duetto, ano XII, n.148, mai. 2005.<br />

39 Devoravam <strong>de</strong> maneira silenciosa [...] seus lábios ain<strong>da</strong> se moviam, [...] suas mãos se contraiam [...] passavam as noites<br />

lendo (Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993, p.18).<br />

40 BARTHES, R. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977.<br />

41 NOBREGA, Francisca. Laboratório <strong>de</strong> literatura poética. Ano 1, n.1, março <strong>de</strong> 1998 (mimeo).


é comum a todos os homens: este vazio s<strong>em</strong> fun<strong>da</strong>mento, esta falta <strong>de</strong> que estamos<br />

todos imbuídos? É claro que há perguntas que aqui ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>ixamos <strong>em</strong> aberto,<br />

afinal <strong>de</strong> que falta estamos falando? E por que Francisca Nóbrega caracteriza isso<br />

como a maior gran<strong>de</strong>za do hom<strong>em</strong>?<br />

1.1.3 O que pretendia, afinal, Dom Quixote, sendo cavaleiro?<br />

A obra Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha foi reconheci<strong>da</strong> como inauguradora <strong>de</strong> um<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o experimentar e o existir se sobressaíram aos olhos <strong>de</strong> seus leitores.<br />

E é exatamente a gran<strong>de</strong> incidência do experimentar e do existir, como<br />

componentes do perfil <strong>de</strong>ssa manifestação literária, que a a<strong>pro</strong>xima, <strong>de</strong> algum modo,<br />

<strong>da</strong> <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> nosso herói: sair do livro para entrar na vi<strong>da</strong>, para ter a experiência<br />

nos próprios acontecimentos, na própria existência.<br />

Sabe-se, entretanto, ser esse <strong>da</strong>do limitado diante <strong>da</strong> gran<strong>de</strong>za <strong>da</strong> obra; por<br />

isso, recomendável é ampliar o horizonte <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s: está claro que algo<br />

muito especial, algo que fosse digno, era o que Dom Quixote pretendia. Pois, se<br />

entrou na vi<strong>da</strong> com o firme <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> ser cavaleiro, num t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que essa<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> já não era possível – posto que o mundo medieval, com seus cavaleiros e<br />

dragões, já se perdia na poeira do passado – só algo muito especial o moveria.<br />

Segre<strong>de</strong>mos aqui: Dom Quixote entra e não entra. É interessante que sai <strong>da</strong> ficção<br />

<strong>da</strong> cavalaria, para entrar na vi<strong>da</strong>. Mas essa vi<strong>da</strong> é também, e ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

outra ficção, pois o mundo medieval que ele pretendia experienciar não mais<br />

correspondia ao mundo <strong>da</strong> Espanha <strong>da</strong> época. Nesta ficção <strong>de</strong> mundo <strong>da</strong> cavalaria,<br />

cria<strong>da</strong> por Dom Quixote, ele mesmo, por sua vez, fora obrigado a viver também uma


vi<strong>da</strong> falsa ou fingi<strong>da</strong>. Jogo <strong>de</strong> espelhos, reduplicação <strong>de</strong> mundo como ficção ou<br />

ficção como mundo? Duplo fingir? Como explicar a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> existir e ampliar<br />

a experiência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> assim? Como é possível a Dom Quixote viver <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

fingindo na vi<strong>da</strong> ou vivendo na ficção que ele mesmo criara? Infectado <strong>de</strong> ficção é o<br />

viver <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

“Yo sé quien soy” __ diante do anunciar-se do cavaleiro, Ortega y Gasset<br />

passa a analisar sob outra perspectiva sua lou<strong>cura</strong>: Como é possível, afirmar-se,<br />

saber ser com tamanha certeza, aquilo que, a olhos vistos, não se é? Só a lou<strong>cura</strong><br />

parece po<strong>de</strong>r justificar equívoco <strong>de</strong>sse calibre.<br />

Volt<strong>em</strong>os <strong>à</strong> pergunta acima: Como é possível viver <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, fingindo na<br />

ficção? A não ser que, como está b<strong>em</strong> expresso nas <strong>de</strong>clarações que caracterizam o<br />

romance, se confirme a estreita relação entre hom<strong>em</strong>, vi<strong>da</strong> e obra <strong>de</strong> arte 42 .<br />

Até a terceira pergunta, Dom Quixote já tinha reunido o seguinte: a<br />

importância <strong>da</strong> experiência; que havia uma estranha superposição entre existir na<br />

vi<strong>da</strong> real e existir na ficção. Isso, consi<strong>de</strong>rando que Dom Quixote, ao sair <strong>da</strong> ficção<br />

para existir e experimentar a vi<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong>, acaba caindo <strong>em</strong> outra ficção. Qual a<br />

relação entre viver e fingir que a<strong>pro</strong>ximaria vi<strong>da</strong> e ficção?<br />

Para essa pergunta, encontramos somente a orientação <strong>de</strong> Carneiro Leão: “A<br />

única via <strong>de</strong> acesso que resta é a vivência [...] <strong>da</strong>s manifestações e dos <strong>pro</strong>dutos<br />

que nos <strong>de</strong>ixou a vi<strong>da</strong>” 43 . E foi o que fez Dom Quixote, foi buscar a única via <strong>de</strong><br />

acesso num <strong>pro</strong>duto que lhe tinha <strong>de</strong>ixado a vi<strong>da</strong> – uma obra <strong>de</strong> arte, as novelas <strong>de</strong><br />

cavalaria. Pelo transparente <strong>da</strong> orientação, é b<strong>em</strong> possível que tenha mobilizado o<br />

herói; pois parece que é esse seu <strong>pro</strong>cedimento: quer ter a vivência do que lera nos<br />

livros <strong>de</strong> cavalaria, trazendo a ficção para a vi<strong>da</strong>.<br />

42<br />

Estes pontos, que agora são <strong>de</strong>ixados <strong>em</strong> aberto, serão retomados no 3º Périplo, quando abor<strong>da</strong>r<strong>em</strong>os a relação entre arte<br />

e ver<strong>da</strong><strong>de</strong> na obra e na poesia.<br />

43<br />

LEÃO, E. C. Apren<strong>de</strong>ndo a pensar. 4.ed. Petropolis: Vozes, 2000, v.1, p.35.


Se estava tão seguro <strong>de</strong> si, precisaria Dom Quixote, sabendo b<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> é,<br />

fazer tamanho investimento pelo puro <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> experimentar essa “façanha”? Há<br />

autores que atribu<strong>em</strong> coisas <strong>de</strong>ssa categoria ao po<strong>de</strong>r que tomou para si o hom<strong>em</strong><br />

do Renascimento nessa época – que se caracteriza pelo crescente humanismo e<br />

valorização <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> é que tudo po<strong>de</strong> conhecer e criar 44 .<br />

Como hom<strong>em</strong> do Renascimento, Dom Quixote está tomado <strong>da</strong>quilo que transbor<strong>da</strong><br />

no ar: um tudo querer saber; uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>r conta do mundo; e a<br />

prepotência <strong>de</strong> achar que tudo isso ele po<strong>de</strong>ria. Nessa importante posição central<br />

que lhe cobra a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r aos gran<strong>de</strong>s impasses <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

compreen<strong>de</strong>-se a <strong>de</strong>smedi<strong>da</strong> do fi<strong>da</strong>lgo.<br />

Que seja assim. De qualquer modo, entretanto, parece no mínimo estranha a<br />

<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> ser cavaleiro, e buscar viver uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ultrapassa<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ntro do novo<br />

paradigma vigente e s<strong>em</strong> <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito maior, apenas por simples capricho. Será esta a<br />

lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote?<br />

1.1.4 Como se <strong>pro</strong>cessou a metamorfose?<br />

Quando falamos <strong>de</strong> metamorfose, pensamos logo <strong>em</strong> “transformação <strong>de</strong> um<br />

ser <strong>em</strong> outro” 45 . Ter-se-ia transformado Dom Quixote <strong>em</strong> alguma coisa que não era<br />

antes? Qu<strong>em</strong> seria esse outro, que até então, ele não era? Afinal, para o po<strong>de</strong>r que<br />

ansiava o hom<strong>em</strong> do Renascimento, tudo era possível; até transformações <strong>de</strong>sse<br />

porte.<br />

44 Cf. CHAUÍ, Marilena. Convite <strong>à</strong> filosofia. 17.ed. São Paulo: Ática, 2002.<br />

45 HOLANDA, A. B. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1326.


A Dom Quixote, para qu<strong>em</strong> o <strong>pro</strong>jeto <strong>de</strong> ser cavaleiro era “tudo”, não lhe<br />

interessavam tais questionamentos. Para ele, transformar-se era muito simples; tudo<br />

parecia funcionar como um movimento <strong>em</strong> ca<strong>de</strong>ia, cujos <strong>de</strong>sdobramentos<br />

comporiam, por si sós, o quadro medieval <strong>de</strong> que precisava para nele atuar.<br />

Entretanto, do que precisava, naquele momento, era tomar a primeira <strong>de</strong>cisão: sair<br />

<strong>da</strong> leitura, abandonar os livros e partir para a vi<strong>da</strong>. Dom Quixote precisava mesmo,<br />

naquele momento, experimentar a vi<strong>da</strong> e existir.<br />

Acreditando <strong>em</strong> tudo o que aquela leitura gravara <strong>em</strong> sua mente, Dom<br />

Quixote “fica seco” por um veículo que lhe dê acesso e o coloque nessa via. Lança<br />

mão do pouco que está a seu alcance, ao alcance <strong>de</strong> suas mãos – o universo <strong>da</strong><br />

cavalaria que conhecera pela leitura, e vai experimentar a vivência <strong>da</strong>quela ficção. E<br />

assim, toma carona <strong>em</strong> Rocinante que lhe pareceu a<strong>de</strong>quado para percorrer os<br />

“velhos caminhos medievais” <strong>da</strong> cavalaria.<br />

A s<strong>em</strong>elhança é uma gran<strong>de</strong> estratégia <strong>de</strong> Dom Quixote para operar a<br />

metamorfose. Gostaríamos <strong>de</strong> colocar foco sobre a s<strong>em</strong>elhança. É ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou<br />

Dom Quixote sabe b<strong>em</strong> o que faz, quando a usa? Descobriu-se que até o final do<br />

século XVI havia no mundo um <strong>de</strong>sdobramento infinito por s<strong>em</strong>elhança; “s<strong>em</strong>pre<br />

havia uma similitu<strong>de</strong> a ser <strong>de</strong>svela<strong>da</strong>, uma s<strong>em</strong>elhança a ser <strong>de</strong>scoberta, uma<br />

analogia a ser interpreta<strong>da</strong> por sob a marca do verbo e <strong>da</strong> natureza” 46 . Isso indicia<br />

quão ain<strong>da</strong> estava aberta a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ao conhecimento e, nesse caso, é possível<br />

compreen<strong>de</strong>r a crença <strong>de</strong> Dom Quixote nessa possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobrar-se. A<br />

s<strong>em</strong>elhança e a analogia se encarregavam <strong>de</strong>, pela <strong>pro</strong>vocação, garantir<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> natureza e verbo pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> <strong>em</strong>anar s<strong>em</strong>pre mais e mais.<br />

Dom Quixote ain<strong>da</strong> a<strong>pro</strong>veita os resquícios <strong>da</strong>quela época que estava se<br />

extinguindo, mas que lhe era fort<strong>em</strong>ente próxima, porque nela estivera metido “hasta<br />

46 MODENESI, Jean Calmon. O Dom Quixote <strong>de</strong> Foucault. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Papers, 2003.


las coronillas” 47 . Ao longo <strong>de</strong> bom t<strong>em</strong>po, Dom Quixote, <strong>de</strong> tanto ler, estava tão<br />

familiarizado com essa estratégia, que a tinha próxima, b<strong>em</strong> ao alcance <strong>de</strong> suas<br />

mãos: conhecia b<strong>em</strong> o <strong>pro</strong>cesso, dispensava qualquer aju<strong>da</strong>.<br />

T<strong>em</strong>os, numa passag<strong>em</strong>, a estratégia usa<strong>da</strong> pelo fi<strong>da</strong>lgo, para virar cavaleiro<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito apanhar, pelo arrogante que ele fora com “un mozo <strong>de</strong> mulas” 48 .<br />

Dom Quixote, s<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r levantar-se, porque tinha o corpo moído, buscou, <strong>em</strong> sua<br />

m<strong>em</strong>ória, alguma passag<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhante para não per<strong>de</strong>r a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reviver<br />

as histórias. L<strong>em</strong>brou <strong>de</strong> Valdovinos que, também ferido, passara por situação<br />

s<strong>em</strong>elhante: “Ésta, pues, le pareció a él que le venía <strong>de</strong> mol<strong>de</strong> para el paso en que<br />

se hallaba” 49 e, imitando-a como um louco, começou a arrastar o corpo na terra<br />

dizendo as mesmas palavras do personag<strong>em</strong>. E assim vai Dom Quixote pelo<br />

caminho: a<strong>pro</strong>veita uma situação que esteja vivendo ao acaso, para copiar outra <strong>da</strong><br />

qual, por s<strong>em</strong>elhança, po<strong>de</strong> a<strong>pro</strong>veitar-se.<br />

Examin<strong>em</strong>os o termo “<strong>de</strong> mol<strong>de</strong>”, ele nos sugere haver s<strong>em</strong>pre um mol<strong>de</strong>, um<br />

mo<strong>de</strong>lo a copiar. A<strong>pro</strong>veit<strong>em</strong>os também o termo “paso” para registrarmos a marca<br />

<strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong> obra que conta uma história expressando movimento <strong>em</strong> alguma<br />

direção. Dom Quixote se encontrava naquele ponto <strong>da</strong> caminha<strong>da</strong>, <strong>da</strong>ndo um<br />

“passo” <strong>em</strong> direção a alguma coisa ou a algum lugar.<br />

Em outro equívoco, Dom Quixote confun<strong>de</strong> seu vizinho Pedro Alonso,<br />

acreditando ser ele um personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> cena muito s<strong>em</strong>elhante a <strong>de</strong> seus livros <strong>de</strong><br />

cavalaria, chamando-o <strong>de</strong> Don Rodrigo <strong>de</strong> Narváez – o Marquês <strong>de</strong> Mantua. Este,<br />

ao ouvir Dom Quixote contar-lhe sobre sua ama<strong>da</strong> e sabedor <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso, muito aborrecido, esclarece que n<strong>em</strong> ele é Marquês, n<strong>em</strong> Dom<br />

47 “Até o último fio <strong>de</strong> seu cabelo”<br />

48 Um moço que cui<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mulas. (1, IV, p.33)<br />

49 Esta, pois, lhe pareceu que vinha muito a <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito para a situação <strong>em</strong> que se encontrava. (1, V, p.34)


Quixote é cavaleiro. Isso <strong>de</strong>ixa indignado <strong>de</strong> tal maneira o herói, que assim lhe<br />

respon<strong>de</strong>:<br />

Yo sé quien soy – respondió don Quijote-; y sé que puedo ser no sólo los<br />

que he dicho, sino todos los Doce Pares <strong>de</strong> Francia, y aun todos los Nueve<br />

<strong>de</strong> la Fama, pues a to<strong>da</strong>s las hazañas que ellos todos juntos y ca<strong>da</strong> uno por<br />

sí hicieron, se aventajarán las mías. 50<br />

Não se entrega, não admite: n<strong>em</strong> que o vizinho não é Valdovinos, n<strong>em</strong> que<br />

ele não é Dom Quixote, um Cavaleiro <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média. Ao contrário, repete<br />

histericamente saber qu<strong>em</strong> é, além <strong>de</strong> saber po<strong>de</strong>r ser todos os cavaleiros, <strong>de</strong> que já<br />

teve notícia a história <strong>da</strong> cavalaria heróica, reforçando e confirmando sua lou<strong>cura</strong>.<br />

Essa fixação <strong>de</strong> Dom Quixote po<strong>de</strong> ser li<strong>da</strong>, também, como exacerbação<br />

caracteriza<strong>da</strong>, por alguns <strong>de</strong> seus estudiosos, como excesso <strong>de</strong> vai<strong>da</strong><strong>de</strong> e crença<br />

<strong>em</strong> seu po<strong>de</strong>r. Não seria este eco do po<strong>de</strong>r autoconferido, excesso <strong>de</strong> confiança <strong>em</strong><br />

si mesmo, orgulho humano, a cega confiança <strong>em</strong> seu po<strong>de</strong>r racional, fogo roubado<br />

dos <strong>de</strong>uses? Esse po<strong>de</strong>r não adquiriu Dom Quixote no mundo <strong>da</strong> ficção <strong>da</strong><br />

cavalaria; antes o absorveu <strong>em</strong> seu próprio mundo, que transpirava os primeiros<br />

ares <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Não satisfeito <strong>em</strong> ser um cavaleiro, Dom Quixote quer e diz po<strong>de</strong>r ser todos<br />

os cavalerios que já existiram, e constant<strong>em</strong>ente afirma sua consciência <strong>de</strong> ser<br />

superior a todos. Ain<strong>da</strong> que se atribua seu comportamento <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong>, no que diz<br />

Dom Quixote, há resquício <strong>de</strong> algo que não se <strong>de</strong>ixa ver. É nesse ponto que outro<br />

nível se insinua. Não sab<strong>em</strong>os esclarecer o que não se <strong>de</strong>ixa ver; mas <strong>de</strong>ixar<strong>em</strong>os<br />

aqui um espaço para posterior conexão. Por enquanto, só perceb<strong>em</strong>os que Dom<br />

Quixote está muito seguro <strong>de</strong> si; além <strong>de</strong> saber-se cavaleiro, sabe que po<strong>de</strong> ser<br />

50 Eu sei qu<strong>em</strong> sou – respon<strong>de</strong>u Dom Quixote, – e sei que posso ser não apenas os que lhe disse, como todos os doze Pares<br />

<strong>de</strong> França, e até mesmo todos os nove <strong>da</strong> fama, pois a to<strong>da</strong>s as façanhas que eles todos juntos e ca<strong>da</strong> um por si fizeram,<br />

avantajar-se-ão as minhas. (1, V, p.35).


muitos outros. O que nos intriga é a certeza: “y sé que puedo ser”. Parece nos estar<br />

convocando a um nível mais <strong>pro</strong>fundo.<br />

É necessário, portanto, não per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que, além <strong>da</strong> certeza do que diz<br />

Dom Quixote, e apesar <strong>de</strong>, pelo recurso <strong>da</strong> s<strong>em</strong>elhança, ir fazendo as transferências<br />

e atribuindo, por correspondência, nomes que i<strong>de</strong>ntifiqu<strong>em</strong> personagens <strong>da</strong>s novelas<br />

com pessoas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po, ele mesmo não se i<strong>de</strong>ntifica com um<br />

cavaleiro específico. Por mais que seu referencial maior seja Amadis <strong>de</strong> Gaula,<br />

possui i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> própria, com nome só seu e tudo mais que lhe correspondia. Isso<br />

o coloca na galeria dos antigos cavaleiros, ocupando o lugar <strong>de</strong> mais um <strong>de</strong>ntre<br />

todos: o cavaleiro Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha. Ele não <strong>de</strong>seja <strong>de</strong> fato imitar alguém;<br />

antes, é seu próprio caminho que <strong>de</strong>seja alcançar. É a sua própria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, não a<br />

<strong>de</strong> nenhum outro, o que busca. 51<br />

Retom<strong>em</strong>os como se <strong>de</strong>u sua metamorfose. A s<strong>em</strong>elhança é somente uma<br />

<strong>da</strong>s estratégias usa<strong>da</strong>s por Dom Quixote <strong>em</strong> sua transformação <strong>em</strong> cavaleiro. Monta<br />

no lombo <strong>de</strong> Rocinante e sai para o mundo, mas antes toma to<strong>da</strong>s as <strong>pro</strong>vidências<br />

para realizar tal façanha radical. Já estava cansado <strong>da</strong> mise-en-scène <strong>de</strong> cavaleiro:<br />

conta sua sobrinha que, muitas vezes, ain<strong>da</strong> enquanto lia, atirava longe o livro,<br />

pegava a espa<strong>da</strong> e representava, agindo como perfeito cavaleiro. Naquele<br />

momento, entretanto, optando pela radicali<strong>da</strong><strong>de</strong>, realiza a transformação com tudo o<br />

que tinha direito um cavaleiro. Dom Quixote sai <strong>da</strong> biblioteca e põe o pé nos<br />

caminhos <strong>de</strong> La Mancha. Dá seus primeiros passos na ficção, aos 50 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

usando a estratégia <strong>da</strong> s<strong>em</strong>elhança “que le venía <strong>de</strong> mol<strong>de</strong> para el paso en que se<br />

hallaba” 52 Dom Quixote não per<strong>de</strong> o passo, a<strong>pro</strong>veita-se do universo que as novelas<br />

<strong>de</strong> cavalaria lhe ofereciam para com ele po<strong>de</strong>r viver, pondo-se <strong>em</strong> diálogo com o<br />

51 Há este insistir, ao qual o cavaleiro volta a todo momento: “Yo sé quien soy”, reforçado pela certeza do saber: “Y sé que<br />

puedo ser”; mas atenuado pelo verbo “po<strong>de</strong>r” que indica possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa insistência não é gratuita; <strong>de</strong> tão evi<strong>de</strong>nte, não há<br />

mais dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que insinua uma questão que, no mínimo, inclui a questão do eu e do outro que será retoma<strong>da</strong> no 2 o Périplo.<br />

52 Que vinha muito a <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito para a situação <strong>em</strong> que se encontrava. (1, V, p.34)


mundo, <strong>de</strong>ixando falar o ser, permitindo que a linguag<strong>em</strong> lhe contasse a sua<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Presumir-se-ia que, pelos cinqüenta, já estivesse completo, que o t<strong>em</strong>po<br />

vivido já lhe tivesse legado tudo <strong>de</strong> que precisa um hom<strong>em</strong> ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Há,<br />

entretanto, aqui, uma leve contradição: parece estranho que um hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> 50 anos,<br />

tão seguro <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e completu<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> ter plena consciência <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />

as suas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “puedo ser no sólo los que he dicho, sino todos” 53 , se lance<br />

repentinamente no caminho <strong>da</strong> aventura. Segundo <strong>de</strong>poimentos, seu objetivo é<br />

“an<strong>da</strong>r por el mundo en<strong>de</strong>rezando tuertos y <strong>de</strong>sfaciendo agravios” 54 . Ou seja, seu<br />

com<strong>pro</strong>misso é colocar o mundo <strong>em</strong> or<strong>de</strong>m, e isso não parece indicar nenhum sinal<br />

<strong>de</strong> busca.<br />

Se Dom Quixote <strong>pro</strong><strong>cura</strong>va algo que lhe faltava, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria buscá-lo?<br />

Chegamos a uma encruzilha<strong>da</strong> que requisita <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> caminho: ou Dom<br />

Quixote sabe qu<strong>em</strong> é ou não sabe qu<strong>em</strong> é, <strong>em</strong>bora afirme sabê-lo. Viver essa<br />

contradição, por volta dos 50 anos, s<strong>em</strong> ser acometido por nenhum conflito, mal-<br />

estar ou sinal <strong>de</strong> estar <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> algo, é quase impossível. E, mais ain<strong>da</strong>, sair<br />

pelo mundo tão seguro, acreditando po<strong>de</strong>r transformá-lo... Essa é só uma<br />

perspectiva. Há outra, entretanto: o dinamismo contido no ser cavaleiro dá, <strong>à</strong> sua<br />

escolha, outro significado <strong>pro</strong>vável. É possível que, por trás <strong>da</strong> ingênua missão <strong>de</strong><br />

“an<strong>da</strong>r por el mundo en<strong>de</strong>rezando tuertos y <strong>de</strong>sfaciendo agravios”, buscando<br />

somente aventuras, algo mais esteja escondido, algo <strong>em</strong> que, disfarçado, possa<br />

viajar clan<strong>de</strong>stinamente. Algo que <strong>da</strong>rá sentido <strong>à</strong> sua caminha<strong>da</strong>.<br />

Ao pensarmos a metamorfose do fi<strong>da</strong>lgo Alonso Quijano no cavaleiro Dom<br />

Quixote, se sobressa<strong>em</strong> para nós, repeti<strong>da</strong>mente, no mesmo contexto, termos como:<br />

53 Posso ser não apenas os que eu disse, como também todos os <strong>de</strong>mais (1, V, p.35)<br />

54 An<strong>da</strong>r pelo mundo consertando injustiças e <strong>de</strong>sfazendo <strong>de</strong>sacertos (1, XIX, p.101)


“trajetória”; “caminha<strong>da</strong>”; “passo”... Estes normalmente indiciariam espaço geográfico<br />

e <strong>de</strong>slocamento físico. Mas no caso específico do t<strong>em</strong>a <strong>de</strong>sta pesquisa, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po que estes termos indiciam essa perspectiva, parece também que a reforçam:<br />

com a cavalaria an<strong>da</strong>nte contribu<strong>em</strong>, para o <strong>de</strong>slocar espacial, não só as quatro<br />

patas <strong>de</strong> um cavalo, como os dois pés do cavaleiro. S<strong>em</strong> contar com a mu<strong>da</strong>nça<br />

radical que se <strong>pro</strong>cessa no romance: a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong> repouso <strong>em</strong> que vivia<br />

um fi<strong>da</strong>lgo – “los ratos que estaba ocioso, que eran los más <strong>de</strong>l año” 55 , para um<br />

movimento dinâmico: a opção <strong>de</strong> abandonar a leitura silenciosa estática, e “irse por<br />

todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo<br />

aquello” 56 . Parece que Dom Quixote interiorizou um <strong>de</strong>sejo súbito, um inexplicável<br />

“querer” ser cavaleiro. Por mais que busqu<strong>em</strong>os uma explicação, só o “querer” faz<br />

sentido.<br />

Saindo do texto ficcional, fomos buscar <strong>em</strong> outras e novas fontes e<br />

encontramos, ain<strong>da</strong>, outros termos afins a esse campo s<strong>em</strong>ântico que, talvez,<br />

também pela s<strong>em</strong>elhança, nos sirvam <strong>de</strong> pista. Ali l<strong>em</strong>os o seguinte: “A resposta <strong>à</strong><br />

pergunta é, como ca<strong>da</strong> autêntica resposta, a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira do último passo <strong>de</strong><br />

uma longa seqüência <strong>de</strong> passos questionantes” 57 .<br />

Aqui também há passos: “último passo” e “seqüência <strong>de</strong> passos” vêm ao<br />

encontro do universo vocabular espacial e dinâmico que apresentamos. Entretanto,<br />

há inclusão <strong>de</strong> outros termos que, com eles, são postos <strong>em</strong> tensão, aparent<strong>em</strong>ente<br />

inconciliáveis e que, por isso, merec<strong>em</strong> atenção. Entram aqui os termos “resposta” e<br />

“questionantes” como partícipes <strong>da</strong> dinâmica dos “passos”. Isso reconfigura o visto,<br />

anteriormente, e exige revisão do significado <strong>da</strong>queles vocábulos. Deles, o que<br />

necessariamente <strong>de</strong>verá ganhar nova dimensão é o significado <strong>de</strong> “espacial”. Assim,<br />

55 Os momentos que ficava ocioso, que eram os mais do ano. (1, I, p.18)<br />

56 Ir-se pelo mundo com suas armas e cavalo a <strong>pro</strong><strong>cura</strong>r aventuras e a praticar tudo aquilo. (1, I, p.19)<br />

57 HEIDEGGER, Martin. O originário <strong>da</strong> Obra <strong>de</strong> Arte. Trad. Manuel Antônio <strong>de</strong> Castro e I<strong>da</strong>lina Azevedo <strong>da</strong> Silva, parágrafo<br />

158 (mimeo).


a “seqüência <strong>de</strong> passos” não se efetiva, num limite geográfico. Logo, não será na<br />

dimensão espacial que Dom Quixote encontrará na<strong>da</strong> além <strong>de</strong> aventuras.<br />

Retom<strong>em</strong>os, pois, o ponto. Estávamos nas estratégias por s<strong>em</strong>elhança –<br />

recurso usado fartamente pelo fi<strong>da</strong>lgo, nas situações <strong>em</strong> que necessitava <strong>da</strong>r maior<br />

realismo <strong>à</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> cavaleiro. Por s<strong>em</strong>elhança, necessitava também <strong>de</strong> todos os<br />

el<strong>em</strong>entos que os <strong>de</strong>mais cavaleiros dispunham <strong>em</strong> sua história: armas e uma<br />

po<strong>de</strong>rosa armadura; o melhor <strong>de</strong> todos os cavalos, que estivesse <strong>à</strong> altura do<br />

cavaleiro que pretendia ser; e o amor <strong>de</strong> uma bela e nobre <strong>da</strong>ma.<br />

Dom Quixote elimina <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> instrumento do seu mundo todo o excesso não<br />

necessário n<strong>em</strong> essencial para que tenha lugar no mundo <strong>da</strong> cavalaria, seleciona<br />

rigorosamente somente o que esteja <strong>de</strong>ntro dos limites que lhe confer<strong>em</strong> o status <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; ao mesmo t<strong>em</strong>po, não <strong>de</strong>scui<strong>da</strong> <strong>de</strong> manter um fio, mínimo que seja, para<br />

garantir-lhe a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que vai precisar para cruzar aqueles difíceis e tortuosos<br />

caminhos. Observa-se, ain<strong>da</strong>, cui<strong>da</strong>do excessivo com o nomear. T<strong>em</strong>-se a sensação<br />

<strong>de</strong> que as coisas só ganham lugar no mundo, se nomea<strong>da</strong>s.<br />

Vê-se, então, que além do recurso <strong>da</strong> pura e simples s<strong>em</strong>elhança, Dom<br />

Quixote selecionou criteriosamente os itens fun<strong>da</strong>mentais que faziam parte do rol do<br />

manual “Como ser cavaleiro”, diluído nas histórias e disponível <strong>em</strong> qualquer livro <strong>de</strong><br />

cavalaria, e buscou <strong>da</strong>r reali<strong>da</strong><strong>de</strong> concreta a ca<strong>da</strong> um. Inteligente a <strong>pro</strong>vidência: <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> el<strong>em</strong>ento selecionou só o necessário para <strong>de</strong>fini-lo e colocá-lo no mundo.<br />

A armadura foi o que mais trabalho exigiu, mas, finalmente, ele mesmo julgou,<br />

por si só, ser uma armadura finíssima, o que tinha realizado <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> vez.<br />

Depois do fracasso <strong>da</strong> primeira experiência, <strong>em</strong> que o futuro cavaleiro, vendo<br />

que a armadura “<strong>de</strong> sus bisabuelos” 58 não era a melhor para aquela <strong>em</strong>presa,<br />

porque não <strong>pro</strong>tegia a cabeça totalmente, <strong>de</strong>u um “jeitinho” e “a<strong>de</strong>rezólas lo mejor<br />

58 De seus bisavós (1, I, p.19)


que pudo” 59 e, o que nela faltava, com sua “industria”, ele completou com papelão,<br />

estando seguro <strong>de</strong> que, com essa <strong>pro</strong>vidência, a armadura ficara com “apariencia <strong>de</strong><br />

cela<strong>da</strong> entera” 60 , e completa para <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong> sua função.<br />

Na dúvi<strong>da</strong>, no entanto, resolveu “<strong>pro</strong>bar si era fuerte y podía estar al riesgo <strong>de</strong><br />

una cuchilla<strong>da</strong>” 61 . Contra a armadura arr<strong>em</strong>essou algumas faca<strong>da</strong>s, o que a fez virar<br />

“pe<strong>da</strong>cinhos”, pondo por terra o trabalho <strong>de</strong> uma s<strong>em</strong>ana. Refez tudo, substituindo o<br />

papelão por ferro, e, mesmo sabendo <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> submetê-la <strong>à</strong> nova<br />

experiência, o ignora, concluindo por sua própria conta, estar “satisfecho <strong>de</strong> su<br />

fortaleza” 62 . Só porque colocara uns “ferrinhos” por <strong>de</strong>ntro, já lhe bastava para trazê-<br />

la ao mundo como armadura; estava ajustadíssima, por correspondência, ao<br />

significado que lhe <strong>da</strong>va aquele nome. E foi assim que, <strong>de</strong>finitivamente, “la diputó y<br />

tuvo por cela<strong>da</strong> [...] <strong>de</strong> encaje” 63 .<br />

Quanto ao cavalo – “tenía más cuartos que un real” 64 , seus cascos sofriam <strong>da</strong><br />

mesma doença do cavalo <strong>de</strong> Gonela, e ele mancava; mas esse <strong>da</strong>do não era na<strong>da</strong><br />

importante, uma vez que a Dom Quixote seu cavalo “le pareció” superior, comparado<br />

ao “Bucéfalo <strong>de</strong> Alejandro” e ao “Babieca el <strong>de</strong>l Cid” 65 . Mais importante do que sua<br />

performance física, foi encontrar-lhe um nome sonoro que estivesse <strong>à</strong> altura <strong>de</strong><br />

cavaleiro tão famoso; nessa tarefa gastou quatro dias. “Rocin-ante”: “ante”, prefixo<br />

disponível na língua que, acrescentado ao nome, faz <strong>de</strong> qualquer cavalo, o anterior,<br />

o primeiro, o melhor e mais importante <strong>de</strong> todos “los rocines”.<br />

59<br />

Reparou-as o melhor que po<strong>de</strong>. (1, I, p.19)<br />

60<br />

Aparência <strong>de</strong> cela<strong>da</strong> inteira. (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

61<br />

Experimentar se era forte e resistiria ao perigo <strong>de</strong> uma punhala<strong>da</strong>. (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

62<br />

Satisfeito <strong>de</strong> sua resistência (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

63<br />

Reputou-a e teve como cela<strong>da</strong> (antiga armadura <strong>de</strong> ferro para a cabeça) [...] <strong>de</strong> ajuste (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

64<br />

Tinha mais quartos que um real. (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

65<br />

Pareceu-lhe [superior (...) ao] Bucéfalo <strong>de</strong> Alexandre Magno [e ao] Babieca, o <strong>de</strong> el Cid (Ibi<strong>de</strong>m)


Seu pangaré foi elevado <strong>à</strong> categoria <strong>de</strong> “primero <strong>de</strong> todos los rocines <strong>de</strong>l<br />

mundo” 66 , por um critério unicamente seu, s<strong>em</strong> que o cavalo tivesse, <strong>em</strong> momento<br />

algum, <strong>de</strong>monstrado, <strong>em</strong> nenhuma situação real e concreta, merecer tal posição <strong>de</strong><br />

privilégio. Muito pelo contrário, estava cheio <strong>de</strong> “cuartos”, e, por isso mancava. Como<br />

é possível ser um cavalo, consi<strong>de</strong>rado o primeiro, o melhor entre todos, se é manco,<br />

por ter as patas cheias <strong>de</strong> bicho? Mas na<strong>da</strong> disso importa para Dom Quixote; a<br />

<strong>de</strong>signação tinha simplesmente que estar <strong>em</strong> perfeito acordo com a pompa exigi<strong>da</strong><br />

para o nome dos cavalos <strong>de</strong> ilustres cavaleiros. Isso foi só o que contou como<br />

significativo.<br />

Para sua ama<strong>da</strong> Dulcinea, consi<strong>de</strong>rou a função primordial <strong>de</strong> que os gigantes,<br />

seus futuros vencidos <strong>de</strong> guerra, precisariam ter a qu<strong>em</strong> se apresentar:<br />

Yo señora, soy el gigante [...] a quien venció [...] don Quijote <strong>de</strong> la Mancha,<br />

el cual me mandó que me presentase ante vuestra merced, para que la<br />

vuestra gran<strong>de</strong>za disponga <strong>de</strong> mí a su talante. 67<br />

Se era amor <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não v<strong>em</strong> ao caso. Muito pelo contrário; do que<br />

precisava mesmo era do mínimo suficiente para tornar visível o atributo platônico<br />

<strong>da</strong>quele amor, el<strong>em</strong>ento essencial, <strong>de</strong>ntro dos contornos do mundo <strong>da</strong> cavalaria. E<br />

Dom Quixote, disso cuidou: diz<strong>em</strong> tratar-se <strong>de</strong> uma vizinha <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia próxima por<br />

qu<strong>em</strong> estivera enamorado por algum t<strong>em</strong>po.<br />

Apesar do cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> se manter no ar algum vínculo <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ligando<br />

Aldonza Lorenzo a Dom Quixote: “en un lugar cerca <strong>de</strong>l suyo había una moza<br />

labradora <strong>de</strong> muy bien parecer, <strong>de</strong> quien él un ti<strong>em</strong>po anduvo enamorado”, o<br />

fun<strong>da</strong>mental v<strong>em</strong> a seguir, <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> conjunção concessiva “aunque”: “aunque, [...]<br />

66 Primeiro <strong>de</strong> todos os rocins do mundo (1, I, p.20)<br />

67 Eu, senhora, sou o gigante [...] a qu<strong>em</strong> venceu Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, o qual me or<strong>de</strong>nou que me apresentasse diante<br />

<strong>de</strong> vossa mercê, para que vossa gran<strong>de</strong>za disponha <strong>de</strong> mim a seu talante. (Ibi<strong>de</strong>m)


ella jamás lo supo, ni le dió cata <strong>de</strong>llo” 68 . Fun<strong>da</strong>mental porque é a concessiva, que<br />

põe, no seu amor, o símbolo platônico.<br />

Dera forma não só a uma ama<strong>da</strong>, mas também a um amor platônico, tão<br />

necessário para <strong>da</strong>r reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ao único el<strong>em</strong>ento que lhe faltava na composição do<br />

instrumental cavaleiresco. Ao acaso escolhe uma vizinha, e lhe dá o nome <strong>de</strong><br />

“Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso”, por ser natural <strong>de</strong>sse lugar. Se era nobre, não importa; só<br />

precisava que o nome inventado não <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r a dois pontos importantes:<br />

“que tirase y se encaminase al <strong>de</strong> princesa y gran señora” e que “no <strong>de</strong>sdijese<br />

mucho <strong>de</strong>l suyo” 69 . E, assim, <strong>de</strong>u por consuma<strong>da</strong> a situação, porque a Dom Quixote<br />

“le pareció” estar aquela mulher sob medi<strong>da</strong> para suas pretensões. Bastava que<br />

tivesse nome <strong>de</strong> princesa e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> senhora.<br />

Todo o necessário para ser cavaleiro já estava arranjado e <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente<br />

nomeado; tudo “a su parecer” 70 . Tudo nomeado e <strong>de</strong>finido do jeito como parecia<br />

significativo e conveniente a Dom Quixote. Resta ain<strong>da</strong> compreen<strong>de</strong>r esse modo <strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>r forma ao mundo, <strong>de</strong>monstrando cui<strong>da</strong>do com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po que,<br />

<strong>de</strong>sse cui<strong>da</strong>do se <strong>de</strong>scui<strong>de</strong>.<br />

2 A PROCURA DA CURA ÔNTICA, UM ERRO DE PERCURSO<br />

Respondi<strong>da</strong>s <strong>à</strong>s perguntas do suposto médico, a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> respondê-las<br />

soma<strong>da</strong> a nenhum vislumbre – mínimo sequer – <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> seu “quadro clínico<br />

68 Em algum lugar perto do seu, havia uma moça lavradora, <strong>de</strong> muito boa aparência, pela qual, uma vez, andou apaixonado [O<br />

fun<strong>da</strong>mental (...) “aunque”:] Ain<strong>da</strong> que [...] ela nunca tenha sabido ou buscado saber disso. (1, I, p.20)<br />

69 Que l<strong>em</strong>brasse ou se a<strong>pro</strong>ximasse ao <strong>de</strong> princesa e gran<strong>de</strong> senhora [e que] não <strong>de</strong>stoasse muito do seu. (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

70 Em sua opinião.


e infeccioso”, faz-nos pensar que po<strong>de</strong>ríamos estar equivocados. Estaríamos<br />

<strong>pro</strong><strong>cura</strong>ndo a Cura para a “infecção” <strong>de</strong> Dom Quixote no lugar certo?<br />

Até agora, só <strong>pro</strong><strong>cura</strong>mos Cura <strong>em</strong> sentido ôntico, factual, Cura como<br />

contraposta <strong>à</strong> doença. Mas se a infecção <strong>de</strong> Dom Quixote é <strong>de</strong> outro tipo, resultado<br />

do jogo <strong>de</strong> espelhos entre vi<strong>da</strong> e ficção, vi<strong>da</strong> e criação poética, não seria também <strong>de</strong><br />

outro tipo sua Cura?<br />

O que este jogo <strong>de</strong> palavras escon<strong>de</strong>? Se Cura virou uma questão, é preciso<br />

pedir aju<strong>da</strong>, para melhor compreensão.<br />

A princípio, optamos por refletir sobre a Cura no sentido que até aqui v<strong>em</strong><br />

sendo trabalhado, no sentido usual: aquele que s<strong>em</strong>pre imediatamente nos v<strong>em</strong> ao<br />

encontro, porque há muito já circula no senso comum. Nesse sentido, ela é<br />

<strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> que exige cui<strong>da</strong>dos médicos e r<strong>em</strong>édios, implicando, assim, “o cui<strong>da</strong>do e<br />

a <strong>de</strong>dicação”. Mas po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> Cura <strong>em</strong> outro sentido? Que outra Cura para a<br />

infecção 71 <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>pro</strong><strong>cura</strong>r?<br />

Séculos atrás, já é possível encontrar referência <strong>à</strong> Cura como algo <strong>de</strong><br />

“extr<strong>em</strong>a importância” para o hom<strong>em</strong> e seu viver. Há uma fábula <strong>de</strong> Higino que já<br />

b<strong>em</strong> o <strong>de</strong>staca.<br />

2.1 HEIDEGGER, A CURA COMO MITO E A EXISTÊNCIA DO HOMEM<br />

71 O mesmo impasse <strong>em</strong> relação ao sentido <strong>de</strong> <strong>cura</strong> esten<strong>de</strong>-se ao sentido <strong>de</strong> infecção, com o qual Ortega y Gasset<br />

diagnosticou Dom Quixote.


A resposta a essa outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> fomos encontrar <strong>em</strong> Ser e t<strong>em</strong>po, na<br />

interpretação do filósofo <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s Fábulas <strong>de</strong> Higino 72 , que por ora<br />

apresentamos, como um “test<strong>em</strong>unho pre-ontológico” <strong>da</strong> “Cura” 73 .<br />

Certa vez, atravessando um rio, <strong>cura</strong> viu um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> terra argilosa:<br />

cogitando, tomou um pe<strong>da</strong>ço e começou a lhe <strong>da</strong>r forma. Enquanto refletia<br />

sobre o que criara, interveio Júpiter. A <strong>cura</strong> pediu-lhe que <strong>de</strong>sse espírito <strong>à</strong><br />

forma <strong>de</strong> argila, o que Júpiter fez <strong>de</strong> bom grado. Como a <strong>cura</strong> quis então <strong>da</strong>r<br />

seu nome ao que tinha <strong>da</strong>do forma, Júpiter a <strong>pro</strong>ibiu e exigiu que fosse<br />

<strong>da</strong>do o nome. Enquanto <strong>cura</strong> e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu<br />

também a terra (tellus) querendo <strong>da</strong>r o seu nome, uma vez que havia<br />

fornecido um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como<br />

árbitro. Saturno <strong>pro</strong>nunciou a seguinte <strong>de</strong>cisão, aparent<strong>em</strong>ente eqüitativa:<br />

“Tu, Júpiter, por teres <strong>da</strong>do o espírito, <strong>de</strong>ves receber na morte o espírito e<br />

tu, terra, por teres <strong>da</strong>do o corpo, <strong>de</strong>ves receber o corpo. Como, porém, foi a<br />

Cura qu<strong>em</strong> primeiro o formou, ele <strong>de</strong>ve pertencer <strong>à</strong> Cura enquanto viver.<br />

Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele <strong>de</strong>ve se chamar “homo”,<br />

pois foi feito <strong>de</strong> humus (terra) 74<br />

Assim foi criado o “Homo” – assim na terra como no céu – por ele<br />

respon<strong>de</strong>ndo Terra e Júpiter. Foi apreendido como composto <strong>de</strong> corpo e espírito.<br />

Entretanto, esse test<strong>em</strong>unho pre-ontológico dá novo significado <strong>à</strong> orig<strong>em</strong> do hom<strong>em</strong><br />

e atribui pre<strong>dom</strong>inância ao seu viver. A orig<strong>em</strong> do ser do hom<strong>em</strong> é Cura, e “esse<br />

ente não é abandonado por essa orig<strong>em</strong>, mas, ao contrário, por ela mantido e<br />

<strong>dom</strong>inado enquanto for e estiver no mundo” 75 . À Cura, <strong>de</strong>ve estar entregue o<br />

hom<strong>em</strong>, enquanto estiver nesta travessia entre nascimento e morte, construindo sua<br />

existência no mundo.<br />

Da leitura do mito, ressoam ain<strong>da</strong> fragmentos: “enquanto for e estiver no<br />

mundo”; “percurso t<strong>em</strong>poral no mundo”; “o hom<strong>em</strong> mortal”... Parece que estamos<br />

nos a<strong>pro</strong>ximando <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> ancorag<strong>em</strong>: Cura é experiência do viver que<br />

acontece na própria existência, entre as pontas: nascimento e morte.<br />

72<br />

Embora Higino seja um escravo egípcio, a fábula é latina.<br />

73<br />

Cabe ain<strong>da</strong> observar que Hei<strong>de</strong>gger encontrou este mito <strong>em</strong> ensaio <strong>de</strong> Bur<strong>da</strong>ch, que mostra que Goethe extraiu <strong>de</strong> Her<strong>de</strong>r a<br />

fábula 220 <strong>de</strong> Higino, trabalhando-a para a segun<strong>da</strong> parte <strong>de</strong> seu Fausto.<br />

74<br />

HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.263-264.<br />

75 Ibi<strong>de</strong>m, p.264.


A orig<strong>em</strong> do hom<strong>em</strong>, este ser preso na maravilha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mas limitado pelo<br />

insondável <strong>da</strong> morte, estaria, para Hei<strong>de</strong>gger, expresso na Cura, como aquilo que o<br />

sustenta na travessia entre estes dois pólos. Cura estaria aí captura<strong>da</strong> nesse<br />

test<strong>em</strong>unho pre-ontológico sobre o ser-hom<strong>em</strong>, test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong>terminante para<br />

Hei<strong>de</strong>gger, <strong>em</strong> sua interpretação ontológico-existencial <strong>da</strong> pre-sença 76 que é o<br />

hom<strong>em</strong> como Cura.<br />

Ao dizer: “Yo sé quien soy”, está Dom Quixote louco, ou é alguém que busca<br />

Cura, na compreensão e construção <strong>de</strong> sua existência, alguém que está <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>?<br />

Dom Quixote t<strong>em</strong> tantas certezas! Mas é ele cavaleiro ou fi<strong>da</strong>lgo? Está instalado o<br />

dil<strong>em</strong>a. Esse dil<strong>em</strong>a parece ser <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m do saber e do ser: estes são os verbos<br />

reinci<strong>de</strong>ntes aqui.<br />

É incontestável que Cura está intimamente liga<strong>da</strong> ao próprio “ser” do hom<strong>em</strong>,<br />

seu próprio existir. Na afirmação <strong>de</strong> Dom Quixote, o próprio verbo “ser” se encarrega<br />

<strong>de</strong> dispor essa relação. Ele sabe qu<strong>em</strong> é, com a firme certeza que não permite<br />

questionamento; t<strong>em</strong>, firmes, to<strong>da</strong>s as certezas que sustentam suas ações, as suas<br />

crenças no mundo e <strong>em</strong> si mesmo. “Yo sé quien soy” Mas po<strong>de</strong> alguém <strong>de</strong> fato ter<br />

tais certezas? Po<strong>de</strong> alguém <strong>de</strong> fato ter certezas <strong>de</strong>finitivas?<br />

Não é a morte, a finitu<strong>de</strong>, a única marca inequívoca do hom<strong>em</strong>? Dom Quixote<br />

opta pelas certezas já <strong>da</strong><strong>da</strong>s do mundo inerente <strong>à</strong> cavalaria, pelo já estabelecido e<br />

sedimentado nos romances que lia, para acabar com o dil<strong>em</strong>a <strong>da</strong> falta que o<br />

persegue <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do romance. Se o que <strong>pro</strong><strong>cura</strong> é preencher uma falta, o que<br />

ele busca não são justamente as certezas <strong>de</strong>finitivas para acabar <strong>de</strong> vez com a<br />

incerteza e insegurança gera<strong>da</strong>s pela falta? Dom Quixote está buscando segurança<br />

76 Hei<strong>de</strong>gger se refere ao hom<strong>em</strong> como existente, ao hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua existência a partir do termo al<strong>em</strong>ão Dasein, que é <strong>de</strong><br />

tradução complexa e controversa. Em português, foi traduzido, na edição brasileira <strong>de</strong> Ser e T<strong>em</strong>po, como pre-sença, termo<br />

que escolh<strong>em</strong>os usar nesta tese. Contudo, há autores que prefer<strong>em</strong> traduzi-lo por ser-aí ou que optam por não traduzi-lo.<br />

Usar<strong>em</strong>os terminologia diferente nesta tese somente quando citarmos diretamente um autor que a use, por não acharmos<br />

correto alterar o texto <strong>em</strong> uma citação direta. A respeito <strong>da</strong> controvérsia <strong>em</strong> torno <strong>da</strong>s traduções possíveis, consultar:<br />

INWOOD, M. Dicionário Hei<strong>de</strong>gger. Trad. Luisa Buarque <strong>de</strong> Holan<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p.29-33.


e certezas para sua vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ntre as alternativas que já conhece, <strong>de</strong>ntre o elenco do<br />

que já viu.<br />

Hei<strong>de</strong>gger retoma a questão <strong>da</strong> existência do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> Ser e T<strong>em</strong>po. Falar<br />

do hom<strong>em</strong> como existência é falar <strong>de</strong> um ser que se sabe ser, que t<strong>em</strong> consciência<br />

<strong>da</strong> própria finitu<strong>de</strong> e <strong>da</strong> morte, é, sobretudo, falar <strong>de</strong> um ser que sabe que sabe e<br />

que sabe que é. O hom<strong>em</strong> pensa, o hom<strong>em</strong> fala, o hom<strong>em</strong> poetiza. Desse modo, o<br />

hom<strong>em</strong> significa a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e ao significar pensa o mundo e a si mesmo,<br />

construindo sua existência e seu mundo. E constrói sua existência e seu mundo<br />

sobre o abismo dos limites <strong>de</strong> sua própria não compreensão, o na<strong>da</strong> que lá no fundo<br />

subjaz.<br />

Mas é preciso <strong>de</strong>spojar o na<strong>da</strong> <strong>da</strong>s conceituações <strong>de</strong> que está carregado.<br />

Trata-se <strong>de</strong> um na<strong>da</strong> on<strong>de</strong> a radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> e a cooriginarie<strong>da</strong><strong>de</strong> não só abr<strong>em</strong> ao<br />

criativo, como também garant<strong>em</strong> o fluxo inesgotável <strong>da</strong>s representações, jamais o<br />

na<strong>da</strong> estéril <strong>da</strong> pura negação.<br />

Além disso, pensar não se restringe a representar. Isso porque to<strong>da</strong> e<br />

qualquer representação “inclui s<strong>em</strong>pre um nível <strong>de</strong> pensamento que não representa<br />

na<strong>da</strong>, to<strong>da</strong> representação vive <strong>de</strong> acolher e aceitar, <strong>em</strong> seus limites, o mistério <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, subtraindo-se <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as realizações” 77 .<br />

Volt<strong>em</strong>os a Heráclito, para o relacionarmos com esta pesquisa, a partir <strong>da</strong><br />

seguinte asserção: “A harmonia invisível t<strong>em</strong> mais vigor <strong>de</strong> articulação do que a<br />

visível” 78 . Sua palavra nos serve <strong>de</strong> ilustração para a constatação que expressamos<br />

a seguir: O pensar do Oci<strong>de</strong>nte e seus muitos <strong>de</strong>scaminhos <strong>de</strong> representações<br />

visíveis, nessa última encruzilha<strong>da</strong> <strong>em</strong> que se encontra, esforça-se por resgatar o<br />

invisível. O que se busca é o sentido do ser. Por muitos caminhos o buscamos,<br />

77 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.12.<br />

78 Ibi<strong>de</strong>m, p.13.


<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a filosofia, <strong>da</strong> ciência, <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong> religião, até na vivência <strong>de</strong> nossos<br />

sentimentos. Mas o ser não se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>terminar através ou a partir <strong>de</strong> outra coisa<br />

que não ele mesmo. O ser só po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>terminado a partir do seu sentido como ele<br />

mesmo.<br />

É claro que essa questão foi outrora gran<strong>de</strong> esforço <strong>de</strong> pensamento.<br />

Entretanto, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>da</strong>r fôlego <strong>à</strong>s pesquisas <strong>de</strong> Platão e Aristóteles, <strong>em</strong>u<strong>de</strong>ceu<br />

“como questão t<strong>em</strong>ática <strong>de</strong> uma real investigação” 79 . Sabe-se, também, que a<br />

contribuição dos filósofos <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> percorreu os séculos violenta<strong>da</strong> por<br />

arranjos e distorções até alcançar nossa época totalmente <strong>de</strong>svigora<strong>da</strong>. O que, <strong>em</strong><br />

algum momento, foi digno do <strong>em</strong>preendimento do pensar, encontra-se agora<br />

banalizado.<br />

T<strong>em</strong>a tão misterioso <strong>de</strong>veria, ao contrário, ser o mais inquietante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do<br />

hom<strong>em</strong>, e, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, foi, a ponto <strong>de</strong> outrora ter trazido, ao cenário <strong>da</strong> filosofia,<br />

mentes tão vigorosas. Agora, porém, o misterioso, o encoberto inquietante, o<br />

invisível passou a ser objeto <strong>de</strong> tratamento trivial.<br />

Nessa introdução ao ser <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, reaparec<strong>em</strong> personagens muito<br />

afinados com aquilo que se po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r por falta: o na<strong>da</strong>, o vazio, o não visível, o<br />

não pensado. Se tudo isso t<strong>em</strong> a ver com o ser, parece que Dom Quixote, na<br />

situação <strong>em</strong> que se encontra, <strong>de</strong>ve <strong>da</strong>r-se por satisfeito. Afinal, cheio <strong>de</strong> “não-ser”,<br />

está <strong>de</strong> posse “<strong>da</strong> maior glória do hom<strong>em</strong>”. 80<br />

3 A QUE PAIDÉIA SERVE DOM QUIXOTE?<br />

79 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 27.<br />

80 NOBREGA, Francisca. Laboratório <strong>de</strong> literatura poética. Ano 1, n.1, março <strong>de</strong> 1998 (mimeo).


Para arrancar do mito <strong>de</strong> Cura todos os seus mistérios, custa trabalho. Agora<br />

esbarramos no “fingere”. Teria ele alguma relação com o duplo fingir <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote, que acima <strong>de</strong>ixamos no ar? Só sab<strong>em</strong>os que seu significado grego é<br />

“formar” 81 . E tudo o que aponta para formação, nos traz a reboque, Platão. Haveria<br />

relação, também aqui, entre Cura e Platão?<br />

Pelo que sab<strong>em</strong>os, só a Paidéia po<strong>de</strong> conectar “formação” com Platão.<br />

Verifiqu<strong>em</strong>os, entretanto, na obra, se encontramos algum indício, ela que é a<br />

sabedora <strong>de</strong> to<strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Há várias menções <strong>à</strong> república, e uma <strong>de</strong>las encontra-se no fragmento que<br />

avalia os livros <strong>de</strong> cavalaria como não recomendáveis: “Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ramente, señor<br />

<strong>cura</strong>, y hallo por mi cuenta que son perjudiciales en la república estos que llaman<br />

libros <strong>de</strong> caballerías” 82 . Resgatamos isso <strong>de</strong> uma conversa entre “el <strong>cura</strong>” 83 e “el<br />

canónigo <strong>de</strong> Toledo”. Na contraparti<strong>da</strong>, a outra nos comunica uma <strong>de</strong>cisão<br />

espontânea do próprio Dom Quixote, quando avalia as vantagens <strong>de</strong> ser cavaleiro:<br />

[...] y fue que le pareció convenible y necesario, así para el aumento <strong>de</strong> su<br />

honra como para el servicio <strong>de</strong> su república, hacerse caballero an<strong>da</strong>nte [...]<br />

a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo aquello que el había leído que<br />

los caballeros an<strong>da</strong>ntes se ejercitaban [...] 84<br />

T<strong>em</strong>-se, aqui, duas posições b<strong>em</strong> claras e opostas: ser<strong>em</strong> os livros <strong>de</strong><br />

cavalaria ou positivos ou negativos para a república. Não po<strong>de</strong> ser gratuita essa<br />

dupla menção. Não somente pelo termo república <strong>em</strong> si, mas pelo que ela traz<br />

81 o<br />

Esse t<strong>em</strong>a será retomado no 3 Périplo, conjugado com as transformações realiza<strong>da</strong>s por Dom Quixote.<br />

82<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, senhor <strong>cura</strong>, e acho, por minha conta, que são prejudiciais na república estes chamados livros <strong>de</strong> cavalarias<br />

(1, XLVII, p.293)<br />

83<br />

Serão mantidos <strong>em</strong> espanhol, os termos usados para <strong>de</strong>signar, pessoas e suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “el <strong>cura</strong>”, “el barbero”, “el<br />

canónigo”, “el bachiller”, etc; b<strong>em</strong> como as locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “la Mancha”, “la cueva”, Sierra Morena”, etc.<br />

84<br />

E foi que lhe pareceu conveniente e necessário, tanto para o aumento <strong>de</strong> seu prestígio quanto para o serviço <strong>da</strong> república,<br />

tornar-se Cavaleiro an<strong>da</strong>nte [...] buscando aventuras e praticando tudo aquilo que tinha lido que os cavaleiros an<strong>da</strong>ntes<br />

praticavam (1, I, p.19)


consigo <strong>de</strong> significação. Sab<strong>em</strong>os que a leitura era o ponto vital para Platão, no<br />

tocante <strong>à</strong> sua influência nos jovens ci<strong>da</strong>dãos, pois ela colocava <strong>em</strong> risco a república<br />

por ele almeja<strong>da</strong> e anuncia<strong>da</strong>.<br />

Apesar <strong>de</strong> ter <strong>em</strong>u<strong>de</strong>cido “como questão t<strong>em</strong>ática <strong>de</strong> uma real<br />

investigação” 85 , a questão do ser não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser retoma<strong>da</strong> através dos séculos,<br />

violenta<strong>da</strong> é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, causa <strong>de</strong> a nossa época tê-la recebido tão <strong>de</strong>svigora<strong>da</strong>. Não<br />

seria a Paidéia retoma<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Quixote, resultado <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses arranjos que<br />

a falta <strong>de</strong> vigor acabou <strong>de</strong>sorientando?<br />

As reedições a que nos referimos incorporam o “sol<strong>da</strong>do” que se configura no<br />

Renascimento, ambiente plenamente <strong>pro</strong>pício a seu aparecimento, não só por estar<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s perspectivas do i<strong>de</strong>al humanista <strong>de</strong> formação do hom<strong>em</strong> pleno, viajado,<br />

aberto a to<strong>da</strong>s as experiências possíveis, inclusive <strong>à</strong> batalha, como também pelo<br />

quadro que o final <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média acabou <strong>de</strong>lineando – um ambiente <strong>de</strong> constantes<br />

e intermináveis guerras.<br />

Presume-se que a reedição <strong>da</strong> Paidéia, no Renascimento, coinci<strong>de</strong> <strong>em</strong><br />

<strong>pro</strong><strong>pós</strong>itos com a Paidéia platônica, consi<strong>de</strong>rando os valores humanistas, oferecer,<br />

para a formação do hom<strong>em</strong> pleno, o treinamento do corpo, esgotando, ao limite<br />

máximo, suas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Quanto mais preparado nos mais diversos níveis <strong>de</strong><br />

atuação, mais apto estaria para realizar o i<strong>de</strong>al renascentista, e o exercício físico<br />

era, unido <strong>à</strong> disciplina, <strong>de</strong> vital importâmcia como preparação para o objetivo maior:<br />

a abertura e alcance <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> eterna e universal.<br />

Esse <strong>pro</strong>cedimento po<strong>de</strong> ser justificado, com o encantamento que sobre<br />

qualquer leitor exerce o discurso <strong>de</strong> Dom Quixote sobre “las armas y las letras” 86 , até<br />

que se perceba ter ele função outra, muito mais fun<strong>da</strong>mental que a até então<br />

85 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.27.<br />

86 As armas e as letras (1, XXXVIII, p.231)


presumi<strong>da</strong>. O sentimento <strong>de</strong> simpatia e <strong>de</strong> louvor com que Dom Quixote se refere ao<br />

sol<strong>da</strong>do, colocando-o como um gran<strong>de</strong> herói, exatamente por sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para<br />

enfrentar as agruras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> militar <strong>da</strong> Espanha <strong>da</strong>quela época, pareceu-nos digno<br />

<strong>de</strong> registro, não só pelo <strong>em</strong>ocionante do discurso, mas fun<strong>da</strong>mentalmente, porque<br />

<strong>de</strong>ixa claro a não mera coincidência entre armas e letras <strong>de</strong> um lado, e cavaleiro e<br />

filósofo do outro. O perfil do sol<strong>da</strong>do <strong>da</strong>quela época é apresentado meio<br />

<strong>de</strong>sfigurado, muito afastado, tanto do i<strong>de</strong>al do “guardião” <strong>da</strong> tradição, como do i<strong>de</strong>al<br />

renascentista. Ao contrário do previsto como i<strong>de</strong>al para essas duas paidéias, o<br />

sol<strong>da</strong>do espanhol t<strong>em</strong> vínculo com o estado, luta pela pátria e t<strong>em</strong> salário; <strong>em</strong>bora<br />

muitas vezes n<strong>em</strong> chegue a recebê-lo, “porque está ateni<strong>da</strong> a la miseria <strong>de</strong> su paga,<br />

que viene o tar<strong>de</strong> o nunca”, a ponto <strong>de</strong> o sol<strong>da</strong>do espanhol precisar fazer transações<br />

paralelas, chegando até a roubar “lo que garbeare por sus manos, con notable<br />

peligro <strong>de</strong> su vi<strong>da</strong> y <strong>de</strong> su consciencia”. O sol<strong>da</strong>do é tratado s<strong>em</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong>: passa<br />

frio na campanha, dorme no chão, s<strong>em</strong> <strong>pro</strong>teção sequer <strong>de</strong> lençol. No dia <strong>de</strong> pôr <strong>à</strong><br />

<strong>pro</strong>va todo o seu exercício __ “el día y la hora <strong>de</strong> recibir el grado <strong>de</strong> su ejercicio: [...]<br />

un día <strong>de</strong> batalla” __ , se expõe a “algún balazo”, ou fica “estropeado <strong>de</strong> brazo o<br />

pierna”. E, mesmo que a sorte o <strong>pro</strong>teja, que “esos milagros vense raras veces”, não<br />

é pr<strong>em</strong>iado por isso, porque “¿cuán menos son los pr<strong>em</strong>iados por la guerra que los<br />

que han perecido en ella?” 87 . É por esses motivos que Dom Quixote sai <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

do sol<strong>da</strong>do, porque “a ca<strong>da</strong> paso está a punto <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r la vi<strong>da</strong>”, se o inimigo<br />

estiver“mirando hacia la parte don<strong>de</strong> él está [ele] no pue<strong>de</strong> apartarse <strong>de</strong> allí por<br />

ningún caso, ni huir el peligro que <strong>de</strong> tan cerca le amenaza” 88 .<br />

87 [Ao contrário (...) recebê-lo] porque está restrita <strong>à</strong> miséria <strong>de</strong> seu soldo, que v<strong>em</strong> tar<strong>de</strong> ou nunca, [a ponto (...) roubar] o que<br />

pilhar por suas mãos, com notável perigo <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> sua consciência [O sol<strong>da</strong>do (...) exercício __ ] no dia e na hora <strong>de</strong><br />

receber o diploma <strong>de</strong> seu exercício [...] um dia <strong>de</strong> batalha [ __ , expõe-se a] alguma bala gran<strong>de</strong>, [ou fica] estropiado <strong>de</strong> braço ou<br />

perna. [E (...) <strong>pro</strong>teja, que] esses milagres raramente são vistos, [não (...) porque] quanto menos são os pr<strong>em</strong>iados pela guerra<br />

que os que nela pereceram? (1, XXXVIII, p.231)<br />

88 A ca<strong>da</strong> passo está a ponto <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a vi<strong>da</strong> [se o inimigo está] Está olhando para on<strong>de</strong> ele está [...] não po<strong>de</strong> afastar-se <strong>da</strong>li<br />

<strong>de</strong> nenhum modo, n<strong>em</strong> fugir do perigo que <strong>de</strong> tão perto o ameaça. (1, XXXVIII, p.232)


Depois <strong>de</strong> listar muitas <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s enfrenta<strong>da</strong>s pelo sol<strong>da</strong>do, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

uma simulação <strong>de</strong> guerra, Dom Quixote resume seu discurso numa constatação<br />

cru<strong>de</strong>líssima que é a <strong>de</strong> saber não ser possível a nenhum sol<strong>da</strong>do, previsto por<br />

qualquer formação, fazer frente, naquelas condições, a um inimigo muito maior, que<br />

inviabilizava qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> luta nos mol<strong>de</strong>s antigos: “benditos siglos que<br />

carecieron <strong>de</strong> la espantable furia <strong>de</strong> aquestos en<strong>de</strong>moniados instrumentos <strong>de</strong> la<br />

artillería” 89 . A dimensão <strong>de</strong>sse inimigo é tal a ponto <strong>de</strong> Dom Quixote ter dúvi<strong>da</strong>s<br />

sobre se po<strong>de</strong>rá continuar com seu <strong>pro</strong>jeto, já que suas armas são seu braço e sua<br />

espa<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> assim sentia muito receio, “me pone recelo pensar sí la pólvora y el<br />

estaño me han <strong>de</strong> quitar la ocasión <strong>de</strong> hacerme famoso y conocido por el valor <strong>de</strong> mi<br />

brazo y filo <strong>de</strong> mi espa<strong>da</strong>” 90 . Da investigação que inclui o sol<strong>da</strong>do, talvez esse seja o<br />

ponto mais significativo, caso contrário, não o encaminharia Dom Quixote até esse<br />

ponto.<br />

Parece ficar aí explicado o cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> não per<strong>de</strong>r esse <strong>em</strong>ocionante<br />

<strong>de</strong>sabafo do herói <strong>de</strong> la Mancha. O que <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>-se a<strong>pro</strong>veitar só o an<strong>da</strong>r <strong>da</strong><br />

pesquisa po<strong>de</strong> dizer. Digamos, por ex<strong>em</strong>plo, que não po<strong>de</strong> ser casual esse discurso.<br />

Um discurso tão ve<strong>em</strong>ente não po<strong>de</strong> ser gratuito. E, segre<strong>de</strong>mos aqui: é<br />

possível ler, nas entrelinhas, um <strong>de</strong>sabafo <strong>de</strong> Cervantes, <strong>da</strong>dos os dissabores que a<br />

vi<strong>da</strong> militar lhe trouxe; vi<strong>de</strong> o “balazo” que o <strong>de</strong>ixou “estropeado”, não <strong>de</strong> perna, mas<br />

“<strong>de</strong> brazo”. 91<br />

Pelo visto, por mais que a figura do sol<strong>da</strong>do pu<strong>de</strong>sse ter tido algum sentido na<br />

vi<strong>da</strong> espanhola <strong>de</strong>ssa época, <strong>de</strong>cidimos fazer a condução por outro caminho. A<br />

89<br />

Benditos séculos que careceram <strong>da</strong> espantosa fúria <strong>da</strong>queles <strong>de</strong>moníacos instrumentos <strong>da</strong> artilharia. (1, XXXVIII, p.232)<br />

90<br />

Me assusta pensar se a pólvora e o estanho me impedirão <strong>de</strong> tornar-se conhecido pela força do meu braço e o fio <strong>de</strong> minha<br />

espa<strong>da</strong>. (1, XXXVIII, p.233)<br />

91<br />

Se assim o consi<strong>de</strong>rarmos, o troco é <strong>da</strong>do com total maestria. Se Cervantes não tivesse caído na trama arma<strong>da</strong> pelo Estado<br />

Espanhol, se po<strong>de</strong>ria ter tido a chance <strong>de</strong> optar por outro caminho, se outras possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s po<strong>de</strong>riam ter-lhe sido<br />

apresenta<strong>da</strong>s, nesse caso, po<strong>de</strong>mos vislumbrar que Cervantes <strong>de</strong>monstra a luci<strong>de</strong>z <strong>de</strong> qu<strong>em</strong>, <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura fez a<br />

travessia. Se, passados os séculos, o autor <strong>de</strong> Dom Quixote retoma “el paso” perdido, exatamente no ponto <strong>em</strong> que precisava<br />

transmutar sua luci<strong>de</strong>z <strong>em</strong> lou<strong>cura</strong>, enlouquecendo um pacato fi<strong>da</strong>lgo para vingar-se <strong>da</strong> Espanha, e se, com isso, acaba<br />

enlouquecendo, não só Espanha, mas todo o Oci<strong>de</strong>nte, o mundo inteiro que com sua obra se i<strong>de</strong>ntifica. Se assim foi, isso são<br />

só conjecturas extra-textuais que não cab<strong>em</strong> <strong>em</strong> nosso estudo.


elação entre a república, até aqui <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>, só serviu para <strong>de</strong>la ser<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>scartados, além do sol<strong>da</strong>do, o cavaleiro.<br />

Pelo discurso <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa do sol<strong>da</strong>do, traçando-lhe o perfil<br />

<strong>de</strong>ntro do quadro hostil do exército espanhol <strong>da</strong> época, fica <strong>de</strong>scarta<strong>da</strong> a intenção<br />

formadora do sol<strong>da</strong>do para aten<strong>de</strong>r <strong>à</strong> república cristã. Pelo <strong>de</strong>sabafo <strong>da</strong> sobrinha,<br />

narrando as tristes e constrangedoras cenas que era obriga<strong>da</strong> a test<strong>em</strong>unhar:<br />

[...] arrojaba el libro <strong>de</strong> las manos, y ponía mano a la espa<strong>da</strong> y an<strong>da</strong>ba a<br />

cuchilla<strong>da</strong>s con las pare<strong>de</strong>s; y cuando estaba muy cansado, <strong>de</strong>cía que<br />

había muerto a cuatro gigantes como cuatro torres, y el sudor que su<strong>da</strong>ba<br />

<strong>de</strong>l cansancio <strong>de</strong>cía que era sangre <strong>de</strong> las feri<strong>da</strong>s que había recebido en la<br />

batalla 92<br />

Cansa<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> mais saber sobre como afastar o tio enlouquecido <strong>da</strong>s<br />

famigera<strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria, com esse <strong>de</strong>sabafo <strong>da</strong> sobrinha, fica <strong>de</strong>scarta<strong>da</strong>,<br />

também, a formação do cavaleiro, como alguma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> resgate do i<strong>de</strong>al<br />

heróico. É claro que uma pontinha <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> permanece, mas não o suficiente para<br />

maior <strong>de</strong>dicação.<br />

Finalmente, se as novelas <strong>de</strong> cavalaria não tinham o cunho <strong>de</strong> formação, n<strong>em</strong><br />

do sol<strong>da</strong>do, n<strong>em</strong> do cavaleiro, mas, se, ao mesmo t<strong>em</strong>po, elas <strong>de</strong>ixam transparente<br />

uma íntima relação com a república, isso nos leva a <strong>de</strong>sconfiar <strong>de</strong> uma nova versão<br />

<strong>da</strong> Paidéia platônica. Entretanto, que se <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong>finitivamente esclareci<strong>da</strong> a sua<br />

intenção. Se não foi n<strong>em</strong> o sol<strong>da</strong>do n<strong>em</strong> o cavaleiro, que formação foi essa a que<br />

Dom Quixote a<strong>de</strong>riu incondicionalmente, como leitor inveterado, chegando a ser por<br />

ela tragado?<br />

Se o único mo<strong>de</strong>lo que pu<strong>de</strong>sse sustentar, na época, qualquer formação, era<br />

o platônico; se <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo fica <strong>de</strong>scartado qualquer resquício do “guerreiro-<br />

92 Arr<strong>em</strong>essava o livro <strong>da</strong>s mãos e <strong>em</strong>punhava a espa<strong>da</strong> e an<strong>da</strong>va golpeando contra as pare<strong>de</strong>s, e quando estava cansado<br />

dizia que tinha matado quatro gigantes que pareciam quatro torres e o suor que suava do cansaço dizia que era sangue <strong>da</strong>s<br />

feri<strong>da</strong>s que tinha recebido na batalha. (1, V, p.36)


guardião” <strong>da</strong> Paidéia tradicional, inclusão a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> <strong>à</strong> Paidéia platônica, com vistas <strong>à</strong><br />

sua eficácia, o que se resume <strong>de</strong> tudo isso é que a atenção <strong>da</strong> época <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote, resultante <strong>de</strong> um dos ajustes <strong>de</strong> que nos fala Hei<strong>de</strong>gger, ajustes<br />

conhecidos como platonismo, essa atenção estava centra<strong>da</strong> na formação do filósofo,<br />

tendo <strong>em</strong> vista a crise do momento. Para isso, era preciso uma ação <strong>de</strong> urgência,<br />

com vistas a aten<strong>de</strong>r a “la república cristiana”.<br />

O <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a agora se transfere para o risco <strong>da</strong> imitação no que toca <strong>à</strong><br />

formação do ci<strong>da</strong>dão <strong>da</strong> república, além <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sdobramentos, esses que vão,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a vi<strong>da</strong>, alcançando até a ficção.<br />

Vi<strong>da</strong> e ficção, reali<strong>da</strong><strong>de</strong> vivi<strong>da</strong> e reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fingi<strong>da</strong>, aí se encontra o ponto<br />

nevrálgico <strong>da</strong> obra. Não é por acaso que uma dramática e maquiavélica sessão do<br />

escrutínio segue povoando o imaginário <strong>de</strong> todos os leitores <strong>de</strong> Dom Quixote, como<br />

um gran<strong>de</strong> ritual <strong>de</strong> “caça <strong>à</strong>s bruxas”. Essas duplas atormentavam a todos <strong>de</strong>ssa<br />

época. E mais ain<strong>da</strong>. A essas duplas, outra <strong>de</strong> maior porte se impunha: a dupla<br />

mentira – ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com isso fica b<strong>em</strong> explica<strong>da</strong> a pergunta que tanto atormenta<br />

Dom Quixote “¿Habían <strong>de</strong> ser mentira?”. E ain<strong>da</strong> mais que “están impresos con<br />

licencia <strong>de</strong> los reyes y con a<strong>pro</strong>bación <strong>de</strong> aquellos a quien se r<strong>em</strong>itieron” 93 .<br />

Parece que estamos diante <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> contradição: os livros <strong>de</strong> cavalaria<br />

não ensinam, só aten<strong>de</strong>m <strong>à</strong> distração e ao divertimento e, no entanto são todos<br />

a<strong>pro</strong>vados pelos reis. Outra contradição ain<strong>da</strong>, igualmente intrigante, é ter<strong>em</strong> sido as<br />

novelas <strong>de</strong> cavalaria veículo <strong>de</strong> formação, pelo menos é assim que somos obrigados<br />

a justificar a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do fi<strong>da</strong>lgo Alonso Quijano. Este, <strong>de</strong> tanto ler, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que incorporava, tomando para si tudo o que povoava a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

medieval <strong>da</strong> cavalaria, enlouquecia exatamente por ter assumido a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

93 Haviam <strong>de</strong> ser mentira [E ain<strong>da</strong> mais que] estão impressos com licença do rei e com a<strong>pro</strong>vação <strong>da</strong>queles a qu<strong>em</strong> foram<br />

dirigidos (1, L, p.304)


um outro – o cavaleiro don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, cuja finali<strong>da</strong><strong>de</strong> era a <strong>de</strong> “an<strong>da</strong>r por<br />

el mundo en<strong>de</strong>rezando tuertos y <strong>de</strong>sfaciendo agravios” 94 , nos mesmos mol<strong>de</strong>s que<br />

apren<strong>de</strong>ra, quando lia aquelas novelas. Desse modo, as novelas serviram <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>lo formativo – o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> um outro cavaleiro, não <strong>de</strong> um cavaleiro <strong>de</strong>finido,<br />

com seu lugar já ocupado no mundo, mo<strong>de</strong>lo no qual o fi<strong>da</strong>lgo leitor se nutriu <strong>de</strong><br />

conhecimento para colocá-lo <strong>em</strong> prática na hora exata <strong>de</strong> sua necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Vê-se que essa constatação é real: Dom Quixote já é cavaleiro e se encontra<br />

atuando no século XVI, por acreditar na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reedição <strong>da</strong> cavalaria<br />

an<strong>da</strong>nte. Entretanto, não consegue ter paz n<strong>em</strong> tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong> para assumir seus<br />

com<strong>pro</strong>missos <strong>de</strong> paladino <strong>da</strong> justiça, enquanto não encontra resposta para essa<br />

pergunta “¿Habían <strong>de</strong> ser mentira?”.<br />

Não consegue compreen<strong>de</strong>r n<strong>em</strong> se conformar com a contradição: se foi<br />

naquelas novelas, as que tinha lido <strong>em</strong> tamanha quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> e com tanto frenesi, que<br />

teve to<strong>da</strong> a base <strong>de</strong> seus conhecimentos, para assim, estar liberado a realizar sua<br />

missão <strong>de</strong> cavaleiro; se aqueles livros eram mentira, se não estavam com<strong>pro</strong>metidos<br />

n<strong>em</strong> com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> n<strong>em</strong> com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, nesse caso, ele também seria uma<br />

mentira. Ele que tão b<strong>em</strong> cumprira a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> ser cavaleiro exatamente por<br />

ter sido um exímio leitor, acreditar <strong>em</strong> tudo o que as novelas veiculavam, po<strong>de</strong>ria<br />

estar correndo o risco <strong>de</strong> ser, ele mesmo, também uma mentira?<br />

Pois se, revivendo o escrutínio, não há nenhum indício que esclareça esse<br />

impasse, como e on<strong>de</strong> encontrará Dom Quixote explicações que lhe permitam seguir<br />

<strong>em</strong> frente <strong>em</strong> seu <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito?<br />

Só agora foi possível compreen<strong>de</strong>r on<strong>de</strong> se instalou essa dúvi<strong>da</strong>.<br />

É que a chave para esse entendimento, por falha “<strong>de</strong>l <strong>cura</strong>” ou, talvez <strong>de</strong><br />

Cervantes, não nos foi ofereci<strong>da</strong> no “escrutínio”. Ali, muito livro queimado, muita<br />

94 An<strong>da</strong>r pelo mundo consertando injustiças e <strong>de</strong>sfazendo <strong>de</strong>sacertos (1, XIX, p.101)


conversa, muitos comentários, muito julgamento, s<strong>em</strong> que fôss<strong>em</strong>os brin<strong>da</strong>dos com<br />

duas informações fun<strong>da</strong>mentais: a primeira é a <strong>de</strong> que o requisito essencial para ser<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma boa novela e aceitável pela “república cristiana” é não po<strong>de</strong>r fugir<br />

“<strong>de</strong> la verisimilitud y <strong>de</strong> la imitación”, porque é nisso que consiste “la perfeción <strong>de</strong> lo<br />

que se escribe 95 ”. É essa a causa <strong>de</strong> todos os livros <strong>de</strong> cavalaria ter<strong>em</strong> sido<br />

consi<strong>de</strong>rados “dignos <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sterrados <strong>de</strong> la república cristiana” por sua total<br />

inutili<strong>da</strong><strong>de</strong> – “como a gente inútil” 96 .<br />

A outra é uma revelação que foi dita <strong>em</strong> situação particular, quase <strong>em</strong><br />

segredo confessado a dois – “el <strong>cura</strong>” e “el canónigo”. Não foi revelado isso no fórum<br />

previsto para essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> – o escrutínio. Foi segre<strong>da</strong>do, <strong>em</strong> conversa particular,<br />

quase íntima, no capítulo XLVII, esten<strong>de</strong>ndo-se até o XLVIII, quando “el <strong>cura</strong>”,com o<br />

grupo que o acompanhava no cortejo, conduzindo Dom Quixote enjaulado <strong>de</strong> volta <strong>à</strong><br />

sua casa, troca confidências com o outro.<br />

O encontro foi casual: “volvió el <strong>cura</strong> el rostro, y vió que a sus espal<strong>da</strong>s<br />

venían hasta seis o siete hombres”, <strong>de</strong>ntre eles “uno <strong>de</strong> los que venían [...] era<br />

canónigo <strong>de</strong> Toledo” 97 . Tendo Dom Quixote contado sua história ao “canónigo” e a<br />

seus criados, este se a<strong>pro</strong>ximou “<strong>de</strong>l <strong>cura</strong>” para com ele tecer alguns comentários a<br />

respeito <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote e, dos livros <strong>de</strong> cavalaria, os que possivelmente<br />

o levaram <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong>.<br />

É nesse capítulo XLVIII que acabam <strong>de</strong>finindo b<strong>em</strong> o que caracteriza uma<br />

novela <strong>de</strong> cavalaria. As consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s más são aquelas que nunca tiveram um “buen<br />

discurso”, n<strong>em</strong> “reglas por don<strong>de</strong> pudieran guiarse y hacerse famosos” 98 . Só agora<br />

fica claro que se trata <strong>de</strong> um estilo, estilo tão b<strong>em</strong> <strong>de</strong>finido que possui todos os itens<br />

95<br />

Da verossimilhança e <strong>da</strong> imitação [...] a perfeição do que se escreve (1, XLVII, p.294)<br />

96<br />

Dignos <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> <strong>de</strong>sterrados <strong>da</strong> república cristã [por (...) inutili<strong>da</strong><strong>de</strong>] como a gente inútil (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

97<br />

Virou o rosto o <strong>cura</strong>, e viu que <strong>à</strong>s suas costas chegavam pelo menos seis ou sete homens [<strong>de</strong>ntre eles] Um dos que<br />

chegavam [...] era cônego <strong>de</strong> Sevilha (1, XLVII, p.291)<br />

98<br />

Bom discurso [n<strong>em</strong>] Regras pelas quais pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> orientar-se e tornar-se famosos (1, XLVIII, p.295)


que lhe são necessários para <strong>de</strong>sse modo <strong>de</strong>finir-se – “novelas <strong>de</strong> cavalaria”. Ca<strong>da</strong><br />

vez, mais nos a<strong>pro</strong>ximamos do mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al adotado pelo platonismo, <strong>de</strong>finindo até<br />

a arte.<br />

E como se isso não bastasse, mais adiante confessa, primeiramente, seu<br />

<strong>de</strong>sejo: “Yo, a lo menos - replicó el canónigo -, he tenido cierta tentación <strong>de</strong> hacer<br />

um libro <strong>de</strong> caballerías, guar<strong>da</strong>ndo en él todos los puntos que he significado”.<br />

Depois, fala a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> por inteiro: “Y si he <strong>de</strong> confesar la ver<strong>da</strong>d, tengo escritas más<br />

<strong>de</strong> cien hojas”, acrescentando, ao final, um comentário que quiçá não foi inocente<br />

n<strong>em</strong> gratuito. Disse que tinha apresentado esse material a “hombres apasionados<br />

<strong>de</strong>sta leyen<strong>da</strong>, dotos y discretos” e que tinha, <strong>de</strong> todos, recebido “una agra<strong>da</strong>ble<br />

a<strong>pro</strong>bación” 99 .<br />

Foi por isso que custou muito trabalho compreen<strong>de</strong>r as contradições do<br />

escrutínio. Foi duro, <strong>de</strong>le, arrancar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Apesar do risco <strong>da</strong> crítica, o longo<br />

caminho foi necessário. Só assim t<strong>em</strong>-se clareza do real motivo <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote: per<strong>da</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> por imitação; além do entendimento <strong>da</strong> opção <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote: entre sol<strong>da</strong>do e cavaleiro, optou por ser filósofo. E o cavaleiro, afinal, qual o<br />

seu lugar nessa história?<br />

Se comparamos dois momentos <strong>em</strong> que exibe sua performance <strong>de</strong> cavaleiro<br />

perceb<strong>em</strong>-se diferenças <strong>em</strong> sua atuação: primeiramente, sua missão <strong>de</strong> cavaleiro<br />

era tão real e indiscutível, a ponto <strong>de</strong> a ela po<strong>de</strong>r entregar-se __ “y con esto se quietó<br />

y <strong>pro</strong>siguió su camino, sin llevar otro que aquel que su caballo quería, creyendo que<br />

99 Eu, pelo menos, – replicou o cônego, – tive certa tentação <strong>de</strong> escrever um livro <strong>de</strong> cavalarias, observando nele todo os<br />

pontos que observei [Depois (...) inteiro:] E se <strong>de</strong>vo contar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, tenho escritas mais <strong>de</strong> c<strong>em</strong> folhas [acrescentando (...)<br />

material a] homens apaixonados por esta len<strong>da</strong>, cultos e <strong>de</strong> discernimento [e (...) recebido] uma agradável a<strong>pro</strong>vação<br />

(1, XLVIII, p.295)


en aquello consistía la fuerza <strong>de</strong> las aventuras” 100 . De tal modo estava traçado seu<br />

<strong>de</strong>stino que o entrega <strong>à</strong> irracionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um animal.<br />

Sua certeza <strong>de</strong> ser cavaleiro era tal que, ao sair pela primeira vez, pergunta:<br />

“¿Quién du<strong>da</strong> sino que en los veni<strong>de</strong>ros ti<strong>em</strong>pos, cuando salga a luz la ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra<br />

historia <strong>de</strong> mis famosos hechos?” 101 . Apesar <strong>de</strong> não ter dúvi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> que sua história<br />

será publica<strong>da</strong>, Dom Quixote <strong>de</strong>monstra nas entrelinhas certa insegurança a<br />

respeito: o tom com que afirma a certeza traz, <strong>em</strong> si, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma história<br />

mentirosa que escon<strong>de</strong> uma história ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira. Além disso, Dom Quixote sai<br />

realmente a caminhar pelo conhecido campo <strong>de</strong> “Montiel”, mas precisa acrescentar<br />

ser isso uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Y era la ver<strong>da</strong>d que por él caminaba” 102 .<br />

Mais adiante, se dirige <strong>à</strong> ama<strong>da</strong> ausente “como si ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ramente fuera<br />

enamorado”, s<strong>em</strong> esquecer, no entanto, <strong>de</strong> apresentar-nos <strong>à</strong>quele que seria o<br />

contador <strong>de</strong> sua história - “¡Oh tú, sábio encantador [...] a quien ha <strong>de</strong> tocar el ser<br />

cronista <strong>de</strong>sta peregrina historia” 103 . Essa introdução <strong>de</strong>ixa sinais <strong>de</strong> que há uma<br />

gran<strong>de</strong> e confusa <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ramente” se<br />

opõe, <strong>de</strong> algum modo, o “como si fuera”, mas, ao <strong>da</strong>r a atribuição <strong>da</strong> tarefa <strong>de</strong><br />

cronista ao sábio encantado, parece encarregá-lo <strong>de</strong> ser o responsável por tal<br />

a<strong>pro</strong>ximação. Ao instrumental que <strong>de</strong>veria compor o universo <strong>da</strong> cavalaria, Dom<br />

Quixote acaba <strong>de</strong> acrescentar um el<strong>em</strong>ento importantíssimo que lhe servirá <strong>de</strong> álibi<br />

para muitas situações, possivelmente contraditórias e <strong>de</strong>sconcertantes. Essa é uma<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Outra, entretanto, po<strong>de</strong> ser viabiliza<strong>da</strong>: o acima <strong>de</strong>scrito t<strong>em</strong> certa<br />

aparência <strong>de</strong> jogo on<strong>de</strong> na<strong>da</strong> se <strong>de</strong>fine, mas que obriga a pensar nesse t<strong>em</strong>a.<br />

100<br />

Com isto se tranqüilizou e <strong>pro</strong>sseguiu seu caminho, s<strong>em</strong> levar outra coisa senão aquilo que seu cavalo queria, acreditando<br />

que naquilo residia a força <strong>da</strong> aventuras. (1, II, p.21)<br />

101<br />

Qu<strong>em</strong> duvi<strong>da</strong> que, nos t<strong>em</strong>pos vindouros, quando venha <strong>à</strong> luz a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira história <strong>de</strong> meus célebres feitos (1, II, p.21)<br />

102<br />

E era a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que por ele caminhava (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

103<br />

Como se ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente estivesse apaixonado [s<strong>em</strong> (...) história] oh, tu sábio encantador (...) a qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve tocar ser o<br />

cronista <strong>de</strong>sta peregrina história (Ibi<strong>de</strong>m)


Depois <strong>de</strong> armar-se cavaleiro, com muitos inconvenientes, chegamos ao<br />

ponto acima anunciado: “Gracias doy al cielo por la merced que me hace, pues tan<br />

presto me pone ocasiones <strong>de</strong>lante don<strong>de</strong> yo pue<strong>da</strong> cumplir con lo que <strong>de</strong>bo a mi<br />

<strong>pro</strong>fesión, y don<strong>de</strong> pue<strong>da</strong> coger el fruto <strong>de</strong> mis buenos <strong>de</strong>seos” 104 . Com essa fala,<br />

Dom Quixote agra<strong>de</strong>ce aos céus por ter-lhe colocado tão rapi<strong>da</strong>mente no caminho<br />

uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>r início <strong>à</strong> <strong>pro</strong>fissão para a qual estava <strong>de</strong>signado.<br />

Estava Dom Quixote diante <strong>de</strong> uma circunstância que exigia sua atuação <strong>de</strong><br />

cavaleiro <strong>de</strong>sfazendo “tuertos”, <strong>pro</strong>vi<strong>de</strong>nciando a justiça: um menino estava sendo<br />

espancado por seu amo e, “ca<strong>da</strong> azote le acompañaba con una reprehensión”, 105<br />

Dom Quixote assim intervém:<br />

Descortés Caballero, mal parece tomaros con quien <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r no se pue<strong>de</strong>;<br />

subid sobre vuestro caballo y tomad vuestra lanza – que también tenía uma<br />

lanza arrima<strong>da</strong> a la encina adon<strong>de</strong> estaba arren<strong>da</strong><strong>da</strong> la yegua __ , que yo os<br />

haré conocer ser <strong>de</strong> cobar<strong>de</strong>s lo que estáis haciendo. 106<br />

Compara<strong>da</strong> a esta, a cena <strong>em</strong> que Dom Quixote, topando com um carro que<br />

conduz leões, um presente do duque <strong>de</strong> Orán ao rei, <strong>de</strong>safia o ”leonero” a abrir a<br />

jaula para que possa <strong>pro</strong>var sua corag<strong>em</strong>. Apesar dos avisos <strong>de</strong> que estão todos<br />

famintos, Dom Quixote insiste: ”¿Leoncitos a mí? A mí leoncitos [...]? Pues ¡por Dios<br />

que han <strong>de</strong> ver esos señores que acá los envían si soy hombre que se espanta <strong>de</strong><br />

leones!” 107<br />

De tanto insistir, o leonero abre as portas, mas o leão “más comedido que<br />

arrogante, no haciendo caso <strong>de</strong> niñerías, ni <strong>de</strong> bravatas, <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> haber mirado, a<br />

104 Dou graças aos céus pela mercê que me faz, pois logo me dá oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s para po<strong>de</strong>r cumprir com o que <strong>de</strong>vo <strong>à</strong> minha<br />

<strong>pro</strong>fissão e nas quais possa colher o fruto <strong>de</strong> meus bons <strong>de</strong>sejos. (1, IV, p.29)<br />

105 Ca<strong>da</strong> açoite era acompanhado por uma repreensão (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

106 – Descortês cavaleiro, mal parece lutar contra qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r não se po<strong>de</strong>; subi <strong>em</strong> vosso cavalo e tomai <strong>de</strong> vossa lança –<br />

que também tinha uma lança encosta<strong>da</strong> ao azevinho no qual estava amarra<strong>da</strong> a égua – que eu vos farei saber que é <strong>de</strong><br />

covar<strong>de</strong>s o que estais fazendo (1, IV, p.30)<br />

107 Leõezinhos a mim? A mim leõezinhos [...]? Pois juro por Deus que hão <strong>de</strong> ver estes senhores que aqui os enviam se sou<br />

hom<strong>em</strong> que se espanta com leões! (2, XVII, p.405)


una y otra parte [...] volvió las espal<strong>da</strong>s y enseñó sus traseras partes a don<br />

Quijote” 108 .<br />

Não satisfeito <strong>de</strong> sua bravata, Dom Quixote recomen<strong>da</strong> com muita luci<strong>de</strong>z ao<br />

“leonero” que conte aquela aventura ao rei, porque:<br />

Bien podrán los encantadores quitarme la ventura, pero el esfuerzo y el<br />

ánimo, será imposible [...] pues, si acaso Su Majestad preguntare quién la<br />

hizo, diréisle que el Caballero <strong>de</strong> los Leones; que <strong>de</strong> aquí a<strong>de</strong>lante quiero<br />

que en éste se trueque, cambie, vuelva y mu<strong>de</strong> el que hasta aquí he tenido<br />

<strong>de</strong>l Caballero <strong>de</strong> la Triste Figura. [Chega a oferecer] dos escudos <strong>de</strong> oro [ao<br />

leonero para que ele o exalte; e é o que faz:] Entonces el leonero [...] contó<br />

el fin <strong>de</strong> la contien<strong>da</strong>, exagerando como él mejor pudo [...] el valor <strong>de</strong> don<br />

Quijote. 109<br />

Duas situações <strong>em</strong> que o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho <strong>de</strong> Dom Quixote é contraditório, um<br />

<strong>em</strong> relação ao outro. No segundo episódio <strong>de</strong>saparece sua missão <strong>de</strong> “<strong>de</strong>shacer<br />

tuertos”, lutando pela justiça e pela paz. Seu interesse é niti<strong>da</strong>mente o <strong>de</strong> obter<br />

glória e fama, chegando ao extr<strong>em</strong>o <strong>de</strong> ele mesmo ser incoerente e contraditório no<br />

que tange <strong>à</strong> sua <strong>pro</strong>posta inicial. Se tomamos seu discurso <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro on<strong>de</strong><br />

critica ve<strong>em</strong>ent<strong>em</strong>ente as artimanhas <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po: “No había la frau<strong>de</strong>, el engaño<br />

ni la malicia mezcládose con la ver<strong>da</strong>d y llaneza” 110 , vê-se niti<strong>da</strong>mente a contradição.<br />

Se antes as aventuras a ele se dirigiam, s<strong>em</strong> que necessitasse esforçar-se<br />

para isso, na 2 a parte parece ter-se esgotado o elenco <strong>de</strong> aventuras dignas <strong>de</strong> um<br />

perfeito cavaleiro. Agora é Dom Quixote qu<strong>em</strong>, além <strong>de</strong> ávido <strong>pro</strong><strong>cura</strong>r as situações<br />

que po<strong>de</strong>rão colocá-lo <strong>em</strong> <strong>de</strong>staque, não se constrange <strong>de</strong> usar estratégias não<br />

dignas <strong>de</strong> um cavaleiro.<br />

108 Mais comedido que arrogante, não fazendo caso <strong>de</strong> bobagens n<strong>em</strong> <strong>de</strong> bravatas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter olhado <strong>de</strong> um lado a outro<br />

[...] virou as costas e mostrou as partes posteriores a Dom Quixote. (2, XVII, p.408)<br />

109 B<strong>em</strong> po<strong>de</strong>rão os encantadores tirar-me a aventura, mas o esforço e o ânimo, será impossível [...] portanto, se por acaso<br />

sua Majesta<strong>de</strong> perguntar qu<strong>em</strong> fez isto, direis que foi o Cavaleiro dos Leões, que <strong>da</strong>qui <strong>em</strong> diante que neste se troque, mu<strong>de</strong>,<br />

volte e mu<strong>de</strong> o que até aqui tive <strong>de</strong> o Cavaleiro <strong>da</strong> Triste Figura. [Chega a oferecer] duas moe<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ouro [ao leonero (...) faz:]<br />

Então o encarregado dos leões [...] contou o fim <strong>da</strong> conten<strong>da</strong>, exagerando como melhor ele po<strong>de</strong> a corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

(2, XVII, p.409)<br />

110 Não havia a frau<strong>de</strong>, a malícia e o engano se misturado com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e a retidão (1, XI, p.60)


Ain<strong>da</strong> que saibamos estar catalogado o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho <strong>da</strong> corag<strong>em</strong> do expor-<br />

se, do ser valente e não covar<strong>de</strong>, no i<strong>de</strong>al do hom<strong>em</strong> renascentista, pois o próprio<br />

Dom Quixote se encarrega <strong>de</strong> justificar o acontecido com os leões, suas justificativas<br />

não parec<strong>em</strong> ser convincentes.<br />

Começa <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo-se do estigma <strong>de</strong> louco que, “por no po<strong>de</strong>r menos” 111<br />

precisou tolerar: “no soy tan loco ni tan menguado como <strong>de</strong>bo <strong>de</strong> haberle<br />

parecido”. 112 Sabe que sua atuação não estava conforme com o código <strong>da</strong> cavalaria<br />

an<strong>da</strong>nte, mas comparando um cavaleiro <strong>da</strong> corte <strong>em</strong> seus exercícios militares com<br />

um cavaleiro an<strong>da</strong>nte, reconhece ter aquele, além <strong>de</strong> uma prática militar mais leve e<br />

fácil, mais oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ser visto, admirado e reconhecido pelo rei:<br />

Bien parece un gallardo caballero, a los ojos <strong>de</strong> su rey, en mitad <strong>de</strong> una<br />

gran plaza, <strong>da</strong>r una lanza<strong>da</strong> con felice suceso a un bravo toro; bien parece<br />

un caballero, armado <strong>de</strong> resplan<strong>de</strong>cientes armas, pasar la tela en alegres<br />

justas <strong>de</strong>lante <strong>de</strong> las <strong>da</strong>mas, y bien parecen todos aquellos caballeros que<br />

en ejercicios militares, o que los parezcan, entretienen y alegran, y, si se<br />

pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>cir, honran las cortes <strong>de</strong> sus príncipes [...] 113<br />

Na contraparti<strong>da</strong>, as dos cavaleiros an<strong>da</strong>ntes são muito mais duras; para<br />

alcançar glória e fama, an<strong>da</strong>:<br />

[...] por los <strong>de</strong>siertos, por las sole<strong>da</strong><strong>de</strong>s, por las encrucija<strong>da</strong>s, por las selvas<br />

y por los montes an<strong>da</strong> buscando peligrosas aventuras [...] busque los<br />

rincones <strong>de</strong>l mundo [...], intricados laberintos; acometa lo imposible [...]<br />

resista a los ardientes rayos <strong>de</strong>l sol [...], la dura incl<strong>em</strong>encia <strong>de</strong> los vientos y<br />

<strong>de</strong> los yelos”, [até chegar on<strong>de</strong> queria:] “no le asombren leones [...] 114<br />

111 Por falta <strong>de</strong> alternativa. (2, XV, p.397)<br />

112 Não sou tão louco n<strong>em</strong> tão mentecapto como <strong>de</strong>vo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410)<br />

113 B<strong>em</strong> parece um galhardo cavaleiro, aos olhos <strong>de</strong> seu rei, no meio <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> praça, <strong>da</strong>r uma lança<strong>da</strong> <strong>de</strong> feliz resultado<br />

<strong>em</strong> um bravo touro, b<strong>em</strong> parece um cavaleiro, armado <strong>de</strong> resplan<strong>de</strong>centes arma, passar a paliça<strong>da</strong> <strong>em</strong> alegres justas diante<br />

<strong>da</strong>s <strong>da</strong>mas, e b<strong>em</strong> parec<strong>em</strong> todos aqueles cavaleiros que en exercícios militares, ou que se pareçam, entretêm e alegram, e,<br />

se cabe dizer, honram as cortes <strong>de</strong> seus príncipes (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

114 […] pelos <strong>de</strong>sertos, pelos ermos, pelas encruzilha<strong>da</strong>s, pelas matas e pelos montes an<strong>da</strong> buscando perigosas aventuras [...]<br />

busque os rincões do mundo [...], intricados labirintos; acometa o impossível [...] resista aos ar<strong>de</strong>ntes raios do sol [...], a dura<br />

incl<strong>em</strong>ência dos ventos e dos gelos [até (...) queria] não lhe assombr<strong>em</strong> leões (Ibi<strong>de</strong>m)


Como essas contingências se haviam esgotado, não per<strong>de</strong> uma que aparece<br />

e está ao seu alcance.<br />

Segue seu discurso dizendo que, nesse caso, entre os extr<strong>em</strong>os <strong>da</strong> valentia,<br />

é melhor optar pelo extr<strong>em</strong>o do t<strong>em</strong>erário, do que pelo extr<strong>em</strong>o <strong>da</strong> covardia: “y en<br />

esto <strong>de</strong> acometer aventuras, créame vuesa merced, señor don Diego, que antes se<br />

ha <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r por carta <strong>de</strong> más que <strong>de</strong> menos” 115 .<br />

dizendo:<br />

Prefere ressaltar o conhecimento que Dom Quixote t<strong>em</strong> <strong>da</strong> cavalaria an<strong>da</strong>nte,<br />

[...] que entiendo que si las an<strong>da</strong>nzas y leyes <strong>de</strong> la caballería an<strong>da</strong>nte se<br />

perdiesen, se hallarían en el pecho <strong>de</strong> vuesa merced como en su mismo<br />

<strong>de</strong><strong>pós</strong>ito y archivo. Y démonos priesa, que se hace tar<strong>de</strong>, y llegu<strong>em</strong>os a mi<br />

al<strong>de</strong>a y casa, don<strong>de</strong> <strong>de</strong>scansará vuestra merced <strong>de</strong>l pasado trabajo, que si<br />

no ha sido <strong>de</strong>l cuerpo, ha sido <strong>de</strong>l espíritu, que suele tal vez redun<strong>da</strong>r en<br />

cansancio <strong>de</strong>l cuerpo. 116<br />

Depois <strong>de</strong> muitas justificativas e explicações, Dom Quixote, usando tantas<br />

“razones”, característica primordial <strong>de</strong> todo e qualquer discurso <strong>da</strong> obra, é Dom<br />

Diego qu<strong>em</strong> arr<strong>em</strong>ata a discussão. Nesse arr<strong>em</strong>ate, anulam-se as diferenças entre<br />

cavaleiro <strong>da</strong> corte e cavaleiro an<strong>da</strong>nte, <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> uma performance muito mais<br />

eleva<strong>da</strong>, e, que por sua vez, cont<strong>em</strong>pla os dois cavaleiros <strong>em</strong> sua essência.<br />

Não são as lutas n<strong>em</strong> a exibição <strong>de</strong> seus talentos ao rei que estão <strong>em</strong> jogo. O<br />

mais importante não t<strong>em</strong> sequer nenhuma ligação com o corpo “que si no ha sido el<br />

cuerpo”. O que se quer ressaltar aqui é o conhecimento que Dom Quixote exibiu<br />

brilhant<strong>em</strong>ente; do que se quer tratar é do que traz Dom Quixote no peito: “si las<br />

115<br />

E nisto <strong>de</strong> acometer aventuras, creia-me vossa mercê, senhor <strong>dom</strong> Diego, que antes se há <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r por carta <strong>de</strong> mais que<br />

<strong>de</strong> menos (2, XVII, p.411)<br />

116<br />

[...] que entendo que se as or<strong>de</strong>nações e leis <strong>da</strong> cavalaria an<strong>da</strong>nte se per<strong>de</strong>ss<strong>em</strong>, seriam acha<strong>da</strong>s no peito <strong>de</strong> vossa mercê<br />

como <strong>em</strong> seu próprio <strong>de</strong><strong>pós</strong>ito e arquivo. E apress<strong>em</strong>o-nos, por que está ficando tar<strong>de</strong> e chegu<strong>em</strong>os a minha al<strong>de</strong>ia e casa,<br />

on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scansará vossa mercê do passado trabalho que se terá não sido do corpo, terá sido do espírito, que acaso costuma<br />

redun<strong>da</strong>r <strong>em</strong> cansaço do corpo. (Ibi<strong>de</strong>m)


or<strong>de</strong>nanzas y leyes <strong>de</strong> la caballería an<strong>da</strong>nte se perdiesen, se hallarían en el pecho<br />

<strong>de</strong> vuesa merced” 117 .<br />

Dom Quixote é a personificação do conhecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que foi sendo<br />

acumulado pelos platonismos; ele é um “<strong>de</strong><strong>pós</strong>ito y archivo”. Embora esse <strong>de</strong><strong>pós</strong>ito-<br />

arquivo seja i<strong>de</strong>ntificado com o conhecimento <strong>da</strong> cavalaria, isso só funciona como<br />

um alerta para alocar as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que Dom Quixote precisa veicular, <strong>de</strong>ntro do<br />

universo <strong>da</strong> cavalaria an<strong>da</strong>nte, s<strong>em</strong> que isso seja necessariamente uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. O<br />

conhecimento que vai veicular não se restringe <strong>à</strong>s “or<strong>de</strong>nanzas y leyes <strong>de</strong> la<br />

caballería an<strong>da</strong>nte”. É um conhecimento muito mais amplo; foi o exercício <strong>de</strong>sse<br />

conhecimento que tanto exauriu Dom Quixote, a ponto <strong>de</strong> ele necessitar <strong>de</strong>scansar<br />

na casa <strong>de</strong> Dom Diego: “<strong>de</strong>scansará vuestra merced <strong>de</strong>l pasado trabajo” 118 .<br />

Se não foi do corpo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veio o esforço <strong>em</strong>preendido por Dom Quixote?<br />

O texto diz que veio “<strong>de</strong>l espíritu” que, por conseqüência po<strong>de</strong> ter cansado o corpo.<br />

Mas que fica claro haver uma cisão corpo-alma, sensível-inteligível, isso é<br />

indiscutível.<br />

Esse é o com<strong>pro</strong>misso <strong>de</strong> Dom Quixote, assumido com a obra: ser o porta-<br />

voz dos valores medievais que estão por um “triz”, que estão <strong>em</strong> vias <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r<strong>em</strong> a<br />

vigência. Esses valores aparec<strong>em</strong> reduplicados <strong>em</strong> cavalaria medieval e cavalaria<br />

cortesã. Entretanto, não faz nenhuma diferença; porque, tendo sido esses<br />

conhecimentos adquiridos ou no platonismo cristão-medieval, ou no renascentista,<br />

tendo eles passado pela versão cristã ou pela versão neoclássica, não importa. Em<br />

sua essência, a base <strong>de</strong> sustentação permanece a mesma: estão assenta<strong>da</strong>s as<br />

duas paidéias <strong>em</strong> platonismos originários <strong>da</strong> mesma tradição – a metafísica.<br />

117 Se as or<strong>de</strong>nações e leis <strong>da</strong> caalaria an<strong>da</strong>nte se per<strong>de</strong>ss<strong>em</strong>, achar-se-iam no peito <strong>de</strong> vossa mercê (2, XVII, p.411)<br />

118 Descansará vossa mercê do passado trabalho (Ibi<strong>de</strong>m)


4 PARA FAZER TRAVESSIA, SÓ INVENTANDO MUNDO<br />

O hom<strong>em</strong> é um ente lançado no mundo. É por isso que Hei<strong>de</strong>gger 119 reforça a<br />

importância do “ser-<strong>em</strong>”. Ao longo <strong>de</strong> sua travessia <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura, é preciso<br />

que sua relação com o mundo se dê no âmbito dos significados estabelecidos no<br />

nível <strong>da</strong> manuali<strong>da</strong><strong>de</strong> do intramun<strong>da</strong>no, significados que já estão dispostos no<br />

mundo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre, antes mesmo que o hom<strong>em</strong> nele ingressasse. “O ser-no-<br />

mundo” é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, uma constituição <strong>da</strong> pre-sença, mas <strong>de</strong> forma alguma<br />

suficiente para <strong>de</strong>terminar por completo o seu ser”. “Ser-<strong>em</strong>” é “ser-no-mundo”,<br />

porque o ser só se dá na cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A relação do hom<strong>em</strong> com as coisas do mundo se dá, inicialmente, como mero<br />

instrumental ou como “simplesmente <strong>da</strong>do”. E essa relação do ser-no-mundo po<strong>de</strong><br />

abrir, no mais inesperado momento, novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> significações e sentidos<br />

nesse mesmo mundo.<br />

Se Dom Quixote está <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura, se já virou cavaleiro louco, se<br />

precisa aliar, <strong>à</strong> força do seu braço, o conhecimento adquirido com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

checar se é ain<strong>da</strong> possível r<strong>em</strong>ediar os males do mundo; s<strong>em</strong> alternativa, ele<br />

reconhece a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a <strong>de</strong> trazer, <strong>à</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po, o mundo <strong>da</strong><br />

cavalaria. Só <strong>de</strong>sse modo será possível que as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s se mostr<strong>em</strong> na<br />

espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> do acontecer <strong>da</strong> cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

119 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998.


4.1 DOM QUIXOTE INVENTA UM MUNDO<br />

Dom Quixote abandona a leitura, sai do livro, olha ao redor e vê: Espanha<br />

está <strong>de</strong>svitaliza<strong>da</strong>, a crise do humanismo se alastrava, e já contagiava seus<br />

<strong>dom</strong>ínios, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Descartes vibrava intensamente:<br />

como afirma Pierre Vilar, entre 1598 e 1620, se experimenta “la primera gran crisis<br />

<strong>de</strong> du<strong>da</strong> <strong>de</strong> los españoles” 120 . Isso não po<strong>de</strong> ser mero acaso.<br />

A crise espanhola ultrapassa o econômico e alcança o social. Pela prata que<br />

chegava do Peru e do México, pagava-se ca<strong>da</strong> vez mais caro, os gastos eram<br />

vultosos, <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que aumentavam os hábitos religiosos <strong>de</strong> nobres e burgueses<br />

nascentes. Campos vazios, ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s superlota<strong>da</strong>s, a falta <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra sentencia<br />

a morte <strong>da</strong> economia castelhana; conseqüent<strong>em</strong>ente a fome reaparece s<strong>em</strong>pre com<br />

brios renovados. O mouro convertido <strong>à</strong> força, s<strong>em</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> n<strong>em</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

assimilação, é mais uma vítima no cenário <strong>da</strong> crise. Assim mesmo, a expulsão do<br />

resíduo mouro baixou <strong>em</strong> 30% os habitantes <strong>de</strong> Valencia, trazendo inquietação a<br />

todos.<br />

É visível a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> do aparelho do Estado, na corrupção que <strong>de</strong>ixa<br />

transparecer. Se <strong>de</strong> um lado o vice-rei Almazán pren<strong>de</strong>, incen<strong>de</strong>ia e enforca; <strong>de</strong><br />

outro, os bandidos <strong>de</strong>tidos e encarcerados negociam mediante <strong>pro</strong>pina, com sua<br />

filha e esposa, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> almeja<strong>da</strong>: “los bandoleros son más señores <strong>de</strong> la tierra<br />

que el rey” 121 , <strong>pro</strong>nunciou o bispo Vic, ao constatar a dura reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser<br />

necessário que as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s se <strong>de</strong>slocass<strong>em</strong> pelo mar, nas operações “caça<br />

bandido”, por estar<strong>em</strong> todos os caminhos infestados.<br />

120 A primeira gran<strong>de</strong> crise <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong> dos espanhóis (VILAR, Pierre. Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. 5.ed.<br />

Barcelona: Ariel, 1983, p.332)<br />

121 Os bandoleiros são mais senhores <strong>da</strong> terra que o rei (Ibi<strong>de</strong>m, p.336)


Instigante é a simpatia que, tanto Dom Quixote como todo povo, nutria pelos<br />

gran<strong>de</strong>s chefes <strong>de</strong> quadrilha, cujas estratégias eram tão mirabolantes que não havia<br />

qu<strong>em</strong> não se surpreen<strong>de</strong>sse. Dom Quixote os <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> no episódio dos “galeotes”<br />

quando os vê, presos, ser<strong>em</strong> conduzidos a realizar<strong>em</strong> trabalhos forçados para o rei:<br />

“Cuanto más, señores guar<strong>da</strong>s __ añadió don Quijote __ , que estos pobres no han<br />

cometido na<strong>da</strong> contra vosotros”, participando até <strong>de</strong> sua fuga. Ele, enfrentando os<br />

verdugos reais que “arr<strong>em</strong>etieron a don Quijote que con mucho sosiego los<br />

aguar<strong>da</strong>ba” e Sancho “Ayudó [...], por su parte, a la soltura <strong>de</strong> Ginés <strong>de</strong> Pasamonte,<br />

que fue el primero que saltó en la campaña libre y <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barazado, y, arr<strong>em</strong>etiendo<br />

al comisario caído, le quitó la espa<strong>da</strong> y la escopeta” 122<br />

No cotidiano é comum a sucessão <strong>de</strong> ataques ao modo do viver espanhol:<br />

“¡Todo es divertirse en fiestas, jugar y cazar! ¡Y que ar<strong>da</strong>n el mundo y los<br />

negocios!”. 123 Na Espanha não se <strong>pro</strong>duz; ninguém respon<strong>de</strong> por na<strong>da</strong>; tudo acaba<br />

<strong>em</strong> diversão. “El no haber dinero, oro ni plata en España, es por haberlo, y el no ser<br />

rico es por serlo” 124 . Na<strong>da</strong> havia, mas era como se houvesse, na<strong>da</strong> se fazia, mas era<br />

como se se fizesse. A garantia e a certeza do dinheiro que cruzava o mar imperava,<br />

gastava-se “por a<strong>de</strong>lantado”; a riqueza espanhola “an<strong>da</strong> por el ayre”, “<strong>em</strong> papéis,<br />

contratos, moe<strong>da</strong>, letras <strong>de</strong> câmbio, na prata e no ouro” 125 .<br />

Espanha insistia no faz <strong>de</strong> conta. Ain<strong>da</strong> que Pierre Vilar <strong>de</strong>monstre que a<br />

crise alcança até a consciência, esse alcance é tão reduzido que o obriga a<br />

comparar o grau <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> que diferencia analistas e teóricos, do artista. Os<br />

122<br />

Tanto mais, senhores – acrescentou Dom Quixote, – que estes pobres não cometeram na<strong>da</strong> contra vós [participando (...)<br />

que] arr<strong>em</strong>eteram contra Dom Quixote que com muita calma os aguar<strong>da</strong>va [e Sancho] Ajudou [...], por sua parte, <strong>à</strong> soltura <strong>de</strong><br />

Ginés <strong>de</strong> Pasamonte, que foi o primeiro que libertou na campanha, livre e <strong>de</strong>s<strong>em</strong>baraçado, e, arr<strong>em</strong>etendo contra o comissário<br />

caído, arrancou-lhe a espa<strong>da</strong> e a escopeta. (1, XXII, p.121-122)<br />

123<br />

Tudo é diversão <strong>em</strong> festas, jogos e caça<strong>da</strong>s! E que ar<strong>da</strong>m o mundo e os negócios. (VILAR, Pierre. El ti<strong>em</strong>po <strong>de</strong>l “Quijote”.<br />

Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 27 jul 2007)<br />

124<br />

Não ter ouro ou prata na Espanha é por tê-lo, e não ser rica é por sê-lo (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

125<br />

VILAR, Pierre. Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1983, p.332-346.


primeiros, <strong>de</strong> vista curta, só perceb<strong>em</strong> superficialmente a crise, enquanto o artista<br />

capta o naufrágio <strong>de</strong> um mundo.<br />

Seguramente não precisaríamos incomo<strong>da</strong>r Pierre Vilar, recorrendo a El<br />

ti<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Quijote 126 . À medi<strong>da</strong> que vai percorrendo os caminhos, Dom Quixote<br />

mesmo a<strong>pro</strong>veita para, com pincela<strong>da</strong>s, ir compondo o quadro <strong>da</strong> Espanha <strong>de</strong> seu<br />

t<strong>em</strong>po; os ex<strong>em</strong>plos são muitos: Dom Quixote <strong>de</strong>sperta numa manhã <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um<br />

cacho <strong>de</strong> bandoleiros enforcados e ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> outros quarenta vivos:<br />

No tienes <strong>de</strong> qué tener miedo, porque estos pies y piernas que tientas y no<br />

vees, sin du<strong>da</strong> son <strong>de</strong> algunos forajidos y bandoleros que en estos árboles<br />

están ahorcados; que por aquí los suele ahorcar la justicia cuando los coge,<br />

<strong>de</strong> veinte en veinte y <strong>de</strong> treinta en treinta; por don<strong>de</strong> me doy a enten<strong>de</strong>r que<br />

<strong>de</strong>bo <strong>de</strong> estar cerca <strong>de</strong> Barcelona. 127<br />

Essa situação sinalizou-lhe estar perto <strong>de</strong> Barcelona, on<strong>de</strong> a bandi<strong>da</strong>g<strong>em</strong><br />

catalã, nos <strong>de</strong>z anos que separavam as duas publicações <strong>de</strong> Dom Quixote, já<br />

alcançava seus níveis mais extr<strong>em</strong>os. Desse modo, compreen<strong>de</strong>-se que no capítulo<br />

XI <strong>da</strong> parte 1, Dom Quixote, por comparação com a “dichosa e<strong>da</strong>d”, a que os antigos<br />

chamaram “I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro”, traduz seu saudosismo cheio <strong>de</strong> lamento, no confronto<br />

<strong>de</strong>ssa época com o t<strong>em</strong>po que lhe coube viver.<br />

Convocando todos a comer<strong>em</strong> juntos, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando sua condição <strong>de</strong><br />

cavaleiro, movido por amor, nesta cena, Dom Quixote atualiza o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a<br />

abundância inviabilizava a separação; t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que todos a ignoravam porque<br />

além do simples levantar <strong>da</strong>s mãos para colher frutos, outro esforço não era exigido.<br />

Ao falar <strong>de</strong> abundância, menciona as “sabrosas y transparentes aguas” <strong>de</strong> rios e<br />

fontes, as abelhas “ofreciendo a cualquier mano, sin interés alguno, la fértil cosecha<br />

<strong>de</strong> su dulcísimo trabajo”, árvores que se doam para “cubrir las casas, sobre rústicas<br />

126 VILAR, Pierre. Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1983<br />

127 Não tens <strong>de</strong> que ter medo. Porque estes pés e pernas que tateias e não vês, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> são <strong>de</strong> alguns foragidos e<br />

bandoleiros que nestas árvores estão enforcados; que por aqui os costuma enforcar a justiça quando os captura, <strong>de</strong> vinte <strong>em</strong><br />

vinte e <strong>de</strong> trinta <strong>em</strong> trinta; <strong>de</strong> on<strong>de</strong> me vou enten<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>vo estar perto <strong>de</strong> Barcelona (2, LX, p.634)


estacas sustenta<strong>da</strong>s”, s<strong>em</strong> outra função que a <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa “<strong>de</strong> las incl<strong>em</strong>encias <strong>de</strong>l<br />

cielo”, o fruto “dulce y sazonado” 128 . Nessa época só havia paz; até a chega<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

um t<strong>em</strong>po diverso <strong>de</strong> que agora nos fala:<br />

[...] aún no se había atrevido la pesa<strong>da</strong> reja <strong>de</strong>l corvo arado a abrir ni visitar<br />

las entrañas piadosas <strong>de</strong> nuestra primera madre, que ella, sin ser forza<strong>da</strong>,<br />

ofrecía, por to<strong>da</strong>s las partes <strong>de</strong> su fértil y espacioso seno, lo que pudiese<br />

hartar, sustentar y <strong>de</strong>leitar a los hijos que entonces la poseían. 129<br />

Dom Quixote lamenta, já mencionando o arado, comparando-o a uma ave <strong>de</strong><br />

rapina que violenta a Mãe Terra. Naquele t<strong>em</strong>po, as moças formosas, que viviam no<br />

campo, se vestiam com um tecido feito <strong>da</strong> trama <strong>de</strong> “hojas ver<strong>de</strong>s [...] y yedra” 130<br />

s<strong>em</strong> que, para isso, tivess<strong>em</strong> que, além <strong>de</strong> sacrificar animais, lançar mão <strong>de</strong><br />

<strong>pro</strong>cessos sofisticados, sacrificando a “martiriza<strong>da</strong> se<strong>da</strong>”, para vestir as mulheres <strong>de</strong><br />

seu t<strong>em</strong>po. Eram mulheres <strong>da</strong> corte que, correndo <strong>da</strong>qui pra ali, na busca incessante<br />

<strong>de</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong>, encontravam e vestiam “raras y peregrinas invenciones que la<br />

curiosi<strong>da</strong>d [curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> associa<strong>da</strong> ao ócio] ociosa les mostraba”. Para falar “los<br />

concetos amorosos”, não era preciso na<strong>da</strong> mais que a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> com que a alma<br />

“los concebía, sin buscar artificioso ro<strong>de</strong>o <strong>de</strong> palabras”. 131<br />

Se antes “no había la frau<strong>de</strong>, el engaño ni la malicia mezcládose con la<br />

ver<strong>da</strong>d”; se antes a justiça funcionava <strong>de</strong> acordo com suas próprias regras “sin que<br />

la osasen turbar ni ofen<strong>de</strong>r los <strong>de</strong>l favor y los <strong>de</strong>l interese”; se a lei “<strong>de</strong>l encaje” não<br />

existia; se as donzelas e a honesti<strong>da</strong><strong>de</strong> an<strong>da</strong>vam juntas por to<strong>da</strong> parte, e “la<br />

128 Saborosas e transparentes [<strong>de</strong> rios (...) abelhas] oferecendo a qualquer mão, <strong>de</strong>sinteressa<strong>da</strong>mente, a fértil colheita <strong>de</strong> seu<br />

dulcíssimo trabalho [árvores (...) para] cobrir as casas, sobre rústicas estacas sustenta<strong>da</strong>s [s<strong>em</strong> (...) <strong>de</strong>fesa] <strong>da</strong>s incl<strong>em</strong>ências<br />

do céu [o fruto] doce e maduro (1, XI, p.60)<br />

129 Ain<strong>da</strong> não se havia atrevido a pesa<strong>da</strong> relha do curvo arado a abrir n<strong>em</strong> visitar as entranhas piedosas <strong>de</strong> nossa primeira<br />

mãe, que ela, s<strong>em</strong> ser força<strong>da</strong>, oferecia, por to<strong>da</strong> parte <strong>de</strong> seu fértil e espaçoso seio, o que pu<strong>de</strong>sse fartar, sustentar e <strong>de</strong>leitar<br />

aos filhos que então a possuíam (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

130 Folhas ver<strong>de</strong>s (...) e hera (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

131 Raras e peregrinas invenções que a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> [...] os conceitos amorosos [...] Concebia-os, s<strong>em</strong> buscar artificioso ro<strong>de</strong>io<br />

<strong>de</strong> palavras (Ibi<strong>de</strong>m)


perdición nacía <strong>de</strong> su gusto y <strong>pro</strong>pia voluntad”, o mesmo já não se podia dizer do<br />

seu t<strong>em</strong>po. 132<br />

Se, na I<strong>da</strong><strong>de</strong> do Ouro, tudo funcionava assim, é porque, <strong>em</strong> seu t<strong>em</strong>po, tudo<br />

se mostra <strong>em</strong> radical oposição; é o que Dom Quixote chama <strong>de</strong> “nuestros<br />

<strong>de</strong>testables siglos” 133 ; o que justifica perfeitamente sua <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> ser cavaleiro, <strong>em</strong><br />

um <strong>de</strong>terminado t<strong>em</strong>po, “para cuya seguri<strong>da</strong>d [...] se instituyó la or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> los<br />

caballeros an<strong>da</strong>ntes” 134 .<br />

T<strong>em</strong>os, com isso, o perfil <strong>da</strong> época <strong>de</strong> Dom Quixote. Se compararmos a visão<br />

<strong>de</strong> Pierre Vilar com a <strong>de</strong> Dom Quixote, v<strong>em</strong>os tratar-se o perfil do mesmo: o perfil é o<br />

mesmo; com a única diferença do modo <strong>de</strong> dizer. Não resta dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que o<br />

apresentado por Dom Quixote se refere a uma época vista com olhos poéticos, e, o<br />

<strong>de</strong> Pierre Vilar, vista com os olhos historiográficos. E o mais interessante está <strong>em</strong><br />

que, para corroborar nosso ponto <strong>de</strong> vista, acreditando estar o perfil poético muito<br />

mais próximo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do que o outro, o historiográfico, é o próprio Pierre Vilar<br />

escritor que, mesmo tendo uma <strong>pro</strong>posta <strong>de</strong> olhar com olhos historiográficos,<br />

reconhece os dois pontos <strong>de</strong> vista mencionados. Quando, ao resumir o quadro<br />

lamentável <strong>em</strong> que se encontra Espanha, assim o registra: “Y en fin <strong>de</strong> cuentas, el<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro intérprete es en un caso Cervantes [...]. El arbitrista corto <strong>de</strong> vista percibe<br />

la crisis a corto plazo, pero <strong>de</strong>l naufragio <strong>de</strong> un mundo y <strong>de</strong> sus valores surge una<br />

genial tragicomedia” 135 . Com isso, ele quer dizer que aquele perfil traçado por<br />

analistas e teóricos <strong>de</strong> vista curta, por “persona(s) que imagina(n) sist<strong>em</strong>as, que<br />

cree(n) infalibles pero que no tienen fun<strong>da</strong>mento sólido, para resolver las dificulta<strong>de</strong>s<br />

132<br />

Não havia a frau<strong>de</strong>, o engano n<strong>em</strong> a malícia misturando-se com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> [...] s<strong>em</strong> que a ousass<strong>em</strong> turvar n<strong>em</strong> ofen<strong>de</strong>r os<br />

homens que se ven<strong>de</strong>m e os interesseiros [se a lei] do ”pistolão” [...] a perdição nascia <strong>de</strong> sua própria vonta<strong>de</strong> (1, XI, p.60)<br />

133<br />

Nossos séculos <strong>de</strong>testáveis (1, XI, p.61)<br />

134<br />

Para cuja segurança [...] instituiu-se a or<strong>de</strong>m dos cavaleiros an<strong>da</strong>ntes (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

135<br />

E no fim <strong>da</strong>s contas, o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>rio intérprete é <strong>em</strong> um caso Cervantes [...]. O arbitrista curto <strong>de</strong> vista percebe a crise a curto<br />

prazo, mas do naufrágio <strong>de</strong> um mundo e <strong>de</strong> seus valores surge uma genial tragicomédia (VILAR, Pierre. El ti<strong>em</strong>po <strong>de</strong>l “Quijote”.<br />

Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 27 jul 2007)


públicas, económicas o <strong>de</strong> otra clase” 136 , esse está longe do perfil feito pelo<br />

traço <strong>da</strong> arte.<br />

Muito b<strong>em</strong> disse Pierre Vilar: um mundo que está naufragando. Mas esse<br />

que naufraga não é a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> política <strong>de</strong> Espanha. O mundo que naufraga é o<br />

mundo avesso ao <strong>da</strong> época <strong>de</strong> ouro que nos <strong>de</strong>screve Dom Quixote; pelo menos é o<br />

que parece. De que mundo estará falando Dom Quixote?<br />

Quando fala <strong>de</strong> seu mundo, para nós que já sab<strong>em</strong>os o que estamos<br />

buscando, é fácil reconhecer: mundo dos conceitos subjetivos que, <strong>em</strong> sua<br />

autonomia, negam o objeto, per<strong>de</strong>ndo assim to<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> articulação; um<br />

mundo esgotado que, s<strong>em</strong> articulação, não se beneficia do arejamento do vigor <strong>da</strong><br />

terra. S<strong>em</strong> a articulação terra-mundo, s<strong>em</strong> arejamento, falta ar, falta o so<strong>pro</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Assim fica fácil; a olhos sensíveis, o naufrágio <strong>de</strong>sse mundo se torna sensível. É<br />

<strong>de</strong>sse mundo que <strong>em</strong>erge Dom Quixote; um mundo s<strong>em</strong> referência, “sin suelo”,<br />

on<strong>de</strong> tudo “an<strong>da</strong> por el aire”, um mundo s<strong>em</strong> honesti<strong>da</strong><strong>de</strong>, s<strong>em</strong> justiça, s<strong>em</strong> amor.<br />

Dom Quixote <strong>pro</strong><strong>cura</strong> on<strong>de</strong> assentar o pé para transitar nesse mundo e não encontra<br />

chão; não sabe para on<strong>de</strong> ir, não t<strong>em</strong> como se mover. Como “agir”, <strong>em</strong> todo e<br />

qualquer sentido <strong>da</strong> palavra, s<strong>em</strong> que se possa mover? A essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o ócio se<br />

ajusta plenamente: s<strong>em</strong> mundo, não há na<strong>da</strong> a fazer.<br />

E o outro mundo, o <strong>de</strong>sejável, aon<strong>de</strong>, cheio <strong>de</strong> cobiça, Dom Quixote lança o<br />

olhar cheio <strong>de</strong> “querer”?<br />

Sobre o perfil do mundo, sab<strong>em</strong>os <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a ele voltarmos. Ele<br />

sinaliza forte relação com outros itens <strong>da</strong> Tese que tratar<strong>em</strong>os mais adiante. Por ora,<br />

<strong>de</strong>dicar<strong>em</strong>os só a Dom Quixote e a seu mundo <strong>da</strong> cavalaria to<strong>da</strong> a atenção.<br />

136 Pessoa(s) que imagina(m) sist<strong>em</strong>as, que acredita(m) infalíveis, mas que não têm fun<strong>da</strong>mento sólido, para resolver<br />

as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s públicas, econômicas ou <strong>de</strong> outro tipo. (MOLINER, María. Diccionario <strong>de</strong>l uso <strong>de</strong>l Español. Madrid: Gredos,<br />

1987, p. 232).


É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que houve exagero na avaliação – “s<strong>em</strong> mundo”. É claro que<br />

mundo s<strong>em</strong>pre há; caso contrário, sequer o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser cavaleiro encontraria<br />

lugar. Falamos <strong>de</strong> instabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, insegurança, dúvi<strong>da</strong>s e incertezas. Por isso<br />

usar<strong>em</strong>os uma imag<strong>em</strong> que po<strong>de</strong>rá tornar claro o <strong>pro</strong>cesso. Re<strong>de</strong> conceitual; assim<br />

caracterizamos o mundo espanhol - uma re<strong>de</strong> conceitual.<br />

Basta pensarmos numa re<strong>de</strong> rígi<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> que possa favorecer a<br />

articulação. Só isso e, imediatamente conhecer<strong>em</strong>os sua fragili<strong>da</strong><strong>de</strong>, sua pouca<br />

resistência e durabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. A esses fios nos referimos, aos fios rígidos <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong>, segundo os mol<strong>de</strong>s medievais, mol<strong>de</strong>s esses rastreados na Grécia<br />

platônica e <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente a<strong>da</strong>ptados aos interesses <strong>da</strong> Igreja. Esses fios, há séculos,<br />

vêm sendo submetidos <strong>à</strong> violenta luta entre a rigi<strong>de</strong>z dos conceitos <strong>de</strong> um lado e a<br />

physis violenta<strong>da</strong> <strong>de</strong> outro, a mesma physis sugeri<strong>da</strong> no discurso <strong>de</strong> Dom Quixote<br />

sobre a época <strong>de</strong> ouro. Esse confronto insistente foi o que <strong>de</strong>struiu as malhas <strong>da</strong><br />

re<strong>de</strong> do Oci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

Esgarça<strong>da</strong> está a re<strong>de</strong> do mundo <strong>de</strong> Dom Quixote, esgarçado o<br />

representativo <strong>da</strong>s oposições, malha gasta poí<strong>da</strong> e rota <strong>pro</strong>duzi<strong>da</strong> por um<br />

incontornável que luta violentamente para do contorno se libertar. E Dom Quixote,<br />

sensível ao insuportável viver nesse mundo, é <strong>pro</strong>vável que tenha optado pelo<br />

caminho mais curto: na falta <strong>de</strong> outro, ele recompõe a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po, a ela<br />

superpondo a re<strong>de</strong> <strong>da</strong> cavalaria, familiarizado que estava com a ficção li<strong>da</strong>. Tal<br />

<strong>de</strong>cisão não parece má, já que “a re<strong>de</strong> conceitual é condição prévia para [...] sair do<br />

encanto mágico-racional dos conceitos científico-metafísicos” 137 . Sair do<br />

encantamento <strong>da</strong> razão significa abrir-se para questões. Desse modo, conceito é o<br />

que não vai faltar no mundo <strong>de</strong> Dom Quixote, os do t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> cavalaria, os <strong>de</strong> seu<br />

t<strong>em</strong>po que, tímidos, quer<strong>em</strong> se impor.<br />

137 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A questão e os conceitos. Art. Fac. Letras, UFRJ, 2007, p.3.


Dom Quixote <strong>de</strong>ixou b<strong>em</strong> claro a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a cavalaria fazer frente a<br />

“nuestros <strong>de</strong>testables siglos”. Afinal, foi para isso que ela foi instituí<strong>da</strong>: “para cuya<br />

seguri<strong>da</strong>d [...] se instituyó la or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> los caballeros an<strong>da</strong>ntes” 138 . Ele <strong>de</strong>monstra ter<br />

plena consciência <strong>da</strong> vali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu <strong>pro</strong>jeto. Por isso, mesmo reconhecendo quão<br />

<strong>de</strong>testável é o seu t<strong>em</strong>po, é com os fragmentos que ain<strong>da</strong> percebe <strong>de</strong> seu mundo<br />

que po<strong>de</strong> contar. Entretanto, falta-lhe ain<strong>da</strong> o mundo do confronto. Assim, não lhe<br />

resta outra alternativa, senão buscar, nas novelas <strong>de</strong> cavalaria, os ingredientes<br />

necessários para montar seu mundo. O que teria feito Dom Quixote acreditar ser o<br />

mundo <strong>da</strong> cavalaria, comparável <strong>à</strong>quele mundo i<strong>de</strong>al que seu olhar tanto cobiça?<br />

Falta <strong>de</strong> opção? É possível.<br />

Mesmo que não compreen<strong>da</strong> muito b<strong>em</strong> sua própria escolha, <strong>de</strong> uma coisa<br />

Dom Quixote está seguro: sabe muito b<strong>em</strong> que, se quiser compreen<strong>de</strong>r, só no<br />

mundo. Hei<strong>de</strong>gger <strong>de</strong>ixou b<strong>em</strong> claro, ao integrar o “ser-<strong>em</strong>” <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura.<br />

No entanto, “ser-<strong>em</strong>” não significa lugar geográfico. Em Dom Quixote, este é<br />

tão insignificante a ponto <strong>de</strong> ser localizado por um artigo in<strong>de</strong>finido e <strong>de</strong> sequer ser<br />

guar<strong>da</strong>do na m<strong>em</strong>ória: “En un lugar <strong>de</strong> la Mancha, <strong>de</strong> cuyo nombre no quiero<br />

acor<strong>da</strong>rme” 139 . “Ser-<strong>em</strong>” significa que o ser não se dá, fora <strong>de</strong> um contexto;<br />

Heráclito, quando visitado por um grupo <strong>de</strong> turistas, ávido <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, percebeu<br />

a imediata per<strong>da</strong> <strong>de</strong> interesse, ao se <strong>de</strong>frontar o grupo com o <strong>pro</strong>saico do agir <strong>de</strong> tão<br />

gran<strong>de</strong> celebri<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> sua casa, e lamentou, porque os ingênuos curiosos não<br />

sabiam que o acontecer <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é na espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> do cotidiano mais<br />

simplório que ele se dá. É b<strong>em</strong> possível que, por pura falta <strong>de</strong> opção, Dom Quixote<br />

<strong>de</strong>s<strong>pro</strong>vido <strong>de</strong> mundo, e na urgência <strong>de</strong> compor mundo, só por isso tenha lançado<br />

mão <strong>de</strong> um que lhe fosse familiar.<br />

138 Nossos abomináveis t<strong>em</strong>pos [Afinal...] para cuja segurança [...] instituiu-se a or<strong>de</strong>m dos cavaleiros an<strong>da</strong>ntes (1, XI, p.60-61)<br />

139 Em um lugar <strong>de</strong> La Mancha, <strong>de</strong> cujo nome não quero l<strong>em</strong>brar. (1, I, p.17)


No momento mesmo <strong>em</strong> que Espanha <strong>de</strong>scobre o novo mundo, é quando<br />

menos mundo t<strong>em</strong>. E se Espanha <strong>de</strong>scobre um novo mundo, é justo que Dom<br />

Quixote, s<strong>em</strong> referências, também invente o seu. Para ser, todos precisam <strong>de</strong><br />

mundo: <strong>em</strong> La vi<strong>da</strong> es sueño 140 , alijado do mundo, Segismundo se transforma <strong>em</strong><br />

monstro cruel, e traz <strong>à</strong> discussão o <strong>de</strong>stino e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> previsão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Em Menino a bico <strong>de</strong> pena 141 , por mais que o menino seja mol<strong>da</strong>do <strong>de</strong>ntro dos<br />

parâmetros <strong>de</strong> sua língua, com todos os referentes já estabelecidos e conhecidos<br />

por todos, <strong>de</strong>sse mundo não po<strong>de</strong> libertar-se, pois somente nesse mundo e a partir<br />

<strong>de</strong>sse mundo, novas compreensões e novos significados po<strong>de</strong>m chegar a ser<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Do mesmo modo, Dom Quixote também precisa configurar um mundo;<br />

s<strong>em</strong> esse respaldo, sabe que seu <strong>pro</strong>jeto fica inviabilizado.<br />

À construção <strong>de</strong> seu novo mundo, se interpõe aquela mesma pergunta, com<br />

intenção b<strong>em</strong> <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>: “¿Habían <strong>de</strong> ser mentira?”; a intenção <strong>de</strong> apoiar-se na força<br />

do po<strong>de</strong>r público: “los libros que están impresos con licencia <strong>de</strong> los reyes” 142 . Com<br />

essa pergunta, Dom Quixote coloca-se na <strong>de</strong>fensiva, com o intuito <strong>de</strong> <strong>pro</strong>teger a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> dos livros <strong>de</strong> cavalaria que estava transpondo para os séculos XVI-XVII.<br />

Seu mundo criado precisava <strong>de</strong> respaldo. Para compreen<strong>de</strong>r o <strong>pro</strong>cesso com o qual<br />

Dom Quixote criou o mundo <strong>da</strong> cavalaria, cabe aqui o registro <strong>de</strong> que esses já eram<br />

sinais significativos <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> – o precisar afirmar-se na certeza trazia consigo<br />

a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> legitimação. Era esse o esqu<strong>em</strong>a <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria. Para<br />

seus autores, reali<strong>da</strong><strong>de</strong> para ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong> era o registrado, o com<strong>pro</strong>vável<br />

documentalmente.<br />

Do mesmo modo que Cervantes afirma ter sua história o suporte documental<br />

dos anais <strong>de</strong> la Mancha: “pero, lo que yo he podido averiguar en este caso, y lo que<br />

140<br />

Obra teatral <strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>rón <strong>de</strong> la Barca.<br />

141<br />

Conto <strong>de</strong> Clarice Lispector.<br />

142<br />

Haviam <strong>de</strong> ser mentira [a intenção (...) público] os livros que estão impressos com a licença dos reis (1, L, p.304)


he hallado escrito en los Anales <strong>de</strong> la Mancha” 143 , Dom Quixote se afirma no mesmo<br />

pressuposto para montar seu mundo cavaleiresco, a ponto <strong>de</strong> não ter tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

enquanto não se arma cavaleiro: “mas lo que más le fatigaba era el no verse armado<br />

caballero, por parecerle que no se podría poner legítimamente en aventura alguna<br />

sin recebir la or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> caballería” 144 .<br />

Esse mundo, Dom Quixote o vai construindo <strong>em</strong> níveis <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

diferentes. Começa meio tímido “sin <strong>da</strong>r parte a persona alguna <strong>de</strong> su intención y sin<br />

que nadie le viese”, sai ao campo pela primeira vez “por la puerta falsa <strong>de</strong> un corral”.<br />

Inicialmente, mesmo que reconheça ser essa sua missão, sua insegurança é tal que<br />

chega a sentir-se exultante por ter conseguido <strong>da</strong>r o primeiro passo para realizar seu<br />

<strong>de</strong>sejo. Porque teve a corag<strong>em</strong> e conseguiu sair, isso o <strong>de</strong>ixou “con grandísimo<br />

contento y alborozo <strong>de</strong> ver con cuánta facili<strong>da</strong><strong>de</strong> había <strong>da</strong>do principio a su buen<br />

<strong>de</strong>seo” 145 . Vivencia situações <strong>em</strong> que aceita insinuações maldosas sobre sua<br />

atuação <strong>de</strong> cavaleiro, com a humil<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um discípulo. Ao chegar <strong>em</strong> “la venta”,<br />

diante do jogo “<strong>de</strong>l ventero” que pretendia <strong>de</strong>movê-lo <strong>da</strong> <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> armar-se<br />

cavaleiro numa capela do castelo, Dom Quixote aceita a sugestão <strong>de</strong> simplificar o<br />

ritual com um pequeno gesto que realizaria no meio do campo, e <strong>em</strong> duas horas<br />

somente: “Todo se lo creyó don Quijote, y dijo que él estaba allí <strong>pro</strong>nto para<br />

obe<strong>de</strong>cerle” 146 .<br />

Logo a seguir, entretanto, dá sinais <strong>de</strong> avançar <strong>em</strong> auto-afirmação e<br />

confiança no que está fazendo: <strong>de</strong>ssa vez, já faz ameaças, caso “aquella gente baja”<br />

voltasse a agir do modo que o tinham feito todos: “comenzaron <strong>de</strong>s<strong>de</strong> lejos a llover<br />

143<br />

Mas, o pu<strong>de</strong> averiguar neste caso, e o que pu<strong>de</strong> achar escrito nos Anais <strong>de</strong> La Mancha (1, II, p.22)<br />

144<br />

Mas o que mais o incomo<strong>da</strong>va era não se ver armado cavaleiro, por parecer-lhe que não podia legitimamente meter-se <strong>em</strong><br />

aventura alguma s<strong>em</strong> receber a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> cavalaria (1, II, p.25)<br />

145<br />

S<strong>em</strong> comunicar a ninguém sua intenção e s<strong>em</strong> que ninguém o visse [sai (...) vez] pela porta falsa <strong>de</strong> um curral [inicialmente<br />

(...) <strong>de</strong>ixou] com grandíssimo contentamento e alvoroço <strong>de</strong> ver com quanta facili<strong>da</strong><strong>de</strong> havia <strong>da</strong>do principio a seu bom <strong>de</strong>sejo<br />

(1, II, p.21)<br />

146<br />

Em tudo acreditou Dom Quixote, e disse que ele estava ali <strong>pro</strong>nto para obe<strong>de</strong>cer-lhe (1, III, p.28)


piedras sobre don Quijote” 147 . E avisa que, a partir do momento que se arme<br />

cavaleiro, tudo será diferente, que “si fuese otra vez acometido y se viese armado<br />

Caballero, no pensaba <strong>de</strong>jar persona viva en el castillo” 148 .<br />

Se percebe o cavaleiro que uma transfiguração não é aceita pelo outro e que<br />

está a ponto <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>smascarado, po<strong>de</strong>ndo correr o risco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r sua confiança,<br />

ou, o que é pior, <strong>de</strong>ixar ele mesmo <strong>de</strong> acreditar na invenção que está construindo; a<br />

solução encontra<strong>da</strong> pelo manchego cavaleiro será s<strong>em</strong>pre a <strong>de</strong>sculpa dos gênios e<br />

sábios que <strong>pro</strong>mov<strong>em</strong> essas mu<strong>da</strong>nças com a intenção <strong>de</strong> atrapalhar sua jorna<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> glória. Quando percebe não conseguir convencer Sancho <strong>de</strong> que os moinhos são<br />

gigantes:<br />

-Calla, amigo Sancho – respondió don Quijote – que las cosas <strong>de</strong> la guerra,<br />

más que otras, están sujetas a continua mu<strong>da</strong>nza; cuanto más, que yo<br />

pienso, y es así ver<strong>da</strong>d, que aquel sabio Fristón que me robó el aposento y<br />

los libros ha vuelto estos gigantes en molinos por quitarme la gloria <strong>de</strong> su<br />

vencimiento [...] 149<br />

Dom Quixote, s<strong>em</strong> alternativa, <strong>em</strong> situações limite, apren<strong>de</strong> a lançar mão dos<br />

gênios, a seu favor.<br />

Em outro ex<strong>em</strong>plo, percebe-se que, <strong>em</strong> sua afirmação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, há um<br />

crescendo que vai impondo e <strong>da</strong>ndo maior garantia <strong>de</strong> certeza <strong>à</strong>quilo que está<br />

vendo com o olhar <strong>da</strong> cavalaria:<br />

O yo me engaño, o ésta ha <strong>de</strong> ser la más famosa aventura que se<br />

haya visto, porque aquellos bultos negros que allí parecen <strong>de</strong>ben <strong>de</strong> ser, y<br />

son sin du<strong>da</strong>, algunos encantadores que llevan hurta<strong>da</strong> alguna princesa en<br />

aquel coche [...] 150<br />

147 Começaram <strong>de</strong> longe a chover pedras sobre Dom Quixote (1, III, p.27)<br />

148 Se fosse outra vez atacado e se visse armado cavaleiro, não pensaria <strong>de</strong>ixar ninguém vivo no castelo (1, III, p.28)<br />

149 – Cala, amigo Sancho – respon<strong>de</strong>u Dom Quixote – que as coisas <strong>da</strong> guerra, mais que outras, estão sujeitas <strong>à</strong> contínua<br />

mu<strong>da</strong>nça; quanto mais, que eu penso, e é assim a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que aquele sábio Frestón, que me roubou o aposento e os livros,<br />

transformou estes gigantes <strong>em</strong> moinhos para tirar-me a glória <strong>de</strong> vencê-los (1, VIII, p.47)<br />

150 Ou muito me engano, ou esta será a mais famosa aventura que se tenha visto, porque aqueles vultos negros que ali<br />

parec<strong>em</strong> <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser, e são s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, alguns encantadores que levam furta<strong>da</strong> alguma princesa naquele coche (1, VIII, p.49)


“Parecen”, “<strong>de</strong>ben <strong>de</strong> ser”, “y son sin du<strong>da</strong>” 151 , com essas expressões<br />

afirmativas <strong>pro</strong>gressivas, do mesmo modo que “Y es así ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”, do ex<strong>em</strong>plo<br />

acima, Dom Quixote aumenta a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> não lhe pregue<br />

nenhuma peça, pondo a per<strong>de</strong>r o seu <strong>pro</strong>jeto.<br />

Para <strong>da</strong>r forma ao mundo <strong>da</strong> cavalaria, as estratégias usa<strong>da</strong>s por Dom<br />

Quixote são muitas: se acaso pairasse alguma dúvi<strong>da</strong> no próprio Dom Quixote, <strong>em</strong><br />

relação <strong>à</strong>s ousadias que estava realizando e precisasse, ele mesmo, tirar a dúvi<strong>da</strong>,<br />

perguntava, não tanto por vai<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas, fun<strong>da</strong>mentalmente, para ter o alívio <strong>de</strong> que<br />

nenhuma dúvi<strong>da</strong> pu<strong>de</strong>sse pairar:<br />

Pero dime, por tu vi<strong>da</strong>: ¿has tu visto más valeroso Caballero que yo en todo<br />

lo <strong>de</strong>scubierto <strong>de</strong> la tierra? ¿Has leído en historias otro que tenga ni haya<br />

tenido más brío en acometer, más aliento en el perseverar, más <strong>de</strong>streza en<br />

el herir, ni más maña en <strong>de</strong>rribar? [Tudo isso] facilitaba la prueba <strong>de</strong> su<br />

caballería. 152<br />

Era muito esperto, sabia estar pisando <strong>em</strong> terreno movediço, seu<br />

<strong>em</strong>preendimento estava s<strong>em</strong>pre por “um fio”. Foi assim que não <strong>de</strong>ixou uma brecha<br />

sequer, quando montou o mundo <strong>da</strong> cavalaria. Todos os el<strong>em</strong>entos que o<br />

compunham estavam assegurados na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: Rocinante era o seu próprio “rocín”,<br />

era um cavalo simplesmente, o primeiro cavalo captado pela alma-mente humana;<br />

isso está garantido pelo sufixo “ante”; quer mais garantia <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que essa?<br />

Ele não era cavaleiro <strong>de</strong> lugares distantes e inusitados, pertencia <strong>à</strong>quele lugar que,<br />

por mais que o <strong>de</strong>fina um artigo in<strong>de</strong>finido __ “En un lugar <strong>de</strong> la Mancha”, está ali<br />

mesmo, b<strong>em</strong> perto. Caso não seja seu lugar <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>, todos sab<strong>em</strong> tratar-se <strong>de</strong><br />

terra <strong>de</strong> Espanha. Do mesmo modo agiu com sua ama<strong>da</strong> Dulcinea, a “<strong>de</strong>l Toboso”,<br />

lavradora que todos, se não a conheciam, ouviram “murmúrios”, pequenos boatos <strong>de</strong><br />

151 Parec<strong>em</strong>, <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser, e são, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>.<br />

152 Por favor, pelo amor que tens a tua vi<strong>da</strong>: você jã viu cavaleiro mais valoroso do eu, <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a extensão <strong>da</strong> terra? Você leu<br />

<strong>em</strong> histórias outro que tenha ou que já tenha tido mais brio <strong>em</strong> atacar, mais ânimo no perseverar, mais <strong>de</strong>streza no ferir, n<strong>em</strong><br />

mais manha no <strong>de</strong>rrubar? [Tudo isso] facilitava a <strong>pro</strong>va <strong>de</strong> sua cavalaria. (1, X, p.55-59)


que ele, por ela já nutrira um amor, mesmo s<strong>em</strong> confessá-lo. Em relação ao<br />

escu<strong>de</strong>iro, este era seu próprio vizinho, figura bastante conheci<strong>da</strong> no lugar. E, para<br />

não <strong>de</strong>ixar escapar n<strong>em</strong> as armas <strong>de</strong> seu plano b<strong>em</strong> arquitetado, Dom Quixote, além<br />

<strong>de</strong> tomá-las <strong>da</strong> galeria <strong>de</strong> antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> seus bisavós, ain<strong>da</strong> tão próximos na<br />

escala genética, as experimenta para, com isso, ter um aval <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

experimenta<strong>da</strong>. De tal modo que só o realiza uma vez. E, mesmo percebendo sua<br />

fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> para a <strong>em</strong>presa arroja<strong>da</strong> que precisará enfrentar, dá por termina<strong>da</strong> ali a<br />

questão, porque seu intento fora alcançado: passara pelo experimento <strong>em</strong>pírico pelo<br />

qual, na época, todos eram fascinados. Circulava, nos arredores, o fantasma <strong>da</strong><br />

“mentira”. Como podia um cavaleiro com tão arrojado <strong>pro</strong>jeto, tranqüilo, montar um<br />

mundo?<br />

Quanto mais se assegurava <strong>da</strong> inventa<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, mais se apossava <strong>de</strong> seu<br />

i<strong>de</strong>al. Entretanto, na mesma medi<strong>da</strong>, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> real, mais era tragado pelo que<br />

não lhe era próprio.<br />

Esse <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> fazer-se cavaleiro não foi simples; chegou ao limite do<br />

doloroso. Ain<strong>da</strong> que soubesse jogar com o fun<strong>da</strong>mental para <strong>da</strong>r forma a seu<br />

mundo, Dom Quixote, metido <strong>em</strong> tantas artimanhas, se confundia e ficava<br />

completamente transtornado:<br />

Ahora te digo, Sanchuelo, que eres el mayor bellacuello que hay en España.<br />

Díme, ladrón vagabundo, ¿no me acabaste tu <strong>de</strong> <strong>de</strong>cir ahora que esta<br />

princesa se había vuelto en una doncella que se llamaba Dorotea, y que la<br />

cabeza que entiendo corté a un gigante era la puta que te parió, con otros<br />

disparates que me pusieron en la mayor confusión que jamás he estado en<br />

todos los días <strong>de</strong> mi vi<strong>da</strong>? 153<br />

153 Agora te digo, Sanchinho, que es o maior velhaco que existe na Espanha. Diz-me, ladrão vagabundo, não me acabas tu <strong>de</strong><br />

dizer agora que esta princesa foi transforma<strong>da</strong> <strong>em</strong> uma donzela que se chamava Dulcinea, e que a cabeça que entendo cortei<br />

<strong>de</strong> um gigante era a puta que te pariu, com outros disparates que me puseram na maior confusão <strong>em</strong> que jamais estive <strong>em</strong><br />

todos os dias <strong>de</strong> minha vi<strong>da</strong>? (1, XXXVII, p.226)


O <strong>pro</strong>cesso com que Dom Quixote inventa e instala o mundo <strong>da</strong> cavalaria vai<br />

<strong>da</strong> exasperação, por n<strong>em</strong> ele mesmo conseguir acompanhar o s<strong>em</strong>-sentido <strong>de</strong> tanta<br />

transformação, ao extr<strong>em</strong>o <strong>da</strong> tranquili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao receber, <strong>de</strong> fora, a com<strong>pro</strong>vação <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu mundo, quando os duques, com as honras <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s a um valoroso<br />

cavaleiro, receb<strong>em</strong>-no <strong>em</strong> seu castelo: “Y aquel fue el primer día que <strong>de</strong> todo en<br />

todo conoció y creyó ser Caballero an<strong>da</strong>nte ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro, y no fantástico” 154 .<br />

Para amenizar o conflito, ce<strong>de</strong> muitas vezes aos conselhos <strong>de</strong> Sancho.<br />

Sabedor <strong>de</strong> que essa ou aquela atitu<strong>de</strong>, se <strong>de</strong>scoberta, vai <strong>de</strong>smascará-lo <strong>em</strong> suas<br />

convicções <strong>de</strong> que é realmente cavaleiro e <strong>de</strong> que o mundo que está construindo é<br />

real, Dom Quixote prepara o escu<strong>de</strong>iro, obrigando-o a juras, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

não paire suspeita sequer <strong>de</strong> sua condição, não só <strong>de</strong> cavaleiro mas,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, <strong>de</strong> cavaleiro forte e <strong>de</strong>st<strong>em</strong>ido:<br />

[...] que jamás, en vi<strong>da</strong> ni en muerte, has <strong>de</strong> <strong>de</strong>cir a nadie que yo me retiré y<br />

aparté <strong>de</strong>ste peligro, <strong>de</strong> miedo, sino por complacer a tus ruegos; que si otra<br />

cosa dijeres, mentirás en ello; y <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ahora, para entonces y <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

entonces para ahora, te <strong>de</strong>smiento, y digo que mientes y mentirás to<strong>da</strong>s las<br />

veces que lo pensares o lo dijeres [...] 155<br />

Por muitas etapas passou Dom Quixote para <strong>da</strong>r reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ao mundo <strong>da</strong><br />

cavalaria. Esse mundo não foi totalmente construído, para só <strong>de</strong>pois Dom Quixote<br />

nele começar a atuar. Não po<strong>de</strong>ríamos restringir seu <strong>pro</strong>cedimento, listando<br />

somente os ingredientes formalmente necessários para configurá-lo. O <strong>pro</strong>cesso se<br />

<strong>de</strong>u como um todo, concomitante ao seu ser-no-mundo.<br />

De qualquer modo, Dom Quixote, finalmente, t<strong>em</strong> um mundo.<br />

154<br />

E aquele foi o <strong>pro</strong>meiro dia <strong>em</strong> que tudo <strong>de</strong> tudo conheceu e acreditou ser cavaleiro an<strong>da</strong>nte ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, e não fantástico<br />

(2, XXXI, p.481)<br />

155<br />

Que jamais, na vi<strong>da</strong> ou na morte, <strong>de</strong>ves dizer a ninguém que en me retirei ou evitei este perigo, <strong>de</strong> medo, mas sim para<br />

comprazer a teus rogos; que se outra coisa disseres, mentirás nisso; e a partir <strong>de</strong> agora, para s<strong>em</strong>pre e <strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre para agora,<br />

te disminto. E digo que mentes e mentirás to<strong>da</strong>s as vezes que tal pensar ou disser (1, XXXVII, p.124)


5 PREPARANDO A CURA<br />

Sabe-se que Cura não é um dos muitos “fazeres” do hom<strong>em</strong>, <strong>em</strong> que sua<br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>pro</strong>voca<strong>da</strong> por algum mal-estar, toma <strong>pro</strong>vidências, no sentido <strong>de</strong><br />

cui<strong>da</strong>r e, <strong>de</strong> preferência, eliminar o mal <strong>de</strong>finitivamente. Nesse caso, estaríamos<br />

falando <strong>da</strong> <strong>cura</strong> que, <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminado momento, tomou essa forma, entificou-se <strong>em</strong><br />

conceito e nele permaneceu. Essa <strong>cura</strong>, assim conceitua<strong>da</strong>, é aquela menciona<strong>da</strong><br />

como <strong>cura</strong> ôntica.<br />

Cura é, entretanto, experiência ontológica. Ela está na base <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

ações do hom<strong>em</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> seu querer; Cura é sua essência. Dessa forma,<br />

Cura não possui limites, a não ser aquele estabelecido como sua finalização – a<br />

morte. Nesse “entre” vi<strong>da</strong>-morte, Cura é ilimita<strong>da</strong>. Por mais que não pareça, está<br />

s<strong>em</strong>pre presente. Sendo essência, não po<strong>de</strong> jamais ser extirpa<strong>da</strong> do <strong>pro</strong>cesso <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, como mais uma <strong>da</strong>s elaborações entifica<strong>da</strong>s do hom<strong>em</strong>.<br />

Se Cura é essência, não há nenhuma prevalência do hom<strong>em</strong> sobre ela; é<br />

Cura que o move. Esse mover-se, tão íntimo <strong>da</strong> essência, tampouco po<strong>de</strong> ser<br />

simples e previsível; jamais po<strong>de</strong>r-se-á ter uma fórmula dirigindo todos os passos<br />

<strong>da</strong> Cura. Isso porque ela só se dá na dinâmica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, monitora<strong>da</strong> pelo ser. Ser,<br />

querer e saber é a trilogia <strong>de</strong> sustentação <strong>da</strong> Cura; é esse o suporte que a<br />

movimenta, enquanto vai configurando o hom<strong>em</strong>, traçando-lhe o perfil, imprimindo-<br />

lhe suas marcas. Mas o que há <strong>de</strong> mais interessante é a flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s linhas<br />

responsáveis por esse perfil; estão s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> “stand by”, <strong>pro</strong>ntas para<br />

ser. Do mesmo modo, as marcas impressas por Cura são pura solvência; ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po que se imprime, reimprime-se.


É possível que tenha a pre-sença, <strong>em</strong> Cura, sua feição última como um<br />

registro divino fechado, a partir do qual tudo se mostra e evolui. Não uma evolução<br />

<strong>pro</strong>gressiva e or<strong>de</strong>na<strong>da</strong>; esta caberia nos limites <strong>de</strong> esqu<strong>em</strong>as, espaço im<strong>pro</strong>vável<br />

<strong>da</strong> Cura, mas evolução <strong>em</strong> seu sentido mais po<strong>de</strong>roso e dinâmico. No caso <strong>de</strong> haver<br />

dito registro, impossível será <strong>de</strong>fini-lo; logo, fica <strong>de</strong>scartado seu valor e importância.<br />

É por isso que muitos e ilimitados são os modos que caracterizam presença e<br />

ação <strong>de</strong> Cura. Nela, a pre-sença viaja s<strong>em</strong>pre no vagão do “entre”, aquele rico<br />

espaço on<strong>de</strong>, basta <strong>de</strong>ixar-ser, e entregar-se <strong>à</strong> escuta, ao po<strong>de</strong>r-ser.<br />

5.1 INGREDIENTES FUNDAMENTAIS<br />

O modo <strong>de</strong> ser <strong>da</strong> cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong> é a <strong>de</strong>cadência. Hei<strong>de</strong>gger diz que a pre-<br />

sença, por si mesma, já s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>-caiu no mundo, mesmo <strong>em</strong> seu mais autêntico<br />

po<strong>de</strong>r-ser. Tudo isso no <strong>em</strong>penho <strong>da</strong> convivência, porque o existir <strong>de</strong> fato só se dá<br />

no mundo <strong>da</strong>s ocupações e <strong>da</strong>s pre-ocupações.<br />

Participa <strong>de</strong>sse <strong>pro</strong>cesso todo o impróprio: a publici<strong>da</strong><strong>de</strong>; o falatório; a<br />

curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>; a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, porque o <strong>de</strong>-cair “junto <strong>à</strong>s” coisas do mundo e na co-<br />

presença dos outros, é por eles conduzido. É um modo <strong>de</strong> ser no mundo <strong>em</strong> que a<br />

pre-sença é totalmente absorvi<strong>da</strong> pelo mundo.<br />

Participam, ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> Cura, o tédio e a angústia.<br />

5.1.1 “De largo en largo” __ do nascimento até a morte


“De largo en largo” __ tomamos esta expressão como imag<strong>em</strong> presente na<br />

obra, que cobre o percurso todo <strong>da</strong> Cura, do nascimento até a morte.<br />

5.1.1.1 O nascimento <strong>de</strong> Dom Quixote<br />

Seu nascimento nos é anunciado lá pela meia-i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Entra na crônica <strong>de</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong> com pé firme, já cinqüentão. Nasce como biografia, s<strong>em</strong> que saibamos <strong>de</strong> seu<br />

nascimento biológico. Em sua infância, se correu, brincou e traquinou, ou se cabeça<br />

quebrou, não sab<strong>em</strong>os. Se teve adolescência <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>ática, como curtiu e viveu a<br />

juventu<strong>de</strong>, n<strong>em</strong> como foi obrigado a amadurecer naquela Mancha, não sab<strong>em</strong>os.<br />

Chega a ser i<strong>de</strong>ntificado como um herói singular, consi<strong>de</strong>rando-se,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, que todo herói nasce e morre. Dom Quixote não nasce, ou<br />

melhor, na<strong>da</strong> se sabe a respeito <strong>de</strong> um nascimento biológico. Isso é um <strong>da</strong>do que se<br />

constitui, nos anais literários <strong>da</strong>quela época, surpreen<strong>de</strong>nte. A única coisa que é<br />

<strong>de</strong>clara<strong>da</strong> no primeiro parágrafo é que Dom Quixote era cinqüentão: “Frisaba la e<strong>da</strong>d<br />

<strong>de</strong> nuestro hi<strong>da</strong>lgo con los cincuenta años” 156 e que tinha uma sobrinha __ “que no<br />

llegaba a los veinte” 157 , partícipe ferrenha do episódio do escrutínio <strong>da</strong> biblioteca, tão<br />

zelosa <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> do tio __ , para qu<strong>em</strong>, no leito <strong>de</strong> morte, <strong>de</strong>ixa todos os seus bens.<br />

Só isso nos é informado: que o herói t<strong>em</strong> família <strong>de</strong> consangüini<strong>da</strong><strong>de</strong> fraterna.<br />

Entretanto, na mesma medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que Dom Quixote se distancia do arquétipo<br />

tradicional __ pais nobres, nascimento <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>ático ou sigiloso, o alerta <strong>da</strong>s<br />

156 (1, I, p.18)<br />

157 Que não chegava aos vinte (1, I, p.17)


<strong>pro</strong>fecias revela<strong>da</strong>s via oráculo, a água como fluido que aparta ou elimina, a<br />

salvação por animais ou por gente humil<strong>de</strong>, o encontro na i<strong>da</strong><strong>de</strong> adulta, o<br />

reconhecimento, a vingança e a honra resgata<strong>da</strong> __ ; nessa mesma medi<strong>da</strong>, a vi<strong>da</strong> do<br />

herói reduplica a vi<strong>da</strong> literária <strong>de</strong> outro herói perfeitamente a<strong>de</strong>quado a dito mo<strong>de</strong>lo,<br />

a tal ponto criteriosa que assegura por parte <strong>de</strong> Cervantes um conhecimento<br />

meticuloso <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria.<br />

Vejamos, então: Amadis <strong>de</strong> Gaula, mo<strong>de</strong>lo vitalíssimo <strong>de</strong> Dom Quixote, é filho<br />

do rei Perión <strong>de</strong> Gaula e <strong>da</strong> princesa Elisena, filha belíssima do rei Garínter <strong>da</strong><br />

pequena Bretanha. Em gran<strong>de</strong> arroubo <strong>de</strong> paixão, o casal não resiste ao primeiro<br />

encontro e, <strong>de</strong>ssa noite resulta uma gravi<strong>de</strong>z que a princesa dissimula<strong>da</strong> mantém<br />

<strong>em</strong> segredo até o nascimento. Amadis é posto numa caixa e lançado <strong>à</strong>s águas <strong>de</strong><br />

um rio. Já <strong>de</strong>saguando no mar, a caixa é encontra<strong>da</strong> por um barco e resgata<strong>da</strong> por<br />

Gan<strong>da</strong>les, um cavaleiro <strong>da</strong> Escócia que leva o rebento a seu castelo, para por ele<br />

ser criado <strong>em</strong> sua terra natal. Mais tar<strong>de</strong>, Amadis é reconhecido por seus pais e,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>da</strong>s muitas aventuras, chega a casar-se com Oriana, filha <strong>de</strong> Lisuarte, rei <strong>da</strong><br />

Grã Bretanha.<br />

Tantos <strong>da</strong>dos não <strong>de</strong>ixam dúvi<strong>da</strong> quanto ao mo<strong>de</strong>lo <strong>pro</strong>totípico que é Amadis,<br />

perfeitamente ajustado <strong>à</strong> tradição heróica. Seu mundo é paradigmático, nele tudo<br />

conduz milimetricamente a formar um quadro fort<strong>em</strong>ente marcado pelo <strong>de</strong>terminismo<br />

próprio do gênero épico-cavaleiresco. Seu autor garante que o que narra é matéria<br />

histórica, o ciclo <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> imprensado entre as circunstâncias naturais <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e<br />

morte.Tais circunstâncias tornam o mundo do cavaleiro Amadis marcado por forte<br />

<strong>de</strong>terminismo e fechado sobre si mesmo.<br />

Esse é o paradigma <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria anteriores a Cervantes. Este<br />

chega a comentar com certo tom <strong>de</strong> ironia: “Nos cuentan [os livros <strong>de</strong> cavalaria] el<br />

padre, la madre, la patria, los parientes, la e<strong>da</strong>d, el lugar y las hazañas, punto por


punto y día por día, que el tal caballero hizo” 158 . Que mais necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> tinha Dom<br />

Quixote <strong>de</strong> nascer, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir armar-se cavaleiro? A medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> seu<br />

nascimento é o quanto basta, para que com ele se possa impulsionar o movimento<br />

que caracteriza a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>.<br />

Há qu<strong>em</strong> diga que Dom Quixote levava uma vi<strong>da</strong> ao modo <strong>da</strong> natureza,<br />

s<strong>em</strong>pre idêntica a si mesma. É possível que seja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, já que não há registro<br />

n<strong>em</strong> informação <strong>de</strong> seu viver anterior. É como se não fosse digno o seu modo <strong>de</strong><br />

viver, antes do ingresso na história conta<strong>da</strong> por Cervantes.<br />

Só a partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> ser cavaleiro, Dom Quixote imprime <strong>à</strong> sua vi<strong>da</strong> um<br />

fluxo constante, uma dinâmica que vai possibilitando que ele exista na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

que vai experienciando o mundo. Só assim, Dom Quixote, aos 50 anos, começa a<br />

ganhar corpo e a constituir-se vi<strong>da</strong>.<br />

Pelas características <strong>de</strong> seu nascimento, Dom Quixote foge aos padrões tanto<br />

<strong>da</strong> biologia, como <strong>da</strong> literatura corrente <strong>em</strong> sua época. Isso nos autoriza a<br />

reconhecer na obra os sinais que nos <strong>de</strong>dicar<strong>em</strong>os a perseguir: a Cura.<br />

5.1.1.2 A morte <strong>de</strong> Dom Quixote<br />

Um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro cavaleiro se expõe <strong>à</strong> morte por bravura, corag<strong>em</strong> e até pelo<br />

voto <strong>de</strong> vassalag<strong>em</strong>, el<strong>em</strong>entos comuns ao t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> cavalaria. Morrer por doença<br />

era algo não esperado, talvez não estivesse previsto no código <strong>da</strong> cavalaria.<br />

158 Contam-nos [os livros <strong>de</strong> cavalaria] o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a i<strong>da</strong><strong>de</strong>, o lugar e as façanhas, ponto por ponto e dia<br />

por dia, que o cavaleiro fez (1, L, p.304)


Apesar <strong>de</strong>, ao limite máximo, <strong>de</strong> aventura <strong>em</strong> aventura, se dispor <strong>à</strong> luta, seja<br />

ela qual for, on<strong>de</strong> quer que se apresente, correndo os riscos que for<strong>em</strong>, até mesmo<br />

o <strong>de</strong> morte; apesar <strong>de</strong> sofrer <strong>da</strong>nos físicos, e ser <strong>cura</strong>do com bálsamos, Dom<br />

Quixote não morre e acaba sendo <strong>pro</strong>tegido dos golpes certeiros que a lâmina <strong>de</strong><br />

uma espa<strong>da</strong> po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r. Cruza todo o percurso <strong>de</strong> suas an<strong>da</strong>nças, dá conta <strong>de</strong> tudo<br />

(pelo menos o suficiente e satisfatório para consi<strong>de</strong>rarmos feita a travessia).<br />

<strong>de</strong>sconfiar.<br />

É claro que po<strong>de</strong> morrer. E morre <strong>de</strong> modo tão atípico que nos leva a<br />

Na or<strong>de</strong>m comum <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ordinária, os modos que caracterizam ou justificam<br />

a morte são doença, <strong>da</strong>no físico ou, no máximo, suicídio. Mas Dom Quixote não é<br />

acometido por nenhum <strong>de</strong>sses. Dom Quixote vivencia a frustração e a <strong>de</strong>cepção,<br />

quando <strong>de</strong>scobre, no capítulo “Cuerpo Muerto”, que um cont<strong>em</strong>porâneo, por ele<br />

tomado como cavaleiro, morre <strong>de</strong> morte natural, exatamente, quando sua<br />

expectativa era <strong>de</strong> que morresse segundo os padrões <strong>da</strong> cavalaria: lutando. Essa<br />

<strong>de</strong>cepção t<strong>em</strong>, como base, o livro <strong>de</strong> Palmerín, on<strong>de</strong> o cavaleiro morrera lutando por<br />

vingança; e, por isso, o cavaleiro manchego não escolhe o mesmo caminho, ou pelo<br />

menos, não é s<strong>em</strong>elhante o <strong>de</strong>stino que a vi<strong>da</strong> lhe reserva. Dom Quixote não morre<br />

lutando, por pura consciência, Dom Quixote <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> morrer.<br />

Deci<strong>de</strong>. S<strong>em</strong> mais n<strong>em</strong> menos, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> morrer; <strong>de</strong>ita-se na cama e, por pura<br />

<strong>de</strong>cisão, morre. É, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, um modo atípico: morrer por <strong>de</strong>cisão própria. Ain<strong>da</strong><br />

mais se essa <strong>de</strong>cisão foge ao senso comum; o suicídio, por ex<strong>em</strong>plo. Sabe-se que,<br />

no modo ordinário <strong>de</strong> morrer por <strong>de</strong>cisão própria, só <strong>da</strong>ndo cabo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Nesse<br />

caso, repetimos, a única forma acabível <strong>de</strong> morte, por <strong>de</strong>cisão, só po<strong>de</strong> ser o<br />

suicídio.<br />

Além do modo atípico <strong>de</strong> morte, algo mais se dá na paródia diferente do<br />

estabelecido no código <strong>da</strong> cavalaria. É b<strong>em</strong> possível que se ache estranho o modo


como se <strong>da</strong>vam os enfrentamentos <strong>de</strong> Dom Quixote. São todos muito raros e,<br />

possivelmente, não se <strong>de</strong>viam a lutas que a tradição cavaleiresca previsse. São, ao<br />

contrário, lutas resultantes dos <strong>de</strong>sfechos <strong>em</strong> que o <strong>de</strong>safio do herói suplantou todos<br />

os limites do que era por todos previsto e do conhecimento <strong>de</strong> todos. Exigir,<br />

acreditando quase po<strong>de</strong>r obrigar que pessoas comuns abandonass<strong>em</strong> suas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s cotidianas, e se <strong>de</strong>slocass<strong>em</strong> até a <strong>pro</strong>víncia “<strong>de</strong>l Toboso”, com o simples<br />

<strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> que ali foss<strong>em</strong>, ao final <strong>de</strong> alguma batalha <strong>da</strong> qual Dom Quixote saísse<br />

vencedor, para levar <strong>à</strong> Dulcinea a notícia, com vistas a agraciá-la com um mimo.<br />

Isso, num século com o qual a cavalaria, apesar <strong>de</strong> muito li<strong>da</strong>, <strong>de</strong> fresca e presente<br />

estar no imaginário <strong>de</strong> todos, <strong>em</strong> na<strong>da</strong> era compatível, significava arriscar-se ao<br />

limite máximo. Dom Quixote, no entanto, assim fazia.<br />

Não só do atípico é alimenta<strong>da</strong> a morte do cavaleiro <strong>de</strong> la Mancha. Outros<br />

el<strong>em</strong>entos estranhos <strong>de</strong>sse acontecimento participam.<br />

Se aquele herói __ que passa boa parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> lutando, expondo-se a<br />

situações <strong>de</strong> risco surpreen<strong>de</strong>ntes, que dorme ao relento, que entrega a vi<strong>da</strong><br />

apaixona<strong>da</strong> e <strong>de</strong>smedi<strong>da</strong>mente a um i<strong>de</strong>al e não morre, e que, por sua condição<br />

mesma <strong>de</strong> herói, não morre <strong>em</strong> meio ao turbilhão heróico <strong>em</strong> que, ao longo <strong>de</strong> sua<br />

história se metera __ não morrera até então, não precisava morrer no final. Mesmo<br />

que morresse, que morresse <strong>de</strong> modo coerente, <strong>de</strong>ntro dos mol<strong>de</strong>s <strong>em</strong> que <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

s<strong>em</strong>pre se apresentara: lutando.<br />

Essa <strong>pro</strong>vidência não po<strong>de</strong> ser gratuita. É preciso que algo a justifique.<br />

Comec<strong>em</strong>os por imaginar que a morte foi coloca<strong>da</strong> no romance como um<br />

ingrediente indispensável.<br />

Sob vários aspectos será tratado o t<strong>em</strong>a “morte”.<br />

No 1 o Périplo, se Dom Quixote quer saber <strong>de</strong> si __ apesar <strong>da</strong> contraditória<br />

afirmação “Yo sé quien soy” __ , se quer saber <strong>de</strong> si para <strong>cura</strong>r-se na questão <strong>de</strong>


saber, no sentido <strong>de</strong> saber “qu<strong>em</strong> é que eu sou”; se Dom Quixote, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

nascido, sai <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>de</strong> si, <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>ndo Cura; se é esse seu <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito, a Cura<br />

somente será alcança<strong>da</strong> quando ele souber finalmente qu<strong>em</strong> é. Chegado esse<br />

momento, só lhe resta morrer. Até porque, disso precisa <strong>da</strong>r conta para cumprir a<br />

<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> ser-para-morte.<br />

Dom Quixote é um ser-para-morte porque sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> vai ser <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong><strong>da</strong><br />

entre nascimento e morte. Isso não só com<strong>pro</strong>mete, como implica o 1 o e o 3 o<br />

Périplos, porque seu nascimento, coincidindo com o nascimento do personag<strong>em</strong> <strong>da</strong><br />

obra, tendo nascido <strong>de</strong> forma atípica, s<strong>em</strong> nenhum <strong>da</strong>do significativo que aponte<br />

para sua significação <strong>de</strong> ser biológico, é lógico que do mesmo modo se dê a sua<br />

morte. Se nasce como ser literário, como ser artístico precisa morrer.<br />

Perguntado sobre qu<strong>em</strong> foi Aristóteles, Hei<strong>de</strong>gger um dia respon<strong>de</strong>u:<br />

Aristóteles nasceu, cresceu e morreu.<br />

Como v<strong>em</strong>os, esse ciclo é <strong>de</strong> importância fun<strong>da</strong>mental para a <strong>pro</strong>posta<br />

teórica <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger sobre os existenciais. No que se refere ao ciclo <strong>da</strong> Cura –<br />

nascimento e morte –, Dom Quixote, do mesmo modo que Aristóteles, <strong>de</strong>le dá conta<br />

perfeitamente: nasce literariamente aos cinqüenta; morre, também, literária e<br />

atipicamente.<br />

Vimos que Dom Quixote, <strong>em</strong>bora tenha como <strong>pro</strong>posta encarnar a figura <strong>de</strong><br />

cavaleiro, quanto ao nascimento e <strong>à</strong> morte, <strong>de</strong>ssa figura <strong>de</strong>stoa, e é, a partir <strong>de</strong><br />

Amadis <strong>de</strong> Gaula, que o perceb<strong>em</strong>os.<br />

Isso nos convi<strong>da</strong> ao movimento tentador <strong>de</strong> a<strong>pro</strong>ximar essas questões ao que<br />

Hei<strong>de</strong>gger nos diz <strong>em</strong> Ser e t<strong>em</strong>po 159 .<br />

O que é morte para Hei<strong>de</strong>gger?<br />

159 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998.


Em sua <strong>pro</strong>posta <strong>de</strong> <strong>da</strong>r conta do hom<strong>em</strong>, consi<strong>de</strong>rando-o a partir do que há<br />

<strong>de</strong> mais concreto e paupável – que é a existência, Hei<strong>de</strong>gger se vê obrigado a <strong>da</strong>r<br />

espaço para a morte. É quase certo que, mais adiante nos <strong>de</strong>ter<strong>em</strong>os nos<br />

existenciais, ponto central do autor, na mira do hom<strong>em</strong> como pre-sença. Por<br />

enquanto, basta breve explicação sobre o t<strong>em</strong>a.<br />

Pois b<strong>em</strong>, nascer-viver-morrer, este é o ciclo. Entre nascimento e morte se<br />

<strong>pro</strong>cessa o que <strong>de</strong> mais humano o hom<strong>em</strong> possui – a Cura. Esse <strong>pro</strong>cessar-se <strong>da</strong><br />

Cura se dá na existência, e a morte assume, aí, papel prepon<strong>de</strong>rante. Com a morte,<br />

cessa a existência. Ela é a última estação, o ponto final, o fim <strong>da</strong> linha <strong>da</strong> existência.<br />

Com a morte, configura-se o cessar do ser-no-mundo. O hom<strong>em</strong> não é um ser<br />

acabado, fechado <strong>em</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A pre-sença é dinâmica, ela não é o momento<br />

presente e sim é a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> do que foi no passado e o que <strong>pro</strong>jeta para o futuro. A<br />

pre-sença é possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Daí estar o hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre buscando novas <strong>de</strong>cisões e<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ser, e só a morte põe fim a essas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> escolha. Ela é<br />

a única certeza que t<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong> sobre a qual não t<strong>em</strong> sequer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

escolha.<br />

A morte é a única mola <strong>pro</strong>pulsora maior que a angústia. Na angústia, apesar<br />

do sentimento <strong>de</strong> apatrici<strong>da</strong><strong>de</strong>, apesar <strong>da</strong> insuportável experiência do vazio, apesar<br />

do esvaziamento conduzir para fora do impessoal, apesar <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong>ntre to<strong>da</strong>s as<br />

disposições fun<strong>da</strong>mentais, a mais radical, ain<strong>da</strong> assim, nela vislumbra-se ain<strong>da</strong> a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> volta para o mundo, porque este ain<strong>da</strong> está lá. No tédio, a falta <strong>de</strong><br />

sentido do mundo e, mesmo, o não suportar o vazio possibilitam a fuga e o<br />

arr<strong>em</strong>essar para a diversão, ou para qualquer outra ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que o valha.Caso não<br />

se escape pela via <strong>da</strong> diversão, a angústia tornar-se-á inevitável, porque o tédio é o<br />

limiar <strong>da</strong> angústia.


A morte, entretanto, é o existencial mais radical para a Cura. Frente <strong>à</strong> morte,<br />

o hom<strong>em</strong> é capaz <strong>de</strong> <strong>da</strong>r-se conta do s<strong>em</strong> sentido <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> modo mais<br />

<strong>pro</strong>fundo. É a finitu<strong>de</strong>, que ela traz consigo, a responsável por evi<strong>de</strong>nciar a<br />

gratui<strong>da</strong><strong>de</strong>, evi<strong>de</strong>nciando, assim, que a essência do hom<strong>em</strong> é po<strong>de</strong>r-ser, é<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No 1 o Périplo, o que há é um aniquilamento do impróprio. A morte é <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote, o cavaleiro. Por isso, no último capítulo diz: “Yo fui loco, y ya soy cuerdo”,<br />

diz – “fui don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, y soy agora, como he dicho, Alonso Quijano” 160 .<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po que constrói, habita. Nesse percurso, do nascimento <strong>à</strong><br />

morte, Dom Quixote também se constrói, também se realiza.<br />

Vê-se, então, que morte e Cura estão intrinsecamente relaciona<strong>da</strong>s; pois só<br />

essa perspectiva, só o simples fato <strong>de</strong> saber que vai morrer, po<strong>de</strong> colocar o hom<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong> Cura.<br />

Vimos que, <strong>em</strong> suas an<strong>da</strong>nças, Dom Quixote se expõe ao limite máximo <strong>à</strong><br />

morte, chegando a sofrer <strong>da</strong>nos físicos que <strong>cura</strong>va com bálsamos, mas não morre.<br />

Cruza todo o percurso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e dá conta <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong> todo necessário para<br />

concretizar sua tarefa. Até que, feita a travessia, já <strong>cura</strong>do 161 , po<strong>de</strong> morrer. E morre<br />

<strong>de</strong> modo tão atípico que nos levou a buscar, <strong>em</strong> Hei<strong>de</strong>gger, essa explicação. Como<br />

já diss<strong>em</strong>os, os modos que caracterizam e justificam a morte são doença, <strong>da</strong>no<br />

físico, suicídio. Dom Quixote, entretanto, não é acometido por nenhum.<br />

Consciente, ele <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> morrer. Deita na cama e morre, por pura e absoluta<br />

<strong>de</strong>-cisão. É conveniente estar-se atento para a <strong>de</strong>-cisão que não é a mesma<br />

estabeleci<strong>da</strong> pelo senso comum. Essa <strong>de</strong>cisão, <strong>em</strong> relação <strong>à</strong> morte, só po<strong>de</strong> ser<br />

160 __<br />

Já fui louco e já sou sensato [diz ] fui Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano.<br />

(2, LXXIV, p.699)<br />

161<br />

To<strong>da</strong>s as vezes que for mencionado o termo “<strong>cura</strong>do”, ler: “ter passado pelo <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> Cura. Cura é <strong>pro</strong>cesso, não fin<strong>da</strong><br />

antes <strong>da</strong> morte. Portanto, quando assim nos referirmos, isso aten<strong>de</strong> <strong>à</strong> estratégia metodológica dos Périplos. Curado significa,<br />

neste caso, ter <strong>da</strong>do conta, ter finalizado o <strong>pro</strong>jeto do 1 o Périplo.


concretiza<strong>da</strong> pelo suicídio ou por um intencional “acabar com a vi<strong>da</strong>”. A <strong>de</strong>-cisão <strong>de</strong><br />

Dom Quixote pela morte é muito específica – é para marcar esse fim <strong>de</strong> ciclo, o ciclo<br />

<strong>em</strong> que, do totalmente impróprio, consuma-se no próprio, é para marcar a zona<br />

limítrofe <strong>da</strong> existência, entre o impróprio e o próprio mais radical.<br />

É assim que, no 1 o Périplo, a morte, além <strong>de</strong> se apresentar <strong>de</strong> forma tão<br />

insidiosa, chegando a quase assumir a condição <strong>de</strong> personag<strong>em</strong>, Dom Quixote,<br />

consciente <strong>de</strong> sua importância, lhe conce<strong>de</strong> atenção tão especial, a ponto <strong>de</strong><br />

preparar-lhe um ritual: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fazer seu testamento, diz – “Cerró con esto el<br />

testamento, y, tomándole un <strong>de</strong>smayo, se tendió <strong>de</strong> largo a largo en la cama” 162 .<br />

Essa imag<strong>em</strong> significativa __ o leito <strong>de</strong> morte __ , no sentido longitudinal, e o<br />

fato <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>de</strong>itar-se para morrer, “<strong>de</strong> uma ponta <strong>à</strong> outra” <strong>da</strong> cama, torna-<br />

se a completitu<strong>de</strong> perfeita do percurso. O ocupar to<strong>da</strong> extensão <strong>da</strong> cama “<strong>de</strong> largo a<br />

largo” marca os extr<strong>em</strong>os <strong>de</strong>sse construir. Significa que, “<strong>de</strong> ponta a ponta”, Dom<br />

Quixote construiu seu habitar.<br />

Na vi<strong>da</strong> ordinária, Dom Quixote não necessariamente precisaria finalizá-la<br />

naquele momento; afinal, não sofria <strong>de</strong> nenhum mal onticamente característico, não<br />

sofrera nenhum ferimento ôntico. Isso nos sinaliza tratar-se a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote,<br />

não <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> comum, on<strong>de</strong> o viver é ordinário, e sim tratar-se <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

que está <strong>em</strong> jogo o ser-para-morte. É tão fora do ordinário sua vi<strong>da</strong>, que o próprio<br />

modo <strong>de</strong> morrer funciona como sinal <strong>de</strong> sua Cura; fora dos padrões <strong>da</strong> cavalaria.<br />

Se o que mais fort<strong>em</strong>ente caracteriza a morte é a solidão, quando Dom<br />

Quixote <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> morrer e <strong>de</strong>ita, parece, com isso, precisar resguar<strong>da</strong>r o espaço <strong>da</strong><br />

solidão própria <strong>da</strong> morte. No rito <strong>da</strong> morte, apesar <strong>da</strong> cama ser o mais instrumental<br />

dos instrumentos, apesar do seu significado mais comum e <strong>pro</strong>saico, assume o valor<br />

sagrado <strong>de</strong> altar, on<strong>de</strong> se realiza o clímax <strong>da</strong> solidão mais radical. Nesse momento o<br />

162 Encerrou, com isso, o testamento e, tendo um <strong>de</strong>smaio, esten<strong>de</strong>u-se <strong>de</strong> ponta a ponta <strong>da</strong> cama (2, LXXIV, p.700)


hom<strong>em</strong> é só solidão – na<strong>da</strong> mais compartilha, na<strong>da</strong> mais é impróprio n<strong>em</strong><br />

impessoal. É a mais plena posse total do próprio.<br />

Fica esclarecido, assim, o não acontecer <strong>da</strong> morte do Dom Quixote – plágio<br />

<strong>de</strong> Avellane<strong>da</strong> 163 . Não pô<strong>de</strong> n<strong>em</strong> po<strong>de</strong> morrer, porque não nasceu, porque não t<strong>em</strong><br />

corpo sequer, como então morrer? A ele só lhe cabe, viver-vivendo a vi<strong>da</strong> ordinária,<br />

viver-vivendo sua lou<strong>cura</strong> ordinária, viver-vagando loucamente no estabelecido, até<br />

que para ele construam manicômios, único lugar on<strong>de</strong> ele e outros que sofr<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

igual lou<strong>cura</strong>, finalmente, po<strong>de</strong>m acabar.<br />

5.1.2 Para compreen<strong>de</strong>r o mundo, só com disposição<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que fez Dom Quixote lançar-se no mundo <strong>da</strong> cavalaria foi a<br />

“disposição”. Hei<strong>de</strong>gger diz que o existencial-compreensão é pre-racional, pre-<br />

predicativo. Havia um pré que antecedia qualquer compreensão; uma disposição<br />

afetiva, um humor, pois “a pre-sença já está s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> humor” 164 . O humor abre<br />

s<strong>em</strong>pre o ser do “pré”, logo ele também participa do “estar-lançado”. “[...] na maior<br />

parte <strong>da</strong>s situações ôntico-existenciárias, a pré-sença se esquiva ao ser que se abre<br />

no humor” 165 ; o “pré” é s<strong>em</strong>pre abertura e possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser.<br />

Isso significa que o hom<strong>em</strong> é s<strong>em</strong>pre tomado pela tendência <strong>à</strong> compreensão<br />

do que já é, do que já está estabelecido como significado, mesmo s<strong>em</strong> que perceba,<br />

e assume isso como responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>: uma vez existindo, ele “t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser” 166 .<br />

163<br />

Entre a publicação <strong>da</strong> primeira e <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> parte, aparece uma obra <strong>de</strong> mesmo nome, apresenta<strong>da</strong> como continuação <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira. Essa obra é escrita por Avellane<strong>da</strong>.<br />

164<br />

HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.188.<br />

165 Ibi<strong>de</strong>m, p.189.<br />

166 Ibi<strong>de</strong>m, p.189.


“Pré”, na época <strong>de</strong> Dom Quixote, <strong>da</strong>va o tom, <strong>de</strong>terminando o humor; humor<br />

que tocava a todos e fazia com que não perseguiss<strong>em</strong> a abertura que esse próprio<br />

humor realiza. Diz<strong>em</strong>os isso, porque “É justamente na cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong> mais indiferente<br />

e inocente, que o ser <strong>da</strong> pre-sença po<strong>de</strong> irromper na nu<strong>de</strong>z do que é e t<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

ser” 167 .<br />

Esse “pré” <strong>da</strong> época <strong>de</strong> Dom Quixote se chama ceticismo. Conviv<strong>em</strong>, no<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, resquícios <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, como também a dúvi<strong>da</strong> sobre esses<br />

valores. Mesmo s<strong>em</strong> <strong>da</strong>r-se conta, o humor, inerente <strong>à</strong> época <strong>de</strong> crise, é<br />

<strong>de</strong>terminado por esse clima. A obra apresenta muitos ex<strong>em</strong>plos que mostram a<br />

fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos valores medievais-cristãos, interferidos que estão pela sua não<br />

suficiência para a exigência do hom<strong>em</strong> <strong>da</strong>quele momento.<br />

No capítulo XXXII, há uma altercação entre Dom Quixote e um eclesiástico<br />

que mostra estar a Igreja completamente transforma<strong>da</strong>, segundo os valores <strong>da</strong><br />

cavalaria que <strong>pro</strong>fessa Dom Quixote. A <strong>pro</strong>va é que assim lhe respon<strong>de</strong> o cavaleiro,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma reprimen<strong>da</strong> duríssima do eclesiástico: “El lugar don<strong>de</strong> estoy, y la<br />

presencia ante quien me hallo y el respeto que si<strong>em</strong>pre tuve y tengo al estado que<br />

vuesa merced <strong>pro</strong>fesa tienen y atan las manos <strong>de</strong> mi justo enojo” 168 . E segue<br />

dizendo-lhe que, se t<strong>em</strong> as mãos ata<strong>da</strong>s, po<strong>de</strong> usar a arma que eles, os <strong>da</strong> Igreja<br />

usam, que são as mesmas <strong>da</strong> mulher – a língua. Dom Quixote trava uma batalha<br />

com o eclesiástico, falando com ele com a mesma dureza: “con vuesa merced, <strong>de</strong><br />

quien se <strong>de</strong>bía esperar antes buenos consejos que infames vituperios” 169 .<br />

Essa é a disposição <strong>em</strong> que todos estão. Todos estão dispostos na dúvi<strong>da</strong> e<br />

na incerteza do que possa ser ou não referencial confiável. É nessa disposição do<br />

167<br />

HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.189.<br />

168<br />

O lugar on<strong>de</strong> estou, e a presença diante <strong>da</strong> qual me encontro e o respeito que s<strong>em</strong>pre tive e tenho ao estado que vossa<br />

mercê <strong>pro</strong>fessa têm e atam as mãos <strong>de</strong> meu justo asco (2, XXXII, p.185)<br />

169<br />

Com vossa mercê, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> se <strong>de</strong>via esperar antes bons conselhos que infames vitupérios (Ibi<strong>de</strong>m)


“pré” que todos se responsabilizam, achando que o que lhes cabe é permanecer<br />

lançado no estabelecido.<br />

5.1.2.1 Há algum t<strong>em</strong>or no ar?<br />

Essa é a tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> afetiva, a disposição, é o que move na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> a época.<br />

O que caracteriza o momento, as vicissitu<strong>de</strong>s históricas, aponta muito mais para o<br />

conhecimento. Conhecimento <strong>de</strong> quê? O ambiente transpira dúvi<strong>da</strong>, não-certeza,<br />

não-segurança. As coisas reivindicam compreensão e explicação mais satisfatória,<br />

as antigas já não serv<strong>em</strong>. Talvez seja essa a tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> responsável pelo medo, o<br />

t<strong>em</strong>or <strong>de</strong> não se saber, o t<strong>em</strong>or <strong>de</strong> não chegar a ser n<strong>em</strong> a saber, o t<strong>em</strong>or <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>,<br />

o t<strong>em</strong>or <strong>de</strong> não conseguir <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o t<strong>em</strong>or, afinal, <strong>de</strong> não engrenar no<br />

<strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> sabendo, saber-se; <strong>de</strong> conhecendo, conhecer-se.<br />

No discurso <strong>de</strong> Dom Quixote __ “las armas y las letras” __ , o ponto crucial<br />

aponta o el<strong>em</strong>ento que radicaliza as duas épocas: “aquellos benditos siglos que<br />

carecieron <strong>de</strong> la espantable furia” 170 , <strong>em</strong> confronto com “la e<strong>da</strong>d tan <strong>de</strong>testable como<br />

es esta en que ahora vivimos”. Essa evidência, a perceb<strong>em</strong>os no <strong>de</strong>sabafo final:<br />

Como era possível treinar <strong>de</strong>strezas nas lutas marciais, exercitar e aprimorar o físico<br />

com ginásticas, fortalecer a alma pelo controle <strong>da</strong>s paixões; como isso era possível,<br />

perseguido pelo medo e receio <strong>de</strong> “si la pólvora y el estaño me han <strong>de</strong> quitar la<br />

ocasión <strong>de</strong> hacerme famoso y conocido por el valor <strong>de</strong> mi brazo y filo <strong>de</strong> mi espa<strong>da</strong>,<br />

170 Aqueles benditos t<strong>em</strong>pos que careceram <strong>da</strong> espantosa fúria (1, XXXVIII, p.232)


por todo lo <strong>de</strong>scubierto <strong>de</strong> la tierra” 171 ; como isso era possível? A tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> afetiva,<br />

o humor com que se apreendia e compreendia o mundo inclui o modo do t<strong>em</strong>or.<br />

O medo que sentia talvez fosse <strong>de</strong> ser tragado pelo vazio ameaçador que,<br />

mesmo não sendo ain<strong>da</strong> irreversível, já <strong>da</strong>va sinais <strong>de</strong> incômodo mal-estar. Para<br />

fugir do mal-estar, ca<strong>da</strong> um repetia ao infinito uma mesma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que lhe<br />

parecesse um lenitivo para a sensação <strong>de</strong> ameaça <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> experimentar o vazio.<br />

Mas todos repetiam, e Dom Quixote também. Seguiam lendo silenciosamente “<strong>de</strong><br />

claro en claro [...] <strong>de</strong> turbio en turbio 172 ”.<br />

Que, um belo dia, po<strong>de</strong>riam optar por fuga diferencia<strong>da</strong>, isso é possível;<br />

mas a história que Cervantes vai contar é exatamente a do herói que teve a corag<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong> fazer a primeira tentativa.<br />

Será muito difícil surpreen<strong>de</strong>r Dom Quixote <strong>de</strong>monstrando medo.<br />

Observando-o, tudo o que <strong>de</strong>le se alcança r<strong>em</strong>ete <strong>à</strong> força e ao po<strong>de</strong>r, característica<br />

constant<strong>em</strong>ente reforça<strong>da</strong>, como quando, dirigindo-se a Sancho diz:<br />

[...] dime por tu vi<strong>da</strong>: ¿has visto más valeroso caballero que yo en todo lo<br />

<strong>de</strong>scubierto <strong>de</strong> la tierra? ¿Has leído en historias otro que tenga ni haya<br />

tenido más brío en acometer, más aliento en el perseverar, más <strong>de</strong>streza en<br />

el herir, ni más maña en el <strong>de</strong>rribar? 173<br />

Como surpreen<strong>de</strong>r o hom<strong>em</strong> do Renascimento <strong>em</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong>, cheio <strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong>or, se o que se insinua já nesse momento é uma “[...] força que libera o hom<strong>em</strong><br />

do medo causado pela ignorância e pela superstição” 174 ; confiança que será<br />

reforça<strong>da</strong> mais adiante pelo Iluminismo, mobilizando-o a <strong>pro</strong>curá-la; confiança que<br />

se transmuta <strong>em</strong> falácia, a falácia <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna.<br />

171<br />

Se a pólvora e o estanho me tirarão a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar-me famoso e conhecido pelo valor <strong>de</strong> meu braço e o fio <strong>de</strong><br />

minha espa<strong>da</strong>, por todo o <strong>de</strong>scoberto <strong>da</strong> terra (1, XXXVIII, p.233)<br />

172<br />

De claro <strong>em</strong> claro [...] <strong>de</strong> turvo <strong>em</strong> turvo (1, I, p.18)<br />

173<br />

Diz por tua vi<strong>da</strong>: viste mais valente cavaleiro que eu <strong>em</strong> todo o <strong>de</strong>scoberto <strong>da</strong> terra? Leste <strong>em</strong> histórias outro que tenha ou<br />

tenha tido mais brio <strong>em</strong> atacar, mais alento <strong>em</strong> perseverar, mais <strong>de</strong>streza <strong>em</strong> ferir, mais manha <strong>em</strong> <strong>de</strong>rrubar? (1, X, p.56)<br />

174<br />

CHAUI, Marilena. Público, privado, <strong>de</strong>spotismo. In: NOVAES, A<strong>da</strong>uto <strong>de</strong> (Org.). Crise <strong>da</strong> razão. São Paulo: Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras, Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong> São Paulo, 1992, p.346


Impossível imaginar o po<strong>de</strong>r controlador <strong>de</strong> Dom Quixote numa conversa com<br />

um “cabrero” ignorante, corrigindo-lhe o significado <strong>da</strong>s palavras, a partir do rigor do<br />

dicionário: “Eclipse se llama, amigo, que no cris, el escurecerse esos dos luminares<br />

mayores – dijo don Quijote [...] Estéril queréis <strong>de</strong>cir, amigo - dijo don Quijote [...] Esa<br />

ciencia se llama astrología – dijo don Quijote” 175 , sucumbir ao medo. Medo <strong>de</strong> quê?<br />

Da ignorância prevista na citação acima? 176 . Por isso se apegavam tanto ao<br />

conhecimento certo e seguro, tentando fazê-lo eterno e imutável?<br />

Medo <strong>da</strong> instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do momento <strong>em</strong> que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> estava sendo posta <strong>em</strong><br />

cheque, momento <strong>em</strong> que concorriam muitas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

Medo do cavaleiro com qu<strong>em</strong> terá <strong>de</strong> lutar <strong>em</strong> algum momento?<br />

Não é possível, por enquanto, reconhecer e i<strong>de</strong>ntificar o medo. A única coisa<br />

que se sabe é que há algo que Hei<strong>de</strong>gger chama <strong>de</strong> pre-reflexivo, pre-discursivo<br />

mas que é só uma tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> afetiva, na<strong>da</strong> mais que um humor que não se<br />

consegue <strong>de</strong>tectar, porque é essa tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> que vai abrir o mundo como<br />

compreensão.<br />

Algo assustador ou, no mínimo ameaçador, está por vir e esse algo é o tal<br />

ente t<strong>em</strong>ível que, por enquanto, só an<strong>da</strong> ron<strong>da</strong>ndo o 1 o Périplo; é impossível<br />

<strong>de</strong>tectar, <strong>de</strong>finir, i<strong>de</strong>ntificá-lo. Não precisaria Dom Quixote tanto se armar, tanto dizer<br />

que é forte, tanto se exercitar. Havia sim um algo tão t<strong>em</strong>ível, por trás dos “tuertos y<br />

agravios” 177 , por trás <strong>da</strong>s viúvas e donzelas, por trás dos fracos e oprimidos que<br />

exigia que Dom Quixote tivesse a certeza <strong>de</strong> que precisava ser forte, <strong>de</strong> que<br />

precisava ter corag<strong>em</strong>, <strong>de</strong> que precisava ser <strong>de</strong>st<strong>em</strong>ido.<br />

175 Eclipse se chama, amigo, que não cris, o escurecimento <strong>de</strong>sses dois luminares maiores – disse Dom Quixote [...] Estéril<br />

queréis dizer, amigo – dijo Dom Quixote [...] Essa ciência se chama astrologia – disse Dom Quixote (1, XII, p.64)<br />

176 CHAUI, Marilena. Público, privado, <strong>de</strong>spotismo. In: NOVAES, A<strong>da</strong>uto <strong>de</strong> (Org.). Crise <strong>da</strong> razão. São Paulo: Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras, Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong> São Paulo, 1992, p.346<br />

177 Injustiças e <strong>de</strong>sacertos (1, XXXI, p.184)


Talvez fosse esse o motivo que o fez optar por ser cavaleiro: havia um<br />

cavaleiro anunciado, com o qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>veria lutar, precisava tomar a <strong>pro</strong>vidência <strong>de</strong> se<br />

preparar <strong>em</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> condição. Cavaleiro com cavaleiro luta; se o outro era<br />

cavaleiro, é claro que ele tinha que ser cavaleiro também.<br />

Por enquanto isso são só <strong>pro</strong>jeções, não passam <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que já<br />

estão aqui nos assediando, s<strong>em</strong> que tenhamos el<strong>em</strong>entos para disso <strong>da</strong>r conta.<br />

Entretanto, sabe-se não ser mais possível acreditar <strong>em</strong> Dom Quixote, <strong>de</strong>pois<br />

do flagrante <strong>da</strong> contradição – saber e não saber <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, outras<br />

contradições po<strong>de</strong>m ain<strong>da</strong> surpreen<strong>de</strong>r-nos. Se assim for, melhor é não <strong>de</strong>scansar<br />

enquanto não encontrarmos, escondido nas entrelinhas, seu t<strong>em</strong>or.<br />

Seguindo as pega<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, <strong>de</strong>scobrimos que o t<strong>em</strong>or t<strong>em</strong> um caráter<br />

<strong>de</strong> ameaça causa<strong>da</strong> pelos <strong>da</strong>nos. Ain<strong>da</strong> que o ente pre-sença tenha algum<br />

conhecimento <strong>de</strong>sse t<strong>em</strong>ível que se a<strong>pro</strong>xima, sua <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> ain<strong>da</strong> não está <strong>em</strong><br />

estágio <strong>de</strong> ser <strong>dom</strong>inável. Entretanto, o t<strong>em</strong>ível não pára <strong>de</strong> a<strong>pro</strong>ximar-se; e quanto<br />

mais se a<strong>pro</strong>xima, mais irradia raios <strong>de</strong> ameaça. Po<strong>de</strong> chegar ou não, o que o torna<br />

mais terrível; po<strong>de</strong> passar ao largo. Na<strong>da</strong> disso diminui o t<strong>em</strong>or; tudo isso o constitui.<br />

Não é preciso que se constate algo que vai acontecer no futuro, para <strong>de</strong>pois<br />

t<strong>em</strong>er. Não é essa a or<strong>de</strong>m: primeiro se constata o que se a<strong>pro</strong>xima, para só <strong>de</strong>pois<br />

t<strong>em</strong>er. Quando se t<strong>em</strong>e o t<strong>em</strong>er <strong>em</strong> sua t<strong>em</strong>eri<strong>da</strong><strong>de</strong> já se <strong>de</strong>scobriu o que se<br />

a<strong>pro</strong>xima. É preciso t<strong>em</strong>er, é preciso o t<strong>em</strong>or, porque só no <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> t<strong>em</strong>er é que<br />

se po<strong>de</strong> esclarecer e ter claro para si o t<strong>em</strong>ível. Esse t<strong>em</strong>ível, o capta a “circunvisão”<br />

porque ele já está na disposição do t<strong>em</strong>or. Na disposição tudo fica entregue aos<br />

fatos, é aquilo que é <strong>de</strong> fato: o ser só é percebido na factici<strong>da</strong><strong>de</strong>, como fato <strong>de</strong> ser,<br />

como ser <strong>de</strong> fato. Isso significa que a pre-sença está lança<strong>da</strong> <strong>em</strong> seu “pré”.<br />

Enquanto ser-no-mundo, o ente pre-sença é s<strong>em</strong>pre o seu “pré”. Portanto, será<br />

s<strong>em</strong>pre no ser do seu “pré” (do pré <strong>da</strong> pre-sença), que o t<strong>em</strong>or <strong>de</strong>sentranha a pre-


sença. E isso po<strong>de</strong> acontecer tanto no “ser junto a”, consi<strong>de</strong>rando que a pre-sença é<br />

um ser <strong>em</strong> ocupações que po<strong>de</strong> t<strong>em</strong>er “pela casa ou pela <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong>”; como “ser<br />

com o outro”, consi<strong>de</strong>rando que a pre-sença é um ser <strong>de</strong> pre-ocupações. O que se<br />

quer dizer aqui é que a ocupação e a preocupação são o modo <strong>de</strong> ser <strong>da</strong> pre-sença<br />

lança<strong>da</strong> <strong>em</strong> seu “pré”. E a cavalaria foi o “pré” <strong>de</strong> Dom Quixote e Dom Quixote nela<br />

se lança, ocupando-se, “sendo junto <strong>à</strong>s” coisas <strong>da</strong> cavalaria e preocupando-se -<br />

“sendo com o outro”.<br />

Como ser <strong>de</strong> ocupações, o t<strong>em</strong>or <strong>da</strong> pre-sença é privativo. Enquanto se<br />

ocupa <strong>da</strong>s coisas do mundo, a pre-sença experimenta o t<strong>em</strong>or <strong>de</strong> tal modo que a<br />

“confun<strong>de</strong> e faz per<strong>de</strong>r a cabeça”; a ponto <strong>de</strong> “precisar se recompor <strong>de</strong>pois que ele<br />

passa” 178 . Eis que a encontramos; Dom Quixote se encaixa inteiramente nesse perfil.<br />

Em meio <strong>à</strong>s ocupações <strong>de</strong> seu cotidiano cavaleiresco, o que mais fica evi<strong>de</strong>nte é o<br />

seu “confundir-se” acompanhado <strong>de</strong> um “per<strong>de</strong>r a cabeça”, como no episódio dos<br />

“<strong>de</strong>salmados yangüeses” 179 , on<strong>de</strong> Dom Quixote enfrenta, apesar do alerta <strong>de</strong><br />

Sancho, mais <strong>de</strong> 20 “gallegos”, achando que eram cavaleiros. Mesmo reconhecendo<br />

não ter<strong>em</strong> a estirpe <strong>de</strong> cavaleiros – “- A lo que yo veo, amigo Sancho, éstos no son<br />

caballeros , sino gente soez y <strong>de</strong> baja ralea” 180 , enfrenta-os para resolver o agravo<br />

cometido contra seu cavalo Rocinante. O resultado é que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter Dom<br />

Quixote atacado a faca<strong>da</strong>s um dos gallegos __ “¿Quién dijera que tras <strong>de</strong> aquellas<br />

tan gran<strong>de</strong>s cuchilla<strong>da</strong>s como vuestra merced dió a aquel <strong>de</strong>sdichado caballero<br />

an<strong>da</strong>nte, había <strong>de</strong> venir, por la posta y en seguimiento suyo, esta tan gran<strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong>pestad <strong>de</strong> palos que ha <strong>de</strong>scargado sobre nuestras espal<strong>da</strong>s?” 181__ , <strong>de</strong>ssa vez,<br />

vítimas são os três. Tanto apanha Rocinante por ter ido importunar as éguas <strong>de</strong> “los<br />

178<br />

HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.196<br />

179<br />

Desalmados tratadores <strong>de</strong> éguas (1, XV, p.78)<br />

180<br />

Pelo que vejo, amigo Sancho, estes não são cavaleiros, mas sim gente <strong>de</strong> soez e baixa ralé (1, XV, p.79)<br />

181<br />

Qu<strong>em</strong> diria que a<strong>pós</strong> aquelas tão gran<strong>de</strong>s punhala<strong>da</strong>s como vossa mercê <strong>de</strong>u naquele pobre <strong>de</strong>stitado cavaleiro an<strong>da</strong>nte,<br />

haveria <strong>de</strong> vir, a cavalo e <strong>em</strong> segui<strong>da</strong> a isso, esta tão gran<strong>de</strong> t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> paus que se <strong>de</strong>scarregou sobre nossas costas<br />

(1, XV, p.81)


gallegos”, como apanham Sancho e Dom Quixote, acreditando este estar cobrando<br />

a cavaleiros um <strong>de</strong>sagravo <strong>da</strong> injúria cometi<strong>da</strong> contra Rocinante e, só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

moído, precisando recompor-se do inci<strong>de</strong>nte que o levou a per<strong>de</strong>r a cabeça,<br />

reconhece o que <strong>pro</strong>duziu tamanha confusão: “[...] Yo me tengo la culpa <strong>de</strong> todo,<br />

que no había <strong>de</strong> poner mano a la espa<strong>da</strong> contra hombres que no fuesen armados<br />

caballeros como yo [...]” 182 .<br />

No mesmo episódio, Dom Quixote nos fala, ele mesmo, do t<strong>em</strong>or, <strong>em</strong> meio <strong>à</strong>s<br />

ocupações. Nesse caso está referindo-se <strong>à</strong> época. Como a está vivendo <strong>em</strong> seu<br />

cotidiano, como vive experimentando a ca<strong>da</strong> dia aquele mundo estabelecido e<br />

compartilhado, o seu “pré”, porque só nele po<strong>de</strong>-se abrir a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, já mostra<br />

suficientes riscos porque passam to<strong>da</strong>s as conquistas realiza<strong>da</strong>s, sabe que, do<br />

mesmo modo que se conquista, po<strong>de</strong>-se também per<strong>de</strong>r, inclusive a <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Por isso orientando Sancho a como <strong>pro</strong>ce<strong>de</strong>r quando tiver a <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua ilha<br />

porque “[...] nunca están tan quietos los ánimos [...] que no se tenga t<strong>em</strong>or”; <strong>da</strong>í a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ter “[...] valor para ofen<strong>de</strong>r y <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rse en cualquiera<br />

acontecimiento” 183<br />

O t<strong>em</strong>or está <strong>em</strong> to<strong>da</strong> parte; nas ocupações e nas pre-ocupações. Como ser<br />

<strong>de</strong> pre-ocupações, o t<strong>em</strong>or <strong>da</strong> pre-sença é um modo <strong>de</strong> disposição, não mais “junto<br />

<strong>à</strong>s coisas do mundo”, mas junto com os outros, <strong>em</strong>bora o t<strong>em</strong>or não necessite ser<br />

vivido junto. Po<strong>de</strong>-se t<strong>em</strong>er <strong>em</strong> lugar <strong>de</strong> alguém. Esse, também, não tira do outro o<br />

t<strong>em</strong>or. Qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong>e <strong>em</strong> lugar do outro po<strong>de</strong> sequer t<strong>em</strong>er. Po<strong>de</strong>-se t<strong>em</strong>er <strong>em</strong> lugar do<br />

outro, s<strong>em</strong> necessariamente t<strong>em</strong>er. Às vezes o outro t<strong>em</strong>e também; <strong>à</strong>s vezes “ele<br />

não t<strong>em</strong>e e au<strong>da</strong>ciosamente enfrenta o que o ameaça” 184 .<br />

182<br />

Eu tenho a culpa <strong>de</strong> tudo, que não tinha <strong>de</strong> pôr mão na espa<strong>da</strong> contra homens que não foss<strong>em</strong> armados cavaleiros<br />

como eu (1, XV, p.80)<br />

183<br />

[...] não estão tão quietos os ânimos [...] que não tenha t<strong>em</strong>or [<strong>da</strong>í (...) <strong>de</strong> ter] corag<strong>em</strong> para atacar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>em</strong> qualquer<br />

momento (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

184<br />

HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.196.


Po<strong>de</strong>mos dizer que havia um humor, uma tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> afetiva no “pré” <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

pre-sença, no “pré” <strong>de</strong> Dom Quixote; no “pré” <strong>de</strong> todos <strong>da</strong>quele momento histórico<br />

<strong>em</strong> que Dom Quixote se insere. Essa tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> afetiva se manifestava no modo do<br />

t<strong>em</strong>or, porque este é um modo <strong>da</strong> disposição. Po<strong>de</strong>mos dizer que havia algo <strong>de</strong><br />

ameaça no ar, algo que po<strong>de</strong>ria <strong>pro</strong>duzir <strong>da</strong>no, mas numa distância <strong>de</strong>sfavorável <strong>à</strong><br />

pre-sença. A <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> que se insinuava o <strong>da</strong>no não era suficiente para torná-<br />

lo <strong>dom</strong>inável. Po<strong>de</strong>mos dizer que era no cotidiano, junto <strong>à</strong>s coisas do mundo, que<br />

Dom Quixote e todos t<strong>em</strong>iam. Po<strong>de</strong>mos dizer até que, no caso específico <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote, seu t<strong>em</strong>or era, no viver as coisas do mundo, um t<strong>em</strong>or por si mesmo e<br />

também pelo outro; caso contrário, não precisava tomar iniciativa tão radical dizendo<br />

com suas próprias palavras: “la falta que él pensaba que hacía en el mundo su<br />

tar<strong>da</strong>nza, según eran los agravios que pensaba <strong>de</strong>shacer, tuertos que en<strong>de</strong>rezar,<br />

sinrazones que <strong>em</strong>en<strong>da</strong>r, y abusos que mejorar y <strong>de</strong>u<strong>da</strong>s que satisfacer” 185 . Dom<br />

Quixote estava <strong>de</strong>terminado a sair pelo mundo como o paladino <strong>da</strong> justiça,<br />

<strong>pro</strong>tegendo e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo seus s<strong>em</strong>elhantes <strong>de</strong> to<strong>da</strong> sorte <strong>de</strong> males que o seu<br />

t<strong>em</strong>po favorecia. Mas, afinal, on<strong>de</strong> está o ente t<strong>em</strong>ível?<br />

5.1.3 Do estar-lançado ao lançar-se na existência<br />

Custe o que custar, Dom Quixote toma, para si, o ocupar-se <strong>da</strong>s coisas do<br />

mundo e o pre-ocupar-se com os <strong>de</strong>mais entes do mundo. O <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a é que, ao sair<br />

185 A falta que ele pensava que fazia no mundo sua <strong>de</strong>mora, segundo eram os agravos que pensava <strong>de</strong>sfazer, injustiças que<br />

consertar, <strong>de</strong>srazões que <strong>em</strong>en<strong>da</strong>r, e abusos que corrigir e dívi<strong>da</strong>s que satisfazer (1, II, p.21)


pelo mundo com esse <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito, sai munido <strong>de</strong> um acervo adquirido na leitura<br />

<strong>de</strong>smedi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria, segundo a metodologia do aprendizado.<br />

Todo conhecimento lhe chegara, tendo como referencial o mundo organizado<br />

segundo uma lei fixa, eterna e imutável. De tal modo, que é internalizando esse<br />

referencial, que vai atuar. Desse modo, seu ocupar-se <strong>da</strong>s coisas do mundo está, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, intimamente ligado a seu pre-ocupar-se com as pessoas do mundo.<br />

É isso que estará s<strong>em</strong>pre regulando sua ação, que estará s<strong>em</strong>pre <strong>à</strong> mercê <strong>da</strong><br />

fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas crenças.<br />

Se é condição essencial para o ser, o ser-no-mundo, o cavaleiro Dom Quixote<br />

soube muito b<strong>em</strong> assumir a condição necessária <strong>de</strong> “estar-lançado” no mundo <strong>da</strong>s<br />

realizações e significações. Dom Quixote, como todos os homens, está-lançado, tão<br />

mergulhado na leitura <strong>da</strong> cavalaria que esse era o seu referencial maior enquanto<br />

lia, e supõe-se que, também, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> virar cavaleiro.<br />

Embora fosse essa sua <strong>pro</strong>posta, a <strong>de</strong> permanecer no estar-lançado no<br />

mundo, não será esse o rumo que tomará sua trajetória. Não percebeu o cavaleiro<br />

que bastou colocar o pé no caminho, para constatar, irr<strong>em</strong>ediavelmente, que “no hay<br />

camino”.<br />

Ao optar por entrar no ritmo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, quanto mais no estar-lançado, mais o<br />

assedia o ser. Quanto mais está no estabelecido, ocupando-se ou pre-ocupando-se,<br />

mais o “estar” se torna presa do “ek” 186 , mais Dom Quixote é <strong>pro</strong>vocado pelo ser,<br />

mais Dom Quixote é mobilizado a lançar-se <strong>em</strong> direção ao ser, mais é <strong>pro</strong>vocado a<br />

ocupar seu lugar <strong>de</strong> “entre-ser”, mais o cavaleiro manchego está aberto ao<br />

acontecer que po<strong>de</strong> constituir o mundo como mundo.<br />

186 “Ek” significa o “lançar-se <strong>em</strong> direção ao ser”. Só nesse lançar-se, o hom<strong>em</strong> existe. A expressão eksistência <strong>de</strong>nota uma<br />

dinâmica, um movimento <strong>de</strong> saí<strong>da</strong> <strong>em</strong> direção a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Nesse sentido, a <strong>pro</strong>posição ek significa esse movimento <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro para fora.


5.1.3.1 A pouca ocupação <strong>de</strong> Dom Quixote<br />

Não é fácil a visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> “ocupação” <strong>de</strong> Dom Quixote, segundo a <strong>de</strong>finição<br />

<strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger: “ser junto ao, manual intramun<strong>da</strong>no” 187 . Sua condição <strong>de</strong> cavaleiro lhe<br />

dá um escu<strong>de</strong>iro, cabendo a este a tarefa <strong>de</strong> <strong>pro</strong>vi<strong>de</strong>nciar as condições mínimas<br />

para aten<strong>de</strong>r <strong>à</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s cotidianas <strong>de</strong> seu amo; por isso colocamos a<br />

ocupação atrela<strong>da</strong> <strong>à</strong> pre-ocupação. Era Sancho qu<strong>em</strong> se “ocupava” <strong>da</strong> manutenção<br />

e <strong>da</strong> sobrevivência <strong>de</strong> seu amo:<br />

[...] como yo no sé leer ni escrebir, como otra vez he dicho, no sé ni he<br />

caído en las reglas <strong>de</strong> la <strong>pro</strong>fesión caballeresca; y, <strong>de</strong> aquí a<strong>de</strong>lante, yo<br />

<strong>pro</strong>veeré las alforjas <strong>de</strong> todo género <strong>de</strong> fruta seca para vuestra merced, que<br />

es caballero, y para mí las <strong>pro</strong>veeré, pues no lo soy, <strong>de</strong> otras cosas volátiles<br />

y <strong>de</strong> más sustancia. 188<br />

Entretanto, Dom Quixote era rigoroso no cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> alguns referentes <strong>da</strong><br />

cavalaria, com os quais, <strong>de</strong> algum modo, se ocupava. Não é preciso muitas páginas,<br />

lá pela 48, on<strong>de</strong> o armar-se cavaleiro é uma claríssima “ocupação” conduzi<strong>da</strong> com<br />

primoroso critério. A começar pelo grau <strong>de</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> com o com<strong>pro</strong>misso por<br />

ele assumido, com ele mesmo e com o código <strong>da</strong> cavalaria. Sua serie<strong>da</strong><strong>de</strong> está <strong>em</strong>,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> caminhando por la Mancha, acreditando ser já cavaleiro, l<strong>em</strong>brar-se <strong>de</strong><br />

uma falta que lhe tira completamente a tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong>: “lo que más le fatigaba era el<br />

no verse armado caballero, por parecerle que no se podría poner legítimamente en<br />

187 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 257.<br />

188 Como não sei ler n<strong>em</strong> escrever, como já disse, não sei s<strong>em</strong> cai nas regras <strong>da</strong> <strong>pro</strong>fissão cavaleiresca; e, <strong>da</strong>qui <strong>em</strong> diante,<br />

eu <strong>pro</strong>verei os alforjes <strong>de</strong> todo tipo <strong>de</strong> fruta seca para vossa mercê, que é cavaleiro, e para mim as <strong>pro</strong>verei, pois não o sou, <strong>de</strong><br />

outras coisas voláteis e <strong>de</strong> mais substância. (1, X, p.58)


aventura alguna sin recebir la or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> caballería”. 189 E, apesar do olhar crítico <strong>de</strong><br />

todos os presentes, quanto ao que o “caballero [Quixote] hacía”, <strong>de</strong>monstrando<br />

admiração “<strong>de</strong> tan estraño género <strong>de</strong> lo<strong>cura</strong> y fuéronselo a mirar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> lejos y<br />

vieron” 190 , Dom Quixote <strong>à</strong> cerimônia <strong>de</strong>dicou-se, <strong>de</strong>la ocupando-se com diligência,<br />

assim atuando:<br />

[...] sobre una pila que junto a un pozo estaba, y, <strong>em</strong>barazando su a<strong>da</strong>rga,<br />

asió <strong>de</strong> su lanza y con gentil continente se comenzó a pasear <strong>de</strong>lante <strong>de</strong> la<br />

pila [...] con sosegado a<strong>de</strong>mán, unas veces se paseaba; otras, arrimado a<br />

su lanza, ponía los ojos en las armas, sin quitarlos por un buen espacio<br />

<strong>de</strong>llas. 191<br />

Seu cui<strong>da</strong>do nessa ocupação é tal que, <strong>à</strong> simples ameaça <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong>,<br />

<strong>de</strong>sses que transportam mercadorias <strong>em</strong> cavalos, pelas estra<strong>da</strong>s, um “arriero” 192 que<br />

entra no curral on<strong>de</strong> Dom Quixote está velando suas armas, e, para pegar água e<br />

saciar a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus cavalos, se a<strong>pro</strong>xima <strong>da</strong> “pia” on<strong>de</strong> elas estão sendo vela<strong>da</strong>s,<br />

o nobre e ocupadíssimo cavaleiro, muito irritado lhe diz:<br />

-¡Oh tú, quienquiera que seas, atrevido caballero, que llegas a tocar las<br />

armas <strong>de</strong>l más valeroso an<strong>da</strong>nte que jamás se ciñó espa<strong>da</strong>!, mira lo que<br />

haces y no las toques, si no quieres <strong>de</strong>jar la vi<strong>da</strong> en pago <strong>de</strong> tu atrevimiento.<br />

[Foi uma pena que “el arriero” não tivesse escutado a recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong><br />

Dom Quixote. Como não escutou,] don Quijote [...] sin pedir favor a nadie,<br />

soltó otra vez la a<strong>da</strong>rga y alzó otra vez la lanza, y, sin hacerla pe<strong>da</strong>zos, hizo<br />

más <strong>de</strong> tres la cabeza [...] se la abrió por cuatro. 193<br />

É preciso não esquecer que, por não haver capela naquele castelo, castelo<br />

que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não passava <strong>de</strong> uma taberna, Dom Quixote estava velando suas<br />

189<br />

Mas o que mais o incomo<strong>da</strong>va era não se ver armado cavaleiro, por parecer-lhe que não podia legitimamente meter-se <strong>em</strong><br />

aventura alguma s<strong>em</strong> receber a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> cavalaria (1, III, p. 25-27)<br />

190<br />

[E, apesar (...) ao que o] cavaleiro fazia [<strong>de</strong>monstrando admiração] <strong>de</strong> tão estranho gênero <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong> e foram olhá-lo <strong>de</strong><br />

longe e viram (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

191<br />

Numa pia que junto <strong>de</strong> um poço estava, e, abraçando sua a<strong>da</strong>ga, segurou sua lança e com gentil continente começou a<br />

passear diante <strong>da</strong> pia [...] com sossegado gesto, algumas vezes passeava; outras, encostado <strong>em</strong> sua lança, punha os olhos<br />

nas armas, s<strong>em</strong> tirá-los por um bom t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>las (1, III, p.26-27)<br />

192<br />

Arrieiro.<br />

193<br />

– Oh, tu, qu<strong>em</strong> quer que sejas, atrevido cavaleiro, que chegas para tocar as armas do mais valente an<strong>da</strong>nte que jamais<br />

cingiu a espa<strong>da</strong>! Olha o que fazes e não as toque, se não queres <strong>de</strong>ixar a vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> paga <strong>de</strong> seu atrevimento [foi uma pena (...)<br />

não escutou,] Don Quixote [...] s<strong>em</strong> pedir favor a ninguém, soltou outra vez a a<strong>da</strong>ga e ergueu outra vez a lança, e, s<strong>em</strong> quebrála<br />

<strong>em</strong> pe<strong>da</strong>ços, fez mais <strong>de</strong> três a cabeça [...] a abriu <strong>em</strong> quatro. (1, III, p.27)


armas no curral que la<strong>de</strong>ava “la venta”, ocupando-se seriamente do ritual presente<br />

<strong>em</strong> qualquer código <strong>de</strong> cavalaria. Esse <strong>de</strong>talhado episódio t<strong>em</strong>, por finali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixar<br />

claro a ocupação do cavaleiro, ocupação prevista por Hei<strong>de</strong>gger, como necessária<br />

ao <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> Cura. Apesar do ridículo <strong>da</strong> situação, submetendo-se a um mero rito,<br />

do qual muitos foram partícipes, um rito completamente <strong>de</strong>svigorado, consi<strong>de</strong>rando a<br />

<strong>de</strong>cadência dos valores religiosos, a impavi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Dom Quixote, mergulhado que<br />

está, entregando-se <strong>à</strong> vivência, é surpreen<strong>de</strong>nte. Não seria um sinal <strong>de</strong> falta <strong>da</strong><br />

experiência originária, que t<strong>em</strong> no mito essa possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Se <strong>à</strong> “ocupação” não voltar<strong>em</strong>os, acreditando ser esse ex<strong>em</strong>plo suficiente,<br />

que não percamos a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>, <strong>de</strong>la, registrar outra gran<strong>de</strong> mostra. Trata-se<br />

<strong>da</strong> montag<strong>em</strong> do mundo <strong>da</strong> cavalaria, com a qual ocupou-se Dom Quixote:<br />

ocupando-se <strong>da</strong>s armas “Y lo primero que hizo fué limpiar unas armas que habían<br />

sido <strong>de</strong> sus bisabuelos, que, toma<strong>da</strong>s <strong>de</strong> orín y llenas <strong>de</strong> moho, luengos siglos había<br />

que estaban puestas y olvi<strong>da</strong><strong>da</strong>s en un rincón”; ocupando-se do cavalo “fué luego a<br />

ver su rocín” 194 , não tanto quanto o <strong>de</strong>sejável, porque, apesar <strong>de</strong> que tinha as patas<br />

bicha<strong>da</strong>s, isso não lhe parecera <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>ático. Para o futuro cavaleiro, seu cavalo<br />

Rocinante era o melhor dos melhores; por isso, a Dom Quixote “le pareció que ni el<br />

Bucéfalo <strong>de</strong> Alejandro ni Babieca el <strong>de</strong>l Cid con él se igualaban”; ocupando-se <strong>da</strong><br />

ama<strong>da</strong>, “porque el Caballero an<strong>da</strong>nte sin amores era árbol sin hojas y sin fruto y<br />

cuerpo sin alma”, Dom Quixote “se holgó”, ficou muito feliz “cuando halló a quien <strong>da</strong>r<br />

nombre <strong>de</strong> su <strong>da</strong>ma! [...] una moza labradora <strong>de</strong> muy bien parecer”; ocupando-se<br />

finalmente <strong>de</strong> si mesmo “quiso ponérsele a sí mesmo, y en este pensamiento duró<br />

otros ocho días, y al cabo se vino a llamar don Quijote” 195 .<br />

194 A primeira coisa que fez foi limpar as armas que haviam sido <strong>de</strong> seus bisavôs, que, toma<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ferrug<strong>em</strong> e cheias <strong>de</strong> mofo,<br />

longo t<strong>em</strong>po havia que estavam postas e esqueci<strong>da</strong>s num canto [ocupando-se do cavalo] foi <strong>de</strong>pois ver seu rocim (1, I, p.19)<br />

195 Pareceu-lhe que n<strong>em</strong> o Bucéfalo <strong>de</strong> Alexandre Magno n<strong>em</strong> Babieca o do Cid com ele se igualavam [ocupando-se <strong>da</strong><br />

ama<strong>da</strong>] porque o cavaleiro an<strong>da</strong>nte s<strong>em</strong> amores era árvore s<strong>em</strong> folhas e s<strong>em</strong> fruto e corpo s<strong>em</strong> alma [Dom Quixote] quando


O simples preparar um contexto, para viver a cavalaria com tamanha<br />

diligência, já anuncia o constituir um espaço on<strong>de</strong> “o existir <strong>de</strong> fato <strong>da</strong> pre-sença não<br />

está apenas lançado indiferent<strong>em</strong>ente num po<strong>de</strong>r-ser-no-mundo, mas já está<br />

s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong>penhado no mundo <strong>da</strong>s ocupações” 196<br />

O incômodo <strong>de</strong> não se ter ain<strong>da</strong> armado cavaleiro somado ao aparato<br />

ritualístico para tornar visível e <strong>da</strong>r evidência <strong>à</strong>s coisas do mundo já é um leve sinal<br />

<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> a<strong>pro</strong>ximando-se, insinuando seu perfil. Tudo precisava ser<br />

legitimado. E, legitimar era perfeitamente possível, esse po<strong>de</strong>r estava ao alcance do<br />

hom<strong>em</strong>, ou melhor, estava no próprio hom<strong>em</strong>, <strong>em</strong> seu pensamento, po<strong>de</strong>r que o<br />

tornava apto a triunfar sobre to<strong>da</strong>s as coisas. Seu simples pensar lhe <strong>da</strong>va s<strong>em</strong>pre<br />

razão.<br />

5.1.3.2 Pra que tanta pre-ocupação?<br />

Quanto a isso; e disso não será possível fugir; é Hei<strong>de</strong>gger qu<strong>em</strong> administra<br />

Cura. Se ele diz ser preciso pre-ocupar-se, é porque é preciso pre-ocupar-se. Do<br />

mesmo modo que não se está apenas lançado indiferent<strong>em</strong>ente num po<strong>de</strong>r-ser-no-<br />

mundo, mas já está s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong>penhado no mundo <strong>da</strong>s ocupações, o estar-lançado<br />

inclui também a pre-ocupação.<br />

Entretanto, <strong>em</strong> se tratando <strong>de</strong> Dom Quixote, a pergunta é, além <strong>de</strong> ingênua,<br />

<strong>de</strong>snecessária. Basta vê-lo magro, “seco <strong>de</strong> carnes”, com o t<strong>em</strong>peramento<br />

caracterizado pelos a<strong>de</strong>ptos <strong>da</strong> “teoria dos humores” como um perfil colérico,<br />

encontrou a qu<strong>em</strong> <strong>da</strong>r o nome <strong>de</strong> sua <strong>da</strong>ma! [...] uma moça lavradora <strong>de</strong> muito boa aparência [ocupando-se (...) mesmo] quis<br />

pôr <strong>em</strong> si mesmo, e neste pensameno permaneceu outros oito dias, e <strong>em</strong> fim veio a chamar-se Dom Quixote (1, I, p.20)<br />

196 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.257.


psicologicamente irado; forte e soberbo, na<strong>da</strong> preguiçoso e, ain<strong>da</strong> mais, amante <strong>da</strong><br />

justiça num contexto como o já <strong>de</strong>scrito, contexto que tanto o <strong>de</strong>sconcertava, a<br />

ponto <strong>de</strong>, a partir do “mal-estar” que, silencioso, ameaçava, ver que “la cosa <strong>de</strong> que<br />

más necesi<strong>da</strong>d tenía el mundo era <strong>de</strong> caballeros an<strong>da</strong>ntes, y <strong>de</strong> que en él se<br />

resucitase la caballería an<strong>da</strong>ntesca” 197 . Que esperar <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>sse calibre,<br />

num momento tão crucial, senão pre-ocupação?<br />

Pois b<strong>em</strong>, Dom Quixote é um cavaleiro extr<strong>em</strong>amente pre-ocupado.<br />

É <strong>de</strong> tal modo pre-ocupado que, logo <strong>em</strong> sua primeira saí<strong>da</strong>, antecipando-se<br />

<strong>à</strong> qualquer solicitação <strong>de</strong> aju<strong>da</strong> ou pedido <strong>de</strong> socorro, irrompe no capítulo IV,<br />

agra<strong>de</strong>cendo a Deus pelo favor <strong>de</strong> tal oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Gracias doy al cielo por la<br />

merced que me hace, pues tan presto me pone ocasiones <strong>de</strong>lante don<strong>de</strong> yo pue<strong>da</strong><br />

cumplir con lo que <strong>de</strong>bo a mi <strong>pro</strong>fesión” 198<br />

Por muito estar “pre-ocupado com” os outros entes, foi que Dom Quixote,<br />

tentando salvar “el muchacho Andrés” <strong>da</strong>s mãos <strong>de</strong> seu amo, o pôs a per<strong>de</strong>r-se<br />

<strong>de</strong>finitivamente. Pela primeira vez, <strong>em</strong> suas an<strong>da</strong>nças, Dom Quixote, acreditando<br />

tudo saber sobre como <strong>de</strong>sfazer “los tuertos y agravios” 199 , usou seu conhecimento<br />

para dispor <strong>da</strong>s <strong>de</strong>cisões necessárias para um inci<strong>de</strong>nte entre amo e criado. Como<br />

bom filósofo pre-ocupado achava que estava <strong>em</strong> suas mãos legislar sobre o certo e<br />

o errado.<br />

Neste relato está inserido o comportamento próprio do tipo <strong>de</strong> ensino que fora<br />

ministrado a Dom Quixote: um ensino calcado no aprendizado.<br />

O simples fato <strong>de</strong> ouvir queixas já o mobilizava <strong>à</strong> luta. Foi quando viu,<br />

amarrado <strong>em</strong> uma árvore, “un muchacho, <strong>de</strong>snudo <strong>de</strong> medio cuerpo arriba, hasta <strong>de</strong><br />

197<br />

A coisa <strong>de</strong> que mais necesi<strong>da</strong><strong>de</strong> tinha o mundo era <strong>de</strong> cavaleiros an<strong>da</strong>ntes, e <strong>de</strong> que nele se resucitasse a cavalaria<br />

an<strong>da</strong>ntesca (1, VII, p.44)<br />

198<br />

Graças dou ao céu pela mercê que me faz, pois tão logo me oferece oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> diante <strong>de</strong> mim para que eu possa<br />

cumprir com o que <strong>de</strong>vo a minha <strong>pro</strong>fissão (1, IV, p.29)<br />

199 Injustiças e <strong>de</strong>sacertos (1, XXXI, p.184)


e<strong>da</strong>d <strong>de</strong> quince años”. Este jov<strong>em</strong> apanhava <strong>de</strong> seu amo, “un labrador <strong>de</strong> buen<br />

talle”, aos quais respondia: “No lo haré otra vez, señor mío, por la pasión <strong>de</strong> Dios,<br />

que no lo haré otra vez” 200 . Foi o suficiente para Dom Quixote intrometer-se,<br />

chamando o amo <strong>de</strong> covar<strong>de</strong>, não querendo ouvir sequer suas <strong>de</strong>sculpas <strong>de</strong> que a<br />

altercação se <strong>de</strong>via ao fato <strong>de</strong> que, dizia ele, “estoy castigando [...] mi criado, que me<br />

sirve <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>r una mana<strong>da</strong> <strong>de</strong> ovejas”, e que “es tan <strong>de</strong>scui<strong>da</strong>do, que ca<strong>da</strong> día<br />

me falta una” 201 .<br />

Or<strong>de</strong>nou Dom Quixote que soltasse o rapaz, além <strong>de</strong> obrigá-lo a pagar o que<br />

lhe <strong>de</strong>via: “Hizo la cuenta don Quijote y halló que montaban setenta y tres reales”.<br />

Não permitiu que o amo-lavrador <strong>de</strong>scontasse os três pares <strong>de</strong> sapatos que lhe<br />

havia comprado, respon<strong>de</strong>ndo: “qué<strong>de</strong>nse los zapatos y las sangrías por los<br />

azotes” 202 , achando ter<strong>em</strong> sido pagos os sapatos com a surra que estava levando.<br />

Feitas as exigências, impostas ao amo <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s restrições no seu agir<br />

com seu criado, “el muchacho” Andrés, Dom Quixote o abandona, <strong>de</strong>ixando-o<br />

entregue <strong>à</strong> sorte. Por fim, ficou <strong>pro</strong>vado que Dom Quixote não tinha o conhecimento<br />

que acreditava ter para resolver situações <strong>da</strong>quele calibre, a ponto <strong>de</strong>, <strong>em</strong> posterior<br />

encontro, receber <strong>de</strong> Andrés, como resposta para encerrar a história:<br />

[...] que si otra vez me encontrare, aunque vea que me hacen pe<strong>da</strong>zos, no<br />

me socorra ni ayu<strong>de</strong>, sino déj<strong>em</strong>e con mi <strong>de</strong>sgracia; que no será tanta, que<br />

no sea mayor la que me vendrá <strong>de</strong> su ayu<strong>da</strong> <strong>de</strong> vuestra merced, a quien<br />

Dios maldiga, y a todos cuantos caballeros an<strong>da</strong>ntes han nacido en el<br />

mundo. 203<br />

200 Um rapaz, nu <strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do corpo para cima, <strong>de</strong> até quince anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> [Este (...) amo] um lavador <strong>de</strong> bom tamanho [aos<br />

quais respondia] Não farei outra vez, senhor meu, pela paixão <strong>de</strong> Deus, que não o farei outra vez (1, IV, p.29)<br />

201 Estou castigando [...] meu criado, que pastoreia uma mana<strong>da</strong> <strong>de</strong> ovelhas minhas[e que] é tão <strong>de</strong>scuiado que ca<strong>da</strong> dia me<br />

falta uma (1, IV, p.30)<br />

202 Fez as contas Dom Quixote e achou que montavam a setenta e três reais [não (...) respon<strong>de</strong>ndo] fiqu<strong>em</strong> os sapatos e as<br />

sangrias pelos açoites (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

203 Que se outra vez me encontrar, ain<strong>da</strong> que veja que me faz<strong>em</strong> <strong>em</strong> pe<strong>da</strong>ços, não me socorra n<strong>em</strong> aju<strong>de</strong>, mas me <strong>de</strong>ixe com<br />

minha <strong>de</strong>sgraça, que não será tanta, que não seja maior a que me virá <strong>de</strong> sua aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> vossa mercê, a qu<strong>em</strong> Deus maldiga, e<br />

a todos os outros quantos cavaleiros an<strong>da</strong>ntes nasceram no mundo (1, XXXI, p.185)


A arrogância <strong>de</strong> Dom Quixote no que se refere saber-se autori<strong>da</strong><strong>de</strong> por<br />

conhecer to<strong>da</strong>s as leis que po<strong>de</strong>rão colocar or<strong>de</strong>m <strong>em</strong> seu país é tal que<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>finitivamente os alertas do menino Andrés que se esforçara para<br />

avisá-lo <strong>da</strong> <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> que sua fórmula não funcionaria: “Mire vuestra merced,<br />

señor, lo que dice”, dizia o menino Andrés; “[...] basta que yo se lo man<strong>de</strong> para que<br />

me tenga respeto”, respondia Dom Quixote; “[...] pero este mi amo” que se nega a<br />

pagar-me, explorando meu suor e trabalho, o que se po<strong>de</strong> esperar <strong>de</strong>le?, dizia<br />

Andrés; Não se preocupe, porque “sabed que yo soy el valeroso don Quijote <strong>de</strong> la<br />

Mancha”, respondia Dom Quixote 204 . Com essas palavras, <strong>de</strong>ixou o rapaz nas mãos<br />

<strong>de</strong> seu amo, seguro <strong>de</strong> que sua <strong>de</strong>terminação seria uma or<strong>de</strong>m, que o amo<br />

cumpriria s<strong>em</strong> restrições.<br />

Capítulos <strong>de</strong>pois, novo encontro revela o insucesso <strong>da</strong> ação <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

Cheio <strong>de</strong> orgulho o cavaleiro, <strong>em</strong> meio ao conto, é interrompido pelo “muchacho”:<br />

“[...] el fin <strong>de</strong>l negocio sucedió muy al revés <strong>de</strong> lo que vuestra merced se imagina [...]<br />

No sólo no me pagó [...] como [...] me volvió a atar a la mesma encina, y me dio <strong>de</strong><br />

nuevo tantos azotes [...] y, a ca<strong>da</strong> azote que me <strong>da</strong>ba, me <strong>de</strong>cía un donaire y<br />

chufeta acerca <strong>de</strong> hacer burla <strong>de</strong> vuestra merced” 205 , que <strong>de</strong>clara frontalmente o<br />

preço que pagou por sua interferência.<br />

Dom Quixote s<strong>em</strong> refletir colocava rigorosamente <strong>em</strong> prática tudo o que<br />

apren<strong>de</strong>ra nos livros <strong>de</strong> cavalaria. S<strong>em</strong> contar com a sensação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que tal<br />

certeza lhe <strong>da</strong>va, fazendo-o dizer <strong>de</strong> si para si: Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha “hoy ha<br />

<strong>de</strong>sfecho el mayor tuerto y agravio que formó la sinrazón [...]. 206<br />

204 Olhe, vossa mercê, senhor, o que diz [dizia o menino Andrés]; Basta que eu o or<strong>de</strong>ne para que me tenha respeito<br />

[respondia Dom Quixote]; Porém, este meu amo [que se nega a pagar-me, explorando meu suor e trabalho, o que se po<strong>de</strong><br />

esperar <strong>de</strong>le?, dizia Andrés; Não se preocupe, porque] sabei que eu sou o valente Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha, [respondia Dom<br />

Quixote]. (1, IV, p.31)<br />

205 O fim do negócio aconteceu muito ao contrário do que vossa mercê imagina [...] Não só não me pagou [...] como voltou a<br />

amarrar no mesmo azevinho, e <strong>de</strong>u-me <strong>de</strong> novo tantos açoites [...] e, a ca<strong>da</strong> açoite que me <strong>da</strong>va, me dizia uma graça e chiste<br />

sobre fazer burla <strong>de</strong> vossa mercê (1, XXXI, p.184)<br />

206 Hoje <strong>de</strong>sfez a maior injustiça e agravo que formou a <strong>de</strong>srazão (1, IV, p.32)


Tanta pre-ocupação com as coisas do intramun<strong>da</strong>no acabou levando ao<br />

insucesso a sua tão <strong>de</strong>seja<strong>da</strong> intervenção no “mayor tuerto y agravio que formó la<br />

sinrazón”. Essa foi a primeira <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> falha <strong>em</strong> seu sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

conhecimento.<br />

6 CUIDANDO DE CURAR<br />

Tudo estava selecionado por Dom Quixote para a nova etapa <strong>da</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>.<br />

Chamamos nova etapa porque, se quisermos ser mais precisos, já na leitura, o<br />

fi<strong>da</strong>lgo estava <strong>em</strong> <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>. O motivo que o levou, não se sabe. É<br />

possível que o estivesse consumindo o consumo exacerbado <strong>de</strong> tantas novelas <strong>de</strong><br />

cavalaria. Também, Alonso Quijano já <strong>da</strong>va sinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>smedi<strong>da</strong>. Afinal, “se pasaba<br />

las noches leyendo <strong>de</strong> claro en claro, y los días <strong>de</strong> turbio en turbio” 207 p. 37/38].<br />

Apesar <strong>de</strong> tomar caminho diferenciado dos <strong>de</strong>mais leitores – “los ratones <strong>de</strong><br />

biblioteca”, o fi<strong>da</strong>lgo entra na obra querendo ser outro. E começa a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>r-se no<br />

outro, no cavaleiro Dom Quixote. E mais, para não pecar por falta, esten<strong>de</strong> esse<br />

outro a outros mais, com eles pre-ocupando-se, numa <strong>pro</strong>posta <strong>de</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

justiça. Mesmo tateando ain<strong>da</strong>, já está, <strong>de</strong> algum modo, no caminho, dispõe <strong>de</strong> todo<br />

instrumental para pôr a engrenag<strong>em</strong> cavaleiresca medieval para funcionar.<br />

Embora tivesse conhecimento adquirido pela via <strong>da</strong> ficção, todo o selecionado<br />

está sustentado pelas coisas que Dom Quixote conhece e que, sendo do<br />

conhecimento <strong>de</strong> todos, com tudo estão familiarizados. Entretanto, ain<strong>da</strong> assim, há<br />

<strong>em</strong> Dom Quixote o incômodo <strong>da</strong> ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não pára nunca, corre <strong>de</strong> lá pra cá, sua<br />

207 Passavam as noites <strong>de</strong> claro <strong>em</strong> claro e os dias <strong>de</strong> sombra <strong>em</strong> sombra. (1, I, p.18)


atenção está só volta<strong>da</strong> para a <strong>pro</strong>vidência divina que lhe <strong>pro</strong>verá com<br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> fazer justiça. Acha que isso será possível com o acervo medieval<br />

que traz consigo, crê num transcen<strong>de</strong>nte po<strong>de</strong>r paralelo do qual necessita o hom<strong>em</strong><br />

para suportar a vi<strong>da</strong>, para agüentar conviver com a dor, com o medo, com a morte.<br />

Constrói um mundo e, com essas convicções, por ele sai, com o conhecimento<br />

aprendido <strong>de</strong>baixo do braço, e o <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> reforçar no mundo a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

t<strong>em</strong>po que ain<strong>da</strong> crê possível.<br />

6.1 TROCANDO A ESTRATÉGIA DIDÁTICA<br />

Sai efetivamente pelo mundo Dom Quixote, e, naquilo que pensara ser fácil,<br />

ele encontra dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s: vendo passar “unos merca<strong>de</strong>res tole<strong>da</strong>nos que iban a<br />

comprar se<strong>da</strong>”, resolve, “por imitar en todo cuanto a él le parecía posible los pasos<br />

que había leído en sus libros”, levantar a voz, exigindo que todos confessass<strong>em</strong><br />

“que no hay en el mundo todo doncella más hermosa que la <strong>em</strong>peratriz <strong>de</strong> la<br />

Mancha, la sin par Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso” 208 .<br />

Todos se negaram a confessar porque, se não a conheciam, impossível<br />

s<strong>em</strong>elhante confissão, precisavam vê-la primeiro, para só <strong>de</strong>pois atestar. E<br />

disseram: “señor Caballero, nosotros no conoc<strong>em</strong>os quien sea esa buena señora<br />

que <strong>de</strong>cís; mostrádnosla” 209 .<br />

Dom Quixote replica dizendo não haver vantag<strong>em</strong> num reconhecimento do<br />

óbvio: “si os la mostrara [...] – ¿qué hiciéra<strong>de</strong>s vosotros en confesar una ver<strong>da</strong>d tan<br />

208 [Vendo passar] alguns mercadores <strong>de</strong> Toledo que iam comprar se<strong>da</strong>, [resolve,] para imitar <strong>em</strong> tudo que lhe parecia possível<br />

as passagens que havia lido <strong>em</strong> seus livros, [levantar (...) confessass<strong>em</strong>] que não há, no mundo todo, donzela mais bela que a<br />

imperatriz <strong>de</strong> la Mancha, a incomparável Dulcinea <strong>de</strong> Toboso (1, IV, p.32)<br />

209 Senhor cavaleiro, nós não conhec<strong>em</strong>os esta boa senhora que dizeis. Mostrai-a-nos. (Ibi<strong>de</strong>m)


notoria?”. E segue: “La importancia está en que sin verla lo habéis <strong>de</strong> creer,<br />

confesar, afirmar, jurar y <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r” 210 .<br />

O episódio termina <strong>de</strong> forma jocosa, quando os “merca<strong>de</strong>res”, justificando-se<br />

não po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> ser injustos com outras “<strong>em</strong>peratrices y reinas”, pe<strong>de</strong>m a Dom Quixote<br />

“que vuestra merced sea servido <strong>de</strong> mostrarnos algún retrato <strong>de</strong> esa señora” 211 .<br />

Para eles não importa que a foto seja do tamanho <strong>de</strong> “un grano <strong>de</strong> trigo”, mas que,<br />

para afirmar e confessar, o ver é fun<strong>da</strong>mental.<br />

Mais adiante, outro entrave no seu querer passar adiante, as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que<br />

acreditava ser<strong>em</strong> as únicas do mundo: a discussão, <strong>de</strong>ssa vez, gira <strong>em</strong> torno do<br />

equívoco <strong>de</strong> Dom Quixote. Ele se a<strong>pro</strong>pria <strong>de</strong> uma bacia <strong>de</strong> “el barbero” e afirma que<br />

o equívoco é <strong>de</strong> “el barbero”: “vean vuestras Merce<strong>de</strong>s clara y manifiestamente el<br />

error en que está este buen escu<strong>de</strong>ro, pues llama bacía a lo que fue, es y será<br />

yelmo <strong>de</strong> Mambrino” 212 . E nessa polêmica entre “bacia” e “yelmo”, <strong>em</strong>bora uma<br />

brinca<strong>de</strong>ira solucione o impasse optando-se por “baciyelmo” 213 , Dom Quixote sai do<br />

episódio dizendo: “ponerme yo agora en cosa <strong>de</strong> tanta confusión a <strong>da</strong>r mi parecer,<br />

será caer en juicio t<strong>em</strong>erario” 214 .<br />

Os sinais são contun<strong>de</strong>ntes, realizar o seu <strong>pro</strong>jeto não será tarefa fácil, Dom<br />

Quixote percebe que seu discurso encontra aqui e ali barreiras com as quais não<br />

contava. Mas não podia ser <strong>de</strong> outro modo, havia <strong>em</strong>pirismos, nominalismos e<br />

relativismos disputando, ca<strong>da</strong> um, seu lugar <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. O diálogo que estava<br />

usando <strong>em</strong>perrava, algo <strong>de</strong>via haver <strong>de</strong> errado.<br />

210<br />

Se eu a mostrasse a vós [...] o que farieis vós <strong>em</strong> confessar uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> notória? [E segue:] A importância está <strong>em</strong> que<br />

s<strong>em</strong> a ver terieis <strong>de</strong> crer, confesar, afirmar, jurar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r (1, IV, p.32)<br />

211<br />

Que vossa mercê seja servido <strong>de</strong> mostrar-nos algum retrato <strong>de</strong>ssa senhora (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

212<br />

Vejam vossas mercês clara e manifestamente o erro <strong>em</strong> que está este bom escu<strong>de</strong>iro, pois chama bacia o que foi, é e será<br />

elmo <strong>de</strong> Mambrino (1, XLIV, p.277)<br />

213<br />

“Bacielmo”<br />

214<br />

Meter-me eu agora <strong>em</strong> coisa <strong>de</strong> tanta confusão a <strong>da</strong>r minha opinião, será coisa <strong>de</strong> juízo t<strong>em</strong>erário (1, XLV, p.278)


O ponto marcante <strong>de</strong>ssa percepção não obe<strong>de</strong>ce ao movimento linear <strong>da</strong><br />

obra. Digamos que Dom Quixote já o <strong>pro</strong>vi<strong>de</strong>nciara, por pura intuição, por obra <strong>da</strong><br />

<strong>pro</strong>vidência, qu<strong>em</strong> sabe. A <strong>pro</strong>vidência já a tomara <strong>em</strong> sua segun<strong>da</strong> saí<strong>da</strong>. É ela que<br />

<strong>de</strong>ixa na obra o registro fun<strong>da</strong>mental do diálogo. Muitos estudiosos <strong>de</strong> Dom Quixote<br />

consi<strong>de</strong>ram que a obra só começa, realmente, quando Sancho é convi<strong>da</strong>do para<br />

servir ao cavaleiro como escu<strong>de</strong>iro. Não por ser escu<strong>de</strong>iro, mas por <strong>da</strong>r, <strong>à</strong> obra, sua<br />

marca essencial: o diálogo.<br />

Ao munir-se <strong>de</strong> Sancho, Dom Quixote completa sua bagag<strong>em</strong> para fazer a<br />

travessia. Percebe que o <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>r-se não requer isolamento. Até então estivera<br />

tentando colocar a máquina <strong>da</strong> cavalaria para funcionar, s<strong>em</strong> perceber que faltava a<br />

linguag<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> <strong>da</strong>r-se conta <strong>de</strong> que aqueles <strong>em</strong>bates <strong>de</strong>sconfortantes, on<strong>de</strong> outras<br />

visões disputavam um lugar <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, era Cura anunciando-se já. Era Cura<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente que, mesmo que Dom Quixote não tivesse consciência, já o<br />

tomava com suas questões.<br />

Para sair <strong>de</strong>sse impasse, para <strong>de</strong>s<strong>em</strong>perrar o que já sinalizava com o<br />

<strong>em</strong>perrado, só o diálogo. Só o diálogo po<strong>de</strong>ria mover as engrenagens necessárias<br />

para a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura.<br />

6.1.1 Do aprendizado 215 ao diálogo como aprendizag<strong>em</strong> 216<br />

A explicação para a febre <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> novelas <strong>de</strong> cavalaria po<strong>de</strong> estar na<br />

disposição que <strong>da</strong>va o tom na compreensão do mundo. Um mundo cheio <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong><br />

215 Aprendizado significa conhecimento aprendido como ver<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta, fixo e <strong>de</strong>finido.<br />

216 Aprendizag<strong>em</strong> significa conhecimento circular, possível a partir do diálogo, on<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> resposta se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong> novas<br />

perguntas. Na aprendizag<strong>em</strong>, na<strong>da</strong> é ensinado.


e incerteza traça o perfil <strong>de</strong>sse leitor; ele precisa <strong>de</strong> algo que lhe ofereça o mínimo<br />

<strong>de</strong> sustentação. Afinal, <strong>de</strong> todo material que circula naquele território, apesar <strong>de</strong> sua<br />

fragili<strong>da</strong><strong>de</strong>, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> medieval-cristã é ain<strong>da</strong> o único referencial mais consistente <strong>de</strong><br />

que dispõ<strong>em</strong>. Aliás, é essa disposição que move todo povo espanhol <strong>em</strong> direção <strong>à</strong><br />

leitura <strong>de</strong> novelas <strong>de</strong> cavalaria.<br />

O modo como essa leitura vai afetar a ca<strong>da</strong> um dos leitores é impossível<br />

mapear. Imagin<strong>em</strong>os, portanto, como se <strong>pro</strong>cessou somente <strong>em</strong> Dom Quixote: o<br />

mito <strong>da</strong> caverna, colocado <strong>à</strong> disposição do cavaleiro foi, imediatamente reconhecido<br />

por Hei<strong>de</strong>gger como doutrina que traduzia o mito <strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como a<strong>de</strong>quação.<br />

Foi com essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que Dom Quixote sucumbiu <strong>à</strong> Paidéia e foi treinado<br />

rigorosamente, segundo a metodologia platônica, fixa<strong>da</strong> no mundo transcen<strong>de</strong>nte<br />

<strong>da</strong>s idéias. Usando a alma como veículo, o cavaleiro <strong>da</strong>li transpôs todo acervo <strong>de</strong><br />

conhecimento possível para o seu mundo.<br />

O <strong>pro</strong>cesso não fora tão difícil: fazer um ajuste do olhar para captar o<br />

essencial com os olhos <strong>da</strong> alma racional, que <strong>de</strong>sse acesso ao conhecimento certo e<br />

seguro; separar o objeto do conhecimento <strong>de</strong> sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, num mar <strong>de</strong> incertezas,<br />

isso era tudo do que precisavam todos, por isso foi possível realizar o que <strong>de</strong>sejava<br />

quase s<strong>em</strong> sofrimento.<br />

Desse modo, transforma-se, o fi<strong>da</strong>lgo, no i<strong>de</strong>al previsto pela república cristã:<br />

hijo <strong>de</strong>l entendimiento 217 . Esse é Dom Quixote, o filósofo, o hom<strong>em</strong> que <strong>de</strong>tém todo<br />

o saber, um saber há muito estabelecido e compartilhado por todos.<br />

O que era o conhecimento que a obra ressalta como o estabelecido e<br />

compartilhado por todos?<br />

O estabelecido e compartilhado é o viver nas amarras <strong>da</strong> ficção: Na Espanha<br />

<strong>de</strong> Dom Quixote, todos liam: “con gusto”, 218 os livros <strong>de</strong> cavalaria eram lidos “y<br />

217 Filho do entendimento. (C.f. GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993, p.108)


celebrados <strong>de</strong> los gran<strong>de</strong>s y <strong>de</strong> los chicos, <strong>de</strong> los pobres y <strong>de</strong> los ricos, <strong>de</strong> los<br />

letrados e ignorantes, <strong>de</strong> los plebeyos y caballeros, finalmente, <strong>de</strong> todo género <strong>de</strong><br />

personas <strong>de</strong> cualquier estado y condición que sean” 219 . Todos liam, todos<br />

compartilhavam o mundo <strong>da</strong> ficção. Po<strong>de</strong> parecer estranho, mas, encarnando o<br />

cavaleiro, Dom Quixote era no máximo vítima do riso, mas era perfeitamente<br />

conhecido, todos nutriam sentimento <strong>de</strong> afeto por ele. Todos aqueles referenciais<br />

eram <strong>de</strong> algum modo familiares, afinal, todos liam, todos compartilhavam o mundo<br />

<strong>da</strong> ficção.<br />

Dom Quixote fora tragado pelo mundo <strong>da</strong> cavalaria e acreditava que, com o<br />

conhecimento ali adquirido, po<strong>de</strong>ria intervir <strong>em</strong> seu mundo tão incômodo e<br />

inconsistente. Acreditando nisso, qu<strong>em</strong> po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>movê-lo <strong>de</strong> seu <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito?<br />

É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, neste Périplo, Dom Quixote, tendo nele ingressado, armado<br />

do instrumental do hom<strong>em</strong> do Renascimento, não assume o papel <strong>de</strong> perguntador.<br />

Se sabia <strong>de</strong> tudo, se até <strong>de</strong> si mesmo sabia tão b<strong>em</strong>, para que perguntar?<br />

Entretanto, querer saber <strong>de</strong> si, querer conhecer sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> __ anunciando: “Yo sé<br />

quien soy” __ é pura contradição.<br />

Essa afirmação vai, ao longo <strong>da</strong> obra, ganhando forma ca<strong>da</strong> vez mais clara e<br />

<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>, ou melhor, vai se abrindo <strong>em</strong> varia<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Neste Périplo, porém,<br />

seu significado é o máximo <strong>da</strong> contradição, estratégia bastante comum <strong>à</strong> arte: na<br />

razão inversa do <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong>ste capítulo, razão esta que coinci<strong>de</strong> com o querer do<br />

herói, está “Yo sé quien soy”.<br />

Se reconhec<strong>em</strong>os estar Dom Quixote, tendo assumido a persona <strong>de</strong><br />

cavaleiro, no grau máximo do seu impróprio, é contraditório que ele afirme, com<br />

convicção, saber-se, e conhecer sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> própria. Esse foi o preço do exagero<br />

218 Com apreciação. (1, L, p.304)<br />

219 E celebrados pelos adultos e pelas crianças, pelos pobres e pelos ricos, pelos letrados e ignorantes, pelos plebeus e<br />

cavalheiros, finalmente, <strong>de</strong> todo gênero <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> qualquer estado e condição que sejam (Ibi<strong>de</strong>m)


e <strong>da</strong> repetição <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> novelas <strong>de</strong> cavalaria – per<strong>da</strong> <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> por imitação,<br />

s<strong>em</strong> a consciência <strong>de</strong>ssa per<strong>da</strong>. Entretanto, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> consciência, algo o<br />

molesta <strong>de</strong> forma muito mais significativa.<br />

O que o molestou, <strong>de</strong>finitivamente, foi o perceber que, lendo aquelas novelas,<br />

nos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong>s “más <strong>de</strong> cien hojas” 220 escritas por “el canónigo”, essas sim, o<br />

estavam ameaçando; o ameaçavam <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> competência para questionar e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, para pensar. Com esse sentimento, Dom Quixote não consegue<br />

conviver, e a <strong>pro</strong>vidência é entrar na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> cavalaria. É por isso que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ser<br />

cavaleiro.<br />

É claro que não é esse o único motivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>sse porte. Há ain<strong>da</strong><br />

aquela pergunta mal respondi<strong>da</strong> e mal resolvi<strong>da</strong>. “¿Habían <strong>de</strong> ser mentira?” 221<br />

A respeito do que, quer saber Dom Quixote a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, martelando repeti<strong>da</strong>s<br />

vezes <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> pergunta <strong>à</strong>s avessas: “¿Habían <strong>de</strong> ser mentira?”<br />

Digamos que queira esclarecer sua situação assumi<strong>da</strong> <strong>de</strong> cavaleiro-filósofo,<br />

divulgador <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, num contexto on<strong>de</strong> sua escolha corre o risco <strong>de</strong>, sendo<br />

avalia<strong>da</strong> como mentira, não dispor ele <strong>da</strong> sustentação necessária para pôr <strong>em</strong><br />

prática seu <strong>pro</strong>jeto. Digamos que esse impasse seja <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> outro – as<br />

próprias novelas que lhe serviram <strong>de</strong> <strong>em</strong>basamento para ascen<strong>de</strong>r <strong>à</strong> categoria <strong>de</strong><br />

filósofo, essas também eram, do mesmo modo, ameaça<strong>da</strong>s, uma vez que o<br />

escrutínio seguia ecoando na mente <strong>de</strong> todos: “sean con<strong>de</strong>nados al fuego” 222 .<br />

T<strong>em</strong>os aqui uma tarefa hercúlea que Dom Quixote terá <strong>de</strong> realizar. Essa,<br />

parece ser muito maior do que aquela <strong>em</strong> que acredita ser o “<strong>de</strong>sfacedor <strong>de</strong><br />

220 Mais <strong>de</strong> c<strong>em</strong> folhas (1, XLVIII, p.295)<br />

221 Haviam <strong>de</strong> ser mentira? (1, L, p.304)<br />

222 Sejam con<strong>de</strong>nados ao fogo (1, V, p.36)


agravios, en<strong>de</strong>rezador <strong>de</strong> tuertos” 223 e <strong>pro</strong>motor <strong>da</strong> justiça. Seria essa, a batalha<br />

singular, do aviso que lhe <strong>de</strong>ra um dia, um sábio?<br />

Na<strong>da</strong> disso importa na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Importa sim que, mesmo s<strong>em</strong> consciência,<br />

Dom Quixote, conseguiu escapar do círculo vicioso que a todos tragava. Sua fuga<br />

do tédio foi, pelo menos, diferente <strong>da</strong> dos <strong>de</strong>mais <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po que seguiram lendo<br />

“<strong>de</strong> claro en claro, <strong>de</strong> turbio en turbio”, 224 expressão que, por sua entonação ritma<strong>da</strong>,<br />

sugere a repetição <strong>da</strong> <strong>de</strong>cadência constante no circuito do tédio.<br />

A pergunta insistente precisa encontrar via <strong>de</strong> resposta, mas Dom Quixote<br />

não dispõe dos el<strong>em</strong>entos necessários para tais esclarecimentos. E, do que ele não<br />

sabe é que sua <strong>de</strong>cisão o colocou, natural e espontaneamente, no caminho <strong>da</strong><br />

resposta. Resposta, mas que resposta? A resposta que respon<strong>de</strong> <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

obra, novelas <strong>de</strong> cavalaria, “impresos con licencia <strong>de</strong> los reyes”, 225 mas,<br />

contraditoriamente julga<strong>da</strong>s como mentira? Ou a resposta que respon<strong>de</strong> <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> si mesmo?<br />

Começaríamos perguntando por que Dom Quixote estava per<strong>de</strong>ndo sua<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> questionar, quando, no ultimíssimo momento <strong>de</strong>u-se conta <strong>da</strong> grave<br />

tragédia que estava por acontecer e tentou revertê-la, abandonando a leitura,<br />

ingressando na vi<strong>da</strong>.<br />

Outro dil<strong>em</strong>a enfrentado por Dom Quixote, assim que <strong>de</strong>u o salto<br />

ultrapassando a linha divisória, foi o perceber a contradição <strong>da</strong> qual se tornara<br />

vítima. Acabara <strong>de</strong> perceber o sério risco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a competência questionadora.<br />

Entretanto, contraditoriamente, se <strong>pro</strong>punha a lançar mão <strong>da</strong> mesma fórmula para<br />

manutenção dos conhecimentos que obtivera <strong>em</strong> sua formação, <strong>de</strong> base platônica.<br />

223 Desfazedor <strong>de</strong> agravos, consertador <strong>de</strong> injustiças (1, LII, p.312)<br />

224 De claro <strong>em</strong> claro e os dias <strong>de</strong> sombra <strong>em</strong> sombra (1, I, p.18)<br />

225 (1, L, p.304)


Intrigado, põe-se Dom Quixote a pensar que o gran<strong>de</strong> <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a talvez<br />

estivesse na didática usa<strong>da</strong> para sua formação. Muito b<strong>em</strong> dito: formação. Uma<br />

didática nos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Paidéia só po<strong>de</strong> ter sido muito rígi<strong>da</strong>, <strong>de</strong>scartando qualquer<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong> com<strong>pro</strong>metedora do conteúdo ensinado. Daí, todo<br />

conhecimento veiculado <strong>de</strong>via ser selecionado e transmitido nessa mesma medi<strong>da</strong>:<br />

na medi<strong>da</strong> certa, <strong>de</strong> tal maneira certa que sequer permitisse a menor questão.<br />

Com essa investigação, Dom Quixote se está a<strong>pro</strong>ximando <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

didática chama<strong>da</strong> “aprendizado”, a mesma a que fora submetido <strong>em</strong> sua formação.<br />

Como, fun<strong>da</strong>mentalmente, funciona essa didática é questão só <strong>de</strong><br />

a<strong>pro</strong>ximação: funciona nos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> comunicação e <strong>da</strong> informação.<br />

Desse mo<strong>de</strong>lo, ficam excluídos <strong>em</strong>issor e receptor, com suas singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Sua participação no circuito é meramente formal. Imbatível é o código, que ocupa o<br />

lugar principal.<br />

Impecavelmente fora planejado e montado o <strong>pro</strong>jeto formador <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote: s<strong>em</strong> folga que abrisse para i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s n<strong>em</strong> diferenças. Todo espaço do<br />

“entre” era ocupado inteiramente pelo código – o conhecimento <strong>da</strong> cavalaria,<br />

veiculado pelas novelas que por Espanha se alastravam.<br />

Uma <strong>pro</strong>va, não só <strong>de</strong> ser Dom Quixote porta voz do conhecimento medieval-<br />

cristão veiculado nos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> cavalaria, como também <strong>da</strong> rigi<strong>de</strong>z fixa <strong>de</strong>sse<br />

conhecimento, está no capítulo XVII <strong>da</strong> 2 a parte, quando Dom Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>,<br />

elogiando Dom Quixote, lhe diz “que si las or<strong>de</strong>nanzas y leyes <strong>de</strong> la caballería<br />

an<strong>da</strong>nte se perdiesen, se hallarían en el pecho <strong>de</strong> vuesa merced como su mismo<br />

<strong>de</strong><strong>pós</strong>ito y archivo” 226 .<br />

226 Se as or<strong>de</strong>nações e leis <strong>da</strong> cavalaria an<strong>da</strong>nte se per<strong>de</strong>ss<strong>em</strong>, achar-se-iam no peito <strong>de</strong> vossa mercê como seu próprio<br />

<strong>de</strong><strong>pós</strong>ito e arquivo (2, XVII, p.411)


Esse conhecimento, <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> placa <strong>de</strong> computador, está incrustado no<br />

peito <strong>de</strong> Dom Quixote e <strong>da</strong>li, nos mesmos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> comunicação e <strong>da</strong> informação,<br />

cumpre seu <strong>de</strong>sígnio: ocupa todo espaço, preenche o “entre” totalmente. S<strong>em</strong><br />

espaço não há renovação possível, e a objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> se torna lei – as leis <strong>da</strong><br />

cavalaria <strong>de</strong>posita<strong>da</strong>s no peito-arquivo <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

No entanto, até <strong>da</strong>r-se conta <strong>da</strong> “esparrela” didática do aprendizado, o<br />

cavaleiro muito a exercitou. Inicialmente, Dom Quixote impõe o seu discurso, s<strong>em</strong><br />

que nele transpareça sinal <strong>de</strong> individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Selecionamos algumas situações <strong>em</strong> <strong>pro</strong>gressão crescente <strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dialógica <strong>de</strong> Dom Quixote que estarão disponíveis no it<strong>em</strong> seguinte. Antes,<br />

entretanto, apresentar<strong>em</strong>os pequeno resumo dos diferentes modos como está<br />

caracterizado o <strong>pro</strong>cesso dialógico.<br />

No diálogo com o outro, o entre está para além do código e as singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do eu e tu, fazendo-se presentes, acionam fala e escuta. Esse é o diálogo<br />

<strong>pro</strong>priamente dito.<br />

Eu e tu movimentam-se <strong>em</strong> distintos graus <strong>de</strong> <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> e distância, <strong>de</strong><br />

acordo com a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e a diferença.<br />

É preciso muita atenção ao “tu”. Quando o diálogo é com o outro, o tu – que é<br />

o outro – é somente o marcador <strong>da</strong>quilo que eu não sou, portanto, <strong>de</strong> uma diferença<br />

negativa. No diálogo com o outro se <strong>pro</strong>duz fala e escuta. Assim, tu e eu, eu e tu se<br />

revesam <strong>em</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong> e diferença, <strong>em</strong> <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> e distância, diferença e distância<br />

que serão s<strong>em</strong>pre maiores, por tratar-se do “outro”.<br />

No autodiálogo, a auto-escuta é inevitável. Eu e tu dialogam numa<br />

<strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> b<strong>em</strong> maior do que a do diálogo com o outro. Isso porque na<strong>da</strong> é mais<br />

próximo <strong>de</strong> nós do que nós mesmos. Por isso, só o autodiálogo po<strong>de</strong> alimentar-nos.


Mas como se dá essa auto-alimentação? Ela acontece no “entre”; no<br />

autodiálogo; a diferença é positiva e negativa: ao mesmo t<strong>em</strong>po é e não-é. Fala e<br />

escuta, i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e diferença, <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> e distância são internas, estão tão<br />

próximas por isso, estão tão próximas do que eu sou, que são o que eu sou. São o<br />

que <strong>em</strong> mim há <strong>de</strong> originário.<br />

Desse modo, po<strong>de</strong>ríamos afirmar que esse __ o autodiálogo __ é o melhor, já<br />

que o diálogo com-o-outro não toca o originário.<br />

Caso afirmáss<strong>em</strong>os, estaríamos equivocados. Isso é um alerta. Isso quer<br />

dizer que o autodiálogo é uma estação intermediária do diálogo com-o-outro como<br />

modo <strong>de</strong> plenificá-lo: “a <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro, se for <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong>, alimenta a minha<br />

própria <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 227<br />

A ca<strong>da</strong> vez que dialogamos com o outro, corr<strong>em</strong>os o risco <strong>da</strong> superposição do<br />

eu do outro <strong>em</strong> nosso tu <strong>de</strong> interlocutor. E isso muito acontece. O ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro diálogo<br />

com-o-outro, entretanto, é aquele que não permite essa a<strong>pro</strong>priação. Para tal, outra<br />

é a dinâmica: no diálogo com-o-outro, havendo real <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, essa<br />

<strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong>-i<strong>de</strong>ntificatória <strong>de</strong>ve percorrer um caminho mais longo. Ao ser recebi<strong>da</strong><br />

pelo tu, <strong>de</strong>ve transitar no auto-espaço do tu-interlocutor, fazendo-se primeiro<br />

autodiálogo no “entre” o que é e o que não-é, acionando a escuta originária b<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

pertinho, para que, só <strong>de</strong>pois se mostre como <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com-o-outro.<br />

Inicialmente, Dom Quixote, com a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> perpetuar o<br />

conhecimento que atendia aos interesses <strong>de</strong> “la república cristiana”, sai pelos<br />

caminhos impondo seu discurso s<strong>em</strong> nenhuma flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sequer permitindo ao<br />

outro o diálogo. Ain<strong>da</strong> que ao interlocutar <strong>de</strong>va ser <strong>da</strong><strong>da</strong> a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

expressar-se, ele o ignora, fazendo s<strong>em</strong>pre prevalecer a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

227 CASTRO, M. A. <strong>de</strong>. A configuração <strong>da</strong> obra como diálogo e escuta. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 25 jul 2007.


Ao longo <strong>da</strong> obra, entretanto, vão se <strong>de</strong>senrolando situações ca<strong>da</strong> vez mais<br />

próximas do cavaleiro, situações cujos significados iniciais evolu<strong>em</strong> <strong>da</strong> significação<br />

ao sentido. Apesar <strong>da</strong> “insistência” <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>em</strong> manter-se na didática do<br />

aprendizado, on<strong>de</strong> só um fala s<strong>em</strong> permitir que se interponha nenhuma oposição,<br />

s<strong>em</strong> permitir, conseqüent<strong>em</strong>ente, que se instaure o diálogo, porque, s<strong>em</strong> oposição,<br />

não há diálogo, quanto mais é tocado por experiências radicais que lhe exig<strong>em</strong><br />

reflexão, obrigando-o a ce<strong>de</strong>r ao assédio do ser, talvez, quanto mais a solidão o<br />

ron<strong>da</strong>, mais o cavaleiro é obrigado a fazer o jogo <strong>da</strong> <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong>, vai substituindo a<br />

rigi<strong>de</strong>z pela flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong>; flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> absolutamente necessária, isso Dom Quixote<br />

vai percebendo, <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que sente ser ele o que mais per<strong>de</strong> com a rigi<strong>de</strong>z. E per<strong>de</strong><br />

porque, s<strong>em</strong> permitir a <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro, impe<strong>de</strong> que se alimente a sua própria<br />

<strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong>, impedindo assim que, <strong>de</strong> tão próximo <strong>de</strong> si mesmo, seja tocado pelo<br />

originário próprio, e o escute.<br />

Foi esse o <strong>pro</strong>cesso que quase o pusera a per<strong>de</strong>r <strong>de</strong>finitivamente. De tanto<br />

ter se submetido a diálogos <strong>de</strong>sse nível, foi assim que, vítima do aprendizado vazio<br />

<strong>de</strong> diálogo, acabou sendo tragado pelo outro, por aquele que não <strong>da</strong>va nenhuma<br />

folga para que se articulasse o jogo <strong>da</strong> <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> e, por isso, <strong>de</strong> fi<strong>da</strong>lgo, acabou<br />

virando cavaleiro.<br />

É possível que Dom Quixote tenha resquícios <strong>de</strong> l<strong>em</strong>brança do como isso<br />

nele se <strong>pro</strong>cessou. Talvez essa seja uma boa explicação, uma <strong>de</strong>ntre outras para<br />

justificar as mu<strong>da</strong>nças que se operavam <strong>em</strong> Dom Quixote com respeito ao modo <strong>de</strong><br />

dialogar.


6.1.1.1 Diálogos <strong>em</strong> ca<strong>de</strong>ia __ a corag<strong>em</strong> <strong>da</strong> renúncia<br />

“Hombre <strong>de</strong> entendimiento”, esse é Dom Quixote. Sancho o admirava porque<br />

tinha <strong>de</strong> tudo o saber, era um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong>mônio.<br />

Precisaria <strong>de</strong>sapren<strong>de</strong>r todo o aprendido? Talvez precisasse; o incômodo, ele<br />

mesmo o sentia. Estava encharcado <strong>de</strong> um aprendizado que já lhe pesava.<br />

Carregava tanto conhecimento e, <strong>em</strong> alguns momentos lhe ocorria não ter nenhum<br />

do qual pu<strong>de</strong>sse dispor numa situação presente <strong>em</strong> que só o momentâneo po<strong>de</strong>ria<br />

<strong>da</strong>r conta.<br />

Para Dom Quixote tudo começa a ficar claro: por mais que seu peito seja um<br />

arquivo on<strong>de</strong> estão registrados todos os conhecimentos, <strong>de</strong>sarquivá-los não é tarefa<br />

simples, é preciso esforço para revolver e <strong>da</strong>li retirar o mais a<strong>de</strong>quado. S<strong>em</strong> contar<br />

com a constatação, <strong>de</strong>pois do muito esforço, <strong>de</strong> que o consi<strong>de</strong>rado mais a<strong>de</strong>quado<br />

não atendia a uma situação nova que se estava mostrando. Começa então a ce<strong>de</strong>r.<br />

De fato, <strong>de</strong> tão cheio, na<strong>da</strong> mais cabia. Era urgente renunciar, Cura só é possível<br />

com renúncia.<br />

Renunciar, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tanto trabalho? Só Deus sabe os mecanismos<br />

complicados a que teve <strong>de</strong> submeter sua mente racional, com o <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong><br />

acumular tanto conhecimento. E o medo que sentia. Não sabia com a mesma<br />

certeza <strong>de</strong> Emanuel Carneiro Leão, mas <strong>de</strong>sconfiava <strong>de</strong> que “todo questionamento<br />

exige transformação [...] crescer dói na alma e transformar-se traz consigo um<br />

sofrimento essencial” 228 .<br />

Vejamos se Dom Quixote vai ou não aceitar o <strong>de</strong>safio <strong>da</strong> renúncia.<br />

228 LEÃO, E. C. Hei<strong>de</strong>gger e a ética. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, n.157, p.73, abr-jun, 2004


1 o DIÁLOGO:<br />

Dom Quixote faz uma pregação sobre o amor do ponto <strong>de</strong> vista do código <strong>de</strong><br />

cavalaria. O t<strong>em</strong>a é a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> entre todos os homens: “se pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>cir lo mesmo<br />

que <strong>de</strong>l amor se dice: que to<strong>da</strong>s las cosas iguala” 229 . Com isso quer que todos<br />

comam juntos, com o intuito <strong>de</strong> exercitar e com<strong>pro</strong>var a sua teoria <strong>da</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Depois <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as justificativas <strong>de</strong> Dom Quixote, Sancho reage <strong>em</strong> oposição<br />

ao ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> seu amo, e expõe o seu: que acredita ser melhor comer<br />

sozinho justificando <strong>de</strong> várias maneiras: “tan bien y mejor me lo comería en pie y a<br />

mis solas como sentado a par <strong>de</strong> un <strong>em</strong>perador. Y aun, si va a <strong>de</strong>cir ver<strong>da</strong>d, mucho<br />

mejor me sabe lo que como en mi rincón, sin melindres ni respetos, aunque sea pan<br />

y cebolla”. Sancho prefere a solidão porque não precisa “mascar <strong>de</strong>spacio, beber<br />

poco, limpiarme a menudo, no estornu<strong>da</strong>r ni toser […] ni hacer otras cosas que la<br />

sole<strong>da</strong>d y la libertad traen consigo”. Por isso, finaliza suas razões e encerra dizendo<br />

que tudo aquilo que lhe ofereceu Dom Quixote, ele “las renuncio para <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aquí al<br />

fin <strong>de</strong>l mundo” 230 .<br />

Ain<strong>da</strong> assim, com a justificativa <strong>de</strong> Sancho, Dom Quixote a ignora; exerce<br />

sobre ele seu po<strong>de</strong>r autoritário, dispondo do que lhe parece correto, e assim reage:<br />

“Con todo eso, te has <strong>de</strong> sentar, porque a quien se humilla, Dios le ensalza […] Y,<br />

asiéndole por el brazo, le forzó a que junto dél se sentase” 231 .<br />

2 o DIÁLOGO:<br />

229 Po<strong>de</strong>-se dizer o mesmo que do amor se diz: que a to<strong>da</strong>s as coisas iguala (1, XI, p.59)<br />

230 Tão b<strong>em</strong> e melhor comeria <strong>em</strong> pé e sozinho quanto sentado ao lado <strong>de</strong> um imperador. E ain<strong>da</strong>, para dizer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, muito<br />

melhor aprecio o que como <strong>em</strong> meu canto, s<strong>em</strong> melindres n<strong>em</strong> respeitos, mesmo que seja pão com cebola [Sancho...]<br />

mastigar <strong>de</strong>vagar, beber pouco, limpar com frequência, não espirrar n<strong>em</strong> tossir […] n<strong>em</strong> fazer outras coisas que a solidão es a<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> traz<strong>em</strong> consigo [Por isso...] renuncio a elas <strong>da</strong>qui para o fim do mundo (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

231 Com tudo isso, <strong>de</strong>verás sentar, porque a qu<strong>em</strong> se humilha, Deus elogia […] E, agarrando-o pelo braço, forçou-lhe que junto<br />

<strong>de</strong>le se sentasse (1, XI, p.60)


De fato, há uma gran<strong>de</strong> recorrência na cobrança <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>de</strong> que se<br />

reconheça que Dulcinea é a mais bela <strong>da</strong>ma e que os seus inimigos <strong>de</strong>rrotados<br />

sigam para Toboso para prestar homenag<strong>em</strong> a ela.<br />

No capítulo VIII, sua exigência <strong>de</strong> prestar reverência a Dulcinea obriga que<br />

um cortejo mu<strong>de</strong> o seu percurso: “que volváis al Toboso, y que <strong>de</strong> mi parte os<br />

presentéis ante esta señora y le digáis lo que por vuestra libertad he fecho” 232 .<br />

Seu radicalismo é tal que acaba lhe valendo um <strong>de</strong>safio para uma luta, por<br />

parte “<strong>de</strong>l vizcaíno” que por ali passava e ficara indignado com a prepotência do<br />

cavaleiro. Dom Quixote aceita a peleja e “y arrojando la lanza en el suelo, sacó su<br />

espa<strong>da</strong> y <strong>em</strong>brazó su ro<strong>de</strong>la, y arr<strong>em</strong>etió al vizcaíno con <strong>de</strong>terminación <strong>de</strong> quitarle la<br />

vi<strong>da</strong>” 233 .<br />

A tarefa <strong>de</strong> porta-voz <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom Quixote <strong>de</strong> tal modo a acolhe que<br />

chega ao extr<strong>em</strong>o <strong>da</strong> luta física, com ameaça <strong>de</strong> morte, caso não seja acata<strong>da</strong>.<br />

3 o DIÁLOGO:<br />

Um <strong>de</strong> “los cabreros”, vendo a orelha feri<strong>da</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote, “le dijo que [...]<br />

él pondría r<strong>em</strong>edio con que fácilmente se sanase” 234 .<br />

Dom Quixote muito confiava no bálsamo <strong>de</strong> Fierabrás, não tendo admitido<br />

jamais que essa fórmula her<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong> cavalaria pu<strong>de</strong>sse falhar.<br />

Mesmo <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> <strong>de</strong>sastrosa experiência <strong>em</strong> que a beberag<strong>em</strong> complica<strong>da</strong><br />

no “fazer”, seguindo os mesmos passos do <strong>pro</strong>cesso científico, lhe causou os<br />

seguintes <strong>da</strong>nos: “comenzó a vomitar <strong>de</strong> manera que no le quedó cosa en el<br />

estómago”. Sentiu “ansias [...] <strong>de</strong>l vómito”, “le dio un sudor copiosísimo” e “quedóse<br />

232<br />

Voltai a Toboso, e que <strong>de</strong> minha parte vos apresenteis diante <strong>de</strong>sta senhora e lhe digais o que por vossa liber<strong>da</strong><strong>de</strong> fiz<br />

(1, VIII, p.50)<br />

233<br />

E atirando a lança no chão, puxou a espa<strong>da</strong> e segurou seu escudo, e avançou sobre o biscainho com <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong><br />

tirar-lhe a vi<strong>da</strong> (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

234<br />

Disse-lhe que [...] ele poria r<strong>em</strong>édio com o qual facilmente sararia (1, XI, p.63)


dormido más <strong>de</strong> tres horas” 235 ; mesmo tendo sido as conseqüências as mesmas <strong>em</strong><br />

Sancho, ain<strong>da</strong> assim, <strong>da</strong>ndo to<strong>da</strong>s as justificativas necessárias que assegurass<strong>em</strong><br />

sua vali<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom Quixote firmou “la seguri<strong>da</strong>d y confianza que llevaba en su<br />

bálsamo” 236 , ain<strong>da</strong> assim tinha o famoso bálsamo como insubstituível.<br />

Um dia, porém, com a orelha feri<strong>da</strong> e s<strong>em</strong> dispor do r<strong>em</strong>édio oficial <strong>da</strong><br />

cavalaria, um hom<strong>em</strong> simples, um “cabrero” s<strong>em</strong> o preparo <strong>de</strong> Dom Quixote, t<strong>em</strong><br />

uma receita perfeita e eficaz: “y tomando algunas hojas <strong>de</strong> romero, <strong>de</strong> mucho que<br />

por allí había, las mascó y las mezcló con un poco <strong>de</strong> sal, y, aplicándoselas a la<br />

oreja, se la vendó muy bien, asegurándose que no había menester otra medicina; y<br />

así fue la ver<strong>da</strong>d” 237 .<br />

Em quatro linhas, muito é trazido para a zona <strong>de</strong> respostas.<br />

Embora Dom Quixote tivesse o r<strong>em</strong>édio para <strong>cura</strong>r suas feri<strong>da</strong>s, é no<br />

cotidiano que outras possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m se mostrar plausíveis.<br />

Uma <strong>de</strong>las é que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é o que se mostra e não o que num <strong>da</strong>do<br />

momento ficara com<strong>pro</strong>vado como “claro e distinto”, assegurando seu lugar <strong>de</strong> única<br />

eterna e universal ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: o ser se dá na espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo que já existe.<br />

O cui<strong>da</strong>do <strong>da</strong> folha <strong>de</strong> “romero” ser encontra<strong>da</strong> com fartura __ “<strong>de</strong> mucho que por allí<br />

había” 238 __ mostra também que o bálsamo <strong>de</strong> Fierrabras não é o único, que as<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s são infinitas, a ca<strong>da</strong> passo as coisas pulsam <strong>em</strong> mistério para ser<strong>em</strong><br />

revisita<strong>da</strong>s.<br />

Com isso, põ<strong>em</strong>-se por terra os esqu<strong>em</strong>as sofisticados para <strong>da</strong>r reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>à</strong>s<br />

coisas. Não é preciso abstrações que lanc<strong>em</strong> mão do mundo <strong>da</strong>s idéias ou<br />

235<br />

Começou a vomitar <strong>de</strong> maneira que não lhe ficou na<strong>da</strong> no estômago [Sentiu] ânsias <strong>de</strong> vômito, <strong>de</strong>u-lhe um suor<br />

copiosíssimo [e] ficou adormecido mais <strong>de</strong> três horas (1, XVII, p.89)<br />

236<br />

A segurança e confiança que tinha no bálsamo (1, XVII, p.90)<br />

237<br />

E pegando algumas folhas <strong>de</strong> alecrim, do muito que por ali havia, as masticou e as misturou com um pouco sal, e<br />

aplicando-as <strong>à</strong> orelha, cobriu-a muito b<strong>em</strong>, assegurando-se que não havia necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outra medicina; e assim foi a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

(1, XI, p.63)<br />

238<br />

De muito que por ali havia (Ibi<strong>de</strong>m)


arranqu<strong>em</strong> <strong>da</strong> mente racional abstrações que logo que <strong>de</strong>scobertas serão<br />

arquiva<strong>da</strong>s para novas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> uso.<br />

4 o DIÁLOGO:<br />

Pedro, “un cabrero”, rapaz s<strong>em</strong> estudos, mas cheio <strong>de</strong> conhecimento, sabia<br />

to<strong>da</strong> história que naquele momento aguçava a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> todos.<br />

E, pela curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, característica <strong>de</strong> todos os que pela obra circulam,<br />

naquele exato momento, seu conhecimento assumia lugar superior ao <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote. Era tudo o que o cavaleiro precisava e mais queria – saber com <strong>de</strong>talhes a<br />

história <strong>de</strong> Grisóstomo, o rico pastor que se <strong>de</strong>ixara morrer por amor. Sente-se essa<br />

submissão quando “don Quijote rogó a Pedro le dijese qué muerto era aquél y qué<br />

pastora era aquélla” 239 , referindo-se ao casal Marcela e Grisóstomo.<br />

Apesar <strong>de</strong>sse quadro, Dom Quixote não se abstém <strong>da</strong> sua condição <strong>de</strong><br />

filósofo. S<strong>em</strong> <strong>de</strong>sarmar-se entra no diálogo como senhor absoluto, o dotado <strong>de</strong> todo<br />

conhecimento. E, a ca<strong>da</strong> equívoco <strong>pro</strong>nunciado por Pedro, se vê obrigado a corrigi-<br />

lo: “Eclipse se llama, amigo, que no cris, el escurecerse esos dos luminares mayores<br />

– dijo don Quijote” 240 . Ou, <strong>em</strong> outro momento, quando Pedro explicava a<br />

interferência <strong>de</strong> Grisóstomo, orientando os melhores períodos para o cultivo do trigo,<br />

<strong>da</strong> ceva<strong>da</strong> ou do grão <strong>de</strong> bico, que isso era o mais importante <strong>da</strong> história, Dom<br />

Quixote não per<strong>de</strong> a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>r uma informação <strong>de</strong>snecessária ao seu<br />

an<strong>da</strong>mento, mas, para ele, primordial no cumprimento ético <strong>de</strong> seu “<strong>de</strong>ver ser”.<br />

Quis resumir tudo o que Pedro acabara <strong>de</strong> explicar, num só conceito:<br />

“Astrologia”. “Esa ciencia se llama Astrología” 241 . Até aí, Dom Quixote não está<br />

239 Dom Quixote rogou a Pedro que lhe dissesse que morto era aquele e que pastora era aquela (1, XII, p.64)<br />

240 Eclipse se chama, amigo, que não cris*, o escurecimento <strong>de</strong>ssos dois luminares maiores – disse Dom Quixote (Ibi<strong>de</strong>m) __<br />

*uma forma erra<strong>da</strong> <strong>de</strong> falar “eclipse” (ex: “vi um clips <strong>da</strong> lua”).<br />

241 Essa ciência chama-se Astrologia (Ibi<strong>de</strong>m)


acessível ao diálogo. Embora na aparência estejam conversando duas pessoas, não<br />

é isso o que o caracteriza, no entanto.<br />

Até que, a menção do termo “sarna” significando, no contexto, algo que t<strong>em</strong><br />

longa duração <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, faz Dom Quixote interferir mais uma vez: “Decid Sarra –<br />

replicó don Quijote, no pudiendo sufrir el trocar <strong>de</strong> los vocablos <strong>de</strong>l cabrero”. “No<br />

habréis oído s<strong>em</strong>ejante cosa en todos los días <strong>de</strong> vuestra vi<strong>da</strong>, aunque viváis más<br />

años que sarna.” 242 Nesse momento, Pedro, já irritado, lhe respon<strong>de</strong>: “y si es, señor,<br />

que me habéis <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r zaheriendo a ca<strong>da</strong> paso los vocablos, no acabar<strong>em</strong>os en un<br />

año.” 243 Com pedido <strong>de</strong> perdão: “Perdonad, amigo” e com tanta <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za <strong>em</strong>buti<strong>da</strong><br />

no “amigo”, “ __ dijo don Quijote __ ; que por haber tanta diferencia <strong>de</strong> sarna a Sarra<br />

os lo dije; pero vos respondisteis muy bien, porque vive más sarna que Sarra” 244 .<br />

Não satisfeito com o pedido amistoso <strong>de</strong> perdão, Dom Quixote se expõe ao<br />

limite máximo, quando renuncia <strong>à</strong> sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> para acatar a <strong>de</strong> Pedro: “vive más<br />

sarna que Sarra”. E, como um último pedido <strong>de</strong> paz, diz: “<strong>pro</strong>seguid vuestra historia,<br />

que no os replicaré más en na<strong>da</strong>” 245 .<br />

5 o DIÁLOGO:<br />

No mesmo capítulo <strong>em</strong> que r<strong>em</strong>ata a situação <strong>de</strong> maneira violenta sobre<br />

Sancho sentar ou não <strong>à</strong> mesa para comer<strong>em</strong> juntos, quando estão com os cabreiros,<br />

do mesmo modo, logo a seguir, Sancho exerce seu po<strong>de</strong>r sobre Dom Quixote e este<br />

assente.<br />

242 Dizei Sara – replicou Dom Quixote, não po<strong>de</strong>ndo suportar a troca dos vocábulos do cabreiro (...) Não havereis ouvido<br />

s<strong>em</strong>elhante coisa <strong>em</strong> todos os dias <strong>de</strong> vossa vi<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> que vivais mais anos que sarna (1, XII, p.65)<br />

243 E se é, senhor, que me haveis <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r censurando a ca<strong>da</strong> passo os vocábulos, não acabar<strong>em</strong>os <strong>em</strong> um ano (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

244 Perdoai-me, amigo [e com (...) “amigo”] disse Dom Quixote – que por não haver tanta diferença <strong>de</strong> sarna a Sara vós o<br />

dissestes; mas me respon<strong>de</strong>stes muito b<strong>em</strong>, porque vive mais sarna que Sara (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

245 Prossegui vossa história que não replicarei mais <strong>em</strong> na<strong>da</strong> (Ibi<strong>de</strong>m)


O encontro <strong>de</strong> Dom Quixote com “los cabreros” termina amistosamente com<br />

música: “bien podrás hacernos placer <strong>de</strong> cantar un poco” 246 , incentivou o<br />

companheiro, e Antonio: “sin hacerse más <strong>de</strong> rogar [...] y t<strong>em</strong>plando su rabel [...]<br />

comenzó a cantar” 247 . E assim, entraram pela noite, até que, diante <strong>da</strong> finalização do<br />

músico, Dom Quixote rogou-lhe que cantasse mais; “no lo consintió Sancho Panza,<br />

porque estaba más para dormir que para oír canciones” 248 . E por isso, assim, <strong>da</strong>ndo<br />

or<strong>de</strong>ns:<br />

Bien pue<strong>de</strong> vuestra merced acomo<strong>da</strong>rse <strong>de</strong>s<strong>de</strong> luego adon<strong>de</strong> ha <strong>de</strong> posar<br />

esta noche, que el trabajo que estos buenos hombres tienen todo día no<br />

permite que pasen las noches cantando [...]. 249<br />

A tudo isso, recebeu Sancho a surpreen<strong>de</strong>nte resposta <strong>de</strong> Dom Quixote: “ya<br />

te entiendo”; “no lo niego” 250 e <strong>de</strong>svia o assunto.<br />

A sabedoria prática <strong>de</strong> Sancho supera, nessa situação, o conhecimento <strong>de</strong><br />

Dom Quixote que, a seu amo, acaba sucumbindo. Aqui é Sancho qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a última<br />

palavra.<br />

Muitos são os ex<strong>em</strong>plos <strong>em</strong> que esse <strong>pro</strong>cesso dialógico se mostra, talvez<br />

n<strong>em</strong> tenhamos selecionado os melhores. O cui<strong>da</strong>do que tiv<strong>em</strong>os foi o <strong>de</strong>, tomando<br />

como referência o par dialógico Quixote-Sancho, começarmos e finalizarmos com a<br />

radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> que caracteriza o primeiro e o último: Dom Quixote se impondo com a<br />

última palavra e Sancho atuando igualmente no outro extr<strong>em</strong>o. Entretanto<br />

finalizar<strong>em</strong>os com menção a uma constatação já <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> e nomea<strong>da</strong> no espaço dos<br />

estudos cervantinos. Nos referimos ao par fartamente conhecido como<br />

246 B<strong>em</strong> po<strong>de</strong>rás fazer-nos o prazer <strong>de</strong> cantar um pouco (1, XI, p.61)<br />

247 S<strong>em</strong> se fazer rogar [...] e afinando sua rabeca [...] começou a cantar (1, XI, p.61-62)<br />

248 Não o permitiu Sancho Panza, porque estava mais para dormir que para ouvir canções (1, XI, p.63)<br />

249 B<strong>em</strong> po<strong>de</strong> vossa mercê acomo<strong>da</strong>r-se logo on<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve repousar esta noite, que o trabalho que estes bons homens têm todo<br />

dia não permite que pass<strong>em</strong> as noites cantando (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

250 Já te entendo, não o nego (Ibi<strong>de</strong>m)


“sanchificação <strong>de</strong> Dom Quixote” e “quixotização <strong>de</strong> Sancho”. O chegar a assumir<br />

essa dimensão é a <strong>pro</strong>va <strong>de</strong> que a rigi<strong>de</strong>z ce<strong>de</strong> espaço <strong>à</strong> flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> na relação<br />

dialógica que Dom Quixote estabelece com o mundo.<br />

6.1.1.2 Enfim, uma aprendizag<strong>em</strong><br />

A partir do <strong>pro</strong>cesso que se evi<strong>de</strong>nciou nos ex<strong>em</strong>plos acima, é possível ver<br />

quanto <strong>da</strong> diferença do outro pô<strong>de</strong>, primeiramente, mostrar a Dom Quixote que,<br />

mesmo sendo a distância “entre” um e outro maior, ela é necessária, pois exige que<br />

a <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> seja resgata<strong>da</strong> <strong>em</strong> si próprio, no autodiálogo. Resgata<strong>da</strong> assim a<br />

<strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “nós” mesmos, essa mesma <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> reverterá <strong>em</strong> <strong>pro</strong>l do outro.<br />

Em segundo lugar, a experiência dos diálogos também <strong>de</strong>ixou claro que o diálogo é<br />

o próprio “entre”, e que o outro po<strong>de</strong> acionar o movimento para que <strong>em</strong> nós ressoe,<br />

naquele espaço que é o espaço do que não-somos, algo que, ultrapassando os<br />

limites do que eu sou, se mostra como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com isso, juntos e muito b<strong>em</strong><br />

conjugados e sintonizados, o diálogo com-o-outro mais o autodiálogo são, na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a gran<strong>de</strong> mostra <strong>de</strong> ser o hom<strong>em</strong> pura possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Desse modo, é<br />

possível concluir ter <strong>em</strong> Dom Quixote o aprendizado cedido lugar <strong>à</strong> aprendizag<strong>em</strong>.<br />

6.1.1.3 Errância não re<strong>pro</strong>va


Quanta novi<strong>da</strong><strong>de</strong>! Dom Quixote só podia entrar <strong>em</strong> conflito com tantas<br />

avaliações, comentários e <strong>de</strong>scobertas. Pois se s<strong>em</strong>pre acreditara <strong>em</strong> seu saber<br />

acumulado __ saber que lhe conferia todos os po<strong>de</strong>res necessários <strong>à</strong> sua ação no<br />

viver, garantindo-lhe a confiança e firmeza <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> passo no solo <strong>da</strong> terra __ ; se<br />

s<strong>em</strong>pre soubera e <strong>em</strong> tudo confiara; como agora, <strong>de</strong> um momento para outro,<br />

inespera<strong>da</strong>mente, vêm, não se sabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, colocar dúvi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> sua cabeça?<br />

O Renascimento garantiu-lhe, passado o impacto <strong>da</strong> <strong>de</strong>scentralização divina,<br />

a soberania do centro; <strong>de</strong>u-lhe tanta confiança <strong>em</strong> seu po<strong>de</strong>r, a ponto <strong>de</strong> acreditar,<br />

<strong>de</strong> si, tudo saber: “yo sé quien soy”. E Nietzsche lhe revela agora que sequer <strong>de</strong> seu<br />

intestino e <strong>de</strong> sua circulação o hom<strong>em</strong> sabe!. 251 E diz-lhe ain<strong>da</strong> mais: que além<br />

<strong>de</strong>sse não-saber, o hom<strong>em</strong> vaga pelo mundo, a isso, completamente indiferente.<br />

Seria possível a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que lhe caía <strong>em</strong> cima; po<strong>de</strong>ria haver algum não-<br />

saber que Dom Quixote não soubesse? Mesmo transtornado pela dúvi<strong>da</strong>, Dom<br />

Quixote reluta, e insiste. B<strong>em</strong> po<strong>de</strong>ria a<strong>pro</strong>veitá-la para <strong>da</strong>r uma guina<strong>da</strong><br />

consi<strong>de</strong>rável <strong>em</strong> seu modo <strong>de</strong> ser; mas prefere inscrever-se num modo <strong>de</strong> ser mais<br />

confortável – alista-se na linha <strong>de</strong> frente <strong>da</strong> “errância”. Abramos um parêntese para<br />

explicar o cui<strong>da</strong>do que exige o tratar o conceito <strong>de</strong> errância. É um equívoco acreditar<br />

no confortável <strong>da</strong> errância. Hei<strong>de</strong>gger já o tinha liberado, mas todos ain<strong>da</strong> o<br />

confundiam com erro que <strong>de</strong>ve ser evitado. Por isso, ain<strong>da</strong> confuso, Dom Quixote<br />

quer saber como evitar o erro __ se ain<strong>da</strong> não sabia, nunca chegaria a saber tudo. A<br />

abertura que se instituiu como essência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> só é possível graças ao<br />

exercício, por parte do ser, <strong>de</strong> sua própria anti-essência: a errância. É errando, no<br />

sentido <strong>de</strong> um lançar-se errante, rumo ao <strong>de</strong>sconhecido, que se atinge a abertura do<br />

251 C.f. NIETZSCHE, F. Sobre a mentira e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> no sentido extra-moral. São Paulo: Abril, 1979, p.53-60 (Coleção Os<br />

pensadores).


mundo, ou <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou o sentido do ser <strong>em</strong> seu ser mais próprio; é o que lhe<br />

respon<strong>de</strong>ria Hei<strong>de</strong>gger.<br />

E tudo recomeça: o ser insiste; Dom Quixote reluta; e, nesse relutar,<br />

sobressai-se um relutar a que Hei<strong>de</strong>gger dá o nome <strong>de</strong> dissimulação. Belo<br />

dissimulador se torna Dom Quixote!<br />

Era <strong>de</strong> se esperar que não pu<strong>de</strong>sse acatar tão facilmente ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que n<strong>em</strong><br />

ele mesmo sabia se nelas po<strong>de</strong>ria confiar. Precisava insistir e perguntar. Nessa<br />

dinâmica <strong>de</strong> pergunta-resposta, <strong>de</strong> ser e não-ser, <strong>de</strong> saber e não-saber, entravam<br />

aquelas oposições com as quais se <strong>de</strong>frontara, assim que lhe foram apresenta<strong>da</strong>s<br />

as categorias <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Consi<strong>de</strong>rando a “agitação inquieta” 252 <strong>de</strong> que nos fala Hei<strong>de</strong>gger, <strong>em</strong> Sobre a<br />

essência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, gostaríamos <strong>de</strong> abrir espaço <strong>de</strong> reflexão para algumas cenas<br />

do romance, que parec<strong>em</strong> transitar nesse âmbito.<br />

Hei<strong>de</strong>gger alerta para a tendência simultânea <strong>da</strong> pre-sença <strong>de</strong> dirigir-se ao<br />

que é corrente e <strong>de</strong>sonerar-se <strong>de</strong> sua ek-sistência, 253 afastando-se do mistério.<br />

Esta maneira <strong>de</strong> se voltar e se afastar resulta, no fundo, <strong>da</strong> agitação<br />

inquieta que é característica do ser-aí. Este vaivém do hom<strong>em</strong>, no qual ele<br />

se afasta do mistério e se dirige para a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> corrente, corre <strong>de</strong> um<br />

objeto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana para outro, <strong>de</strong>sviando-se do mistério, é o errar. 254<br />

Reapresentamos um mesmo fragmento do início do texto, por consi<strong>de</strong>rá-lo<br />

perfeitamente ajustado a esse novo contexto. A história <strong>de</strong> Dom Quixote, por sua<br />

marca característica – a an<strong>da</strong>nte cavalaria, guar<strong>da</strong> similari<strong>da</strong><strong>de</strong> com a errância. Com<br />

a cavalaria an<strong>da</strong>nte contribu<strong>em</strong>, para o <strong>de</strong>slocar espacial, não só as quatro patas <strong>de</strong><br />

um cavalo, como os dois pés do cavaleiro, o que reforça essa perspectiva. S<strong>em</strong><br />

252 HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Livraria Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s.1970, 42p.<br />

253 L<strong>em</strong>bramos que “ek” significa o “lançar-se <strong>em</strong> direção ao ser”. Só nesse lançar-se, o hom<strong>em</strong> existe.<br />

254 HEIDEGGER, loc. cit.


contar com a mu<strong>da</strong>nça radical que se <strong>pro</strong>cessa no romance: a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong> um estado<br />

<strong>de</strong> repouso <strong>em</strong> que vivia um fi<strong>da</strong>lgo – “los ratos que estaba ocioso, que eran los más<br />

<strong>de</strong>l año” 255 , para um movimento dinâmico: a opção <strong>de</strong> abandonar a leitura silenciosa<br />

estática, e “irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y<br />

a ejercitarse en todo aquello” 256 . Tudo sugere uma “agitação inquieta”, um “vaivém”,<br />

típicos <strong>da</strong> errância.<br />

Se Dom Quixote __ não apenas pela s<strong>em</strong>elhança estrutural do errar __ erra, in-<br />

sistindo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras páginas, <strong>em</strong> se manter vítima <strong>da</strong> dissimulação do ente<br />

<strong>em</strong> sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e, por isso, ficando preso ao ente particular: o cavaleiro, essa<br />

mesma errância po<strong>de</strong>rá abrir-lhe a totali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Se existir é errar, quer lançar-se mais<br />

errante do que a ousadia <strong>de</strong> Dom Quixote, um lançar-se s<strong>em</strong> saber aon<strong>de</strong> vai <strong>da</strong>r?<br />

A errância <strong>de</strong> Dom Quixote é marcante e evi<strong>de</strong>nte. Sua própria condição <strong>de</strong><br />

filósofo a impõe. Por não ter sido aprendiz <strong>de</strong> uma didática aberta ao “seriado<br />

questionante”, Dom Quixote a <strong>de</strong>sconhece e também não sabe como reativá-la.<br />

Reativá-la, porque esta já estivera na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Oci<strong>de</strong>nte; mas agora está<br />

quase esqueci<strong>da</strong>.<br />

A travessia <strong>de</strong> Dom Quixote é errante. Des<strong>de</strong> sua primeira saí<strong>da</strong> sorrateira e<br />

silenciosa pelo portão dos fundos do curral, até a <strong>de</strong>rrota para o cavaleiro <strong>de</strong> “La<br />

Blanca Luna” que o obriga a retornar <strong>à</strong> casa para finalmente morrer, ele in-siste no<br />

ser ente-cavaleiro, um ente particular que in-siste experimentar a vi<strong>da</strong> cavaleiresca,<br />

afastado do mistério <strong>da</strong>s coisas, dirigindo-se “para a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> corrente”, correndo<br />

“<strong>de</strong> um objeto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana para outro” 257 .<br />

Quando Hei<strong>de</strong>gger apresenta uma mo<strong>de</strong>sta lista <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> errar, ficamos<br />

tentados a localizá-los na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote. Há uma gama imensa <strong>de</strong> erros,<br />

255 Os momentos que ficava ocioso, que eram os mais do ano. (1, I, p.18)<br />

256 Ir-se pelo mundo com suas armas e cavalo a <strong>pro</strong><strong>cura</strong>r aventuras e a praticar tudo aquilo. (1, I, p.19)<br />

257 HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s.1970, p.42


<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o engano mais comum, a inadvertência, o erro <strong>de</strong> cálculo até o mais radical:<br />

“o per<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> nossas atitu<strong>de</strong>s e nossas <strong>de</strong>cisões essenciais” 258 . É possível que um<br />

rastreamento criterioso tornasse viável a tentação, mas por ora <strong>de</strong>ix<strong>em</strong>os assim.<br />

O hom<strong>em</strong> erra porque, no <strong>de</strong>svelamento do ente particular, ele esquece que o<br />

ente total (velado) é um dissimulador. Então esquece e se engana s<strong>em</strong>pre uma vez<br />

mais. Entretanto, Hei<strong>de</strong>gger também afirma ser a marcha errante, “componente<br />

essencial <strong>da</strong> abertura do ser-aí” 259 . Isso significa que, estando na errância, o hom<strong>em</strong><br />

está <strong>de</strong>sgarrado, único modo possível <strong>de</strong> livrar-se do <strong>de</strong>sgarramento, ou melhor, <strong>de</strong><br />

não se <strong>de</strong>ixar levar pelo <strong>de</strong>sgarramento. Quando Dom Quixote, no último capítulo<br />

confessa: “vámonos poco a poco, pues ya en los nidos <strong>de</strong> antaño no hay pájaros<br />

hogaño: yo fui loco, y ya soy cuerdo; fui don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, y soy agora,<br />

como he dicho, Alonso Quijano el Bueno” 260 , e compara seu estado no passado com<br />

o atual, vê-se, nesses pares, que a integração se restabelece. Dom Quixote <strong>pro</strong>va,<br />

com isso, não ter sucumbido, porque o hom<strong>em</strong> não sucumbe no <strong>de</strong>sgarramento se é<br />

capaz <strong>de</strong> <strong>pro</strong>var a errância enquanto tal e não <strong>de</strong>sconhecer o mistério do ser-aí 261 .<br />

Não foi simples, gratuito, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong> esforço o escapar do <strong>de</strong>sgarramento.<br />

Espontâneo foi, porque, ao colocar seu <strong>pro</strong>jeto na vi<strong>da</strong>, mesmo não sendo esse o<br />

seu plano, mesmo oferecendo resistência ao seu mundo real, Dom Quixote, também<br />

“por no po<strong>de</strong>r menos”, paulatinamente, acaba ce<strong>de</strong>ndo, acaba maleável <strong>à</strong> nova e<br />

necessária didática <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>. Isso acontece, do mesmo modo que também<br />

previra Hei<strong>de</strong>gger, quando, no início <strong>de</strong>ste capítulo, conjugamos os dois níveis <strong>de</strong><br />

significação <strong>de</strong> “passos”.<br />

258<br />

HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s.1970, p.43<br />

259<br />

Ibi<strong>de</strong>m, p.43-44<br />

260<br />

Vamo-nos pouco a pouco, pois já nos ninhos <strong>de</strong> antes não há pássaros agora: eu fui louco, e já sou sensato; fui Dom<br />

Quixote <strong>de</strong> La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano o Bom (2, LXXIV, p.699)<br />

261<br />

C.f. HEIDEGGER, op.cit., p.44


Do mesmo modo que a euforia motivadora “<strong>da</strong> agitação inquieta” e do<br />

“vaivém” contribuíram para o <strong>de</strong>sgarramento <strong>de</strong> Dom Quixote, levando-o a, <strong>de</strong> luta<br />

<strong>em</strong> luta, correr <strong>de</strong> lá pra cá, nos caminhos <strong>de</strong> la Mancha, <strong>pro</strong><strong>cura</strong>ndo topar, com os<br />

olhos ávidos, com um “tuerto y agravio”; do mesmo modo que, vendo-os iguaizinhos,<br />

<strong>de</strong>ntro dos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> cavalaria, <strong>pro</strong><strong>cura</strong> torná-los reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, para sobre eles lançar-<br />

se com ímpeto <strong>de</strong> cavaleiro, ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que, se não lhe <strong>da</strong>va <strong>de</strong>scanso, por outro<br />

lado, também o afastava do mistério; <strong>de</strong>sse mesmo modo, os mesmos “passos”,<br />

vistos sob outra perspectiva __ “a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira do último passo <strong>de</strong> uma longa<br />

seqüência <strong>de</strong> passos questionantes” 262__ , foram os que permitiram que Dom Quixote<br />

não sucumbisse <strong>à</strong> errância. Isso porque, “pelo <strong>de</strong>sgarramento a errância contribui<br />

também para fazer nascer essa possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> tirar <strong>da</strong> ek-<br />

sistência e que consiste <strong>em</strong> não se <strong>de</strong>ixar levar pelo <strong>de</strong>sgarramento” 263 .<br />

Desse modo, finalmente, Dom Quixote <strong>pro</strong>vou que o hom<strong>em</strong> não sucumbe no<br />

<strong>de</strong>sgarramento se é capaz <strong>de</strong> <strong>pro</strong>var a errância enquanto tal e não <strong>de</strong>sconhecer o<br />

mistério do ser-aí 264 .<br />

6.1.2 A <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong> Dom Quixote<br />

No estar <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura, n<strong>em</strong> tudo são flores, e a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> humana<br />

acaba sucumbindo s<strong>em</strong>pre que algo diferente, anunciando novos ares, ameaça<br />

262<br />

HEIDEGGER, Martin. O originário <strong>da</strong> Obra <strong>de</strong> Arte. Trad. Manuel Antônio <strong>de</strong> Castro e I<strong>da</strong>lina Azevedo <strong>da</strong> Silva, parágrafo<br />

158 (mimeo).<br />

263<br />

I<strong>de</strong>m. Sobre a essência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s.1970, p.44<br />

264 C.f. I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m.


apresentar-se. Hei<strong>de</strong>gger b<strong>em</strong> sabia, e já o vaticinara: “A pre-sença, <strong>de</strong> início e na<br />

maioria <strong>da</strong>s vezes, é um ser <strong>de</strong>caído” 265 .<br />

Estamos falando dos integrantes <strong>da</strong> Cura que, <strong>em</strong>bora pareçam atuar contra,<br />

<strong>de</strong>la são partícipes.<br />

Na corri<strong>da</strong> <strong>em</strong> direção <strong>à</strong> Cura, “na maior parte <strong>da</strong>s vezes”, a pre-sença<br />

esqueci<strong>da</strong> do ser, <strong>de</strong>ixa-o escapar. Esse <strong>de</strong>ixar escapar o ser coinci<strong>de</strong><br />

irr<strong>em</strong>ediavelmente com algum tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência.<br />

No caso <strong>de</strong> Dom Quixote, o que para muitos <strong>de</strong> nós é a <strong>de</strong>rroca<strong>da</strong> do<br />

cavaleiro, precisa ser reinterpretado sob o olhar <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger: quanto mais Dom<br />

Quixote <strong>de</strong>cai, mais se liberta do impróprio; mais suas certezas se <strong>de</strong>svanec<strong>em</strong>. É aí<br />

então que, apesar do sofrimento que lhe custou dias na cama, essa experiência<br />

radical é esvaziamento e é a maior gran<strong>de</strong>za do hom<strong>em</strong>.<br />

6.1.2.1 Silêncio, nesse falatório não há Cura que resista<br />

Esclareçamos: não se trata <strong>de</strong> ler falatório <strong>de</strong> modo pejorativo. Hei<strong>de</strong>gger o<br />

consi<strong>de</strong>ra positivo por ser um modo-<strong>de</strong>-ser on<strong>de</strong> a compreensão e a interpretação<br />

cotidianas se dão. Trata-se <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> como <strong>pro</strong>nunciamento que já teve um nível<br />

<strong>de</strong> compreensão e interpretação <strong>da</strong> pre-sença.<br />

Isso não significa, no entanto, que o <strong>pro</strong>nunciamento esteja no nível <strong>da</strong> mera<br />

instrumentali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou do “simplesmente <strong>da</strong>do”, porque ele já contém <strong>em</strong> si o modo<br />

<strong>de</strong> ser <strong>da</strong> pre-sença, mas essa compreensão, <strong>em</strong>bora tenha se <strong>da</strong>do na abertura <strong>de</strong><br />

modo originário, numa abertura <strong>de</strong> mundo que se abre <strong>em</strong> <strong>da</strong>do momento, ela é<br />

265 I<strong>de</strong>m. Ser e T<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 2002. Parte 1, § 41, p.237 (original,11.ed., p.176).


compreensão <strong>da</strong> co-pre-sença dos outros, é compreensão do próprio ser-<strong>em</strong>; refere-<br />

se ao já <strong>pro</strong>nunciado, ao já <strong>de</strong>scoberto e estabelecido, ao já her<strong>da</strong>do.<br />

Constatar isso como um fato é muito menos importante do que compreen<strong>de</strong>r<br />

o modo <strong>de</strong> ser do discurso cotidiano <strong>da</strong> pre-sença. O ser do discurso cotidiano é<br />

puramente comunicação. Nesse modo-<strong>de</strong>-ser <strong>da</strong> comunicação, ontologicamente só<br />

se alcança o ser que já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre se abriu para o referencial discursado.<br />

Emissor e receptor, <strong>de</strong>le participam igualmente, numa compreeensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> só<br />

mediana.<br />

Porque se articula <strong>em</strong> <strong>pro</strong>nunciamentos, o discurso é comunicado <strong>de</strong> modo a<br />

ser compreendido plenamente, s<strong>em</strong> que se chegue a compreen<strong>de</strong>r do que ele trata.<br />

O que fica é muito mais o que já se está cansado <strong>de</strong> ouvir no falatório, a respeito e<br />

sobre o ente, <strong>da</strong> coisa mesmo <strong>de</strong> que se está falando. Esta é compreendi<strong>da</strong> só por<br />

alto. Po<strong>de</strong>-se pensar que estão falando <strong>da</strong> mesma coisa, mas, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não<br />

estão. Isso porque tanto <strong>em</strong>issor, como ouvinte não chegam a ter <strong>em</strong> mente o ente<br />

referencial e sim o que, <strong>de</strong> comum, ficou compreendido na mediani<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Dessa maneira não há jamais uma re-ferência original com o ente referencial.<br />

Fala-se uma fala comum, ocupa-se do falar como algo exigido pela convivência. O<br />

que importa não é a experiência primordial com o ente, mas a autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do discurso, s<strong>em</strong> que se faça sentir a a<strong>pro</strong>priação originária <strong>de</strong>sse ente,<br />

por parte do que fala n<strong>em</strong> do que ouve. Falar, falar, ouvir, ouvir, repetir, repetir e<br />

passar adiante é a lei.<br />

No falatório se sente a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> alcançando os mais altos níveis.O que<br />

se diz não exige comprensões <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>s, “as coisas são assim como são, porque<br />

<strong>de</strong>las se fala assim” 266 . Na<strong>da</strong> do que se diz no falatório t<strong>em</strong> soli<strong>de</strong>z. E não há chance<br />

<strong>de</strong> que a tenha, pois seria seu fracasso. N<strong>em</strong> soli<strong>de</strong>z n<strong>em</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>, o falatório<br />

266 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 228.


transita por uma compreensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> indiferente só para, nessa indiferença, po<strong>de</strong>r<br />

abarcar tudo, na<strong>da</strong> <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> fora. S<strong>em</strong> uma compreensão autêntica maior se<br />

torna a abertura para que o na<strong>da</strong> seja tudo.<br />

Mas o gran<strong>de</strong> perigo i<strong>de</strong>ntificado por Hei<strong>de</strong>gger no falatório está no<br />

fechamento irreversível que este representa. De tanto ser<strong>em</strong> repetidos, s<strong>em</strong><br />

compreensão primordial, os entes ficam <strong>à</strong> mercê do apagamento, e o que era<br />

abertura se converte <strong>em</strong> “fechadura”.<br />

Do ente do falatório na<strong>da</strong> mais precisa ser <strong>de</strong>scoberto, porque ele se<br />

encarrega <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir irr<strong>em</strong>ediavelmente qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> re-ferência, <strong>de</strong><br />

retorno ao fun<strong>da</strong>mento originário. E, <strong>de</strong> tanto nos ron<strong>da</strong>r, o perigo já é uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> na pre-sença que, a essa altura, já não consegue ir além <strong>de</strong> uma<br />

compreensão mediana no conhecimento <strong>da</strong>s coisas, já não po<strong>de</strong> sequer, sentindo-<br />

se livre, permitir-se o cont<strong>em</strong>plar aquilo que lhe v<strong>em</strong> ao encontro. É impossível, “tá<br />

<strong>dom</strong>inado, tá tudo <strong>dom</strong>inado” 267 , diz<strong>em</strong> os funkeiros, e confirma Emanuel Carneiro<br />

Leão. O alcance <strong>da</strong> interpretação pública é tal que o impessoal <strong>de</strong>termina, <strong>de</strong><br />

ant<strong>em</strong>ão, além do que se vê, até o como se vê.<br />

V<strong>em</strong>os nesse <strong>pro</strong>cesso que, com o falatório instrumental ou “simplesmente<br />

<strong>da</strong>do”, a pre-sença se encontra s<strong>em</strong> raízes, s<strong>em</strong> conexão qualquer que viabilize as<br />

r<strong>em</strong>issões originárias com o mundo, com a co-pre-sença e com o ser-<strong>em</strong>.<br />

O espaço físico e espiritual <strong>da</strong> obra transpira falatório. Há um clima estri<strong>de</strong>nte<br />

no ar. Do mesmo modo que transitam, <strong>em</strong> movimentação incontrolável.<br />

Isso coinci<strong>de</strong> perfeitamente com o que Hei<strong>de</strong>gger apresenta como o<br />

apagamento dos entes já dispostos no mundo, apagamento que tranca e inviabiliza<br />

qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> retorno <strong>à</strong> experiência originária.<br />

267 Este verso <strong>de</strong> música funk é retomado por Emmanuel Carneiro Leão: “Está <strong>dom</strong>inado, está tudo <strong>dom</strong>inado”, no artigo A<br />

vigência do poético na regência do virtual, no livro organizado por Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro: A construção poética do real.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2004, p.83-90.


Ain<strong>da</strong> que o i<strong>de</strong>al fosse o rastreamento do texto Dom Quixote, com vistas a<br />

<strong>da</strong>li tirarmos os ex<strong>em</strong>plos mais expressivos, por ora, pouco nos basta. Para<br />

apresentar como evidência <strong>de</strong>sse frenético exercício <strong>da</strong> “falação”, pondo <strong>em</strong> xeque<br />

as gran<strong>de</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que ensaiam para entrar <strong>em</strong> cena na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, ampara<strong>da</strong>s<br />

pela razão, basta que cit<strong>em</strong>os Juan David García Bacca que nos oferece <strong>da</strong>dos<br />

quantitativos: “En casi to<strong>da</strong>s las páginas irrumpe la razón [...] 5000 son las veces que<br />

don Quijote/Cervantes; Ci<strong>de</strong> Hamete/Cervantes; Sancho/Cervantes se sienten<br />

forzados a <strong>da</strong>r expresión - expresa y palabrera a la razón” 268 .<br />

Assim, nos restringir<strong>em</strong>os a três ex<strong>em</strong>plos somente: um <strong>de</strong> Dom Quixote,<br />

outro <strong>de</strong> Sancho, e outro ain<strong>da</strong> que torna indiscutível esse <strong>da</strong>do significativo na obra<br />

– a falação.<br />

No episódio que trata <strong>de</strong> “las bo<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Camacho” 269 , observamos Dom<br />

Quixote s<strong>em</strong> importar-se com o “como” os noivos passaram pela dura experiência <strong>de</strong><br />

ter<strong>em</strong> seu casamento <strong>de</strong>sfeito, por intervenção <strong>de</strong> Basílio que, usando <strong>de</strong> má-fé,<br />

<strong>de</strong>cidiu usurpar a noiva <strong>de</strong> que ele tanto necessitava para satisfazer sua “vonta<strong>de</strong>-<br />

capricho”.<br />

S<strong>em</strong> importar-se com o “sendo”, s<strong>em</strong> cui<strong>da</strong>r do “acontecendo” que diante <strong>de</strong><br />

seus olhos se <strong>de</strong>senrolava, prefere cumprir seu com<strong>pro</strong>misso <strong>de</strong> filósofo que está a<br />

serviço <strong>de</strong> “la república cristiana”, e dispõe do t<strong>em</strong>a amor e casamento com a<br />

autori<strong>da</strong><strong>de</strong> que o habilita a tomar partido <strong>da</strong> “industria” maliciosa e manipuladora <strong>de</strong><br />

Basilio para conseguir seu intento.<br />

Dentre muitas coisas, diz: que “la necesi<strong>da</strong>d y la pobreza” são os inimigos<br />

máximos do amor, que “la mujer hermosa y honra<strong>da</strong> cuyo marido es pobre merece<br />

ser corona<strong>da</strong> con laureles y palmas <strong>de</strong> vencimiento y triunfo”, que, caso lhe<br />

268 Em quase to<strong>da</strong>s as páginas irrompe a razão [...] 5000 são as vezes que Dom Quixote/Cervantes; Ci<strong>de</strong> Hamete/Cervantes;<br />

Sancho/Cervantes sent<strong>em</strong>-se forçados a <strong>da</strong>r expressão – expressa e palavrosa <strong>à</strong> razão. (BACCA, Juan David García. Sobre el<br />

Quijote y don Quijote <strong>de</strong> la Mancha. Barcelona: Anthropos, 1991, p. 45)<br />

269 (2, XX, p.423)


pediss<strong>em</strong>, se “atreveria a <strong>da</strong>r consejo” sobre “el modo que había <strong>de</strong> buscar la mujer<br />

con quien se quisiese casar”, que “la buena mujer no alcanza la buena fama<br />

solamente con ser buena, sino con parecerlo” 270 .<br />

Dom Quixote faz recomen<strong>da</strong>ções a Sancho sobre seu falar:<br />

También, Sancho, no has <strong>de</strong> mezclar en tus pláticas la muchedumbre <strong>de</strong><br />

refranes que sueles; que, puesto que los refranes son sentencias breves,<br />

muchas veces los traes tan por los cabellos, que más parecen disparates<br />

que sentencias. [E que] cargar y ensartar refranes a troche moche hace la<br />

plática <strong>de</strong>smaya<strong>da</strong> y baja. [Ao que Sancho respon<strong>de</strong>:] porque sé más<br />

refranes que un libro [...] cuando hablo, que riñen por salir unos con otros,<br />

pero la lengua va arrojando los primeros que encuentra. 271<br />

Neste, mais geral, diz Sancho:<br />

Este mi amo, cuando yo hablo cosas <strong>de</strong> meollo y <strong>de</strong> sustancia suele <strong>de</strong>cir<br />

que podría yo tomar un púlpito en las manos y irme por ese mundo a<strong>de</strong>lante<br />

predicando lin<strong>de</strong>zas; y yo digo dél que cuando comienza a enhilar<br />

sentencias y a <strong>da</strong>r consejos, no sólo pue<strong>de</strong> tomar púlpito en las manos, sino<br />

dos en ca<strong>da</strong> <strong>de</strong>do, y an<strong>da</strong>rse por esas plazas a ¿qué quieres boca? ¡Válate<br />

el diablo por caballero an<strong>da</strong>nte, que tantas cosas sabes! Yo pensaba en mi<br />

ánima que sólo podía saber aquello que tocaba a sus caballerías, pero no<br />

hay cosa don<strong>de</strong> no pique y <strong>de</strong>je <strong>de</strong> meter su cuchara<strong>da</strong>. 272<br />

Dizer falatório não significa dizer “disparates” e “tonterías”. Daí apresentar-se<br />

o falatório, tanto veiculado por Dom Quixote __ um hom<strong>em</strong> do entendimento __ , como<br />

pelo senso comum, representado por Sancho.<br />

270 A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a pobreza [...] A mulher bela e honra<strong>da</strong> cujo marido é pobre merece ser coroa<strong>da</strong> com louros e palmas <strong>de</strong><br />

vencimento e triunfo [...] atreveria a <strong>da</strong>r conselho [sobre] o modo que havia <strong>de</strong> buscar a mulher com qu<strong>em</strong> se quisesse casar<br />

[que] a boa mulher não alcança a boa fama apenas por ser boa, mas sim o parecendo (2, XX, p.423)<br />

271 Também, Sancho, não <strong>de</strong>ves misturar <strong>em</strong> suas falas a multidão <strong>de</strong> refrões que usas; que, visto que os refrões são<br />

sentenças breves, muitas vezes os trazes tão pelos cabelos, que mais parec<strong>em</strong> disparates que sentenças [E que] carregar e<br />

enfileirar refrões a torto e a direito torna a conversa entorpeci<strong>da</strong> e vulgar [Ao (...) respon<strong>de</strong>] porque sei mais refrões que um<br />

livro [...] quando falo que brigam para sair uns com os outros, mas a língua vai atirando os primeiros que encontra<br />

(2, XLIII, p.540)<br />

272 Este meu amo, quando eu falo coisas <strong>de</strong> miolo e <strong>de</strong> substância costuma dizer que eu po<strong>de</strong>ria tomar um púlpito nas mãos e<br />

ir por esse mundo adiante predicando lin<strong>de</strong>zas, e eu digo <strong>de</strong>le que quando começa a enfileirar sentença e a <strong>da</strong>r conselhos, não<br />

apenas po<strong>de</strong> tomar púlpito nas mãos, mas dois <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> <strong>de</strong>do, e an<strong>da</strong>r por essas praças com boa acolhi<strong>da</strong>. Valha-te o diabo<br />

por cavaleiro an<strong>da</strong>nte, que tantas coisas sabes! Eu pensava <strong>em</strong> meu ânimo que so podia saber aquido que concernia a suas<br />

cavalarias, mas não existe na<strong>da</strong> on<strong>de</strong> não opine e <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> meter sua colher (2, XXII, p.436)


6.1.2.2 Entre curiosas ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

Há muito está estabelecido que a compreensão está <strong>de</strong>finitivamente<br />

associa<strong>da</strong> <strong>à</strong> visão. Só na clari<strong>da</strong><strong>de</strong> é possível, ou melhor, a clari<strong>da</strong><strong>de</strong> é a própria<br />

abertura do ser-<strong>em</strong> <strong>da</strong> pre-sença. Esse é o modo como a pre-sença po<strong>de</strong> se<br />

a<strong>pro</strong>priar genuinamente dos entes, segundo suas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s ontológicas.<br />

Hei<strong>de</strong>gger, ao apresentar-nos a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a associa intimamente <strong>à</strong> visão.<br />

Esse é o ver próprio <strong>da</strong> cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong>, um ver <strong>de</strong> raízes antigas, o cui<strong>da</strong>do <strong>em</strong> ver,<br />

reconhecido, por Aristóteles, como modo-<strong>de</strong>-ser essencial. Apesar do termo<br />

explícito, “visão”, essa é <strong>de</strong> outra natureza. A visão que dá abertura ao ser, nesse<br />

caso, é puramente intuitiva. Só essa visão po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r acesso <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> originária.<br />

Essa primazia do ver sobre os <strong>de</strong>mais sentidos foi observa<strong>da</strong> por S. Agostinho, ao<br />

perceber que, quando o <strong>em</strong>penho é <strong>de</strong> conhecer, mesmo que o conhecimento seja<br />

captado por outra via sensível, haverá s<strong>em</strong>pre uma a<strong>pro</strong>priação análoga ao esforço<br />

do ver com os olhos.<br />

Empenhado nas ocupações, o ser-no-mundo é dirigido pela circunvisão. Esta<br />

<strong>de</strong>ixa a seu dispor todo o manual intacto, perfeitamente preservado no estado <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> manuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Na ocupação, a manuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e todos os <strong>pro</strong>cedimentos<br />

já estão distribuídos, motivo pelo qual torna-se irreversível.<br />

Assim, a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> está na <strong>de</strong>pendência do ver, s<strong>em</strong> que esse ver se<br />

<strong>de</strong>sdobre num ser, n<strong>em</strong> que chegue a alcançar um compreen<strong>de</strong>r. A curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

precisa <strong>de</strong> movimento e renovação, <strong>da</strong>í não ser possível apreen<strong>de</strong>r um saber, n<strong>em</strong><br />

estar na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, já que o permanecer não a caracteriza. Quer mu<strong>da</strong>r s<strong>em</strong>pre; n<strong>em</strong>


o ócio n<strong>em</strong> a cont<strong>em</strong>plação lhe serv<strong>em</strong> para alimentar seu estado permanente <strong>de</strong><br />

inquietação, aberta que está a tudo o que lhe v<strong>em</strong> ao encontro.<br />

Está <strong>em</strong> estado permanente <strong>de</strong> dispersão e incompreensão e não t<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po<br />

que lhe permita esperar para compreen<strong>de</strong>r o não compreendido pelo espanto e<br />

admiração. Na<strong>da</strong> quer compreen<strong>de</strong>r, só precisa tomar conhecimento. Na<strong>da</strong><br />

permanece na curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, tudo se dispersa no agitado mundo <strong>da</strong>s ocupações,<br />

s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> novas e novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Tanta possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, impermanente e<br />

dispersa, só po<strong>de</strong> gerar <strong>de</strong>samparo e também <strong>de</strong>senraizamento. A curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />

mais um modo <strong>de</strong> -ser-no mundo cotidiano <strong>da</strong> pre-sença.<br />

Esses dois modos <strong>de</strong> ser-no-mundo <strong>da</strong> pre-sença __ um, do discurso: o<br />

falatório; e o outro, <strong>da</strong> visão: a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> __ não conviv<strong>em</strong> lado a lado <strong>em</strong> sua<br />

tendência <strong>de</strong> <strong>de</strong>senraizamento; eles arrastam um ao outro __ um, tudo já<br />

compreen<strong>de</strong>; o outro, <strong>de</strong> na<strong>da</strong> se esquiva __ , e nesse arrastar garant<strong>em</strong> <strong>à</strong> pre-sença,<br />

que vive <strong>de</strong>sse modo, arrasta<strong>da</strong>, “uma vi<strong>da</strong> cheia <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>”, uma pretensão <strong>de</strong><br />

autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Cheios <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, sobre o enterro <strong>de</strong> Grisóstomo, Dom Quixote e<br />

Sancho Pança diz<strong>em</strong>: “ha <strong>de</strong> ser cosa muy <strong>de</strong> ver” 273 . Esteja on<strong>de</strong> estiver o<br />

interessante, só para tomar conhecimento, ain<strong>da</strong> que a viag<strong>em</strong> seja longa, <strong>de</strong> tudo<br />

são capazes: “no digo yo hacer tar<strong>da</strong>nza <strong>de</strong> un día, pero <strong>de</strong> cuatro la hiciera, a<br />

trueco <strong>de</strong> verle” 274 .<br />

Diante <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ouvir uma história, Dom Quixote chega a mu<strong>da</strong>r<br />

seus planos, que era dormir <strong>em</strong> uma ermi<strong>da</strong>: “don Quijote [...] como él era algo<br />

curioso y si<strong>em</strong>pre le fatigaban <strong>de</strong>seos <strong>de</strong> saber cosas nuevas, or<strong>de</strong>nó que al<br />

273 Deve ser coisa muito <strong>de</strong> ver (1, XII, p.64)<br />

274 Não digo fazer tar<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> um dia, mas <strong>de</strong> quatro eu faria, a troco <strong>de</strong> vê-lo (1, XIII, p.67)


momento se partiesen y fuesen a pasar la noche en la venta” 275 , lugar on<strong>de</strong> o<br />

sol<strong>da</strong>do, companheiro <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>, contaria algumas histórias maravilhosas. S<strong>em</strong><br />

resistir <strong>à</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom Quixote não volta a tocar <strong>em</strong> dormir na ermi<strong>da</strong>, seu<br />

<strong>pro</strong>jeto inicial.<br />

Na ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, tudo v<strong>em</strong> igualmente ao encontro; não é possível distinguir o<br />

que se abre do que não se abre, tanto nas coisas, na convivência, como também no<br />

ser <strong>da</strong> pre-sença.<br />

Na ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, todos sab<strong>em</strong> <strong>de</strong> tudo; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o que já foi plenamente<br />

discutido, este compreendido só superficialmente, como se não o tivess<strong>em</strong> esgotado<br />

<strong>em</strong> sua autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>; até o que, s<strong>em</strong> ter sido discutido, vê-se compreendido, com<br />

tanta <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong>, que parece que foi. Nesses casos, do que se dispõe é do que<br />

está “<strong>em</strong> uso e <strong>em</strong> gozo” 276 . Mas a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, ultrapassando esse nível <strong>de</strong><br />

compreensão, a compreensão do que efetivamente se dá e ocorre, além <strong>de</strong>ssa,<br />

outra também se consoli<strong>da</strong> <strong>em</strong> outro nível – no nível do po<strong>de</strong>r-ser. É possível saber<br />

até o que ain<strong>da</strong> não aconteceu; é possível saber e discorrer sobre. É possível<br />

porque já se pressentiu e farejou tudo o que todos pressentiram e farejaram<br />

antecipa<strong>da</strong>mente. É a compreensão – um po<strong>de</strong>r-ser, no modo do <strong>pro</strong>jeto.<br />

A ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> permite que se discorra antecipa<strong>da</strong>mente sobre o que ain<strong>da</strong><br />

vai acontecer, sobre o que <strong>de</strong>ve ser feito. Consi<strong>de</strong>ra-se estar <strong>de</strong> posse <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

só pelo longínquo e superficial “ouvi dizer”. 277<br />

Hei<strong>de</strong>gger aponta essa ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a mais perigosa e traiçoeira porque<br />

fornece um s<strong>em</strong> número <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que jamais se abrirão <strong>à</strong><br />

pre-sença como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Logo, possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> minar as forças <strong>da</strong> pre-sença.<br />

275<br />

Don Quixote [...] como ele era um tanto curioso e s<strong>em</strong>pre o incomo<strong>da</strong>vam <strong>de</strong>senos <strong>de</strong> saber cosas novas, or<strong>de</strong>nou que<br />

logo partiss<strong>em</strong> e foss<strong>em</strong> passar a noite na ven<strong>da</strong> (2, XXIV, p.450)<br />

276<br />

HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 234.<br />

277 Ibi<strong>de</strong>m.


Esperar-se-ia que, aquilo que, mesmo impessoalmente, por todos é<br />

pressentido, aquilo que, mesmo mero pressentimento, mesmo resultado <strong>de</strong> um<br />

“ouvir dizer” se dá <strong>em</strong> comum, fosse, logo que transformado <strong>em</strong> fato, por todos<br />

retomado com igual interesse. Mas não é o que acontece; não há com<strong>pro</strong>misso na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> que “recusa o com<strong>pro</strong>misso no momento <strong>em</strong> que se dá início <strong>à</strong><br />

realização do que se pressentiu” 278 .<br />

Tomar<strong>em</strong>os aqui o ex<strong>em</strong>plo <strong>em</strong> que “el primo”, tocado pela simples referência<br />

ao verbo “barajar” 279 , o compreen<strong>de</strong> <strong>em</strong> seu mero sentido literal, significação que,<br />

impessoalmente, circula no limite máximo <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Imediatamente é tomado<br />

pelo pressentimento e, no pleno uso do pressentimento, interpreta, a seu modo, s<strong>em</strong><br />

nenhum com<strong>pro</strong>misso com sua “realização”.<br />

O não com<strong>pro</strong>misso se faz sentir, tanto na pressa irresponsável <strong>de</strong> tomar uma<br />

mera informação, ou melhor, um fragmento <strong>de</strong> informação que lhe ofereceu Dom<br />

Quixote, s<strong>em</strong> que ele (“el primo”), sendo o que conhecia o caminho <strong>de</strong> “la cueva”,<br />

sendo o que conduzira Dom Quixote, tivesse a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecer a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> e importância <strong>de</strong> ele mesmo <strong>de</strong>scer ao interior <strong>de</strong> “la cueva” para viver<br />

o que tinha vivido Dom Quixote. O que aconteceu é que “el primo” contentou-se com<br />

a “comunicação e informação” que a “vi<strong>da</strong>-vivi<strong>da</strong>” tinha para lhe <strong>da</strong>r e Dom Quixote,<br />

como s<strong>em</strong>pre, foi “lá no fundo”, penetrou o mais perto que pô<strong>de</strong> do ser, para, só<br />

assim, po<strong>de</strong>r experienciar. “El primo” viveu, Dom Quixote experienciou. Para Dom<br />

Quixote “la cueva” se abriu, para “el primo” não. Para ele, é tudo igual: na<br />

ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, ele não distingue o que se abre do que não se abre.<br />

Dizíamos que tanto na pressa <strong>da</strong> mera informação está o “não com<strong>pro</strong>misso”,<br />

comum <strong>à</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, e acrescentamos estar também na não capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “el<br />

278 HEIDEGGER, Martin. Ser e t<strong>em</strong>po. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 234.<br />

279 Embaralhar, misturar, manipular.


primo” perceber e valorizar uma fala tão concentra<strong>da</strong>, como aquela dita por<br />

Duran<strong>da</strong>rte, “paciencia y barajar”, que, pelo curto e concentrado, além <strong>de</strong> ter sido a<br />

única fala que expressou o morto Duran<strong>da</strong>rte, exigia, no mínimo, alguma atenção e<br />

interesse <strong>de</strong> valorizar o dito. Entretanto, “el primo” foi lançando logo mão <strong>de</strong> uma<br />

constatação fácil, típica do falatório e <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. E, a partir <strong>da</strong>í, comete to<strong>da</strong><br />

sorte <strong>de</strong> calami<strong>da</strong><strong>de</strong>s interpretativas, imaginando, por sua própria conta, por puro<br />

pressentimento, que os naipes do baralho são coisa muito antiga, eram do “ti<strong>em</strong>po<br />

<strong>de</strong>l <strong>em</strong>perador Carlomagno”, acreditando piamente que sua <strong>de</strong>scoberta seria <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> valia para a humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, principalmente tendo vindo <strong>de</strong> “autor tan grave y<br />

tan ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro como es el señor Duran<strong>da</strong>rte” 280 .<br />

6.1.2.3 Nunca <strong>em</strong> Espanha houve tanto escritório<br />

Hei<strong>de</strong>gger a<strong>pro</strong>veita a s<strong>em</strong>elhança para introduzir a caracterização <strong>de</strong> outro<br />

fenômeno que, com o falatório, divi<strong>de</strong> a cena.<br />

Dois ex<strong>em</strong>plos são fun<strong>da</strong>mentais para ser<strong>em</strong> retomados no 3 o Périplo: o<br />

primeiro é “el primo”, personag<strong>em</strong> que aparece no capítulo XXII <strong>da</strong> 2 a parte, com a<br />

missão <strong>de</strong> conduzir Dom Quixote a “la Cueva <strong>de</strong> Montesinos”. É primo “<strong>de</strong>l<br />

licenciado” e muito <strong>da</strong>do a “leer libros”. Além disso, “sabía hacer libros para imprimir<br />

y para dirigirlos a príncipes”. Todos os seus livros eram “<strong>de</strong> gran <strong>pro</strong>vecho y no<br />

menos entretenimiento para la república” 281 . Vê-se, com isso que os livros<br />

280<br />

T<strong>em</strong>po do imperador Carlos Magno [acreditando (...) vindo <strong>de</strong>] autor tão grave e tão ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro como é o senhor<br />

Duran<strong>da</strong>rte (2, XXIV, p.448-449)<br />

281<br />

Sabia fazer livros para imprimie e para dirigi-los a príncipes [todos (...) eram] <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>pro</strong>veito e não menos<br />

entretenimento para a república (2, XXII, p.437)


publicados por “el primo” se enquadram nos mol<strong>de</strong>s do cânon __ estilo novelas <strong>de</strong><br />

cavalaria, a<strong>pro</strong>vado pela república cristã espanhola.<br />

Há fragmentos que <strong>de</strong>ixam transparente seu modo <strong>de</strong> escrever. Publica livros<br />

“imitando a Ovidio”, com “metáforas y translaciones [...] que alegran [...] y enseñan a<br />

un mismo punto”; outro que chama “Supl<strong>em</strong>ento a Virgilio Polidoro”, on<strong>de</strong> vai listar<br />

as coisas que Virgilio esqueceu <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar, como, por ex<strong>em</strong>plo: “quien fue el<br />

primero que tuvo catarro en el mundo”, acreditando que “ha <strong>de</strong> ser útil el tal libro a<br />

todo el mundo” 282 .<br />

Sua preocupação é respal<strong>da</strong>r-se, com<strong>pro</strong>vando o que publica: “y yo lo <strong>de</strong>claro<br />

al pie <strong>de</strong> la letra, y lo autorizo con más <strong>de</strong> veinte y cinco autores” 283 . E, o mais<br />

surpreen<strong>de</strong>nte é a avaliação que faz do importante que foi Dom Quixote ter cruzado<br />

seu caminho: uma é “haber sabido lo que se encierra en esta cueva <strong>de</strong> Montesinos,<br />

con las mutaciones <strong>de</strong> Guadiana y <strong>de</strong> las lagunas <strong>de</strong> Rui<strong>de</strong>ra, que me servirán para<br />

el Ovídio español” 284 . A outra r<strong>em</strong>ete para o que lhe contou Dom Quixote sobre o<br />

modo <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> Duran<strong>da</strong>rte, o morto s<strong>em</strong> coração que estava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”.<br />

O pequeno fragmento “paciencia y barajar” 285 , na boca do morto Duran<strong>da</strong>rte que, por<br />

estar morto, permanecera o t<strong>em</strong>po todo calado, foi o suficiente para que “el primo”<br />

associasse “barajar” a cartas <strong>de</strong> baralho, e que fizesse, por conta própria, a seguinte<br />

interpretação: que Duran<strong>da</strong>rte não po<strong>de</strong>ria ter aprendido esse modo <strong>de</strong> falar<br />

enquanto estava encantado, e, sim, o teria aprendido “en Francia y en ti<strong>em</strong>po <strong>de</strong>l<br />

referido <strong>em</strong>perador Carlomagno” 286 .<br />

282 Metáforas e translações [...] que alegram [...] e ensinam ao mesmo t<strong>em</strong>po [outro (...) ex<strong>em</strong>plo] quel foi o primeiro que teve<br />

catarro no mundo [acreditando que] <strong>de</strong>verá ser útil o tal livro para todo o mundo (2, XXII, p.438)<br />

283 E eu o <strong>de</strong>claro ao pé <strong>da</strong> letra, e o autorizo com mais <strong>de</strong> vinte e cinco autores (ibi<strong>de</strong>m)<br />

284 Haver sabido o que se encerra nesta cova <strong>de</strong> Montesinos, com as mutações <strong>de</strong> Guadiana e <strong>da</strong>s lagoas <strong>de</strong> Rui<strong>de</strong>ra, que me<br />

servirão para o Ovídio espanhol (2, XXIV, p.448)<br />

285 Paciência e <strong>em</strong>baralhar (2, XXIV, p.449)<br />

286 Na França e no t<strong>em</strong>po do referido Carlos Magno (Ibi<strong>de</strong>m)


E conclui, agra<strong>de</strong>cendo muito a colaboração <strong>de</strong> Dom Quixote, que, não só<br />

aquela averiguação, como a <strong>de</strong> que lhe <strong>de</strong>ra a “certidumbre [sobre] el nacimiento <strong>de</strong>l<br />

río Guadiana, hasta ahora ignorado <strong>de</strong> las gentes”, tudo lhe caíra como uma luva<br />

para outro livro que estava escrevendo: “me viene pintipara<strong>da</strong> para el otro libro que<br />

voy componiendo” 287 .<br />

Vê-se que “el primo” escreve livros <strong>de</strong>ntro do esqu<strong>em</strong>a <strong>da</strong> informação e <strong>da</strong><br />

comunicação. Imita os já publicados e só consegue dizer o que lhe <strong>de</strong>r garantias <strong>de</strong><br />

com<strong>pro</strong>vação.<br />

Trata-se do escritório, irmão gêmeo do falatório, compulsão <strong>de</strong> igual caráter.<br />

Do mesmo modo que a compulsão ao falar impregnava a todos, também o escrever<br />

impregnava. Do mesmo modo que o falatório se fun<strong>da</strong> no “ouvi dizer”, o escritório se<br />

nutre do que se lê.<br />

É b<strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, <strong>em</strong>bora esse fenômeno também se evi<strong>de</strong>ncie no texto <strong>de</strong><br />

Dom Quixote, mesmo que <strong>de</strong> modo diferente do falatório, não chegamos a <strong>da</strong>r-lhe<br />

igual dimensão. Muito se escreve; o próprio texto <strong>de</strong> Dom Quixote é originário do<br />

escrever. Foram encontrados documentos escritos que, por sua vez, são copiados e<br />

traduzidos. Tudo passa a ser registrado pela escrita. O mercado editorial incentiva a<br />

escritura, e esta se multiplica a todo vapor.<br />

O que t<strong>em</strong>os <strong>de</strong> significativo e digno <strong>de</strong> atenção é que gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong> obra<br />

está forma<strong>da</strong> <strong>de</strong> um acúmulo <strong>de</strong> textos, os mais variados: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenos bilhetes,<br />

cartas, documentos, contos curtos, até as longas histórias, muitos consi<strong>de</strong>rados<br />

<strong>de</strong>snecessários até.<br />

Tanto o falatório, a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> como o escritório, todos<br />

concorr<strong>em</strong> para a Cura. Nessa travessia, Dom Quixote, no seu agir no mundo, nas<br />

287 Certeza [sobre] sobre a nascente do Guadiana, até agora ignora<strong>da</strong> pelas pessoas [tudo (...) escrevendo] me v<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

ban<strong>de</strong>ja para o ouro livro que vou compondo (2, XXIV, p.449)


muitas <strong>de</strong>cadências do ser, já não lê romances <strong>de</strong> cavalaria. Ao optar por vivê-la,<br />

ele, surpreen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente começa a ler-se, a saber-se, busca consumar, levar o ser<br />

ao sumo; que, não por coincidência, é <strong>cura</strong>r. Dom Quixote está <strong>à</strong> <strong>pro</strong><strong>cura</strong> do que lhe<br />

é próprio. Dom Quixote lança-se, na linguag<strong>em</strong>, <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura.<br />

7 TÉDIO, ANGÚSTIA, MORTE __ AS DISPOSIÇÕES FUNDAMENTAIS<br />

7.1 O TÉDIO<br />

Como se <strong>pro</strong>cessava a compreensão do mundo no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote?<br />

Haveria algo interferindo nessa compreensão que justificasse um mundo <strong>de</strong><br />

constantes repetições? O que afetava o hom<strong>em</strong> do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>em</strong> seu<br />

viver, que se espalhava <strong>de</strong> forma avassaladora, a ponto <strong>de</strong> contaminar a todos e a<br />

tudo com o ócio? Até os objetos assim estavam, ociosos: “el famoso Caballero don<br />

Quijote <strong>de</strong> la Mancha, <strong>de</strong>jando las ociosas plumas”. No entanto, o trânsito realizado<br />

do livro para a vi<strong>da</strong> se dá, no exato momento, <strong>em</strong> que Dom Quixote “subió sobre su<br />

famoso caballo Rocinante, y comenzó a caminar por el antiguo y conocido campo <strong>de</strong><br />

Montiel.” 288 , quebrando literalmente o ócio.<br />

Por que, antes <strong>de</strong>sse momento, a última referência que nos dá o texto é <strong>de</strong><br />

que Dom Quixote estava com a caneta na mão? Teria ele a intenção <strong>de</strong> escrever<br />

288 O cavaleiro Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, <strong>de</strong>ixando as ociosas plumas [No entanto (...) Quixote] subiu <strong>em</strong> seu famoso<br />

cavalo Rocinante, e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo <strong>de</strong> Montiel (1, II, p.21)


algo? O que, afinal, pretendia escrever que a opção <strong>de</strong> sair para a vi<strong>da</strong> o fez<br />

<strong>de</strong>sistir?<br />

O gran<strong>de</strong> responsável pelo ócio que se aninhou <strong>em</strong> Espanha encontrava<br />

sustentação no tédio. Essa é a marca que o caracteriza: no tédio, resta s<strong>em</strong>pre uma<br />

muleta <strong>de</strong> sustentação, sobra s<strong>em</strong>pre alguma brecha por on<strong>de</strong> escapar do<br />

sentimento avassalador que se insinua, mas que não passa <strong>de</strong> insinuação,<br />

permitindo que haja o mínimo <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sair <strong>em</strong> retira<strong>da</strong> do enfrentamento<br />

com o vazio. Era agindo assim que Dom Quixote s<strong>em</strong>pre lia, lia ca<strong>da</strong> vez mais. Ca<strong>da</strong><br />

livro que lia, ca<strong>da</strong> vez que insaciável buscava novas histórias, era uma fuga só pelo<br />

tédio permiti<strong>da</strong>. E não só Dom Quixote; como ele, todos os <strong>de</strong>mais.<br />

Que um dia ca<strong>da</strong> um po<strong>de</strong>ria também querer fazer a experiência <strong>de</strong> optar por<br />

fuga diferencia<strong>da</strong>, isso é possível; mas a história que Cervantes vai contar é<br />

exatamente a do herói que teve a corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> fazer a primeira tentativa.<br />

É b<strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que Dom Quixote já se diferencia dos <strong>de</strong>mais, quando sai do<br />

imobilismo físico do tédio para o dinamismo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, na contraparti<strong>da</strong> <strong>da</strong> leitura<br />

silenciosa que exige posição estática. Entretanto, mesmo entrando na vi<strong>da</strong> real <strong>da</strong><br />

cavalaria, Dom Quixote ain<strong>da</strong> é tédio, porque o que houve foi somente uma<br />

transferência do estar-lançado no mundo cavalaria-ficção, para o estar-lançado no<br />

mundo cavalaria vi<strong>da</strong>-real, mundo <strong>em</strong> que permanecia igualmente imerso no<br />

estabelecido. É possível que, <strong>de</strong> algum modo, sua leitura tenha sido diferencia<strong>da</strong><br />

para obrigá-lo a lançar-se no “estar-lançado” do mundo <strong>da</strong> cavalaria.<br />

É preciso atentar para o fato <strong>de</strong> que o ócio, que a todos imobilizava, estava<br />

restrito <strong>à</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s liga<strong>da</strong>s <strong>à</strong> terra, talvez <strong>à</strong>quele agir que por tantos séculos<br />

imobilizara o hom<strong>em</strong> – o agir do trabalho, por ex<strong>em</strong>plo, uma vez que “este [...]<br />

hi<strong>da</strong>lgo, los ratos que estaba ocioso – que eran los más <strong>de</strong>l año [...] olvidó [...] el<br />

ejercicio <strong>de</strong> la caza y aun la administración <strong>de</strong> su hacien<strong>da</strong> [...] vendió muchas


hanegas <strong>de</strong> tierra <strong>de</strong> s<strong>em</strong>bradura” 289 . Entretanto, convive com esse imobilismo do<br />

cultivo <strong>da</strong> terra ou <strong>de</strong> qualquer outra ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>à</strong> terra liga<strong>da</strong>, uma dinâmica,<br />

referente ao movimentar-se por sua superfície. Não há época <strong>em</strong> que a dinâmica do<br />

ir e vir, fazendo, realizando, contando, numa ação frenética e ansiosa <strong>de</strong><br />

realizações, <strong>de</strong>sse sinais mais evi<strong>de</strong>ntes. Isso po<strong>de</strong> sugerir o dinamismo, no entanto<br />

superficial, que a todos contaminou <strong>em</strong> Espanha.<br />

Com essa dinâmica, convive outra ain<strong>da</strong>. Essa mais afina<strong>da</strong> com a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> leitura silenciosa que ganhava espaço na época. Dinâmica, não na superfície,<br />

porque, para ler, presume-se o estar parado. Entretanto, o mover-se é outro, é<br />

mover-se do pensamento.<br />

Assim estavam todos os ociosos, leitores ou não leitores, estáticos <strong>de</strong> corpo,<br />

mas dinâmicos <strong>de</strong> pensamento uns; dinâmicos <strong>de</strong> corpo e <strong>de</strong> pensamento aqueles<br />

que transitavam pelos caminhos.<br />

Dom Quixote foi o único a fazer o trânsito cumulativo – era fi<strong>da</strong>lgo leitor<br />

estático, <strong>de</strong> pensar dinâmico, e passou a cavaleiro dinâmico <strong>de</strong> pensar também<br />

dinâmico.<br />

Talvez seja por isso que, mais adiante, Dom Quixote vai dizer que é louco <strong>em</strong><br />

suas ações. Seria esse agir <strong>de</strong> Dom Quixote um agir do pensamento, uma<br />

antecipação do agir <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>? Seria esse agir, louco, também?<br />

Por ora não se sabe <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, só se sabe <strong>de</strong> Dom Quixote no século<br />

XVI. Sua marca <strong>de</strong> tédio está referen<strong>da</strong><strong>da</strong> pelas novelas <strong>de</strong> cavalaria. É para esse<br />

mundo que s<strong>em</strong>pre escapa, é nesse mundo que s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>cai. Em afinadíssimo<br />

<strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> tédio e <strong>de</strong>cadência, Dom Quixote escapa s<strong>em</strong>pre para o mundo<br />

estabelecido <strong>da</strong> cavalaria, tanto na vi<strong>da</strong>-ficção como na vi<strong>da</strong>-vivi<strong>da</strong>.<br />

289 Este [...] fi<strong>da</strong>lgo, os momentos <strong>em</strong> que estava ocioso – que eram a maior parte do ano [...] esqueceu [...] o exercício <strong>da</strong><br />

caça e mesmo a adminstração <strong>de</strong> seus bens [...] ven<strong>de</strong>u muitos alquires <strong>de</strong> tierra <strong>de</strong> cultivo (1, I, p.18)


Como Dom Quixote, todos estão mergulhados no mundo fartamente<br />

conhecido e compartilhado <strong>da</strong> cavalaria, a própria obra <strong>de</strong>monstra esse<br />

compartilhar. No entanto, no momento exato <strong>em</strong> que Dom Quixote passa a viver a<br />

cavalaria, há reação tal, que ele precisa ser encaixado no rol dos loucos. Se<br />

continuasse lendo, como os <strong>de</strong>mais, ter-se-ia livrado do estigma <strong>de</strong> louco?<br />

Dom Quixote não escapa do círculo do tédio n<strong>em</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>cadência. O que nele<br />

se <strong>pro</strong>cessa <strong>de</strong> modo diferente é que sai <strong>da</strong> sintonia com seus cont<strong>em</strong>porâneos,<br />

porque substitui a leitura para on<strong>de</strong> todos e ele mesmo s<strong>em</strong>pre escaparam, por viver<br />

na vi<strong>da</strong> real aquilo que até então somente lera.<br />

Não sai do circuito do tédio Dom Quixote, porque o tédio faz parte <strong>da</strong> Cura e<br />

só ele po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r acesso <strong>à</strong> angústia e, assim completar o quadro <strong>da</strong> errância. Só o<br />

tédio configura a errância. Só o tédio dá acesso <strong>à</strong> angústia.<br />

7.2 A ANGÚSTIA<br />

“Como las cosas humanas no sean eternas, yendo si<strong>em</strong>pre en <strong>de</strong>clinación <strong>de</strong><br />

sus principios hasta llegar a su último fin [...]” 290<br />

Este fragmento é significativo, ele sinaliza, ain<strong>da</strong> que <strong>de</strong> modo sutil, a<br />

sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote, captando o sentido <strong>da</strong> finitu<strong>de</strong> intrínseca ao hom<strong>em</strong>.<br />

Dom Quixote configurou o mundo <strong>da</strong> cavalaria, <strong>de</strong> modo a que pu<strong>de</strong>sse<br />

colocar seu plano <strong>de</strong> ser cavaleiro <strong>em</strong> prática. Ain<strong>da</strong> que pela via <strong>da</strong> ficção,<br />

dispunha <strong>de</strong> um instrumental com o qual po<strong>de</strong>ria construir o mundo <strong>da</strong> cavalaria.<br />

290 Como as coisas humanas não são eternas, indo s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> seus princípios até chegar a seu último fim.<br />

(2, LXXIV, p.696)


Esse instrumental, seu velho conhecido, era o sustentáculo <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as certezas <strong>de</strong><br />

que precisava para pôr <strong>em</strong> marcha seu <strong>pro</strong>jeto, cumprindo o ofício <strong>de</strong> “an<strong>da</strong>r por el<br />

mundo en<strong>de</strong>rezando tuertos y <strong>de</strong>sfaciendo agravios” 291 . Afinal, fora por esse mesmo<br />

<strong>pro</strong>jeto formado.<br />

Desse modo, <strong>de</strong>ntre todos os <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po, acreditava ocupar o mais alto<br />

patamar na escala do saber. Para isso o formara a Paidéia, para estar habilitado a<br />

governar. E, para governar, só o filósofo, o que t<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r, o que t<strong>em</strong><br />

conhecimento real do B<strong>em</strong>, o único capaz <strong>de</strong> manejar o l<strong>em</strong>e com total segurança,<br />

para conduzir todos os <strong>de</strong>mais. Para esse <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho, só muita “certeza”, que não<br />

o fizesse resvalar <strong>em</strong> nenhum momento <strong>em</strong> um ponto sequer. Sua república cristã<br />

não o perdoaria.<br />

É com essa idéia que Dom Quixote quer <strong>da</strong>r conta do com<strong>pro</strong>misso<br />

assumido. E é, a partir <strong>de</strong>la, que seu <strong>de</strong>clínio se dá. Não percebera, entretanto, com<br />

essa iniciativa, estar se a<strong>pro</strong>priando <strong>de</strong> todo o acervo significativo que transitava no<br />

intramun<strong>da</strong>no <strong>da</strong> cavalaria.<br />

Esse é o seu primeiro equívoco: pensar que está a<strong>pro</strong>priando-se, quando o<br />

<strong>pro</strong>cesso é diametralmente oposto. Estava sim, sendo a<strong>pro</strong>priado, sendo ele mesmo<br />

tragado por tudo o que já existia no mundo, s<strong>em</strong> que <strong>de</strong>le precisasse participar.<br />

Contraditoriamente, <strong>à</strong>quilo que para Dom Quixote significava gran<strong>de</strong>za e<br />

superiori<strong>da</strong><strong>de</strong>, Hei<strong>de</strong>gger chama <strong>de</strong>cadência.<br />

Dev<strong>em</strong>os esclarecer, portanto, que “<strong>de</strong>clinación” __ termo usado por Dom<br />

Quixote e que tomamos como referência __ será aqui usado como <strong>de</strong>cadência.<br />

Chegando ao mundo, o hom<strong>em</strong> já “está lançado” num contexto <strong>de</strong> significações; o<br />

hom<strong>em</strong> é um ente <strong>de</strong>caído por natureza; sua tendência é manter-se preso <strong>à</strong>s<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que circulam pelo mundo como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>finitivas.<br />

291 An<strong>da</strong>r pelo mundo consertando injustiças e <strong>de</strong>sfazendo <strong>de</strong>sacertos (1, XIX, p.101)


Enquanto Dom Quixote é nutrido pela crença <strong>de</strong> estar <strong>de</strong> posse <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

absoluta, não abre mão <strong>de</strong> nenhuma <strong>de</strong> suas certezas. Ao lançar-se na vi<strong>da</strong>, com a<br />

intenção <strong>de</strong> colocar <strong>em</strong> prática seu <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito, no entanto, é surpreendido por uma<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> com a qual não contava, uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a qual, os livros na<strong>da</strong> lhe<br />

haviam contado. É preciso não per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que, além <strong>de</strong> na<strong>da</strong> ter<strong>em</strong> lhe contado<br />

aqueles livros, o mundo dos séculos XVI/XVII que r<strong>em</strong>endou, superpondo sobre ele<br />

a re<strong>de</strong> <strong>da</strong> cavalaria, era um mundo com o qual os valores medievais já não se<br />

afinavam.<br />

A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que encontra Dom Quixote efetivamente vai obrigando-o a ir<br />

paulatinamente substituindo a didática rígi<strong>da</strong> do aprendizado com que fora formado,<br />

por outra chama<strong>da</strong> “aprendizag<strong>em</strong>”. Essa mu<strong>da</strong>nça estratégica não foi planeja<strong>da</strong>,<br />

tendo <strong>em</strong> vista suas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e dissabores. Ela foi-se impondo por ela mesma, a<br />

ca<strong>da</strong> vez que a vi<strong>da</strong> lhe colocava, na frente, um impasse.<br />

É a essa série <strong>de</strong> impasses que Dom Quixote vai reagindo <strong>em</strong> graus diversos,<br />

com respostas que vão <strong>da</strong> mais radical rejeição <strong>de</strong> qualquer outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a um ce<strong>de</strong>r irr<strong>em</strong>ediável, quando se vê diante do mais contun<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong>smoronar <strong>da</strong>s certezas que o sustentaram <strong>em</strong> sua gran<strong>de</strong> travessia.<br />

É por isso que têm sentido as palavras do cavaleiro manchego. Parece que<br />

antecipam os <strong>em</strong>bates que <strong>de</strong>verá enfrentar até o combate final, <strong>em</strong> que o edifício<br />

tão b<strong>em</strong> estruturado <strong>da</strong>s certezas <strong>de</strong>verá inevitavelmente cair.<br />

Nesse momento, Dom Quixote sentir-se-á completa e <strong>de</strong>finitivamente<br />

esvaziado. Tudo o que para ele, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> virar cavaleiro, ao longo <strong>de</strong><br />

muito caminhar, e até o momento final tivera sentido, tudo <strong>em</strong> que acreditara<br />

piamente per<strong>de</strong>, também, total e <strong>de</strong>finitivamente, o sentido.<br />

A citação, a tomamos por ser bastante sugestiva porque <strong>de</strong>limita, <strong>de</strong> algum<br />

modo, o percurso <strong>da</strong> <strong>cura</strong> entre vi<strong>da</strong> e morte; trata do hom<strong>em</strong> relacionando-se com


as coisas do mundo, o que sugere o “ser-no-mundo”; <strong>de</strong>ixando b<strong>em</strong> claro <strong>cura</strong> como<br />

<strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça do qual participa o hom<strong>em</strong>.<br />

Essa marcação <strong>de</strong> dinamismo sinaliza<strong>da</strong> pelas preposições “<strong>de</strong>” e “hasta”; <strong>de</strong><br />

começo e <strong>de</strong> fim __ com “sus principios [...] su último fin” __ , soma<strong>da</strong> <strong>à</strong> indicação, não<br />

só <strong>de</strong> que essas são coisas privativas do hom<strong>em</strong> __ “las cosas humanas” __ mas<br />

também e, fun<strong>da</strong>mentalmente, a <strong>de</strong> que na<strong>da</strong> é para s<strong>em</strong>pre __ “las cosas [...] no<br />

sean eternas” 292 . Tudo concentra uma idéia maior: a idéia <strong>da</strong> finitu<strong>de</strong> humana.<br />

A<strong>pro</strong>veitando a imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> re<strong>de</strong> cavaleiresca, ou seja, o mundo criado por<br />

sua imaginação, po<strong>de</strong>-se arriscar que as muitas <strong>de</strong>cadências iam, silenciosamente,<br />

atritando os seus pontos mais seguros, s<strong>em</strong> que Dom Quixote disso se<br />

apercebesse. De <strong>de</strong>sgaste <strong>em</strong> <strong>de</strong>sgaste, a trama <strong>da</strong> re<strong>de</strong> foi-se per<strong>de</strong>ndo, a ponto<br />

<strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> total <strong>de</strong> conexão, e foi com<strong>pro</strong>metendo a tessistura <strong>da</strong> re<strong>de</strong>, até<br />

que a contínua fricção acabou <strong>de</strong>sgastando e rompendo. Com o <strong>de</strong>sgate, e o<br />

rompimento, iam-se também aquelas referências tão necessárias que, mesmo<br />

puí<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> permitiam retorno <strong>à</strong> re<strong>de</strong>.<br />

Quando Dom Quixote se <strong>de</strong>u conta, sua tão preza<strong>da</strong> e firme re<strong>de</strong>, que lhe<br />

assegurava tanta certeza a ponto <strong>de</strong> dizer “yo sé quien soy”, tinha todos os seus<br />

pontos soltos, arrebentados, encolhidos, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar vestígios, s<strong>em</strong> pistas que<br />

permitiss<strong>em</strong> recuperá-los, gerando o vazio total, a angústia.<br />

Essa é a <strong>pro</strong>va <strong>de</strong> que Dom Quixote passou pela angústia. A imag<strong>em</strong> figura<strong>da</strong><br />

pela re<strong>de</strong> reduplica o <strong>pro</strong>cesso pelo qual passou o cavaleiro manchego, até<br />

<strong>de</strong>frontar-se com a angústia quase irr<strong>em</strong>ediável. É exatamente nesse assalto final<br />

que po<strong>de</strong>mos arriscar que se efetuou a angústia mais radical.<br />

Dom Quixote já tinha experimentado ao excesso a disposição fun<strong>da</strong>mental<br />

hei<strong>de</strong>ggeriana chama<strong>da</strong> tédio. Isso porque era o tédio que lhe concedia s<strong>em</strong>pre uma<br />

292 Seus princípios [...] seu último fim __ as coisas humanas __ as coisas [...] não sejam eternas (2, LXXIV, p.696)


echa para fugir e não precisar encarar radicalmente o ser, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser, a sua<br />

essência, a essência do ser. E a angústia tar<strong>da</strong>, mas chega, afinal.<br />

Não é possível <strong>de</strong>finir como a angústia é vivi<strong>da</strong> ou senti<strong>da</strong>. Po<strong>de</strong>-se no<br />

máximo, imaginar o grau dos efeitos <strong>de</strong> experiência tão radical <strong>à</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> humana.<br />

Cervantes, entretanto, não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> cont<strong>em</strong>plar-nos com a visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse<br />

sentimento. Ao assumir a consciência <strong>de</strong> que “llegó su fin y acabamiento”, por ter<br />

visto cair o último “véu <strong>de</strong> maia”, “se le arraigó una calentura que le tuvo seis días<br />

en la cama” 293 . Dom Quixote teve uma febre altíssima que o colocou nocauteado<br />

numa cama, <strong>de</strong>ixando visível, a todos os que o cercavam, que experimentava a<br />

angústia. Experimentava na<strong>da</strong>, ex-perienciava, vivia o “ex” mais radical, vivia o que<br />

estava além <strong>de</strong> tudo o que po<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> esperar.<br />

Essa cena, além <strong>de</strong> estar no último capítulo, além dos termos “fin” e<br />

“acabamiento”, ela está marca<strong>da</strong> pelo surpreen<strong>de</strong>nte “cuando él menos lo<br />

pensaba”, 294 porque não é possível prever o momento <strong>em</strong> que o esvaziamento<br />

radical <strong>da</strong> angústia po<strong>de</strong> acontecer.<br />

Po<strong>de</strong>ríamos ter dúvi<strong>da</strong>s quanto a ser ou não ser a febre, manifestação física-<br />

ôntica <strong>da</strong> angústia. Por isso, essa possível dúvi<strong>da</strong> é elimina<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s<br />

suposições do narrador; sobre o exato motivo que o levou <strong>à</strong>quele estado: “la<br />

melancolía que le causaba el verse vencido”. 295 B<strong>em</strong> sab<strong>em</strong>os que a angústia<br />

hei<strong>de</strong>ggeriana é tão radical que não há na<strong>da</strong>, não há nenhum sentimento já<br />

incorporado ao universo médico n<strong>em</strong> ao psicológico que <strong>de</strong>la possa a<strong>pro</strong>ximar-se.<br />

B<strong>em</strong> sab<strong>em</strong>os que angústia não é <strong>de</strong>pressão, b<strong>em</strong> sab<strong>em</strong>os que angústia<br />

hei<strong>de</strong>ggeriana não é melancolia. Entretanto, também, b<strong>em</strong> sab<strong>em</strong>os que, no mundo<br />

ôntico, ninguém nasce aos cinqüenta anos, ninguém <strong>de</strong>ita um dia na cama e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

293 Chegou seu fim e acabamento [por (...) maia”,] pegou-o uma febre que o manteve seis dias na cama (2, LXXIV, p.696)<br />

294 Quando ele menos o pensava (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

295 A melancolia que lhe causava ver-se vencido (Ibi<strong>de</strong>m)


morrer. No espaço <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte é preciso <strong>da</strong>r visibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, contando com o visível<br />

do mundo ôntico, <strong>de</strong>s-realizando-o, fazendo-o invisível. Tanto “la fiebre” com o<br />

<strong>de</strong>itar-se <strong>à</strong> cama, como “la melancolía” <strong>de</strong> Dom Quixote precisam ser <strong>de</strong>s-<br />

realizados.<br />

Se acaso não for<strong>em</strong> esses el<strong>em</strong>entos suficientes para <strong>de</strong>flagrar a angústia, a<br />

<strong>pro</strong>jet<strong>em</strong>os para mais adiante: Hei<strong>de</strong>gger diz que a radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> angústia é tal<br />

que uma <strong>de</strong>-cisão também radical é a sua contraparti<strong>da</strong>, <strong>da</strong>í sua grafia fora do<br />

padrão: <strong>de</strong>-cisão. E Dom Quixote, coinci<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “la fiebre”, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

ficar “seis días en la cama”, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “la melancolía”, [e não percamos <strong>de</strong> vista que<br />

a melancolia está <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> “verse vencido”], como sua causa<br />

mais contun<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dizer essas palavras: “fuí don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, y<br />

soy agora, como he dicho, Alonso Quijano 296 ”, <strong>de</strong>ixando b<strong>em</strong> marca<strong>da</strong> a linha<br />

divisória entre o “antes” __ fuí __ <strong>de</strong> ser arrebatado pela angústia e o “<strong>de</strong>pois” __ agora<br />

soy. Depois <strong>de</strong> tudo isso, ain<strong>da</strong> não satisfeito, Dom Quixote apresenta a <strong>pro</strong>jeto mais<br />

radical <strong>de</strong> todos: <strong>de</strong>-ci<strong>de</strong> ser pastor. Há outro índice ain<strong>da</strong>, assinalando não ser<strong>em</strong><br />

ônticos nenhum <strong>de</strong>sses el<strong>em</strong>entos que se conjugam na vivência <strong>da</strong> angústia. A<br />

causa <strong>da</strong> febre não fora uma “gripe”, um “resfriado”, n<strong>em</strong> uma “virose”. De ôntico já<br />

basta a febre <strong>da</strong> qual Cervantes não pô<strong>de</strong> abrir mão. A causa <strong>da</strong> febre é outra, é a<br />

melancolia, mas não uma ôntica melancolia, ela está <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> no seguinte fragmento:<br />

“llegó su fin y acabamiento cuando él menos lo pensaba; porque, o ya fuese <strong>de</strong> la<br />

melancolía que le causaba el verse vencido, o ya por la disposición <strong>de</strong>l cielo, que así<br />

lo or<strong>de</strong>naba” 297<br />

296 Fui Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano (2, LXXIV, p.696)<br />

297 Chegou seu fim e acabamento quando ele menos o pensava; porque, ou já fosse pela melancolia que lhe causava o ver-se<br />

vencido, ou já pela disposição do céu, que assim or<strong>de</strong>nava (Ibi<strong>de</strong>m)


Esse evento ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia outros. Um <strong>de</strong>les é a <strong>de</strong>-cisão. Só a angústia<br />

possibilita a mu<strong>da</strong>nça radical <strong>da</strong> <strong>de</strong>-cisão. E Dom Quixote também a realiza: a <strong>de</strong>-<br />

cisão <strong>de</strong> ser pastor “que tenía pensado <strong>de</strong> hacerse aquel año pastor”. 298<br />

Um l<strong>em</strong>brete é necessário: o passar pela angústia, o tomar <strong>de</strong>-cisão radical<br />

não significa ter encontrado a Cura. Depois <strong>da</strong> experiência <strong>da</strong> angústia, impossível<br />

será ao hom<strong>em</strong> um retorno no mesmo nível <strong>de</strong> consciência. Isso porque lhe foi<br />

revelado alguma coisa que, mesmo sendo-lhe essencial, ain<strong>da</strong> não <strong>de</strong>scobrira.<br />

Dom Quixote também volta ao impessoal. Se por um lado o lar está carregado<br />

<strong>de</strong> significação do próprio mais íntimo, esse mesmo próprio que o fez tomar <strong>de</strong>-cisão<br />

tão radical, por outro po<strong>de</strong> ser lido também como o máximo do cotidiano ordinário.<br />

Visto assim, o voltar para casa significa reinício do ciclo, com nova <strong>de</strong>cadência no<br />

mundo <strong>da</strong>s significações estabeleci<strong>da</strong>s, significa <strong>de</strong>cair no mundo <strong>da</strong> manuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do intramun<strong>da</strong>no para, só assim, po<strong>de</strong>r seguir <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura, num ciclo infinito<br />

<strong>de</strong> tédios e angústias, até que a morte anuncie a inevitável finitu<strong>de</strong>.<br />

Seja qual for a mu<strong>da</strong>nça radical, t<strong>em</strong> <strong>pro</strong>sseguimento a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>. Ain<strong>da</strong> que<br />

<strong>de</strong> modo diferenciado, voltar ao impessoal é inevitável.<br />

7.3 A MORTE<br />

O círculo <strong>da</strong>s disposições fun<strong>da</strong>mentais se completa com a morte. Dom<br />

Quixote lhe reserva lugar bastante especial: além <strong>de</strong> exercer sua perfeita função <strong>de</strong><br />

finalização do circuito <strong>da</strong> <strong>cura</strong>, nascimento-morte, ela assume outras nuances.<br />

298 Que tinha pensado fazer-se aquele ano pastor (2, LXXIIII, p.695)


Percebe-se que a morte cresce <strong>em</strong> significação e sentido. Caso contrário, não<br />

precisaria ter urgência para morrer. Na vi<strong>da</strong> ordinária, jamais disso se falou: ter<br />

urgência <strong>de</strong> morrer. No entanto, Dom Quixote t<strong>em</strong>: “que me voy muriendo a to<strong>da</strong><br />

priesa” 299 .<br />

A b<strong>em</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não é Dom Quixote qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> pressa <strong>de</strong> morrer. Sua<br />

pressa é outra, <strong>de</strong> tal modo que chega a impacientar-se com os que o ro<strong>de</strong>iam com<br />

brinca<strong>de</strong>iras: “déjense burlas aparte” 300 .<br />

Essa pressa, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que r<strong>em</strong>ete <strong>à</strong> morte como finalização,<br />

on<strong>de</strong> as <strong>pro</strong>vidências civis são <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a urgência __ “tráiganme un confesor que<br />

me confiese y un escribano que haga mi testamento” 301__ , r<strong>em</strong>ete também <strong>à</strong><br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r <strong>à</strong> morte um lugar <strong>de</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong>, esvaziando-a do peso <strong>da</strong>s<br />

contingências civis.<br />

A digni<strong>da</strong><strong>de</strong> que merece a morte fica patente <strong>em</strong> vários fragmentos: “que en<br />

tales trances como éste no se ha <strong>de</strong> burlar el hombre con el alma”, <strong>de</strong>monstrando a<br />

clara consciência do inevitável. Em outro: “y una <strong>de</strong> las señales por don<strong>de</strong><br />

conjeturaron se moría fue el haber vuelto con tanta facili<strong>da</strong>d <strong>de</strong> loco a cuerdo” 302 ,<br />

fica evi<strong>de</strong>nte aquilo que a todo o momento nos é informado – que na hora <strong>da</strong> morte<br />

há como um flash back que sintetiza todo o vivido, sendo, por isso, o momento único<br />

<strong>de</strong> plena luci<strong>de</strong>z. Esse flash back está presente na fala <strong>de</strong> Sancho que sintetiza o<br />

passado, fixando-se <strong>em</strong> dois pontos.<br />

Ao pedir a Dom Quixote, encareci<strong>da</strong>mente, que não morra, Sancho lhe<br />

oferece dois bons motivos que mais parec<strong>em</strong> coincidir com os pontos nevrálgicos <strong>de</strong><br />

sua travessia: um <strong>de</strong>les diz respeito <strong>à</strong> cavalaria, eixo centralizador <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a sua<br />

299<br />

Vou morrendo a to<strong>da</strong> presa (2, LXXIV, p.698)<br />

300<br />

Deix<strong>em</strong>-me longe <strong>da</strong>s burlas (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

301<br />

Tragam-me um confessor que me confesse e um escrivão que faça meu testamento (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

302<br />

Que <strong>em</strong> tais transes como este não <strong>de</strong>ve brincar o hom<strong>em</strong> com a alma [<strong>de</strong>monstrando (...) outro] e um dos sinais pelos<br />

quais conjeturaram que morria foi o ter voltado com tanta facili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> louco a são (Ibi<strong>de</strong>m)


história __ “Si es que se muere <strong>de</strong> pesar <strong>de</strong> verse vencido, éch<strong>em</strong>e a mi la culpa” 303 ;<br />

e outro, ao ponto que se <strong>de</strong>sloca para Dulcinéa: “quizá tras <strong>de</strong> alguna mata<br />

hallar<strong>em</strong>os a la señora doña Dulcinea <strong>de</strong>sencanta<strong>da</strong>” 304 .<br />

Outros dois fragmentos confer<strong>em</strong> especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>à</strong> morte: “muerto<br />

naturalmente” e “hubiese muerto en su lecho tan sosega<strong>da</strong>mente” 305 . Os dois se<br />

implicam mutuamente. Morrer naturalmente significa não só morrer s<strong>em</strong> ter-se, por<br />

algum motivo, antecipado a morte; morrer naturalmente significa, também, morrer<br />

com a consciência <strong>de</strong> ter fechado o ciclo vital <strong>da</strong> Cura, com a consciência <strong>da</strong> missão<br />

cumpri<strong>da</strong>, com a consciência do cumprimento <strong>da</strong> travessia, com a consciência <strong>de</strong> ter<br />

esgotado ao limite máximo a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>, com a consciência <strong>de</strong> estar <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> si, no<br />

limite máximo <strong>da</strong> <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Foi por isso que pô<strong>de</strong> Dom Quixote morrer “en su lecho tan<br />

sosega<strong>da</strong>mente”. 306 Teve, assim, o fi<strong>da</strong>lgo-cavaleirio-manchego o que Hei<strong>de</strong>gger<br />

<strong>de</strong>nomina “uma boa morte”.<br />

Está, então, explicado o epitáfio, escrito <strong>em</strong> versos, escolhido por Sansón<br />

Carrasco para a sepultura do atípico manchego: “yace aquí el Hi<strong>da</strong>lgo fuerte / que a<br />

tanto estr<strong>em</strong>o llegó / <strong>de</strong> valiente, que se advierte / que la muerte no triunfó”. 307<br />

Dom Quixote nasce aos 50 anos, porque só nesse momento começa a<br />

ganhar “corpo”. Não o corpo material, que esse já o tinha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento<br />

biológico; não o corpo racional, porque o hom<strong>em</strong> não é n<strong>em</strong> natureza n<strong>em</strong> razão;<br />

303<br />

Se é que morre <strong>de</strong> pesar por ver-se vencido, jogu<strong>em</strong> <strong>em</strong> mim a culpa (2, LXXIV p.699)<br />

304<br />

Talvez atrás <strong>de</strong> alguma mata achar<strong>em</strong>os a senhora Dona Dulcinea <strong>de</strong>sencanta<strong>da</strong> (2, LXXIV p.700)<br />

305<br />

Morto naturalmente [e] houvesse morrido <strong>em</strong> seu leito são sossega<strong>da</strong>mente (2, LXXIV p.698)<br />

306<br />

Em seu leito são sossega<strong>da</strong>mente (2, LXXIV p.700)<br />

307<br />

Jaz aqui o Fi<strong>da</strong>lgo forte / que a tanto extr<strong>em</strong>o chegou / <strong>de</strong> valente, que se adverte / que a morte não triunfou (Ibi<strong>de</strong>m)


mas o corpo-preenchimento: corpo-preenchimento do oco; corpo-preenchimento do<br />

vazio no experienciar a vi<strong>da</strong>. 308<br />

Esse preenchimento acontece <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que Dom Quixote ou qualquer outro<br />

hom<strong>em</strong> realiza; <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que fazendo realiza, se faz<br />

realizando-se.<br />

Se o atípico Dom Quixote nasce <strong>de</strong> forma atípica, é justo que sua morte<br />

também esteja coroa<strong>da</strong> do atípico: fechado o circuito <strong>da</strong> Cura <strong>em</strong> sua forma mais<br />

radical, alcançado o grau <strong>de</strong> <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> sua plenitu<strong>de</strong> possível, fez-se a<br />

travessia. Tudo está consumado, a morte não triunfou.<br />

8 SER PASTOR OU SER POETA, TUDO É POSSIBILIDADE<br />

Se a marca <strong>da</strong> pre-sença é antecipar-se a si mesma, talvez esteja aí o que foi<br />

popularmente cunhado como “intuição”. Há, <strong>em</strong> Dom Quixote, algo que assim<br />

po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>signar. Dentro do mundo <strong>de</strong> significações no qual esteve-lançado na<br />

condição <strong>de</strong> ser-<strong>de</strong>caído, <strong>pro</strong>feria afirmações que, naquele momento, <strong>de</strong> tão<br />

contraditórias, pareciam loucas. Não foi gratuita a alcunha recebi<strong>da</strong>, portanto.<br />

Pronunciava <strong>em</strong> voz alta “Yo sé quien soy”, no momento exato <strong>em</strong> que tudo<br />

indicava na<strong>da</strong> disso saber. Sendo, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, um fi<strong>da</strong>lgo, assumindo a persona <strong>de</strong><br />

um cavaleiro, como era possível afirmação tão fora <strong>de</strong> <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito?<br />

Mais ain<strong>da</strong> extrapola sua medi<strong>da</strong>, quando mais uma vez, ain<strong>da</strong> mais irritado<br />

porque seu vizinho, insistindo para colocá-lo <strong>em</strong> seu lugar, o faz l<strong>em</strong>brar que ele não<br />

308 Essa percepção a tiv<strong>em</strong>os com a aju<strong>da</strong> do <strong>pro</strong>fessor Gilvan Volgel, por ocasião do evento organizado pelo titular <strong>em</strong><br />

Poética Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro, realizado no I Encontro <strong>de</strong> Interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong> Poética, na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> UFRJ,<br />

<strong>em</strong> maio/2007, com o t<strong>em</strong>a “Corpo, mundo, terra”.


po<strong>de</strong> ser o cavaleiro Dom Quixote porque é o bom fi<strong>da</strong>lgo Alonso Quijano. Dom<br />

Quixote, com a rapi<strong>de</strong>z típica <strong>da</strong> intuição, que traz aquelas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>em</strong>ana<strong>da</strong>s, não<br />

se sabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong>; <strong>da</strong>quelas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que surg<strong>em</strong> dos <strong>pro</strong>cessos <strong>de</strong> “escritura<br />

automática”, on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong>, abrindo mão <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as amarras morfo-sintáticas que<br />

or<strong>de</strong>nam a língua, entra <strong>em</strong> sintonia com um <strong>em</strong>anar ininterrupto e <strong>pro</strong>fundo, assim<br />

respon<strong>de</strong> a seu vizinho Pedro Alonso: “y sé que puedo ser [...] los Doce Pares <strong>de</strong><br />

Francia”. 309<br />

Percebe-se que, intuitivamente, Dom Quixote está antecipando ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

seguríssimas, mas que, entretanto, na superfície, não se enquadram <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s<br />

circunstâncias. Por isso, nos “viene <strong>de</strong> mol<strong>de</strong>” 310 para nossa necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> e objetivo.<br />

Fechamos este capítulo, encostando uma ponta na outra: começamos com “yo sé<br />

quien soy”, s<strong>em</strong> que, do mesmo modo que com Dom Quixote, nos fosse possível<br />

atinar para o seu sentido. Encerramos com “Yo sé quien soy”, com a compreensão<br />

plena <strong>de</strong>sse sentido.<br />

Só a travessia <strong>pro</strong>porcionou a Dom Quixote essa <strong>de</strong>scoberta. Nesse dil<strong>em</strong>a<br />

<strong>de</strong> tanta confusão entre saber ou não saber qu<strong>em</strong> era, Dom Quixote para verificar<br />

afinal, on<strong>de</strong> estava a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> assumir outra persona. Entretanto, para tal<br />

façanha, era preciso cruzar a linha <strong>de</strong> risco, a linha divisória entre to<strong>da</strong>s as coisas,<br />

linha há muito já presente no Oci<strong>de</strong>nte, finca<strong>da</strong> com bases b<strong>em</strong> firmes. Ele teve a<br />

corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ultrapassá-la e foi por isso que ficou estigmatizado como louco, estigma<br />

do qual não conseguiu liberar-se até hoje.<br />

Nessa travessia, Dom Quixote estava <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura, e, nessa <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>,<br />

acabou se encontrando, acabou <strong>de</strong>scobrindo qu<strong>em</strong> era afinal. É claro que na obra<br />

esse ponto-chave, o ponto crucial que marca essa <strong>de</strong>scoberta, aparece com uma<br />

309 E sei que posso ser [...] os doze Pares <strong>de</strong> França. (1, V, p.35)<br />

310 V<strong>em</strong> b<strong>em</strong> a <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito (1, XXXI p.183)


visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> indiscutível, no que se refere a não <strong>de</strong>ixar restar nenhuma dúvi<strong>da</strong> sobre<br />

o que caracteriza Cura: libertação <strong>de</strong> todo o impróprio para ser o próprio. Isso,<br />

entretanto, não é tão simples n<strong>em</strong> direto, há implicações outras.<br />

De qualquer modo, a obra cumpre isso também magistralmente. O ponto-<br />

chave, a este é concedido o espaço necessário, o espaço que marca a mu<strong>da</strong>nça<br />

radical <strong>de</strong> uma coisa <strong>em</strong> outra: “fui don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, y soy agora, como he<br />

dicho, Alonso Quijano el Bueno”; 311 “Yo no soy don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, sino<br />

Alonso Quijano” 312 , seguido <strong>de</strong> outros, on<strong>de</strong> o marcador “ya” <strong>de</strong>nota transição no<br />

t<strong>em</strong>po: “Yo fui loco y ya soy cuerdo”; “ya soy en<strong>em</strong>igo <strong>de</strong> Amadís <strong>de</strong> Gaula y <strong>de</strong> to<strong>da</strong><br />

la infinita caterva <strong>de</strong> su linaje”; “ya me son odiosas to<strong>da</strong>s las historias <strong>pro</strong>fanas <strong>de</strong>l<br />

an<strong>da</strong>nte caballería”; “ya conozco mi nece<strong>da</strong>d y el peligro en que me pusieron<br />

haberlas leído”; “ya, por misericordia <strong>de</strong> Dios, escarmentando en cabeza <strong>pro</strong>pia, las<br />

abomino” 313 .<br />

É preciso compreen<strong>de</strong>r que essa relação oposta e radical expressa Cura. A<br />

relação que aqui t<strong>em</strong> lugar, assim está exposta por ter sido essa com a qual a obra<br />

esteve jogando todo t<strong>em</strong>po: ser e não-ser cavaleiro, mundo <strong>da</strong> cavalaria e mundo <strong>da</strong><br />

não-cavalaria. É óbvio que seu fechamento só po<strong>de</strong> se <strong>da</strong>r nesse mesmo jogo.<br />

Entretanto, essa relação é só aparente. O que nelas há <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> está por trás. O<br />

que não é possível per<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> vista é o jogo. É no ser e não-ser que se configura<br />

aquilo que a obra quer realmente dizer: que há s<strong>em</strong>pre um espaço <strong>em</strong> aberto, que<br />

esse espaço é o espaço do “não-ser”, que esse espaço é um vazio <strong>de</strong> outra<br />

natureza, que é o vazio mais pleno que se possa imaginar, que essa plenitu<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>ve ao vigor <strong>de</strong> que está s<strong>em</strong>pre esse espaço prenhe.<br />

311<br />

Fui Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano o Bom (2, LXXIV, p.699)<br />

312<br />

Eu não sou Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, mas Alonso Quijano (2, LXXIV, p.697)<br />

313<br />

“Eu fui louco e já sou sensato”; “já sou inimigo <strong>de</strong> Amadís <strong>de</strong> Gaula e <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a infinita caterva <strong>de</strong> sua linhag<strong>em</strong>”; “já são<br />

para mim odiáveis to<strong>da</strong>s as histórias <strong>pro</strong>fanas <strong>da</strong> an<strong>da</strong>nte cavalaria”; “já conheço minha necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> e o perigo que me<br />

puser<strong>em</strong> tê-las lido”; “já, por misericórdia <strong>de</strong> Deus, escarmentando <strong>em</strong> cabeça própria, as abomino” (2, LXXIV, p.697-699)


Po<strong>de</strong>ríamos seguir num enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> “quês” interminável. Afinal ele é<br />

puro mistério. Entretanto, par<strong>em</strong>os aqui para explicar que essa evidência foi o que<br />

acabou revelando a Dom Quixote a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />

essência do hom<strong>em</strong>. Se juntarmos, não só os “Doce Pares <strong>de</strong> Francia” com todos os<br />

<strong>de</strong>mais cavaleiros que Dom Quixote diz po<strong>de</strong>r ser __ “y aun todos los Nueve <strong>de</strong> la<br />

Fama” 314 __ , e se levarmos <strong>em</strong> conta que Dom Quixote <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma coisa para<br />

po<strong>de</strong>r ser outra, só é possível, assim interpretar: na<strong>da</strong> na pre-sença é fixo n<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>finitivo; a pre-sença po<strong>de</strong>, caso queira, mu<strong>da</strong>r s<strong>em</strong>pre; po<strong>de</strong> ser o que ela quiser,<br />

porque só ela po<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberar sobre si mesma.<br />

Nesse caso, fica claro para Dom Quixote que ele é to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

puro po<strong>de</strong>r-ser.<br />

Novamente a obra, tendo mais ain<strong>da</strong> para dizer, <strong>de</strong> forma magistral diz. Não<br />

fica satisfeita, e <strong>de</strong>ixa o máximo <strong>de</strong> portas abertas que permitam muitas entra<strong>da</strong>s e<br />

saí<strong>da</strong>s, possibilitando, conseqüent<strong>em</strong>ente, o máximo <strong>de</strong> arejamento necessário ao<br />

que merece o status <strong>de</strong> obra.<br />

Falta dizer ain<strong>da</strong>, ou melhor, reforçar essa abertura máxima. Passa<strong>da</strong> a<br />

angústia ou, no auge mesmo <strong>da</strong> angústia, Dom Quixote toma uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>-cisão:<br />

<strong>de</strong>-ci<strong>de</strong> ser pastor. Com isso sai Dom Quixote do estreito limite ser e não-ser<br />

cavaleiro, e, subindo mais um patamar na escala<strong>da</strong> do ser, revela saber po<strong>de</strong>r-ser<br />

outros também.<br />

Uma sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> aguça<strong>da</strong> percebe, nesse arranjo final <strong>da</strong> obra, uma espécie<br />

<strong>de</strong> “caixa <strong>de</strong> surpresas infinitas” on<strong>de</strong> uma coisa está encondi<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> outra. Na<br />

caixa “ser pastor” __ “y que tenía pensado <strong>de</strong> hacerse aquel año pastor” __ , ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

para a qual, <strong>em</strong> tom <strong>de</strong> súplica, Dom Quixote __ “les suplicaba” __ convocava seus<br />

amigos e vizinhos dizendo que, “si no tenían mucho que hacer y no estaban<br />

314 Os doze Pares <strong>da</strong> França [com (...) ser] e mesmo todos os Nove <strong>da</strong> Fama (1, V, p.35)


impedidos en negocios más importantes, quisiesen ser sus compañeros”, 315<br />

encontra-se implícita outra, a caixa “ser-poeta”.<br />

A caixa “ser-poeta”, por sua vez, se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong> duas. Na primeira, a poesia<br />

se mostra, segundo Sansón Carrasco, como puro entretenimento: compondré versos<br />

pastoriles [...] para que nos entretengamos por esos andurriales don<strong>de</strong> hab<strong>em</strong>os <strong>de</strong><br />

an<strong>da</strong>r”. 316 Há outra, entretanto, on<strong>de</strong> a poesia se mostra, escon<strong>de</strong>ndo-se um pouco<br />

mais. É quando Dom Quixote resolve sugerir, a ca<strong>da</strong> um, seu nome <strong>de</strong> futuro pastor.<br />

É nesse ponto <strong>em</strong> que o poético se ressalta, pelo fato <strong>de</strong> ser posto <strong>em</strong> discussão.<br />

De um lado, o poético se evi<strong>de</strong>ncia nos nomes: “pastor Quijotiz”, <strong>da</strong>ndo nome para si<br />

próprio; “pastor Carrascón”, <strong>da</strong>ndo nome a Sansón Carrasco; “pastor Curambro”,<br />

<strong>da</strong>ndo nome a “el <strong>cura</strong>”; e “pastor Pancino”, para Sancho Pança. 317 De outro, a<br />

forma como é apresentado o poético opõe-se <strong>à</strong> anterior.<br />

Se compararmos as duas formas __ a do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Sansón Carrasco<br />

com a <strong>de</strong> Dom Quixote __ , algumas questões liga<strong>da</strong>s ao poético vêm <strong>à</strong> superfície. Na<br />

<strong>de</strong> Sansón Carrasco, o poético é apresentado como entretenimento. Sabe-se,<br />

entretanto, não ser a arte feita para entretenimento.<br />

Com<strong>pro</strong>metimento maior, portanto, se revela na segun<strong>da</strong> comparação.<br />

Enquanto Dom Quixote nomeia seus companheiros, segundo os <strong>pro</strong>cedimentos<br />

típicos <strong>da</strong> poesia, cui<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong> não per<strong>de</strong>r o vínculo com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, cui<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong> apartar-se <strong>de</strong>la, <strong>de</strong>srealizando-a, Sansón Carrasco sugere que<br />

os nomes <strong>da</strong>s ama<strong>da</strong>s dos pastores sejam retirados “<strong>de</strong> las estampa<strong>da</strong>s e impresas,<br />

<strong>de</strong> quien está lleno el mundo”, 318 nomes copiados dos já consagrados “Fíli<strong>da</strong>s,<br />

315 E que tinha pensado fazer-se aquele ano pastor [ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> (...) Quixote] Suplicava-lhes [convocava (...) que] se não tinham<br />

muito que fazer e não estavam impedidos <strong>em</strong> negócios mais importantes, quisess<strong>em</strong> ser seus companheiros (2, LXXIII, p.695)<br />

316 Comporei versos pastoris [...] para que nos entretenhamos por esses ermos on<strong>de</strong> hav<strong>em</strong>os <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

317 (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

318 Das estampa<strong>da</strong>s e impressas <strong>de</strong> que está cheio o mundo (Ibi<strong>de</strong>m)


Amarilis, Dianas, Fléri<strong>da</strong>s, Galateas y Belisar<strong>da</strong>s”. 319 Eles são vendidos “en las<br />

plazas” e, por isso, diz um <strong>de</strong>les, “bien las po<strong>de</strong>mos comprar”. 320 Mais uma vez fica a<br />

arte <strong>à</strong> mercê do que já está disponível no mundo, a ponto <strong>de</strong> todos os seus<br />

ingredientes po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> ser comprados nas feiras e mercados.<br />

A discussão acima traz <strong>à</strong> tona, sob o ponto <strong>de</strong> vista do fazer poeta, o vínculo<br />

<strong>da</strong> arte com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

De todo o apresentado, o mais importante, e que não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista<br />

é a abertura com a qual Dom Quixote acena <strong>em</strong> sua <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra: não só com<br />

as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que, sendo experiencia<strong>da</strong>, permite que um fi<strong>da</strong>lgo vire<br />

cavaleiro; que, por sua vez, vire pastor; que, por sua vez vire poeta; possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

que permit<strong>em</strong> que Alonso Quijano disponha do t<strong>em</strong>po que quiser para mu<strong>da</strong>r <strong>de</strong><br />

nome: “duró (...) ocho días”, 321 <strong>de</strong>ixando um rastro <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>s sobre chamar-se<br />

Quesa<strong>da</strong> ou Quija<strong>da</strong>, fixando <strong>em</strong> Quijote, finalmente, seu nome, como também com<br />

as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do poético, on<strong>de</strong> Quijote vira “Quijotiz”. Nomes que já não<br />

precisam <strong>de</strong> sobrenomes, n<strong>em</strong> <strong>de</strong> títulos, porque foram conduzidos <strong>à</strong> abertura<br />

máxima do po<strong>de</strong>r-ser, que é essência do poético.<br />

Desse modo, fica claro que pastor e poeta não são duas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais<br />

para Dom Quixote ser. Significa que o leque <strong>de</strong> opções é imenso e abertíssimo;<br />

significa muito mais: que não foi casual a escolha <strong>de</strong>ssas duas especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

“pastor” e “poeta”. Eles ocupam lugar privilegiado, <strong>de</strong>ntro do universo poético. “O<br />

hom<strong>em</strong> é o pastor do Ser”. 322<br />

319<br />

Fíli<strong>da</strong>s, Amarilis, Dianas, Fléri<strong>da</strong>s, Galateas e Belisar<strong>da</strong>s (2, LXXIII, p.695)<br />

320<br />

B<strong>em</strong> as po<strong>de</strong>mos comprar (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

321<br />

Durou oito dias (1, I, p.20)<br />

322<br />

HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro,1995, p.51


Com isso, se quer dizer que essa não é uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> a mais, essa é a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a mais essencial porque ela é comum a todos os<br />

homens. Só o hom<strong>em</strong> guar<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser.<br />

Para Hei<strong>de</strong>gger, a linguag<strong>em</strong> é a casa do Ser, e nela habita o poeta. O poeta<br />

habita na <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser, pois, ao poeta, a linguag<strong>em</strong> fala.<br />

To<strong>da</strong> palavra, todo nomear, é na sua essência originária, poesia: a<br />

experiência pensante do ser que se vela, ao mesmo t<strong>em</strong>po que <strong>de</strong>svela significado.<br />

O poeta é aquele que escuta o silêncio do Ser, o Ser <strong>em</strong> seu <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong><br />

velamento. E nesse <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> velamento, constrói sua mora<strong>da</strong>.<br />

O poeta é o pastor do Ser, pois acompanha este <strong>pro</strong>cesso – o <strong>pro</strong>cesso por<br />

meio do qual o pensamento atinge a significação pela travessia <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> –<br />

como um pastor que segue seu rebanho, não sendo nunca um condutor voluntarista<br />

e <strong>dom</strong>inante, mas antes sendo ele conduzido.<br />

Termin<strong>em</strong>os enlaçando a frase inicial <strong>de</strong>ste Périplo: “Yo sé quien soy”. A<br />

afirmação firme e resoluta é ambígua. Do mesmo modo que parece ser pura<br />

contradição, assumir Dom Quixote outra personali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po que<br />

garante saber qu<strong>em</strong> é, <strong>de</strong>sse mesmo modo, parece contraditória mas não é. Pois,<br />

foi a partir <strong>de</strong>sse jogo ambigüo, do <strong>de</strong>monstrar não-saber escondido sob um<br />

aparente saber que pô<strong>de</strong> fazer nascer <strong>em</strong> Dom Quixote um “querer-saber”.<br />

T<strong>em</strong>os, então, que com Dom Quixote, tudo acontece assim: é a partir do que<br />

já sabe que Dom Quixote po<strong>de</strong> chegar ao que não-sabe. É a partir do “outro” que<br />

po<strong>de</strong> enxergar a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser.<br />

Mas, para ser ele mesmo autêntico, precisa submeter tudo o que o outro é ao<br />

diálogo, a todos os níveis <strong>de</strong> diálogo. E isso só é possível na vi<strong>da</strong>. Só o diálogo com<br />

o mundo possibilita que não se imite o outro, que não se copie o outro, que não se


encarne o outro, mas que simplesmente se submeta aquela possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro <strong>à</strong><br />

vi<strong>da</strong>.<br />

Ao submeter-se a uma outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>à</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser outro, está<br />

Dom Quixote abandonando o cículo vicioso e repetitivo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong>, para ingressar<br />

no círculo aberto e espontâneo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> experiencia<strong>da</strong>. Aberto porque no ex-<br />

perienciar a vi<strong>da</strong>, abre-se o espaço do “ex” que ultrapassa o limite estreito <strong>da</strong>s<br />

realizações, o limite <strong>de</strong> tudo o que se “ex-pera”, permitindo que a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> se amplie<br />

ao seu máximo.<br />

Essa experiência só se efetiva no autodiálogo, aquele que Dom Quixote só<br />

alcança via renúncia, jogando fora tudo o que não lhe é próprio.<br />

A ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> está <strong>em</strong> que Dom Quixote talvez soubesse o que estava<br />

fazendo. Sabia e queria avisar estar consciente do seu agir. Porque precisava<br />

mostrar e contar isso ao mundo. Logo, precisava fingir: fingir que era cavaleiro, fingir<br />

ficar louco, e, como louco, sabedor <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> não ser acreditado, precisava<br />

reforçar que sabia qu<strong>em</strong> era. Travestido <strong>de</strong> cavaleiro, precisava que todos nele<br />

acreditass<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> correr o risco <strong>de</strong> ver seu plano posto por terra.<br />

Se Dom Quixote tinha consciência do que fazia, se sabia qu<strong>em</strong> era, qu<strong>em</strong> era<br />

aquele que afirmava saber qu<strong>em</strong> era?<br />

Seria o fi<strong>da</strong>lgo? É possível, mas se justifica <strong>em</strong>presa tão complexa só para<br />

avisar que tinha consciência <strong>de</strong> ser o fi<strong>da</strong>lgo e não cavaleiro? Por trás <strong>de</strong>sse aviso<br />

t<strong>em</strong> <strong>de</strong> haver outro saber: o saber ser possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Na frase retumbante que abre a<br />

história <strong>de</strong> Dom Quixote já está conti<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra: ser-possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por<br />

enquanto, neste 1 o Périplo, só <strong>de</strong>ixamos registrado que o hom<strong>em</strong> Dom Quixote é<br />

po<strong>de</strong>r-ser, essa é sua marca essencial.


Se Dom Quixote é, ao mesmo t<strong>em</strong>po vi<strong>da</strong> real e ficção, é quase certo que<br />

assim também seja a obra: possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa tarefa fica, entretanto, para o 3 o<br />

Périplo, on<strong>de</strong> terá lugar a investigação do <strong>pro</strong>cessar-se <strong>de</strong>ssa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Embora a questão maior <strong>de</strong>sta pesquisa esteja centra<strong>da</strong> <strong>em</strong> Dom Quixote<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e Dom Quixote ficção, o cavaleiro sente que precisa ain<strong>da</strong> fazer outra<br />

volta, precisa traçar outro círculo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> constatar que seu ângulo <strong>de</strong> visão muito<br />

ampliou o horizonte. Dessa ampliação participa agora o outro, seu olhar, antes tão<br />

centrado <strong>em</strong> si mesmo, se esten<strong>de</strong> e alcança todos os homens. Assim, vendo mais,<br />

por mais questões é tomado e, <strong>em</strong>bora <strong>em</strong> outro nível, a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> continua.<br />

Participam do “pré” <strong>de</strong> Dom Quixote, três “prés”: um, dos séculos XVI/XVII,<br />

por ele avaliado como ”<strong>de</strong>testables siglos”; o segundo “pré”, constituído pela leitura<br />

<strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria como o mundo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> perfeição; o terceiro “pré” está<br />

contido na <strong>de</strong>sconfiança permanente, na dúvi<strong>da</strong> contínua <strong>em</strong> relação aos “prés”<br />

anteriores, dúvi<strong>da</strong> que não é só sua, pertence ao t<strong>em</strong>po. Com tanto “pré”,<br />

mergulhado <strong>em</strong> tanto intramun<strong>da</strong>no, cheio <strong>de</strong> manuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom Quixote é<br />

<strong>pro</strong>vocado pelo ser ao “ek”, ao lançar-se <strong>em</strong> direção ao ser. E qu<strong>em</strong> o impulsiona é<br />

exatamente a força dos muitos “prés”, porque o “pré” é condição sine qua non para<br />

novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do ser. Esse é o movimento realizado por Dom Quixote. Para<br />

saber a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> si no ”ser-<strong>em</strong>”, precisou sair do mundo engessado e estático <strong>da</strong>s<br />

idéias já realiza<strong>da</strong>s, para imprimir-lhe o dinamismo necessário ao ser. Para isso<br />

precisou superpor as duas re<strong>de</strong>s, a do mundo medieval e a <strong>de</strong> seu mundo, único<br />

modo <strong>de</strong> torná-las experienciáveis concomitant<strong>em</strong>ente.<br />

Depois <strong>de</strong> ter passado pelo experienciar-<strong>cura</strong>, Dom Quixote t<strong>em</strong> um<br />

pressentimento: <strong>de</strong> todos, o terceiro “pré” lhe parece aquele que permanece cheio<br />

<strong>de</strong> vigor, <strong>pro</strong>nto, disponível para novas <strong>de</strong>scobertas. Intui, na instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

dúvi<strong>da</strong>, uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> certeza. Sente que não está encerra<strong>da</strong> sua missão,


precisa ain<strong>da</strong> transitar, nesse “pré”; alguma gran<strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>li po<strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar-se. É<br />

só isso que capta Dom Quixote, é com essa bagag<strong>em</strong> que o cavaleiro, com os olhos<br />

b<strong>em</strong> abertos, faz a passag<strong>em</strong> do 1 o para o 2 o Périplo.


Capítulo II<br />

2º Périplo<br />

A VERDADE DO TEMPO DE DOM QUIXOTE


1 DOM QUIXOTE, O HERMENEUTA<br />

É indiscutível a missão <strong>de</strong> filósofo que Dom Quixote tomou para si no 1º<br />

Périplo. Ser porta-voz dos valores medievais, veiculados pela “república cristiana<br />

española”, foi o passaporte que, <strong>da</strong>ndo-lhe acesso <strong>à</strong> Cura, abriu-lhe caminho <strong>de</strong><br />

acesso a si mesmo. Entretanto, neste 2º Périplo, uma vez conhecedor <strong>de</strong> sua<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, sua prestação <strong>de</strong> serviço estará a serviço do outro.<br />

Não esquece Dom Quixote, entretanto, <strong>de</strong> um aviso que fora somente<br />

insinuado como tarefa a cumprir, s<strong>em</strong> que lhe tivess<strong>em</strong> feito muito alar<strong>de</strong>. Trata-se<br />

<strong>de</strong> algo que está planejado no futuro, por isso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, o cavaleiro é só<br />

expectativa.<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom Quixote, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre fora conhecedor <strong>de</strong>ssa tarefa. De<br />

tal modo que não foi informado diretamente sobre ela. I<strong>de</strong>ntificou-a, bastando para<br />

isso que sua sobrinha lhe narrasse, com poucos <strong>de</strong>talhes, o inci<strong>de</strong>nte que <strong>de</strong>ra fim <strong>à</strong><br />

sua biblioteca.<br />

Disse que o autor do inci<strong>de</strong>nte tinha sido um encantador que “vino sobre una<br />

nube”, 323 montado numa serpente (“apeándose <strong>de</strong> una sierpe”), 324 entrou na<br />

biblioteca e, <strong>em</strong> fração <strong>de</strong> segundos, saiu, <strong>de</strong>ixando a casa “llena <strong>de</strong> humo”. 325<br />

Quando foram verificar, não tinham <strong>de</strong>saparecido somente os livros, como também<br />

to<strong>da</strong> a biblioteca. Mandou recado para Dom Quixote “en altas voces que por<br />

en<strong>em</strong>istad secreta que tenía al dueño <strong>de</strong> aquellos libros y aposento, <strong>de</strong>jaba hecho el<br />

323 Veio sobre uma nuv<strong>em</strong> (1, VII, p.43)<br />

324 Desmontou <strong>de</strong> uma serpente (ibi<strong>de</strong>m)<br />

325 Cheia <strong>de</strong> fumaça (ibi<strong>de</strong>m)


<strong>da</strong>ño en aquella casa que <strong>de</strong>spués se vería”. 326 Dom Quixote o reconheceu<br />

imediatamente. Era o sábio encantador “Frestón”.<br />

É quando ficamos nós, leitores, além <strong>de</strong> avisados, também, cientes <strong>de</strong> que<br />

esse sábio encantador é inimigo <strong>de</strong> Dom Quixote, porque é <strong>pro</strong>tetor <strong>de</strong> um cavaleiro<br />

com qu<strong>em</strong> ele, “an<strong>da</strong>ndo los ti<strong>em</strong>pos”, 327 terá <strong>de</strong> “pelear en singular batalla”. 328 E diz<br />

mais: “que le tengo <strong>de</strong> vencer, sin que él lo pue<strong>da</strong> estorbar”. 329 Dom Quixote conclui<br />

que esse sábio encantador só age <strong>de</strong>sse modo, por saber que será uma batalha<br />

inevitável na qual ele não po<strong>de</strong>rá interferir. E que, por isso, fica criando situações<br />

que o <strong>de</strong>sagra<strong>de</strong>m, pois “<strong>pro</strong><strong>cura</strong> hacerme todos los sinsabores que pue<strong>de</strong>”. O que<br />

ficamos sabendo ao final é que “mándole yo, que mal podrá él contra<strong>de</strong>cir ni evitar lo<br />

que por el cielo está or<strong>de</strong>nado”. 330<br />

Na pressa, esquec<strong>em</strong>os uma informação. Po<strong>de</strong> ser que não seja importante,<br />

mas é melhor não <strong>de</strong>ixar na<strong>da</strong> escapar. Esse sábio encantador t<strong>em</strong> uma marca<br />

especial: t<strong>em</strong> parte com “artes y letras”.<br />

1.1 O QUE SE SABE DA LOUCURA, O QUE SE SABE DA RAZÃO?<br />

É impossível, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> s<strong>em</strong>elhante aviso cifrado, ficar tranqüilo. É o que<br />

acontece com Dom Quixote. Por sua cabeça começa a passar uma série <strong>de</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s sobre qu<strong>em</strong> será esse cavaleiro <strong>pro</strong>tegido <strong>de</strong> um encantador inimigo.<br />

S<strong>em</strong> <strong>de</strong>scobrir, ou, enquanto não <strong>de</strong>scobre, o preocupa aquela outra missão que<br />

326<br />

Em altos brados que por inimiza<strong>de</strong> secreta que tinha pelo dono <strong>da</strong>queles livros e aposento, <strong>de</strong>ixava feito o <strong>da</strong>no naquela<br />

casa que <strong>de</strong>pois se veria (1, VII, p.44).<br />

327<br />

T<strong>em</strong>pos <strong>de</strong>pois (ibi<strong>de</strong>m)<br />

328<br />

Combater <strong>em</strong> singular batalha (ibi<strong>de</strong>m)<br />

329<br />

Que tenho <strong>de</strong> vencê-lo, s<strong>em</strong> que ele possa evitar (ibi<strong>de</strong>m)<br />

330<br />

Mando-lhe eu, que mal po<strong>de</strong>rá ele contradizer ou evitar aquilo que pelo céu está or<strong>de</strong>nado (ibi<strong>de</strong>m)


não se sabe ser missão ou <strong>de</strong>-cisão, uma <strong>de</strong>-cisão a mais, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>-<br />

cisão <strong>de</strong> ser pastor. Trata-se <strong>da</strong> <strong>de</strong>-cisão-missão <strong>de</strong> contar aos <strong>de</strong>mais homens a<br />

experiência pela qual passara que o tornou conhecedor <strong>de</strong> si mesmo, sabedor <strong>de</strong><br />

sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que lhe valeu a consciência <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r-ser.<br />

Qu<strong>em</strong>, <strong>de</strong>scobridor <strong>de</strong>ssa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, consegue não <strong>de</strong>sejar informá-la aos<br />

<strong>de</strong>mais homens? Isso l<strong>em</strong>bra um pouco a <strong>pro</strong>posta <strong>de</strong> Platão <strong>de</strong> retorno <strong>à</strong> caverna,<br />

com a mesma intenção – a <strong>de</strong> libertar os prisioneiros <strong>de</strong> seu interior, os prisioneiros<br />

<strong>da</strong> ignorância. Só que aqui há gran<strong>de</strong>s diferenças, mas parece que Dom Quixote<br />

não as percebe muito b<strong>em</strong>. 331<br />

Por enquanto, <strong>da</strong> única coisa que sabe é que, se preten<strong>de</strong> contar para todos<br />

os homens, só po<strong>de</strong>rá contar com a palavra, pois esse é o único instrumento <strong>de</strong><br />

comunicação entre os homens. E se preocupa. Acreditariam no que dissesse?<br />

Consi<strong>de</strong>rando a mostra <strong>da</strong><strong>da</strong> no 1º Périplo, ficou pública e notória a sua<br />

<strong>de</strong>rrota para outro cavaleiro, com o com<strong>pro</strong>misso <strong>de</strong> retorno ao lar, s<strong>em</strong> voltar a<br />

exercer a velha função, a ponto <strong>de</strong> morrer s<strong>em</strong> jamais ter voltado a subir <strong>em</strong> seu<br />

alazão. Logo, aquele cavaleiro louco <strong>de</strong>saparecera, s<strong>em</strong> quê n<strong>em</strong> porquê. E ain<strong>da</strong><br />

que, segundo o epitáfio <strong>de</strong> Sansón Carrasco, a morte não tivesse triunfado (“que la<br />

muerte no triunfó”), 332 pincelando com toques míticos seu <strong>de</strong>saparecimento dos<br />

caminhos <strong>de</strong> la Mancha, ain<strong>da</strong> assim, o fato <strong>de</strong> reaparecer, contando inúmeras<br />

novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e assegurando ser conhecedor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, impossibilitava que nele<br />

viess<strong>em</strong> a acreditar.<br />

Dom Quixote fica agora mais preocupado diante do <strong>de</strong>safio que precisa<br />

enfrentar. Antes era só o contar, agora é o contar <strong>de</strong> modo a que todos acredit<strong>em</strong>. E<br />

331 Depois <strong>de</strong> sair <strong>da</strong> caverna e <strong>de</strong> ter tido acesso <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> maior, <strong>à</strong> Idéia do B<strong>em</strong>, o hom<strong>em</strong> recém saído <strong>da</strong> caverna, dotado<br />

<strong>da</strong> prerrogativa <strong>de</strong> ser filósofo, é impelido a resgatar os <strong>de</strong>mais homens que permanec<strong>em</strong> no interior <strong>da</strong> caverna, cativos <strong>da</strong><br />

ignorância <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

332 Que a morte não venceu (2, LXXIV, p.700)


ain<strong>da</strong> mais, carregando o peso <strong>de</strong> ter tomado conhecimento <strong>da</strong> luta inevitável com<br />

um tal cavaleiro <strong>de</strong>sconhecido. Dom Quixote apenas conhece o sábio encantador<br />

que t<strong>em</strong> parte com as “artes e letras”, o que lhe vale, por extensão, uma parcela <strong>de</strong><br />

parte com o diabo. A própria ama já o havia mencionado: “porque todo eso se lo<br />

llevó el mesmo diablo”, 333 no sumiço <strong>da</strong> biblioteca.<br />

Diabos <strong>à</strong> parte, sua preocupação está volta<strong>da</strong> mesmo para o falar. Agora sim,<br />

compreen<strong>de</strong>-se o seu aviso ve<strong>em</strong>ente, ao requisitar a atenção <strong>de</strong> todos: “soy loco en<br />

mis acciones, pero no soy loco en lo que hablo”. 334<br />

No entanto, é claro que não falou diretamente: sua mensag<strong>em</strong> chegou <strong>de</strong><br />

forma enviesa<strong>da</strong>, a partir <strong>da</strong> motivação dos que o observavam. É preciso <strong>da</strong>r voz<br />

novamente ao herói Dom Quixote, porque o contexto o requisita. Diante <strong>da</strong> presente<br />

contradição, qu<strong>em</strong> sabe se, constrangido, Dom Quixote se sinta na obrigação <strong>de</strong><br />

explicar-se: “¿habían <strong>de</strong> ser mentira, y más llevando tanta apariencia <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong>d [...]?” 335<br />

De qualquer modo, ressurge a mesma pergunta do 1º Périplo; lá, a serviço <strong>da</strong><br />

anamnese, quando, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ntificarmos com a Paidéia platônica,<br />

transformou-se no motor que mobilizou Dom Quixote a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>r Cura.<br />

Parece que há mais coisa para Dom Quixote <strong>de</strong>scobrir. Até então, acreditara<br />

ser a única ver<strong>da</strong><strong>de</strong> a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> essencial do hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r-ser to<strong>da</strong>s as<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Entretanto, se há uma batalha prevista para o futuro, isso nos dá<br />

sinais <strong>de</strong> que a história ain<strong>da</strong> não acabou, e que algo mais está no ar, para ser<br />

<strong>de</strong>sven<strong>da</strong>do.<br />

333 Porque tudo isso o próprio diabo levou (1, VII, p.43)<br />

334 Observado pelos olhos atentos <strong>de</strong> Tomé Cecial e <strong>de</strong> Dom Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>, instala-se o paradoxo “lou<strong>cura</strong>-luci<strong>de</strong>z” e a<br />

perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> todos. Dom Diego, intrigado, não compreendia porque Dom Quixote “lo que hablaba era concertado,<br />

elegante y bien dicho, y lo que hacía, disparatado, t<strong>em</strong>erario y tonto” * (2, XVII, p.410), <strong>de</strong>ixando visível uma linha divisória<br />

entre as ações (lo que hacía) e o falar (lo que hablaba); linha que igualmente separa “lou<strong>cura</strong>” e “razão”. Sensível a tudo, Dom<br />

Quixote respon<strong>de</strong> com uma frase assim simula<strong>da</strong> por nós: “soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo que hablo” **<br />

* o que falava era coerente, elegante e b<strong>em</strong> dito e, o que fazia era disparatado, t<strong>em</strong>erário e doido.<br />

** sou louco <strong>em</strong> minhas ações, mas não sou louco no que falo.<br />

335 Haveriam <strong>de</strong> ser mentira, e ain<strong>da</strong> mais tendo tanta aparência <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> [...]? (1, L, p.304)


Para Dom Quixote, por enquanto, é disso que necessita: fazer com que o<br />

mundo nele acredite no que t<strong>em</strong> para contar-lhe. L<strong>em</strong>bra então Dom Quixote que<br />

estivera, todo o t<strong>em</strong>po do 1º Périplo, muito voltado para si mesmo, e que será<br />

preciso também flexibilizar seu olhar, <strong>de</strong>scentrá-lo <strong>de</strong> si mesmo, para ter acesso ao<br />

outro. Pressente que não basta contar sua experiência s<strong>em</strong> estar a par do mundo<br />

real até então transformado, por ele mesmo, <strong>em</strong> outro mundo – o mundo <strong>da</strong><br />

cavalaria medieval, através <strong>de</strong> seu imaginário.<br />

Essa percepção faz Dom Quixote <strong>de</strong>sconfiar <strong>de</strong> que precisará, mais uma vez,<br />

ser porta-voz. Mas porta-voz do quê, afinal? Dom Quixote começa a <strong>da</strong>r sinais <strong>de</strong><br />

confusão, o que s<strong>em</strong>pre nos preocupa a todos. Melhor <strong>de</strong>ixar que ele vá<br />

caminhando passo a passo, s<strong>em</strong> exageros no exercício mental.<br />

Do que precisa inicialmente é olhar ao redor, sensibilizar-se para o mundo.<br />

Dom Quixote se dá conta <strong>de</strong> que está sendo olhado também, e que, as pessoas que<br />

o olham se mostram intriga<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>ndo indícios <strong>de</strong> perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong>. A mesma<br />

perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> que o obrigou a respon<strong>de</strong>r com a seguinte frase: “soy loco en mis<br />

acciones, pero no soy loco en lo que hablo”. 336 Entretanto, quando se dá conta, ele<br />

mesmo se põe perplexo, não com sua própria afirmação, mas com a perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dos <strong>de</strong>mais que o observam. Percebe haver, aí, algum nó.<br />

Vejamos se o po<strong>de</strong>mos aju<strong>da</strong>r. Nós, leitores <strong>da</strong> obra, também nos<br />

sensibilizamos para esse dil<strong>em</strong>a. Afinal, nos intrigam muito, também, as coisas que<br />

nela encontramos. É claro que isso basta para que o cavaleiro sensível volte a<br />

ocupar-se e pre-ocupar-se.<br />

Ele mesmo nos alerta <strong>de</strong> que Cura não se esgota, que é para to<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Ele<br />

mesmo que tomara o cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> não acreditar estar livre <strong>de</strong>finitivamente <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>cadência, porque para “estar lançado”, basta ser hom<strong>em</strong>. Ele mesmo que, <strong>de</strong>pois<br />

336 Sou louco <strong>em</strong> meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.


do filtro doloroso <strong>da</strong> angústia, sabe não ter chegado ao fim sua jorna<strong>da</strong>, a ponto <strong>de</strong><br />

não mais afirmar a velha frase retumbante com que abre o 1º Périplo: “Yo sé<br />

quien soy”. 337<br />

Foi possível com<strong>pro</strong>var seu cui<strong>da</strong>do ao fazer afirmações categóricas e<br />

<strong>de</strong>finitivas: a segurança e a certeza, ele as substitui por asserções mais cautelosas;<br />

como por ex<strong>em</strong>plo, afirmar pela negação: “yo no soy el don Quijote impreso en la<br />

primera parte”. 338 Mais significativo ain<strong>da</strong> é: “no sé si soy bueno, pero sé <strong>de</strong>cir que<br />

no soy el malo”, 339 on<strong>de</strong> a relação saber e não-saber, ser e não-ser vai ao limite<br />

máximo. 340 Dom Quixote <strong>de</strong>ixa evi<strong>de</strong>nte a mu<strong>da</strong>nça radical entre um extr<strong>em</strong>o “Yo sé<br />

quien soy” 341 e outro “no sé si soy”, 342 <strong>de</strong>monstrando consciência do transitório<br />

do “ser”.<br />

Depois <strong>de</strong> tanta experiência só ele mesmo para alertar que a resposta<br />

encontra<strong>da</strong> para o 1º Périplo não po<strong>de</strong> fechar-se <strong>em</strong> si mesma. Ain<strong>da</strong> que tenha sido<br />

satisfatória <strong>à</strong> pergunta que a gerou, ela é incontornável. Por isso, na brecha do<br />

incontornável, nova força o impulsiona, lançando-o circularmente a novas perguntas,<br />

que exig<strong>em</strong> novas respostas.<br />

Por mais que Dom Quixote tivesse insistido <strong>em</strong> contornar a natureza, fazendo<br />

valer suas teorias e conceitos, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> era outra: a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é paradoxal. O que<br />

vigia não se submetia aos limites impostos pelo que já era conhecido. Flutuavam<br />

numa zona intermediária – nos interstícios.<br />

Não tendo conseguido chegar ao fim <strong>da</strong> viag<strong>em</strong>, inevitavelmente, novo<br />

Périplo se impõe. Nesse Périplo, o impasse ser ou não ser louco nos obriga a<br />

337<br />

Eu sei qu<strong>em</strong> sou (1, V, p.35)<br />

338<br />

Eu não sou o Dom Quixote impresso na primeira parte (2, LXXII, p.691)<br />

339<br />

Não sei se sou bom; mas sei dizer que não sou o mau (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

340<br />

“Bueno” e “malo” são epítetos dos dois Quixotes <strong>da</strong> obra: um <strong>de</strong>les, “El Malo”, correspon<strong>de</strong> ao personag<strong>em</strong> plagiado e<br />

publicado por Avellane<strong>da</strong>.<br />

341 Eu sei qu<strong>em</strong> sou (1, V, p.35)<br />

342 Não sei se sou (2, LXXII, p.691)


etornar a Dom Quixote a questão, pedindo-lhe explicações: ninguém mais que ele<br />

mesmo, para saber o que preten<strong>de</strong> nessa nova volta. Entre mentiras, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s e<br />

aparências, que nos diga ele mesmo qual a gran<strong>de</strong> questão <strong>de</strong>ste 2º Périplo. Ou,<br />

caso ele mesmo não saiba respon<strong>de</strong>r, que pergunt<strong>em</strong>os <strong>à</strong> obra.<br />

“La razón <strong>de</strong> la sinrazón que a mi razón se hace, <strong>de</strong> tal manera mi razón<br />

enflaquece, que con razón me quejo <strong>de</strong> la vuestra fermosura. [...] Con estas razones<br />

perdía el pobre caballero el juicio”. 343 Não é possível ignorar um fragmento retirado<br />

<strong>da</strong> terceira página <strong>da</strong> obra, n<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> reconhecer, nele, nova contradição: razão<br />

e per<strong>da</strong> do juízo.<br />

É b<strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que o fragmento aparece como um mero e inocente ex<strong>em</strong>plo<br />

<strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> Feliciano <strong>de</strong> Silva, o autor preferido <strong>de</strong> Alonso Quijano. Entretanto, a<br />

leveza <strong>da</strong> inocência se <strong>de</strong>sfaz <strong>em</strong> duas passagens: a primeira, ao verificar-se estar a<br />

citação, no mesmo parágrafo que introduz o personag<strong>em</strong>, com insinuações <strong>de</strong> que<br />

per<strong>de</strong>ra o juízo, acrescido <strong>de</strong>: “Y llegó a tanto su curiosi<strong>da</strong>d y <strong>de</strong>satino”; 344 a<br />

segun<strong>da</strong>, no parágrafo imediatamente subseqüente, que revela com to<strong>da</strong>s as letras,<br />

a causa <strong>de</strong> sua lou<strong>cura</strong>: aquele estilo cheio <strong>de</strong> “entrica<strong>da</strong>s razones”; 345 ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros<br />

“requiebros” 346 do famoso Feliciano <strong>de</strong> Silva, “la clari<strong>da</strong>d <strong>de</strong> su <strong>pro</strong>sa y aquellas<br />

entrica<strong>da</strong>s razones suyas le parecían <strong>de</strong> perlas”. 347 Essa é a causa <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong><br />

Dom Quixote; s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po sequer para refletirmos, o parágrafo seguinte a apresenta<br />

<strong>de</strong> chofre: “Con estas razones perdía el pobre caballero el juicio”. 348 T<strong>em</strong>os então<br />

que a razão, aqui, aparece com<strong>pro</strong>meti<strong>da</strong> irr<strong>em</strong>ediavelmente com a lou<strong>cura</strong>. Mas o<br />

choque contraditório não pára por aí. Antes mesmo <strong>de</strong> que nos alerte o cavaleiro<br />

343 A razão <strong>da</strong> <strong>de</strong>srazão que a minha razão se faz, <strong>de</strong> tal maneira minha razão <strong>de</strong>bilita, que com razão me queixo <strong>de</strong> vossa<br />

formosura […] Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo (1, I, p.18).<br />

344 E chegou a tanto sua curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong>satino (ibi<strong>de</strong>m)<br />

345<br />

Intrinca<strong>da</strong>s razões (ibi<strong>de</strong>m)<br />

346<br />

Floreios.<br />

347<br />

A clareza <strong>de</strong> sua <strong>pro</strong>sa e aquelas intrinca<strong>da</strong>s razões suas, que lhe pareciam <strong>de</strong> pérolas (1, I, p.18)<br />

348 Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo (Ibi<strong>de</strong>m)


sobre ser louco nas ações, mas não ser louco no que diz, a obra já nos lança <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>sconcertantes contradições. Como é possível <strong>de</strong>monstrar interesse e entusiasmo<br />

taxados <strong>de</strong> <strong>de</strong>satino, por algo classificado como pérolas - “parecían <strong>de</strong> perlas” 349 se,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, com isso “perdía el pobre caballero el juicio”? 350 E mais; a causa<br />

<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o juízo estava exatamente no esforço <strong>em</strong>preendido para aten<strong>de</strong>r <strong>à</strong>s<br />

referi<strong>da</strong>s pérolas literárias que lia, pois Dom Quixote “<strong>de</strong>sbelábase por enten<strong>de</strong>rlas”,<br />

<strong>de</strong>ixando claro que o que lia não fazia nenhum sentido. Daí precisar o cavaleiro<br />

fazer sobrenatural esforço “por enten<strong>de</strong>rlas y <strong>de</strong>sentrañarles el sentido”. 351<br />

Sob várias perspectivas, aparece e reaparece a razão. Ora aparece por<br />

oposição radical, indo ao extr<strong>em</strong>o do irracional: Dom Quixote entrega o plano do<br />

itinerário <strong>de</strong> suas an<strong>da</strong>nças <strong>à</strong> orientação <strong>de</strong> Rocinante:<br />

En esto, llegó a un camino que en cuatro se dividía, y luego se le vino la<br />

imaginación las encruceja<strong>da</strong>s don<strong>de</strong> los caballeros an<strong>da</strong>ntes se ponían<br />

pensar cuál camino <strong>de</strong> aquéllos tomarían, y, por imitarlos, estuvo un rato<br />

quedo; y, al cabo <strong>de</strong> haberlo muy bien pensado, soltó la rien<strong>da</strong> a Rocinante,<br />

<strong>de</strong>jando a la voluntad <strong>de</strong>l rocín la suya. 352<br />

É contraditório que num contexto <strong>em</strong> que o cavaleiro é hom<strong>em</strong> do<br />

conhecimento, um filósofo b<strong>em</strong> formado segundo os padrões <strong>da</strong> Paidéia platônica,<br />

se <strong>de</strong>posite total confiança na orientação <strong>de</strong> um animal irracional. Po<strong>de</strong>-se<br />

interpretar essa opção <strong>de</strong> Dom Quixote, como um confronto entre a rigi<strong>de</strong>z dos<br />

mo<strong>de</strong>los racionais <strong>de</strong> apreensão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, e o acaso; uma abertura <strong>à</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do surpreen<strong>de</strong>nte e do espontâneo acontecer <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Ora a razão aparece <strong>em</strong> oposição sutil, <strong>de</strong>senhando o perfil psicológico <strong>de</strong><br />

dois personagens: Dorotea e Car<strong>de</strong>nio, como espelhos nos quais se possam ver.<br />

349 Pareciam pérolas (1, I, p.18)<br />

350 Perdia o pobre cavaleiro o juízo (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

351 Para <strong>de</strong>sentranhar-lhe o sentido (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

352 Nisto, chegou a um caminho que <strong>em</strong> quatro se dividia, e logo lhe veio <strong>à</strong> mente as encruzilha<strong>da</strong>s on<strong>de</strong> os cavaleiros<br />

an<strong>da</strong>ntes se punham a pensar qual dos caminhos tomariam, e, para imitá-los, esteve um momento quieto; e, a<strong>pós</strong> haver<br />

pensado muito b<strong>em</strong>, soltou as ré<strong>de</strong>as <strong>de</strong> Rocinante, <strong>de</strong>ixando <strong>à</strong> vonta<strong>de</strong> do rocim a sua (1, IV, p.32).


Um <strong>de</strong>les, Car<strong>de</strong>nio, cujo perfil é o conflito evi<strong>de</strong>nciado entre lou<strong>cura</strong> e razão.<br />

De tal modo que, quanto maior a razão, maior a lou<strong>cura</strong>. Há muito Car<strong>de</strong>nio exercita<br />

o esforço <strong>de</strong> buscar, no intelecto, as respostas que s<strong>em</strong>pre acreditara estar<strong>em</strong> ali<br />

disponíveis para uso. E, assim acreditando, é que também Car<strong>de</strong>nio se entrega ao<br />

vício do “lançar-se”. S<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, seu lançar-se é diferente do lançar-se <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote. A ca<strong>da</strong> urgência <strong>de</strong> um agir, se lança para <strong>de</strong>ntro, <strong>em</strong> direção aos<br />

caminhos tortuosos <strong>da</strong> introspecção. Car<strong>de</strong>nio é reflexivo, mestre <strong>em</strong> cogitações;<br />

seu raciocínio é lento, entrecortado <strong>de</strong> perguntas, <strong>de</strong>sculpas e imprecações. Avança<br />

no pensar, pára, retroce<strong>de</strong>, se per<strong>de</strong>, volta <strong>à</strong> direção inicial, e acaba caindo <strong>em</strong> total<br />

confusão. Todo seu agir mental se esgota <strong>em</strong> buscar argumentos, s<strong>em</strong> os quais<br />

suas razões não se sustentam, e com os quais gasta um t<strong>em</strong>po infinito. Nesse<br />

<strong>pro</strong>ce<strong>de</strong>r, sua mente racional, que lhe <strong>pro</strong>metera a garantia <strong>de</strong> certezas e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

se revela <strong>em</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m irreversível. Como resultado, seu <strong>pro</strong>jetar-se para fora, na<br />

tentativa <strong>de</strong> solucionar os impasses que a vi<strong>da</strong> lhe reserva, é s<strong>em</strong>pre um fracasso;<br />

ou melhor, não se concretiza. Isso acaba por imprimir, <strong>em</strong> Car<strong>de</strong>nio, sua marca<br />

característica: o t<strong>em</strong>or que culmina com a falta total <strong>de</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões, ou <strong>de</strong><br />

tomar a iniciativa para resolver <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>as. Car<strong>de</strong>nio se mostra assim um<br />

personag<strong>em</strong>-questão. Ele é o gran<strong>de</strong> impasse <strong>da</strong> razão buscando-se <strong>em</strong> si mesma.<br />

Para isso, é <strong>de</strong> uma inabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> cumprir seus <strong>pro</strong><strong>pós</strong>itos, ao<br />

menor obstáculo que se apresente.<br />

Seus t<strong>em</strong>ores não se manifestam <strong>de</strong> modo concreto; ao contrário, são<br />

difusos; ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros fantasmas, contra os quais reage com <strong>de</strong>scontrole total,<br />

objetivando-se <strong>em</strong> incoerência, contradição, fuga <strong>de</strong> si mesmo, <strong>em</strong> lou<strong>cura</strong>, afinal.<br />

Nessa corri<strong>da</strong> <strong>de</strong>senfrea<strong>da</strong> que acaba sendo <strong>de</strong> si mesmo, Car<strong>de</strong>nio está s<strong>em</strong>pre<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>scompasso <strong>em</strong> relação ao “estar aí”: No limite <strong>da</strong> cena <strong>em</strong> que sua ama<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>smaia, por não querer casar-se com o hom<strong>em</strong> a qu<strong>em</strong> estava <strong>pro</strong>meti<strong>da</strong>, mas que


não amava, Car<strong>de</strong>nio foge, assim dizendo: “en aquel punto me sobrase el<br />

entendimiento que <strong>de</strong>spués acá me ha faltado; y así, sin querer tomar venganza <strong>de</strong><br />

mis mayores en<strong>em</strong>igos”. 353 A dissonância entre o t<strong>em</strong>po mental e o t<strong>em</strong>po real do<br />

ser volta-se contra ele mesmo, invertendo a vingança que <strong>de</strong>veria ser dirigi<strong>da</strong> contra<br />

seus inimigos, todos os que tinham contribuído para que seu <strong>pro</strong>jeto amoroso não se<br />

cumprisse, “quise tomarla <strong>de</strong> mi mano y ejecutar en mí la pena que ellos merecían; y<br />

aun quizá con más rigor <strong>de</strong>l que con ellos se usara si entonces les diera muerte” 354 .<br />

O <strong>de</strong>scompasso razão-reali<strong>da</strong><strong>de</strong> assim o expressa: “que, por estar tan sin<br />

pensamiento mío, fuera fácil tomarla”, 355 referindo-se <strong>à</strong> vingança contra os inimigos:<br />

caso estivesse com a mente limpa, s<strong>em</strong> pensamento, caso não estivesse tão<br />

com<strong>pro</strong>metido com os “requiebros” mentais, medindo, avaliando, teria sido fácil pôr a<br />

vingança <strong>em</strong> prática.<br />

A falta <strong>de</strong> ritmo entre reali<strong>da</strong><strong>de</strong>-t<strong>em</strong>po-ser faz Car<strong>de</strong>nio, que t<strong>em</strong> seu<br />

surgimento na obra cheio <strong>de</strong> mistério, per<strong>de</strong>r esse mistério, e transformar-se num<br />

amontoado <strong>de</strong> fragmentos, on<strong>de</strong> razão e lou<strong>cura</strong> se intercalam, s<strong>em</strong> que nenhuma<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> se configure: quando ele aparece numa rachadura <strong>da</strong> serra (“en la<br />

quebra<strong>da</strong> <strong>de</strong> la sierra”) fala “cosas que no podían ser entendi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cerca, cuanto<br />

más <strong>de</strong> lejos”. 356 Interessante sua marca <strong>de</strong> ente fragmentado aparecer exatamente<br />

<strong>em</strong> lugar tão aci<strong>de</strong>ntado – uma rachadura <strong>da</strong> serra.<br />

O uso exacerbado <strong>da</strong> razão leva Car<strong>de</strong>nio a <strong>pro</strong>nunciar a frase admirável que<br />

revela a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> confiança naquilo que para ele representara a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

transcen<strong>de</strong>nte: “Quedé falto <strong>de</strong> consejo, <strong>de</strong>samparado, a mi parecer, <strong>de</strong> todo el<br />

353<br />

Naquele ponto me sobrasse o entendimento que <strong>de</strong>pois aqui me faltou, e assim, s<strong>em</strong> querer tomar vingança <strong>de</strong> meus<br />

maiores inimigos (1, XXVII, p.157).<br />

354<br />

Quis tomá-la <strong>de</strong> minha mão e executar <strong>em</strong> mim a pena que eles mereciam, e ain<strong>da</strong> quiçá com mais rigor do que com eles<br />

usasse se então lhes <strong>de</strong>sse morte (ibi<strong>de</strong>m)<br />

355<br />

Que, por estar tão s<strong>em</strong> pensamento meu, teria sido fácil tomá-la (ibi<strong>de</strong>m).<br />

356<br />

Coisas que não podiam ser entendi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> perto, quanto mais <strong>de</strong> longe (1, XXIII, p.129).


cielo, hecho en<strong>em</strong>igo <strong>de</strong> la tierra que me sustentaba”. 357 Ao lamentar-se, reconhece,<br />

não só a gran<strong>de</strong> fragmentação, como a falta total do amparo que só a terra<br />

misteriosa lhe concedia; porque vivia no mundo racional contava somente com as<br />

benesses do céu que an<strong>da</strong>va alijado <strong>da</strong> terra.<br />

E, para completar, t<strong>em</strong> também Car<strong>de</strong>nio um contato com pastores, com os<br />

quais parece manter uma relação <strong>de</strong> confronto. No auge e <strong>de</strong>sespero <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>, os<br />

pastores tentam reconfortá-lo, oferecendo-lhe espontaneamente algo que <strong>de</strong>monstra<br />

não querer receber. Parece não estar familiarizado com a entrega, com o <strong>de</strong>ixar<br />

acontecer, com a leveza do insinuar-se, parece preferir arrancar <strong>de</strong> modo mais<br />

artificial e violento: “porque cuando está con el acci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> la lo<strong>cura</strong>, aunque los<br />

pastores se lo ofrezcan <strong>de</strong> buen grado, no lo admite, sino lo toma a puña<strong>da</strong>s”. 358<br />

Tudo isso faz <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>nio uma presa fácil do outro. Entre acatar o <strong>de</strong>sejo<br />

interesseiro <strong>de</strong> seu pai, indo servir a um “un gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> España” 359 e lutar por seu<br />

amor, acaba optando pelo que dita o estabelecido, <strong>de</strong>monstrando, com isso, que<br />

ficar totalmente <strong>dom</strong>inado pela razão o imobiliza a um agir espontâneo diante dos<br />

gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>safios <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O contraponto <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>nio <strong>em</strong> relação a Dom Quixote é Dorotea, ótima atriz<br />

que participa <strong>de</strong> um fingir, <strong>de</strong>ntre os muitos <strong>pro</strong>vi<strong>de</strong>nciados para convencer Dom<br />

Quixote a regressar para casa. Assumindo o papel <strong>de</strong> Princesa Micomicona, Dorotea<br />

revela uma mente “arejadíssima”, e seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho intelectual <strong>em</strong> tudo contrasta<br />

com o <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>nio. Enquanto este foge do adversário que precisava enfrentar,<br />

adversário meramente representado por Dom Fernando, mas que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é a<br />

própria reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, enquanto isso, a impulsivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Dorotea a faz sair <strong>à</strong><br />

357<br />

Fiquei carente <strong>de</strong> conselho, <strong>de</strong>samparado, a meu ver, <strong>de</strong> todo o céu, tornado inimigo <strong>da</strong> terra que me sustentava<br />

(1, XXVII, p.157).<br />

358<br />

Porque quando está com o ataque <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong>, mesmo que os pastores o ofereçam <strong>de</strong> bom grado, não o aceita, <strong>em</strong> vez<br />

disso o toma a socos (1, XXIII, p.129).<br />

359 Um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> Espanha (1, XXIV, p.131).


<strong>pro</strong><strong>cura</strong> do traidor: “y me puse en camino <strong>de</strong> la ciu<strong>da</strong>d a pie, lleva<strong>da</strong> en vuelo <strong>de</strong>l<br />

<strong>de</strong>seo <strong>de</strong> llegar”. 360 Dorotea é movi<strong>da</strong>, não só pela razão, mas também pelo querer.<br />

Além disso, seu <strong>de</strong>staque está <strong>em</strong>, assumindo papel relevante no <strong>pro</strong>jeto “<strong>de</strong>l<br />

<strong>cura</strong>” e “<strong>de</strong>l barbero”, repatriar Dom Quixote, pois sua atuação é quase totalmente <strong>de</strong><br />

atriz. Assim, seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho revela claramente um jogo entre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e o fingir:<br />

[...] sé que me fue forzoso tener cuenta con mis lágrimas y con la<br />

compostura <strong>de</strong> mi rostro, por no <strong>da</strong>r ocasión a que mis padres me<br />

preguntasen que <strong>de</strong> qué an<strong>da</strong>ba <strong>de</strong>scontenta y me obligasen a buscar<br />

mentiras que <strong>de</strong>cilles. Pero todo esto se acabó en un punto, llegándose uno<br />

don<strong>de</strong> se atropellaron respectos y se acabaron los honrados discursos, y<br />

adon<strong>de</strong> se perdió la paciencia y salieron a plaza mis secretos<br />

pensamientos. 361<br />

Na linguag<strong>em</strong> é ágil, rápi<strong>da</strong>, esperta e astuta. Por esse <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho, <strong>de</strong><br />

acordo com a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do modo como ela se apresente, encontra<br />

s<strong>em</strong>pre um rol <strong>de</strong> palavras para expressar sua rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> compreensão <strong>da</strong>s coisas<br />

que vão lhe aparecendo pelos caminhos do diálogo. Joga com idéias, t<strong>em</strong> facili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> expressão, faz jogos <strong>de</strong> palavras como ninguém; é feliz na escolha dos melhores<br />

termos, brilhante <strong>em</strong> recortar frases e fazer trocadilhos:<br />

“Mas, por acabar presto con el cuento, que no le tiene, <strong>de</strong> mis <strong>de</strong>sdichas,”<br />

“no hallé <strong>de</strong>rrumba<strong>de</strong>ro ni barranco <strong>de</strong> don<strong>de</strong> <strong>de</strong>speñar y <strong>de</strong>spenar al amo<br />

[...] Digo, pues, que me torné a <strong>em</strong>boscar, y a buscar don<strong>de</strong>” “En fin, señor,<br />

lo que últimamente te digo es que, […] si ya es que te precias <strong>de</strong> aquello por<br />

que me <strong>de</strong>sprecias” [conversando com Clara] “Habláis <strong>de</strong> modo, señora<br />

Clara, que no puedo enten<strong>de</strong>ros: <strong>de</strong>claraos más y <strong>de</strong>cidme” 362<br />

360 E pus-me a caminho <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> a pé, alça<strong>da</strong> <strong>em</strong> vôo pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> chegar (1, XXVIII, p.166).<br />

361 Sei que fui obriga<strong>da</strong> a conter minhas lágrimas e manter a compostura <strong>de</strong> meu rosto, para não <strong>da</strong>r oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

meus pais me perguntass<strong>em</strong> por que an<strong>da</strong>va triste e me obrigass<strong>em</strong> a inventar mentiras que contar. Mas tudo isto se acabou<br />

<strong>de</strong> repente, chegando ao ponto on<strong>de</strong> se atropelaram os respeitos e acabaram os discursos honestos, e on<strong>de</strong> se per<strong>de</strong>u a<br />

paciência e saíram <strong>à</strong> praça meus secretos pensamentos (1, XXVIII, p.165).<br />

362 “Mas para acabar logo com o conto, que não lhe concerne, <strong>de</strong> minhas <strong>de</strong>sditas,” (1, XXVIII, p.162) “não encontrarei<br />

penhasco n<strong>em</strong> barranco <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>spencar e <strong>de</strong>spenar o amo […] Digo, portanto, que voltei a <strong>em</strong>boscar, e a buscar on<strong>de</strong>”<br />

(1, XVIII, p.167) “Enfim, senhor, o que ultimamente te digo é que, […] se já é que te apraz <strong>da</strong>quilo por que me <strong>de</strong>sprezas”<br />

(1, XXXVI, p.221) [conversando com Clara] “Falais <strong>de</strong> modo, senhora Clara, que não vos posso enten<strong>de</strong>r: <strong>de</strong>clarai-vos mais e<br />

dizei-me” (1, XLIII, p.265)


Po<strong>de</strong>-se ver, <strong>em</strong> Dorotea, s<strong>em</strong>elhanças com Sancho, no seu <strong>de</strong>svario <strong>de</strong><br />

ditos populares. Porém é diametralmente oposta sua atuação. Em Dorotea não há a<br />

repetição estéril pratica<strong>da</strong> pelo escu<strong>de</strong>iro que, para ca<strong>da</strong> situação, força e distorce<br />

seu conteúdo, para fazer nela caber algum velho conhecido refrão, a ponto <strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>les, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma avalanche, s<strong>em</strong> lhes <strong>da</strong>r nenhum sentido. A Dom Quixote,<br />

entretanto, talvez muito se ass<strong>em</strong>elhe. Basta que l<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os <strong>da</strong> relação intrigante<br />

entre Dom Quixote na vi<strong>da</strong> e Dom Quixote na ficção.<br />

Dorotea é espontânea, entrega-se ao sabor <strong>da</strong> conversa, s<strong>em</strong> pr<strong>em</strong>editar<br />

suas intervenções. Seu nome dispensa explicação: significa “presente <strong>da</strong> <strong>de</strong>usa/<br />

<strong>de</strong>us”. Desse modo, ao contrário <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>nio, é um manancial <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. É<br />

conveniente, entretanto, <strong>de</strong>ixar claro que Dorotea não é louca. Todo seu<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho criativo e brilhante é resultante do pleno estado <strong>de</strong> razão.<br />

Está formado um par: enquanto Dorotea <strong>de</strong>monstra ter quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s típicas<br />

particulares do uso <strong>da</strong> razão com <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho literalmente atípico e especial;<br />

Car<strong>de</strong>nio é louco exatamente porque é escravo <strong>da</strong> razão. A inter<strong>de</strong>pendência<br />

lou<strong>cura</strong>-razão permanece.<br />

São tantas as <strong>pro</strong>vocações do par lou<strong>cura</strong> - razão que o t<strong>em</strong>a não se esgota.<br />

A lou<strong>cura</strong> po<strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> aparecer, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a superposição com a razão, até o confronto<br />

<strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, opondo ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e falso.<br />

Sabe-se que Dom Quixote era “cuerdo” e que, <strong>de</strong>pois, fica louco. Sabe-se<br />

que, do par, cavaleiro-escu<strong>de</strong>iro, um é louco, o outro é “cuerdo”, ou seja, não é<br />

louco. Sabe-se também, <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong> e <strong>da</strong> razão que, surpreen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, a<br />

oposição dá lugar <strong>à</strong> superposição: há dois loucos, assim reconhecidos e<br />

caracterizados: além <strong>de</strong> Dom Quixote, há o outro; ele t<strong>em</strong> o seu duplo; “Dom Quixote<br />

II”, personag<strong>em</strong> que Avellane<strong>da</strong> a<strong>pro</strong>veitou, na brecha entre a primeira e a segun<strong>da</strong><br />

parte, para plagiar. Pois é, Dom Quixote tinha um duplo, mas esse duplo a ele se


opunha radicalmente, era Dom Quixote “El Malo”, cognome que lhe coube para<br />

marcar a diferença. O ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro Dom Quixote era “El Bueno”. Com a inclusão<br />

<strong>de</strong>sse novo personag<strong>em</strong>, ficam marcados os limites entre bom e mau, <strong>de</strong>limitam-se<br />

os rigores <strong>da</strong> a<strong>de</strong>quação: o que não cabe <strong>de</strong>ntro dos limites <strong>da</strong> correspondência<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> é lançado para fora do terreno <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, é falso. Mais<br />

um par paradoxal entra <strong>em</strong> cena.<br />

Embora o racional já tenha feito sua aparição no 1º Périplo, sua marcante<br />

presença na obra exige atenção. Atenção que Dom Quixote, “hombre <strong>de</strong><br />

entendimiento” 363 teve. S<strong>em</strong> ter precisado abandonar a consciência <strong>de</strong> tudo o que<br />

fizera, fora capaz <strong>de</strong> ficar louco; sabe mais do que ninguém que é preciso ter<br />

atenção, e t<strong>em</strong>. De tal modo que, assim que lhe entregamos material <strong>de</strong> nossa<br />

pesquisa, apresentando-lhe o quadro que opõe lou<strong>cura</strong> <strong>à</strong> razão, logo percebe haver<br />

dissonâncias.<br />

Logo <strong>de</strong> início, Dom Quixote fica surpreso com uma personag<strong>em</strong> até então<br />

por ele <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, pelo menos com esse nome. Não é tanto pelo nome, mas<br />

muito mais pela novi<strong>da</strong><strong>de</strong> que sua presença marcante insinuava, acenando-lhe com<br />

algo novo.<br />

No 1º Périplo, <strong>da</strong> competição ao lugar <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom Quixote só l<strong>em</strong>bra<br />

ter<strong>em</strong> participado o relativismo, o nominalismo e o <strong>em</strong>pirismo, como concorrentes <strong>de</strong><br />

peso. Dessa competição ele participava como concorrente forte também,<br />

patrocinado “por la república cristiana”. Por mais que se esforce, não consegue<br />

l<strong>em</strong>brar <strong>de</strong> nenhum outro participante <strong>da</strong> peleja.<br />

É preciso mais investigar. Dom Quixote não se conforma com os meandros<br />

por on<strong>de</strong> o leva essa nova personag<strong>em</strong>. Para ele não é possível que lou<strong>cura</strong> esteja<br />

tão atrela<strong>da</strong> <strong>à</strong> razão. Os ex<strong>em</strong>plos levantados sobre a lou<strong>cura</strong> o intrigam e não o<br />

363 Hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> entendimento (1, XX, p.103)


convenc<strong>em</strong>. O que se preten<strong>de</strong> nesse jogo lou<strong>cura</strong>-razão, se não é possível <strong>de</strong>finir<br />

seus liames? Pelo que se pô<strong>de</strong> observar, o fator <strong>de</strong>terminante para <strong>de</strong>finir o limite<br />

“louco” – “não louco” é a relação que as coisas mantêm com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por ora,<br />

entretanto, Dom Quixote seguirá <strong>em</strong> investigação para ver se surpreen<strong>de</strong>, na relação<br />

lou<strong>cura</strong>-razão, algo mais que lhe sirva <strong>de</strong> suporte.<br />

1.2 UM MUNDO CHEIO DE CONTRADIÇÃO<br />

Tentar resolver esse <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a é voltarmos <strong>à</strong> obra e <strong>de</strong>ixá-la falar.<br />

“Loco [...] por no po<strong>de</strong>r menos”. 364 O fragmento sugere uma oposição radical.<br />

Parece que Dom Quixote optou pela lou<strong>cura</strong>, tendo consciência do inevitável <strong>de</strong> tal<br />

<strong>de</strong>cisão. Diz-se que a lou<strong>cura</strong> s<strong>em</strong>pre esteve entre os homens; t<strong>em</strong>-se assegurado<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Platão, que não chega a ser um mal, “mas, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém [...] inspira<strong>da</strong><br />

pelos <strong>de</strong>uses” 365 . Des<strong>de</strong> Eros e Afrodite até as Musas, a lou<strong>cura</strong> é s<strong>em</strong>pre uma<br />

espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio comum aos adivinhos, <strong>à</strong>queles que têm o <strong>dom</strong> <strong>de</strong> prever o futuro,<br />

superando, <strong>em</strong>, grau qualquer sabedoria dos homens: “o <strong>de</strong>lírio que <strong>pro</strong>vém dos<br />

<strong>de</strong>uses é mais nobre que a sabedoria que v<strong>em</strong> dos homens”, 366 com o hom<strong>em</strong><br />

colaborando como meio para libertá-lo <strong>de</strong> seus males. 367<br />

De to<strong>da</strong>s essas espécies <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio que caracterizam a lou<strong>cura</strong>, a mais<br />

inspiradora é a <strong>da</strong>s Musas. Ai <strong>da</strong>quele que ouse a<strong>pro</strong>ximar-se “dos umbrais <strong>da</strong> arte<br />

poética, s<strong>em</strong> o <strong>de</strong>lírio que é <strong>pro</strong>vocado pelas Musas”. 368<br />

364 Louco [...] por falta <strong>de</strong> alternativa. (2, XV, p.397)<br />

365 PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p.79-80.<br />

366 Ibi<strong>de</strong>m, p.80.<br />

367 C.f. Ibi<strong>de</strong>m, p.81.<br />

368 Ibi<strong>de</strong>m, p.81.


Caso creia ser possível algum êxito nessa arte, contando apenas com o<br />

intelecto, estará enganando-se, com uma <strong>pro</strong>dução páli<strong>da</strong>, <strong>de</strong>s<strong>pro</strong>vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> paixão<br />

que só os <strong>de</strong>uses po<strong>de</strong>m veicular.<br />

To<strong>da</strong> essa gran<strong>de</strong>za s<strong>em</strong>pre tivera a lou<strong>cura</strong>. Entretanto, por muito t<strong>em</strong>po<br />

estivera tranca<strong>da</strong> a sete chaves; travaram-lhe a passag<strong>em</strong>, impedindo-lhe que<br />

transitasse livr<strong>em</strong>ente. Alguma ameaça representaria, para precisar ser enquadra<strong>da</strong><br />

como coisa <strong>pro</strong>ibi<strong>da</strong> ou, no mínimo, perigosa. Caso contrário, essa opção tão radical<br />

não exigiria <strong>de</strong> Dom Quixote a justificativa <strong>de</strong> não ter ele outra alternativa (“loco por<br />

no po<strong>de</strong>r menos”). Essa seria uma <strong>da</strong>s explicações, mas falta ain<strong>da</strong> aquela que,<br />

também sugeri<strong>da</strong> no fragmento, justifica a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o fi<strong>da</strong>lgo enlouquecer;<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> que nos soa como vital __ “por no po<strong>de</strong>r menos”. De qualquer modo,<br />

fica caracteriza<strong>da</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> um espaço, não só <strong>de</strong>limitado, mas também<br />

nomeado “lou<strong>cura</strong>”. Dom Quixote, s<strong>em</strong> outra alternativa, opta por esse espaço e não<br />

pelo seu oposto literal e paradoxal __ a razão.<br />

No 1º Périplo, a asserção __ “loco por no po<strong>de</strong>r menos” __ funciona como<br />

alternativa <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m prática. A opção aten<strong>de</strong> <strong>à</strong> urgência do inadiável: trazer, ao seu<br />

t<strong>em</strong>po, o mundo <strong>da</strong> cavalaria, para nesse mundo se lançar, <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura.<br />

No 2º Périplo, “loco por no po<strong>de</strong>r menos” adquire outro sentido: mais<br />

consciente, Dom Quixote lança o olhar para o horizonte e vê to<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cindi<strong>da</strong>.<br />

É quando se dá conta <strong>de</strong> que vão se formando dois blocos estanques, <strong>de</strong>finitiva e<br />

rigorosamente <strong>em</strong> oposição.<br />

Tendo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir, Dom Quixote, “por no po<strong>de</strong>r menos”, no 1º Périplo optou<br />

pela lou<strong>cura</strong> e virou cavaleiro louco; pois se não havia opção, s<strong>em</strong> outro jeito, opta<br />

pela lou<strong>cura</strong>. Essa <strong>de</strong>cisão, entretanto, põe <strong>em</strong> cena um dil<strong>em</strong>a. A situação que se<br />

instala efetivamente é paradoxal: ao exercer a função filósofo, que Dom Quixote se<br />

esforçou para cumprir com perfeita diligência, a sua face razão acabou,


contraditoriamente, tendo <strong>de</strong> conviver com sua face lou<strong>cura</strong>. Esse convívio <strong>de</strong>veria,<br />

por si só, <strong>de</strong>sfazer o paradoxo ou, no mínimo, convocar a pensar. No entanto, não<br />

foi isso o que aconteceu.<br />

E Dom Quixote pensa. Pensa e fica apreensivo, como todos nós.<br />

Se Dom Quixote já sinalizara a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> convivência lou<strong>cura</strong>-razão,<br />

isso acaba sendo impossibilitado por outra aparente cisão. Não satisfeitos <strong>em</strong><br />

separar lou<strong>cura</strong> e razão, ao primeiro sinal <strong>de</strong>, com sua sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom Quixote<br />

atinar para essa possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, impõ<strong>em</strong> outra.<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não se trata <strong>de</strong> outra cisão, ela é a mesma que separa lou<strong>cura</strong><br />

e razão. O que se vê é a inviabilização <strong>de</strong> qualquer convivência. Apesar <strong>de</strong><br />

participar<strong>em</strong> energeticamente na mente, a força e o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> cisão acabam<br />

anulando uma <strong>à</strong> outra. Foi o que revelou a avaliação s<strong>em</strong>pre positiva do<br />

entendimento, exaltando o lado racional, <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> imaginação, uma vez que<br />

esta estava irr<strong>em</strong>ediavelmente doente. To<strong>da</strong>s as vezes que Dom Quixote t<strong>em</strong><br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> exibir sua faceta racional <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> do entendimento, é por todos<br />

percebido e elogiado. Junto com o elogio, não se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> fazer menção, entretanto,<br />

<strong>à</strong> sua faceta que extrapola os limites do racional, faceta por on<strong>de</strong> transita,<br />

livr<strong>em</strong>ente, o que nele persiste do cavaleiro:<br />

En los que escuchado le habían sobrevino nueva lástima <strong>de</strong> ver que hombre<br />

que, al parecer, tenía buen entendimiento y buen discurso en to<strong>da</strong>s las<br />

cosas que trataba, le hubiese perdido tan r<strong>em</strong>ata<strong>da</strong>mente en tratándole <strong>de</strong><br />

su negra y pizmienta caballería. 369<br />

369 Naqueles que o escutaram, sobreveio nova lástima <strong>de</strong> ver que hom<strong>em</strong> que, ao que parecia, tinha bom entendimento e<br />

discurso <strong>em</strong> tudo <strong>de</strong> que tratavam, o houvesse perdido tão r<strong>em</strong>ata<strong>da</strong>mente, <strong>em</strong> se tratando <strong>da</strong> negra e obs<strong>cura</strong> cavalaria<br />

an<strong>da</strong>nte (1, XXXVIII, p.233).


Assim, o paradoxo permanece. Mesmo que Dom Quixote tivesse <strong>pro</strong>vado ser<br />

possível a dupla atuação, ela parece ser inviabiliza<strong>da</strong> porque uma <strong>de</strong>las é rejeita<strong>da</strong>,<br />

critica<strong>da</strong> e avalia<strong>da</strong> como lamentável.<br />

Volt<strong>em</strong>os a Platão: dos quatro tipos <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong> que <strong>de</strong>screve; uma é a lou<strong>cura</strong><br />

<strong>pro</strong>fética, a <strong>de</strong> Apolo; a segun<strong>da</strong> é aquela que dá abertura a to<strong>da</strong>s as transgressões<br />

possíveis com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>pro</strong>mover a purificação <strong>de</strong> todo o imposto pelas<br />

exigências éticas limitadoras: é a lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Dionísio, a pratica<strong>da</strong> nos Mistérios <strong>de</strong><br />

Eleusis; a terceira é a lou<strong>cura</strong> auspicia<strong>da</strong> pelas Musas. Essa lou<strong>cura</strong> é a lou<strong>cura</strong><br />

inspiradora, a que surpreen<strong>de</strong> e toma os escolhidos para <strong>pro</strong>duzir<strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s obras.<br />

Homero e Hesíodo foram tomados pelas Musas. A última é a lou<strong>cura</strong> passional, a<br />

lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Eros ou Afrodite que se apresenta junto com o sentimento do amor.<br />

Platão consi<strong>de</strong>ra a lou<strong>cura</strong> também divina e a caracteriza como liberação divina dos<br />

módulos ordinários dos homens: “liberación divina <strong>de</strong> los módulos ordinarios <strong>de</strong> los<br />

hombres” 370 .<br />

Seria essa liberação do ordinário, o espaço <strong>da</strong> imaginação que, por seu turno,<br />

coinci<strong>de</strong> com a lou<strong>cura</strong>? E, por que representaria perigo? Localiza<strong>da</strong> para além do<br />

ordinário, parece dividir espaço com o “ex”, aquele mesmo espaço do “experienciar”<br />

que lança tudo para fora dos limites.<br />

Pois b<strong>em</strong>, essa informação talvez sirva para mais adiante. Por ora, o que está<br />

<strong>em</strong> questão é exatamente a concorrência <strong>de</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s diametralmente opostas.<br />

Essa oposição se <strong>de</strong>sdobra infinitamente, haja vista as duas zonas <strong>em</strong> que está<br />

cindi<strong>da</strong> a mente <strong>de</strong> Dom Quixote: “entendimiento” e “imaginación”. Observa-se,<br />

entretanto, o <strong>de</strong>staque que o entendimento t<strong>em</strong> sobre a imaginação. Basta<br />

370 Liberação divina dos módulos comuns dos homens (ARÊAS, James. O <strong>de</strong>lírio dos <strong>de</strong>uses e a lou<strong>cura</strong> dos filósofos.<br />

Comum. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Facha, v.11, n.25, p.5-24, jun-<strong>de</strong>z 2005. [impresso])


selecionarmos os comentários <strong>de</strong>correntes <strong>da</strong> avaliação feita pelos que observavam<br />

seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho, como ficou com<strong>pro</strong>vado no discurso acima.<br />

A obra está cheia <strong>de</strong> marcações que revelam isso. Consi<strong>de</strong>ramos, aqui,<br />

imaginação, tudo o que estiver na zona <strong>de</strong> atuação <strong>de</strong> Dom Quixote correspon<strong>de</strong>nte<br />

<strong>à</strong> cavalaria <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média; essa era a zona doente, essa era a zona louca.<br />

É claro que Dom Quixote não é o primeiro a receber esse diagnóstico: doença<br />

<strong>da</strong> imaginação. Também o filósofo D<strong>em</strong>ócrito Ab<strong>de</strong>rita, como está registrado por<br />

Unamuno <strong>em</strong> Vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> don Quijote y Sancho, retomado por Stephen Gilman 371 , foi<br />

tido como louco pelos habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>ra e acabou nas mãos <strong>de</strong><br />

Hipócrates que, <strong>da</strong> Ilha <strong>de</strong> Coos, partiu com a urgente missão <strong>de</strong> <strong>cura</strong>r o ilustre<br />

filósofo, <strong>pro</strong>vidência pela qual lhe <strong>pro</strong>meteram altíssimas recompensas. Interessante,<br />

e que merece registro, é que o paciente <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>ra é também um filósofo; do mesmo<br />

modo que Dom Quixote.<br />

O enfermo D<strong>em</strong>ócrito foi submetido por Hipócrates a uma sabatina <strong>de</strong> cunho<br />

puramente racional, obtendo resultado, na avaliação <strong>de</strong> seu sabatinador,<br />

surpreen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente positivo, dizendo inclusive que loucos e <strong>de</strong>satinados eram<br />

todos os <strong>de</strong>mais que assim o tinham diagnosticado porque, no breve t<strong>em</strong>po que<br />

D<strong>em</strong>ócrito “razonó” 372 com Hipócrates, <strong>pro</strong>feriu belos discursos <strong>de</strong> entendimento,<br />

não <strong>de</strong> imaginação. Concluiu-se, assim, que a lesão estava localiza<strong>da</strong> num único<br />

setor <strong>de</strong> sua mente – na imaginação.<br />

Se, do mesmo modo que D<strong>em</strong>ócrito, também filósofo, Dom Quixote tinha<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho brilhante nas situações <strong>de</strong> “entendimento”, é natural que todos<br />

concluíss<strong>em</strong> ter ele o mesmo mal: ser a lesão <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>da</strong> mesma natureza.<br />

É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que se mostra perfeitamente lúcido <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos;<br />

371 Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993.<br />

372 Pon<strong>de</strong>rou.


entretanto, parece que sua mente dá saltos constantes <strong>da</strong> razão <strong>à</strong> imaginação,<br />

oferecendo uma gama imensa <strong>de</strong>sses trânsitos, que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a opinião <strong>de</strong><br />

personagens com qu<strong>em</strong> Dom Quixote contracena até as do próprio herói.<br />

Nessa avaliação, fica patente que a mente não funciona porque não é<br />

saudável <strong>em</strong> sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>. No t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote, a mente já se mostra<br />

fragmenta<strong>da</strong> <strong>em</strong> compartimentos. Na obra, junto com “entendimento”, são<br />

mencionados os termos razão e racional, <strong>em</strong> franca oposição <strong>à</strong> imaginação e <strong>à</strong><br />

fantasia: “yo imagino que todo lo que digo es así, sin que sobre ni falte na<strong>da</strong>; y<br />

píntola en mi imaginación como la <strong>de</strong>seo”. 373<br />

Na tentativa <strong>de</strong> compreensão, fomos buscar o seu significado: “ingenio” é<br />

apresentado como força natural <strong>de</strong> entendimento, força investigadora <strong>de</strong> tudo aquilo<br />

que, pela razão ou pelo discurso, é possível alcançar-se, tanto nas ciências e na<br />

arte, como <strong>em</strong> qualquer área. Acatar esse significado como possível, torna-se<br />

simples, também. Tanto Dom Quixote, como todos os do seu t<strong>em</strong>po estão voltados<br />

para a aquisição <strong>de</strong> conhecimento. A todo o momento, encontramos, no texto <strong>de</strong><br />

Cervantes, referência <strong>à</strong>s “armas” e <strong>à</strong>s “letras”, como fortes el<strong>em</strong>entos característicos<br />

<strong>da</strong>quele momento. Nosso herói sabe tudo, sabe tanto, a ponto <strong>de</strong> Sancho, um dia,<br />

compará-lo com um <strong>de</strong>mônio por sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ter todo tipo <strong>de</strong><br />

conhecimento: “Digo <strong>de</strong> ver<strong>da</strong>d que es vuestra merced el mesmo diablo y que no<br />

hay cosa que no sepa”. 374<br />

Dom Quixote t<strong>em</strong> muito b<strong>em</strong> <strong>de</strong>lineado o perfil do hom<strong>em</strong> <strong>da</strong>s letras, o<br />

suficiente para <strong>pro</strong>var já estar configurado esse hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua época: para que um<br />

hom<strong>em</strong> <strong>da</strong>quela época fosse <strong>em</strong>inente nas letras, “le cuesta ti<strong>em</strong>po, vigilias, hambre,<br />

373<br />

Eu imagino que tudo que digo é assim, s<strong>em</strong> que sobre ou falte na<strong>da</strong>; e pinto-a e minha imaginação tal como a<br />

<strong>de</strong>sejo (1, XXV, p.142).<br />

374<br />

Digo <strong>de</strong> fato que é vossa mercê o próprio diabo e que não há na<strong>da</strong> que não saiba (1, XXV, p.143)


<strong>de</strong>snu<strong>de</strong>z, vaguidos <strong>de</strong> cabeza, indigestiones <strong>de</strong> estómago, y otras cosas”. 375 Se<br />

eram as letras a preocupação <strong>da</strong> época, como se justifica a lou<strong>cura</strong> como presença<br />

constante na obra? É extr<strong>em</strong>amente contraditório que a história <strong>de</strong> um louco tenha<br />

como título “El ingenioso hi<strong>da</strong>lgo Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha”, 376 <strong>em</strong> oposição radical<br />

<strong>à</strong> sua t<strong>em</strong>ática. Por que Cervantes <strong>de</strong>nomina, com tanta serie<strong>da</strong><strong>de</strong>, seu louco<br />

<strong>pro</strong>tagonista <strong>de</strong> “ingenioso”?<br />

Além <strong>de</strong>sse ex<strong>em</strong>plo, Dom Quixote se mostra “muy subido ingenio”; 377<br />

quando dá uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira aula, ao <strong>de</strong>finir poesia:<br />

La poesía, señor hi<strong>da</strong>lgo, a mi parecer, es como una doncella tierna y <strong>de</strong><br />

poca e<strong>da</strong>d, y en todo estr<strong>em</strong>o hermosa, a quien tienen cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong><br />

enriquecer, pulir y adornar otras ciencias, y ella se ha <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s, y<br />

to<strong>da</strong>s se han <strong>de</strong> autorizar con ella. 378<br />

Muitos outros ex<strong>em</strong>plos ilustram essa tendência investigadora na trilha do<br />

conhecimento. É preciso estar atento, entretanto, para o que alertou Dom Quixote: a<br />

seus olhos, a razão não parece configurar-se na <strong>de</strong>pendência tão estreita <strong>da</strong><br />

lou<strong>cura</strong>. Mesmo s<strong>em</strong> querer preocupar-se com isso, no momento, Dom Quixote<br />

precisa chamar a atenção para o cui<strong>da</strong>do que se <strong>de</strong>ve ter a esse respeito. Nesse<br />

fragmento, por ex<strong>em</strong>plo, não se percebe relação razão - lou<strong>cura</strong>, a relação parece<br />

ser <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m. Embora nossa interpretação <strong>de</strong>clare estar a poesia restrita<br />

também aos limites do conhecimento, é possível também antever, nas entrelinhas,<br />

uma certa ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, apontando para um possível jogo entre ciência e poesia,<br />

apontando para o que nelas há <strong>de</strong> essencial, talvez.<br />

375<br />

Custa-lhe t<strong>em</strong>po, noites <strong>em</strong> claro, fome, nu<strong>de</strong>z, tonturas <strong>de</strong> cabeça, indigestões <strong>de</strong> estômago, e outras coisas<br />

(1, XXXVIII, p.232).<br />

376<br />

O engenhoso fi<strong>da</strong>lgo Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha.<br />

377<br />

Muito elevado engenho.<br />

378<br />

A poesia, senhor fi<strong>da</strong>lgo, <strong>em</strong> minha opinião, é como uma donzela compassiva e <strong>de</strong> pouca i<strong>da</strong><strong>de</strong>, e <strong>em</strong> tudo bela <strong>em</strong><br />

extr<strong>em</strong>o; a qu<strong>em</strong> têm o zelo <strong>de</strong> valorizar, polir e adornar as outras ciências, e ela há <strong>de</strong> servir-se <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s, e to<strong>da</strong>s hão <strong>de</strong><br />

abonar-se nela (2, XVI, p.402).


Digam o que digam: se por excesso <strong>de</strong> leitura, se por “calentura” lhe secaram<br />

os miolos, não importa. Importa sim, que sua imaginação é que acabou ficando<br />

com<strong>pro</strong>meti<strong>da</strong>. Na aparência é isso que a obra indica; mas seria possível levantar<br />

outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não seria a imaginação, uma contraparti<strong>da</strong> para garantir-lhe a<br />

saú<strong>de</strong>? Dom Quixote não é um ente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real que necessite com<strong>pro</strong>var sua<br />

existência civil, logo, essa saú<strong>de</strong> se refere a algo b<strong>em</strong> maior do que está previsto<br />

<strong>de</strong>ntro dos limites ônticos. Essa saú<strong>de</strong> é extensiva a todos os homens. Isso porque,<br />

Dom Quixote é uma imag<strong>em</strong> que abarca todos os homens <strong>em</strong> todos os seus<br />

<strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>as e questões.<br />

Nesse caso, se a imaginação po<strong>de</strong> ser abertura para a saú<strong>de</strong>, isso significa<br />

que Dom Quixote t<strong>em</strong> razão quando <strong>de</strong>sconfia não se restringir a razão ao par<br />

lou<strong>cura</strong>. É possível que a razão jogue, também, com outros pares; a imaginação, por<br />

ex<strong>em</strong>plo.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que avançamos, recuamos, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

pensamos ter <strong>em</strong> mãos a resposta, aparece Dom Quixote para flexibilizar.<br />

Embora sabedores agora <strong>da</strong>s diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong>, <strong>em</strong>bora já<br />

saibamos ser<strong>em</strong> suas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s muito amplas, seguimos, nós e Dom Quixote,<br />

intrigados. É inegável a visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> com que aos poucos vai ganhando forma a cisão<br />

que põe <strong>em</strong> confronto lou<strong>cura</strong> e razão, s<strong>em</strong> que o justifiqu<strong>em</strong> motivos plausíveis. Na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, com que está mais preocupado Dom Quixote, não é com a razão, e sim<br />

com algo mais que sua sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> son<strong>da</strong> no ar. Esse algo mais talvez seja o<br />

responsável pela a cisão que traz o mundo todo contornado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> limites. De tal<br />

modo que já estão se tornando perceptíveis a todos que para esse fenômeno olham<br />

com olhos questionadores.


Foi o que aconteceu com Dom Quixote, que exigiu que ele próprio <strong>de</strong>sse<br />

explicações: “soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo que hablo”. 379 O<br />

<strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a mais ain<strong>da</strong> se agrava, porque, diante do olhar <strong>de</strong> todos, é o próprio Dom<br />

Quixote qu<strong>em</strong> acaba sendo obrigado a plasmar o estranho paradoxo.<br />

Na obra, é a primeira vez que a lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote é posta <strong>em</strong> xeque,<br />

<strong>de</strong> modo a que o próprio personag<strong>em</strong> possa opinar e participar <strong>de</strong>ssa avaliação: <strong>em</strong><br />

busca <strong>de</strong> glória e fama, Dom Quixote, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar escapar a mínima oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>safia “el leonero”, o hom<strong>em</strong> que conduz uma carroça com bravos e famintos<br />

leões, um presente do Marechal <strong>de</strong> Orán ao rei, a abrir a jaula para que possa<br />

<strong>pro</strong>var sua corag<strong>em</strong> a todos os que pu<strong>de</strong>r<strong>em</strong> test<strong>em</strong>unhar seu ato <strong>de</strong> bravura e,<br />

<strong>de</strong>sse modo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, junto ao rei, o seu prestígio.<br />

Mesmo diante dos alertas <strong>de</strong> todos, e <strong>da</strong>s súplicas <strong>de</strong> Sancho, o cavaleiro<br />

leva seu <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito adiante. É salvo pelo rebate falso: aberta a porta, o leão,<br />

“<strong>de</strong>spués <strong>de</strong> haber mirado a una y otra parte [...] volvió las espal<strong>da</strong>s y enseñó sus<br />

traseras partes a don Quijote”, 380 <strong>de</strong>smentindo a bravura e a fome <strong>pro</strong>paga<strong>da</strong>s.<br />

Don Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong> que na<strong>da</strong> havia <strong>pro</strong>ferido, observava o fato e anotava<br />

cui<strong>da</strong>dosamente as palavras <strong>de</strong> Dom Quixote. Intrigava-lhe o manchego<br />

“pareciéndole que era un cuerdo loco y un loco que tiraba <strong>de</strong> cuerdo”; 381 intrigava-lhe<br />

o gênero <strong>de</strong> sua lou<strong>cura</strong>; por isso <strong>em</strong> alguns momentos “ ya le tenía por cuerdo”, 382<br />

<strong>em</strong> outros o tirava “por loco”. E tudo porque “lo que hablaba era concertado,<br />

elegante y bien dicho, y lo que hacía, disparatado, t<strong>em</strong>erario y tonto”. 383<br />

379<br />

Sou louco <strong>em</strong> meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.<br />

380<br />

Depois <strong>de</strong> olhar <strong>de</strong> um lado a outro [...] virou-se <strong>de</strong> costas e mostrou suas partes posteriores a Dom Quixote<br />

(2, XVII, p.408).<br />

381<br />

Parecendo-lhe que era um sensato louco e um louco que parecia sensato (2, XVII, p.410).<br />

382 Já o consi<strong>de</strong>rava sensato (ibi<strong>de</strong>m)<br />

383 O que falava era ajustado, elegante e b<strong>em</strong> dito, e o que fazia, disparatado, t<strong>em</strong>erário e tolo (ibi<strong>de</strong>m)


Mesmo que Dom Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong> não as tivesse anotado, Dom Quixote<br />

cuidou <strong>de</strong> confirmá-lo. Confirmou a observação <strong>de</strong> Dom Diego, reafirmando a linha<br />

divisória que separava <strong>em</strong> si mesmo duas performances:<br />

¿Quién du<strong>da</strong>, señor don Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>, que vuesa merced no me tenga<br />

en su opinión por un hombre disparatado y loco? Y no sería mucho que así<br />

fuese, porque mis obras no pue<strong>de</strong>n <strong>da</strong>r testimonio <strong>de</strong> otra cosa. Pues, con<br />

todo esto, quiero que vuesa merced advierta que no soy tan loco ni tan<br />

menguado como <strong>de</strong>bo haberle parecido. 384<br />

É possível que Dom Quixote, tocado pelo rigor <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m discursiva que a<br />

época exigia, se preocupasse <strong>em</strong> esmerar-se <strong>em</strong> cui<strong>da</strong>dos: sua fala possui<br />

estruturação sintático-gramatical impecável, na mesma medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> exigência do<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho brilhante <strong>de</strong> seu papel <strong>de</strong> filósofo. Com excesso <strong>de</strong> lógica eram<br />

elaborados seus discursos:<br />

No esperaba yo menos <strong>de</strong> la gran magnificencia vuestra, señor mío –<br />

respondió don Quijote –; y así, os digo que el don que os he pedido, y <strong>de</strong><br />

vuestra liberali<strong>da</strong>d me ha sido otorgado, es que mañana en aquel día me<br />

habéis <strong>de</strong> armar caballero, y esta noche en la capilla <strong>de</strong>ste vuestro castillo<br />

velaré las armas; y mañana, como tengo dicho, se cumplirá lo que tanto<br />

<strong>de</strong>seo, para po<strong>de</strong>r, como se <strong>de</strong>be, ir por to<strong>da</strong>s las cuatro partes <strong>de</strong>l mundo<br />

buscando las aventuras, en <strong>pro</strong> <strong>de</strong> los menesterosos, como está a cargo <strong>de</strong><br />

la caballería y <strong>de</strong> los caballeros an<strong>da</strong>ntes, como yo soy , cuyo <strong>de</strong>seo a<br />

s<strong>em</strong>ejantes fazañas es inclinado. 385<br />

Vê<strong>em</strong>-se, nessa estruturação, vestígios do mo<strong>de</strong>lo discursivo <strong>da</strong>s novelas que<br />

serviram <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo a Dom Quixote:<br />

384 Qu<strong>em</strong> duvi<strong>da</strong>, senhor <strong>dom</strong> Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>, que vossa mercê não me tenha <strong>em</strong> sua opinião como hom<strong>em</strong> disparatado e<br />

louco? E não seria muito que assim fosse, porque minhas obras não po<strong>de</strong>m <strong>da</strong>r test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> outra coisa. Pois, com tudo<br />

isto, quero que vossa mercê advirta que não sou tão louco n<strong>em</strong> tão mentecapto como <strong>de</strong>vo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410)<br />

385 Eu não esperava na<strong>da</strong> menos que uma gran<strong>de</strong> magnificência vossa, senhor meu – respon<strong>de</strong>u Dom Quixote; __ e assim vos<br />

digo que o <strong>dom</strong> que vos pedi e que a vossa liberali<strong>da</strong><strong>de</strong> me outorgou é que amanhã vós me armareis cavaleiro, e esta noite, na<br />

capela do vosso castelo, velarei as armas; e amanhã, como já disse, cumprir-se-á o que tanto <strong>de</strong>sejo, para po<strong>de</strong>r, como é o<br />

correto, ir por to<strong>da</strong>s as quatro partes do mundo, buscando as aventuras <strong>em</strong> <strong>pro</strong>l dos necessitados, como está a cargo <strong>da</strong><br />

cavalaria e dos cavaleiros an<strong>da</strong>ntes, como eu sou, cujo <strong>de</strong>sejo a s<strong>em</strong>elhantes façanhas é inclinação. (1, III, p.25)


Amadís fue el norte, el lucero, el sol <strong>de</strong> los valientes y enamorados<br />

caballeros, a quien <strong>de</strong>b<strong>em</strong>os <strong>de</strong> imitar todos aquellos que <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> la<br />

ban<strong>de</strong>ra <strong>de</strong> amor y <strong>de</strong> la caballería militamos. 386<br />

Dom Quixote, no exercício <strong>de</strong> filósofo, no exercício <strong>de</strong> exímio coman<strong>da</strong>nte e<br />

senhor do conhecimento, se esmera <strong>da</strong>ndo ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras aulas sobre qualquer t<strong>em</strong>a<br />

que se apresente cruzando espontaneamente seu caminho, <strong>da</strong>ndo clareza a tudo o<br />

que diz para garantir ao ouvinte a segurança <strong>da</strong> certeza inquestionável.<br />

Po<strong>de</strong>mos contar, inclusive, com a existência <strong>de</strong> pesquisa nesse sentido,<br />

responsável pelo levantamento rigoroso <strong>da</strong>s diversas estruturas discursivas<br />

encontra<strong>da</strong>s na obra mol<strong>da</strong><strong>da</strong>s para exercer ou cumprir funções, to<strong>da</strong>s orquestra<strong>da</strong>s<br />

pelo po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> lógica racional. Juan David García Bacca registra evidência do<br />

exercício frenético do racional que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “Raciocinancia objetiva”; Raciocinancia<br />

y racionali<strong>da</strong>d”; “Raciocinancia, refranes”; “Aventura y raciocinancia”; “Raciocinancia<br />

y argumentación”; até “Inconexión <strong>de</strong> porqués y paraqués” 387 . O saldo <strong>de</strong>sse<br />

exercício está registrado, com gráficos, e tudo o mais que uma pesquisa quantitativa<br />

exige, e resume-se no seguinte fragmento:<br />

Añá<strong>da</strong>se que en casi to<strong>da</strong>s las páginas irrumpe la razón [...] y no será<br />

exagerado mas sí ilustrativo y sugerente afirmar que; la dosis total <strong>de</strong> razón<br />

distribui<strong>da</strong> a lo largo <strong>de</strong> la obra es 2.500 X 2, es <strong>de</strong>cir: unas 5.000 o<br />

expresado en otra forma: 5.000 son las veces que Don Quijote/Cervantes,<br />

Ci<strong>de</strong> Hamete/Cervantes, Sancho Cervantes se sienten forzados a <strong>da</strong>r<br />

expresión –expresa, palabrera – a la razón [...] 388<br />

Na pesquisa contrastam o discurso literário-filosófico com o científico-<br />

filosófico; apontam ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> “porquês” comuns e próprias <strong>da</strong> ciência, nivelam as<br />

386<br />

Amadís foi o norte, o luzeiro, o sol dos valentes e apaixonados cavaleiros, a qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os imitar todos aqueles que sob a<br />

ban<strong>de</strong>ira do amor e <strong>da</strong> cavalaria militamos (1, XXV, p.137)<br />

387<br />

“’Raciocinância’ objetiva”; “’Raciocinância’ e racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>”; “’Raciocinância’, refrões”; “Aventura e ‘raciocinância’”;<br />

“’Raciocinância’ e argumentação”; até “Desconexão <strong>de</strong> ‘porquês’ e ‘paraquês’”.<br />

388<br />

Acrescente-se que <strong>em</strong> quase to<strong>da</strong>s as páginas irrompe a razão [...] e não será exagerado, mas sim ilustrativo e sugestivo<br />

afirmar que; a dose total <strong>de</strong> razão distribui<strong>da</strong> ao longo <strong>da</strong> obra é 2.500 X 2, ou seja: umas 5.000 ou expresso <strong>de</strong> outra forma:<br />

5.000 são as ocasiões nas quais Dom Quixote/Cervantes, Ci<strong>de</strong> Hamete/Cervantes, Sancho Cervantes vê<strong>em</strong>-se obrigados a<br />

<strong>da</strong>r expressão – expressa, palavrosa – <strong>à</strong> razão (GARCÍA BACCA, Juan David. Sobre el Quijote y Don Quijote <strong>de</strong> La<br />

Mancha. Barcelona: Anthropos, 1991, p.45)


ca<strong>de</strong>ias discursivas <strong>em</strong> mais ou menos lógicas: “[...] no hay refrán que no sea<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro, porque todos son sentencias saca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> la mesma experiencia, madre<br />

<strong>de</strong> las ciencias to<strong>da</strong>s” 389 [grifo nosso].<br />

Depois <strong>de</strong> tanto atuar como cavaleiro louco, precisava <strong>de</strong>sfazer a imag<strong>em</strong> que<br />

começava a se tornar conheci<strong>da</strong>, não só <strong>em</strong> la Mancha, mas <strong>em</strong> todos os caminhos<br />

<strong>de</strong> Espanha: no castelo dos duques:<br />

El eclesiástico, que oyó <strong>de</strong>cir <strong>de</strong> gigantes, <strong>de</strong> follones y <strong>de</strong> encantos, cayó<br />

en la cuenta <strong>de</strong> que aquél <strong>de</strong>bía <strong>de</strong> ser don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, cuya<br />

historia leía el duque <strong>de</strong> ordinario, Y él se lo había reprehendido muchas<br />

veces, diciéndole que era disparate leer tales disparates; y enterándose ser<br />

ver<strong>da</strong>d lo que sospechaba, con mucha cólera [...]. 390<br />

Dom Quixote, surpreen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, ain<strong>da</strong> circulava <strong>em</strong> la Mancha, no pleno<br />

exercício <strong>da</strong> ficção, e já era, não só conhecido <strong>de</strong> todos, mas era também lido: “que<br />

era disparate leer tales disparates”. Sua fama <strong>de</strong> louco corria no rastro <strong>de</strong> sua<br />

própria criação, o que possibilitava ser ele avaliado, não só a partir do olhar dos que<br />

o cercavam, mas também <strong>da</strong>queles que o liam.<br />

Se, para receber honras e glória, a ação <strong>de</strong> Dom Quixote no enfrentamento<br />

com os leões seria submeti<strong>da</strong> <strong>à</strong> avaliação do rei, é lícita sua precaução: “Pues si<br />

acaso su majestad preguntare quién la hizo, diréisle que el caballero <strong>de</strong> los<br />

Leones [...]”. 391<br />

Era preciso estar atento ao que falava: Tomé Cecial participara <strong>da</strong> luta<br />

im<strong>pro</strong>visa<strong>da</strong> intencionalmente para reconduzir o cavaleiro <strong>à</strong> sua casa. Ao <strong>da</strong>r-se<br />

conta <strong>de</strong> que, ao contrário do que estava previsto, ele e Sansón Carrasco, os dois<br />

389<br />

Não há refrão que não seja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, porque todos são sentenças tira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> própria experiência, mãe <strong>da</strong>s ciências<br />

to<strong>da</strong>s (1, XXI, p.111).<br />

390<br />

O eclesiástico, que ouviu falar <strong>de</strong> gigantes, <strong>de</strong> estrepolias e <strong>de</strong> encantos, caiu <strong>em</strong> si que aquele <strong>de</strong>via <strong>de</strong> ser <strong>dom</strong> Quixote<br />

<strong>de</strong> la Mancha, cuja história lia o duque ordinariamente, E ele o repreen<strong>de</strong>ra muitas vezes, dizendo-lhe que era disparate ler tais<br />

disparates; e interando-se ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o que suspeitava, com muita cólera [...] (2, XXXI, p.486)<br />

391<br />

Pois se por acaso Sua Majesta<strong>de</strong> perguntar qu<strong>em</strong> a fez, dizei-lhe que o Cavaleiro dos Leões (2, XVII, p.409).


que pr<strong>em</strong>editaram a ação, saíram feridos, s<strong>em</strong> resistir, lançou ele a pergunta<br />

sintomática:<br />

Don Quijote loco, nosotros cuerdos, él se va sano y riendo; vuesa merced<br />

que<strong>da</strong> molido y triste. Sepamos pues, ahora: cuál es más loco: ¿el que lo es<br />

por no po<strong>de</strong>r menos, o el que lo es por su voluntad?. 392<br />

Sua lou<strong>cura</strong>, portanto, está sendo avalia<strong>da</strong> minuciosamente, a partir <strong>de</strong> outros<br />

personagens e sob vários pontos <strong>de</strong> vista.<br />

Dom Quixote percebe que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> já não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>le somente; <strong>de</strong>la<br />

participa também o olhar do outro. A certeza e segurança com que abre o 1º Périplo:<br />

“Yo sé quien soy”, 393 agora, já lhe parece ameaça<strong>da</strong>. Não é mais possível sair pelo<br />

mundo, dizendo o que lhe v<strong>em</strong> <strong>à</strong> cabeça; Dom Quixote precisa mostrar a face que<br />

po<strong>de</strong>ria garantir-lhe a segurança <strong>de</strong> ser reconhecido <strong>em</strong> seu t<strong>em</strong>po. Agora está<br />

também, <strong>em</strong> jogo, o outro.<br />

O impasse lou<strong>cura</strong>-razão acolhe perfeitamente as duas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s acima<br />

apresenta<strong>da</strong>s, pelo menos, por enquanto: tanto Dom Quixote já percebia o incômodo<br />

<strong>da</strong> contradição, e, por isso, também incomo<strong>da</strong>do com a não compreensão <strong>de</strong> seus<br />

expectadores, tenta tranqüilizá-los, explicando o seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho contraditório<br />

como possível; como também Dom Quixote conhecia os rigores <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m discursiva<br />

que a gramática já trouxera e <strong>de</strong>les sabe não po<strong>de</strong>r escapar.<br />

A mu<strong>da</strong>nça <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho, ou melhor, o anúncio <strong>de</strong>ssa mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong>ve<br />

ter peso maior que seu conteúdo. “Soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo<br />

que hablo” 394 . Por isso, optar<strong>em</strong>os por ficar com a terceira possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>: o aviso <strong>de</strong><br />

Dom Quixote está dirigido ao leitor; <strong>pro</strong>vavelmente, quer anunciar o papel que<br />

392 Dom Quixote louco, nós sensatos, ele vai sadio e risonho; vossa mercê fica moído e triste. Saibamos, pois, agora, qual é o<br />

mais louco: o que é por falta <strong>de</strong> alternativa ou o que é por sua própria vonta<strong>de</strong>? (2, XV, p.397)<br />

393 Eu sei qu<strong>em</strong> sou (1, V, p.35).<br />

394 Sou louco <strong>em</strong> meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.


<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhará <strong>em</strong> sua nova jorna<strong>da</strong>. Um papel que exige muito mais que “el<br />

entendimiento” tão <strong>pro</strong>pagado. O papel que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhará exige muita<br />

compreensão. E por que não falar, interpretação?<br />

Esse cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> Dom Quixote não po<strong>de</strong> ser gratuito; parece sugerir atenção<br />

ao outro. Por isso, do mesmo modo que o linear <strong>da</strong> escrita só permite que uma coisa<br />

se apresente <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez, aguar<strong>de</strong>mos alguma surpresa que po<strong>de</strong> nos estar<br />

reservando Dom Quixote, surpresa <strong>em</strong>buti<strong>da</strong> na forma como ele insiste <strong>em</strong> explicar-<br />

se para os <strong>de</strong>mais, explicar-se para os olhos ordinários: “soy loco” e “no soy loco”,<br />

além <strong>de</strong> “soy loco” e “no soy tan loco”.<br />

No 1º Périplo, enquanto a disposição que <strong>da</strong>va a tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> indispensável <strong>à</strong><br />

compreensão era a dúvi<strong>da</strong>, o estabelecido e o compartilhado estiveram a serviço <strong>da</strong><br />

Cura. Partindo <strong>da</strong>í, Dom Quixote, “ocupando-se” e “pre-ocupando-se”, pô<strong>de</strong> ir <strong>de</strong>les<br />

renunciando e libertando-se: <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que, a partir do ser, realizava, realizando-se<br />

como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que trazia para si, a consciência, ca<strong>da</strong> vez maior do ser<br />

que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre fora; <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que o não-querer ia <strong>da</strong>ndo espaço ao querer, e<br />

<strong>de</strong>terminava a excelência e digni<strong>da</strong><strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r-ser, mais ia consumando-se o seu<br />

ser.<br />

O estabelecido e o compartilhado, apesar <strong>de</strong> Dom Quixote tê-los como<br />

suporte no <strong>em</strong>preendimento <strong>da</strong> Cura, <strong>de</strong>les precisou libertar-se: quanto mais a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> estabeleci<strong>da</strong> e compartilha<strong>da</strong> era <strong>de</strong>rruba<strong>da</strong> e <strong>de</strong>smascara<strong>da</strong>, mais o<br />

impróprio cedia lugar ao próprio; mais Dom Quixote se Curava.<br />

Passa<strong>da</strong> a experiência <strong>de</strong> Cura, seu olhar divisa horizonte mais amplo. Sente<br />

agora uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outra lou<strong>cura</strong> que não reconhece ain<strong>da</strong>, <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

suas sutilezas, mas que sabe não ser aquela que a todo momento lhe sinalizam<br />

existir. T<strong>em</strong> a impressão <strong>de</strong> que todos <strong>em</strong> Espanha estão loucos. E, por mais que se<br />

esforc<strong>em</strong> <strong>em</strong> manter a aparência <strong>de</strong> seres normais, usando disfarces que dribl<strong>em</strong> a


mente mais esperta, não chegam a convencer Dom Quixote. Por isso precisa o<br />

manchego persegui-la incansavelmente.<br />

Isso aumenta mais ain<strong>da</strong> o leque <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Se antes já tinha sido<br />

mais um novo it<strong>em</strong> do lado <strong>da</strong> razão – abrindo a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ela jogar não<br />

somente <strong>em</strong> par opositivo com a lou<strong>cura</strong>, mas também com a imaginação, agora<br />

surge outro it<strong>em</strong> do lado <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>, mostrando que há um novo tipo <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong>.<br />

Esta parece ser a mais complica<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s, pois parece estar respal<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo que,<br />

no dizer corrente, no senso comum, é o máximo do certo, do seguro e do<br />

com<strong>pro</strong>vável. É aquela lou<strong>cura</strong> para qual já se havia chamado a atenção<br />

inicialmente: a lou<strong>cura</strong> perfeitamente enquadra<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro dos limites <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ou<br />

melhor, a lou<strong>cura</strong> vista pelos olhos sensíveis <strong>de</strong> Dom Quixote é que é assim<br />

avalia<strong>da</strong>. Para o senso comum, entretanto, isso não t<strong>em</strong> na<strong>da</strong> <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong>, todos os<br />

que são por ela acometidos a consi<strong>de</strong>ram normal, do mesmo modo que também se<br />

consi<strong>de</strong>ram perfeitamente normais e saudáveis.<br />

O que terá acontecido para que o mundo esteja <strong>da</strong>ndo todos esses sinais?<br />

Se antes o mundo s<strong>em</strong> consistência n<strong>em</strong> <strong>de</strong>finição, o mundo <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />

incerteza se retrai; com o t<strong>em</strong>po, a disposição <strong>da</strong> incerteza ce<strong>de</strong> espaço; e o<br />

sentimento que impregna Espanha sugere certeza e estabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. O sentimento que<br />

dá o tom <strong>à</strong> compreensão do mundo nesse momento é uma nova razão que se<br />

a<strong>pro</strong>xima recolhendo, no mundo, o máximo <strong>de</strong> possíveis garantias <strong>de</strong> certeza: “les<br />

han <strong>de</strong> traer ej<strong>em</strong>plos palpables, fáciles, intelegibles, <strong>de</strong>monstrativos, indubitables,<br />

con <strong>de</strong>mostraciones mat<strong>em</strong>áticas que no se pue<strong>de</strong>n negar”. 395 O compartilhado<br />

ain<strong>da</strong> se apresenta integralmente <strong>em</strong> sua funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, como el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong><br />

ocupação e <strong>de</strong> pre-ocupação. O que mu<strong>da</strong> é o olhar <strong>de</strong> Dom Quixote. Quanto mais<br />

395 É preciso <strong>da</strong>r-lhes ex<strong>em</strong>plos palpáveis, fáceis, intelegíveis, <strong>de</strong>monstrativos, indubitáveis, com <strong>de</strong>monstrações mat<strong>em</strong>áticas<br />

que não se possa negar (1, XXXIII, p.193).


se impõe a razão, mais insidiosa se torna a lou<strong>cura</strong>: sua presença é constante,<br />

disfarça, dribla, engana, confun<strong>de</strong>; parece aquele cavaleiro que se submete a muitos<br />

cavalos fogosos; ou escravo, a qu<strong>em</strong> lhe man<strong>da</strong>m muitos senhores. E ele, no<br />

esforço máximo <strong>de</strong> compreensão, insiste. Para isso adquiriu força e po<strong>de</strong>r; a<br />

experiência do 1º. Périplo, já o tinha transformado. E, porque já não o escravizam, o<br />

estabelecido e o compartilhado estão sob seu <strong>dom</strong>ínio; sua insistência é diferente <strong>de</strong><br />

seu insistir <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, sua insistência agora é pura resistência.<br />

O estabelecido e o compartilhado segu<strong>em</strong> seu caminho e permanec<strong>em</strong> no<br />

mundo. Seria ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong> acreditar ser possível <strong>de</strong>scartá-los; a participação <strong>da</strong><br />

“dissimulação”, <strong>da</strong> insistência e <strong>da</strong> errância, no jogo do conhecimento, foi<br />

fun<strong>da</strong>mental, <strong>de</strong>ixou b<strong>em</strong> <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> a in<strong>de</strong>finição dos limites do ser.<br />

Que fique claro: entre insistências e errâncias, a a<strong>pro</strong>priação do próprio nunca<br />

encerra o <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> Cura. O que po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> algum modo e no máximo, sugerir<br />

ain<strong>da</strong> finalização, é a morte. E diz<strong>em</strong>os “<strong>de</strong> algum modo” porque, na obra, o<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho <strong>da</strong> morte como personag<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixa no ar sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> efetiva. Basta<br />

l<strong>em</strong>brarmos do epitáfio - “que la muerte no triunfó”, 396 suficiente para <strong>de</strong>ixar aberto o<br />

ciclo <strong>da</strong> Cura, tanto na obra como <strong>em</strong> nossa pesquisa. Foi assim que a <strong>de</strong>ixamos no<br />

1º. Périplo, <strong>de</strong>la recolh<strong>em</strong>os o que foi possível, sabedores <strong>de</strong> que não a tínhamos<br />

esgotado.<br />

Triunfando ou não a morte, neste 2º. Périplo, o foco estará na consciência que<br />

ela traz ao hom<strong>em</strong>. Melhor ain<strong>da</strong>, o foco estará na consciência que adquiriu Dom<br />

Quixote, por Cura tê-lo lançado a outro patamar mais alto. Desse ponto <strong>de</strong> vista, sua<br />

visão está amplia<strong>da</strong> e, por isso, recolhe novos <strong>da</strong>dos, <strong>da</strong>dos que concorrerão para<br />

<strong>da</strong>r-lhe outro nível <strong>de</strong> consciência.<br />

396 Que a morte não venceu (2, LXXIV, p.700).


Esclarec<strong>em</strong>os que, neste 2º. Périplo, o lugar <strong>de</strong> centro não é ocupado pela<br />

morte, mas que <strong>à</strong> morte estar<strong>em</strong>os <strong>da</strong>ndo outro foco. Ter Dom Quixote<br />

experienciado a morte e por isso ter adquirido mais consciência <strong>de</strong> que viver é<br />

po<strong>de</strong>r-ser, isso mais aumenta o seu com<strong>pro</strong>misso no 2º. Périplo – o com<strong>pro</strong>misso do<br />

hermeneuta que, tendo recebido essa mensag<strong>em</strong> interpretativa, precisa “falar”,<br />

precisa contar aos homens a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta.<br />

O que contribuiu para que aquele cavaleiro que entrou na história como um<br />

louco tenha conquistado <strong>de</strong>grau tão alto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> lançar um novo olhar? Não<br />

discorrer<strong>em</strong>os sobre suas experiências no 1º. Périplo. Contudo, seria levian<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixarmos passar acontecimento que, <strong>de</strong>ntre todos, é o <strong>de</strong> maior relevância no<br />

<strong>pro</strong>jeto ôntico <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger. Trata-se <strong>da</strong> morte e suas ressonâncias.<br />

1.3 A OUTRA FACE DA MORTE<br />

Dom Quixote compreen<strong>de</strong> a radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> com que se apresenta a morte; já a<br />

experimentou, e agora sabe. E, <strong>de</strong> posse <strong>de</strong>sse novo saber __ a morte como finitu<strong>de</strong><br />

radical e o “po<strong>de</strong>r-ser” como essência <strong>da</strong> pre-sença, Dom Quixote articula os<br />

saberes e capta uma mensag<strong>em</strong> que lhe é envia<strong>da</strong> do futuro: pela voz <strong>de</strong><br />

Hei<strong>de</strong>gger, o hom<strong>em</strong> é irr<strong>em</strong>ediavelmente um ser-para-a-morte. Tal revelação mais<br />

acentua sua condição essencial <strong>de</strong> ser possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Diante <strong>da</strong> finitu<strong>de</strong> radical <strong>da</strong><br />

morte, só se po<strong>de</strong> esperar uma valorização mais essencial <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. E é para isso<br />

mesmo que Hei<strong>de</strong>gger dá <strong>de</strong>staque <strong>à</strong> morte. Como diss<strong>em</strong>os antes, a morte não<br />

interessa a Hei<strong>de</strong>gger <strong>em</strong> na<strong>da</strong> que aponte para o <strong>pós</strong>-morte. Dela, só lança mão,<br />

para colocar <strong>em</strong> evidência a existência e, conseqüent<strong>em</strong>ente, todos os existenciais.


Nesse estreito com<strong>pro</strong>metimento <strong>da</strong> morte com o existir, é só nesse momento que<br />

Hei<strong>de</strong>gger a redimensiona, e sobre ela <strong>pro</strong>jeta luz, iluminando a sua outra face. Dom<br />

Quixote, antes <strong>de</strong> morrer, toma to<strong>da</strong>s as <strong>pro</strong>vidências civis <strong>em</strong> relação <strong>à</strong> morte. Para<br />

isso, mais uma vez, precisa exercitar os <strong>de</strong>sdobramentos impostos <strong>à</strong> sua condição<br />

<strong>de</strong> ser ficcional: ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que “vive” a morte como “morte” ontológica,<br />

<strong>de</strong>sdobra-se para exercer o papel <strong>de</strong> falecido ou finado, nos mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> morto ôntico.<br />

Para <strong>de</strong>stacar e <strong>da</strong>r <strong>à</strong> morte a dimensão que lhe interessa, Hei<strong>de</strong>gger<br />

estabelece, a <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito, uma escala entre perecer, falecer e morrer. Perecer é<br />

comum a qualquer vivente que não compreen<strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong> parecer muito<br />

s<strong>em</strong>elhante <strong>à</strong> morte, no perecer, aquilo que po<strong>de</strong> ass<strong>em</strong>elhar-se <strong>à</strong> morte na<strong>da</strong> mais<br />

é do que instinto <strong>de</strong> sobrevivência e <strong>de</strong> preservação.<br />

Falecer é experiência <strong>de</strong> chegar ao término, <strong>à</strong> completu<strong>de</strong>; experiência jamais<br />

experimenta<strong>da</strong> porque, enquanto ser-no-mundo existente, na<strong>da</strong> se po<strong>de</strong> saber do<br />

que é ser finado. Já o morrer é um modo-<strong>de</strong>-ser <strong>da</strong> pre-sença – “ser-para-a-morte”,<br />

e, ain<strong>da</strong> que, jamais possa ser experimenta<strong>da</strong>, a morte é um existencial porque é um<br />

modo-<strong>de</strong>-ser <strong>da</strong> pre-sença. Todos sab<strong>em</strong> do falecer, todos o experimentam <strong>da</strong>s mais<br />

varia<strong>da</strong>s maneiras. Até o próprio Dom Quixote parece que se <strong>de</strong>u o direito <strong>de</strong> tratar<br />

<strong>da</strong> morte como falecimento. Como e porque já experimentara a morte dos outros,<br />

Dom Quixote sabe que esse final já se instituiu <strong>em</strong> seu mundo compartilhado,<br />

<strong>de</strong>finindo algumas regras. É por isso que é tão diligente <strong>em</strong> seu testamento, como<br />

vimos no 1º. Périplo, <strong>em</strong> que aten<strong>de</strong> <strong>pro</strong>ntamente <strong>à</strong>s exigências religiosas orienta<strong>da</strong>s<br />

ao falecimento: um padre é chamado para ministrar a extr<strong>em</strong>a-unção; to<strong>da</strong>s as<br />

<strong>pro</strong>vidências jurídicas são toma<strong>da</strong>s no nível <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> civil: o testamento, a sobrinha<br />

como única her<strong>de</strong>ira, a doação <strong>de</strong> algumas poucas coisas a Sancho, o ritual<br />

fúnebre, com direito a acompanhamento <strong>de</strong> choro e tudo mais que o compõe e que


levou Sancho a chorar pela morte <strong>de</strong> seu querido amo; a presença dos vizinhos e<br />

amigos, s<strong>em</strong>pre garanti<strong>da</strong> nesses momentos finais.<br />

Conclui-se então que, no espaço <strong>de</strong>ssa zona limítrofe nascimento-morte, o<br />

hom<strong>em</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que constrói, habita e, nesse <strong>pro</strong>cesso, se dá conta <strong>de</strong><br />

sua condição. Sabi<strong>da</strong> ou não, senti<strong>da</strong> ou não, <strong>de</strong>seja<strong>da</strong> ou não, é únicamente por<br />

esse estreito com<strong>pro</strong>metimento com a vi<strong>da</strong>, que Hei<strong>de</strong>gger consi<strong>de</strong>ra a morte<br />

também um existencial; a morte é, então, um caráter <strong>da</strong> pre-sença: o hom<strong>em</strong> é um<br />

ser finito, o hom<strong>em</strong> é um ser-para-a-morte. Essa consciência <strong>de</strong> finitu<strong>de</strong> acen<strong>de</strong> no<br />

hom<strong>em</strong> um valor maior para a vi<strong>da</strong>. Existir não se resume a estar na vi<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

contag<strong>em</strong> regressiva <strong>à</strong> espera <strong>de</strong> que o perecer se encarregue <strong>de</strong> colocar um ponto<br />

final e <strong>de</strong>terminar o fim. Assim, como a morte, a existência ganha também outra<br />

dimensão e, com isso, redimensiona Cura.<br />

Dom Quixote é capaz <strong>de</strong>, mais distanciado, ver-se a si mesmo <strong>em</strong> sua<br />

atuação, <strong>em</strong> sua performance do passado. É capaz <strong>de</strong> fazer escolhas, articulando o<br />

presente com o passado, <strong>pro</strong>jetando-se para o futuro. Dom Quixote se encontra<br />

numa encruzilha<strong>da</strong> <strong>de</strong> sua travessia e faz uma escolha consciente do caminho que<br />

vai agora seguir.<br />

Mostra<strong>da</strong> <strong>em</strong> sua nova face, a morte e tudo o que ela representa funciona<br />

como o alerta máximo para Dom Quixote. É a voz <strong>da</strong> consciência que ele ouve.<br />

É possível sentir<strong>em</strong>-se pequenos sinais <strong>da</strong> recuperação do cavaleiro; parece<br />

que o po<strong>de</strong>r perdido está voltando ao normal; surpreendido <strong>em</strong> sua lou<strong>cura</strong>, pela<br />

razão; Dom Quixote está <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> <strong>pro</strong>ntidão para perguntar.<br />

Para a nova posição que preten<strong>de</strong> assumir __ a <strong>de</strong> porta-voz <strong>da</strong>s novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

que se anunciam, é preciso responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>; por isso não <strong>de</strong>seja a ela entregar-se<br />

“<strong>à</strong>s tontas e <strong>à</strong>s loucas”; <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong> já basta a do seu frenético e necessário agir<br />

cavaleiresco. Do novo horizonte que divisa, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, muito já viu, muito já


conhece. Entretanto reconhece a urgência, não só <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar melhor os sinais que<br />

nesse momento são ain<strong>da</strong> tímidos e difusos, como também <strong>de</strong> reinterpretar o<br />

anteriormente visto. Por isso quer e precisa perguntar mais.<br />

A ca<strong>da</strong> passo, Cura não o poupava; estava s<strong>em</strong>pre surpreen<strong>de</strong>ndo,<br />

colocando-o <strong>em</strong> situações <strong>em</strong> que uma pergunta-questão se impunha, obrigando-o,<br />

se não a respondê-la diretamente, ser <strong>da</strong> resposta partícipe. Agora, no entanto, mais<br />

maduro e preparado, po<strong>de</strong> se impor, formalizando ele mesmo as questões, exigindo-<br />

lhes compreensão.<br />

Conclui ser necessário também fazer uma retrospectiva que lhe dê mais<br />

subsídios para o seu “falar”, tarefa que precisará realizar, a seu ver, <strong>de</strong> modo<br />

brilhante, já que todos precisarão acreditar <strong>em</strong> sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

1.4 DOM QUIXOTE EM RETROSPECTIVA<br />

Dom Quixote, <strong>em</strong> retrospectiva, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>: “Se quero ‘ver’ mais, só posso<br />

começar pelo que já ‘vi’; isso é ‘viver’”. Com aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória <strong>em</strong>preen<strong>de</strong><br />

movimento e vai encontrar-se <strong>em</strong> meio a mercadores exigindo-lhes a <strong>de</strong>claração<br />

confirmatória <strong>da</strong> beleza <strong>de</strong> sua ama<strong>da</strong>: “Si os la mostrara, replicó don Quijote, ¿qué<br />

hiciére<strong>de</strong>s vosotros en confesar una ver<strong>da</strong>d tan notoria? La importancia está en que<br />

sin verlo lo habéis <strong>de</strong> creer, confesar, afirmar, jurar y <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r”. 397<br />

E nisso percebe os primeiros sinais <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> pensar sustentado pela<br />

com<strong>pro</strong>vação do “ver”. Era a velha crença que cedia espaço ao “saber certo” e<br />

397 Se eu a mostrasse a vós, replicou Dom Quixote, que mérito teríeis <strong>em</strong> confessar uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> tão notória? A importância<br />

está <strong>em</strong> que, s<strong>em</strong> ver, <strong>de</strong>veis crer, confessar, afirmar, jurar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r (1, IV, p.32).


acional que entra pelos olhos. Até então, era negação total dos sentidos, mas<br />

imediatamente, parece começar<strong>em</strong> os sentidos a insinuar-se, exigindo espaço.<br />

A respeito <strong>de</strong> Dulcinea, não seria preciso ir tão longe; Dom Quixote assim<br />

preferiu: A questão ser Dulcinea fruto <strong>de</strong> encantamento, <strong>da</strong>do que lhe confere ou<br />

não reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, estivera, até então, restrita ao espaço <strong>dom</strong>éstico cavaleiro-escu<strong>de</strong>iro,<br />

atormentando os dois: quando um vê uma lavradora, o outro vê uma lin<strong>da</strong> princesa.<br />

E as posições se invert<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> que o <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a n<strong>em</strong> ganhe outra cara, n<strong>em</strong> seja<br />

resolvido. Por isso Dom Quixote <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ampliá-lo, esten<strong>de</strong>ndo aos outros sua<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> confirmação. E, a partir <strong>da</strong>í, nenhum transeunte dos caminhos <strong>de</strong> la<br />

Mancha t<strong>em</strong> mais sossego. Todos precisarão participar <strong>da</strong> testag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote: acreditar na beleza <strong>de</strong> Dulcinea s<strong>em</strong> precisar<strong>em</strong> do respaldo <strong>da</strong> visão.<br />

A m<strong>em</strong>ória também surpreen<strong>de</strong> o episódio <strong>em</strong> que disputavam <strong>de</strong>finição, uma<br />

bacia e um elmo. Mais um <strong>de</strong>safio se insinua: até on<strong>de</strong> vão os limites que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong><br />

com rigor um ente no mundo? E a s<strong>em</strong>elhança, um <strong>da</strong>do <strong>pro</strong>vavelmente angustiante<br />

no cotidiano do hom<strong>em</strong> <strong>da</strong>quela época que estava com a batuta nas mãos,<br />

cabendo-lhe pôr or<strong>de</strong>m no mundo, on<strong>de</strong> fica? A experiência <strong>da</strong> s<strong>em</strong>elhança já tinha<br />

sido fartamente exibi<strong>da</strong> na fronteira que divi<strong>de</strong> o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote do t<strong>em</strong>po <strong>da</strong><br />

cavalaria an<strong>da</strong>nte.<br />

Tudo isso, s<strong>em</strong> contar com o que fora capaz <strong>de</strong> fazer, movido pela urgência<br />

<strong>de</strong> ser cavaleiro: “tabernas-castillos”, “castillos-tabernas”; “<strong>da</strong>mas-<strong>pro</strong>stitutas”,<br />

“<strong>pro</strong>stitutas-<strong>da</strong>mas”. S<strong>em</strong> essas imaginações, jamais se teria armado cavaleiro.<br />

Mais adiante, novo <strong>em</strong>bate: primeiro são ovelhas que seus olhos <strong>de</strong>fin<strong>em</strong><br />

como exército; <strong>de</strong>pois vêm os moinhos. Esses são os que lhe exig<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po maior<br />

<strong>de</strong> reflexão. De todos, o moinho <strong>de</strong> vento é o que ficou gravado na mente do mundo.<br />

Ali, aparent<strong>em</strong>ente inerte, tanto vigor <strong>em</strong>ana, que é capaz <strong>de</strong> <strong>pro</strong>duzir tal impulso<br />

que lança o pensar para mais adiante.


Se o vigor do moinho é incontido, é melhor que nele estejamos atentos. Pelo<br />

menos, nisso estão os moinhos <strong>de</strong> acordo com todo resto: tudo insinua movimento<br />

<strong>em</strong> direção ao futuro que se estava gestando, lenta e silenciosamente. Estariam os<br />

inocentes moinhos <strong>de</strong> vento guar<strong>da</strong>ndo silenciosamente alguma surpresa dirigi<strong>da</strong><br />

também para o futuro?<br />

De tudo isso, duas coisas se po<strong>de</strong>m tirar: primeiro que Dom Quixote já havia<br />

visto aquela mesma cena <strong>em</strong> outros momentos históricos. A I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média já tinha ido<br />

buscar, no passado, referentes conhecidos e cheios <strong>de</strong> êxito. Novo retorno ao<br />

mesmo passado, e lá estavam <strong>de</strong> novo, tentando recuperar, na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, novas<br />

compreensões. Havia mais para saber, o contexto era por <strong>de</strong>mais contun<strong>de</strong>nte.<br />

Não há mais como fugir; Dom Quixote sente que um man<strong>da</strong>to, muito superior<br />

aos que recebera antes, cobrava-lhe participação. Que ele assumisse o l<strong>em</strong>e. É<br />

claro que isso o <strong>de</strong>ixou inseguro e <strong>de</strong>sconfiado; afinal no 1º. Périplo já estivera no<br />

comando uma vez, até que a falácia, <strong>de</strong> tão cruel, virasse angústia. Já estivera<br />

nessa posição <strong>de</strong> comando: por muito t<strong>em</strong>po, fora o filósofo, por muito t<strong>em</strong>po,<br />

acreditara ter sido, <strong>de</strong>ntre muitos homens, o único preparado para conduzir os<br />

<strong>de</strong>mais.<br />

Estaria sendo novamente convocado para assumir o comando? Comando<br />

igual ao que assumira no 1º. Périplo, impossível.<br />

S<strong>em</strong> saber o que fazer, incompleto <strong>de</strong> orientação, resolveu entregar <strong>à</strong><br />

intuição, como <strong>em</strong> outras vezes o fizera, o dil<strong>em</strong>a <strong>de</strong> retomar uma situação que lhe<br />

parecia resolvi<strong>da</strong> e encerra<strong>da</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver cumpri<strong>da</strong> a sua missão <strong>de</strong> filósofo.<br />

Entregou-se <strong>à</strong> intuição e, entregando-se incondicionalmente, s<strong>em</strong> que<br />

pu<strong>de</strong>sse prever n<strong>em</strong> explicar, começou a sentir <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> conhecer um lugar <strong>de</strong><br />

que já ouvira muito falar. E, com esse <strong>de</strong>sejo “pidió don Quijote al diestro licenciado


le diese una guía que le encaminase a la cueva <strong>de</strong> Montesinos, porque tenía gran<br />

<strong>de</strong>seo <strong>de</strong> entrar en ella”. 398<br />

E colocou-se ali, diante do cavaleiro, a <strong>pro</strong>vidência: “el licenciado” tinha ali, <strong>à</strong><br />

mão, “un primo suyo, famoso estudiante y muy aficcionado a leer libros <strong>de</strong><br />

caballerías, el cual con mucha voluntad le pondría a la boca <strong>de</strong> la mesma cueva”. 399<br />

É possível que, na falta <strong>de</strong> orientação, Dom Quixote tenha feito essa escolha,<br />

sugestionado pela caverna <strong>de</strong> Platão, on<strong>de</strong> tudo começara. Afinal, esquecera-se<br />

<strong>de</strong>sse it<strong>em</strong> <strong>de</strong> seu manual: voltar <strong>à</strong> caverna para libertar os prisioneiros que <strong>em</strong> seu<br />

interior <strong>de</strong>ixara. Estamos somente arriscando, até porque, sab<strong>em</strong>os que Dom<br />

Quixote, <strong>de</strong>pois que saiu <strong>da</strong> caverna e cumpriu sua missão como cavaleiro, acabou<br />

tomando outro rumo.<br />

Imagin<strong>em</strong>os, porém, que Dom Quixote, <strong>em</strong> mais um estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sorientação,<br />

confundindo-se mais uma vez, tenha voltado a acreditar que era ain<strong>da</strong> filósofo e<br />

tenha entrado assim na caverna.<br />

Mesmo orientado pela intuição, Dom Quixote não consegue abandonar sua<br />

inclinação <strong>de</strong> “hombre <strong>de</strong>l entendimiento” 400 e, assim, antes <strong>de</strong> penetrar na caverna,<br />

não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> <strong>da</strong>r uma última olha<strong>da</strong> ao redor: parece que o mundo dá sinais <strong>de</strong> nova<br />

configuração, parece estar numa extr<strong>em</strong>i<strong>da</strong><strong>de</strong> oposta <strong>à</strong> que experimentara<br />

anteriormente, tendo ido <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> reinante no momento <strong>em</strong> que <strong>de</strong>cidira ser<br />

cavaleiro, ao extr<strong>em</strong>o <strong>da</strong> certeza agora. Se é assim, parece que houve mu<strong>da</strong>nça<br />

com rapi<strong>de</strong>z surpreen<strong>de</strong>nte.<br />

A<strong>pro</strong>veita então para avaliar a crise anuncia<strong>da</strong> por Pierre Vilar, já <strong>de</strong>scrita<br />

anteriormente, no 1º. Périplo. Enquanto isso, Dom Quixote também sinaliza, do seu<br />

398<br />

Pediu Dom Quixote ao hábil licenciado que lhe <strong>de</strong>sse um guia que o conduzisse á caverna <strong>de</strong> Montesinos, porque tinha<br />

gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> nela entrar (2, XXII, p.437).<br />

399<br />

Um primo seu, célebre estu<strong>da</strong>nte e fanático pela leitura <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> cavalaria, o qual com muito prazer o poria na boca <strong>da</strong><br />

própria caverna (ibi<strong>de</strong>m)<br />

400 Hom<strong>em</strong> do entendimento (1, XX, p.105)


modo, essa surpreen<strong>de</strong>nte mu<strong>da</strong>nça. Mu<strong>da</strong>nças que não se <strong>de</strong>ram na linha real do<br />

t<strong>em</strong>po, mas que, <strong>em</strong> fração mínima, se tornaram sensíveis <strong>de</strong> forma muito radical e<br />

contun<strong>de</strong>nte. De tal modo que acionaram, <strong>em</strong> Dom Quixote, uma busca <strong>de</strong><br />

ancorag<strong>em</strong> na m<strong>em</strong>ória.<br />

Em discurso sobre a I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro, Dom Quixote põe <strong>em</strong> confronto, não as<br />

duas épocas, mas dois t<strong>em</strong>pos: t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que, fun<strong>da</strong>mentalmente, o vestir só tinha<br />

com<strong>pro</strong>misso com o que “la honesti<strong>da</strong>d quiere y ha querido si<strong>em</strong>pre que se cubra”,<br />

s<strong>em</strong> os “adornos <strong>de</strong> los que ahora se usan”, <strong>pro</strong>duzidos graças ao sacrifício <strong>de</strong> “la<br />

martiriza<strong>da</strong> se<strong>da</strong>”, 401 dizia Dom Quixote.<br />

Um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que “no había la frau<strong>de</strong>, el engaño ni la malicia mezcládose<br />

con la ver<strong>da</strong>d”, <strong>em</strong> que não havia o “artificioso ro<strong>de</strong>o <strong>de</strong> palabras”, <strong>em</strong> que “la justicia<br />

se estaba en sus <strong>pro</strong>pios términos, sin que la osasen turbar ni ofen<strong>de</strong>r los <strong>de</strong>l favor y<br />

los <strong>de</strong>l interese” 402 . Resumindo: t<strong>em</strong>po que se opõe radicalmente a “nuestros<br />

<strong>de</strong>testables siglos”, 403 diz Dom Quixote referindo-se a seu t<strong>em</strong>po.<br />

Foi esse mesmo t<strong>em</strong>po que justificou a cavalaria: “para cuya seguri<strong>da</strong>d [...] se<br />

instituyó la or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> los caballeros an<strong>da</strong>ntes”. 404 Agora tudo indica que com<br />

cavalaria ou s<strong>em</strong> cavalaria, os “<strong>de</strong>testables siglos” continuam <strong>de</strong>sestabilizando,<br />

cobrando atenção <strong>de</strong> todos. Assim consi<strong>de</strong>rando, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> instituir a<br />

cavalaria não é senti<strong>da</strong> só por Dom Quixote. A mola <strong>pro</strong>pulsora do tédio que jogava<br />

a todos no mundo <strong>da</strong> leitura não podia ser gratuita. Tinha <strong>de</strong> haver alguma<br />

expectativa por trás <strong>de</strong>ssa mania inocente. Teriam todos a mesma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

avaliadora que tinha Dom Quixote?<br />

401<br />

A honesti<strong>da</strong><strong>de</strong> quer e s<strong>em</strong>pre quis que se cubra [s<strong>em</strong> os] adornos <strong>de</strong>sses que agora se usam [<strong>pro</strong>duzidos (...) <strong>de</strong>] a<br />

martiriza<strong>da</strong> se<strong>da</strong> (1, XI, p.60).<br />

402<br />

Não havia frau<strong>de</strong>, o engano, n<strong>em</strong> a malícia, misturados com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> [...] artificioso ro<strong>de</strong>io <strong>de</strong> palavras [...] a justiça<br />

funciona <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus próprios termos, s<strong>em</strong> que ousass<strong>em</strong> turvar n<strong>em</strong> ofen<strong>de</strong>r por favores e interesses (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

403<br />

Nossos abomináveis t<strong>em</strong>pos (1, XI, p.61).<br />

404 Para cuja segurança [...] instituiu-se a or<strong>de</strong>m dos cavaleiros an<strong>da</strong>ntes (ibi<strong>de</strong>m)


Talvez não, porém, <strong>em</strong> diferentes graus, o <strong>de</strong>sejo cavaleiresco se justifica na<br />

voz <strong>de</strong> Dom Quixote que, dispondo com clareza <strong>de</strong> todos os el<strong>em</strong>entos necessários<br />

para justificá-la, b<strong>em</strong> como para <strong>de</strong>ixar evi<strong>de</strong>nte a serie<strong>da</strong><strong>de</strong> do t<strong>em</strong>po que estão<br />

cruzando, acaba se tornando sua imag<strong>em</strong>-questão.<br />

De um modo ou <strong>de</strong> outro, o <strong>de</strong>sejo cavaleiresco habitava o imaginário do<br />

povo espanhol: “cavaleiros” e “<strong>quixote</strong>s” havia muitos, até porque a rigi<strong>de</strong>z <strong>da</strong>s<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s importa<strong>da</strong>s do platonismo e instituí<strong>da</strong>s pela “república cristiana”, não<br />

franqueavam abertura <strong>à</strong> imaginação. A leitura maciça <strong>de</strong> novelas <strong>de</strong> cavalaria po<strong>de</strong><br />

indicar compensação nesse sentido. Querer assim encarnar um cavaleiro medieval<br />

po<strong>de</strong> trazer escondido, no inconsciente coletivo, o mesmo <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito do qual Dom<br />

Quixote é somente imag<strong>em</strong>-questão, o mesmo <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito para o qual fora instituí<strong>da</strong><br />

a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> cavalaria an<strong>da</strong>nte.<br />

1.5 É TEMPO DE NEGOCIAÇÃO. QUAL O “PRETIO” DO TEMPO DE DOM QUIXOTE?<br />

É, a partir <strong>de</strong>ssa avaliação que se perceb<strong>em</strong> os sinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramentos<br />

<strong>de</strong>sses “séculos <strong>de</strong>testáveis” <strong>pro</strong>jetados para um futuro, quiçá <strong>de</strong>solador.<br />

Da dúvi<strong>da</strong> mais radical do 1º. Périplo <strong>à</strong> certeza mais absoluta do segundo,<br />

<strong>de</strong>sse modo, <strong>de</strong>slocou-se a disposição que <strong>da</strong>va o tom <strong>à</strong> compreensão. Espanha<br />

sinaliza, com euforia, o novo modo <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o mundo: uma compreensão<br />

disposta na segurança <strong>da</strong> certeza. Essa tinha um matiz diferente <strong>da</strong> disposição<br />

eufórica do Renascimento, a disposição é, agora, toma<strong>da</strong> pela razão, mas também<br />

<strong>de</strong> um modo sensivelmente diferente. É como se a razão tivesse reunido mais força,<br />

mais po<strong>de</strong>r e se estivesse apresentando com perfil mais <strong>de</strong>finido, o perfil do


acionalismo, aquele que não estivera, até então, disputando com nominalismos,<br />

<strong>em</strong>pirismos e relativismos, lugar <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

No 2º. Périplo, com o que já sabe, Dom Quixote <strong>pro</strong>jeta seu olhar para o novo<br />

horizonte e se <strong>de</strong>para com um olhar “hipnoticamente centrado”: vê o hom<strong>em</strong><br />

reduzido <strong>à</strong> mais estreita visão <strong>de</strong> mundo. Isso contribui perfeitamente para a<br />

formação do mito do hom<strong>em</strong> como <strong>de</strong>stinação histórica <strong>da</strong> civilização oci<strong>de</strong>ntal,<br />

contribui para sua ascensão e que<strong>da</strong> no panorama do Oci<strong>de</strong>nte. O epílogo <strong>de</strong>ssa<br />

epopéia recebe o nome <strong>de</strong> “crise do humanismo”.<br />

Assim, caracterizar<strong>em</strong>os este Périplo como mercado – o lugar on<strong>de</strong> Dom<br />

Quixote vai negociar o valor <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> coisa que se mostra no viver. Desse lugar, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que interpreta, vai traçando o perfil histórico <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po, para<br />

anunciá-lo ao mundo.<br />

Com a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> levantar na obra passagens que r<strong>em</strong>etam ao segundo<br />

<strong>pro</strong>jeto “<strong>quixote</strong>sco” – o <strong>de</strong> assumir-se hermeneuta, preten<strong>de</strong>mos localizá-las no<br />

quadro acima <strong>pro</strong>posto. Nesse quadro, Dom Quixote atento, muito mais ouvido que<br />

olhos, tenta reconhecer a vigência <strong>de</strong> todo o manancial que aflui <strong>em</strong> direção <strong>à</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Não é, portanto, irresponsável a exigência <strong>de</strong> “performance especial” para<br />

ocupar esse posto <strong>de</strong> negociação. Assim <strong>de</strong>nominamos um reconhecimento <strong>da</strong>s<br />

vicissitu<strong>de</strong>s históricas que, no mundo <strong>de</strong> Dom Quixote, tinham lugar e, além disso, o<br />

fato <strong>de</strong> ser ele dotado fun<strong>da</strong>mentalmente <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> “falar” que estava <strong>à</strong> altura<br />

<strong>de</strong> sua tarefa, indiscutivelmente gran<strong>de</strong> <strong>em</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Já estaria Dom Quixote<br />

plenamente preparado para assumi-lo?<br />

Presume-se que sim. Revisto o <strong>pro</strong>cesso dialógico <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong> que o<br />

conduzira <strong>à</strong> Cura e sentindo ecoar, <strong>em</strong> seus ouvidos e <strong>em</strong> sua mente, as palavras<br />

<strong>de</strong> Nietzsche __ que o hom<strong>em</strong> não sabe na<strong>da</strong> sobre si mesmo, uma vez que a


natureza não lhe revela sequer o movimento <strong>de</strong> seu próprio intestino n<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua<br />

circulação sangüínea, o que <strong>de</strong>monstra gran<strong>de</strong> rebaixamento <strong>da</strong> condição humana;<br />

que mesmo <strong>de</strong>smascarado “na indiferença <strong>de</strong> seu não-saber”, o hom<strong>em</strong>, o<br />

responsável pelos estragos <strong>da</strong> metafísica, ain<strong>da</strong> estava refugiado na “orgulhosa e<br />

charlatã consciência” 405 __ , Dom Quixote não encontra alternativa, senão cumprir o<br />

man<strong>da</strong>to que ele, confuso, e <strong>de</strong>sconfiado, s<strong>em</strong> atinar ain<strong>da</strong> sobre sua nova<br />

condição, acredita ser ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> Platão: voltar <strong>à</strong> caverna para finalizar a sua missão.<br />

Dom Quixote ascen<strong>de</strong> no plano <strong>da</strong> consciência, mas, s<strong>em</strong> saber o que fazer<br />

com o que tinha nas mãos, movido, entretanto, pelos resquícios que ain<strong>da</strong> lhe<br />

sobravam <strong>da</strong> função <strong>de</strong> filósofo, acaba voltando <strong>à</strong> caverna, s<strong>em</strong>, no entanto,<br />

reconfigurar-se ain<strong>da</strong> hermeneuta. Vale a pena l<strong>em</strong>brar que os círculos<br />

hermenêuticos não se fecham totalmente.<br />

Po<strong>de</strong> parecer que nos estamos per<strong>de</strong>ndo, que a consciência conquista<strong>da</strong> por<br />

Dom Quixote <strong>de</strong>scrita acima não é compatível com o man<strong>da</strong>to <strong>de</strong> Platão, e nisso<br />

v<strong>em</strong>os sentido. No entanto, é só com isso que po<strong>de</strong> contar Dom Quixote. Nessa<br />

circunstância, s<strong>em</strong> outra alternativa, acaba acatando o levar boas novas para o<br />

interior <strong>da</strong> caverna – sua experiência positiva e po<strong>de</strong>rosíssima <strong>de</strong> alcance <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> extraí<strong>da</strong> <strong>da</strong> também po<strong>de</strong>rosíssima luz do sol. Ou será que entrava na<br />

“cueva-caverna” para <strong>da</strong>r aos prisioneiros, que estavam <strong>em</strong> seu interior, a chave <strong>da</strong><br />

Cura, essa sim, que os libertaria <strong>de</strong>finitivamente?<br />

É preciso dizer que esse conflito <strong>de</strong> cavernas não nasceu <strong>da</strong> mente fértil <strong>de</strong><br />

Dom Quixote, n<strong>em</strong> <strong>de</strong> um simples capricho, e n<strong>em</strong> sequer <strong>da</strong> pura intuição. A<br />

<strong>pro</strong>vidência lhe colocara, na trilha, um lugar subterrâneo, igual <strong>à</strong> caverna, ao qual<br />

po<strong>de</strong>ria ter acesso qualquer hom<strong>em</strong>, que tivesse o requisito especial <strong>de</strong> ser movido<br />

405 NIETZSCHE, F. Sobre a mentira e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> no sentido extra-moral. São Paulo: Abril, 1979 p.54 (Coleção Os<br />

pensadores)


pelo querer. Isso é tão ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que “el primo”, gran<strong>de</strong> estudioso e conhecedor <strong>de</strong><br />

sua localização e <strong>de</strong> seu caminho, não se dispõe a <strong>de</strong>scer <strong>em</strong> “la Cueva <strong>de</strong><br />

Montesinos”, simplesmente porque o “não-querer” não mobilizou o seu “querer”,<br />

como com Dom Quixote aconteceu.<br />

Se neste périplo, o <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito era saber <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po, qual o primeiro lugar<br />

on<strong>de</strong> Dom Quixote efetivamente fez a primeira negociação e começou a mensurar o<br />

“pretio”; o valor <strong>da</strong>s coisas do mundo? Não se po<strong>de</strong> esquecer que <strong>de</strong>ssa negociação<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> persegui<strong>da</strong> por Dom Quixote, formula<strong>da</strong> no viés <strong>da</strong> mentira,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do romance. On<strong>de</strong> e com qu<strong>em</strong> realizou a transação?<br />

2 MUDANDO DE DIMENSÃO, UMA DESCIDA AO OUTRO MUNDO<br />

Por enquanto, para efeito <strong>de</strong> título, “outro mundo” é simplesmente o<br />

a<strong>pro</strong>veitamento <strong>da</strong> expressão repeti<strong>da</strong>mente usa<strong>da</strong> no episódio <strong>de</strong> “la cueva”. Assim<br />

o chamamos por sua caracterização atípica <strong>de</strong> estar num nível on<strong>de</strong> o acesso não é<br />

a<strong>pro</strong>priado ao hom<strong>em</strong> comum. Na vi<strong>da</strong> ordinária, não se vê<strong>em</strong> homens introduzindo-<br />

se no fundo <strong>da</strong> terra.<br />

2.1 “LA CUEVA DE MONTESINOS”


Volt<strong>em</strong>os <strong>à</strong> caverna on<strong>de</strong> tudo começou. Dom Quixote também esteve por lá<br />

e conta sua experiência. É claro que nos estamos reportando a “la cueva <strong>de</strong><br />

Montesinos” que intitula este it<strong>em</strong>.<br />

Partindo do ponto que sua intuição o chamou, e reassumindo o l<strong>em</strong>e <strong>da</strong><br />

<strong>em</strong>barcação, l<strong>em</strong>brando do com<strong>pro</strong>misso firmado por todo e qualquer filósofo, <strong>de</strong><br />

voltar <strong>à</strong> caverna para com eles compartilhar a “boa nova”, Dom Quixote se investe<br />

<strong>de</strong> filósofo e vai tentar retomar a ponta do fio, dizendo: “Yo voy a <strong>de</strong>speñarme, a<br />

<strong>em</strong>pozarme y a hundirme en el abismo que aquí se me representa, solo porque<br />

conozca el mundo”. 406 Dom Quixote mesmo <strong>de</strong>fine seu <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito: conhecer o<br />

mundo.<br />

2.2 DOM QUIXOTE ENTRA NA CAVERNA COMO FILÓSOFO<br />

Faz-se necessário uma explicação inicial: Ci<strong>de</strong> Hamete Benengeli anotou, na<br />

marg<strong>em</strong> do original que continha a história <strong>de</strong> Dom Quixote, uma história conta<strong>da</strong><br />

pelo tradutor: diz a anotação que o autor do documento encontrado pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas,<br />

por não ter a mínima condição <strong>de</strong> <strong>pro</strong>var ser essa aventura ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> tal modo<br />

a vê e reconhece fora dos padrões racionais. Flexibiliza sua avaliação, no entanto,<br />

dizendo não dispor <strong>de</strong> na<strong>da</strong> convincente que possa imprimir <strong>em</strong> Dom Quixote o<br />

estigma <strong>de</strong> mentiroso – ele, o mais nobre e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro cavaleiro do seu t<strong>em</strong>po;<br />

impossível. Mais <strong>de</strong>sconcertado fica Ci<strong>de</strong> Hamete, quando revela ter Dom Quixote,<br />

na hora <strong>da</strong> morte, confessado ter sido essa história realmente uma mentira. Ci<strong>de</strong><br />

406 Eu vou precipitar-me, meter-me no poço e afun<strong>da</strong>r no abismo que aqui a mim se representa, apenas para que o saiba o<br />

mundo [...] que aqui me representa (2, XXII, p.439).


Hamete, diante <strong>de</strong>sse impasse, se ren<strong>de</strong> <strong>à</strong> sua incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar, e solicita ao<br />

leitor que o faça; “esta aventura parece apócrifa, yo no tengo la culpa; y así, sin<br />

afirmarla por falsa o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra, la escribo. Tú, letor, pues eres pru<strong>de</strong>nte, juzga lo que<br />

te pareciere”. 407<br />

V<strong>em</strong>os que, com outra roupag<strong>em</strong>, retorna o jogo mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Dessa vez,<br />

<strong>de</strong> forma mais sofistica<strong>da</strong>, Ci<strong>de</strong> Hamete, seu autor, se arrisca quanto <strong>à</strong> fixação do<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro ou falso. Pelo <strong>de</strong>licado <strong>da</strong> situação sobre a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> do episódio, há<br />

um <strong>de</strong>sdobramento on<strong>de</strong> as responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s são repassa<strong>da</strong>s: o <strong>de</strong>scobridor do<br />

original, o autor e o tradutor quer<strong>em</strong> eximir-se, e por isso acabam jogando o<br />

com<strong>pro</strong>misso nas mãos do leitor.<br />

A obra registra a <strong>de</strong>sci<strong>da</strong> a “la Cueva <strong>de</strong> Montesinos”. Entretanto, ver<strong>em</strong>os:<br />

no que mais se po<strong>de</strong>ria a<strong>pro</strong>ximar “la cueva” ao mito, é exatamente on<strong>de</strong> a ele se<br />

contrapõe.<br />

Dom Quixote <strong>de</strong>sce a uma cova que t<strong>em</strong> a <strong>pro</strong>fundi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “doce o catorce<br />

estados”. 408 Colocamos aqui a <strong>pro</strong>fundi<strong>da</strong><strong>de</strong> por ser “estado”, a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> medi<strong>da</strong><br />

toma<strong>da</strong> como referencial para essa caverna, equivalente <strong>à</strong> estatura <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong>.<br />

Isso indicia estar, tudo o que ali vai <strong>de</strong>senrolar-se, com<strong>pro</strong>metido com a questão<br />

fun<strong>da</strong>mental – o que é ser hom<strong>em</strong>. Na <strong>pro</strong>fundi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “la cueva”, Dom Quixote<br />

encontra alguns seres – homens e mulheres que ali estão presos, encantados por<br />

Merlín, condição que os impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar<strong>em</strong> o exterior. A impressão que Dom<br />

Quixote teve foi tão forte que chegou a imaginar ser sonho, dúvi<strong>da</strong> que logo<br />

<strong>de</strong>scartou: “Despabilé los ojos, limpiémelos, y vi que no dormía, sino que realmente<br />

407 Esta aventura parece apócrifa, e não sou o culpado; portanto, s<strong>em</strong> a <strong>de</strong>clarar falsa ou ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, a escrevo. Tu, leito, visto<br />

que és pru<strong>de</strong>nte, julga o que te parecer (2, XXIV, p.448)<br />

408 Doze ou treze vezes a altura <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong>.


estaba <strong>de</strong>spierto; con todo esto, me tenté la cabeza y los pechos, por certificarme si<br />

era yo mesmo el que allí estaba, o alguna fantasma”. 409<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po que, ao sair “<strong>de</strong> la cueva”, <strong>de</strong>scarta ter sido sonho, logo que<br />

<strong>de</strong>sperta do transe, a primeira frase que diz é: “En efecto: ahora acabo <strong>de</strong> conocer<br />

que todos los contentos <strong>de</strong>sta vi<strong>da</strong> pasan como sombra y sueño, o se marchitan<br />

como la flor <strong>de</strong>l campo”. 410 Extr<strong>em</strong>amente intrigante essa avaliação geral <strong>de</strong> “la<br />

cueva” feita por Dom Quixote. Parece apresentar o real, sob dois pontos <strong>de</strong> vista:<br />

enquanto sombra e sonho, o que se apresenta é o mundo sensível veiculado pelo<br />

platonismo, <strong>de</strong>finitivamente incompatível com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em se tratando <strong>da</strong>s flores<br />

do campo que, ao se apresentar<strong>em</strong> como reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é inevitável que murch<strong>em</strong>, estas<br />

guar<strong>da</strong>m <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com as idéias <strong>de</strong> Descartes e a sua <strong>pro</strong>va <strong>de</strong> que o sensível<br />

não é uma mentira, confiando na perfeição <strong>de</strong> Deus e, por extensão, na perfeição <strong>de</strong><br />

sua criação. O que se apresenta é uma valorização do sensível porque ele traz <strong>em</strong> si<br />

alguma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o hom<strong>em</strong> a t<strong>em</strong>, sendo possível, assim, pela análise<br />

<strong>de</strong> si mesmo extraí-la.<br />

Embora a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> para Descartes esteja, do mesmo modo que para Platão,<br />

também no inteligível, este não se encontra separado do sensível, motivo pelo qual<br />

é possível, pelo sensível, chegar <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. É o reconhecimento <strong>de</strong> que o real, para<br />

sustentar-se, durar e permanecer no mundo, só é possível, usando o expediente <strong>de</strong><br />

arrancar algo que lhe dê reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, tornando-o realização. Caso contrário, ao<br />

hom<strong>em</strong> pensante lhe parece que na<strong>da</strong> existe, tudo se corrompe e acaba,<br />

corrompendo-se como a flor do campo que o t<strong>em</strong>po se encarrega <strong>de</strong> fazer murchar.<br />

Dentre os encantados no interior <strong>de</strong> “la cueva” estão dois primos e gran<strong>de</strong>s<br />

amigos, dos quais um está morto. Além <strong>de</strong> primo e amigo, coube a Montesinos<br />

409 Abri os olhos, esfreguei-os, e vi que não dormia, antes estava realmente <strong>de</strong>sperto; com tudo isto, toquei minha cabeça e<br />

tronco, para certificar-me se era eu mesmo qu<strong>em</strong> ali estava, ou algum fantasma (2, XXIII, p.441).<br />

410 De fato: agora acabo <strong>de</strong> conhecer que todos os contentamentos <strong>de</strong>sta vi<strong>da</strong> passam como sombra e sonho, ou murcham<br />

como a flor do campo (ibi<strong>de</strong>m)


arrancar-lhe o coração gran<strong>de</strong>, típico coração dos valentes, aten<strong>de</strong>ndo a pedido do<br />

próprio morto que lhe encarregou <strong>de</strong> entregá-lo <strong>à</strong> sua ama<strong>da</strong>. Parece haver um<br />

exaltar o valor do coração. É possível que seja uma intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar do lugar<br />

potente e po<strong>de</strong>roso, on<strong>de</strong> estão registra<strong>da</strong>s e arquiva<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as idéias<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras: o mundo i<strong>de</strong>al <strong>da</strong>s formas platônicas ou o mundo <strong>da</strong> substância<br />

pensante <strong>de</strong> Descartes, para outro centro – o coração. No mínimo se está<br />

requisitando atenção para o fenômeno chamado razão, e seu po<strong>de</strong>r avassalador.<br />

Po<strong>de</strong>ria também o coração ser um símbolo a mais para ser tensionado com a razão,<br />

Nesse caso, o coração concorreria, <strong>em</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, com a imaginação.<br />

O que há <strong>de</strong> curioso no episódio <strong>de</strong> “la cueva <strong>de</strong> Montesinos, uma “cueva”<br />

on<strong>de</strong> Dom Quixote passa por experiência originária é o seguinte: seu interior não é<br />

escuro, cheio <strong>de</strong> trevas, iluminado pela luz artificial do fogo, como o é o interior <strong>da</strong><br />

caverna. Apesar <strong>de</strong> que, na superfície “Éntrale una pequeña luz por unos resquicios<br />

o agujeros”, 411 a luz <strong>de</strong> fora entra sim, mas <strong>de</strong> forma muito mo<strong>de</strong>sta (pequeña luz) e<br />

por pequenos buraquinhos (resquicios o agujeros). Isso fica claro, quando diz que<br />

esses buracos “lejos le respon<strong>de</strong>n”; dizendo que os buracos mal aten<strong>de</strong>m ao<br />

<strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> lançar luz ao interior <strong>de</strong> “la cueva”. Sente-se a intenção <strong>de</strong> <strong>da</strong>r<br />

pouquíssima relevância <strong>à</strong> luz exterior. Dentro <strong>de</strong> “la cueva” há palácios com muros e<br />

pare<strong>de</strong>s transparentes <strong>de</strong> claro cristal. O cavaleiro morto está <strong>de</strong>itado num sepulcro<br />

e seu corpo não é uma representação <strong>em</strong> mármore ou <strong>em</strong> bronze; é <strong>em</strong> carne e<br />

osso que se mantém o morto, permitindo que se anteveja a morte manti<strong>da</strong> <strong>em</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

ou, ao contrário, a vi<strong>da</strong> manti<strong>da</strong> <strong>em</strong> morte. É claro que tudo b<strong>em</strong> justificado pelo<br />

encantamento <strong>de</strong> Merlín, que “no fue hijo <strong>de</strong>l diablo, sino que supo, como dicen, un<br />

punto más que el diablo”. 412 Qu<strong>em</strong> encanta en “la cueva” é mais que o “diablo”.<br />

411 Entra uma pequena luz pelas fen<strong>da</strong>s e buracos (2, XXIII, p.441)<br />

412 Não foi filho do diabo, mas sim soube, segundo diz<strong>em</strong>, um pouco mais que o diabo (2, XXIII, p.442).


Se nos reportamos <strong>à</strong> fala <strong>de</strong> ama, no início <strong>da</strong> obra, no episódio do<br />

<strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> biblioteca <strong>de</strong> Dom Quixote, ver<strong>em</strong>os que, naquele momento,<br />

ela <strong>de</strong>ixa registrado o seu equívoco <strong>de</strong> referir-se ao sábio encantador Frestón como<br />

diabo, consertando imediatamente o equívoco com a substituição <strong>de</strong> “diablo” por<br />

“encantador”: “No era diablo –replicó la sobrina–, sino un encantador que vino sobre<br />

una nube una noche, <strong>de</strong>spués <strong>de</strong>l día que vuestra merced <strong>de</strong> aquí se partió.” 413<br />

Parece isso indicar a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar claros dois tipos <strong>de</strong><br />

encantamento. Se o primeiro, o <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> biblioteca, não está relacionado<br />

com o diabo e sim com um simples sábio-encantador, que, além <strong>de</strong> tudo, pertence<br />

ao mundo <strong>da</strong>s “artes y letras”; se o segundo encantamento – o que t<strong>em</strong> lugar no<br />

interior <strong>de</strong> “la cueva”, - ao qual estão submetidos todos os que estão <strong>em</strong> seu interior,<br />

encantamento que os faz prisioneiros a todos, nesse caso, para caracterizá-lo, não<br />

basta o ser filho do diabo (“no fue hijo <strong>de</strong>l diablo”), mas, do encantador, lhe é exigido<br />

mais que isso, é exigido que saiba “un punto más que el diablo”. Tudo parece<br />

conduzir para uma gra<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> encantamentos a ser<strong>em</strong> <strong>de</strong>cifrados. Um <strong>de</strong>les<br />

r<strong>em</strong>ete ao diabo e o outro não. Se essa gra<strong>da</strong>ção está relaciona<strong>da</strong> a algum juízo <strong>de</strong><br />

valor, se um encantamento é bom e o outro é mau, não nos cabe sequer arriscar,<br />

somente <strong>de</strong>ixar aberta a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> dois encantamentos plausíveis.<br />

Ao <strong>de</strong>clarar não saber o motivo do encantamento, o próprio Montesinos nos<br />

brin<strong>da</strong> com a resposta “El como o para qué nos encantó [...] dirá an<strong>da</strong>ndo los<br />

ti<strong>em</strong>pos [...].” 414 e antecipa que um gran<strong>de</strong> acontecimento está para chegar, ou<br />

talvez já tenha chegado, s<strong>em</strong> que um perfil se tivesse ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>finido, uma vez que<br />

“no está(n) muy lejos” (brev<strong>em</strong>ente) uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> que revolucionará o modo <strong>de</strong> o<br />

hom<strong>em</strong> relacionar-se com a vi<strong>da</strong> chegará. Essa novi<strong>da</strong><strong>de</strong> é alia<strong>da</strong> do diabo e<br />

413<br />

Não era diabo – respon<strong>de</strong>u a sobrinha –, mas sim um encantador que veio sobre uma nuv<strong>em</strong>, <strong>de</strong>pois do dia que vossa<br />

mercê <strong>da</strong>qui partiu (1, VII, p.43)<br />

414<br />

O como ou para que nos encantou [...] dirá an<strong>da</strong>ndo os t<strong>em</strong>pos, que, segundo imagino (2, XXIII, p.442)


<strong>pro</strong>voca encantamento, mais que isso, só o avançar do t<strong>em</strong>po po<strong>de</strong>rá revelar. Essa<br />

revelação é também o que a obra reserva para que o t<strong>em</strong>po, ele mesmo e só ele<br />

possa dispensá-la: é revelação <strong>da</strong>quilo que estamos fazendo no t<strong>em</strong>po – buscando,<br />

<strong>em</strong> pleno século XXI, o que na obra está <strong>em</strong> obra <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não é <strong>em</strong> vão que,<br />

por motivos s<strong>em</strong>elhantes, Dom Quixote <strong>de</strong>scarta uma observação superficial feita<br />

por Sancho, sobre um episódio, dizendo-lhe: sua “averiguación no es <strong>de</strong><br />

importancia, ni turba ni altera la ver<strong>da</strong>d y contexto <strong>de</strong> la historia”. 415<br />

É possível que esse “otro mundo” <strong>de</strong> “sueño” 416 esteja disfarçando-se <strong>de</strong><br />

mundo mágico medieval. Entretanto, <strong>em</strong> “la cueva”, não era necessário nenhum<br />

esforço para ver as coisas. A transparência era tal que a visão a tudo alcançava;<br />

naquele espaço cabia tudo; cabia até o “pedir dinheiro <strong>em</strong>prestado e é o que faz<strong>em</strong><br />

as donzelas lavradoras: a mando <strong>de</strong> Dulcinea pe<strong>de</strong>m dinheiro <strong>em</strong>prestado a Dom<br />

Quixote. Sancho, além <strong>de</strong> não crer na história, chama o lugar visitado por Dom<br />

Quixote <strong>de</strong> “otro mundo”. “Outro mundo” sugere que há um mundo além <strong>da</strong>quele <strong>em</strong><br />

que viv<strong>em</strong>os. Esse “outro mundo”, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que anuncia um novo<br />

mundo que se está configurando, o mundo que se submete <strong>à</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cartesiana,<br />

mundo que marca, pela ausência, ou quiçá por superposição, um mundo diferente<br />

que também já existiu. Este po<strong>de</strong> ser o mundo <strong>da</strong>s idéias platônicas <strong>à</strong>s quais, para<br />

se ter acesso, é preciso, inevitavelmente, ir ao exterior <strong>da</strong> caverna para ali, po<strong>de</strong>r, no<br />

caso do real filósofo, centrar o olhar diretamente no sol. De qualquer forma, platônico<br />

ou cartesiano, “outro mundo” é a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> metafísica. Em “la cueva” parece que<br />

sensível e inteligível <strong>em</strong> seu interior se concentram, s<strong>em</strong> que seja necessário fazer<br />

nenhum movimento <strong>em</strong> direção ao exterior.<br />

415 [sua] averiguação não é <strong>de</strong> importância, n<strong>em</strong> turva n<strong>em</strong> altera a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e o contexto <strong>da</strong> história (2, XXIII, p.442)<br />

416 Sonho.


Para Dom Quixote, entretanto, é um lugar maravilhoso: assim o <strong>de</strong>screve<br />

para Sancho; que Montesinos lhe havia mostrado “entre otras infinitas cosas y<br />

maravillas [...]”. 417 A “la cueva” chegavam pessoas <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as partes e <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

épocas: “estaban otras muchas señoras <strong>de</strong> los pasados y presentes siglos [...] la<br />

reina Ginebra y su dueña Quintañona, escanciando el vino a Lanzarote”. 418<br />

É Sancho qu<strong>em</strong> mais tenta <strong>de</strong>sautorizar Dom Quixote quanto <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

que seu amo encontrou e viveu no interior <strong>de</strong> “la cueva”. Chega a reclamar, dizendo<br />

que Dom Quixote estava tão b<strong>em</strong> enquanto fora <strong>de</strong> “la cueva”, “con su entero juicio,<br />

tal cual Dios se lo había <strong>da</strong>do, hablando sentencias y <strong>da</strong>ndo consejos a ca<strong>da</strong><br />

paso”. 419 Diz que, bastou ele entrar “en la cueva” para sair “contando los mayores<br />

disparates que se pue<strong>de</strong>n imaginarse”. 420 Isso indicia ter “la cueva” o <strong>dom</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>pro</strong>duzir alterações no juízo. Além disso, são todos imortais, os que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la<br />

cueva” estão: quinhentos anos se passaram e “no se ha muerto ninguno <strong>de</strong><br />

nosotros”, 421 diz Montesinos <strong>em</strong> discurso a Duran<strong>da</strong>rte.<br />

Nesse lugar cabe tudo, não falta na<strong>da</strong>; to<strong>da</strong>s as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s do t<strong>em</strong>po e do<br />

espaço ali têm seu lugar reservado. É o espaço rigorosamente preservado e<br />

<strong>pro</strong>tegido <strong>da</strong> maléfica assustadora e perigosa ação do t<strong>em</strong>po que corrompe e<br />

<strong>de</strong>strói, o t<strong>em</strong>po que submete as flores do campo e se encarrega <strong>de</strong> murchá-las.<br />

Dentro <strong>de</strong> “la cueva” to<strong>da</strong>s as coisas são eternas e imutáveis. Na abstração, até uma<br />

flor po<strong>de</strong> ser eterna, mesmo que, para arrancar-lhe significado, para torná-la eterna,<br />

seja preciso tirar-lhe todo o vigor, seja necessário murchá-la.<br />

Ao saber que Dulcinea também fazia parte do grupo dos encantados no<br />

interior <strong>de</strong> “la cueva”, Sancho mais se sente no direito <strong>de</strong> não crer nos disparates <strong>de</strong><br />

417<br />

Entre outras infinitas coisas e maravilhas (2, XXIII, p.446)<br />

418<br />

Estavam outras muitas senhoras dos passados e presentes t<strong>em</strong>pos [...] a rainha Guinevere e sua ama Quintanhona,<br />

servindo o vinho a Lancelot (2, XXIII, p.441).<br />

419<br />

Com seu inteiro juízo, tal qual Deus lhe conce<strong>de</strong>ra, falando ditames e <strong>da</strong>ndo conselhos a ca<strong>da</strong> passo (ibi<strong>de</strong>m).<br />

420 Contando os maiores disparates que se possa imaginar (2, XXIII, p.446)<br />

421 E nenhum dos nossos morreu (2, XXIII, p.443).


seu amo; afinal ele mesmo tinha participado do fingido encantamento <strong>da</strong> “sin par”<br />

Dulcinea. Dom Quixote, porém, o compreen<strong>de</strong>, dizendo que sua <strong>de</strong>scrença se <strong>de</strong>ve<br />

a não estar ele muito familiarizado com as coisas do mundo, negando, por isso,<br />

como possível, qualquer reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que indique qualquer esforço <strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mais<br />

uma vez, é sinalizado, agora pelo próprio Dom Quixote, mais experimentado nas<br />

coisas do mundo do que Sancho, que o que viu <strong>de</strong>ntro “<strong>de</strong> la cueva” é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

“ver<strong>da</strong>d que ni admite réplica ni disputa”. 422 E assim explica a Sancho: “como no<br />

estás experimentado en las cosas <strong>de</strong>l mundo to<strong>da</strong>s las cosas que tienen algo <strong>de</strong><br />

dificultad te parecen imposibles”. 423 Para alcançá-la, essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> exige esforço e<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, s<strong>em</strong> ser, no entanto, impossível.<br />

A dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> a que se refere Dom Quixote po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o esforço do<br />

centrar a visão para com os olhos <strong>da</strong> alma alcançar a essência <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas,<br />

até o complicado <strong>pro</strong>cesso pelo qual t<strong>em</strong> <strong>de</strong> passar o pensamento, submetendo-se<br />

aos rigores do método mat<strong>em</strong>ático, <strong>em</strong> análises e simplificações, sínteses e<br />

com<strong>pro</strong>vações, até o esgotamento, única forma que encontrou Descartes <strong>de</strong> chegar-<br />

se <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. No que se refere a não admitir “réplica ni disputa”, 424 não importa se o<br />

que quer <strong>pro</strong>var Dom Quixote é ser ou não ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o que aconteceu “en la cueva”.<br />

Com isso, é b<strong>em</strong> possível que nos esteja querendo falar <strong>da</strong> radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> trazi<strong>da</strong> por Descartes, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que recru<strong>de</strong>sce a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

metafísica, <strong>da</strong>ndo-lhe nova cara, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> única e última que não admite<br />

contestação. Além <strong>de</strong>ssa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ria estar falando <strong>de</strong> outra? É possível, mas<br />

fiqu<strong>em</strong>os atentos: essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não admite réplica n<strong>em</strong> disputa. O que não admite<br />

réplica n<strong>em</strong> disputa: a experiência que teve Dom Quixote no interior <strong>de</strong> “la cueva”,<br />

ou a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que ali se <strong>de</strong>senrolou?<br />

422 Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que não admite réplica n<strong>em</strong> discussão (2, XXIII, p.448)<br />

423 Como não estás experimentado nas coisas do mundo, to<strong>da</strong>s as coisas que têm alguma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> parec<strong>em</strong>-te impossíveis<br />

(2, XXIII, p.447)<br />

424 Réplica n<strong>em</strong> disputa (2, XXIII, p.448)


É claro que esse <strong>pro</strong>cesso difícil é só para qu<strong>em</strong> está fora <strong>de</strong> “la cueva”. Para<br />

Dom Quixote e todos os que ali estavam, não havia nenhuma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, porque<br />

tudo estava ali, disponível, s<strong>em</strong> que fosse preciso nenhum esforço que<br />

representasse dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por que essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> vivi<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva” era<br />

vivi<strong>da</strong> s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> por todos <strong>de</strong>ntro, mas não era para os que estavam fora?<br />

Parece que não é b<strong>em</strong> assim. Todos os que estavam <strong>de</strong>ntro e fora a viviam<br />

s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, esse era o acesso que lhes <strong>da</strong>va o encantamento, o encantamento<br />

<strong>de</strong> acreditar<strong>em</strong> todos ser<strong>em</strong> <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r. É preciso, no entanto, não<br />

confundir a “não dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>” com ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sancho era um dos que estavam fora <strong>de</strong><br />

“la cueva” vivendo s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, e n<strong>em</strong> por isso, <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> estar encantado. Por<br />

isso Dom Quixote afirma que ele não está experimentado nas coisas do mundo: “y<br />

como no estás experimentado en las cosas <strong>de</strong>l mundo”.<br />

Parece que o que nos está querendo falar Dom Quixote é do “experienciar”.<br />

Isto, sim, é o que Sancho não t<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> ele n<strong>em</strong> todos os que estão aprisionados<br />

pelo encantamento <strong>da</strong> metafísica que, como um recorte para pesquisa, t<strong>em</strong> lugar<br />

reservado no interior <strong>de</strong> “la cueva”. O que se torna dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para Sancho é<br />

imaginar que haja outras reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, além <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> metafísica pela qual, como<br />

todos os <strong>de</strong>mais, também está encantado. O que po<strong>de</strong> parecer difícil para Sancho é<br />

supor que as coisas do mundo, nas quais não está ele experimentado, não são<br />

meros objetos <strong>em</strong> suas mãos <strong>de</strong> sujeito <strong>dom</strong>inador e controlador. O que não sabe<br />

Sancho, e por isso é para ele difícil, é que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas do mundo há<br />

s<strong>em</strong>pre mistério passível <strong>de</strong> tornar-se s<strong>em</strong>pre nova realização, porque, nas coisas<br />

do mundo, a terra permanece. Difícil para Sancho e para todos os encantados é<br />

reconhecer seu lugar <strong>de</strong> “entre-ser”.<br />

Outro <strong>de</strong>talhe ain<strong>da</strong> é a manifestação espontânea <strong>da</strong> donzela, ao receber <strong>de</strong><br />

Dom Quixote “los cuatro reales” que pedira sua ama Dulcinea: “en lugar <strong>de</strong> hacerme


una reverencia, hizo una cabriola, que se levantó dos varas <strong>de</strong> medir en el aire”, 425<br />

acrobacia também realiza<strong>da</strong> por Dom Quixote quando estava <strong>em</strong> “Sierra Morena”:<br />

[...] luego, sin más ni más, dio dos zapatetas en el aire y dos tumbas, la<br />

cabeza abajo y los pies en alto, <strong>de</strong>scubriendo cosas que, por no verlas otra<br />

vez, volvió Sancho la rien<strong>da</strong> a Rocinante y se dio por contento y satisfecho<br />

<strong>de</strong> que podía jurar que su amo que<strong>da</strong>ba loco. 426<br />

Há uma substituição do gestual comum estabelecido e compartilhado por<br />

todos <strong>em</strong> situações s<strong>em</strong>elhantes <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento. Essa reverência <strong>de</strong><br />

agra<strong>de</strong>cimento é, no entanto, substituí<strong>da</strong> por cambalhotas __ “cabriolas”,<br />

<strong>pro</strong>cedimento incomum <strong>em</strong> contexto real: a donzela, recebendo dinheiro <strong>da</strong>s mãos<br />

<strong>de</strong> Dom Quixote, sai <strong>da</strong>ndo cambalhotas <strong>em</strong> agra<strong>de</strong>cimento.<br />

Ain<strong>da</strong> que pouco soubéss<strong>em</strong>os sobre o significado simbólico <strong>de</strong> cambalhota,<br />

já seria suficiente a inversão radical do comum para o incomum. Além disso, <strong>em</strong><br />

outro lugar <strong>de</strong>ste texto, fez-se referência a movimentos circulares que, ultrapassando<br />

seu significado, acenam com o sentido <strong>de</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> e plenitu<strong>de</strong>. As cabriolas, tanto<br />

<strong>em</strong> “la cueva”, como também <strong>em</strong> Sierra Morena indicam concepção diametralmente<br />

oposta ao mo<strong>de</strong>lo que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva” se <strong>de</strong>senvolvia. As “cabriolas” são<br />

sugestivas, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, num contexto <strong>de</strong> certezas absolutas, num contexto<br />

on<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> coisa t<strong>em</strong> seu <strong>de</strong>vido lugar, com a <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> correspondência no mundo,<br />

assinalam a relação direta e retilínea entre o mundo sensível e real e o mundo<br />

inteligível. Tal correspondência exige um certo esforço para realizá-la, é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, e<br />

um preço alto que vale a pena pagar, pela garantia <strong>da</strong> certeza absoluta que o<br />

esforço po<strong>de</strong> trazer. Nessa mesma medi<strong>da</strong>, o contexto <strong>de</strong> “la cueva”, sendo <strong>de</strong><br />

425 Em lugar <strong>de</strong> fazer-me uma reverência, fez uma cambalhota, que se ergueu duas varas <strong>de</strong> medir no ar (2, XXIII, p.447).<br />

426 Depois, s<strong>em</strong> mais n<strong>em</strong> menos, <strong>de</strong>u dois saltos no ar e duas piruetas, <strong>de</strong> ponta cabeça, mostrando coisas que, para não as<br />

ver outra vez, Sancho <strong>de</strong>u volta <strong>à</strong>s ré<strong>de</strong>as <strong>de</strong> Rocinante e <strong>de</strong>u-se por contente e satisfeito <strong>de</strong> que podia jurar que seu amo<br />

estava louco (1, XXV, p.144)


ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s eternas e imutáveis, <strong>de</strong> correspondência retilínea, não é compatível com o<br />

sugestivo <strong>da</strong>s “cabriolas”: movimentos circulares indicando plenitu<strong>de</strong>.<br />

Dentro <strong>de</strong>ssa medi<strong>da</strong>, as “cambalhotas”, o soltar-se e distanciar-se do solo, a<br />

mu<strong>da</strong>nça do movimento retilíneo que apresenta as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s migrando diretamente<br />

do pensamento, para fun<strong>da</strong>r um mundo rigorosamente s<strong>em</strong>elhante, uma bela e<br />

perfeita representação; tudo isso se revela impróprio, por seu caráter diametralmente<br />

oposto. Ao contrário <strong>da</strong> contenção, manifesta-se, nas cabriolas, um excesso, um<br />

extrapolar os limites, numa dinâmica que l<strong>em</strong>bra a physis-zoé, aquela que nos<br />

legaram os pensadores originários e que se viu encoberta e represa<strong>da</strong> por tantos<br />

séculos. As “cabriolas” po<strong>de</strong>m ser uma chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> atenção para o perigo do<br />

fechamento que se estava impondo <strong>à</strong> natureza na passag<strong>em</strong> <strong>da</strong> physis para “bios”,<br />

o perigo <strong>de</strong> inviabilizar <strong>de</strong>finitivamente o dinamismo necessário ao <strong>pro</strong>sseguimento<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Não seria essa uma <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sancho, o ver, nessa forma atípica<br />

e incomum <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer, algo possível? Não é esse um modo <strong>de</strong> insinuar que a<br />

terra segue pulsando <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as coisas entifica<strong>da</strong>s e estabeleci<strong>da</strong>s, possibilitando<br />

que se modifiqu<strong>em</strong> <strong>em</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s outras?<br />

Submeter o real aos parcos limites <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> racional acaba, <strong>em</strong> algum<br />

momento, <strong>pro</strong>movendo insurreições que hora e outra, espontânea e<br />

inespera<strong>da</strong>mente, se apresentam. As “cabriolas” são um ex<strong>em</strong>plo.<br />

O seguinte ex<strong>em</strong>plo reforça esse mundo imutável <strong>de</strong> correspondências:<br />

quando Montesinos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> contar a triste história <strong>de</strong> Belerma, a esposa <strong>de</strong><br />

Duran<strong>da</strong>rte, seu primo e amigo, dizendo que ela não era feia, que feia assim<br />

parecia, <strong>em</strong> conseqüência <strong>de</strong> seu sofrimento, tanto pelo encantamento que a<br />

obrigava a ficar noites <strong>em</strong> claro, como também por seu pesar pelo <strong>de</strong>stino do marido<br />

que teve seu coração arrancado. Dom Quixote mesmo, estando nesse contexto <strong>de</strong><br />

justificar a feiura <strong>de</strong> Belerma, a viúva <strong>de</strong> Duran<strong>da</strong>rte, a<strong>pro</strong>veita para <strong>de</strong>scartar a


possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “su amarillez y sus ojeras [...]” po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> indicar estar ela “en su mal<br />

mensil, ordinario en las mujeres, porque ha muchos meses, y aun años, que no le<br />

tiene ni asoma por sus puertas!” 427 A correspondência do mundo real ao “outro<br />

mundo” é tão perfeita e equilibra<strong>da</strong> que nele não po<strong>de</strong> faltar sequer o mal <strong>da</strong><br />

menstruação <strong>de</strong>ntro do elenco <strong>de</strong> justificativas possíveis para a pali<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Belerma,<br />

a esposa <strong>de</strong> Duran<strong>da</strong>rte.<br />

Com relação <strong>à</strong> Belerma, outra leitura é possível, tanto para a pali<strong>de</strong>z (la<br />

amarillez) como para sua falta <strong>de</strong> menstruação: a elas po<strong>de</strong> somar-se aquela <strong>em</strong><br />

que o foco é o coração. Tanto a falta <strong>de</strong> sangue como o arrancar do coração<br />

<strong>de</strong>nunciam falta <strong>de</strong> vigor, revelando que, aquele modo <strong>de</strong> viver <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”,<br />

não permite renovação, que ali, n<strong>em</strong> a vi<strong>da</strong>, n<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> a linguag<strong>em</strong> se<br />

renovam.<br />

Pois b<strong>em</strong>, no final <strong>da</strong> história sobre a feiúra <strong>de</strong> Belerma, Montesinos comete o<br />

erro <strong>de</strong> compará-la <strong>à</strong> Dulcinea; dizendo que, se não fora por tudo o que já tinha<br />

passado, Belerma igualar-se-ia “en hermosura, donaire y brío la gran Dulcinea <strong>de</strong>l<br />

Toboso. 428 Isso foi o suficiente para Dom Quixote <strong>de</strong>monstrar uma ponta <strong>de</strong> irritação,<br />

como é comum no romance, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>as s<strong>em</strong>elhantes, e lhe respon<strong>de</strong>r: “no hay para<br />

qué comparar a nadie con nadie. La sin par Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso es quien es, y la<br />

señora Belerma es quien es [...] y qué<strong>de</strong>se aquí”. 429 Correspondência é<br />

correspondência, ca<strong>da</strong> coisa com o seu <strong>de</strong>vido correspon<strong>de</strong>nte, uma é uma e outra<br />

é outra, isso, n<strong>em</strong> Dom Quixote <strong>de</strong>ixa escapar. Aliás, há muito, já está dito e redito<br />

no codinome <strong>de</strong> Dulcinea: “la sin par”, acentuando, com isso, o limite <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> coisa no mundo.<br />

427<br />

Em seu mal menstrual, normal nas mulheres, porque há muitos meses, e mesmo anos, que não o t<strong>em</strong> n<strong>em</strong> aparece <strong>à</strong>s<br />

suas portas! (2, XXIII, p.444).<br />

428<br />

Em beleza, donaire e brio a gran<strong>de</strong> Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso! (Ibi<strong>de</strong>m).<br />

429<br />

Não há para que comparar a ninguém com ninguém. A incomparável Dulcinea Del Toboso é qu<strong>em</strong> é, e a senhora Belerma<br />

é qu<strong>em</strong> é [...] e par<strong>em</strong>os por aqui (Ibi<strong>de</strong>m)


Embora as referências feitas a Dom Quixote recebam o adjetivo “claríssimo”:<br />

(“señor clarísimo”); <strong>em</strong>bora os que ouviam sua história foss<strong>em</strong> “clarísimos<br />

oyentes”, 430 <strong>em</strong>bora os muros e pare<strong>de</strong>s foss<strong>em</strong> <strong>de</strong> “claro cristal”; as mulheres que<br />

repet<strong>em</strong> diariamente a <strong>pro</strong>cissão-ritual <strong>de</strong> entrega do coração do morto estão <strong>de</strong> luto<br />

e choram. É contraditório um espaço tão claro, cheio <strong>de</strong> luz e transparência,<br />

assinalado por significantes <strong>de</strong> abertura que suger<strong>em</strong> alegria, conjugar-se com a<br />

escuridão do negro e com as lágrimas que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> para o fechamento um, e para a<br />

tristeza o outro. Parece indicar que a clareza há tanto t<strong>em</strong>po e diligent<strong>em</strong>ente<br />

busca<strong>da</strong> pelo Oci<strong>de</strong>nte é uma falácia. Nesse caso, <strong>de</strong>sfaríamos aqui a relação<br />

estreita e unívoca significante/significado, acreditando po<strong>de</strong>r a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> também<br />

estar no escuro, e, conseqüent<strong>em</strong>ente, po<strong>de</strong>r também a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> estar na não-<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; do mesmo modo que, com a excessiva clari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “la cueva” é<br />

necessário que conviva o escuro do não-ser, mas nunca o luto n<strong>em</strong> as lágrimas do<br />

esquecimento do ser.<br />

Em relação <strong>à</strong> clari<strong>da</strong><strong>de</strong>-escuridão, outro par significante é a roupa negra que<br />

vest<strong>em</strong> as donzelas <strong>da</strong> <strong>pro</strong>cissão que diariamente <strong>de</strong>sfilavam com o coração <strong>de</strong><br />

Duran<strong>da</strong>rte nas mãos: “to<strong>da</strong>s vesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> luto, con turbantes blancos sobre las<br />

cabezas.” 431 Fechava o cortejo, Belerma; esta vestia toucas também brancas, que,<br />

<strong>de</strong> tão longas, chegavam ao chão e “besaban la tierra”. 432<br />

É sugestivo que a clari<strong>da</strong><strong>de</strong> do branco esteja na cabeça e o negro na parte<br />

inferior dos corpos. E segue o jogo negro-branco contornando to<strong>da</strong> cena,<br />

insinuando, nas primeiras, uma relação <strong>de</strong> separativi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre a terra negra e o<br />

céu/sol/luz branca. Só a Senhora Belerma, a que fecha o cortejo, mostra, com os<br />

turbantes que vão <strong>da</strong> cabeça até o arrastar no chão, uma conexão terra/negra –<br />

430 Claríssimos ouvintes (2, XXIII, p.441).<br />

431 To<strong>da</strong>s vesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> luto, com turbantes brancos sobre as cabeças (2, XXIII, p.444).<br />

432 Beijavam a terra (ibi<strong>de</strong>m)


luz/branca, chamando a atenção para o risco <strong>da</strong> fragmentação, sugerindo o diálogo<br />

necessário céu-terra.<br />

Se por um lado, Dom Quixote <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do que viu “en la cueva”,<br />

opondo-se a Sancho, que <strong>em</strong> na<strong>da</strong> acredita; ao finalizar sua <strong>de</strong>fesa, se refere a uma<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que “ni admite réplica ni disputa”. Percebe-se o po<strong>de</strong>r com que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

metafísica chegou no Oci<strong>de</strong>nte como símbolo <strong>de</strong> certeza e como aí, absoluta,<br />

instalou seu reino.<br />

Se por um lado, Montesinos, o velho que habitava “la cueva” homônima,<br />

confessa sua fé total <strong>em</strong> Dom Quixote como o único que po<strong>de</strong>rá salvá-los <strong>da</strong> prisão<br />

e do encantamento: “[...] don Quijote <strong>de</strong> la Mancha [...], por cuyo medio y favor<br />

podría ser que nosotros fués<strong>em</strong>os <strong>de</strong>sencantados”, 433 por outro, o convoca a ser o<br />

porta-voz <strong>de</strong> tudo o que viu <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva” “para que <strong>de</strong>s noticia al mundo <strong>de</strong> lo<br />

que encierra y cubre la <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong> cueva [...] <strong>de</strong> Montesinos” 434 . Essas notícias são<br />

“las maravillas que este transparente alcázar solapa, <strong>de</strong> quien soy alcai<strong>de</strong> y guar<strong>da</strong><br />

mayor perpetua, porque soy el mismo Montesinos, <strong>de</strong> quien la cueva toma<br />

nombre”. 435 É intrigante que <strong>de</strong> um lugar que encerra maravilhas, seus habitantes<br />

precis<strong>em</strong> libertar-se. Parece que a tarefa <strong>de</strong> Dom Quixote é, ao contrário <strong>de</strong> levar a<br />

“boa nova” <strong>de</strong> fora <strong>da</strong> caverna, local on<strong>de</strong> a luz do absoluto fora evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> por<br />

Platão, para seu interior; <strong>de</strong>verá ser, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a <strong>de</strong> levar para fora o que viu<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> la cueva”, invertendo, assim, a ação do hom<strong>em</strong>. Essa é uma boa<br />

sugestão.<br />

Ao agir assim, Dom Quixote estará contando, com <strong>de</strong>talhes, as contradições<br />

que ali acontec<strong>em</strong>: ao mesmo t<strong>em</strong>po que aquela “cueva” é uma maravilha, é<br />

também uma prisão. Essa contradição po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sfeita com a extensão do<br />

433 Dom Quixote [...] por cujo meio e favor po<strong>de</strong>ria ser que nos <strong>de</strong>sencantáss<strong>em</strong>os (2, XXIII, p. 444)<br />

434 Para que dês notícia ao mundo do que encerra e encobre a <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong> cova [...] <strong>de</strong> Montesinos (2, XXIII, p. 442) .<br />

435 As maravilhas que este transparente castelo encobre, do qual sou alcai<strong>de</strong> e guar<strong>da</strong> maior perpétuo, porque sou o próprio<br />

Montesinos, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a cova toma nome (ibi<strong>de</strong>m)


“nosotros”, todos os que estão <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”, ao hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> geral: tanto os<br />

que estão <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”, como os <strong>de</strong> fora. É possível que, com o alerta <strong>de</strong><br />

Dom Quixote, o hom<strong>em</strong> do exterior, sabedor <strong>da</strong> “boa nova”, fique atento e não se<br />

<strong>de</strong>ixe cair nas malhas <strong>da</strong> sedução <strong>de</strong> “la cueva”: uma caverna que maravilha para<br />

aprisionar.<br />

Vista <strong>de</strong>sse modo, a tarefa <strong>de</strong> Dom Quixote é dupla e <strong>de</strong>verá estar <strong>em</strong>buti<strong>da</strong><br />

numa só ação: maravilhar e aprisionar são opostos radicais. Juntar os dois, para<br />

<strong>de</strong>les <strong>da</strong>r conta é tarefa dificílima, mas Dom Quixote precisará encontrar um modo<br />

<strong>de</strong> b<strong>em</strong>-dizer, um modo <strong>de</strong> trazer <strong>à</strong> compreensão essa oposição. Sua preocupação<br />

com o “falar” t<strong>em</strong> sentido. Talvez pudéss<strong>em</strong>os, aí mesmo, encontrar leve contradição<br />

e a<strong>pro</strong>veitar para <strong>de</strong>sfazê-la. A contradição falar X dizer. Parece a mesma coisa,<br />

mas não é. O falar é típico <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> filósofo e o dizer, <strong>de</strong> sua nova<br />

performance <strong>de</strong> hermeneuta. “Não sou louco no que falo” requisita do leitor atenção;<br />

atenção ao liame entre falar e dizer, [ou ao falar a voz do logos] porque será no<br />

dizer, (ou ao falar a voz do logos) que as gran<strong>de</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s vão se mostrar. Há duas<br />

oposições <strong>em</strong> dois sentidos. Maravilhar e aprisionar: <strong>em</strong>bora, na superfície, os atos<br />

pareçam contraditórios, não os são. Falar e dizer, <strong>em</strong>bora aparent<strong>em</strong> não indicar<br />

contradição, observa-se que, entre eles, há uma radical diferença.<br />

Há ain<strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que esse dizer - requisitado por Montesinos para<br />

contar ao mundo um evento tão significativo, que <strong>de</strong>screve <strong>de</strong> forma tão oblíqua as<br />

vicissitu<strong>de</strong>s históricas <strong>da</strong>quele momento, seja o dizer <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Nesse caso,<br />

qu<strong>em</strong> está sendo convocado, não é o personag<strong>em</strong> Dom Quixote, mas a obra <strong>de</strong> arte<br />

Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha. De qualquer modo, a interpretação é inevitável. Tanto o<br />

personag<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua realização hermeneuta interpreta para ser porta-voz do que se<br />

está mostrando no fundo <strong>de</strong> “la cueva”, como a obra garantirá, para todos os<br />

t<strong>em</strong>pos, a salvaguar<strong>da</strong> <strong>de</strong> interpretações futuras.


Outras ocorrências <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva” tornam ain<strong>da</strong> mais confusa e<br />

contraditória a interpretação que possamos lhes <strong>da</strong>r, ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que<br />

seguramente se <strong>de</strong>sfarão quando, <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> obra chegar<strong>em</strong> <strong>à</strong>s mãos do leitor.<br />

Uma contradição: Guadiana, o escu<strong>de</strong>iro do cavaleiro morto, lamentando sua<br />

<strong>de</strong>sgraça foi convertido <strong>em</strong> rio, e quando saiu <strong>de</strong> “la cueva” “y vio el sol <strong>de</strong>l otro cielo,<br />

fue tanto el pesar que sintió <strong>de</strong> ver que os <strong>de</strong>jaba, que sumergió en las entrañas <strong>de</strong><br />

la tierra”. 436<br />

Aquele que, sob a forma <strong>de</strong> rio sai <strong>de</strong> “la cueva” e vê o sol, não <strong>de</strong>sfruta n<strong>em</strong><br />

se regozija <strong>da</strong> condição superior alcança<strong>da</strong>. Ao contrário, seu pesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar os<br />

<strong>de</strong>mais <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva” foi tamanho que preferiu meter-se no fundo <strong>da</strong> terra, só<br />

aparecendo <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando; “<strong>de</strong> cuando en cuando sale y se muestra don<strong>de</strong> el<br />

sol y las gentes le vean”, 437 para formar lagoas. A<strong>de</strong>mais, o escu<strong>de</strong>iro, que teve o<br />

privilégio <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> “la cueva” e ver o sol, “por don<strong>de</strong>quiera que va muestra su<br />

tristeza y melancolia, y no se precia <strong>de</strong> criar en sus aguas peces regalados y <strong>de</strong><br />

estima, sino burdos y <strong>de</strong>sabridos” 438 .<br />

Por mais que se ass<strong>em</strong>elhe essa passag<strong>em</strong> com o mito <strong>de</strong> Platão, insinuam-<br />

se controvérsias, uma vez que, no mito, qu<strong>em</strong> sai <strong>da</strong> caverna fica encantado com o<br />

privilégio <strong>de</strong> ver o sol do “otro cielo” - sol exterior que metaforiza o B<strong>em</strong>, on<strong>de</strong> estão<br />

arquiva<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Este céu, a que se refere Guadiana, é “outro”,<br />

diferente do céu interior <strong>de</strong> “la cueva”, é um céu sombrio e s<strong>em</strong> luz. A situação<br />

privilegia<strong>da</strong> do sair <strong>da</strong> caverna <strong>de</strong>veria redun<strong>da</strong>r <strong>em</strong> encantamento e prazer,<br />

sentimento inverso ao que experimenta Guadiana, escu<strong>de</strong>iro do cavaleiro morto e<br />

vazio <strong>de</strong> coração, também cativo e encantado no interior <strong>de</strong> “la cueva”.<br />

436<br />

E viu o sol do outro céu, foi tanto o pesar que sentiu <strong>de</strong> ver que os <strong>de</strong>ixava, que submergiu na entranhas <strong>da</strong> terra.<br />

(2, XXIII, p.443)<br />

437<br />

De quando <strong>em</strong> quando sai e se mostra on<strong>de</strong> o sol e as pessoas o vejam (ibi<strong>de</strong>m)<br />

438<br />

Por on<strong>de</strong> quer que vá, mostra sua tristeza e a melancolia, e não aprecia criar, <strong>em</strong> suas águas, peixes saborosos e<br />

estimados, mas, sim, grosseiros e s<strong>em</strong> sabor (ibi<strong>de</strong>m)


No que se refere ao sentimento <strong>de</strong> pesar, este o reconhec<strong>em</strong>os familiar,<br />

consi<strong>de</strong>rando a prisão <strong>à</strong> qual ficaram submetidos os do interior <strong>de</strong> “la cueva”. Não<br />

há, entretanto, nenhuma manifestação <strong>da</strong> parte <strong>de</strong> Guadiana com o com<strong>pro</strong>misso <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scer, voltando ao interior <strong>de</strong> “la cueva” – caverna para contar a nova – para levar a<br />

visão do B<strong>em</strong> e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, aos que ficaram <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”, cativos do falso.<br />

Ao contrário, Guadiana os olha com pesar, o “pesar que sintió <strong>de</strong> ver que os <strong>de</strong>jaba.”<br />

Nesse caso, é possível que o convi<strong>da</strong>do para essa missão não seja<br />

Guadiana, mas seja Dom Quixote, não <strong>em</strong> sua versão cavaleiro louco, mas como “el<br />

gran caballero <strong>de</strong> quien tantas cosas tiene <strong>pro</strong>fetiza<strong>da</strong>s el sábio Merlín”. 439 Parec<strong>em</strong><br />

estar reserva<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong> muitas realizações para Dom Quixote. Como obra <strong>de</strong> arte,<br />

talvez. Qu<strong>em</strong>, dirigindo-se a seu primo Duran<strong>da</strong>rte o alerta sobre o porte <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote, quanto ao po<strong>de</strong>r e ascendência que o habilitavam a assumir posição <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>staque naquela <strong>em</strong>presa tão dolorosa, é Montesinos. É Montesinos que, dirigindo-<br />

se ao primo Duran<strong>da</strong>rte, lhe avisa que “unas nuevas os quiero <strong>da</strong>r ahora”, 440 que lhe<br />

tranqüiliza dizendo que essa boa nova po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> “alivio a vuestro dolor” ou, pelo<br />

menos, contribuirá para não aumentar a dor, “<strong>de</strong> ninguna manera”. É Montesinos<br />

qu<strong>em</strong> diz que qu<strong>em</strong> po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>sencantá-los é um cavaleiro, um cavaleiro especial:<br />

“aquel don Quijote <strong>de</strong> la Mancha”, o mesmo que já havia feito uma aparição no<br />

cenário do Oci<strong>de</strong>nte “en los pasados siglos”, por isso usa a expressão “<strong>de</strong> nuevo” e<br />

que “ha resucitado” agora, “en los presentes siglos”. É Montesinos que conclui<br />

dizendo duas coisas: que “por cuyo medio y favor podría ser que nosotros fués<strong>em</strong>os<br />

<strong>de</strong>sencantados”, e que “las gran<strong>de</strong>s hazañas para los gran<strong>de</strong>s hombres están<br />

guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s”.<br />

439 Gran<strong>de</strong> cavaleiro <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> tantas coisas t<strong>em</strong> <strong>pro</strong>fetiza<strong>da</strong>s o sábio Merlín (2, XXIII, p.444)<br />

440 Umas notícias, quero <strong>da</strong>r-vos, agora. (ibi<strong>de</strong>m)


Vê-se, pois, que, <strong>em</strong>bora se refira Montesinos ao hom<strong>em</strong> Dom Quixote, para<br />

qu<strong>em</strong> estão guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s “las gran<strong>de</strong>s hazañas”, os fragmentos selecionados acima<br />

nos induz<strong>em</strong> a pensar <strong>em</strong> algo maior que a atuação do hom<strong>em</strong>-cavaleiro Dom<br />

Quixote. Se a isso somamos a opinião <strong>de</strong> Duran<strong>da</strong>rte, ao encerrar o diálogo com um<br />

estranho “silencio, sin hablar más palabra”, 441 mais ain<strong>da</strong> reforça a suspeita <strong>de</strong> que a<br />

convocação não é <strong>de</strong> Dom Quixote cavaleiro, a convocação é outra.<br />

Guadiana, n<strong>em</strong> se entrega <strong>à</strong> exposição do sol, n<strong>em</strong> volta <strong>à</strong> prisão-encanta<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> “la cueva”. Mete-se no fundo <strong>da</strong> terra tomando a forma <strong>de</strong> rio e se mostra sob a<br />

forma <strong>de</strong> lagoas, parecendo querer r<strong>em</strong>eter-nos ao jogo <strong>de</strong>svelar-velar, <strong>em</strong> forma <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sejo, já que a experiência <strong>de</strong> ver o sol, ao contrário <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-lo exultante, o <strong>de</strong>ixa<br />

triste e melancólico. A visão do sol não o envai<strong>de</strong>ce a ponto <strong>de</strong> sentir o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

tudo saber e <strong>de</strong> a tudo <strong>dom</strong>inar. Sua tristeza transparece nos peixes que alimenta:<br />

“burdos y <strong>de</strong>sabridos” – grosseiros e s<strong>em</strong> sabor. A sugestão <strong>de</strong>svelar-velar po<strong>de</strong><br />

apontar para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação do vigor perdido responsável pelos<br />

frutos do Guadiana: peixes grosseiros e s<strong>em</strong> sabor.<br />

O jogo __ escon<strong>de</strong>r-se na terra e mostrar-se ao sol __ se corporifica,<br />

<strong>de</strong>nunciando limites, na imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> “ilhas”, <strong>da</strong>s sete ilhas que estão no curso do rio.<br />

A circulari<strong>da</strong><strong>de</strong> fecha<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ilhas po<strong>de</strong> sugerir a ressonância do tom que reinava <strong>em</strong><br />

“la cueva”. To<strong>da</strong> e qualquer ver<strong>da</strong><strong>de</strong> presente naquele mundo, para ser assim<br />

reconheci<strong>da</strong>, como ver<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta e inquestionável, precisava fechar-se<br />

rigorosamente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> limites, tudo precisava ser “claro e distinto”, evitando que,<br />

para além <strong>de</strong> seus limites, algum resquício trouxesse a dúvi<strong>da</strong>. Assim, para ca<strong>da</strong><br />

coisa do mundo <strong>da</strong> luz, um correspon<strong>de</strong>nte no mundo <strong>da</strong>s trevas ou, para ca<strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>-realização, um conceito. Conceitos <strong>de</strong>svelados, só os b<strong>em</strong> fechados e<br />

contornados, como ilhas. Se pensarmos o ser se <strong>da</strong>ndo no t<strong>em</strong>po, é fácil<br />

441 Silêncio, s<strong>em</strong> falar mais palavra (2, XXIII, p.444)


compreen<strong>de</strong>r porque estão intimamente ligados <strong>à</strong> rigi<strong>de</strong>z dos conceitos fechados,<br />

com a fixação estática no que se refere ao passar do t<strong>em</strong>po. Dentro <strong>de</strong> “la cueva”, o<br />

t<strong>em</strong>po não passa. Ao perguntar a Sancho quanto t<strong>em</strong>po passara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que estivera<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva” e este lhe respon<strong>de</strong>r “Poco más <strong>de</strong> una hora”, surpreen<strong>de</strong>u-se<br />

Dom Quixote, parecendo-lhe impossível: “Eso no pue<strong>de</strong> ser [...] porque allá me<br />

anocheció y amaneció, y tornó a anochecer y amanecer tres veces.” 442 S<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>po<br />

não há ser – o ser se dá no t<strong>em</strong>po. Em “la cueva” o t<strong>em</strong>po não passa, <strong>em</strong> “la cueva”<br />

não há lugar para o ser.<br />

Nesse caso, os afun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong>s águas do rio no fundo <strong>da</strong> terra são o<br />

velamento, o “entre” velado que se <strong>de</strong>svela. Entretanto, o vigor misterioso do rio não<br />

se mostra nas ilhas fecha<strong>da</strong>s e estáticas. O vigor <strong>da</strong>s <strong>pro</strong>fun<strong>de</strong>zas <strong>da</strong> terra se<br />

manifesta na gran<strong>de</strong> reaparição do rio, quando ele “entra pomposo y gran<strong>de</strong> en<br />

Portugal”. O que há <strong>de</strong> intrigante é a contradição que envolve a superação <strong>da</strong><br />

limitação com que, <strong>de</strong> ilhas fecha<strong>da</strong>s, o rio se abre gran<strong>de</strong> e pomposo, anunciando<br />

novas terras. A contradição está tanto na tristeza melancólica <strong>de</strong> suas águas, como<br />

nos peixes que, n<strong>em</strong> na abertura, entrando <strong>em</strong> Portugal, ganham <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e sabor<br />

“por don<strong>de</strong>quiera que va muestra su tristeza y melancolía, y no se precia <strong>de</strong> criar en<br />

sus aguas peces regalados y <strong>de</strong> estima, sino burdos y <strong>de</strong>sabridos”.<br />

Quando o rio entra com pompa e grandiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> Portugal, era <strong>de</strong> se<br />

esperar que Guadiana exultasse com essa potência espetacular. Sua manifestação<br />

contrária e contraditória po<strong>de</strong> significar a previsão <strong>da</strong> negação do “entre”: a invasão<br />

<strong>de</strong> outros territórios, indicados e resumidos aqui por Portugal, eliminando os campos<br />

do conhecimento <strong>em</strong> benefício e para satisfação do capricho <strong>da</strong>quela que, a ca<strong>da</strong><br />

dia, mais avançava pelo t<strong>em</strong>po e pelo espaço, na ânsia <strong>de</strong> reinar absoluta. Leiamos<br />

442 Isso não po<strong>de</strong> ser [...] porque lá anoiteceu e amanheceu e tornou a anoitecer e amanhecer três vezes (2, XXIII, p.445)


a seguinte citação, pois ela nos dirá a personag<strong>em</strong> que a ca<strong>da</strong> dia mais intrépi<strong>da</strong><br />

avançava <strong>dom</strong>inando todos os espaços:<br />

As disciplinas não constituiriam mais campos <strong>de</strong> conhecimento. Não haveria<br />

mais a fragmentação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esta <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser lotea<strong>da</strong> e haveria<br />

apenas um gran<strong>de</strong> e único latifúndio. Porém, o que seria esse latifúndio do<br />

conhecimento não se sabe. Essa s<strong>em</strong>pre foi a tentação totalizante <strong>da</strong><br />

razão. 443<br />

Só isso po<strong>de</strong> significar mais um alerta quanto <strong>à</strong>s ameaças do po<strong>de</strong>r racional:<br />

perigoso na fragmentação do conhecimento, perigosíssimo <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>sejo<br />

totalizante. Desse modo, s<strong>em</strong> o “entre” não há águas que oper<strong>em</strong> o milagre do vigor<br />

que nutre com graça e sabor. E os peixes permanecerão “burdos y <strong>de</strong>sabridos”.<br />

É possível ain<strong>da</strong>, reconhecer <strong>em</strong> Guadiana uma narração mítica, com a qual<br />

o povo explica o percurso e configuração do rio. Com essa mesma narração, a obra<br />

reconfigura o mito <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s vicissitu<strong>de</strong>s históricas do século XVII, convocando o<br />

pensamento para mais uma ameaça – a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> mítica.<br />

Consi<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os também o <strong>da</strong>do “coração”: este é muitas vezes mencionado, o<br />

que lhe dá certa relevância frente a outros órgãos. Por isso chegamos a pensar ser<br />

esse órgão o centro <strong>de</strong> referência direcionado ao prazer e ao amor. Entretanto, se<br />

b<strong>em</strong> observado, <strong>em</strong>bora apareça <strong>em</strong> contextos positivos, <strong>em</strong>bora a intenção que<br />

levou Duran<strong>da</strong>rte a ter o seu coração arrancado estivesse pauta<strong>da</strong> no amor “que<br />

llevéis mi corazón / adon<strong>de</strong> Belerma estaba”, 444 <strong>de</strong>dicando-o <strong>à</strong> sua ama<strong>da</strong>, o ritual<br />

que atualizava todos os dias __ a entrega do coração __ era regado a lágrimas. S<strong>em</strong><br />

contar que era um rito monocórdio, repetitivo e igual <strong>de</strong> todos os dias; s<strong>em</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

s<strong>em</strong> espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> e s<strong>em</strong> <strong>pro</strong>vocar admiração.<br />

443 CASTRO M. A. Interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong>, dimensões poéticas. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro, Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro,<br />

n.164, p.8-9, 2006<br />

444 Que leveis meu coração / aon<strong>de</strong> Belerma estava” (2, XXIII, p.443).


A própria Belerma, a qu<strong>em</strong> foi <strong>de</strong>dicado o coração <strong>de</strong> seu apaixonado ou era<br />

feia, ou as olheiras e <strong>de</strong>formi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que apresentava seu rosto eram resultado <strong>da</strong>s<br />

“malas noches y peores días que en aquel encantamento pasaba”. 445<br />

Vê-se que, n<strong>em</strong> as homenagens tão sublimes a seu amado, que têm como<br />

<strong>em</strong>bl<strong>em</strong>a o coração, são capazes <strong>de</strong> livrar Belerma dos efeitos <strong>da</strong> insônia 446<br />

causa<strong>da</strong> pelo encantamento. Sendo a insônia responsável pela feiúra e<br />

<strong>de</strong>formi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu rosto; esse quadro po<strong>de</strong> ser lido como um aniquilamento total<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: <strong>em</strong> primeiro lugar, porque o jogo contraditório que, ao mesmo t<strong>em</strong>po, num<br />

gesto <strong>de</strong> amor, doa o coração, conseqüent<strong>em</strong>ente, per<strong>de</strong> o coração. Sendo o<br />

coração, o símbolo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, aquele hom<strong>em</strong>, ain<strong>da</strong> que <strong>em</strong> carne e osso, estando<br />

s<strong>em</strong> coração, está s<strong>em</strong> vi<strong>da</strong>. É assim também, s<strong>em</strong> vi<strong>da</strong>, que transcorre a cena <strong>em</strong><br />

“la cueva”: s<strong>em</strong> vigor, s<strong>em</strong> mistério; as coisas <strong>da</strong>quele mundo são estáticas,<br />

per<strong>de</strong>ram o dinamismo <strong>da</strong> physis. Po<strong>de</strong> essa vi<strong>da</strong> ser, no máximo, vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong>, mas<br />

nunca vi<strong>da</strong> experiencia<strong>da</strong>.<br />

Outro ex<strong>em</strong>plo do aniquilamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é o sono. O sono, fun<strong>da</strong>mental para<br />

repor as energias do cotidiano, além <strong>de</strong> ser o experienciar, o vazio necessário para<br />

alocar novas experiências, não existe na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Belerma. Na<strong>da</strong> mais existe <strong>em</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong>, além <strong>da</strong> repetição monocórdia, a repetição <strong>da</strong>quela experiência única que t<strong>em</strong><br />

445 Más noites e piores dias que naquele feitiço passava (2, XXIII, p.444)<br />

446 Não preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scartar outras possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Esse quadro apresenta contornos medievais. Po<strong>de</strong> r<strong>em</strong>eter-nos para a<br />

vassalag<strong>em</strong> amorosa e ao amor legado como prisão, componentes todos dos preceitos poéticos e teóricos medievais: o<br />

“morrer <strong>de</strong> amor”, a vivência <strong>da</strong> coita amorosa, caracteriza<strong>da</strong>, inclusive, pela insônia. Entretanto, a insônia e as olheiras são<br />

somente imag<strong>em</strong> que possivelmente escon<strong>de</strong> uma questão, único motivo que po<strong>de</strong> justificar o espaço conquistado na obra.<br />

Não é possível que insônias e olheiras que continuam ain<strong>da</strong> ocupando os espaços <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rnos como referenciais ain<strong>da</strong><br />

ligados também ao amor, mas ao amor <strong>em</strong> sua significação <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (basta viajar num tr<strong>em</strong> <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> Ferroviária Fe<strong>de</strong>ral <strong>à</strong>s<br />

4.00h <strong>da</strong> manhã para com<strong>pro</strong>vá-lo), não é possível que assim permaneçam: simples imagens. Se as olheiras e a insônia<br />

persist<strong>em</strong> até os nossos dias, significa que não po<strong>de</strong>m estar presentes na obra como uma simples referência a um modo <strong>de</strong><br />

viver <strong>da</strong>quela época, pois se persist<strong>em</strong> <strong>em</strong> outras épocas [...]. Nesse caso, pressentimos nesse par-referência – olheiras e<br />

insônia, um pulsar vigoroso, insistente, insistindo <strong>em</strong> passar <strong>de</strong> simples referência-realização <strong>à</strong> imag<strong>em</strong>-questão. Como<br />

imag<strong>em</strong>, o par se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong> amor, este b<strong>em</strong> mais imag<strong>em</strong> que referência, ou melhor, por ter mais vigor que o par anterior,<br />

mais nos a<strong>pro</strong>xima <strong>da</strong> resposta, a ponto <strong>de</strong> trazer-nos <strong>à</strong> m<strong>em</strong>ória o fragmento 123 <strong>de</strong> Heráclito “Physis kryptestai philei”: Ain<strong>da</strong><br />

que consi<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os a cena <strong>de</strong> Belerma, expressão impregna<strong>da</strong> <strong>de</strong> um viver medieval, v<strong>em</strong>os que nele se concentra uma<br />

questão que clama ain<strong>da</strong> por resposta. E é essa resposta que t<strong>em</strong> estado resguar<strong>da</strong><strong>da</strong> na obra (a salvaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra) para<br />

anunciar o que, por trás <strong>de</strong>ssa <strong>pro</strong>saica imag<strong>em</strong> olheira-insônia, na obra está <strong>em</strong> obra <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. E é essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

amplia, não só a imag<strong>em</strong> olheira-insônia aos t<strong>em</strong>pos <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rnos, mas a imag<strong>em</strong>-questão do amor, para além <strong>de</strong> “una<br />

cueva”, para além do casal Duran<strong>da</strong>rte e Belerma, para além dos preceitos teóricos e poéticos <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média. Só não está a<br />

questão, para além do hom<strong>em</strong>. A natureza ama escon<strong>de</strong>r-se – o <strong>de</strong>svelante ama o velante – o <strong>de</strong>svelante a<strong>pro</strong>pria-se do<br />

velante – o <strong>de</strong>svelar a<strong>pro</strong>pria-se do velar. Essa é uma questão do hom<strong>em</strong>, estar cheio <strong>de</strong> olheira e insônia, não <strong>de</strong> amor, mas<br />

<strong>de</strong> tanto “consumir-se”, <strong>de</strong> tanto “fazer” s<strong>em</strong> amor, <strong>de</strong> tanto se esquecer do ser.


lugar diariamente <strong>em</strong> sua vi<strong>da</strong> – o rito-l<strong>em</strong>brança, representado pela revisitação <strong>de</strong><br />

Duran<strong>da</strong>rte, entregando-lhe simbolicamente o coração. Na condição <strong>de</strong> mero<br />

símbolo, o coração não t<strong>em</strong> sentido <strong>em</strong> “la cueva”. Apartado do corpo o coração,<br />

per<strong>de</strong>-se o elo vigoroso do “entre”. E não vai adiantar; ain<strong>da</strong> que se repita<br />

eternamente o ritual, por mais que esteja o coração estabelecido como o “centro <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>”, s<strong>em</strong> a conexão do “entre”, não há espaço para que a dis-puta ganhe seu<br />

espaço, na tensão entre velar-<strong>de</strong>svelar-velar. Dentro <strong>de</strong> “la cueva”, o coração é<br />

simbolo; para Dom Quixote hermeneuta, o coração é imag<strong>em</strong>-questão.<br />

É por isso que, <strong>em</strong> “la cueva”, só há o que há; só há o que ingressou no<br />

mundo e se repete, naquele mundo infinitamente estabelecido. L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os que o<br />

próprio Dom Quixote, acometido ain<strong>da</strong> por suas crises <strong>de</strong> cavaleiro-filósofo, exige<br />

que Montesinos não confun<strong>da</strong> sua ama<strong>da</strong> com mais ninguém, estabelecendo limites<br />

estritos para ca<strong>da</strong> coisa que, como a sua Dulcinea, “sin par”, t<strong>em</strong> lugar no mundo.<br />

S<strong>em</strong> permitir qualquer comparação, s<strong>em</strong> acatar qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

os dois – Dom Quixote e Montesinos - <strong>de</strong>claram a negação <strong>de</strong> todo e qualquer<br />

<strong>pro</strong>cesso que possa ter lugar no “inter”: começando pela <strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> maior que<br />

esse espaço possa marcar – a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> comum a todo <strong>pro</strong>cesso comparativo,<br />

<strong>de</strong>ixando, no ar, os <strong>de</strong>mais trânsitos que culminam com a contradição radical. Em<br />

uma palavra; com esse discurso, Dom Quixote anula qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

E como não há a mínima perspectiva do novo, não há também o mínimo sinal<br />

<strong>de</strong> renúncia: “cuatro días en la s<strong>em</strong>ana” Belerma “con sus doncellas [...] hacían<br />

aquella <strong>pro</strong>cesión”. 447 E tudo permanece s<strong>em</strong>pre e eternamente o mesmo.<br />

Há índices do estranho, com um tom <strong>de</strong> realismo mágico na experiência<br />

vivi<strong>da</strong> por Dom Quixote: enquanto fora <strong>de</strong> “la cueva” tudo se passou <strong>em</strong> “poco más<br />

447 Quatro dias na s<strong>em</strong>ana [Belerma] com suas donzelas [...] faziam aquela <strong>pro</strong>cissão (2, XXIII, p.444)


<strong>de</strong> una hora”, <strong>de</strong>ntro “anocheció y amaneció, y tornó a anochecer y a amanecer tres<br />

veces”, s<strong>em</strong> que precisasse comer n<strong>em</strong> dormir. Esse estranho, mais para o<br />

extraordinário, não é compatível, no entanto, com o máximo <strong>de</strong> ordinário que<br />

caracteriza um acontecimento no mesmo interior <strong>de</strong> “la cueva”: uma <strong>da</strong>ma <strong>de</strong><br />

Dulcinea vai, <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> sua ama, pedir “seis reales” <strong>em</strong>prestados a Dom Quixote,<br />

<strong>da</strong>ndo “su palabra <strong>de</strong> volvérselos con mucha breve<strong>da</strong>d”. 448 O inusitado <strong>da</strong> situação<br />

foi tal que o próprio Dom Quixote <strong>de</strong>la duvidou: “¿Es posible, señor Montesinos, que<br />

los encantados principales pa<strong>de</strong>cen necesi<strong>da</strong>d?” 449 Trata-se do limite máximo <strong>da</strong><br />

crítica que precisa extrapolar pelo exagero, não <strong>de</strong>ixando escapar nenhum ente n<strong>em</strong><br />

<strong>da</strong> correspondência platônica n<strong>em</strong> <strong>da</strong> conversão cartesiana do pensamento. N<strong>em</strong><br />

um ente tão <strong>pro</strong>saico escapa; até o dinheiro com suas ingerências t<strong>em</strong> no<br />

pensamento seu lugar reservado e <strong>pro</strong>va seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ganhar forma como<br />

representação, fora do pensamento. S<strong>em</strong> contar com o ambíguo do “pa<strong>de</strong>cen<br />

necesi<strong>da</strong>d”, lançando o pa<strong>de</strong>cimento dos habitantes <strong>de</strong> “la cueva” <strong>à</strong> dimensão do<br />

vazio, <strong>de</strong> tal modo estão esquecidos do ser.<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, na<strong>da</strong> há <strong>de</strong> extraordinário com o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”. O<br />

que ali se configurou está <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> lógica mais ordinária: perdido o “entre” on<strong>de</strong> o<br />

jogo <strong>de</strong>svelar-velar t<strong>em</strong> lugar, o t<strong>em</strong>po é irrelevante; pois o ser só se dá no t<strong>em</strong>po.<br />

Dentro <strong>da</strong>quela “cueva”, tudo é, mas na<strong>da</strong> existe.<br />

Todo o capítulo está montado entre a mentira e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, s<strong>em</strong> que na<strong>da</strong> se<br />

<strong>de</strong>fina. Novamente caberia a pergunta circular <strong>de</strong> Dom Quixote: “¿Pue<strong>de</strong> ser eso<br />

mentira?” 450<br />

Finalizar<strong>em</strong>os, portanto, a viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote, pois tudo o que mais aqui<br />

couber, só irá corroborar a marca instigante <strong>de</strong> um jogo mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A tal ponto<br />

448 Sua palavra <strong>de</strong> <strong>de</strong>volvê-los com muita brevi<strong>da</strong><strong>de</strong> (2, XXIII, p.447)<br />

449 É possível, senhor Montesinos, que os encantados principais pa<strong>de</strong>çam necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>? (ibi<strong>de</strong>m)<br />

450 Po<strong>de</strong> isso ser mentira.


que Ci<strong>de</strong> Hamete se encarregara <strong>de</strong>, antes mesmo <strong>de</strong> iniciá-lo, alertar o leitor, não<br />

po<strong>de</strong>r garantir sua veraci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Apesar <strong>de</strong> tudo, é muito estranho que, <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s <strong>da</strong> obra, Ci<strong>de</strong> Hamete<br />

coloque esta, como a mais inverossímil, introduzindo a confissão do cavaleiro na<br />

hora <strong>da</strong> morte, o que aumenta ain<strong>da</strong> mais <strong>em</strong> importância a mentira <strong>da</strong>quela história.<br />

Por que a teria inventado?<br />

A resposta é a mesma que justifica to<strong>da</strong>s as suas loucas ações <strong>de</strong> cavaleiro:<br />

“por parecerle que convenía y cuadraba bien con las aventuras que había leído en<br />

sus historias” 451 . Entretanto, o verbo “cuadrar” parece ter sido selecionado, tendo <strong>em</strong><br />

vista outra finali<strong>da</strong><strong>de</strong>, se examinarmos seu significado: “cuadrar” – “convenir, ser<br />

a<strong>de</strong>cuado”. Além disso, Ci<strong>de</strong> Hamete, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> confissão <strong>de</strong> ser mentirosa<br />

a história inventa<strong>da</strong> por Dom Quixote, lança argumentos para não acreditar <strong>em</strong> dita<br />

confissão: diz ter sido a história conta<strong>da</strong>, muito <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>, com to<strong>da</strong>s as<br />

circunstâncias muito b<strong>em</strong> explica<strong>da</strong>s; que Dom Quixote não po<strong>de</strong>ria fabricar uma<br />

máquina tão b<strong>em</strong> monta<strong>da</strong>, <strong>em</strong> tão breve espaço <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po.<br />

Se colocarmos atenção ao significado do verbo “cuadrar”, compondo com os<br />

termos “máquina” e “fabricar”, um contexto <strong>de</strong> ajuste; como se dissesse que essa<br />

história caiu como uma luva para a situação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos interpretá-la como<br />

uma história que trata <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como a<strong>de</strong>quação e enunciação <strong>de</strong> um lado, <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como “fabricação” e “indústria” <strong>de</strong> outro, uma história <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como<br />

“fazer”. Trata-se <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, acima <strong>de</strong> tudo, útil, do mesmo modo que os livros<br />

que publicava “el primo”, o hom<strong>em</strong> que conduziu Dom Quixote a “la cueva” e que se<br />

<strong>de</strong>dicava a escrever livros, investigando rigorosamente <strong>em</strong> muitos outros: “más <strong>de</strong><br />

veinte y cinco autores”. Só quando muitos outros já o tivess<strong>em</strong> afirmado e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

451 Por parecer-lhe que convinha e encaixava b<strong>em</strong> com as aventuras que havia lido <strong>em</strong> suas histórias (2, XXIV, p.448)


ter a certeza <strong>de</strong> que “ha <strong>de</strong> ser útil el tal libro a todo el mundo”, 452 o primo sentia-se<br />

seguro o suficiente para publicar. Sente-se, também, nessa história, uma intenção<br />

<strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Por mais que precis<strong>em</strong>os <strong>da</strong>r fim a essa investigação mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o<br />

assédio insistente do incontornável é inevitável: “el primo”, escritor e editor, só<br />

publica matéria útil. Isso nos coloca, mais uma vez, diante <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>-a<strong>de</strong>quação.<br />

Foi assim que Aristóteles <strong>de</strong>u com a essência <strong>da</strong>s coisas. Dentre to<strong>da</strong>s, “a finalis”<br />

ganha prepon<strong>de</strong>rância sobre as <strong>de</strong>mais, e vale o que é útil.<br />

Apesar <strong>de</strong> Dom Quixote ter inviabilizado a contradição, essa é a marca <strong>de</strong><br />

todo o episódio. Tendo a contradição ver<strong>da</strong><strong>de</strong>-mentira, como marca, não é possível<br />

que a abandon<strong>em</strong>os. Quando há contradição, significa que é possível lê-lo sob<br />

vários pontos <strong>de</strong> vista, e abri-lo ao máximo <strong>de</strong> questões. A vali<strong>da</strong><strong>de</strong> aqui está, não<br />

<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r com<strong>pro</strong>var e superpor ou fazer correspon<strong>de</strong>r rigorosamente, a ca<strong>da</strong><br />

ex<strong>em</strong>plo uma questão, a vali<strong>da</strong><strong>de</strong> está <strong>em</strong> reconhecermos, neste material ricamente<br />

farto e aberto, incidências que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> a uma única questão. Não há dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que<br />

o que está aqui <strong>em</strong> jogo é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; tudo para isso encaminha.<br />

O episódio está <strong>de</strong>ntro dos mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Platão. Apesar <strong>de</strong> dizer que <strong>de</strong>screvia<br />

um mito, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, estava escrevendo uma doutrina sobre a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Só<br />

Hei<strong>de</strong>gger, muito t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois, e como resultado <strong>de</strong> muito esforço <strong>de</strong> pensamento,<br />

foi capaz <strong>de</strong> trazer a questão <strong>à</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Só <strong>de</strong>sse mesmo modo, po<strong>de</strong>rá ser<br />

arranca<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste episódio.<br />

Mas, por que estão tão preocupados com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

É claro que, <strong>em</strong> se tratando <strong>de</strong> “cuevas” ou <strong>de</strong> qualquer espaço intraterrestre,<br />

o que nos v<strong>em</strong> <strong>de</strong> imediato é a célebre caverna <strong>de</strong> Platão; com isso já tínhamos<br />

acenado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, on<strong>de</strong> se diz: “Volt<strong>em</strong>os <strong>à</strong> caverna, on<strong>de</strong> tudo começou”.<br />

452 Há <strong>de</strong> ser útil o tal livro a todo mundo (2, XXII, p.432)


S<strong>em</strong> contar com a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>de</strong> que “todos los contentos <strong>de</strong>sta<br />

vi<strong>da</strong> pasan como sombra y sueño”. 453<br />

É impossível ignorar “sombra y sonho”, ingredientes essenciais <strong>de</strong> “la cueva”.<br />

Acrescente-se ain<strong>da</strong> sono e sonho com a função <strong>de</strong> marcar um trânsito entre<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s: tanto o ingresso na “cueva” “me salteó un sueño <strong>pro</strong>fundísimo”, 454 como<br />

a saí<strong>da</strong>: “no respondía palabra don Quijote; y sacándole <strong>de</strong>l todo, vieron que traía<br />

cerrados los ojos, con muestras <strong>de</strong> estar dormido [...] volvió en si [...] como si <strong>de</strong><br />

algún grave y <strong>pro</strong>fundo sueño <strong>de</strong>spertara”. 455<br />

Além <strong>da</strong> caverna, referência maior <strong>da</strong> questão, representa<strong>da</strong> no episódio por<br />

uma “cueva”, muitas outras estão presentes. Em todos os discursos há um cui<strong>da</strong>do<br />

com a com<strong>pro</strong>vação <strong>de</strong> todo dito. E com Ci<strong>de</strong> Hamete não é diferente, sua estratégia<br />

<strong>de</strong> com<strong>pro</strong>vação está <strong>em</strong> <strong>de</strong>monstrá-la como preocupação. De tão preocupado <strong>em</strong><br />

não se com<strong>pro</strong>meter com nenhuma mentira, se exime do com<strong>pro</strong>misso instalando a<br />

dúvi<strong>da</strong>. Apesar <strong>de</strong> garantir a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra como um todo, interpõe uma<br />

restrição ao episódio <strong>de</strong> “la cueva” dizendo: “no le hallo entra<strong>da</strong> alguna para tenerla<br />

como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra”, acrescentando assim a justificativa <strong>de</strong> sua avaliação: “por ir tan<br />

fuera <strong>de</strong> los términos razonables”. 456 , para logo a seguir, entretanto, não <strong>de</strong>sfazê-la<br />

por completo, mas acenar com um <strong>da</strong>do que, segundo ele, faz Dom Quixote<br />

merecedor <strong>de</strong> to<strong>da</strong> confiança: “más ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro hi<strong>da</strong>lgo [...], no es posible” 457 ,<br />

levantando, inclusive, a única situação que po<strong>de</strong>ria <strong>da</strong>r marg<strong>em</strong> a esse <strong>de</strong>slize – a<br />

mentira: só se o <strong>pro</strong>vocass<strong>em</strong> seria possível mentir, mas, como não era esse o caso,<br />

Ci<strong>de</strong> Hamete não acredita que Dom Quixote tivesse tanta imaginação para, não<br />

tendo vivido realmente aquelas situações <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”, pu<strong>de</strong>sse “fabricar en<br />

453<br />

To<strong>da</strong>s as alegrias <strong>de</strong>sta vi<strong>da</strong> passam como sombra e sonho (2, XXII, p.440)<br />

454<br />

Sobreveio me um sono <strong>pro</strong>fundíssimo (2, XXIII, p. 441)<br />

455<br />

Não respondia na<strong>da</strong> Dom Quixote e puxando-o <strong>de</strong> todo, viram que trazia os olhos fechados, com mostras <strong>de</strong> estar<br />

adormecido [...] voltou a si [...] como s <strong>de</strong> algum grave e <strong>pro</strong>fundo solo <strong>de</strong>spertasse (2, XXII, p.440).<br />

456<br />

Não acho entra<strong>da</strong> alguma para tê-la como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira (2, XXIV, p.448)<br />

457 Por ser tão fora dos termos razoáveis (ibi<strong>de</strong>m)


tan breve espacio tan gran<strong>de</strong> máquina <strong>de</strong> disparates” 458 . Consi<strong>de</strong>ranto que, s<strong>em</strong> ter<br />

vivido realmente aquela experiência <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”, impossível <strong>à</strong> imaginação<br />

<strong>de</strong> Dom Quixote tamanha invenção, como se justifica o que ele conta, como<br />

conseguiu, <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po, reunir tanto conto para contar?<br />

Com esse último comentário, Ci<strong>de</strong> Hamete sinaliza o modo <strong>de</strong> pensar<br />

mo<strong>de</strong>rno, comparando-o a uma máquina <strong>de</strong> fabricar. Digno <strong>de</strong> maior importância,<br />

contudo, é o jogo <strong>de</strong> mentira e ver<strong>da</strong><strong>de</strong> com que <strong>pro</strong>voca Ci<strong>de</strong> Hamete o leitor. O<br />

que coloca <strong>em</strong> discussão é a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> ou não <strong>de</strong> com<strong>pro</strong>vação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />

fatos, para garantir a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Se Dom Quixote mentiu ou não<br />

mentiu, se a história que inventou está ou não está cheia <strong>de</strong> disparates, se isso a<br />

torna falsa ou não, se a mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> versão <strong>de</strong> Dom Quixote na hora <strong>da</strong> morte altera<br />

ou não a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra, na<strong>da</strong> disso é <strong>da</strong> alça<strong>da</strong> <strong>de</strong> Ci<strong>de</strong> Hamete, e n<strong>em</strong> a ele<br />

compete <strong>da</strong>r conta. Sabedor disso, ele confessa: “que yo no <strong>de</strong>bo”. 459 Confessa não<br />

só que não <strong>de</strong>ve, como também confessa seu esgotamento nessa <strong>em</strong>presa<br />

cansativa e <strong>de</strong>sgastante “ni puedo más”. 460<br />

Por outro lado, não será a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra franquea<strong>da</strong> pelos esqu<strong>em</strong>as<br />

racionais. Ain<strong>da</strong> que Ci<strong>de</strong> Hamete assim julgue a aventura <strong>de</strong> “la cueva”: “no me<br />

hallo entra<strong>da</strong> alguna para tenerla por ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra, por ir tan fuera <strong>de</strong> los términos<br />

razonables”, a razão é limita<strong>da</strong> para tal. Sobra-lhe, portanto, uma só alternativa – o<br />

leitor. É a esse que acaba sucumbindo, entregando-lhe nas mãos aquilo que a ele<br />

compete: “Tu lector, pues eres pru<strong>de</strong>nte, juzga lo que te pareciere [...]”. 461 Cabe ao<br />

leitor, do mesmo modo que, como louco, tentava Dom Quixote no início <strong>da</strong> obra,<br />

458 Fabricar <strong>em</strong> tão breve espaço tão gran<strong>de</strong> máquina <strong>de</strong> disparates (2, XXIV, p.448)<br />

459 Que eu não <strong>de</strong>vo (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

460 N<strong>em</strong> posso mais (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

461 Tu leitor, visto que és pru<strong>de</strong>nte, julga o que te parecer (Ibi<strong>de</strong>m)


enquanto lia “los requiebros” 462 <strong>de</strong> Feliciano <strong>de</strong> Silva, tentando “<strong>de</strong>sentrañarles el<br />

sentido”, 463 só a ele cabe <strong>da</strong>r o sentido e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra.<br />

Só é válido aquilo que os olhos vê<strong>em</strong>, todos precisam atestar a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dos fatos; só é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o que é passível <strong>de</strong> evidência. E quando isso não acontece,<br />

o esforço é ain<strong>da</strong> maior, no que se refere a garantir a confiança: chega-se até a jurar<br />

com essa intenção, e quando isso não é suficiente, convocam-se autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s que<br />

dêm garantias. Essa tendência chega a tal ponto que, ao reconhecer, numa taberna,<br />

um personag<strong>em</strong> <strong>da</strong> novela plagia<strong>da</strong>, novela essa que copia literalmente do original<br />

cervantino, Dom Quixote o abor<strong>da</strong>. É Dom Álvaro <strong>de</strong> Tarfe. Este, diante <strong>da</strong> pressão<br />

do cavaleiro e <strong>de</strong> seu escu<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong>clara jamais ter estado envolvido nas histórias<br />

plagia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Avellane<strong>da</strong>. Para Dom Quixote, no entanto, uma simples <strong>de</strong>claração<br />

oral não é suficiente. Dizer simplesmente: “y vuelvo a <strong>de</strong>cir y me afirmo que no he<br />

visto lo que he visto ni ha pasado por mí lo que ha pasado”, 464 além <strong>de</strong> confessar<br />

também que “no era aquel que an<strong>da</strong>ba impreso en una historia intitula<strong>da</strong>: “Segun<strong>da</strong><br />

parte <strong>de</strong> don Quijote <strong>de</strong> la Mancha” 465 não basta para Dom Quixote. Ele quer<br />

garantias e test<strong>em</strong>unhas. Para isso chegam “el alcal<strong>de</strong> <strong>de</strong>l pueblo [...], con un<br />

escribano, ante el cual alcal<strong>de</strong> pidió don Quijote, por una petición, <strong>de</strong> que a su<br />

<strong>de</strong>recho convenía que don Álvaro <strong>de</strong> Tarfe [...]” 466 ali, na presença <strong>de</strong> todos,<br />

contasse a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Vê-se aqui, também, sinal <strong>de</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Parece não se esgotar a questão, nos limites <strong>de</strong> “la cueva”-caverna platônica.<br />

Há dúvi<strong>da</strong>s, evidências e com<strong>pro</strong>vações <strong>em</strong> <strong>de</strong>masia que alcançam outros espaços.<br />

462 Floreios.<br />

463 Desentranhar-lhes o sentido (1, I, p. 37)<br />

464 E volto a dizer e afirmo que não vi o que vi n<strong>em</strong> passou por mim o que passou (2, LXXII, p.691)<br />

465 Não era aquele que an<strong>da</strong>va impresso <strong>em</strong> uma história intitula<strong>da</strong>: ‘Segun<strong>da</strong> Parte <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha’ (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

466 O alcai<strong>de</strong> do povoado [...], com um escrivão, diante do dito alcai<strong>de</strong> pediu <strong>dom</strong> Quixote por uma petição <strong>de</strong> que a seu direito<br />

convinha que <strong>dom</strong> Álvaro <strong>de</strong> Tarfe (2, LXXII, p.692)


Chegamos até a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a primeira e gran<strong>de</strong> questão pela qual, mesmo s<strong>em</strong><br />

perceber, Dom Quixote foi tomado. B<strong>em</strong> se sabe o que o mobilizou a esse<br />

<strong>em</strong>preendimento do 2º. Périplo - son<strong>da</strong>r o seu t<strong>em</strong>po, para <strong>de</strong>le arrancar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O que, afinal, teve <strong>de</strong> significativo o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote, que justifique<br />

tamanha confusão? Que ver<strong>da</strong><strong>de</strong> tão crucial persegue Dom Quixote que, <strong>de</strong> tanto<br />

inquietá-lo, inquieta a todos também? De que questão se está falando?<br />

Retom<strong>em</strong>os a primeira fala <strong>de</strong> Dom Quixote, ao sair <strong>de</strong> “la cueva”: “ahora<br />

acabo <strong>de</strong> conocer que todos los contentos <strong>de</strong>sta vi<strong>da</strong> pasan como sombra y sueño,<br />

o se marchitan como la flor <strong>de</strong>l campo”. 467 E, <strong>pro</strong>ssegue lamentando o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />

todos os que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva” ficaram: “¡Oh <strong>de</strong>sdichado Montesinos! ¡Oh mal<br />

ferido Duran<strong>da</strong>rte! ¡Oh sin ventura Belerma! ¡Oh lloroso Guadiana, y vosotras hijas<br />

<strong>de</strong> Rui<strong>de</strong>ra, que mostráis en vuestras aguas las que lloraron vuestros hermosos<br />

ojos. 468<br />

Em sua primeira fala está, tanto o resumo <strong>da</strong> constatação do que afligia Dom<br />

Quixote <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong>ste Périplo, b<strong>em</strong> como sua consciência <strong>de</strong> como isso<br />

afetava não só o viver, como também a todos os homens.<br />

Para viver todos “los contentos” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, to<strong>da</strong>s as coisas boas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, tudo<br />

aquilo a que t<strong>em</strong> acesso o hom<strong>em</strong> na relação com o mundo (e não esqueçamos,<br />

para ser é preciso ser-no-mundo), to<strong>da</strong>s essas coisas só po<strong>de</strong>m ser vivi<strong>da</strong>s ou<br />

falsamente, consi<strong>de</strong>rando que são sombras e que, por ser<strong>em</strong> sombras, não são<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras. Para viver, também, todos “los contentos <strong>de</strong> esta vi<strong>da</strong>”, as coisas boas<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no mundo, aquilo a que t<strong>em</strong> acesso o hom<strong>em</strong> na relação com o mundo, só<br />

porque se supôs ser<strong>em</strong> duvidosas, essas coisas boas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> também não po<strong>de</strong>m<br />

ser vivi<strong>da</strong>s porque, enquanto são sonho, não são ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, passando a ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

467<br />

Agora acabo <strong>de</strong> conhecer que to<strong>da</strong>s as alegrias <strong>de</strong>sta vi<strong>da</strong> passam como sombra e sonho, ou se murcham como a flor do<br />

campo (2, XXII, p.440).<br />

468<br />

Oh, <strong>de</strong>sditado Montesinos! Oh, mal ferido Duran<strong>da</strong>rte! Oh, <strong>de</strong>sventura<strong>da</strong> Belerma! Oh, choroso Guadiana, e vós folhas <strong>de</strong><br />

Rui<strong>de</strong>ra, que mostrais <strong>em</strong> vossas águas as que choraram vossos formosos olhos (ibi<strong>de</strong>m)


somente quando lhe extra<strong>em</strong> todo o sumo irreal, todo o suco falso, to<strong>da</strong> mentira, até<br />

fazê-la murchar, do mesmo modo como murchou “la flor <strong>de</strong>l campo”. Para viver “los<br />

contentos <strong>de</strong> esta vi<strong>da</strong>”, não importa se fica murcha a flor do campo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>la<br />

não escorra uma gota sequer <strong>de</strong> incerteza.<br />

Enquanto o platonismo elimina o sensível, <strong>da</strong>ndo <strong>à</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira um<br />

cunho impalpável; Descartes retira do sensível sua possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

quando o esgota <strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> abstrata, reserva<strong>da</strong> e restrita só ao pensamento. A<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> será, então, aquilo que a mente po<strong>de</strong> arrancar do sumo do real, que por<br />

auto<strong>de</strong>terminação, Descartes consi<strong>de</strong>rou sonho, consi<strong>de</strong>rou falso, consi<strong>de</strong>rou irreal,<br />

consi<strong>de</strong>rou mentira.<br />

Passar<strong>em</strong> “los contentos <strong>de</strong>sta vi<strong>da</strong>”, todos “como sombra y sueño” é um<br />

modo <strong>de</strong> Dom Quixote lamentar, <strong>de</strong>ixando claro a inviabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outra reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que não seja a clara e distinta, mesmo que, para isso, ela seja impalpável e abstrata;<br />

mesmo que, para isso, ela arranque todo o vigor <strong>da</strong>s coisas do mundo.<br />

A única coisa que não po<strong>de</strong> restar é resquício qualquer <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong> que<br />

<strong>de</strong>smonte o novo edifício <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> montado.<br />

Joga também “la cueva” com mundos <strong>da</strong> luci<strong>de</strong>z e <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>. Nesse caso, há<br />

uma inversão:<br />

Bien se estaba vuestra merced acá arriba con su entero juicio, tal Dios se lo<br />

había <strong>da</strong>do, hablando sentencias y <strong>da</strong>ndo consejos a ca<strong>da</strong> paso, y no<br />

agora, contando los mayores disparates que pue<strong>de</strong>n imaginarse 469 [...] que<br />

hayan trocado el buen juicio <strong>de</strong> mi señor en una tan disparata<strong>da</strong> lo<strong>cura</strong> [...]<br />

que vuestra merced mire, y vuelva por su honra, y no <strong>de</strong> crédito a esas<br />

vacie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que le tienen menguado y <strong>de</strong>scabalado el sentido 470<br />

469 B<strong>em</strong> estava vossa mercê aqui encima com seu inteiro juízo, como Deus o conce<strong>de</strong>u, falando ditames e <strong>da</strong>ndo conselhos a<br />

ca<strong>da</strong> passo, e não agora contando os maiores disparates que se possa imaginar (2, XXIII, p.446)<br />

470 Que tenham mu<strong>da</strong>do o bom juízo <strong>de</strong> meu senhor <strong>em</strong> um tão disparata<strong>da</strong> lou<strong>cura</strong> [...] que vossa mercê olhe, e volte por sua<br />

honra, e não <strong>de</strong> crédito a essas vacui<strong>da</strong><strong>de</strong>s que lhe têm minguado e <strong>de</strong>scarrilhado o sentido (ibi<strong>de</strong>m)


Fora <strong>de</strong> “la cueva”, mundo <strong>da</strong> luci<strong>de</strong>z; <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”, mundo <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>.<br />

No entanto, Dom Quixote, no momento <strong>em</strong> que se entregou ao experienciar <strong>em</strong> “la<br />

cueva”, esteve <strong>em</strong> contato com o mais <strong>pro</strong>fundo do ser que lhe <strong>de</strong>u acesso <strong>à</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do que se passava naquele interior. Só <strong>de</strong> posse <strong>de</strong>ssa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom<br />

Quixote po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r an<strong>da</strong>mento <strong>à</strong>s coisas <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>, só assim po<strong>de</strong> <strong>pro</strong>sseguir para<br />

cumprir sua missão.<br />

Entretanto, o mundo fora <strong>de</strong> “la cueva” estando atrelado <strong>à</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> com<br />

to<strong>da</strong>s as suas com<strong>pro</strong>vações, com todo o fluir <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na seqüência do ordinário,<br />

esse é para Sancho, o mundo <strong>da</strong> luci<strong>de</strong>z. Já o que aconteceu <strong>em</strong> “la cueva”, fugindo<br />

literalmente do previsível e com<strong>pro</strong>vável <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ordinária, não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, porque<br />

não é real. Não é lúcido, é louco.<br />

Esse “outro mundo” e “outro céu” po<strong>de</strong>m perfeitamente esten<strong>de</strong>r-se do<br />

espaço ao t<strong>em</strong>po.<br />

Quando Sancho, acima, radicaliza, <strong>de</strong>clarando não acreditar na experiência<br />

<strong>de</strong> “la cueva”, Dom Quixote não insiste e lhe consola dizendo compreen<strong>de</strong>r sua<br />

avaliação <strong>de</strong> que as coisas que lhe pareçam impossíveis naquele momento, <strong>em</strong><br />

outro, possivelmente já não serão impossíveis, porque tudo é possível se o mundo é<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “pero an<strong>da</strong>rá el ti<strong>em</strong>po, como otra vez he dicho, y yo te contaré<br />

algunas <strong>de</strong> las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aqui he<br />

contado”. 471<br />

O “outro mundo” po<strong>de</strong> ser, ain<strong>da</strong>, tanto o mundo que dá suporte <strong>à</strong><br />

representação metafísica como a própria representação.<br />

Não é a primeira vez que Dom Quixote faz menção ao t<strong>em</strong>po, “como otra vez<br />

he dicho”; disso já falara outras vezes, indicando uma espera necessária que só no<br />

471 Mas an<strong>da</strong>rá o t<strong>em</strong>po, como disse outra vez, e eu te contarei algumas <strong>da</strong>s que lá <strong>em</strong>baixo eu vi, que te farão crer nas que<br />

aqui contei (2, XXIII, p.448)


futuro esclarecerá pontos difusos, ampliando assim o espectro <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: “he<br />

contado, cuya ver<strong>da</strong>d ni admite réplica ni disputa”, 472 essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, ain<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

<strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> formação, precisará ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po. Essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a que se está<br />

referindo Dom Quixote é, <strong>de</strong> tal monta, que seu po<strong>de</strong>r é anunciado com a seguinte<br />

frase: “ni admite réplica ni disputa”.<br />

Parece estar referindo-se <strong>à</strong> metafísica que se instalara no Oci<strong>de</strong>nte e seus<br />

futuros <strong>de</strong>sdobramentos. Com isso, compreen<strong>de</strong>mos as insistentes perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Sancho. A reprimen<strong>da</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote anuncia a sua causa: “to<strong>da</strong>s las cosas que<br />

tienen algo <strong>de</strong> dificultad te parecen imposibles”. 473 A causa está <strong>em</strong> Sancho<br />

compreen<strong>de</strong>r não o que aconteceu <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”, pois isso é só superfície. A<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira causa está na gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> metafísica que o episódio <strong>de</strong> “la<br />

cueva” anuncia. Po<strong>de</strong>ria estar a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Sancho ain<strong>da</strong> <strong>em</strong> outra causa?<br />

Vale a pena retomar a <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> Sancho a respeito do episódio <strong>da</strong><br />

“Cueva <strong>de</strong> Montesinos”:<br />

Creo – respondió Sancho – que aquel Merlín, o aquellos encantadores que<br />

encantaron a to<strong>da</strong> la chusma que vuestra merced dice que ha visto y<br />

comunicado allá bajo, le encajaron en el magín o la m<strong>em</strong>oria to<strong>da</strong> esa<br />

máquina que nos ha contado, y todo aquello que por contar le que<strong>da</strong>. 474<br />

Vale retomar também a disposição <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>de</strong> <strong>da</strong>r esclarecimentos<br />

ao longo do t<strong>em</strong>po: diante <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrença <strong>de</strong> Sancho, respon<strong>de</strong> Dom Quixote:<br />

[...] porque lo que he contado lo vi por mis <strong>pro</strong>pios ojos y lo toqué con mis<br />

mismas manos. Pero ¿qué dirás cuando te diga yo ahora cómo, entre otras<br />

472 Contei, cuja ver<strong>da</strong><strong>de</strong> n<strong>em</strong> admite resposta n<strong>em</strong> <strong>de</strong>sculpa (2, XXIII, p.448)<br />

473 To<strong>da</strong>s as coisas que têm alguma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> parec<strong>em</strong>-te impossíveis (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

474 Creio – respon<strong>de</strong>u Sancho – que aquele Merlin ou aqueles encantadores que encantaram to<strong>da</strong> chusma que vossa mercê<br />

diz que viu e com qu<strong>em</strong> falou lá <strong>em</strong>baixo, encaixaram-lhe na imaginação ou na m<strong>em</strong>ória to<strong>da</strong> essa máquina que nos contou e<br />

tudo aquilo que ficou por contar (2, XXIII, p.446).


E mais:<br />

infinitas cosas y maravillas que me mostró Montesinos, las cuales <strong>de</strong>spacio<br />

y a sus ti<strong>em</strong>pos te las iré contando en el discurso <strong>de</strong> nuestro viaje. 475<br />

[...] pero an<strong>da</strong>rá el ti<strong>em</strong>po, como otra vez he dicho, y yo te contaré algunas<br />

<strong>de</strong> las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aquí he contado” 476<br />

Essas duas marcações <strong>de</strong>ixam evi<strong>de</strong>ntes não só a assunção consciente do<br />

cavaleiro <strong>de</strong> sua nova missão – o hermeneuta, mas também sela <strong>de</strong>finitivamente<br />

não se tratar <strong>de</strong> uma viag<strong>em</strong> física, pelos caminhos geográficos <strong>de</strong> Espanha e <strong>de</strong> la<br />

Mancha. Os dois ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong>ixam marcado o t<strong>em</strong>po. No t<strong>em</strong>po diz Dom Quixote<br />

que contará “infinitas cosas y maravillas”, 477 ao longo <strong>da</strong> viag<strong>em</strong> 478 .<br />

Essa viag<strong>em</strong> já fora realiza<strong>da</strong> no 1º. Périplo, é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> 479 . Mas, se <strong>cura</strong> não<br />

se esgota, a viag<strong>em</strong> ain<strong>da</strong> não acabou, a travessia continua. Se a mesma ou outra,<br />

não importa. Importa é o que diz Guimarães Rosa, i<strong>de</strong>ntificando a travessia com o<br />

percurso do “entre”.<br />

Nessa segun<strong>da</strong> viag<strong>em</strong> <strong>em</strong>barcou Dom Quixote numa “cueva” e, <strong>em</strong> estreito<br />

t<strong>em</strong>po ôntico, “poco más <strong>de</strong> una hora”, t<strong>em</strong>po que se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong> múltiplas<br />

ampliações. Essas ampliações vão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> três dias: “porque allá me anocheció y<br />

amaneció, y tornó a anochecer y a amanecer tres veces”, até chegar<strong>em</strong> a cobrir<br />

<strong>de</strong>zenove séculos, os séculos <strong>em</strong> que o platonismo metafísico habita o Oci<strong>de</strong>nte.<br />

Essa é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote: numa só caverna sua viag<strong>em</strong><br />

cruzou <strong>de</strong>zenove séculos. Embarcou como filósofo e, no final <strong>da</strong> viag<strong>em</strong>, quase não<br />

475<br />

Porque o que contei eu vi com meus próprios olhos e toquei com minhas próprias mãos. Mas, que dirás quando te diga eu<br />

agora como entre outras infinitas coisas e maravilhas, que me mostrou Montesinos, as quais <strong>de</strong>vagar e a seu t<strong>em</strong>po irei<br />

contando no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> nossa viag<strong>em</strong> (2, XXIII, p.446)<br />

476<br />

Mas an<strong>da</strong>rá o t<strong>em</strong>po, como disse outra vez, e eu te contarei algumas <strong>da</strong>s que lá <strong>em</strong>baixo eu vi, que te farão crer nas que<br />

aqui contei (2, XXIII, p.448)<br />

477<br />

Infinitas coisas e maravilhas (2, XXIII, p.446)<br />

478<br />

Não percamos <strong>de</strong> vista que o ser se dá no t<strong>em</strong>po.<br />

479<br />

Afinal, não esqueçamos que os Périplos são viagens cíclicas, <strong>em</strong>preendi<strong>da</strong>s nos círculos hermenêuticos que nunca se<br />

esgotam.


<strong>de</strong>s<strong>em</strong>barca. Agora compreen<strong>de</strong>mos o aviso que nos tinha <strong>da</strong>do Manuel Antonio <strong>de</strong><br />

Castro:<br />

A mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> se inicia quando um novo método <strong>de</strong> conhecimento é<br />

<strong>pro</strong>posto para substituir o antigo. Foi o que fez Descartes no seu livro<br />

Discours <strong>de</strong> la métho<strong>de</strong>. A busca é a mesma <strong>de</strong> Platão: algo <strong>de</strong> indubitável,<br />

permanente, universal. Porém, há uma diferença: o hom<strong>em</strong> não sai <strong>da</strong><br />

caverna. O caminho consiste numa caminha<strong>da</strong> <strong>em</strong> direção ao seu interior. E<br />

encontra a razão. 480<br />

Seriam esses <strong>de</strong>zenove séculos, “los <strong>de</strong>testables siglos” a que se refere Dom<br />

Quixote <strong>em</strong> seu discurso <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro?<br />

Diss<strong>em</strong>os no parágrafo anterior que Dom Quixote “quase” não <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barca<br />

<strong>de</strong> “la cueva”. Foi só “quase”, se consi<strong>de</strong>rarmos as palavras <strong>de</strong> Sancho que,<br />

t<strong>em</strong>eroso <strong>de</strong> ter perdido seu amo, “lloraba amargamente”, até o momento <strong>de</strong> seu<br />

regresso <strong>de</strong> “la cueva” quando disse: “sea vuestra merced muy bien vuelto, señor<br />

mío; que ya pensábamos que se que<strong>da</strong>ba allá para casta”. 481 Consi<strong>de</strong>rando,<br />

entretanto, a tarefa-missão que lhe encarregou Montesinos, o “quase” per<strong>de</strong> sentido,<br />

o t<strong>em</strong>or <strong>de</strong> Sancho não encontra sustentação: Como era possível não se libertar <strong>de</strong><br />

“la cueva”, com tarefa tão gran<strong>de</strong> para realizar?<br />

Mesmo usando “casta” ironicamente, Sancho está referindo-se a todos os<br />

homens, não só aos do interior <strong>de</strong> “la cueva”, mas a todos os que também fora se<br />

encontram na mesma condição – são a casta dos homens encantados pelo po<strong>de</strong>r <strong>da</strong><br />

razão, a casta que Dom Quixote precisava libertar.<br />

O modo como Dom Quixote regressou <strong>de</strong> “la cueva” nos obriga a <strong>de</strong>ixar um<br />

espaço para outras interpretações. Chegou <strong>de</strong>sacor<strong>da</strong>do e custou muito trabalho<br />

acor<strong>da</strong>r<strong>em</strong>-no. Só finalmente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> que “tanto le volvieron y revolvieron,<br />

sacudieron y menearon, que al cabo <strong>de</strong> un buen espacio volvió a sí”, 482 Dom Quixote<br />

480 CASTRO Manuel Antonio <strong>de</strong>. Poética e poiesis: a questão <strong>da</strong> interpretação. Fun<strong>da</strong>ção Eng o Antonio <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>. Porto:<br />

Vere<strong>da</strong>s, 1999, p.327.<br />

481 Seja vossa mercê muito b<strong>em</strong> retornado, senhor meu, que já pensávamos que ficava lá para casta (2, XXII, p.440)<br />

482 Tanto o viraram e reviraram, sacudir<strong>em</strong> e mexeram que ao fim <strong>de</strong> um bom t<strong>em</strong>po, voltou a si (Ibi<strong>de</strong>m)


voltou afinal, conseguiu libertar-se <strong>de</strong> “la cueva”. Depois <strong>de</strong> experiência tão radical,<br />

passou Dom Quixote, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, por um <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> transformação:<br />

experienciando o episódio <strong>de</strong> “la cueva”, Dom Quixote contactou o originário e, <strong>de</strong><br />

filósofo vira hermeneuta.<br />

Ao <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po, Dom Quixote percebe que tudo tinha<br />

começado na Caverna <strong>de</strong> Platão; que acabou aprisionando o hom<strong>em</strong>. É b<strong>em</strong><br />

possível que o filósofo, que ao interior <strong>da</strong> caverna voltara, para resgatar os que ali<br />

ficaram, não mais conseguisse sair. Não se tratava mais, entretanto, <strong>da</strong> velha<br />

caverna, a viag<strong>em</strong> fora mais <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>, Dom Quixote fora ao mais <strong>pro</strong>fundo <strong>de</strong> si<br />

mesmo. Por isso, era necessário sair.<br />

2.3 DOM QUIXOTE SAI DA CAVERNA COMO HERMENEUTA<br />

Dom Quixote sai transformado. Transmutado é o melhor termo: <strong>de</strong> filósofo a<br />

hermeneuta, essa passag<strong>em</strong>, uma simples transformação não realiza, porque não<br />

inclui a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> do transmutar. Segundo Aurélio Buarque <strong>de</strong> Holan<strong>da</strong>,<br />

“transmutação” é “formação <strong>de</strong> nova espécie por meio <strong>de</strong> mutações”. 483 Embora não<br />

seja aqui, o início do 2º. Périplo, só agora as mutações pelas quais passou Dom<br />

Quixote o habilitam <strong>à</strong> hermeneuta.<br />

Assim funciona a hermenêutica; a compreensão não se dá numa totali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

ela não se manifesta <strong>de</strong> “chofre”; ela v<strong>em</strong> aos poucos, por isso só agora a<br />

alcançamos. Junto com a disposição, pré-reflexiva, a compreensão acontece <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

uma pré-compreensão, como um simples “pegar no ar”, até seus níveis mais<br />

483 HOLANDA, Aurélio Buarque <strong>de</strong>. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1326


<strong>pro</strong>fundos. À medi<strong>da</strong> que se vai investigando, vai-se compreen<strong>de</strong>ndo e<br />

a<strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>ndo ca<strong>da</strong> vez mais. O mais importante é saber que ela s<strong>em</strong>pre existe; por<br />

mais raso, há s<strong>em</strong>pre algum nível <strong>de</strong> compreensão possível.<br />

Com relação <strong>à</strong> compreensão, como li<strong>da</strong>r<strong>em</strong>os com a mesma pergunta<br />

motivadora do 1º. Périplo, retoma<strong>da</strong> neste, e que traz <strong>à</strong> pauta mentira e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

A resposta é: pela interpretação. Com tudo o que sabe, t<strong>em</strong>eroso <strong>da</strong><br />

acusação <strong>de</strong> Nietzsche <strong>de</strong> existir socialmente e <strong>em</strong> rebanho, Dom Quixote precisa<br />

rever o “com” do 1º. Périplo; e verifica que não se trata do mesmo “com”<br />

exatamente. Esse “com” foi percebido por Dom Quixote lá mesmo, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la<br />

cueva”. Dois ex<strong>em</strong>plos o revelam:<br />

Luengos ti<strong>em</strong>pos ha, valeroso caballero don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, que los<br />

que estamos en estas sole<strong>da</strong><strong>de</strong>s encantados esperamos verte, para que<br />

<strong>de</strong>s noticia al mundo <strong>de</strong> lo que encierra y cubre la <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong> cueva por<br />

don<strong>de</strong> has entrado, llama<strong>da</strong> la cueva <strong>de</strong> Montesinos: hazaña solo guar<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

para ser acometi<strong>da</strong> <strong>de</strong> tu invencible corazón y <strong>de</strong> tu ánimo estupendo” 484<br />

Em longa “solidão encanta<strong>da</strong>”, aguar<strong>da</strong>m aqueles que estão <strong>em</strong> “la cueva”.<br />

Mas que encantamento é esse que <strong>em</strong> “la cueva” os mantém? Por que “la cueva” é<br />

um lugar maravilhoso, <strong>de</strong> clari<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta, na qual maravilhados os homens<br />

esperam? A prisão dos que estão <strong>em</strong> “la cueva” é diferente <strong>da</strong> prisão <strong>da</strong> “outra”, uma<br />

célebre, a caverna sobre a qual nos conta Sócrates, no mito 485 . De que tipo <strong>de</strong><br />

aprisionamento encantado se trata este? E por que eles esperavam, presos neste<br />

encantamento, por Dom Quixote? Por que <strong>de</strong>ve Dom Quixote levar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre<br />

este encantamento e a revelação <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> caverna para o mundo?<br />

484 Longo t<strong>em</strong>po há, valoroso Cavaleiro Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, que os que estamos nestas solidões encantados<br />

esperamos ver-te, para que dês notícia ao mundo do que encerra e encobre a <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong> cova por on<strong>de</strong> entraste, chama<strong>da</strong> cova<br />

<strong>de</strong> Montesinos: façanha reserva<strong>da</strong> apenas para ser tenta<strong>da</strong> por teu invencível coração e por teu ânimo estupendo.<br />

2, XXIII, p. 442)<br />

485 PLATÃO. A República. Livro VII. São Paulo: Martin Claret, 2001 (Coleção A Obra Prima <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> autor).


Fica evi<strong>de</strong>nte a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote, no tocante a seu papel<br />

frente aos outros homens. Não se trata, como no 1º. Périplo, <strong>de</strong> <strong>da</strong>r conta do seu<br />

próprio; já não é o seu ser que está <strong>em</strong> jogo. O que está exigindo atenção <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote, agora, é o t<strong>em</strong>po e, fun<strong>da</strong>mentalmente, como o estão vivendo os homens.<br />

É preciso ficar atento ao concurso e <strong>de</strong>le participar. Para isso, a função <strong>de</strong> intérprete<br />

é fun<strong>da</strong>mental. Todos são convocados ao mercado on<strong>de</strong> estará exposta a<br />

concorrência. Se não é o seu ser que está <strong>em</strong> jogo, na<strong>da</strong> mais razoável que<br />

interprete “com”.<br />

Seu trabalho <strong>de</strong> intérprete consta <strong>de</strong> checar, no que circula pelo mundo, o seu<br />

valor. Isso só po<strong>de</strong> ser visto nas relações com os homens. Nessas relações<br />

acontece a gran<strong>de</strong> negociação: o que fica e o que cai; o que permanece e o que<br />

está fa<strong>da</strong>do a <strong>de</strong>saparecer; o que ain<strong>da</strong> sobrevive e o que é novi<strong>da</strong><strong>de</strong>; o que é<br />

antigo e cont<strong>em</strong>porâneo e ou mo<strong>de</strong>rno. Isso significa interpretar: negociar o “pretio”.<br />

Não esqueçamos, porém, que “pretio” significa lugar <strong>da</strong> negociação, o lugar<br />

on<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> observação atenta e avaliação criteriosa, são tirados os valores que<br />

po<strong>de</strong>rão traçar o perfil do que para o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong>, realmente, importância e valor no<br />

t<strong>em</strong>po. O primeiro lugar <strong>de</strong> negociação mostrou-se um gran<strong>de</strong> lugar. A <strong>de</strong>sci<strong>da</strong> a “la<br />

cueva” <strong>de</strong>u sinais surpreen<strong>de</strong>ntes a Dom Quixote.<br />

A busca passa a ser <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica, o acento se <strong>de</strong>sloca <strong>da</strong><br />

individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> para o coletivo. Ter ouvido a voz <strong>da</strong> consciência fez <strong>de</strong> Dom Quixote<br />

um hom<strong>em</strong> com<strong>pro</strong>metido não só com os homens <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po, mas com o hom<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos, já que Montesinos o encarregara: “que <strong>de</strong>s noticia al mundo”. O<br />

que o teria levado a essa mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> rumo se, uma vez <strong>de</strong>scoberta a sua essência,<br />

bastava-lhe estendê-la, simplesmente, a todos os <strong>de</strong>mais?<br />

Dom Quixote se dá conta <strong>de</strong> que a pre-sença não chega a construir-se a<br />

partir do eu singular porque, <strong>de</strong>sse modo, a passag<strong>em</strong> para explicar o que é história


acaba não se construindo. Daí a errância assumir também outra dimensão – é<br />

errância histórica do hom<strong>em</strong>, a errância <strong>da</strong> pre-sença historial. O hom<strong>em</strong> errando,<br />

vagando nos significados do ser, faz o movimento <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> no t<strong>em</strong>po. Isso<br />

representa um ganho, uma imensa ampliação: do hom<strong>em</strong> como pre-sença singular<br />

para o hom<strong>em</strong> como pre-sença histórica. E o existir singular do hom<strong>em</strong> per<strong>de</strong> para a<br />

existência histórica.<br />

A pre-sença, o Dasein, o entre-ser, é s<strong>em</strong>pre Mit-Dasein, ser-com, como já o<br />

dissera Hei<strong>de</strong>gger <strong>em</strong> Ser e T<strong>em</strong>po 486 . E se é ser-com, assim é porque é ser-com os<br />

outros no compartilhamento do mundo. A instância mais fun<strong>da</strong>mental do existir do<br />

hom<strong>em</strong> é ser s<strong>em</strong>pre ser-no-mundo (in-<strong>de</strong>r-Weltsein), ser s<strong>em</strong>pre jogado <strong>em</strong> um<br />

mundo histórico, <strong>de</strong> significados historicamente construídos que não escolheu, antes<br />

já encontrou <strong>da</strong> forma que é, e que compartilha com os <strong>de</strong>mais seres humanos. Esta<br />

é a terminologia <strong>de</strong> Ser e T<strong>em</strong>po. 487 Esse percurso o fiz<strong>em</strong>os no 1º. Périplo.<br />

Agora, entretanto, a história, a coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o compartilhamento tornar-se-ão,<br />

ca<strong>da</strong> vez mais, o tom que ganha o acento. Agora já não é um só hom<strong>em</strong> particular,<br />

errando no mundo; é “com”, é com to<strong>da</strong> cultura, com to<strong>da</strong> uma existência histórica.<br />

Curiosamente, po<strong>de</strong>mos fazer uma estranha correlação. A obra do filósofo<br />

al<strong>em</strong>ão Hei<strong>de</strong>gger é famosa por uma estranha reviravolta (Kehre), ou seja, uma<br />

vira<strong>da</strong> no modo <strong>de</strong> condução <strong>da</strong> questão que a move (a questão do ser). Também<br />

<strong>em</strong> Dom Quixote, <strong>em</strong> seu percurso no mundo, enxergamos uma “virag<strong>em</strong>”, voltas<br />

<strong>em</strong> torno; Périplos que são também estranhamente percorridos. A mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong><br />

nosso 1º. Périplo ao 2º. Périplo reflete, aqui, <strong>de</strong> certo modo, as mu<strong>da</strong>nças no<br />

percurso <strong>de</strong> Dom Quixote, não mais agora apenas <strong>em</strong> um caminho individual, <strong>de</strong><br />

busca por sua própria singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas Dom Quixote como hermeneuta, como<br />

486 HEIDEGGER, M. Ser e t<strong>em</strong>po. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1995, Partes 1 e 2.<br />

487 Ibi<strong>de</strong>m.


aquele que quer enten<strong>de</strong>r seu mundo e seu momento histórico: Dom Quixote como<br />

hermeneuta <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Se <strong>em</strong> Ser e T<strong>em</strong>po 488 Hei<strong>de</strong>gger estava preocupado <strong>em</strong> (re)colocar a<br />

questão do ser a partir do único ente para qu<strong>em</strong> há ser – o hom<strong>em</strong>, entendido como<br />

Dasein (ser-aí, pre-sença, ser-entre, entre muitas traduções possíveis), a<strong>pós</strong> a<br />

vira<strong>da</strong> por que passa sua obra <strong>em</strong> meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 30, 489 a questão passa a<br />

ser posta <strong>de</strong> forma mais ampla, agora <strong>em</strong> confronto com a tradição e a história, na<br />

busca pela construção do que ele chamará <strong>de</strong> “história do ser”.<br />

Depois <strong>de</strong> experienciar e ultrapassar os limites <strong>da</strong> <strong>cura</strong> no 1º. Périplo, agora,<br />

no 2º. Périplo, ver<strong>em</strong>os que a disposição com que Dom Quixote compreen<strong>de</strong>u,<br />

interpretou e predicou o mundo interfere <strong>em</strong> sua disposição atual. Mu<strong>da</strong> o ponto <strong>de</strong><br />

vista, mu<strong>da</strong> a perspectiva, o ciclo reinicia, e o mundo se abre para nova<br />

compreensão, interpretação e predicação nesta segun<strong>da</strong> “viravolta”, neste 2º.<br />

Périplo do percurso “<strong>quixote</strong>sco”.<br />

Do que precisa, acima <strong>de</strong> tudo Dom Quixote, é investir <strong>em</strong> sua performance<br />

discursiva. Se preten<strong>de</strong> ser o porta-voz e dizer a seus cont<strong>em</strong>porâneos a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

seu t<strong>em</strong>po, precisa estar atento a esse falar. Sabe que é importante sua nova<br />

missão: o hermeneuta, aquele que por saber interpretar e predicar, está autorizado a<br />

<strong>da</strong>r a boa- nova.<br />

E não é essa uma <strong>de</strong>cisão autônoma, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte n<strong>em</strong> particular <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote. Os ex<strong>em</strong>plos são claros: ain<strong>da</strong> que partam todos <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong> por oposição,<br />

há o reconhecimento <strong>de</strong> todos os que o observam.<br />

488 HEIDEGGER, M. Ser e t<strong>em</strong>po. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1995, Partes 1 e 2.<br />

489 Cf. INWOOD, Michael, Dicionário Hei<strong>de</strong>gger. Trad. Luisa Buarque <strong>de</strong> Holan<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2002.


Do mesmo modo que nos surpreen<strong>de</strong>u a <strong>de</strong>scoberta do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro mal <strong>de</strong><br />

Dom Quixote __ a privação <strong>da</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong> do questionar __ , surpreen<strong>de</strong>, agora,<br />

verificar ser essa a chave do equívoco <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Des<strong>de</strong> o 1º. Périplo, i<strong>de</strong>ntificou-se, <strong>em</strong> Dom Quixote, a marca característica<br />

<strong>da</strong> ação dinâmica: as an<strong>da</strong>nças pelos caminhos <strong>de</strong> la Mancha, ratifica<strong>da</strong>s pelas<br />

patas do cavalo, el<strong>em</strong>ento funcional e eficaz para o êxito do <strong>pro</strong>jeto do cavaleiro.<br />

Com esse instrumental, fica <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> a obra como o transitar <strong>de</strong> um louco que, s<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>stino espacial, se põe a caminho <strong>de</strong> outro <strong>de</strong>stino: a glória e a fama; conquistas<br />

que só lhe serão acessíveis, graças <strong>à</strong> força <strong>de</strong> seu braço e ao manejo <strong>de</strong> sua<br />

espa<strong>da</strong>.<br />

Essa é a versão, cavaleiro <strong>de</strong> Dom Quixote: o louco que precisa ficar louco,<br />

“por no po<strong>de</strong>r menos”; 490 o louco que é pura ação - “soy loco en mis acciones”; 491 o<br />

louco que precisa alistar-se na cavalaria para “an<strong>da</strong>r por el mundo en<strong>de</strong>rezando<br />

tuertos, <strong>de</strong>sfaciendo agravios”; 492 com o firme e seguro <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> resgatar uma<br />

época on<strong>de</strong> a pureza e a perfeição o faziam saudoso.<br />

Essa versão guerreira, entretanto, é somente parte <strong>da</strong> composição platônica<br />

<strong>da</strong> Paidéia que, não <strong>de</strong>scartando o guerreiro, tinha como meta a formação do<br />

filósofo.<br />

Para sermos mais precisos, o perfil cavaleiro <strong>de</strong> Dom Quixote se conforma <strong>à</strong><br />

versão renascentista do i<strong>de</strong>al platônico, versão que centraliza, no “gênio”, o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong><br />

hom<strong>em</strong>, como base <strong>de</strong> um <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho virtuoso <strong>em</strong> qualquer setor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Desse<br />

modo, com tal formação, po<strong>de</strong>rá o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>sdobrar-se, <strong>de</strong>dicando-se a qualquer<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, com a garantia <strong>de</strong> êxito absoluto.<br />

490 Por falta <strong>de</strong> alternativa. (2, XV, p.397)<br />

491 Sou louco <strong>em</strong> meus atos.<br />

492 Desfazer agravos.


Nesse caso, Dom Quixote, pelas características mais evi<strong>de</strong>ntes na obra, <strong>em</strong><br />

sua versão cavaleiro, ocupa o nível mais superficial; atua somente na superfície. E é<br />

nessa superfície que transita, ora movido por seus próprios passos, ora trotando nas<br />

patas <strong>de</strong> Rocinante. Nesse nível, qu<strong>em</strong> atua é o cavaleiro espanhol que t<strong>em</strong>, nos<br />

livros <strong>de</strong> cavalaria, o gran<strong>de</strong> incentivo patriótico <strong>de</strong> prestar serviço a seu país.<br />

Tendo todos, na república, recebido a mesma formação, <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong><br />

um mesmo hom<strong>em</strong> são perfeitamente possíveis: sob a superfície se escon<strong>de</strong> outro<br />

Dom Quixote __ o <strong>de</strong>miurgo, o hom<strong>em</strong> criador, feito <strong>à</strong> imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong><br />

Deus. Esse Dom Quixote <strong>de</strong>sdobrado afina-se perfeitamente com o hom<strong>em</strong><br />

universal, i<strong>de</strong>al do Renascimento, hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong> pátria; aquele a qu<strong>em</strong> lhe cabe<br />

resgatar a perfeição do mundo. Não terminam aí, no entanto, os <strong>de</strong>sdobramentos.<br />

Resta, ain<strong>da</strong>, o <strong>de</strong>sdobrar-se <strong>de</strong>sse i<strong>de</strong>al maior <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>, feito imag<strong>em</strong> e<br />

s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> Deus, o <strong>de</strong>sdobrar-se <strong>da</strong> síntese perfeita do hom<strong>em</strong> chamado<br />

filósofo.<br />

Algo curioso, entretanto, acontece: o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> dobradura <strong>em</strong>perra. A partir<br />

<strong>da</strong>í, Dom Quixote não vê saí<strong>da</strong>; não há novos <strong>de</strong>sdobramentos.<br />

Esse <strong>pro</strong>cesso muito b<strong>em</strong> re<strong>pro</strong>duz a experiência <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>em</strong> “la<br />

Cueva <strong>de</strong> Montesinos”: <strong>em</strong>perra, ali, também, o sist<strong>em</strong>a que permitia alguma<br />

mobili<strong>da</strong><strong>de</strong>, a começar por aquela que <strong>da</strong>va acesso ao exterior. É b<strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

também o exterior imobiliza, o simples sair <strong>de</strong> “la cueva” não libera do estático.<br />

Basta l<strong>em</strong>brar do escu<strong>de</strong>iro Guadiana, que sai <strong>de</strong> “la cueva” s<strong>em</strong> nenhum<br />

entusiasmo, porque seus peixes continuam grosseiros e s<strong>em</strong> sabor, obrigando-o a<br />

alterar sua trajetória: fazer seu curso afun<strong>da</strong>do na terra, esperando, qu<strong>em</strong> sabe, se,<br />

com o t<strong>em</strong>po, a terra se encarrega <strong>de</strong> suavizar a textura e <strong>de</strong> revitalizar o sabor <strong>de</strong><br />

seus peixes.


O dinamismo <strong>de</strong> “la cueva” é reduzido ao estático, e o hom<strong>em</strong> é<br />

<strong>de</strong>finitivamente aprisionado – “aprisionado”, termo perfeito e motivador <strong>de</strong> sua<br />

contraparti<strong>da</strong>: a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Como ter-se-ia efetivado, <strong>em</strong> última análise, essa situação <strong>de</strong> prisioneiro,<br />

esse estado <strong>de</strong> constrangimento a que foi submetido o hom<strong>em</strong>? Qu<strong>em</strong> o submeteu?<br />

Se puxarmos na l<strong>em</strong>brança e, não há muito, Nietzsche <strong>de</strong>clarou com to<strong>da</strong>s as<br />

letras: qu<strong>em</strong> enfeitiçou o hom<strong>em</strong> foi o próprio hom<strong>em</strong>. 493 E disse mais: disse que<br />

esse hom<strong>em</strong> que ao próprio hom<strong>em</strong> submeteu, <strong>de</strong> na<strong>da</strong> sabe: afinal ele não saberia<br />

n<strong>em</strong> mesmo do funcionamento <strong>de</strong> suas entranhas, não sabe sequer como<br />

funcionam seus intestinos n<strong>em</strong> seu sist<strong>em</strong>a sangüíneo. 494 Mas como se <strong>de</strong>u esse<br />

<strong>pro</strong>cesso histórico <strong>de</strong> submissão?<br />

Dom Quixote, já o tínhamos <strong>de</strong>ixado nesse mesmo lugar, perplexo e<br />

paralisado. Afinal, estava no ponto crucial <strong>de</strong> sua história; chegara ao ponto zero <strong>da</strong><br />

encruzilha<strong>da</strong>; <strong>de</strong> uma encruzilha<strong>da</strong> que não era só sua, a maior encruzilha<strong>da</strong><br />

experimenta<strong>da</strong> pelo Oci<strong>de</strong>nte: a encruzilha<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma nova etapa <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Quando Descartes <strong>pro</strong>põe o método científico como um <strong>pro</strong>cedimento para b<strong>em</strong><br />

dirigir a mente na busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e como garantia váli<strong>da</strong> para to<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> conhecimento, ele fun<strong>da</strong>menta no eu que pensa, no sujeito, to<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

conhecimento. A partir <strong>da</strong>í, a metafísica mo<strong>de</strong>rna acaba por ganhar nova face: a <strong>da</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> (e do subjetivismo) crescente.<br />

Agora, mais do que nunca, Dom Quixote precisa compreen<strong>de</strong>r, precisa<br />

compreen<strong>de</strong>r para b<strong>em</strong>-dizer. Para alertar o hom<strong>em</strong> que com ele divi<strong>de</strong> espaço no<br />

mundo, elevando-o <strong>à</strong> categoria <strong>de</strong> ser histórico, além <strong>de</strong> saber, precisa saber dizer.<br />

493 C.f. NIETZSCHE, F. Sobre a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e a mentira no sentido extra-moral. In: Livro do filósofo. Porto: Rés, 1984.<br />

494 C.f. Ibi<strong>de</strong>m.


Como foi possível chegar-se a esse ponto crucial? Qu<strong>em</strong> alimentou o I<strong>de</strong>al<br />

metafísico que, mesmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”, reuniu força e po<strong>de</strong>r, para avançar<br />

intrépido e ameaçador pela mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> afora? A ciência mo<strong>de</strong>rna acabaria por se<br />

configurar como a última face <strong>da</strong> metafísica, a última configuração <strong>de</strong> uma<br />

interpretação metafísica do ente como ente a partir <strong>de</strong> conceitos como substância e<br />

causali<strong>da</strong><strong>de</strong>. 495<br />

É Dom Quixote qu<strong>em</strong> quer respon<strong>de</strong>r. Assume para si essa responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Ain<strong>da</strong> que não quisesse, assumira <strong>em</strong> “la cueva” o com<strong>pro</strong>misso: “que las gran<strong>de</strong>s<br />

hazañas para los gran<strong>de</strong>s hombres están guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s” 496 . É com essas palavras que<br />

“el alcai<strong>de</strong>” Montesinos, o prefeito encantado <strong>de</strong> “la cueva” <strong>de</strong> mesmo nome, louva o<br />

cavaleiro, incentivando-o a realizar a façanha do <strong>de</strong>sencantamento. Muito mais<br />

nobre e com<strong>pro</strong>metedora é a outra tarefa: “[...] para que <strong>de</strong>s noticia al mundo <strong>de</strong> lo<br />

que encierra y cubre la <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong> cueva por don<strong>de</strong> has entrado, llama<strong>da</strong> la cueva <strong>de</strong><br />

Montesinos: hazaña sólo guar<strong>da</strong><strong>da</strong> para ser acometi<strong>da</strong> <strong>de</strong> tu invencible corazón y <strong>de</strong><br />

tu ánimo estupendo” 497 . Que mercado! Na primeira para<strong>da</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote para<br />

negociar o “pretio” ali encontra muito para interpretar.<br />

A “cueva <strong>de</strong> Montesinos” traz <strong>em</strong> si a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do encantamento, lugar<br />

feérico on<strong>de</strong> Dom Quixote sonha e, sonhando, parece enxergar mais longe.<br />

Conversa com diferentes seres que dão conta <strong>da</strong> geografia <strong>da</strong> Espanha e dão conta<br />

<strong>da</strong> geografia <strong>da</strong> região <strong>da</strong> la Mancha. Mas não é só isto. No diálogo com os seres<br />

fantásticos que lá encontra, é não só a geografia <strong>da</strong> Espanha, mas a própria<br />

topologia <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> que se <strong>de</strong>scortina. A cova nos fala <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong><br />

495<br />

C.f. HEIDEGGER, Martin. A questão <strong>da</strong> técnica. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan<br />

Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

496<br />

Que as gran<strong>de</strong>s façanhas para os gran<strong>de</strong>s homens estão guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s (2, XXIII, p.444)<br />

497<br />

Para que a notícia ao mundo do que encerra e cobre a <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong> cova por on<strong>de</strong> entraste, chama<strong>da</strong> “cova <strong>de</strong> Montesinos”:<br />

façanha só reserva<strong>da</strong> para ser realiza<strong>da</strong> pelo teu coração invencível e do teu ânimo estupendo (2, XXIII, p.442)


sonho, do qual a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> encanta<strong>da</strong> precisa ser <strong>de</strong>sperta. Como po<strong>de</strong> Dom<br />

Quixote <strong>de</strong>spertar a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> do encantamento <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

É uma convocação para a qual, só os gran<strong>de</strong>s são chamados. Essa é uma<br />

convocação especial para a qual Dom Quixote é chamado. Era convocado para ler e<br />

interpretar “as relações <strong>de</strong> convivência”, “os <strong>pro</strong>cessos <strong>de</strong> relacionamento e <strong>de</strong><br />

criação”, “as várias situações” [...] <strong>de</strong> uma experiência histórica nova”, e <strong>da</strong>s<br />

“exigências <strong>de</strong> transformação e <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação <strong>à</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong>” 498 <strong>de</strong>ssas várias<br />

situações. Só os gran<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhar tal tarefa; ler uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cifra<strong>da</strong>,<br />

captar diferenças sutis que, ao mesmo t<strong>em</strong>po que mostra, escapa na ponta <strong>da</strong>s asas<br />

do pássaro. A partir do que já viu, a partir do que já foi, Dom Quixote precisa ver e,<br />

com o giz do presente, rascunhar o perfil do futuro.<br />

Surpreen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> convocado, Dom Quixote, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> se<br />

esperava um “arregalar <strong>de</strong> olhos”, se mantém <strong>de</strong> olhos fechados, calmo, quase<br />

impassível. Os olhos, outrora tão necessários e confiáveis, dão lugar a um sentido<br />

<strong>de</strong> alcance mais amplo: a escuta que, por sua vez, também dispensa o ouvido.<br />

A partir <strong>de</strong> agora, é pura atenção, não só ao que acontece <strong>de</strong>ntro como<br />

também fora <strong>de</strong> “la cueva”.<br />

Do que já vira, Dom Quixote traz claro na l<strong>em</strong>brança sua experiência<br />

platônica, experiência facilmente i<strong>de</strong>ntificável no interior <strong>de</strong> “la cueva”. Intriga,<br />

entretanto, Dom Quixote, a mu<strong>da</strong>nça radical do fim <strong>da</strong> historia: <strong>de</strong>sconcertado, já<br />

não sabe com que <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito ali entrara. Não preten<strong>de</strong> retirar ninguém do interior, e<br />

ninguém o solicita. Sair <strong>de</strong> “la cueva” - caverna, além <strong>de</strong> não ser solução, não é essa<br />

a expectativa. Ao contrário, sua função é simplesmente ler e interpretar. Carneiro<br />

Leão é muito claro: intérprete é aquele “que é capaz <strong>de</strong> se i<strong>de</strong>ntificar com a<br />

498 LEÃO, Emmanuel Carneiro. Hermenêutica e mito. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Letras n.11. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Fac. <strong>de</strong> Letras, Dept o <strong>de</strong> Letras<br />

Anglo-Germânicas, UFRJ, 1995, p.17.


diferença”, com a diferença do <strong>de</strong>stino; e não ir “atropelando a diferença” 499 O<br />

<strong>de</strong>stino histórico não po<strong>de</strong> ser atropelado n<strong>em</strong> modificado.<br />

A gran<strong>de</strong> diferença encontra eco na voz <strong>de</strong> Nietzsche; está intimamente<br />

liga<strong>da</strong> a um po<strong>de</strong>r humano que s<strong>em</strong> medi<strong>da</strong> foi tomando conta do mundo: a<br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em Platão, a passag<strong>em</strong> intermediária e obrigatória pela alma arrefecia<br />

esse po<strong>de</strong>r. Preso <strong>em</strong> “la cueva”-caverna, entretanto, cai o estágio intermediário<br />

abrindo espaço para uma relação mais direta entre hom<strong>em</strong> e mundo.<br />

Ao sair <strong>de</strong> “la cueva”, “sea vuestra merced muy bien vuelto, señor mío; que ya<br />

pensábamos que se que<strong>da</strong>ba allá para casta. Pero no respondía palabra don<br />

Quijote; y sacándole <strong>de</strong>l todo, vieron que traía cerrados los ojos, con muestras <strong>de</strong><br />

estar dormido”; 500 o fechar os olhos <strong>de</strong> Dom Quixote é sintomático. No fundo <strong>de</strong> “la<br />

cueva” estivera atento: além <strong>da</strong> rígi<strong>da</strong> formação <strong>da</strong> Paidéia que lhe exigia um ajuste<br />

do olhar: que olhasse com os olhos <strong>da</strong> alma, era a lei. Além disso esteve atento <strong>à</strong><br />

Guadiana. Parece que ele também dispensa o ver. Quando chega <strong>à</strong> superfície <strong>de</strong> “la<br />

cueva” não quer ver o sol, rejeita a clari<strong>da</strong><strong>de</strong> e se mete “en las entrañas <strong>de</strong> la<br />

tierra” 501 , se nega a olhar “el sol <strong>de</strong>l otro cielo” 502 . Mesmo submerso, porque não é<br />

possível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> “acudir a su natural corriente” 503 , quando o rio Guadiana 504 , “<strong>de</strong><br />

499 o<br />

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Hermenêutica e mito. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Letras n.11. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Fac. <strong>de</strong> Letras, Dept <strong>de</strong> Letras<br />

Anglo-Germânicas, UFRJ, 1995, p.17.<br />

500<br />

Seja vossa mercê muito b<strong>em</strong> retornado, senhor meu, que já pensávamos que ficaria lá para casta. Mas não respondia<br />

palavra Dom Quixote, e tirando-o <strong>de</strong> todo, viram que trazia fechados os olhos, com mostras <strong>de</strong> estar adormecido<br />

(2, XXII, p.440).<br />

501<br />

Nas entranhas <strong>da</strong> terra (2, XXIII, p.443)<br />

502<br />

O sol do outro sol (ibi<strong>de</strong>m)<br />

503<br />

Voltar a seu estado normal (ibi<strong>de</strong>m)<br />

504<br />

A <strong>de</strong>terminação <strong>da</strong> nascente do Guadiana é um pouco polêmica (Rio Guadiana. Enciclopédia Virtual WIKIPÉDIA.<br />

Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 22 jun 2007). Alguns pensam que este gran<strong>de</strong> rio brota<br />

<strong>de</strong>pois nos lagos conhecidos como “Los Ojos <strong>de</strong>l Guadiana”, a cerca <strong>de</strong> 600 m <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>, na zona <strong>de</strong> Villarrubia (Ciu<strong>da</strong>d<br />

Real), mas não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Este rio espanhol nasce antes, nas lagoas <strong>de</strong> Rui<strong>de</strong>ra, a uma altitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> 1700 m, na região <strong>de</strong> La<br />

Mancha on<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato, se situam suas cabeceiras mais recua<strong>da</strong>s – a pouco mais <strong>de</strong> oitocentos quilômetros <strong>da</strong> foz, na fronteira<br />

com Portugal. Os Olhos do Guadiana são, então, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, um regresso <strong>à</strong> superfície <strong>de</strong> águas <strong>de</strong> sua bacia que, infiltrandose<br />

<strong>em</strong> terrenos calcários, muito <strong>pro</strong>pícios <strong>à</strong> circulação subterrânea, vinha já correndo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> antes. Não po<strong>de</strong> ser gratuita,<br />

portanto, a <strong>de</strong>nominação “Olhos do Guadiana” integra<strong>da</strong> a esse contexto mítico.


cuando en cuando sale y se muestra” 505 , mais uma vez <strong>de</strong>scarta a visão, não são<br />

seus olhos que vê<strong>em</strong>, ele é que se <strong>de</strong>ixa ver “don<strong>de</strong> el sol y las gentes le vean” 506 .<br />

Intrigante essa transferência: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nascer <strong>em</strong> Rui<strong>de</strong>ra e <strong>de</strong> ter visto o<br />

sol, Guadiana o rejeita, tanto se afun<strong>da</strong>ndo na terra, como não mais enfrentando<br />

com o olhar o sol por um longo período. O que teria acontecido?<br />

2.4 A QUESTÃO DOS DOIS MUNDOS<br />

O ingresso <strong>em</strong> “la cueva” possibilitou que Dom Quixote test<strong>em</strong>unhasse dupla<br />

experiência. Numa mesma caverna, a resposta <strong>à</strong> pergunta, “o que é o ente”, dá<br />

claros sinais <strong>de</strong> limitação. No exterior platônico, o sol que, por mais <strong>de</strong> um milênio<br />

reinara absoluto, já não <strong>de</strong>slumbra, <strong>da</strong>ndo sinais, inclusive, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança, no que<br />

se refere <strong>à</strong> sua ação segura e totalizadora. Parece que a confiança está abala<strong>da</strong>. Já<br />

não se quer encará-lo, olhá-lo <strong>de</strong> frente. O sol e o céu que s<strong>em</strong>pre estiveram <strong>à</strong><br />

disposição, eram insuficientes, não nutriam seus peixes, lhes faltava um “quê”, um<br />

quê que Guadiana vai buscar nas <strong>pro</strong>fun<strong>de</strong>zas.<br />

É a relação céu-terra restabelecendo-se. Ao hom<strong>em</strong> não mais interessa olhar<br />

diretamente para o céu, buscando a luz que esgota e esvazia.<br />

Não se po<strong>de</strong> encarar diretamente o sol. Não há visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> na clari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

absoluta. É preciso sombras e meios tons para <strong>de</strong>finir contornos, é preciso contraste<br />

para que se possa enxergar <strong>de</strong>talhes. A luz e a clareza absolutas e permanentes<br />

505 De quando <strong>em</strong> quando sai e se mostra (2, XXIII, p.443)<br />

506 On<strong>de</strong> o sol e as pessoas o vejam (ibi<strong>de</strong>m).


cegam tanto quanto as trevas absolutas. Quando se busca um conhecimento pleno,<br />

universal e absoluto, esta busca acaba por se mostrar estéril.<br />

O que Dom Quixote está insinuando é que, para Sancho, o único mundo<br />

permitido é o mundo com<strong>pro</strong>vável e com<strong>pro</strong>vado, o mundo <strong>da</strong> evidência, o mundo<br />

ao qual só a metafísica dá acesso. É por isso que Dom Quixote diz: “como no estás<br />

experimentado en las cosas <strong>de</strong>l mundo, to<strong>da</strong>s las cosas que tienen algo <strong>de</strong> dificultad<br />

te parecen imposibles”. 507<br />

Com isso, Dom Quixote quer ampliar os limites do mundo. Sancho não ter<br />

“experimentado las cosas <strong>de</strong>l mundo” significa, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

“experienciar”. Isso significa que o experienciar é privilégio <strong>de</strong> poucos, que é preciso<br />

ser especial para tal privilégio, que Sancho não faz parte do grupo <strong>de</strong> privilegiados,<br />

por isso não experimentou o experienciar do mundo?<br />

É óbvio que não. Isso fica claro na abertura que imediatamente Dom Quixote<br />

dá ao t<strong>em</strong>a, quando diz: “pero an<strong>da</strong>rá el ti<strong>em</strong>po [...] y yo te contaré [...] que te harán<br />

creer”. Com essa abertura, Dom Quixote está <strong>da</strong>ndo o passaporte a Sancho para<br />

que ele também <strong>em</strong>barque nesse mundo e com ele possa também fazer a viag<strong>em</strong>.<br />

Uma viag<strong>em</strong>-presente dos <strong>de</strong>uses a todos os homens. Para ter<strong>em</strong> esses homens<br />

direito a essa viag<strong>em</strong>, na<strong>da</strong> mais é preciso do que o “visto-carimbo” do “querer”.<br />

A falência do pensamento metafísico e científico se <strong>de</strong>ve, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte, a<br />

essa busca <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e uma clareza absolutas. A sabedoria do rio, na medi<strong>da</strong><br />

<strong>em</strong> que este percorre seus caminhos, nos ensina a buscar momentos <strong>de</strong><br />

obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong> tanto quanto momentos <strong>de</strong> luminosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. É no contraste entre seus<br />

momentos na superfície – na clareira e no <strong>de</strong>svelamento do ser – e seus momentos<br />

<strong>de</strong> velamento – on<strong>de</strong> repousa no fundo abissal <strong>da</strong> terra, que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> originária<br />

507 Como não estás experimentado nas coisas do mundo, to<strong>da</strong>s as coisas que têm alguma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> parec<strong>em</strong>-te impossíveis<br />

(2, XXIII, p.447)


po<strong>de</strong> se mostrar. Mas apesar dos contrastes entre esses momentos, o caminho do<br />

Guadiana é um só, perpassando a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre a luz e a terra.<br />

Por isso, se escon<strong>de</strong>, por isso precisa alternar a exposição <strong>à</strong> luz com o<br />

escon<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong>la. Não há, nesse <strong>pro</strong>ce<strong>de</strong>r, uma imposição, um tentar arrancar na<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Há sim, um movimento natural, uma entrega <strong>de</strong> Guadiana, significando<br />

um entregar-se, um <strong>de</strong>ixar-se. Essa opção <strong>de</strong> Guadiana preserva <strong>de</strong> tal modo a<br />

espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> natural que ele não esquece <strong>de</strong> registrá-la: “pero como no es<br />

posible <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> acudir a su natural corriente, <strong>de</strong> cuando en cuando sale y se<br />

muestra don<strong>de</strong> el sol y las gentes le vean” 508 .<br />

Este fragmento diz, <strong>em</strong> sua completu<strong>de</strong>, o <strong>pro</strong>cesso do mostrar-se a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do ser: o ser se dá na espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, do mesmo modo que o rio que, seguindo seu<br />

curso natural, só se mostra por pura <strong>de</strong>terminação natural, uma vez que “no es<br />

posible <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> acudir a su natural corriente”. Deixar-se iluminar pela luz “<strong>de</strong> cuando<br />

en cuando sale y se muestra”, opção <strong>de</strong> Guadiana, é o <strong>de</strong>ixar-ser <strong>da</strong>s coisas, <strong>de</strong>ixar<br />

que o mistério se abra e venha <strong>à</strong> luz ”don<strong>de</strong> el sol y las gentes le vean”; atitu<strong>de</strong><br />

literalmente oposta <strong>à</strong> do cientista, a qu<strong>em</strong> só interessa o dia, porque ele é o único<br />

que vê: “Viajante dos dias e <strong>da</strong>s noites, o cientista só t<strong>em</strong> olhos para os dias e para<br />

a clari<strong>da</strong><strong>de</strong> dos dias nas disciplinas” 509 . Na ânsia <strong>de</strong> esclarecer, não percebe que é<br />

exatamente no “entre” que estão to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. E, insensível <strong>à</strong> retração,<br />

ignora a sombra <strong>da</strong> noite, acreditando ser a ausência <strong>da</strong> luz, a inexistência do sol.<br />

Não percebe que essa falsa aparência é o sol, no máximo <strong>de</strong> seu retraimento,<br />

“<strong>em</strong>bora seja mais presente do que as presenças que parec<strong>em</strong> ser os dias” 510 .<br />

508<br />

Porém, como não é possível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r <strong>à</strong> sua corrente natural, <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando sai e se mostra on<strong>de</strong> o sol e as<br />

pessoas o vejam (2, XXIII, p.443)<br />

509<br />

CASTRO M. A. Interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong>, dimensões poéticas. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro, Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro,<br />

n.164, p.21, 2006<br />

510 Ibi<strong>de</strong>m.


Guadiana, entretanto, não fica o t<strong>em</strong>po todo na luz, porque reconhece, no<br />

retraimento, todo o vigor, existente na aparente ausência. Então, Guadiana<br />

submerge no escuro <strong>da</strong>s “entrañas <strong>de</strong> la tierra”. Aparece <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando e<br />

confessa ser impossível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazê-lo; é como se obe<strong>de</strong>cesse a uma or<strong>de</strong>m<br />

superior que é a lei <strong>da</strong> natureza: “no es posible <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> acudir a su natural<br />

corriente”. Por isso, precisa aparecer; mas só <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando. E o mais<br />

surpreen<strong>de</strong>nte é que, contrariando a orientação <strong>de</strong> Platão, já não olha para o sol.<br />

Não é ele qu<strong>em</strong> esforça o olhar, expondo-o <strong>à</strong> sua intensa luminosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Guadiana,<br />

simplesmente, <strong>de</strong>ixa que “el sol y las gentes le vean” e que sua luz ilumine. Talvez,<br />

esperando que ao vê-lo <strong>em</strong> total naturali<strong>da</strong><strong>de</strong>, percebess<strong>em</strong> a importância do<br />

“<strong>de</strong>ixar-ser”, pois só assim é franqueado ao mistério do ser.<br />

Um <strong>da</strong>do ain<strong>da</strong> segue intrigante: se Guadiana chega a entrar pomposo e<br />

gran<strong>de</strong> <strong>em</strong> Portugal, é contraditório que não esteja pleno n<strong>em</strong> feliz.<br />

Guadiana, no final <strong>da</strong>s contas, é qu<strong>em</strong> liga as duas pontas. E o faz pela<br />

negação, negando a luz exterior <strong>da</strong> caverna, não lhe dirigindo o olhar, rejeita a<br />

condição <strong>de</strong> filósofo que, <strong>de</strong> tanto cont<strong>em</strong>plar a clari<strong>da</strong><strong>de</strong>, a<strong>pro</strong>priou-se do saber que<br />

toma para si a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> retornar <strong>à</strong> caverna (la cueva) para auxiliar os<br />

<strong>de</strong>mais que ali segu<strong>em</strong>, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> caverna, prisioneiros <strong>da</strong>s trevas. Por outro lado,<br />

<strong>em</strong> sua segun<strong>da</strong> versão, “la cueva”, to<strong>da</strong> ilumina<strong>da</strong> <strong>em</strong> seu interior, representando a<br />

luz do pensamento do hom<strong>em</strong> e seu alcance ilimitado e <strong>de</strong>smedido, Guadiana<br />

também não a acolhe; caso contrário, <strong>de</strong> seu interior n<strong>em</strong> teria saído. A <strong>pro</strong>va <strong>de</strong><br />

que rejeita também a segun<strong>da</strong> versão <strong>de</strong> “la cueva”, aquela que, por seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

sedução a todos aprisionou <strong>em</strong> seu interior, é que Guadiana <strong>de</strong>la se retira, com<br />

muito pesar. Não por ter conquistado a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas porque <strong>em</strong> seu interior


permaneciam todos os homens seus s<strong>em</strong>elhantes: “fue tanto el pesar que sintió <strong>de</strong><br />

ver que os <strong>de</strong>jaba”. 511<br />

Junto com as lagoas, sendo os únicos que consegu<strong>em</strong> escapar do<br />

encantamento, Guadiana, no máximo, retoma seu lugar mítico, s<strong>em</strong>, contudo, além<br />

<strong>de</strong> muito lamentar, a na<strong>da</strong> mais se dispor. Não era a Guadiana que lhe cabia<br />

<strong>pro</strong>vidências; e sim a Dom Quixote.<br />

Resumindo: Ao sair <strong>de</strong> “la cueva”, Dom Quixote já sabe e compreen<strong>de</strong> que há<br />

dois mundos; mundos que permanec<strong>em</strong> separados, s<strong>em</strong> relação um com o outro.<br />

Um é o mundo on<strong>de</strong> se encontram to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e que <strong>de</strong>ve ser acionado para<br />

<strong>da</strong>li retirá-las, mesmo que <strong>de</strong>sse mundo as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s saiam murchas, como “la flor<br />

marchita”, não importa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sejam claras e evi<strong>de</strong>ntes. O outro mundo é o<br />

mundo real, o mundo <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s concretas. Há um mundo essencial, on<strong>de</strong> está<br />

a essência <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, e outro no qual o hom<strong>em</strong> transita, e<br />

com o qual contacta. A esse mundo <strong>da</strong>s essências e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o chamavam, os<br />

envolvidos no episódio <strong>de</strong> “la cueva”, <strong>de</strong> “outro mundo”.<br />

Assim, o <strong>de</strong>sdobramento mostra que, além <strong>de</strong> dois mundos, há também dois<br />

“outros mundos”.<br />

A diferença está <strong>em</strong> que, com a experiência <strong>em</strong> “la cueva”, Dom Quixote<br />

<strong>de</strong>scobre que um <strong>de</strong>sses “outros mundos”, aquele pelo qual tanto lutara no 1º.<br />

Périplo para preservar, esse mundo está fora do hom<strong>em</strong>; como o com<strong>pro</strong>va<br />

“Guadiana”. O segundo “outro mundo” se localiza <strong>de</strong>ntro do próprio hom<strong>em</strong>. Os<br />

diferencia só um <strong>de</strong>talhe que é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m do esforço que se t<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r para<br />

alcançá-lo, num e noutro caso.<br />

Se, do primeiro “outro mundo” – o mundo <strong>da</strong> idéias, bastava um centramento<br />

do olhar, para que se captasse, com a alma, o que ca<strong>da</strong> coisa trazia e oferecia <strong>de</strong><br />

511 Foi tanto o pesar que sentiu <strong>de</strong> ver que os <strong>de</strong>ixava (2, XXIII, p.448)


sua essência, <strong>em</strong>bora <strong>de</strong> forma meio vela<strong>da</strong>, e que nessa essência capta<strong>da</strong> estava<br />

a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; do segundo “outro mundo” – o pensamento cartesiano”, para <strong>de</strong>le<br />

arrancar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, era preciso um gran<strong>de</strong> esforço, porque o pensamento precisa<br />

tomar a “coisa” e submetê-la aos esqu<strong>em</strong>as do seu tão po<strong>de</strong>roso pensamento, para<br />

<strong>de</strong>la arrancar o que nela há <strong>de</strong> essencial. Isso acontece porque, só esse “arrancado”<br />

será a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. E que <strong>de</strong>sse arrancado, po<strong>de</strong>-se s<strong>em</strong>pre arrancar mais e mais<br />

“arrancados”, mais e mais ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ao limite máximo.<br />

A gran<strong>de</strong> diferença entre um “outro mundo” e o outro “outro mundo” é que,<br />

enquanto num, a abstração é <strong>de</strong>clara<strong>da</strong> como fun<strong>da</strong>mento, <strong>de</strong>scartando-se a coisa;<br />

no outro “outro mundo”, a abstração é escamotea<strong>da</strong>: apesar <strong>de</strong> Descartes<br />

reconhecer a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> sensível partícipe do <strong>pro</strong>cesso do conhecimento, no fundo,<br />

essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> acaba sendo <strong>de</strong>scarta<strong>da</strong>. Até porque, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> submeti<strong>da</strong> aos<br />

rigores do pensamento, acaba tão violenta<strong>da</strong>, tão <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>ça<strong>da</strong> que é impossível<br />

recompô-la, <strong>de</strong>la restando na<strong>da</strong> mais do que pura abstração.<br />

Essa lição que obteve na prática, no interior <strong>de</strong> “la cueva”, a viveu enquanto<br />

experiência experiencia<strong>da</strong>, haja vista o quanto dialogou com Montesinos. Só assim,<br />

foi possível sair <strong>de</strong> “la cueva”-caverna com essa gran<strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Entretanto, faltava-<br />

lhe ain<strong>da</strong> checar como to<strong>da</strong> aquela ver<strong>da</strong><strong>de</strong> encontrava ressonância fora <strong>da</strong><br />

caverna.<br />

É quando dirige o olhar já bastante sensibilizado, a seu entorno, perguntando:<br />

E os outros homens, on<strong>de</strong> estão?<br />

Dom Quixote precisa reencontrá-los. Como bom hermeneuta, não preten<strong>de</strong> e<br />

não po<strong>de</strong> “atropelar a diferença”, mas <strong>de</strong>la precisa falar aos homens. Parece que<br />

acertamos na opção interpretativa conti<strong>da</strong> no alerta <strong>de</strong> Dom Quixote: “no soy loco en


lo que hablo”, 512 Pelo menos nesse primeiro estágio, está cont<strong>em</strong>pla<strong>da</strong> nossa<br />

interpretação: <strong>em</strong>bora signifique um simples anunciar, para todos, sua <strong>de</strong>scoberta no<br />

interior <strong>de</strong> “la cueva”, merece cui<strong>da</strong>do especial. Afinal, é preciso que todos nele<br />

acredit<strong>em</strong>.<br />

3 DOM QUIXOTE E SUA TAREFA<br />

Aquele t<strong>em</strong>or somente aventado como hipótese, no 1º. Périplo, que o motivou<br />

a abandonar a leitura e a optar pela cavalaria, só agora po<strong>de</strong> Dom Quixote<br />

compreen<strong>de</strong>r o que na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> era. Não era t<strong>em</strong>or, mas angústia, esta também<br />

apresenta<strong>da</strong> no 1º. Périplo como a experiência mais radical vivi<strong>da</strong> pelo hom<strong>em</strong>. Para<br />

enten<strong>de</strong>rmos o que é angústia, na<strong>da</strong> melhor do que recorrer a Hei<strong>de</strong>gger e aos<br />

S<strong>em</strong>inários <strong>de</strong> Zollikon, 513 quando, ao dialogar com psiquiatras e psicanalistas,<br />

Hei<strong>de</strong>gger colocou <strong>em</strong> evidência nosso vínculo <strong>pro</strong>fundo com o não-ser e a angústia<br />

que é constitutiva <strong>da</strong> existência do hom<strong>em</strong> sobre a terra. Não se trata do medo <strong>da</strong><br />

morte, mas sim do horror do na<strong>da</strong>, aquele na<strong>da</strong> sobre o qual o ser do hom<strong>em</strong> se<br />

fun<strong>da</strong>menta. Po<strong>de</strong> parecer estranho que Dom Quixote tenha experienciado duas<br />

angústias, entretanto, isso é perfeitamente cabível. Consi<strong>de</strong>rando que o ciclo <strong>da</strong><br />

Cura jamais se esgota, o viver a radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> angústia não po<strong>de</strong> ser único entre a<br />

vi<strong>da</strong> e a morte. Além disso, a mu<strong>da</strong>nça <strong>em</strong>preendi<strong>da</strong> por Dom Quixote, que lhe <strong>de</strong>u<br />

orig<strong>em</strong> como ser ficcional, é radical o suficiente que mereça ser classifica<strong>da</strong> como<br />

<strong>de</strong>-cisão.<br />

512 Não sou louco naquilo que falo.<br />

513 HEIDEGGER, M. S<strong>em</strong>inários <strong>de</strong> Zollikon. Editado por Me<strong>da</strong>r Boss. Trad. Gabriela Arnhold e Maria <strong>de</strong> Fátima <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong><br />

Prado. Petrópolis: Vozes, 2001.


A experiência do “na<strong>da</strong>” encontra parâmetro no taoísmo que diz estar a<br />

essência <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>, não <strong>em</strong> seus raios, mas sim no “na<strong>da</strong>”, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se distribu<strong>em</strong> os<br />

raios, o vazio central que constitui a essência <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>.<br />

Compreen<strong>de</strong>ndo sua orig<strong>em</strong>, agora Dom Quixote compreen<strong>de</strong> sua angústia, a<br />

sua e a <strong>de</strong> todos: estando o mundo fragmentado <strong>em</strong> paradoxos incompreensíveis,<br />

<strong>em</strong> oposições irr<strong>em</strong>ediavelmente separa<strong>da</strong>s, aquela “falta” menciona<strong>da</strong> na<br />

introdução, que precisava ser preenchi<strong>da</strong>; preenchimento loucamente buscado e<br />

conquistado, <strong>em</strong> Cura, permanece. O vazio permanece.<br />

Segundo o Dicionário Aurélio, “paradoxo” significa “contradição, pelo menos<br />

na aparência”. 514 Seu significado mais comum abre para uma melhor compreensão:<br />

“pelo menos na aparência” conduz <strong>à</strong> não-crença na contradição que ele encerra. Se<br />

essa contradição não é compreendi<strong>da</strong> na aparência, isso se <strong>de</strong>ve <strong>à</strong> “postura<br />

epist<strong>em</strong>ológica <strong>de</strong> tudo abranger cientificamente”, como aponta o conceito <strong>de</strong><br />

“Interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong>”, na tentativa <strong>de</strong> contornar algo cientificamente. Seu sentido<br />

mais pleno, no entanto, é “doxo” – “ensino e conhecimento do [...] ‘para’ – entre, que<br />

está junto”.<br />

Isso acontece porque o hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sair <strong>da</strong> <strong>pro</strong>teção <strong>de</strong> Deus, que o<br />

sustentara por todo o horizonte medieval [teológico-cristão], per<strong>de</strong>u-se no caminho e<br />

custou a reencontrar seu lugar. V<strong>em</strong>os o hom<strong>em</strong> no Renascimento tentando ocupar<br />

com o humanismo crescente o lugar <strong>de</strong>ixado vazio, encastelando-se no centro do<br />

mundo e achando que po<strong>de</strong>ria dispor <strong>de</strong>le a seu bel-prazer. Na condição nascente<br />

<strong>de</strong> sujeito, via <strong>em</strong> si mesmo a garantia <strong>de</strong> to<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Acontece que precisou que muito t<strong>em</strong>po passasse para <strong>da</strong>r-se conta <strong>de</strong> que<br />

estivera equivocado: esse não era ain<strong>da</strong> o seu lugar. E, fora do lugar, não há como<br />

514 HOLANDA, Aurélio Buarque <strong>de</strong>. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1494


viver a maior gran<strong>de</strong>za <strong>em</strong> sua plenitu<strong>de</strong>. A menos que se queira viver uma mera<br />

“vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong>”. Desse modo, só se vive a vi<strong>da</strong>, enquanto pura ânsia <strong>de</strong> preenchimento,<br />

s<strong>em</strong> que este se torne viável.<br />

E por que não é viável? Em primeiro lugar, não é viável porque o hom<strong>em</strong> está<br />

esquecido do ser. E, esquecido do ser, não se <strong>de</strong>scobre como abertura. Depois,<br />

porque, junto com o mundo, está também cindido <strong>em</strong> opostos <strong>de</strong>sconcertantes, 515 e<br />

sequer lhe sobra espaço livre para ser preenchido. Esse espaço, por sua vez, na<br />

corri<strong>da</strong> <strong>de</strong> implantação e <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> significados, <strong>de</strong> tal modo precisou fechar-se e<br />

contornar-se que virou conceito frio, petrificado. Compreen<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong>, 516 ain<strong>da</strong>, o<br />

t<strong>em</strong>or do vazio chegando ao limite máximo <strong>da</strong> angústia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> repeti<strong>da</strong>mente<br />

burlar e burlar-se <strong>em</strong> tédio.<br />

Compreen<strong>de</strong> que homens vazios, cheios <strong>de</strong> um “na<strong>da</strong>” avassalador, se<br />

esforc<strong>em</strong> <strong>em</strong> preenchê-lo. E se esforçam efetivamente; tão efetivamente que, na<br />

urgência, se antecipam ao “<strong>de</strong>ixar-ser”, pondo <strong>em</strong> movimento o pensamento como<br />

uma indústria que <strong>pro</strong>duz e fabrica.<br />

Sabedor <strong>de</strong> que t<strong>em</strong> o com<strong>pro</strong>misso <strong>de</strong> <strong>da</strong>r conta do mundo e explicá-lo,<br />

tornando claras e distintas to<strong>da</strong>s as coisas, o hom<strong>em</strong> se entrega diligent<strong>em</strong>ente a<br />

um fazer.<br />

Mas <strong>de</strong> on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> essa entrega, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> esse fazer irrefreado?<br />

Primeiro compreen<strong>da</strong>mos como os paradoxos <strong>de</strong>sestabilizam o hom<strong>em</strong>. O<br />

pensar metafísico engessa o mundo, o mundo engessado, por sua vez, engessa o<br />

hom<strong>em</strong>. S<strong>em</strong> o “entre”, as coisas do mundo dispensam o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> seu lugar <strong>de</strong><br />

515 Este jogo <strong>de</strong> paradoxos será retomado no 3 o Périplo, quando abor<strong>da</strong>r<strong>em</strong>os a questão <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte.<br />

516 Qu<strong>em</strong> tudo isso está compreen<strong>de</strong>ndo é o hom<strong>em</strong> do Oci<strong>de</strong>nte que está <strong>em</strong> crise, hom<strong>em</strong> do qual Dom Quixote é imag<strong>em</strong>questão.<br />

Dom Quixote um hom<strong>em</strong> que, aten<strong>de</strong>ndo ao apelo do ser, está traçando um caminho possível, um modo <strong>de</strong><br />

respon<strong>de</strong>r <strong>à</strong> pergunta essencial que a ele está sendo lança<strong>da</strong>, pergunta que só a ele cabe respon<strong>de</strong>r, pois se a ele lhe<br />

correspon<strong>de</strong> a abertura, porque só a ele cabe o lugar <strong>de</strong> “entre-ser”. Como Dom Quixote, outros homens, ao longo <strong>da</strong> história<br />

do Oci<strong>de</strong>nte também se movimentaram nessa direção. Muitos homens, <strong>em</strong> momentos <strong>de</strong> crise, movidos pela disposição, ou<br />

seja, pelo modo como o mundo se apresentava <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminado momento, encontravam, nessa disposição, a abertura que os<br />

impeliria <strong>em</strong> direção ao ser, a abertura que era o próprio chamado do ser, chamado que aten<strong>de</strong>ram todos, respon<strong>de</strong>ndo <strong>à</strong><br />

questão que os tomou, ca<strong>da</strong> um <strong>à</strong> sua maneira. Momentos <strong>de</strong> crise são s<strong>em</strong>pre movidos pela disposição que o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> época, estando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre na abertura, vai abrir mundo, pois a crise já é o próprio apelo do ser.


“entre-ser”. Dispensado <strong>de</strong> seu lugar <strong>de</strong> “entre-ser”, per<strong>de</strong> sentido sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

per<strong>de</strong>-se o <strong>em</strong>penho <strong>de</strong> ser.<br />

Retomando material recolhido <strong>em</strong> vários textos, torn<strong>em</strong>os mais esclarecedora<br />

a questão, 517 viver é mover-se no “entre”, é o “vi” fazendo-se tensão com o “ver”.<br />

Esse é o viver-experienciar, é viver e conhecer, movido pelo <strong>em</strong>penho <strong>de</strong> ser, que é<br />

o <strong>em</strong>penho maior, o penhor <strong>de</strong> nossas <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>s.<br />

O “entre” não é na<strong>da</strong> a priori, é espaço aberto, vazio entre conceitos e teorias,<br />

é interstício, o incontornável que abre e não fecha, mantendo livre o acesso ao<br />

originário. É isso que nele guar<strong>da</strong> todo vigor, fazendo possível que reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s do<br />

que já é, no vigor do que ain<strong>da</strong> não é, sejam mais possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Nesse caso, as oposições, no livre acesso ao ser, não se anulam. Fechando-<br />

se <strong>em</strong> conceitos, entretanto, fecham-se os paradoxos.<br />

O conhecimento não é o claro que foi arrancado do escuro. No “entre” do<br />

pensamento, o conhecimento é o já pensado; mas esse já pensado é o máximo <strong>da</strong><br />

retração, é o máximo do velado.<br />

O “<strong>de</strong>svelado” é só <strong>de</strong>svelado: isso significa que não é na<strong>da</strong> do velado, não<br />

t<strong>em</strong> na<strong>da</strong> do que ficou velado, por isso é o grau máximo do velado, o grau máximo<br />

do ser; nele está, <strong>em</strong> todo vigor, o velado.<br />

Há diferença fun<strong>da</strong>mental entre o “entre” do conhecer e o “entre” do pensar: o<br />

“entre do conhecer só t<strong>em</strong>, como meta, o “sendo”, o que já é conhecido. Ser, acaba<br />

sendo o ser que é conhecido. No “entre” do pensar, entretanto, o ser se <strong>de</strong>ixa atrair<br />

pelo ser que não é, e, então, o originário se dá.<br />

A essência do hom<strong>em</strong> é o “entre”, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> é o “entre”.<br />

517 Esses textos são, <strong>em</strong> sua maioria, os publicados por Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro, como suporte para as aulas. A<br />

concentração maior está, no entanto, <strong>em</strong>: CASTRO, M. A. <strong>de</strong>. Interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong> poética: o “entre”, Revista T<strong>em</strong>po<br />

Brasileiro, Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, n.164, p.7-37, 2006.


Por sua localização subterrânea e escondi<strong>da</strong>, “la cueva” sugere o máximo <strong>de</strong><br />

velamento que, cheio <strong>de</strong> vigor, escon<strong>de</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Muita ver<strong>da</strong><strong>de</strong> ali se escondia;<br />

inclusive a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do cavaleiro com qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>veria travar batalha final. É por isso<br />

que se reconhece, na experiência <strong>de</strong> “la cueva”, um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro “experienciar”, um<br />

gran<strong>de</strong> rito <strong>de</strong> passag<strong>em</strong> que há muito aguar<strong>da</strong>va Dom Quixote e, pelo qual sabia<br />

precisar passar, como se fosse um <strong>de</strong>stino, s<strong>em</strong> a mínima possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>le<br />

fugir, porque não haverá como “evitar lo que por el cielo está or<strong>de</strong>nado” 518 .<br />

O <strong>de</strong>stino histórico do Oci<strong>de</strong>nte é o acabamento <strong>da</strong> metafísica, através do<br />

po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> técnica. A época atual <strong>de</strong>termina para os homens uma forma própria <strong>de</strong><br />

li<strong>da</strong>r com a vi<strong>da</strong>, exclusivamente objetivista e <strong>de</strong>terminista, bloqueadora <strong>de</strong> outros<br />

horizontes mais primordiais <strong>à</strong> condição humana, como a dimensão poética e<br />

criadora. O cientificismo e niilismo, como <strong>de</strong>stino historial inescapável <strong>da</strong> trajetória<br />

<strong>da</strong> metafísica, é a batalha anuncia<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma trajetória inicia<strong>da</strong> com Platão e seu<br />

modo <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação do ente e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que passaria por diferentes<br />

configurações na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média e na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> até sua face final. Mas como<br />

escapar <strong>de</strong> todos os encantamentos, seduções e comodi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que a técnica<br />

oferece?<br />

Também a batalha <strong>de</strong> Dom Quixote é uma batalha anuncia<strong>da</strong>. Seu inimigo<br />

também t<strong>em</strong> seus encantos. Aquela legião que há muito fazia suas aparições tinha<br />

po<strong>de</strong>res superiores, s<strong>em</strong>elhantes aos i<strong>de</strong>ntificados como mágicos pela I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média,<br />

já se registravam suas aparições com a intermediação <strong>de</strong> um sábio “un encantador<br />

que vino sobre una nube una noche [...] apeándose <strong>de</strong> una sierpe”, saía “volando<br />

por el tejado”, e, quando saía, <strong>de</strong>ixava a casa que era pura fumaça, “llena <strong>de</strong> humo”.<br />

Num passe <strong>de</strong> mágica, <strong>de</strong>ra fim <strong>à</strong> biblioteca e, “cuando acor<strong>da</strong>mos a mirar lo que<br />

518 Evitar o que pelo céu está or<strong>de</strong>nado (1, VII, p.44)


<strong>de</strong>jaba hecho, no vimos libro ni aposento alguno”. A ama <strong>de</strong> Dom Quixote a esse<br />

sábio encantador se refere como um “mal viejo” 519 .<br />

Só cercado por esses seres, o cavaleiro misterioso po<strong>de</strong>ria passar pelo<br />

mundo meio <strong>de</strong>sapercebido. Nunca se sabia exatamente on<strong>de</strong> estava; agia s<strong>em</strong>pre<br />

através dos outros: sábios, gênios, etc. Qu<strong>em</strong> sabe não eram todos [gênios e<br />

sábios], ele mesmo, com todos os seus disfarces?<br />

Por isso, <strong>de</strong>ntre as experiências experiencia<strong>da</strong>s no diálogo com Montesinos,<br />

<strong>em</strong> “la cueva”, está a seguinte: Dom Quixote <strong>de</strong>scobre que, <strong>em</strong> seu interior, há<br />

também um sábio; não ain<strong>da</strong> com muita precisão, mas já consegue i<strong>de</strong>ntificá-lo <strong>em</strong><br />

linhas gerais. Até então, só tivera contato com o sábio “Frestón”.<br />

Dom Quixote, <strong>de</strong>le só tinha sabido, no <strong>de</strong>saparecimento misterioso <strong>de</strong> sua<br />

biblioteca. Ficara sabendo que teria <strong>de</strong> lutar com um cavaleiro, “an<strong>da</strong>ndo los ti<strong>em</strong>pos<br />

[...] en batalla singular” que não po<strong>de</strong>rá ser evita<strong>da</strong> porque “por el cielo está<br />

or<strong>de</strong>nado”. 520 Se é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>em</strong> “la cueva” há também um sábio, qu<strong>em</strong> sabe não<br />

é o mesmo Frestón, ou o próprio cavaleiro, ambos <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente disfarçados, o<br />

cavaleiro misterioso que mais <strong>de</strong>talhes lhe pu<strong>de</strong>sse <strong>da</strong>r?<br />

Depois <strong>de</strong> ter ido <strong>à</strong>s <strong>pro</strong>fun<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> “la cueva”, talvez possa especular na<br />

atribuição <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do cavaleiro singular com qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>verá lutar: po<strong>de</strong> ser a<br />

razão, o pensamento metafísico ou a técnica que, mesmo sendo <strong>de</strong>sdobramento do<br />

pensar metafísico, parece ter-se transformado no mais ameaçador adversário <strong>de</strong>ntre<br />

todos os <strong>de</strong>mais. O que fica claro e que, realmente é significativo é o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

essa batalha já está marca<strong>da</strong>: aquele inocente “mal viejo”, com que a ama i<strong>de</strong>ntifica<br />

o sábio encantador, nos coloca na linha do t<strong>em</strong>po, assinalado pela chancela do<br />

platonismo.<br />

519 Um feiticeiro que veio sobre uma nuv<strong>em</strong> certa noite [...] <strong>de</strong>smontando <strong>de</strong> uma serpente [saía] voando pelo telhado [e (...)<br />

pura fumaça,] cheia <strong>de</strong> fumaça. [Num (...) biblioteca e,] quando l<strong>em</strong>bramos <strong>de</strong> olhar o que havia feito, não vimos livro n<strong>em</strong><br />

aposento algum. [A ama (...) como um] velho ruim. (1, VII, p.43)<br />

520 An<strong>da</strong>ndo os t<strong>em</strong>pos [...] <strong>em</strong> singular batalha [que não (...) porque] pelo céu está or<strong>de</strong>nado (1, VII, p.44)


Deix<strong>em</strong>os que o t<strong>em</strong>po, que antece<strong>de</strong> a batalha, isso <strong>de</strong>ci<strong>da</strong>. Como não<br />

sab<strong>em</strong> sequer o motivo pelo qual estão encantados, <strong>em</strong> “la cueva”, tanto Montesinos<br />

assim também sugere: que só no t<strong>em</strong>po, isso será dito “y ello dirá an<strong>da</strong>ndo los<br />

ti<strong>em</strong>pos”, como o próprio Dom Quixote, quando pacient<strong>em</strong>ente assim explica a<br />

Sancho: “an<strong>da</strong>rá el ti<strong>em</strong>po [...] y yo te contaré”. (grifos nossos)<br />

4 TÁ DOMINADO, TÁ TUDO DOMINADO<br />

O título <strong>de</strong>ste it<strong>em</strong> é um misto <strong>de</strong> um verso “funk”, manifestação, talvez<br />

inconsciente, mas espontânea do povo: o mesmo povo do qual Dom Quixote é<br />

imag<strong>em</strong>-questão, e um fragmento retirado do artigo A vigência do poético na<br />

regência do virtual, publicado por Emmanuel Carneiro Leão, no livro organizado por<br />

Manuel Antonio <strong>de</strong> Castro – A construção poética do real.<br />

“Está <strong>dom</strong>inado, está tudo <strong>dom</strong>inado”. Com esse verso, Emmanuel Carneiro<br />

Leão alu<strong>de</strong> <strong>à</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ir-se “direto ao fundo <strong>da</strong> técnica”. Reflete, entretanto,<br />

no quanto esse fundo já alcançou a superfície <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas, mesmo aquelas<br />

com aparência radicalmente diferente <strong>da</strong> técnica, por já ter “se apo<strong>de</strong>rado e haver<br />

controlado”, s<strong>em</strong> nenhuma reserva. 521<br />

Nesse artigo, o centro está no virtual com o qual a técnica t<strong>em</strong> também<br />

<strong>dom</strong>inado o hom<strong>em</strong> “<strong>de</strong> alto a baixo”, afetando a Linguag<strong>em</strong>. É claro que esse é<br />

consi<strong>de</strong>rado o grau máximo <strong>da</strong> questão que não se po<strong>de</strong> ignorar: a questão <strong>da</strong><br />

essência <strong>da</strong> técnica. É também, do mesmo modo que ameaçadora, um “<strong>de</strong>scontrole<br />

521 LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio <strong>de</strong> (Org.). A<br />

construção poética do real. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2004, p.83-84.


salvador”, na medi<strong>da</strong> que “nos po<strong>de</strong>rá advertir para a originali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

coisas, salvando-se a essência inventiva <strong>de</strong> nossa humani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s repetições<br />

monótonas e s<strong>em</strong> surpresas [...].” 522<br />

Embora fosse nossa intenção cobrir todos os setores on<strong>de</strong> a técnica nos<br />

<strong>dom</strong>ina, e a obra é um fértil terreno para isso, por necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> contenção,<br />

selecionamos somente dois: a ética e o hom<strong>em</strong>. Por isso não a<strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>r<strong>em</strong>os a<br />

virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> aqui, retomando-a no 3 o Périplo, quando <strong>de</strong>verá pagar<br />

tributo <strong>à</strong> linguag<strong>em</strong> poética.<br />

Entretanto, chamamos a atenção para o que está realmente agora <strong>em</strong><br />

questão: a “face oculta <strong>da</strong> técnica”, a essência <strong>da</strong> técnica, on<strong>de</strong> a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />

<strong>pro</strong>voca<strong>da</strong> a fazer-se disponível e a tornar operativa to<strong>da</strong> sua energia <strong>de</strong> realização”.<br />

4.1 A TÉCNICA DOMINA A ÉTICA<br />

Nas histórias que povoam o universo espanhol com t<strong>em</strong>as recorrentes,<br />

pressente-se a falta <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. A ca<strong>da</strong><br />

passo, Dom Quixote se <strong>de</strong>para com uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que o obriga a refletir. Se estamos<br />

falando <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao apresentar-nos a Ética <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, Emmanuel Carneiro<br />

Leão mostra como ela está intimamente liga<strong>da</strong> ao agir do hom<strong>em</strong> no mundo e <strong>de</strong><br />

como agir e liber<strong>da</strong><strong>de</strong> se relacionam reci<strong>pro</strong>camente.<br />

Repensar a ação <strong>em</strong> sua raiz é pensá-la <strong>em</strong> relação ao ser. Numa ação<br />

relaciona<strong>da</strong> ao fazer, entretanto, sente-se o entroncamento <strong>da</strong> técnica alcançando e<br />

522 LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio <strong>de</strong> (Org.).<br />

A construção poética do real. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2004, p.84.


interferindo na concepção ética: “Está <strong>dom</strong>inado, está tudo <strong>dom</strong>inado”; 523 <strong>em</strong> todos<br />

os <strong>dom</strong>ínios, todos estão <strong>dom</strong>inados. Até o hom<strong>em</strong>, assumindo a posição <strong>de</strong> sujeito<br />

<strong>dom</strong>inador <strong>de</strong> objetos, vira também objeto, <strong>em</strong> suas próprias mãos <strong>de</strong> algoz. Com a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> vela<strong>da</strong>, encobre-se o ser irr<strong>em</strong>ediavelmente.<br />

Não tão irr<strong>em</strong>ediável parece a Hei<strong>de</strong>gger, que <strong>pro</strong>põe uma reversão: alerta o<br />

hom<strong>em</strong> para a falácia <strong>de</strong> uma ação pauta<strong>da</strong> na razão e no fazer técnico; diz que ,<br />

muito antes <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> perseguir um agir irrefreado que sustentasse uma também<br />

irrefrea<strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> querer afirmar-se com seu fazer sobre o real, muito antes<br />

disso, um acesso <strong>à</strong> orig<strong>em</strong> primogênita já s<strong>em</strong>pre se <strong>de</strong>ra. Mas o irrefreado<br />

permanece, com a vitória estonteante do “antropos”, “<strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> não se sente<br />

apenas amo e senhor <strong>da</strong> natureza, mas se enten<strong>de</strong>, sobretudo, como mestre e dono<br />

<strong>de</strong> si mesmo e dos outros todos” 524 .<br />

Todos estavam ansiosos por novi<strong>da</strong><strong>de</strong> s<strong>em</strong> se <strong>da</strong>r<strong>em</strong> conta <strong>de</strong> que o evento,<br />

que traz a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, acontece no t<strong>em</strong>po, inespera<strong>da</strong>mente, na li<strong>da</strong> do cotidiano. É do<br />

<strong>pro</strong>saico que sa<strong>em</strong> as gran<strong>de</strong>s revelações. Foi Emmanuel Carneiro Leão qu<strong>em</strong>, na<br />

<strong>em</strong>ergência, socorreu Dom Quixote. Por seu intermédio, contar<strong>em</strong>os uma história.<br />

Diz Aristóteles que aconteceu com Heráclito, quando num inverno, alguns turistas o<br />

visitaram.<br />

Nessa história, Dom Quixote i<strong>de</strong>ntificou-se totalmente com todos aqueles<br />

personagens. São os mesmos com qu<strong>em</strong> já tinha se encontrado no 1º. Périplo,<br />

vítimas todos <strong>da</strong> <strong>de</strong>cadência. É claro que ali, a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>de</strong>ra mais intimamente<br />

no falatório, o que não excluiu o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar cíclico <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong><br />

ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Do mesmo modo que no 1º. Périplo, todos estavam movidos pelo<br />

interesse <strong>da</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong>: “ver ao vivo” um autêntico pensador <strong>em</strong> seu habitat era<br />

523<br />

LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio <strong>de</strong> (Org.).<br />

A construção poética do real. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2004, p.73.<br />

524<br />

I<strong>de</strong>m. Hei<strong>de</strong>gger e a ética. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, n.157, p. 70, abr-jun, 2004


<strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente interessante para ser barrado pela curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim, correram<br />

todos ávidos <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>cepcionaram-se ao ver tão ilustre figura na<br />

intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> do seu lar, na instrumentali<strong>da</strong><strong>de</strong> mais radical, cercado <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos do<br />

cotidiano. Assim se encontrava Heráclito, perto <strong>de</strong> seu forno <strong>à</strong> lenha, assando pães.<br />

Mais <strong>dom</strong>éstico, impossível!<br />

Dom Quixote, entretanto, ficara atento a uma parte do relato, aquela que diz:<br />

“Todo questionamento não visa eliminar, mas a<strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>r a pergunta” 525 . Tomamos,<br />

como ex<strong>em</strong>plo, o quadro apresentado por Emanuel Carneiro Leão que traça o perfil<br />

<strong>da</strong> ética na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna: “Ao longo dos últimos cinco séculos, os mo<strong>de</strong>rnos<br />

elaboraram padrões <strong>de</strong> comportamento e construíram mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> ação para<br />

assegurar valores e garantir práticas <strong>de</strong> relacionamento” 526 . A partir <strong>de</strong>sse fragmento<br />

textual, po<strong>de</strong>mos pensar que um retorno <strong>em</strong>preendido por Dom Quixote <strong>de</strong>veu-se a<br />

uma sinalização quanto aos riscos <strong>da</strong> nova ética que mostra sua redução quase<br />

exclusiva ao interesse.<br />

A ética se concentra nas seguintes questões: os modos <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> agir dos<br />

homens e do ser, e do realizar-se <strong>de</strong> indivíduos, grupos e instituições. Essas<br />

questões vêm se apresentando ciclicamente, ao longo <strong>de</strong> cinco séculos, e, a partir<br />

<strong>de</strong>las, <strong>de</strong>cisões têm sido toma<strong>da</strong>s e atos praticados. Além disso, a ética também é<br />

usa<strong>da</strong> como condição <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do conhecimento. Hei<strong>de</strong>gger e Wittgenstein<br />

se opõ<strong>em</strong> a essas formulações. Hei<strong>de</strong>gger, particularmente, apresenta questões<br />

radicais que conduz<strong>em</strong> a visão ética para outros caminhos.<br />

Surpreen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, a ética acabou também cativa <strong>da</strong> metafísica, per<strong>de</strong>ndo<br />

sua dimensão originária. Ain<strong>da</strong> que pareça distante, a ética está relaciona<strong>da</strong> com o<br />

ser e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em seu posto metafísico, a ética vira a fonte-raiz que se localiza<br />

525 LEÃO, Emmanuel Carneiro – Hei<strong>de</strong>gger e a ética. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, n.157,<br />

p. 73, abr-jun, 2004<br />

526 Ibi<strong>de</strong>m, p.65


num lugar próprio do qual somos apenas caminho. Desse modo, antes <strong>de</strong> significar<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e realização, torna-se obstáculo. Emmanuel Carneiro Leão cita Pín<strong>da</strong>ro,<br />

convi<strong>da</strong>ndo-nos a sermos éticos: “Torna-te o que já és, apren<strong>de</strong>ndo com a<br />

experiência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”. Ser ético então, parece simples; basta viver a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser, e<br />

isso acontece no cotidiano, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> viva do relacionamento, on<strong>de</strong> a fonte-raiz<br />

está disponível para todos e <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> um.<br />

Não precisamos buscar caminhos para chegarmos <strong>à</strong> fonte, uma vez que,<br />

somos a fonte. Em Cartas sobre o humanismo 527 , Hei<strong>de</strong>gger a<strong>pro</strong>xima as duas: ética<br />

e ações. Isso porque a ação não foi ain<strong>da</strong> pensa<strong>da</strong> <strong>de</strong> modo <strong>de</strong>cisivo. O agir só é<br />

conhecido como <strong>pro</strong>dutor <strong>de</strong> efeito; efeito esse efetivo e utilitário. Hei<strong>de</strong>gger, então,<br />

trata do agir <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>cisiva, apresentando sua essência como “consumar”.<br />

Consumar o quê? Pín<strong>da</strong>ro já o tinha dito: consumar o que já é e está sendo, e isso<br />

se faz com o pensar. O pensamento não faz n<strong>em</strong> re<strong>pro</strong>duz na<strong>da</strong>; o pensamento<br />

simplesmente restitui ao ser a referência do ser que lhe foi entregue pelo próprio ser.<br />

Tal restituição se dá na linguag<strong>em</strong> porque a linguag<strong>em</strong> é a casa do ser. Só no<br />

pensamento o ser vira linguag<strong>em</strong>, porque a linguag<strong>em</strong> é o lugar on<strong>de</strong> o ser é, a<br />

linguag<strong>em</strong> é o lugar on<strong>de</strong> o ser po<strong>de</strong> acontecer, manifestando-se pelo dizer.<br />

Esse <strong>pro</strong>cesso conta com dois ilustres sentinelas: o pensador e o poeta. Eles<br />

primam pela vigilância, são os gran<strong>de</strong>s vigias, são pastores; são os que levam a<br />

manifestação do ser para a linguag<strong>em</strong>.<br />

Não há dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que, do mesmo modo que Dom Quixote, todos na Espanha<br />

estão <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura, <strong>pro</strong>vavelmente, também como Dom Quixote, loucos <strong>em</strong><br />

suas ações, equivocados <strong>em</strong> seu agir.<br />

Dom Quixote, no entanto, já é capaz <strong>de</strong> reconhecer as duas faces do agir,<br />

sabe que é uma <strong>de</strong>ssas faces que, por tantos “<strong>de</strong>testables siglos”, obstaculiza os<br />

527 HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, 1995.


caminhos <strong>da</strong> <strong>cura</strong>. Ele conhece a diferença - “Soy loco en mis acciones, pero no soy<br />

loco en lo que hablo” 528 e, por isso, quer avisar que sabe ser vítima do agir<br />

interferido pela ética do fazer.<br />

Foi um olhar ao redor; foi um diálogo com o outro; foi, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o outro que<br />

tornou possível essa consciência. Dom Quixote saiu por Espanha e pôs-se <strong>em</strong><br />

diálogo com o mundo. E encontrou todos <strong>em</strong>penhados num fazer-fabricante <strong>de</strong><br />

artefatos, num industriar e maquinar do pensamento.<br />

Viu e ouviu Anselmo, recém-casado e feliz que, contaminado pelos <strong>pro</strong>cessos<br />

<strong>de</strong> pensamento do agir <strong>da</strong> ciência, maquina uma estratégia perversa envolvendo sua<br />

esposa e seu melhor amigo: só sabia que sua esposa era boa porque esta não<br />

tivera, até então, nenhuma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser má.<br />

Parecendo-lhe não ser isso suficiente, crê precisar <strong>de</strong>la arrancar 529 mais<br />

conhecimento. Propõe então que seu melhor amigo a seduza, para que se possa<br />

<strong>de</strong>la extrair mais ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Submetendo-a a laboratório, seria possível verificar sua<br />

faceta <strong>de</strong> traidora pérfi<strong>da</strong>, ou não. Isso lhe parecia fun<strong>da</strong>mental. E assim fez,<br />

acreditando ser possível, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> submetidos todos ao <strong>pro</strong>cesso esfacelador <strong>da</strong><br />

análise, o mesmo que, segundo Dom Quixote, murchou “la flor <strong>de</strong>l campo”, refazer o<br />

<strong>pro</strong>cesso, recompondo to<strong>da</strong>s as partes até chegar a uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> final.<br />

Po<strong>de</strong>riam todos ter voltado atrás: a Anselmo não foram suficientes os alertas<br />

<strong>de</strong> seu amigo Lotario, tentando <strong>de</strong>movê-lo:<br />

Parec<strong>em</strong>e, !oh Anselmo!, que tienes tú ahora el ingenio como el que<br />

si<strong>em</strong>pre tienen los moros, a los cuales no se les pue<strong>de</strong> <strong>da</strong>r a enten<strong>de</strong>r el<br />

error <strong>de</strong> su secta con las acotaciones <strong>de</strong> la Santa Escritura, ni con razones<br />

que consistan <strong>em</strong> especulación <strong>de</strong>l entendimiento, ni que vayan fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

en artículos <strong>de</strong> fe, sino que les han <strong>de</strong> traer ej<strong>em</strong>plos palpables, fáciles,<br />

inteligibles, <strong>de</strong>mostrativos, indubitables, con <strong>de</strong>mostraciones mat<strong>em</strong>áticas<br />

528 Sou louco <strong>em</strong> meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.<br />

529 O verbo arrancar é usado intencionalmente para marcar a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> ansiosa com que o hom<strong>em</strong>, equivoca<strong>da</strong>mente, na<br />

condição <strong>de</strong> sujeito, acredita po<strong>de</strong>r lançar-se sobre o objeto. De tal modo que sequer respeita o “outro”, seu s<strong>em</strong>elhante,<br />

submetendo-o também <strong>à</strong> condição <strong>de</strong> objeto.


que no se pue<strong>de</strong>n negar, como cuando dicen: “Si <strong>de</strong> dos partes iguales<br />

quitamos partes iguales, las que que<strong>da</strong>n también son iguales”; y, cuando<br />

esto no entien<strong>da</strong>n <strong>de</strong> palabra, como, en efecto, no lo entien<strong>de</strong>n, háseles<br />

<strong>de</strong>mostrar con las manos y ponérselo <strong>de</strong>lante <strong>de</strong> los ojos, y, aun con todo<br />

esto, no basta nadie con ellos a persuadirles las ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> mi sacra<br />

religión. Y este mesmo término y modo me convendrá usar contigo, porque<br />

el <strong>de</strong>seo que en ti ha nacido van tan <strong>de</strong>scaminado y tan fuera <strong>de</strong> todo<br />

aquello que tenga sombra <strong>de</strong> razonable, que me parece que ha <strong>de</strong> ser<br />

ti<strong>em</strong>po gastado el que ocupare en <strong>da</strong>rte a enten<strong>de</strong>r tu simplici<strong>da</strong>d, que por<br />

ahora no le quiero <strong>da</strong>r otro nombre, y aun estoy por <strong>de</strong>jarte en tu <strong>de</strong>satino,<br />

en pena <strong>de</strong> tu mal <strong>de</strong>seo; mas no me <strong>de</strong>ja usar <strong>de</strong>ste rigor la amistad que te<br />

tengo, la cual no consiente que te <strong>de</strong>je puesto en tan manifiesto peligro <strong>de</strong><br />

per<strong>de</strong>rte 530<br />

Estavam equivocados todos. Feita a experiência, Camila e Lotario, “cobaias<br />

<strong>de</strong> laboratório”, seres a ser<strong>em</strong> experimentados e submetidos a novas experiências<br />

não resistiram e se apaixonaram, s<strong>em</strong> que Alselmo, o marido soubesse, traição na<strong>da</strong><br />

fácil <strong>de</strong> permanecer escondi<strong>da</strong>. Ao tomar ciência do acontecido, na tentativa <strong>de</strong><br />

recompor <strong>de</strong>composição tão b<strong>em</strong> maquina<strong>da</strong>, só nesse momento, ficou evi<strong>de</strong>nte a<br />

falácia do plano, e foram todos tão infelizes que, não sendo possível recompor a<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> plena <strong>de</strong> afeto que <strong>da</strong>va a tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> relação entre o trio amoroso, que<br />

até então, na<strong>da</strong> tinha <strong>de</strong> “triângulo”, acabaram todos com suas vi<strong>da</strong>s.<br />

Circulando pelos caminhos <strong>de</strong> Espanha, pondo-se <strong>em</strong> diálogo com o mundo,<br />

Dom Quixote vê Grisóstomo, também <strong>em</strong>penhadíssimo num fazer: precisa, quer<br />

porque quer preencher algo que lhe falta.<br />

Rel<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os os <strong>de</strong>sdobramentos do t<strong>em</strong>or, a sensação <strong>de</strong> horror ao na<strong>da</strong>,<br />

experimenta<strong>da</strong> pelo hom<strong>em</strong>. Com esse mesmo sentimento, Grisóstomo se <strong>em</strong>penha<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>le livrar-se, acreditando que lhe basta colocar <strong>em</strong> movimento o seu agir,<br />

arquitetando um plano, b<strong>em</strong> formulado, b<strong>em</strong> engendrado, <strong>da</strong>ndo objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> a esse<br />

530 Parece-me, oh Anselmo! Que tens tu agora o discernimento como o que s<strong>em</strong>pre têm os mouros, aos quais não é possível<br />

<strong>da</strong>r a enten<strong>de</strong>r o erro <strong>de</strong> sua seita com as citações <strong>da</strong> Santa Escritura, n<strong>em</strong> com razões que consistam <strong>em</strong> especulação do<br />

entendimento, n<strong>em</strong> que estejam fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>em</strong> artigos <strong>de</strong> fé, mas sim que é preciso trazer ex<strong>em</strong>plos palpáveis, fáceis,<br />

inteligíveis, <strong>de</strong>monstrativos, indubitáveis, com <strong>de</strong>monstrações mat<strong>em</strong>áticas que não se possam negar, como quando diz<strong>em</strong>:<br />

“Se <strong>de</strong> duas partes iguais tiramos partes iguais, as que ficam também são iguais”; quando isto não aten<strong>de</strong>m <strong>de</strong> palavra,<br />

como,<strong>de</strong> fato, não o enten<strong>de</strong>m, faz-se necessário <strong>de</strong>monstrar com as mãos e pô-lo diante dos olhos, e, mesmo com tudo isto,<br />

não basta com eles para persuadi-los <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> minha sagra<strong>da</strong> religião. E este mesmo termo e modo me convirá usar<br />

contigo, porque o <strong>de</strong>sejo que <strong>em</strong> ti nasceu vai tão <strong>de</strong>sencaminhado e tão fora <strong>de</strong> todo aquilo que tenha sombra <strong>de</strong><br />

razoabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, que me parece que há <strong>de</strong> ser t<strong>em</strong>po gasto o que ocupe <strong>em</strong> <strong>da</strong>r-te a enten<strong>de</strong>r tua ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong>, que por agora<br />

não lhe quero <strong>da</strong>r outro nome, e mesmo estou por <strong>de</strong>ixar-te <strong>em</strong> tu <strong>de</strong>satino, <strong>em</strong> pena <strong>de</strong> tu mal <strong>de</strong>sejo; mas não me <strong>de</strong>ixa usar<br />

<strong>de</strong>ste rigor a amiza<strong>de</strong> que te tenho, a qual não consente que te <strong>de</strong>ixe posto <strong>em</strong> tão manifesto perigo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r-te” (1, XXXIII,<br />

p.193)


plano, pondo-o <strong>em</strong> ação, dispondo não só <strong>da</strong>s coisas que estiver<strong>em</strong> ao alcance <strong>de</strong><br />

suas mãos, como também <strong>da</strong>s pessoas, tornando-as, <strong>de</strong> algum modo, objetos<br />

também.<br />

Contraditório esse sentimento <strong>de</strong> horror ao vazio que se manifesta <strong>em</strong><br />

Grisóstomo. Afinal, é hom<strong>em</strong> rico – “y él quedó here<strong>da</strong>do en mucha canti<strong>da</strong>d <strong>de</strong><br />

hacien<strong>da</strong>, ansí en muebles como en raíces, [...] y en gran canti<strong>da</strong>d <strong>de</strong> dineros”, 531 e<br />

<strong>de</strong> “entendimiento”, “había sido estudiante muchos años en Salamanca [...] muy<br />

sabio y muy leído”. 532<br />

Deci<strong>de</strong> que Marcela, a mulher mais bela <strong>da</strong>s redon<strong>de</strong>zas, <strong>de</strong>verá retribuir o<br />

amor que ele nutre por ela, acreditando ser o bastante para realizar sua vonta<strong>de</strong>, pôr<br />

a indústria <strong>de</strong> seu plano <strong>em</strong> ação. E vira pastor. Grisóstomo é hom<strong>em</strong> culto, <strong>de</strong><br />

família riquíssima, mas vira pastor. É preciso <strong>de</strong>ixar claro que essa <strong>de</strong>cisão só se<br />

<strong>de</strong>ve a ter feito, também, igual opção, Marcela, a mulher ama<strong>da</strong>. A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong><br />

Grisóstomo não é uma <strong>de</strong>-cisão, ela é intencionalmente arquiteta<strong>da</strong>, só vira pastor<br />

para a<strong>pro</strong>ximar-se <strong>de</strong> Marcela. A opção pela ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pastor que podia sugerir<br />

relação íntima consigo mesmo, consi<strong>de</strong>rando ser o pastor, aquele que cui<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

Casa <strong>da</strong> Linguag<strong>em</strong>, on<strong>de</strong> habita o Ser. Entretanto, esta também foi movi<strong>da</strong> por um<br />

chamado exterior - o interesse <strong>de</strong> a<strong>pro</strong>ximar-se <strong>de</strong> Marcela.<br />

Além <strong>de</strong> Grisóstomo, a obra apresenta e <strong>de</strong>screve muitos outros homens<br />

igualmente na mesma situação do rico e intelectual pastor: sobre todos eles “libre y<br />

<strong>de</strong>senfa<strong>da</strong><strong>da</strong>mente triunfa la hermosa Marcela”, 533 o que acaba lhe valendo,<br />

entretanto, o estigma <strong>de</strong> “la pastora homici<strong>da</strong>”, alcunha com que acaba ficando<br />

conheci<strong>da</strong> na região, só porque não ce<strong>de</strong>ra aos amores <strong>de</strong> Grisóstomo.<br />

531 E herdou gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> bens, sejam bens móveis ou terras, [...] e gran<strong>de</strong> quantia <strong>em</strong> dineiro (1, XII, p.63-64).<br />

532 Havia sido estu<strong>da</strong>nte muitos anos <strong>em</strong> Salamanca [...] muito sábio e lido (1, XII, p.64).<br />

533 Livre e <strong>de</strong>spreocupa<strong>da</strong>mente triunfa a formosa Marcela (1, XII, p.66)


Marcela é também “muchacha y rica [...] con tanta belleza”. Ain<strong>da</strong> que todos<br />

os melhores partidos <strong>da</strong> região a disputass<strong>em</strong> “ricos mancebos, hi<strong>da</strong>lgos y<br />

labradores”, 534 s<strong>em</strong>pre respondia que “no quería casarse”. 535 Enquanto isso, seu tio<br />

aguar<strong>da</strong> pacient<strong>em</strong>ente que “entrase algo más en e<strong>da</strong>d” 536 para <strong>de</strong>cidir casar-se<br />

afinal. Mas Marcela, s<strong>em</strong> ter essa intenção, surpreen<strong>de</strong> o tio e a todos, <strong>de</strong>-cidindo<br />

ser pastora “que r<strong>em</strong>anece un día la melindrosa Marcela hecha pastora”, 537<br />

juntando-se <strong>à</strong>s <strong>de</strong>mais pastoras do lugar, chegando a “guar<strong>da</strong>r su mesmo<br />

ganado”. 538 Desse modo, fica mais livre para renegar todos os preten<strong>de</strong>ntes e seguir<br />

seu caminho, caminho com claros sinais <strong>de</strong> travessia <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura. Aliás <strong>de</strong><br />

estar b<strong>em</strong> próxima ou, quiçá <strong>em</strong> momento b<strong>em</strong> avançado nessa <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>.<br />

Vê-se, então, que Marcela toma tal <strong>de</strong>-cisão, com total integri<strong>da</strong><strong>de</strong>, a mesma<br />

que não permite que, n<strong>em</strong> saia <strong>pro</strong><strong>cura</strong>ndo um hom<strong>em</strong> para <strong>de</strong>le a<strong>pro</strong>priar-se, n<strong>em</strong><br />

ce<strong>da</strong> <strong>à</strong>s paixões doentias que todos os rapazes <strong>da</strong> redon<strong>de</strong>za alimentam por ela.<br />

Dentre todos, Marcela é a única que está atenta ao caminho <strong>da</strong> Cura, cui<strong>da</strong>ndo para<br />

não per<strong>de</strong>r o contato com o ser.<br />

Por mais b<strong>em</strong> maquinado o agir <strong>de</strong> Grisóstomo, tentando fazer <strong>de</strong> Marcela<br />

seu objeto, o objeto que iria completá-lo, o plano não vingou e, acreditando ter caído<br />

<strong>em</strong> perdição, ele acaba com a vi<strong>da</strong>: “ha muerto <strong>de</strong> amores <strong>de</strong> aquella endiabla<strong>da</strong><br />

moza <strong>de</strong> Marcela” 539 . 540<br />

Não só os ricos e cultos, todos, camponeses, lavradores, pessoas mais<br />

simples, todos estão <strong>em</strong>penhados <strong>em</strong> ter e, por isso, seu agir é também <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m<br />

534<br />

Ricos mancebos, fi<strong>da</strong>lgos e lavradores (1, XII, p.66)<br />

535<br />

Não queria casar-se (ibi<strong>de</strong>m)<br />

536<br />

Entrasse um pouco mais <strong>em</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> (ibi<strong>de</strong>m)<br />

537<br />

Aparece um dia a melindrosa Marcela feita pastora (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

538<br />

Pastorear seu próprio gado (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

539<br />

Morreu <strong>de</strong> amores <strong>da</strong>quela endiabra<strong>da</strong> moça <strong>de</strong> Marcela (1, XII, p.63)<br />

540<br />

Não se menciona suicídio nesse episódio. Entretanto, há sinal <strong>de</strong> que foi assim que Grisóstomo acabou com a vi<strong>da</strong>. O<br />

cui<strong>da</strong>do <strong>em</strong> apresentar o lugar on<strong>de</strong> seria enterrado é sintomático: “que mandó en su testamento que le enterrasen en el<br />

campo, como si fuera moro”. Diz-se, no entanto, ser esse <strong>pro</strong>cedimento comum aos casos <strong>de</strong> suicídio __ enterrar no campo __ ,<br />

<strong>em</strong>bora apareça na obra <strong>de</strong> modo escamoteado: Grisóstomo escolhera aquele lugar para ser enterrado porque “aquel lugar es<br />

adon<strong>de</strong> él la vio la vez primera”*.<br />

* Aquele lugar é on<strong>de</strong> ele a viu pela primeira vez (1, XII, p.64)


do fazer, do industriar, do direcionar as ações aos interesses próprios. Normalmente<br />

são pessoas mais sagazes, seus planos são mais mirabolantes. Uma gran<strong>de</strong> porta<br />

aberta a uma contraparti<strong>da</strong> sagaz, cheia <strong>de</strong> truques, é o casamento por interesse<br />

que os pais s<strong>em</strong>pre cui<strong>da</strong>m que aconteça para suas filhas. Esse preenchimento<br />

perdura <strong>em</strong> Espanha, alcançando até o século XX, quando as “mulheres <strong>de</strong> Lorca”,<br />

to<strong>da</strong>s com <strong>de</strong>stino trágico, também como Marcela, tomam a <strong>de</strong>-cisão <strong>da</strong> libertação.<br />

O preenchimento, aqui, não é <strong>de</strong> amor, mas <strong>de</strong> terras e dinheiro. E a<br />

contraparti<strong>da</strong> ficará s<strong>em</strong>pre por conta <strong>da</strong>quele que, sentindo-se lesado, crê po<strong>de</strong>r<br />

reverter a situação, arquitetando saí<strong>da</strong>s. Não importa que, nesse caso, a causa<br />

possa ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> justa, o que importa é que todos estão <strong>em</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

absoluta: todos experimentam o horror ao vazio do na<strong>da</strong> e se esforçam todos <strong>em</strong><br />

preenchê-lo, contando com sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> e, acima <strong>de</strong> tudo, obrigação e <strong>de</strong>ver <strong>de</strong><br />

lançar mão do que têm <strong>de</strong> mais valioso – o po<strong>de</strong>r do pensar-fazedor.<br />

Daí que, como Basílio, acreditam ter<strong>em</strong> o direito <strong>de</strong> usar <strong>de</strong> qualquer<br />

artimanha, chegando <strong>à</strong> mentira, aquela mesma mentira <strong>de</strong> que fala Nietzsche <strong>em</strong><br />

Sobre a mentira e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> no sentido extra-moral, somente para induzir pessoas a<br />

realizar<strong>em</strong> o que irá locupletá-los, como fez Basílio que, no dia do casamento <strong>de</strong> sua<br />

ama<strong>da</strong> com Camacho, reverteu, com uma monumental mentira, a situação,<br />

obrigando a noiva a com ele se casar.<br />

Há ain<strong>da</strong> os “galeotes”, há “El cautivo” e este, como sugere o título do<br />

capítulo, aparece como o paradigma do prisioneiro, <strong>de</strong> tal modo que, mesmo<br />

estando permanent<strong>em</strong>ente <strong>em</strong> situações <strong>de</strong> aprisionamento, não consegue <strong>da</strong>r-se<br />

conta <strong>de</strong> que, <strong>de</strong> todos os que estão ao seu redor, o único que aparece como<br />

<strong>de</strong>clara<strong>da</strong>mente livre é aquele que se faz poeta.<br />

Esse pequeníssimo resumo t<strong>em</strong> por objetivo mostrar a condição <strong>de</strong><br />

infelici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong> todos os que habitam Espanha naquele momento, e,


fun<strong>da</strong>mentalmente, a falta absoluta <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser. Na<strong>da</strong> se<br />

consuma, todos se consom<strong>em</strong> nos <strong>em</strong>penhos. Se consom<strong>em</strong> a si mesmos,<br />

consom<strong>em</strong> a natureza sugando “la flor <strong>de</strong>l campo” até murchá-la, consom<strong>em</strong> o outro<br />

hom<strong>em</strong>, seu s<strong>em</strong>elhante.<br />

4.2 A TÉCNICA DOMINA O HOMEM<br />

Se a essência <strong>da</strong> técnica é o fazer sair do oculto, o trazer <strong>à</strong> presença o que<br />

até então estava oculto, se essa marca essencial era para o pensar grego a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong><br />

para a técnica do artesão, o que a teria <strong>de</strong>sfigurado no que tange <strong>à</strong> técnica<br />

mo<strong>de</strong>rna?<br />

O rasgo fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> técnica mo<strong>de</strong>rna é a “<strong>pro</strong>vocação”.<br />

Nesse ponto, a técnica se <strong>de</strong>svirtua do <strong>de</strong>svelamento e, conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

<strong>da</strong> “poiesis”. A técnica mo<strong>de</strong>rna, ao relacionar-se com a natureza, obriga-a <strong>de</strong> todos<br />

os modos a liberar suas forças com vistas a <strong>de</strong>la tirar to<strong>da</strong> energia e riqueza.<br />

Ao apresentar tal evidência, Hei<strong>de</strong>gger faz a <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong>s tecnologias que<br />

caracterizam o “cultivar”, quando ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong>va o sentido primordial <strong>de</strong> “abrigar e<br />

cui<strong>da</strong>r”. O camponês “en la si<strong>em</strong>bra <strong>de</strong>l grano, entrega la s<strong>em</strong>entera a las fuerzas <strong>de</strong><br />

crecimiento y cobija <strong>pro</strong>sperar”. 541 Do mesmo modo, no tocante ao moinho <strong>de</strong> vento:<br />

“sus aspas se mueven al viento, que<strong>da</strong>n confia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> un modo inmediato al soplar<br />

<strong>de</strong> éste”. 542 Já as tecnologias mo<strong>de</strong>rnas controlam e aprisionam. Desse modo uma<br />

541 No plantio do grão, entrega a s<strong>em</strong>eadura <strong>à</strong>s forças do crescimento e <strong>pro</strong>tege seu <strong>pro</strong>sperar. (HEIDEGGER, Martin.<br />

La pregunta por la técnica In: Conferencias y artículos, Barcelona: Serbal, 1994, p. 17)<br />

542 Suas aspas mov<strong>em</strong>-se ao vento, ficam confia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> um modo imediato ao so<strong>pro</strong> <strong>de</strong>ste. (Ibi<strong>de</strong>m)


usina hidroelétrica jamais revelará o rio, como o moinho o faz com o vento.<br />

Controla<strong>da</strong>, a natureza só escon<strong>de</strong>, na<strong>da</strong> revela.<br />

Hei<strong>de</strong>gger nos l<strong>em</strong>bra que o <strong>de</strong>svelamento do real não é algo do qual o<br />

hom<strong>em</strong> disponha. O real e efetivo não está <strong>à</strong> mercê do po<strong>de</strong>r do hom<strong>em</strong> [enten<strong>da</strong>-<br />

se real e efetivo como a essência do “não-velamento”]. Mesmo assim, o hom<strong>em</strong>, por<br />

equívoco e s<strong>em</strong> cerimônia o pratica. E, <strong>em</strong>bora reconheça o dramático <strong>da</strong> situação<br />

vivi<strong>da</strong>, o autor não vê a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> igualar-se <strong>à</strong> natureza nessa<br />

submissão, porque sua própria condição humana o <strong>pro</strong>voca do modo mais originário.<br />

Alguns autores são mais dramáticos, quando afirmam que n<strong>em</strong> mesmo o<br />

hom<strong>em</strong> escapa <strong>de</strong>ssa <strong>pro</strong>vocação – a um estar exposto <strong>à</strong> solicitação para liberação<br />

<strong>de</strong> energias 543 . Do mesmo modo que a usina e o avião, o hom<strong>em</strong> também faz parte<br />

do “fundo <strong>de</strong> reserva” e é também tomado como material e recurso humano.<br />

Entretanto, esse mesmo <strong>da</strong>do, visto por outro prisma, o <strong>pro</strong>move porque, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, ain<strong>da</strong> que <strong>de</strong> um modo menos visível, o real também <strong>pro</strong>voca o<br />

hom<strong>em</strong>, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que <strong>de</strong>le escon<strong>de</strong> suas energias, <strong>de</strong>safiando-o a s<strong>em</strong>pre<br />

<strong>pro</strong>curá-las e encontrá-las. Desse <strong>pro</strong>vocar recí<strong>pro</strong>co, <strong>de</strong>ntre todos os seres, só o<br />

hom<strong>em</strong> participa. Essa é <strong>de</strong> tal forma a sua marca que “[...] el hombre sólo pue<strong>de</strong><br />

ser hombre en cuanto que interpelado así”. 544 Vê-se então que esse <strong>pro</strong>vocar é<br />

recí<strong>pro</strong>co, e o hom<strong>em</strong> para ser hom<strong>em</strong> é mobilizado a aten<strong>de</strong>r <strong>à</strong> <strong>pro</strong>vocação do real.<br />

Esse <strong>da</strong>do <strong>da</strong> reci<strong>pro</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é prepon<strong>de</strong>rante na avaliação do limite <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r – o<br />

po<strong>de</strong>r do hom<strong>em</strong> nesse sentido é limitado.<br />

Mas não é essa a resposta do hom<strong>em</strong>. O quadro, que o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

viv<strong>em</strong>os revela, são os efeitos <strong>de</strong>vastadores que “vonta<strong>de</strong>” e “técnica” trouxeram<br />

para o olhar do Oci<strong>de</strong>nte, tirando-lhe qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> luz. Essa<br />

543 C.f. HEIDEGGER, Martin. La pregunta por la técnica In: Conferencias y artículos, Barcelona: Serbal, 1994, p.20.<br />

544 O hom<strong>em</strong> só po<strong>de</strong> ser hom<strong>em</strong> quando é assim interpelado. (Ibi<strong>de</strong>m, p.21)


constatação se <strong>de</strong>ve aos três “monstros” que já vinham represando força titânica<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. São eles: <strong>de</strong>vastação <strong>da</strong> terra, massificação do<br />

hom<strong>em</strong> e a fuga dos <strong>de</strong>uses. O impedimento do eclodir espontâneo, frente ao<br />

eclodir <strong>pro</strong>vocado e imediatamente ocultado como reserva, tira o frescor e a<br />

novi<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo, e não podia ser <strong>de</strong> outra maneira; as existências, mesmo s<strong>em</strong><br />

existir<strong>em</strong>, estão b<strong>em</strong> guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s, <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente armazena<strong>da</strong>s <strong>em</strong> objetos. No avião,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, tudo está <strong>pro</strong>nto para ser posto <strong>à</strong> disposição no momento mesmo <strong>da</strong><br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> liberar as energias reserva<strong>da</strong>s para o <strong>de</strong>colar, num esqu<strong>em</strong>a<br />

intencional <strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Conseqüent<strong>em</strong>ente, toma<strong>da</strong> como fundo <strong>de</strong> reserva, “a terra se torna incapaz<br />

<strong>de</strong> repor suas energias e <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po ela se transforma num gran<strong>de</strong> torrão<br />

ressecado e estéril” 545 . O mundo fica <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> brilho e <strong>pro</strong>fundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Cheio <strong>de</strong><br />

coisa armazena<strong>da</strong>, o mundo é abundância s<strong>em</strong> limites, mas uma abundância<br />

monótona porque monocórdia; é pura repetição. E, no final <strong>da</strong>s contas, o hom<strong>em</strong><br />

não escapa. Também explorado como fundo <strong>de</strong> reserva, ele agora é “massa”,<br />

totalmente indiferenciado e <strong>de</strong>sfigurado <strong>de</strong> seu ser real, “Este hom<strong>em</strong>, [...] é aquele<br />

perfeitamente a<strong>da</strong>ptado ao mundo do trabalho para alimentar as forças <strong>de</strong> <strong>pro</strong>dução.<br />

Ele é, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, animal <strong>de</strong> carga” 546 . E os <strong>de</strong>uses, on<strong>de</strong> estão? Hei<strong>de</strong>gger<br />

respon<strong>de</strong>: “Fugiram”, “<strong>de</strong>sapareceram”, “afastaram-se” porque, <strong>de</strong>safortuna<strong>da</strong>mente,<br />

“o mundo per<strong>de</strong>u o seu fun<strong>da</strong>mento que dá o sentido <strong>à</strong>s coisas e ao hom<strong>em</strong>” 547 .<br />

Fugiram os <strong>de</strong>uses e com eles o mistério, e o hom<strong>em</strong> com sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r quer interferir até mesmo na espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>de</strong>svelamento que, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que <strong>de</strong>svela, vela. Supondo po<strong>de</strong>r coman<strong>da</strong>r a espontânea<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do “fazer eclodir”.<br />

545 MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como uni<strong>da</strong><strong>de</strong>. São Paulo: Annablume, 1999, p.164.<br />

546 Ibi<strong>de</strong>m, p.166.<br />

547 Ibi<strong>de</strong>m, p.169.


5 DO ENCANTAMENTO DA TÉCNICA AO ENCANTAMENTO POÉTICO<br />

conduzir.<br />

Chegamos ao ponto mais dramático para on<strong>de</strong> a técnica po<strong>de</strong>ria nos<br />

Dom Quixote há muito já o tinha percebido, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inci<strong>de</strong>nte dos moinhos <strong>de</strong><br />

vento. Se, por um lado, não passavam <strong>de</strong> inocentes moinhos, ex<strong>em</strong>plares <strong>da</strong>quela<br />

tecnologia menciona<strong>da</strong> por Hei<strong>de</strong>gger, quando ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong>vam o sentido<br />

primordial <strong>de</strong> abrigar e cui<strong>da</strong>r, ganham na obra outra dimensão.<br />

Qu<strong>em</strong> registra a inocência é o olhar <strong>de</strong> Sancho, que assim diz a Dom Quixote:<br />

“que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos <strong>de</strong> viento, y lo que<br />

en ellos parecen brazos son las aspas que, voltea<strong>da</strong>s <strong>de</strong>l viento, hacen an<strong>da</strong>r la<br />

piedra <strong>de</strong>l molino”; 548 entretanto, sob o olhar <strong>de</strong> Dom Quixote, são gigantes, seres<br />

<strong>de</strong>scomunais, “mala simiente” 549 que Dom Quixote precisa “quitar [...] <strong>de</strong> sobre la faz<br />

<strong>de</strong> la tierra” 550 . Para Sancho os moinhos não passam <strong>de</strong> entes do mundo ordinário,<br />

enquanto para Dom Quixote significavam b<strong>em</strong> mais, tinham outro sentido, e esse<br />

sentido está localizado na cabeça <strong>de</strong> Dom Quixote. É o que diz Sancho: “¡Válame<br />

Dios! – dijo Sancho. - ¿No le dije yo a vuestra merced que mirase bien lo que hacía,<br />

que no eran sino molinos <strong>de</strong> viento, y no lo podía ignorar sino quien llevase otros<br />

tales en la cabeza?” 551<br />

548<br />

Que aqueles que ali se parec<strong>em</strong> não são gigantes, mas sim moinhos <strong>de</strong> vento, e o que neles parec<strong>em</strong> braços são as aspas<br />

que, gira<strong>da</strong>s pelo vento, faz<strong>em</strong> an<strong>da</strong>r a mó do moinho (1, VIII, p.46).<br />

549<br />

S<strong>em</strong>ente ruim (ibi<strong>de</strong>m)<br />

550<br />

Arrancar [...] <strong>de</strong> sobre a face <strong>da</strong> terra (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

551<br />

Valha-me Deus! – disse Sancho – Não disse a vossa mercê que olhasse b<strong>em</strong> o que fazia, que não eram senão moinhos <strong>de</strong><br />

vento, e eu não podia ignorar isso, a não ser carregasse outros tantos na cabeça? (1, VIII, p.47)


Os “treinta o pocos más” 552 moinhos-gigantes-<strong>de</strong>saforados dão sinais <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sdobramentos do cavaleiro com qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>verá lutar Dom Quixote: “que yo pienso,<br />

y es así ver<strong>da</strong>d, que aquel sabio Frestón que me robó el aposento y los libros ha<br />

vuelto estos gigantes en molinos por quitarme la gloria <strong>de</strong> su vencimiento”. 553 Mais<br />

uma vez, Dom Quixote reforça que esse sábio encantador Frestón t<strong>em</strong> relação com<br />

as artes: “mas al cabo al cabo, han <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r poco sus malas artes contra la bon<strong>da</strong>d<br />

<strong>de</strong> mi espa<strong>da</strong>”. 554 Apesar <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> “artes malas”, que <strong>de</strong>ixa claro tratar-se <strong>da</strong><br />

técnica, fica algo intrigante no ar – o estar esse sábio, que <strong>pro</strong>tege seus inimigos,<br />

ligado <strong>à</strong>s artes.<br />

Fica patente aqui a <strong>de</strong>monstração do <strong>pro</strong>cesso <strong>da</strong> arte. Dom Quixote penetra<br />

tão b<strong>em</strong> nesse <strong>pro</strong>cesso, a ponto <strong>de</strong> mostrá-lo por <strong>de</strong>ntro, invertido como num<br />

espelho: se, na imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> arte, o moinho está na superfície cheio <strong>de</strong> vigor e<br />

carregado <strong>de</strong> significação, todos muito b<strong>em</strong> velados por trás <strong>de</strong> um ingênuo e<br />

inocente moinho, se, entretanto, não é nessa imag<strong>em</strong> que está o essencial e sim<br />

nas questões que <strong>de</strong> seu vigor po<strong>de</strong>m <strong>em</strong>anar, como atesta o ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> que<br />

estamos tratando, por trás do moinho se escon<strong>de</strong>, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a questão <strong>da</strong><br />

essência <strong>da</strong> técnica. Se é assim, vejamos como Dom Quixote nos apresenta o<br />

<strong>pro</strong>cesso especular inverso.<br />

Nesse <strong>pro</strong>cesso, inversamente, parte-se <strong>da</strong> questão para a imag<strong>em</strong>, incluindo<br />

ain<strong>da</strong> seus <strong>de</strong>sdobramentos. A questão <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> técnica parece a Dom<br />

Quixote algo extr<strong>em</strong>amente digno <strong>de</strong> pensar, logo é digno também <strong>de</strong> contra ele<br />

lutar. Se o <strong>de</strong>sdobramento exige luta, é claro que é no mundo ordinário que se vão<br />

buscar os el<strong>em</strong>entos que cumpr<strong>em</strong> tal finali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e esse el<strong>em</strong>ento entra na obra<br />

como um cavaleiro, com o qual, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> obra, tanto Dom Quixote como<br />

552<br />

Trinta ou pouco mais (1, VIII, p.46)<br />

553<br />

Que eu penso, e assim é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que aquele sábio Frestón, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes<br />

gigantes <strong>em</strong> moinhos, para tirar-me gloria <strong>de</strong> vencê-los (1, VIII, p.47)<br />

554<br />

Mas ao fim e ao cabo, po<strong>de</strong>rão pouco suas artes más contra a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> minha espa<strong>da</strong> (Ibi<strong>de</strong>m)


nós, leitores, ficamos sabendo que ele <strong>de</strong>verá lutar uma luta singular. Entretanto, na<br />

hora <strong>da</strong> luta se efetivar, no momento exato <strong>em</strong> que Dom Quixote po<strong>de</strong>ria usufruir o<br />

êxito e a glória que lhe po<strong>de</strong>riam conferir a vitória sobre aquele cavaleiro, nesse<br />

momento, no entanto, <strong>em</strong> <strong>pro</strong>cesso inverso, o moinho imag<strong>em</strong>-questão cheio <strong>de</strong><br />

vigor acaba sendo <strong>de</strong>s-realizado. Des-realizado, o moinho volta <strong>à</strong> sua condição <strong>de</strong><br />

<strong>pro</strong>saico e ordinário, volta a ser moinho real, um mero instrumento que Sancho<br />

ordinariamente <strong>de</strong>screve dizendo que possui “aspas, que, voltea<strong>da</strong>s <strong>de</strong>l viento,<br />

hacen an<strong>da</strong>r la piedra <strong>de</strong>l molino” . 555<br />

Lutar com esse mero instrumento cheio <strong>de</strong> mera instrumentali<strong>da</strong><strong>de</strong> seria<br />

rebaixar-se ao nível <strong>da</strong> mun<strong>da</strong>ni<strong>da</strong><strong>de</strong> e per<strong>de</strong>r a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> li<strong>da</strong>r com o “mundo<br />

como mundo”. Desse modo, estaria perdi<strong>da</strong> qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za e “a<br />

gloria <strong>de</strong> su vencimiento”.<br />

O perigo <strong>de</strong>sse “monstro” aparece nos seguintes fragmentos: “los brazos<br />

largos, que los suelen tener algunos <strong>de</strong> casi dos léguas”, 556 mostra o alcance por<br />

on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r-se esse mal: “dándole una lanza<strong>da</strong> en el aspa, la volvió el<br />

viento con tanta furia, que hizo la lanza pe<strong>da</strong>zos, llevándose tras sí al caballo y al<br />

caballero, que fue ro<strong>da</strong>ndo muy maltrecho por el campo”. 557 Os monstros-moinhos<br />

<strong>de</strong>rrubaram Dom Quixote violentamente e o <strong>de</strong>ixaram imóvel, necessitando <strong>da</strong> aju<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> Sancho.<br />

Além disso, Dom Quixote é radical. Afirma que entrará <strong>em</strong> “fiera y <strong>de</strong>sigual<br />

batalla”, mostrando o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sigual que vai acumulando-se na técnica, sendo por<br />

esse motivo, necessário “quitarles a todos las vi<strong>da</strong>s”. 558<br />

555 Pás, que, gira<strong>da</strong>s ao vento, movimentam as pedras <strong>de</strong> moinho. (1, VIII, p.46)<br />

556 Os braços longos que costumam ter alguns <strong>de</strong> quase duas léguas (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

557 Dando-lhe um golpe <strong>de</strong> lança na aspa, girou-a o vento com tanta fúria, que fez a lança <strong>em</strong> pe<strong>da</strong>ços, levando consigo o<br />

cavalo e o cavaleiro que foi ro<strong>da</strong>ndo muito maltratado pelo campo (1, VIII, p.47)<br />

558 Tirar-lhes a todos as vi<strong>da</strong>s (1, VIII, p.46)


Nossa escolha <strong>da</strong> técnica para incorporar o cavaleiro com qu<strong>em</strong> Dom Quixote<br />

precisa travar uma batalha singular se <strong>de</strong>ve a uma intensa marcação <strong>à</strong> técnica na<br />

obra.<br />

No discurso <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro, como vimos, menciona “la martiriza<strong>da</strong> se<strong>da</strong>”,<br />

fazendo uma crítica voraz ao fabrico <strong>da</strong> se<strong>da</strong> que sacrifica os casulos – seres vivos,<br />

<strong>em</strong> nome <strong>da</strong> vai<strong>da</strong><strong>de</strong> do hom<strong>em</strong>. No discurso <strong>de</strong> “las armas y las letras”, Dom<br />

Quixote é muito mais duro e ve<strong>em</strong>ente: referindo-se aos instrumentos <strong>de</strong> guerra diz:<br />

“benditos siglos que carecieron <strong>de</strong> la espantable fúria <strong>de</strong> aquestos en<strong>de</strong>moniados<br />

instrumentos <strong>de</strong> la artillería”, 559 <strong>de</strong>sfechando sobre o inventor <strong>da</strong> artilharia as mais<br />

duras ofensas: “a cuyo inventor tengo para mí que en el infierno se le está <strong>da</strong>ndo el<br />

pr<strong>em</strong>io <strong>de</strong> su diabólica invención”. 560<br />

Chama todos esses instrumentos <strong>de</strong> “máquina maldita”, porque “acaban en<br />

un instante los pensamientos y vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> quien la merecía gozar luengos siglos”. 561<br />

Veja-se que Dom Quixote, referindo-se ao hom<strong>em</strong>, iguala pensamento com vi<strong>da</strong>. E<br />

volta a repetir que os t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> que vive são uma “e<strong>da</strong>d tan <strong>de</strong>testable”, 562<br />

encerrando seu discurso dramaticamente, falando <strong>da</strong> covardia que significa uma luta<br />

<strong>em</strong> total <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> condições: “aunque a mi ningún peligro me pone miedo,<br />

to<strong>da</strong>vía me pone recelo pensar si la pólvora y el estaño me han <strong>de</strong> quitar la ocasión<br />

<strong>de</strong> hacerme famoso y conocido por el valor <strong>de</strong> mi brazo y filos <strong>de</strong> mi espa<strong>da</strong>”. 563<br />

Volt<strong>em</strong>os ao encantamento. Outro indício <strong>de</strong> que a solução para o <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a<br />

que tanto molesta Dom Quixote, <strong>em</strong> relação ao seu com<strong>pro</strong>misso assumido com<br />

Montesinos <strong>em</strong> “la cueva”, está no seguinte fragmento:<br />

559<br />

Benditos t<strong>em</strong>pos que careceram <strong>da</strong> espantosa fúria <strong>de</strong>sses endiabrados instrumentos <strong>da</strong> artilharia (1, XXXVIII, p.232).<br />

560<br />

A cujo inventor tenho para mim que no inferno se está <strong>da</strong>ndo o prêmio <strong>de</strong> sua diabólica invenção (Ibi<strong>de</strong>m).<br />

561<br />

Acaba <strong>em</strong> um instante os pensamentos e a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> a merecia gozar longos séculos (1, XXXVIII, p.233)<br />

562<br />

Época tão abominável (ibi<strong>de</strong>m)<br />

563<br />

Mesmo que nenhum perigo me dê medo, ain<strong>da</strong> assim me dá receio pensar se a pólvora e o estanho me roubarão a<br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar-me famoso, pelo valor <strong>de</strong> meu braço e o fio <strong>de</strong> minha espa<strong>da</strong> (ibi<strong>de</strong>m)


Hay muchas maneras <strong>de</strong> encantamentos, y podría ser que con el ti<strong>em</strong>po se<br />

hubiesen mu<strong>da</strong>do <strong>de</strong> unos en otros, y que agora se use que los encantados<br />

hagan todo lo que yo hago, aunque antes no lo hacían 564<br />

A menção ao t<strong>em</strong>po po<strong>de</strong> funcionar <strong>em</strong> duas direções. Dom Quixote po<strong>de</strong><br />

estar referindo-se aos encantamentos e sortilégios comuns <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média,<br />

<strong>pro</strong>jetando-os no presente. Po<strong>de</strong> também, a partir do seu t<strong>em</strong>po, estar <strong>pro</strong>jetando-os<br />

para o futuro; neste caso, é visível o sinal <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> técnica. Por outro lado, se<br />

cotejarmos a citação acima com a seguinte, mais ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong>mos a<strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>r-nos na<br />

questão <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> técnica. Quando Dom Quixote, compartilhando <strong>da</strong><br />

perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Sancho, assim o tranqüiliza:<br />

Yo sé y tengo para mi que voy encantado, y esto me basta para la<br />

seguri<strong>da</strong>d <strong>de</strong> mi conciencia que la formaría muy gran<strong>de</strong> si yo pensase que<br />

no estaba encantado y me <strong>de</strong>jase estar en esta jaula perezoso y cobar<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>frau<strong>da</strong>ndo el socorro que podría <strong>da</strong>r a muchos menesterosos y<br />

necesitados que <strong>de</strong> mi ayu<strong>da</strong> y amparo <strong>de</strong>ben tener a la hora <strong>de</strong> ahora<br />

precisa y estr<strong>em</strong>a necesi<strong>da</strong>d. 565<br />

Se assim respon<strong>de</strong>, significa ter consciência <strong>da</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong> do seu serviço <strong>em</strong><br />

<strong>pro</strong>l dos “menesterosos y necesitados” 566 , isso do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista dos amigos e vizinhos que o levam enjaulado, há também o sinal<br />

<strong>de</strong> finali<strong>da</strong><strong>de</strong> e utili<strong>da</strong><strong>de</strong>, justificando seu <strong>pro</strong>cedimento: a insistência <strong>em</strong> conduzi-lo <strong>à</strong><br />

casa escon<strong>de</strong> o reconhecimento <strong>da</strong> inutili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> prática cavaleiresca <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote, além <strong>de</strong> que a sua marca <strong>de</strong> lou<strong>cura</strong> inviabiliza qualquer <strong>pro</strong>duzir. Leia-se<br />

<strong>pro</strong>duzir, segundo Antonio Jardim: “Produzir é <strong>pro</strong>duzir é meios-para [...] Produzir é<br />

564 Há muitos modos <strong>de</strong> encantamentos, e po<strong>de</strong>ria ser que com o t<strong>em</strong>po houvesse mu<strong>da</strong>do <strong>de</strong> uns para outros e que agora se<br />

use que os encantados façam tudo o que eu faça, mesmo que antes não o fizess<strong>em</strong>. (1, XLIX, p.300).<br />

565 Eu sei e tenho para mim que vou encantado, e isto me basta para a segurança <strong>de</strong> minha consciência que a formaria muito<br />

gran<strong>de</strong> se eu pensasse que não estava encantado e me <strong>de</strong>ixasse estar nesta jaula preguiçoso e covar<strong>de</strong>, sonegando o socorro<br />

que po<strong>de</strong>ria <strong>da</strong>r a muitos necessitados que <strong>de</strong> minha aju<strong>da</strong> e amparo <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ter neste momento <strong>de</strong> precisa e extr<strong>em</strong>a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> (Ibi<strong>de</strong>m).<br />

566 Carentes e necessitados (Ibi<strong>de</strong>m)


<strong>pro</strong>duzir serventia e <strong>pro</strong>dutivo é qu<strong>em</strong> <strong>pro</strong>duz serviço. Produzir é necessariamente<br />

<strong>pro</strong>duzir para uma finali<strong>da</strong><strong>de</strong> pre-estipula<strong>da</strong>, para uma utili<strong>da</strong><strong>de</strong>” 567 .<br />

A obra está coalha<strong>da</strong> <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plos que <strong>de</strong>nunciam a presença <strong>da</strong> técnica,<br />

muitas são as referências <strong>à</strong> técnica <strong>em</strong> sua dimensão essencial – s<strong>em</strong>pre como<br />

fundo <strong>de</strong> reserva que não poupa sequer o hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua atuação no fazer<br />

manual, como no mental. Parece que não satisfeito <strong>de</strong> utilizá-la nos artefatos, seu<br />

uso alcança até o exercício <strong>da</strong> mente. Só <strong>à</strong> guisa <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plificação, tomar<strong>em</strong>os o<br />

capítulo El curioso impertinente, on<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r mental <strong>de</strong> Anselmo é tal que vai <strong>à</strong>s<br />

últimas conseqüências do fazer. E Anselmo se torna o fabricador <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sonra<br />

(Anselmo, “el fabricador <strong>de</strong> su <strong>de</strong>shonra”). 568 “Camila”, sua esposa, “<strong>de</strong> industria,<br />

hacía mal rostro a Lotario”. 569 Uma história <strong>de</strong> amor que, tendo tudo para <strong>da</strong>r certo e<br />

encher a todos <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> tanta maquinação, fabricação e indústria, acabou<br />

<strong>em</strong> tanta infelici<strong>da</strong><strong>de</strong> que todos os nela envolvidos, não se suici<strong>da</strong>ram, mas “se le<br />

acabó a vi<strong>da</strong>”, “y acabó en breves días la vi<strong>da</strong>”. 570<br />

O mais contun<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> todos os ex<strong>em</strong>plos que <strong>de</strong>nunciam o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>vastador <strong>da</strong> técnica, é aquele apresentado pelo próprio Dom Quixote.<br />

Parentes, amigos e vizinhos, <strong>em</strong> nova tentativa <strong>de</strong> reconduzir<strong>em</strong> Dom Quixote<br />

ao lar, armam um plano com atores <strong>de</strong> uma companhia <strong>de</strong> teatro, para fingir<strong>em</strong> uma<br />

cena <strong>de</strong> encantamento. Todos os envolvidos estavam compungidos, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po que <strong>da</strong>vam “las gracias a la buena intención” 571 , porque tinham consciência<br />

<strong>de</strong> ser a <strong>pro</strong>vidência toma<strong>da</strong>, <strong>em</strong> benefício <strong>de</strong> Dom Quixote. Assim, contrataram um<br />

“carretero <strong>de</strong> bueyes que acertó a pasar por allí, para que lo llevase en esta forma:<br />

hicieron una como jaula <strong>de</strong> palos enrejados, capaz que pudiese en ella caber<br />

567 JARDIM, A. A dimensão poética no contexto heg<strong>em</strong>ônico <strong>da</strong> técnica, p.12 (mimeo)<br />

568 O fabricador <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sonra (1, XXXV, p.214).<br />

569 De <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito, fazia cara feia para Lotario (ibi<strong>de</strong>m).<br />

570 E acabou <strong>em</strong> poucos dias a vi<strong>da</strong> (1, XXXV, p.217).<br />

571 As graças e a boa intenção (1, XLVI, p.283)


holga<strong>da</strong>mente don Quijote”, 572 além <strong>de</strong> todos, por or<strong>de</strong>m “<strong>de</strong>l <strong>cura</strong>”, cobrir<strong>em</strong> o rosto<br />

com capuzes, “<strong>de</strong> modo que a don Quijote le pareciese ser otra gente <strong>de</strong> la que en<br />

aquel castillo [que não era castelo, era somente uma ven<strong>da</strong>, um armazém] había<br />

visto”. 573 Depois, entraram <strong>em</strong> seu quarto e, a<strong>pro</strong>veitando-se <strong>de</strong> que estava<br />

dormindo, violentamente o amarraram __ “asiéndole fuert<strong>em</strong>ente, le ataron muy bien<br />

las manos y los pies” 574 __ e levaram-no ao carro-jaula.<br />

Tocado ain<strong>da</strong> pelo que era valor medieval, além <strong>de</strong> ser a cena realiza<strong>da</strong> por<br />

bons atores, todos “fingidores”, Dom Quixote inocent<strong>em</strong>ente cai na armadilha<br />

trama<strong>da</strong>, pensando ser vítima <strong>de</strong> encantamento. E acaba sendo conduzido<br />

enjaulado num carro <strong>de</strong> bois, completamente imobilizado, com pernas e braços<br />

amarrados. Consolado, entretanto, com as <strong>pro</strong>fecias mentirosas que “le <strong>pro</strong>metían el<br />

verse ayuntados en santo [...] matrimonio con su queri<strong>da</strong> Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso”. 575<br />

Até que, <strong>em</strong> <strong>da</strong>do momento, no capítulo seguinte, vendo-se enjaulado, Dom<br />

Quixote se põe a falar com Sancho, refletindo sobre o acontecido: diz já ter lido<br />

muitas histórias <strong>de</strong> cavaleiros an<strong>da</strong>ntes, mas que jamais soubera que assim<br />

pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> ser conduzidos <strong>em</strong> situação <strong>de</strong> encantamento. Ain<strong>da</strong> mais, <strong>de</strong>sse modo,<br />

como animal: “<strong>de</strong>sta manera y con el espacio que <strong>pro</strong>meten estos perezosos y<br />

tardíos animales”. 576 E faz comparação com os modos <strong>de</strong> encantamento conhecidos<br />

naquele t<strong>em</strong>po: “si<strong>em</strong>pre lo suelen llevar por los aires, con estraña ligereza,<br />

encerrados en alguna par<strong>da</strong> y es<strong>cura</strong> nube, o en algún carro <strong>de</strong> fuego, o ya sobre<br />

algún hipogrifo o otra bestia s<strong>em</strong>ejante”. 577<br />

572<br />

Carreteiro <strong>de</strong> bois que [...] acertou passar por ali, para levá-lo <strong>de</strong>ssa forma: fizeram como se fosse uma jaula <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira<br />

gra<strong>de</strong>a<strong>da</strong> [...] na qual po<strong>de</strong>ria caber folga<strong>da</strong>mente Dom Quixote (1, XLVI, p.287).<br />

573<br />

De modo que para Dom Quixote parecesse que era outra gente que não a do castelo que havia visto (ibi<strong>de</strong>m)<br />

574<br />

Agarrando-o firm<strong>em</strong>ente, amarraram muito b<strong>em</strong> suas mãos e pés (Ibi<strong>de</strong>m).<br />

575<br />

Prometiam-lhe ver-se reunido <strong>em</strong> santo matrimônio com sua queri<strong>da</strong> Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso (Ibi<strong>de</strong>m).<br />

576<br />

Desta maneira e com o vagar que <strong>pro</strong>met<strong>em</strong> esses preguiçosos e tardos animais (1. XLVI, p.288)<br />

577<br />

S<strong>em</strong>pre costumam levá-lo pelos ares, com estranha rapi<strong>de</strong>z, metidos <strong>em</strong> alguma par<strong>da</strong> e es<strong>cura</strong> nuv<strong>em</strong>, ou <strong>em</strong> algum<br />

carro <strong>de</strong> fogo, ou então sobre algum hipogrifo ou outra fera s<strong>em</strong>elhante (Ibi<strong>de</strong>m)


Começa a ficar, então, confuso (“que me lleven a mi agora sobre un carro <strong>de</strong><br />

bueyes, ¡vive Dios que me pone en confusión!”) 578 e, intrigado com tanta<br />

contradição, diz a Sancho: “quizá la caballería y los encantos <strong>de</strong>stos nuestros<br />

ti<strong>em</strong>pos <strong>de</strong>ben <strong>de</strong> seguir otro camino que siguieron los antiguos” 579 . Segue dizendo<br />

que era possível que “se hayan inventado otros géneros <strong>de</strong> encantamentos y otros<br />

modos <strong>de</strong> llevar a los encantados”. 580<br />

Sancho, que percebera to<strong>da</strong> trama, só lhe diz que aquelas coisas que tinha<br />

presenciado não lhe pareciam ser “<strong>de</strong>l todo católicas”, comentário com o qual<br />

concor<strong>da</strong> Dom Quixote dizendo-lhe “¿Cómo han <strong>de</strong> ser católicas si son todos<br />

<strong>de</strong>monios que han tomado cuerpos fantásticos para venir a hacer esto y a ponerme<br />

en este estado?”. 581 E acrescenta ser tudo aquilo, que t<strong>em</strong> parte com o <strong>de</strong>mônio,<br />

pura aparência, e que se Sancho quiser nessas coisas tocar, “verás como no tienen<br />

cuerpo [...]” 582 que não são feitas <strong>de</strong> outra coisa “sino <strong>de</strong> aire”. 583<br />

Não nos esqueçamos inclusive, do “diablo” com qu<strong>em</strong> a ama se equivocara<br />

no episódio do <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> biblioteca; ele volta a aparecer na forma <strong>de</strong> um<br />

seu s<strong>em</strong>elhante – “<strong>de</strong>monio”, com os quais i<strong>de</strong>ntificamos a técnica, ou melhor, a<br />

essência <strong>da</strong> técnica.<br />

Ao avaliar a situação <strong>em</strong> que se encontra, Dom Quixote localiza a “falta <strong>de</strong><br />

consistência”, ass<strong>em</strong>elha<strong>da</strong> ao “ar”, naquelas formas atuais <strong>de</strong> encantamento; não a<br />

localiza nas formas antigas <strong>em</strong> que, os cavaleiros encantados eram levados “por los<br />

aires [...] en un carro <strong>de</strong> fuego [...] sobre algún hipogrifo”. 584 Justifica sua<br />

perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> supondo que, do mesmo modo que se está ressuscitando “el ya<br />

578<br />

Que me lev<strong>em</strong> agora sobre uma carroça <strong>de</strong> bois, vive Deus que me pões <strong>em</strong> confusão! (1. XLVI, p.288)<br />

579<br />

Talvez a cavalaria e os encantos <strong>de</strong>stes nossos t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong>vess<strong>em</strong> seguir outro caminho que seguiram os antigos (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

580<br />

Tenham inventado outros gêneros <strong>de</strong> encantamentos e outros modos <strong>de</strong> levar os encantados (1, XLVII, 288-289)<br />

581<br />

Como haverão <strong>de</strong> ser católicas se são todos <strong>de</strong>mônios que tomaram corpos ilusórios para vir fazer isso e <strong>de</strong>ixar-me neste<br />

estado (1, XLVII, p.289)<br />

582<br />

Verás como não têm corpo (ibi<strong>de</strong>m)<br />

583<br />

A não ser <strong>de</strong> ar (ibi<strong>de</strong>m)<br />

584<br />

Pelos ares [...] <strong>em</strong> um carro <strong>de</strong> fogo [...] sobre algum hipogrifo (1, XLVII, p.288)


olvi<strong>da</strong>do ejercicio <strong>de</strong> la caballería aventurera”, 585 é possível que se estejam<br />

inventando, também, “otros géneros <strong>de</strong> encantamentos y otros modos <strong>de</strong> llevar a los<br />

encantados”. Acrescenta ain<strong>da</strong> que “los encantos <strong>de</strong>stos nuestros ti<strong>em</strong>pos <strong>de</strong>ben <strong>de</strong><br />

seguir otro camino que siguieron los antiguos”.<br />

Por outro lado, Sancho dá sinais <strong>de</strong> que percebera o jogo num nível mais<br />

<strong>pro</strong>fundo, <strong>em</strong>bora tudo esteja dirigido <strong>à</strong> superfície do diálogo que mantém com “el<br />

<strong>cura</strong>”. Primeiro diz: “y adivino adón<strong>de</strong> se encaminan estos nuevos<br />

encantamentos”. 586 Depois <strong>de</strong>smascara “el <strong>cura</strong>”: “por más que se encubra el rostro<br />

[...] por más que disimule sus <strong>em</strong>bustes”. 587<br />

Por mais que esteja no estabelecido e que esteja referindo-se <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>quele fato <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ordinária, Sancho, ao fazer essa referência, a está r<strong>em</strong>etendo<br />

para o jogo do “escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong>”, <strong>da</strong> “mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Esse é o<br />

encantamento <strong>da</strong> arte-ficção.<br />

Dom Quixote também joga <strong>em</strong> dois níveis, ao referir-se a estar conformado<br />

com o encantamento <strong>de</strong> estar preso numa jaula, por acreditar ser esse<br />

encantamento aquele que se ajustava <strong>à</strong> sua consciência: “y eso me basta para a<br />

seguri<strong>da</strong>d <strong>de</strong> mi conciencia”. 588 Caso contrário, teria ficado muito aborrecido se ele<br />

<strong>de</strong>scobrisse não estar encantado por um tipo <strong>de</strong> encantamento que, <strong>de</strong> tal modo lhe<br />

parecesse digno, a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar-se submeter.<br />

O suposto encantamento <strong>de</strong> Dom Quixote ficara a cargo <strong>de</strong> atores <strong>de</strong> “aquella<br />

ilustre compañía”. 589 Eram m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> uma companhia <strong>de</strong> teatro, todos “cubrieron<br />

los rostros y se disfrazaron”. 590 Todos participaram <strong>da</strong> trama do fingir: “<strong>de</strong> modo que<br />

585 O esquecido exercício <strong>da</strong> cavalaria an<strong>da</strong>nte (1, XLVII, p.288)<br />

586 E adivinho para on<strong>de</strong> se encaminham esses novos encantamentos (1, XLVII, p.292)<br />

587 Por mais que se cubra o rosto [...] por mais que dissimule seus <strong>em</strong>bustes (ibi<strong>de</strong>m)<br />

588 E isso me basta para a segurança <strong>de</strong> minha consciência (1, XLIX, p.300)<br />

589 Aquela ilustre companhia (1, XLVI, p.286)<br />

590 Cobriram seus rostos e se disfarçaram (1, XLVI, p.287)


a don Quijote le pareciese ser otra gente”. 591 Se tivermos isso <strong>em</strong> conta, o<br />

encantamento a que se refere Dom Quixote é também o encantamento <strong>da</strong> arte.<br />

Compreen<strong>de</strong>-se, então, porque Dom Quixote, sentindo o pesar <strong>de</strong> Sancho<br />

diante <strong>da</strong> sua <strong>de</strong>sgraça, ao querer ajudá-lo, colocando-o <strong>em</strong> fuga <strong>da</strong> prisão do carro<br />

<strong>de</strong> bois <strong>em</strong> que é conduzido, faz com ele o seguinte comentário: “yo te obe<strong>de</strong>ceré en<br />

todo y por todo; pero tú, Sancho, verás como te engañas en el conocimiento <strong>de</strong> mi<br />

<strong>de</strong>sgracia.” 592<br />

Com essas palavras, Dom Quixote <strong>de</strong>monstra, nas entrelinhas, ser<br />

conhecedor <strong>de</strong> que o encantamento que o colocara naquela situação não era o<br />

encantamento <strong>da</strong> técnica e sim o encantamento <strong>da</strong> arte.<br />

Se consi<strong>de</strong>rarmos que o encantamento a que se está referindo Dom Quixote<br />

na<strong>da</strong> mais é do que o modo como foi ele encantado, violentamente amarrado,<br />

impedido <strong>de</strong> qualquer movimento e reação, impedido <strong>de</strong> que sua vonta<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>sejo<br />

prevalecesse, resulta <strong>de</strong> uma b<strong>em</strong> trama<strong>da</strong> encenação-encantatória, basea<strong>da</strong> no<br />

“fingere” e na representação teatral, compreen<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os a sua argumentação. O<br />

convencimento <strong>de</strong> sua necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> foi tal que imobilizou o rebel<strong>de</strong> cavaleiro, como<br />

se tivesse assim agido, por sua própria vonta<strong>de</strong>. É como se Dom Quixote, ao fingir,<br />

se entregasse incondicionalmente ao encantamento <strong>da</strong> arte.<br />

Talvez encontr<strong>em</strong>os, aqui, o ponto <strong>de</strong> conexão que liga este fato, com o<br />

episódio <strong>de</strong> “la cueva”: ali, no fundo <strong>de</strong> “la cueva <strong>de</strong> Montesinos”, estão todos<br />

aprisionados, encantados, s<strong>em</strong> que consigam, <strong>de</strong> suas <strong>pro</strong>fun<strong>de</strong>zas, sair. Como já<br />

foi mencionado, anteriormente, “la cueva” acumula simbolicamente, duas cavernas:<br />

a <strong>de</strong> Platão e, também, como já fora especialmente <strong>de</strong>tectado, a <strong>de</strong> Descartes. O<br />

591 De modo que a Dom Quixote lhe parecesse ser outra gente (1, XLVI, p.287)<br />

592 Eu te obe<strong>de</strong>cerei <strong>em</strong> tudo e por tudo; mas tu, Sancho, verás como te enganas no conhecimento <strong>de</strong> minha <strong>de</strong>sgraça.<br />

(1, XLIX, p.300).


que as diferencia é que “o hom<strong>em</strong> não sai <strong>da</strong> caverna” 593 . Antes <strong>de</strong> abandonar a<br />

caverna, ao contrário, o hom<strong>em</strong> mais se dirige para seu interior. E então, a<br />

fragmentação se recru<strong>de</strong>sce, pois “a transcendência é substituí<strong>da</strong> pela imanência, o<br />

divino pelo <strong>pro</strong>fano, a exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong> pela subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a physis pelo espírito”.<br />

Entretanto, “a dicotomia platônica continua a mesma”. 594<br />

É essa dicotomia que separa o mundo interior <strong>de</strong> “la cueva”, <strong>de</strong> outro mundo;<br />

a separação que t<strong>em</strong> lugar nesse episódio, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é entre dois “outros<br />

mundos”. O jogo <strong>de</strong>ntro-fora <strong>de</strong> “la cueva” dá conta do jogo interior-exterior<br />

necessário para tornar possível essa leitura.<br />

O que se vê, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> caverna cartesiana, é o anúncio <strong>de</strong> um estagnar-se o<br />

hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> seu interior, e <strong>de</strong>la não mais se libertar. E não podia ser <strong>de</strong> outro modo;<br />

a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> anuncia<strong>da</strong> era por <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>seja<strong>da</strong> <strong>de</strong> todos: o acreditar estar<strong>em</strong>, <strong>em</strong><br />

seu pensamento, aprisiona<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as coisas do mundo, to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

possíveis, <strong>da</strong>va a esse hom<strong>em</strong> a tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> certeza absoluta. Isso é o<br />

resultado <strong>da</strong> incessante busca pelo conhecimento que tanto influenciou no ir mais<br />

fundo, explorando ca<strong>da</strong> vez mais o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu pensamento, que culminou com a<br />

afirmação <strong>de</strong> que fora <strong>da</strong> caverna, fora <strong>de</strong> seu pensamento, na<strong>da</strong> existe, pois, se a<br />

condição básica para o existir é a clareza absoluta, essa só existe <strong>de</strong>ntro do hom<strong>em</strong>.<br />

Essa é uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos “géneros <strong>de</strong> encantamentos y otros modos <strong>de</strong><br />

llevar a los encantados”; esse é um possível caminho que está percorrendo o<br />

encantar do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote, até os nossos t<strong>em</strong>pos __ “<strong>de</strong>stos nuestros<br />

ti<strong>em</strong>pos” 595 .<br />

593 o<br />

CASTRO Manuel Antonio <strong>de</strong>. Poética e poiesis: a questão <strong>da</strong> interpretação. Fun<strong>da</strong>ção Eng Antonio <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>. Porto:<br />

Vere<strong>da</strong>s, 1999, p.327.<br />

594 o<br />

CASTRO Manuel Antonio <strong>de</strong>. Poética e poiesis: a questão <strong>da</strong> interpretação. Fun<strong>da</strong>ção Eng Antonio <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>. Porto:<br />

Vere<strong>da</strong>s, 1999, p.327.<br />

595 Desses nossos t<strong>em</strong>pos (1, XLVII, p.288)


Reaparece a palavra “máquina” para corroborar essas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

apresenta<strong>da</strong>s. Isso porque, é com esse próprio pensamento, que também a ciência<br />

busca, ca<strong>da</strong> vez mais e mais, clareza no conhecimento. E é com seus novos<br />

conhecimentos que cresce com ela, também, ca<strong>da</strong> vez mais, a performance <strong>de</strong> criar<br />

as artimanhas técnicas que já povoam, tanto o espaço <strong>de</strong> Dom Quixote, <strong>em</strong> forma<br />

<strong>de</strong> uma ingênua brinca<strong>de</strong>ira sim, uma <strong>pro</strong>vidência que <strong>de</strong>ixara todos os envolvidos<br />

compungidos sim, mas cheia <strong>de</strong> <strong>pro</strong><strong>pós</strong>itos tão “dignos” 596 que os fazia agra<strong>de</strong>cer a<br />

Deus, “las gracias a la buena intención” 597 . Essas artimanhas que aprisionavam não<br />

só a natureza, como também aprisionavam o hom<strong>em</strong>, e pior ain<strong>da</strong>, que<br />

possibilitavam o aprisionamento do hom<strong>em</strong> pelo próprio hom<strong>em</strong>, também já<br />

avançavam a passos largos pelo Oci<strong>de</strong>nte.<br />

O aprisionamento <strong>de</strong> Dom Quixote acontece no nível mais baixo; num carro<br />

<strong>de</strong> animal, Dom Quixote é submetido por outros homens, seus vizinhos e amigos até<br />

a condição também <strong>de</strong> animal.<br />

Se avaliarmos a cena, no entanto, a partir <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> que s<strong>em</strong>pre<br />

reserva a obra <strong>de</strong> arte, é possível encontrarmos, aqui, uma abertura para outro nível<br />

<strong>de</strong> interpretação.<br />

“falar”<br />

5.1 5.1 Para contar e <strong>de</strong>sencantar, não basta falar; é preciso<br />

596 Desse modo, os que assim agiam com Dom Quixote, <strong>de</strong> forma tão baixa, justificavam seu <strong>pro</strong>cedimento: além <strong>de</strong> ser uma<br />

ação-<strong>pro</strong>vidência cheia <strong>de</strong> <strong>pro</strong><strong>pós</strong>itos, também os <strong>de</strong>ixava compungidos <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> que assim <strong>pro</strong>ce<strong>de</strong>r. Por isso consi<strong>de</strong>ravam<br />

seus <strong>pro</strong><strong>pós</strong>itos dignos. As aspas talvez sejam para chamar a atenção para uma possível ironia.<br />

597 As graças e a boa intenção (1, XLVI, p.283).


Se formos juntando agora as peças <strong>de</strong>sse longo e complicado quebra-<br />

cabeças: o experienciar “a cueva <strong>de</strong> Montesinos” <strong>de</strong> Dom Quixote; o encantamento<br />

do pensar metafísico, <strong>de</strong>sdobrado-se <strong>em</strong> técnica, chegando <strong>à</strong>s raias <strong>da</strong> <strong>dom</strong>inação<br />

do hom<strong>em</strong> pelo próprio hom<strong>em</strong>; o com<strong>pro</strong>misso firmado com Montesinos <strong>de</strong> libertar<br />

a todos <strong>da</strong> caverna e, fun<strong>da</strong>mentalmente, o <strong>de</strong> contar ao mundo tudo o que ali<br />

acontecera; o dil<strong>em</strong>a que permanece s<strong>em</strong> solução: o não saber como contar ao<br />

mundo que “soy loco en mis acciones, pero no sou loco en lo que hablo” 598 ; e,<br />

principalmente, o <strong>de</strong> não encontrar a forma certa do “falar”; se a tudo isso<br />

acrescentarmos outros, é possível que transform<strong>em</strong>os, pelo menos, a situação <strong>de</strong><br />

dil<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> intrigante.<br />

Som<strong>em</strong>os, então, o verso otimista <strong>de</strong> Hör<strong>de</strong>rlin – “Porém on<strong>de</strong> está o perigo,<br />

cresce também o que salva” –, com a palavra <strong>de</strong> Maria José Rago Campos, <strong>em</strong><br />

“Arte e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”:<br />

Ninguém põe <strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> que a per<strong>da</strong> do caráter mito-<br />

poético <strong>da</strong> arte constitui um momento necessário <strong>à</strong> eclosão <strong>de</strong><br />

uma nova dimensão tecnológica que caracteriza o nosso<br />

mundo. Mas também não há dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que, <strong>em</strong> um segundo<br />

momento, a criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana preservou o el<strong>em</strong>ento<br />

irracional, dionisíaco e fantástico... O hom<strong>em</strong> encontrará abrigo<br />

naquele espaço on<strong>de</strong> o real e o irreal ain<strong>da</strong> coexist<strong>em</strong>, on<strong>de</strong> a<br />

natureza não é reduzi<strong>da</strong> a fim <strong>de</strong> ser <strong>dom</strong>ina<strong>da</strong>. 599<br />

598 Sou louco <strong>em</strong> meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.<br />

599 CAMPOS, Maria José Rago. Arte e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. São Paulo: Loyola, 1992, p.125. (Coleção Filosofia)


Acrescent<strong>em</strong>os, ain<strong>da</strong>, a imbatível força do <strong>da</strong>imon que estrutura o modo <strong>de</strong><br />

ser do hom<strong>em</strong>, e, a essa junt<strong>em</strong>os o intrigante episódio citado há pouco. Nele se<br />

conjugam, por um lado, o po<strong>de</strong>r exacerbado <strong>da</strong> técnica subjugando o hom<strong>em</strong>, a<br />

ponto <strong>de</strong> fazer-se valer sobre Dom Quixote, a vonta<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>mais – o regresso ao<br />

lar. Por outro, está presente na mesma cena, o <strong>da</strong>do ficção, se consi<strong>de</strong>rarmos que<br />

tudo só pô<strong>de</strong> ser realizado pela <strong>pro</strong>vidência <strong>de</strong> uma companhia <strong>de</strong> teatro que<br />

resolveu participar do <strong>pro</strong>jeto-farsa.<br />

Esses dois <strong>da</strong>dos estão tão misturados, que não é possível <strong>de</strong>tectar se o que<br />

moveu Dom Quixote a acreditar na farsa e a ela ace<strong>de</strong>r foi a trama maliciosa e<br />

intencionalmente arma<strong>da</strong>, ou se foi a excelência dos atores que conseguiram fingir<br />

tão b<strong>em</strong>, a ponto <strong>de</strong> o levar<strong>em</strong> a acreditar na farsa como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Visto assim, parece que vamos nos encaminhando para a solução, ou, pelo<br />

menos para a tentativa <strong>de</strong> explicação <strong>de</strong> alguns nós que, insistentes ao longo <strong>da</strong><br />

obra, ain<strong>da</strong> permanec<strong>em</strong>. Não teria isso, alguma coisa a ver com a mentira que tanto<br />

atormenta Dom Quixote, por tantos capítulos?<br />

Não estaria aí, a chave que <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>ria o enigma perseguido por Dom<br />

Quixote a respeito <strong>de</strong> seu modo especial <strong>de</strong> “falar”, para aten<strong>de</strong>r <strong>da</strong> maneira mais<br />

plena ao com<strong>pro</strong>misso firmado com Montesinos?<br />

Não estaria a técnica que, com seus encobrimentos, impe<strong>de</strong> a percepção do<br />

sentido do agir humano, <strong>pro</strong>movendo, ela mesma, a gran<strong>de</strong> “vira<strong>da</strong>” que possibilitará<br />

um retorno <strong>à</strong> sua essência?<br />

Não estaria tudo isso que somamos, nos conduzindo, a nós e a Dom Quixote,<br />

<strong>à</strong> chave para abrir as portas do 3 o Périplo, on<strong>de</strong> a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> an<strong>da</strong>rá na trilha <strong>da</strong> obra<br />

<strong>de</strong> arte?<br />

Não terá Dom Quixote <strong>de</strong>scoberto a gran<strong>de</strong> diferença que há entre falar e<br />

“falar”, e assim encontrado a sua forma própria e a<strong>pro</strong>pria<strong>da</strong> <strong>de</strong> falar para contar,


uscando outro modo <strong>de</strong> encantar, buscando, na arte, o único e libertador<br />

encantamento?


Capítulo III<br />

3 o Périplo<br />

A VERDADE DA OBRA DE ARTE


1 A OBRA DE ARTE E O TEMPO<br />

“Quién du<strong>da</strong> sino que en los veni<strong>de</strong>ros ti<strong>em</strong>pos, cuando salga a luz la<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra historia <strong>de</strong> mis famosos hechos [...]” 600<br />

“[...] pero an<strong>da</strong>rá el ti<strong>em</strong>po, como otra vez he dicho, y yo te contaré algunas<br />

<strong>de</strong> las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aquí he contado, cuya<br />

ver<strong>da</strong>d ni admite réplica ni disputa.” 601<br />

“Des<strong>de</strong> el siglo XVII, Cervantes sigue buscando a su lector” 602 .<br />

Estas citações bastam, para a <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> que Dom Quixote está<br />

apresentando uma obra <strong>de</strong> arte. Ele mesmo informa ter <strong>da</strong>do esse aviso mais <strong>de</strong><br />

uma vez: “como otra vez he dicho”. Apesar <strong>de</strong> o personag<strong>em</strong> introduzi-las com o<br />

verbo “duvi<strong>da</strong>r” e, apesar do verbo no futuro e a subordina<strong>da</strong> sugerir<strong>em</strong><br />

<strong>pro</strong>babili<strong>da</strong><strong>de</strong>, seu significado indicia, pelo menos, a certeza <strong>de</strong> permanência no<br />

t<strong>em</strong>po.<br />

An<strong>da</strong> ron<strong>da</strong>ndo a biblioteca <strong>de</strong> Dom Quixote um “diablo”, melhor dito, “un<br />

encantador” que penetra na casa com to<strong>da</strong>s as peripécias que s<strong>em</strong>pre caracterizam<br />

aparições <strong>de</strong> seres <strong>de</strong>ssa estirpe: an<strong>da</strong>m sobre “nubes”, montados <strong>em</strong> “sierpes”,<br />

<strong>de</strong>ixam a casa “llena <strong>de</strong> humo”, fazendo “<strong>da</strong>ño” ao “dueño <strong>de</strong> aquellos libros” 603 . Ao<br />

retirar-se, <strong>de</strong>pois do estrago <strong>de</strong> <strong>da</strong>r fim <strong>à</strong> biblioteca <strong>de</strong> Dom Quixote, <strong>de</strong>ixa recado:<br />

“<strong>de</strong>jaba hecho el <strong>da</strong>ño en aquella casa que [...] se vería”. 604<br />

600<br />

Qu<strong>em</strong> duvi<strong>da</strong> que nos séculos vindouros, quando venha <strong>à</strong> luz a história ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira <strong>de</strong> meus célebres feitos (1, II, p.21)<br />

601<br />

Mas an<strong>da</strong>rá o t<strong>em</strong>po, como já disse, e eu te contarei algumas <strong>da</strong>s que lá <strong>em</strong>baixo vi, que te farão acreditar nas que aqui<br />

contei, cuja ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não admite réplica n<strong>em</strong> disputa (2, XXIII, p.448)<br />

602<br />

A impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> localizar a frase, que seguramente está escrita <strong>em</strong> Espanhol (“Des<strong>de</strong> el siglo XVII, Cervantes sigue<br />

<strong>pro</strong><strong>cura</strong>ndo a su lector”) <strong>em</strong> algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa a<strong>da</strong>ptação, caso contrário, a per<strong>de</strong>ríamos.<br />

603<br />

diabo – um encantador – nuvens – serpentes – <strong>da</strong>no – dono <strong>da</strong>queles livros<br />

604 Deixava feito o <strong>da</strong>no naquela casa que se veria (1, VII, p.44)


Mais uma vez, com “vería”, aparece o t<strong>em</strong>po jogado para “<strong>de</strong>pois”, como um<br />

referente <strong>de</strong> peso, referente corroborado pelo próprio Dom Quixote: “Se llama<br />

Frestón”, esse sábio encantador é seu inimigo, porque t<strong>em</strong> guar<strong>da</strong>do o segredo <strong>de</strong><br />

seu <strong>de</strong>stino, um <strong>de</strong>stino que não é só seu, mas também do outro cavaleiro com<br />

qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>verá lutar. É um <strong>de</strong>stino inevitável que Dom Quixote sabe que “mal podrá él<br />

contra<strong>de</strong>cir ni evitar” 605 . O <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Dom Quixote está para acontecer no t<strong>em</strong>po.<br />

Se compararmos Dom Quixote com Édipo, mesmo que o manchego tivesse a<br />

ilusão <strong>de</strong> ter cumprido seu <strong>de</strong>stino no 1 o Périplo, <strong>da</strong>ndo conta talvez do enigma que<br />

o <strong>pro</strong>vocava com a missão <strong>de</strong> cavaleiro, numa primeira instância, ou <strong>de</strong> filósofo,<br />

numa segun<strong>da</strong>, diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> Édipo, ele sabe que “n<strong>em</strong> por isso <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

humano e <strong>de</strong> continuar a viver e a sofrer”. Dom Quixote está alerta para isso, sabe<br />

que há ain<strong>da</strong> outro saber: “o <strong>de</strong>stino confronta o ser humano constant<strong>em</strong>ente com o<br />

saber e o conhecer” 606 .<br />

Com relação ao que o <strong>de</strong>stino t<strong>em</strong>-lhe ain<strong>da</strong> reservado, Dom Quixote só está,<br />

por hora, tentando i<strong>de</strong>ntificar o par com o qual <strong>de</strong>verá ter acesso a “um outro saber”.<br />

Embora <strong>de</strong>sconfie ser a razão ou a metafísica ou a essência <strong>da</strong> técnica, o seu<br />

opositor, um enigma ain<strong>da</strong> permanece: ser ele <strong>pro</strong>tegido por um encantador que<br />

sabe “artes y letras” 607 .<br />

Se essa luta prevista para o futuro está mais para dis-puta 608 do que para<br />

batalha; se assim consi<strong>de</strong>rarmos, é possível que estejamos penetrando no espaço<br />

que lhe seja mais conveniente: a obra <strong>de</strong> arte. Que melhor espaço há para que se<br />

trave uma m<strong>em</strong>orável dis-puta?<br />

605<br />

Mal po<strong>de</strong>rá ele contradizer ou evitar o que pelo céu está or<strong>de</strong>nado (1, VII, p.44)<br />

606<br />

CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p.15.<br />

607<br />

Artes e letras (1, VII, p.44)<br />

608 __<br />

A presença dos termos “combate” e “dis-puta” se <strong>de</strong>ve ao uso <strong>de</strong> duas traduções <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger: “combate” tradução <strong>de</strong><br />

Maria <strong>da</strong> Conceição Costa [A orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Lisboa: Edições 70, 2000]; e “dis-puta” __ tradução <strong>de</strong> Manuel Antonio<br />

<strong>de</strong> Castro e I<strong>da</strong>lina Azevedo <strong>da</strong> Silva [O originário <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, 2006 (não publicado)].


Contudo segue, ain<strong>da</strong>, o t<strong>em</strong>po cheio <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Em que momento, essa dis-<br />

puta vai acontecer? Não nos esqueçamos <strong>de</strong> que, nisso, cabe uma a<strong>pro</strong>ximação<br />

entre a luta que <strong>de</strong>verá configurar-se <strong>em</strong> batalha singular, e o pacto que Dom<br />

Quixote fez com Montesinos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”. Dom Quixote assumiu, ali, dois<br />

com<strong>pro</strong>missos: <strong>de</strong>sencantar, não só os prisioneiros <strong>de</strong> “la cueva”, como todos os<br />

prisioneiros encantados pelo pensar metafísico do Oci<strong>de</strong>nte.<br />

Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r o enigma e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir que a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> cartesiana<br />

recru<strong>de</strong>scera no hom<strong>em</strong> a crença no po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> razão, elevando-o <strong>à</strong> condição <strong>de</strong><br />

sujeito cheio <strong>de</strong> certezas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir que “com o surgimento <strong>da</strong> ciência, a<br />

partir dos conceitos filosóficos, estes sofr<strong>em</strong> uma transformação: “além dos limites<br />

<strong>de</strong>finidos, passa a ser exigido <strong>de</strong>les exatidão” 609 , <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tudo isso, precisa<br />

<strong>em</strong>penhar-se e trabalhar.<br />

À guisa <strong>de</strong> recor<strong>da</strong>ção, foi a partir <strong>de</strong> seu olhar observador, enquanto reunia<br />

el<strong>em</strong>entos para captar, na prática cotidiana, como se estavam <strong>pro</strong>cessando as<br />

interferências <strong>de</strong>sse novo pensar, que Dom Quixote se assegurou, do que até então<br />

estivera só na consciência. Estamos nos referindo a todos aqueles infelizes que, no<br />

2 o Périplo, s<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> experimentar a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, prisioneiros que estavam<br />

<strong>de</strong> um agir estranho ao agir do hom<strong>em</strong>, acabavam s<strong>em</strong> ver mais sentido na vi<strong>da</strong>: “se<br />

le acabó la vi<strong>da</strong>” 610 . Ou <strong>à</strong>queles para qu<strong>em</strong>, mesmo não extinguindo-se a vi<strong>da</strong><br />

literalmente, não a viviam <strong>em</strong> plenitu<strong>de</strong>, porque, mesmo vivos, já estavam mortos.<br />

Estamos nos referindo <strong>à</strong>s vítimas <strong>da</strong> ética do “fazer”, <strong>à</strong>queles que não<br />

chegaram a <strong>de</strong>scobrir que, para ser ético, basta estar <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>, basta perguntar,<br />

basta acatar a convocação para a escuta <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s questões, pois a fonte-raiz já<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre e para s<strong>em</strong>pre está lá. Falamos <strong>da</strong>queles seres que vagam pelos<br />

609 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p.15<br />

610 Acabou sua vi<strong>da</strong> (1, XXXV, p.217)


caminhos <strong>de</strong> Espanha, falamos do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong>penhado no “ter” o que não t<strong>em</strong>,<br />

lançando-se sobre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, na ânsia <strong>de</strong> tudo usurpar-lhe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> coisas até<br />

sentimentos e pessoas.<br />

Estamos falando dos galeotes, cheios <strong>de</strong> velhacaria; <strong>da</strong>quele galeote que,<br />

revelando a causa <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sgraça, diz ter sido preso “por enamorado” 611 , que se<br />

tinha enamorado <strong>de</strong> tal modo <strong>de</strong> um cesto cheio <strong>de</strong> roupas que o abraçou, com tanto<br />

amor, <strong>de</strong>le apo<strong>de</strong>rando-se, a ponto <strong>de</strong> a polícia ter <strong>de</strong> arrancar-lhe o cesto <strong>à</strong> força e<br />

metê-lo na ca<strong>de</strong>ia.<br />

Falamos <strong>de</strong> Grisóstomo que, <strong>em</strong> seu querer “ter”, converte pessoa <strong>em</strong> objeto.<br />

Marcela <strong>de</strong>sperta <strong>em</strong> Grisóstomo tal <strong>de</strong>sejo, que o mobiliza a um querer <strong>de</strong>la<br />

a<strong>pro</strong>priar-se. E também <strong>de</strong> Anselmo. Este difere um pouco <strong>em</strong> seu querer. Quer “ter”<br />

mais conhecimento, sua vonta<strong>de</strong> é <strong>de</strong> mais saber. Na falta <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong><br />

investigação, joga sua esposa num tubo <strong>de</strong> ensaio, submetendo-a aos rigores <strong>de</strong> um<br />

laboratório, até <strong>de</strong>la extrair to<strong>da</strong> a vitali<strong>da</strong><strong>de</strong>, até extrair a vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> todos aqueles<br />

que, juntos, participaram <strong>da</strong> experiência: “[...] <strong>de</strong> tristezas y melancolías. Este fué el<br />

fin que tuvieron todos, nacido <strong>de</strong> un tan <strong>de</strong>satinado principio” 612 , o mesmo princípio<br />

que sustentava a ciência e garantia exatidão.<br />

Falamos, enfim, <strong>de</strong> todos aqueles cujo querer, a essência mais original que<br />

move o hom<strong>em</strong>, está assentado no “ter”, <strong>da</strong>queles esquecidos <strong>de</strong> que do ethos,<br />

como linguag<strong>em</strong> e sentido do ser [...] se originou a ética”. 613<br />

Dom Quixote observa <strong>de</strong> que modo a nova crença está afetando o hom<strong>em</strong>,<br />

fazendo-o <strong>de</strong> tal modo voluntarioso, a ponto <strong>de</strong> o hermeneuta pressentir os ingênuos<br />

germes <strong>da</strong> “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, mais um <strong>de</strong>ntre os mencionados como <strong>pro</strong>váveis<br />

611 Por estar tão apaixonado (1, XXII, p.118)<br />

612 De tristezas e melancolias, Este foi o fim que tiveram todos, nacido <strong>de</strong> um tão <strong>de</strong>satinado princípio (1, XXXV, p.217)<br />

613 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p.19.


candi<strong>da</strong>tos ao lugar do “cavaleiro misterioso”, com qu<strong>em</strong> Dom Quixote <strong>de</strong>veria travar<br />

batalha singular.<br />

Se estamos investigando sinais que caracteriz<strong>em</strong> o ser obra <strong>de</strong> arte o alvo <strong>de</strong><br />

Dom Quixote, selecion<strong>em</strong>os os momentos <strong>em</strong> que o termo “obra” é mencionado.<br />

Mais <strong>de</strong> uma vez isso acontece: “pero [...]; basta que en la narración <strong>de</strong>l no se salga<br />

un punto <strong>de</strong> la ver<strong>da</strong>d” 614 . Aqui, <strong>em</strong>bora não haja menção ao termo “obra”, os<br />

indícios são <strong>de</strong> que algo <strong>de</strong>verá ser narrado com ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixando implícitos, além<br />

<strong>da</strong> obra, seu com<strong>pro</strong>misso com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com isso também se explicita um critério<br />

no que tange a essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra. Ao dizer que “esto importa poco a nuestro<br />

cuento” 615 , Dom Quixote está <strong>da</strong>ndo as diretrizes <strong>de</strong> que <strong>da</strong> obra é preciso <strong>de</strong>scartar<br />

todo o supérfluo, selecionando somente aquilo que na obra está <strong>em</strong> obra <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Outro ex<strong>em</strong>plo ain<strong>da</strong> “-¿Quién du<strong>da</strong> [...] cuando salga a la luz la ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra<br />

historia <strong>de</strong> mis famosos hechos” 616 , confirma, não só que há uma história para ser<br />

conta<strong>da</strong>, mas também que há relação quase <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência entre obra e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Logo a seguir, a questão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> aparece <strong>de</strong> forma não direta: ama e<br />

sobrinha, diante <strong>da</strong> alternativa do ser pastor, substituindo o cavaleiro que <strong>em</strong> seu<br />

regresso final <strong>à</strong> casa já não era cavaleiro, tentam dissuadi-lo dizendo que, ficando<br />

ao relento como pastor, correrá o risco <strong>de</strong> adoecer, e Dom Quixote assim reage:<br />

“Callad hijas – les respondió don Quijote; - que yo sé bien lo que me cumple” 617 . E<br />

acrescenta, <strong>de</strong>ixando claro, a todos, que t<strong>em</strong> uma missão a cumprir, que seja o que<br />

for que na obra ele <strong>de</strong>ci<strong>da</strong> fazer, necessitando ou não enfrentar as oposições, que<br />

sua missão se cumprirá. E essa missão aparece com to<strong>da</strong>s as letras: “[...] Y tened<br />

por cierto que, ahora sea caballero an<strong>da</strong>nte o pastor por an<strong>da</strong>r, [...] lo veréis por la<br />

614 Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração <strong>de</strong>le não <strong>de</strong> saia na<strong>da</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (1, I, p.18)<br />

615 Isto importa pouco <strong>à</strong> nossa história (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

616 Qu<strong>em</strong> duvi<strong>da</strong> [...] quando for exibi<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira história <strong>de</strong> meus famosos feitos (1, II, p.21)<br />

617 Calai, filhas – respon<strong>de</strong>u-lhes Dom Quixote: – que b<strong>em</strong> sei o que me cabe (2, LXXIII, p.696)


obra”. 618 Reaparece a obra, agora b<strong>em</strong> a<strong>pro</strong>xima<strong>da</strong> do sentido, não só <strong>da</strong><br />

consciência <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas também do inevitável <strong>de</strong>ssa responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

“sé bien lo que me cumple” e “no <strong>de</strong>jaré si<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> acudir a lo que hubiére<strong>de</strong>s<br />

menester”. 619<br />

A ca<strong>da</strong> momento essa missão mais se a<strong>pro</strong>xima do “ser obra”. Nesse<br />

momento final tudo isso se conjuga com o ser pastor - o guardião <strong>da</strong> casa do Ser, <strong>da</strong><br />

casa <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>. Na casa <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> habita o hom<strong>em</strong>. Logo, aquele que<br />

guar<strong>da</strong> o que mais essencial é ao hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> assumir o lugar <strong>de</strong> excelência <strong>de</strong><br />

conduzir os homens, do mesmo modo que Cristo veio, como linguag<strong>em</strong>, conduzir<br />

seu rebanho.<br />

Nesse caso, com o ex<strong>em</strong>plo acima, Dom Quixote se <strong>de</strong>spoja até <strong>da</strong> atribuição<br />

<strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong>nominação – “ahora sea caballero an<strong>da</strong>nte, o pastor por an<strong>da</strong>r”,<br />

cavaleiro ou pastor, para <strong>da</strong>r relevo <strong>à</strong> outra missão: a missão <strong>de</strong> ser obra. Com isso,<br />

não torna insignificante sua tarefa <strong>de</strong> pastor, só chama a atenção para outro<br />

significado maior <strong>de</strong>ssa missão. Por isso acrescenta: “por an<strong>da</strong>r”, quer, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>s-realizar o pastor, para que possa preenchê-lo <strong>de</strong> algo que lhe dê outro sentido.<br />

O modo tradicionalmente estabelecido <strong>de</strong> ser pastor <strong>de</strong>verá ser diferente. Não é<br />

possível que seja simplesmente “por an<strong>da</strong>r” pelos campos. Sua orientação ao<br />

rebanho se efetivará por outro caminho – <strong>pro</strong>vavelmente, pelo caminho <strong>da</strong> leitura.<br />

Qu<strong>em</strong> sabe, na longa seqüência <strong>de</strong> “passos” questionantes?<br />

Há ain<strong>da</strong> outro ex<strong>em</strong>plo <strong>em</strong> que não faz menção ao termo obra, mas <strong>de</strong>ixa<br />

nas entrelinhas: quando Dom Quixote <strong>de</strong>safia <strong>à</strong> luta, os leões que <strong>em</strong> carro fechado<br />

são conduzidos <strong>à</strong> corte, como presente do general <strong>de</strong> Orán, e um fi<strong>da</strong>lgo que a tudo<br />

assistia o aconselha a <strong>de</strong>sistir, tal é o risco <strong>da</strong> façanha, o cavaleiro irritado, lhe<br />

618 E ten<strong>de</strong> por certo que, agora seja cavaleiro an<strong>da</strong>nte ou adiante pastor, [...] o vereis pela obra. (2, LXXIII, p.696)<br />

619 Sei muito b<strong>em</strong> o meu com<strong>pro</strong>misso, e não <strong>de</strong>ixarei <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r ao que for necessário (Ibi<strong>de</strong>m)


espon<strong>de</strong>: “Váyase vuesa merced, señor hi<strong>da</strong>lgo [...] a enten<strong>de</strong>r con su perdigón<br />

manso [...] y <strong>de</strong>je a ca<strong>da</strong> uno hacer su oficio. Este es el mío [...]”. 620 Quer alertar para<br />

o irrelevante <strong>de</strong> tal façanha, convocando-o, talvez, a algo mais significativo, esse<br />

sim, é digno <strong>de</strong> atenção: a obra que, já é quase certo, Dom Quixote terá <strong>de</strong> escrever.<br />

Todos esses sinais indiciam o <strong>de</strong>stino. Dom Quixote t<strong>em</strong> ain<strong>da</strong> coisa por<br />

realizar. Dom Quixote é ain<strong>da</strong> o mesmo, aquele mesmo que fora fi<strong>da</strong>lgo, que fora<br />

cavaleiro, que fora filósofo e que agora está a ponto <strong>de</strong> conjugar seu agir <strong>de</strong><br />

hermeneuta com o <strong>de</strong> poeta.<br />

Na terceira citação que abre este capítulo, “Des<strong>de</strong> el siglo XVII, Cervantes<br />

sigue buscando a su lector”, 621 com sua sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, confirma a palavra <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote, <strong>de</strong>ixando, <strong>em</strong> aberto, quatro séculos para que o leitor <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Cervantes<br />

<strong>de</strong>la se a<strong>pro</strong>xime.<br />

Na obra, <strong>em</strong> muitas passagens, Dom Quixote dá esse alerta. Algumas vezes<br />

o faz por livre e espontânea vonta<strong>de</strong>, como no primeiro ex<strong>em</strong>plo que abre este<br />

capítulo, outras, se sente obrigado a fazê-lo, quando algum acontecimento, por não<br />

ser compreendido, <strong>pro</strong>voca resistência do interlocutor: <strong>de</strong>ntre os apresentados, no<br />

segundo ex<strong>em</strong>plo, Sancho é seu interlocutor e confessa não acreditar nos contos <strong>de</strong><br />

Dom Quixote sobre “la cueva <strong>de</strong> Montesinos”. E este, assim lhe respon<strong>de</strong>:<br />

Como me quieres bien, Sancho, hablas <strong>de</strong>sa manera – dijo don Quijote __ ;<br />

y, como no estás experimentado en las cosas <strong>de</strong>l mundo, to<strong>da</strong>s las cosas<br />

que tienen algo <strong>de</strong> dificultad te parecen imposibles [...]. 622<br />

Não falaria <strong>de</strong>sse modo, Dom Quixote, caso não estivesse vendo-se como<br />

obra. Reconhece a abertura infinita <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que só o vigor <strong>da</strong> obra po<strong>de</strong><br />

620<br />

Vá-se, vossa mercê, senhor fi<strong>da</strong>lgo, a enten<strong>de</strong>r-se com seu perdigão manso [...] e <strong>de</strong>ixe a ca<strong>da</strong> qual fazer o seu ofício<br />

(2, XVII, p.406)<br />

621<br />

A impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> localizar a frase, que seguramente está escrita <strong>em</strong> Espanhol (“Des<strong>de</strong> el siglo XVII, Cervantes sigue<br />

<strong>pro</strong><strong>cura</strong>ndo a su lector”) <strong>em</strong> algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa a<strong>da</strong>ptação, caso contrário, a per<strong>de</strong>ríamos.<br />

622<br />

Como me queres b<strong>em</strong>, Sancho, falas <strong>de</strong>ssa maneira – disse Dom Quixote; – e, como não estás experimentado nas coisas<br />

do mundo, to<strong>da</strong>s as coisas que têm alguma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> te parec<strong>em</strong> impossíveis. (2, XXIII, p.447-448)


guar<strong>da</strong>r, por isso não t<strong>em</strong> pressa. Com to<strong>da</strong> paciência, aguar<strong>da</strong> que Sancho mais<br />

tar<strong>de</strong>, sabedor <strong>de</strong> mais algumas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s do mundo, esteja <strong>em</strong> estado <strong>de</strong><br />

“<strong>pro</strong>ntidão” para novas compreensões. É contraditório que, exatamente Sancho, o<br />

personag<strong>em</strong> mais mun<strong>da</strong>no, o que está mais afinado com o cotidiano ordinário, com<br />

o mundo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> com<strong>pro</strong>vável e com<strong>pro</strong>va<strong>da</strong>, com o mundo <strong>de</strong> significações<br />

estabeleci<strong>da</strong>s, é contraditório, repetimos, que seja ele, aquele que é visto por Dom<br />

Quixote, como o que menos coisas do mundo sabe. Ao referir-se a mundo, Dom<br />

Quixote está tratando mundo na sua relação <strong>de</strong> tensão com terra, não mundo na sua<br />

mun<strong>da</strong>nei<strong>da</strong><strong>de</strong>, esse sim, o <strong>de</strong> Sancho, mas mundo como manifestação <strong>de</strong><br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mundo como mundo.<br />

O cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> Dom Quixote mostra a consciência <strong>de</strong> que o t<strong>em</strong>po é<br />

fun<strong>da</strong>mental para o ser. Por isso, acrescenta: “pero an<strong>da</strong>rá el ti<strong>em</strong>po, como otra vez<br />

he dicho, y yo te contaré algunas <strong>de</strong> las que allá abajo he visto, que te harán<br />

creer” 623 . Sancho precisa ter ain<strong>da</strong> outras experiências, ou melhor, precisa viver e<br />

experienciar muitas situações, para que ele e mundo se ampli<strong>em</strong>, o necessário para<br />

novas compreensões. Tal necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> ganha maior dimensão, quando se trata <strong>da</strong><br />

obra <strong>de</strong> arte. É claro que, com essa fala, Dom Quixote quer dizer também que esse<br />

experienciar po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r-se, também ao longo do t<strong>em</strong>po, tanto na vi<strong>da</strong>, como na leitura<br />

<strong>da</strong> própria obra, fazendo, com isso, <strong>de</strong>sdobrar-se esse t<strong>em</strong>a, <strong>em</strong> outros a ele afins: a<br />

salvaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra é um t<strong>em</strong>a importante e um ex<strong>em</strong>plo.<br />

Dom Quixote insinua estar consciente do drama <strong>de</strong> todos os que ficaram<br />

cativos do saber do primeiro Édipo, os mesmos que estão cativos do<br />

encantamento <strong>da</strong> caverna. Esses, os que ficaram na ilusão <strong>de</strong>sse saber, são os<br />

que insist<strong>em</strong> <strong>em</strong> “<strong>da</strong>r conta cientificamente do ser que ele é e <strong>de</strong>terminar, pelo<br />

saber, o seu <strong>de</strong>stino” 624 . Dom Quixote segue sendo o mesmo, o mesmo on<strong>de</strong><br />

saber e ser são, a ca<strong>da</strong> vez e ao mesmo t<strong>em</strong>po, o mesmo também.<br />

623<br />

Mas an<strong>da</strong>rá o t<strong>em</strong>po, como disse outra vez, e eu te contarei algumas <strong>da</strong>s que lá <strong>em</strong>baixo eu vi, que te farão crer nas que<br />

aqui contei. (2, XXIII, p.448)<br />

624<br />

CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p.51


Os avisos <strong>de</strong> Dom Quixote r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> a um t<strong>em</strong>po futuro; t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que,<br />

possivelmente, haverá, não só gran<strong>de</strong> abertura, como também, gran<strong>de</strong> expectativa<br />

<strong>de</strong> encontrar, na obra, respostas. Vale dizer, a título <strong>de</strong> alerta, que não se <strong>de</strong>ve<br />

consi<strong>de</strong>rar, aqui, as respostas <strong>da</strong> obra como <strong>de</strong>finitivas. Se l<strong>em</strong>brarmos <strong>da</strong> citação<br />

do 1 o Périplo, para isso estar<strong>em</strong>os sensíveis: “A resposta <strong>à</strong> pergunta é, como ca<strong>da</strong><br />

autêntica resposta, a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira do último passo <strong>de</strong> uma longa seqüência <strong>de</strong><br />

passos questionantes” 625 . Isso significa que <strong>à</strong> ca<strong>da</strong> questão, a obra não dá<br />

<strong>pro</strong>priamente resposta, o que faz é recolocar novas questões s<strong>em</strong>pre, num ciclo<br />

ininterrupto, cumprindo seu papel <strong>de</strong> espaço aberto, <strong>de</strong> espaço vazio <strong>de</strong> não-ser.<br />

É claro que aqui também vai <strong>em</strong>buti<strong>da</strong> a metodologia hermenêutica, a mais<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>, no que tange a interpretações no t<strong>em</strong>po. B<strong>em</strong> sabia Dom Quixote que<br />

muito <strong>de</strong> hermeneuta ain<strong>da</strong> restava a realizar.<br />

A estética <strong>da</strong> recepção t<strong>em</strong> registrado <strong>da</strong>dos significativos com respeito aos<br />

<strong>pro</strong>cessos <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> <strong>da</strong> obra e sua interpretação no t<strong>em</strong>po. Isso seria o<br />

bastante para preencher os quatro séculos, ao longo dos quais se <strong>de</strong>clara estar<br />

Cervantes aguar<strong>da</strong>ndo seu leitor. Agora, no entanto, estamos num t<strong>em</strong>po; um t<strong>em</strong>po<br />

que sugere ter Cervantes encontrado, mais do que nunca, seu leitor, pacient<strong>em</strong>ente<br />

esperado. Esse t<strong>em</strong>po é o nosso t<strong>em</strong>po.<br />

Pierre Vilar também a<strong>pro</strong>ximou Dom Quixote dos dil<strong>em</strong>as <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rnos e<br />

registra, <strong>de</strong>ntro dos quatro séculos abertos <strong>à</strong> expectativa <strong>de</strong> Cervantes, personag<strong>em</strong><br />

que, <strong>em</strong> sua essência, anuncia que, no Oci<strong>de</strong>nte, as questões permanec<strong>em</strong>:<br />

He dicho 1605-1615, Cervantes, don Quijote, la armadura y el almete. Igual<br />

hubiera podido <strong>de</strong>cir 1929-1939, Charlie Chaplin, Charlot, la chaqueta<br />

negra, el bombín y el bastón. Nunca dos obras han estado tan<br />

625 HEIDEGGER, M. O originário <strong>da</strong> Obra <strong>de</strong> Arte. Trad. Manuel Antônio <strong>de</strong> Castro e I<strong>da</strong>lina Azevedo <strong>da</strong> Silva, 2006,<br />

parágrafo 158 (mimeo)


<strong>em</strong>parenta<strong>da</strong>s. Las dos gran<strong>de</strong>s etapas <strong>de</strong> la historia mo<strong>de</strong>rna están en<br />

ellas capta<strong>da</strong>s <strong>de</strong>l mismo modo. 626<br />

Embora a referência registre os “t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos”, o que <strong>em</strong> Chaplin se<br />

exibia já era anúncio dos t<strong>em</strong>pos <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rnos.<br />

Esse t<strong>em</strong>po há muito v<strong>em</strong> anunciando-se. Octavio Paz v<strong>em</strong> acrescentar mais<br />

um paradoxo, <strong>de</strong>ntre os tantos que no 2 o Périplo <strong>de</strong>ixaram perplexo o hom<strong>em</strong>.<br />

Quando nos apresenta os gran<strong>de</strong>s poetas <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, lhes dá o perfil <strong>de</strong><br />

homens <strong>de</strong> classe média, com educação universitária e <strong>pro</strong>fissão liberal. Banqueiros,<br />

negociantes, burocratas ou m<strong>em</strong>bros <strong>da</strong> burguesia <strong>pro</strong>vinciana, todos foram<br />

“<strong>pro</strong>dutos <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> criação histórica <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>” e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, “todos<br />

foram, s<strong>em</strong> exceção, inimigos violentos <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 627<br />

O paradoxo está <strong>em</strong> que, se viviam no exterior, <strong>de</strong>ntro dos liames que<br />

caracterizam a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, “todos ouviram, não lá fora e sim <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les próprios<br />

(trovão, burburinho, jorro d’água) a outra voz”. Além dos já apresentados, há na<br />

manifestação que expressa essa “outra voz”, uma clara transgressão: “a maneira<br />

própria <strong>da</strong> poesia <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna” é ser transgressão, mas <strong>da</strong> forma mais<br />

espontânea. Isso porque, o poeta não prevê, não fabrica n<strong>em</strong> submete seu poetar, a<br />

um fazer “industrioso” do pensar; não há acréscimos, n<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos postiços. No<br />

poetar a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, há “uma transgressão quase involuntária e que aparece s<strong>em</strong><br />

que o poeta a isso se <strong>pro</strong>ponha”. A razão <strong>de</strong>ssa singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> é histórica. 628<br />

Entretanto, eis que é chegado o t<strong>em</strong>po mais extr<strong>em</strong>o, <strong>em</strong> que as<br />

expectativas compõ<strong>em</strong> um quadro acolhedor para a obra Dom Quixote <strong>de</strong> la<br />

Mancha. O t<strong>em</strong>po mais extr<strong>em</strong>o é aquele <strong>em</strong> que a carência dá sinais <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>smedi<strong>da</strong>, sinais <strong>de</strong> que viv<strong>em</strong>os a crise mais radical, um t<strong>em</strong>po que <strong>de</strong>screve<br />

uma constante <strong>de</strong>monstração <strong>da</strong> negação mais radical. Esse é o t<strong>em</strong>po – o t<strong>em</strong>po<br />

626 Eu disse 1605-1615, Cervantes, Dom Quixote, a armadura e o elmo. Igualmente po<strong>de</strong>ria haver dito 1929-1939, Charlie<br />

Chaplin, Carlitos, o paletó preto, o chapéu coco e a bengala. Nunca duas obras foram tão aparenta<strong>da</strong>s. As duas gran<strong>de</strong>s<br />

etapas <strong>da</strong> história mo<strong>de</strong>rna estão nelas capta<strong>da</strong>s do mesmo modo.” (VILAR, P. Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e<br />

historia. 5.ed. Barcelona: Ariel,1993, p.342)<br />

627 PAZ, Octávio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993, p.141.<br />

628 Ibi<strong>de</strong>m, p.142.


<strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rno, o mesmo t<strong>em</strong>po, talvez, <strong>de</strong> finalização <strong>da</strong> “ilusão frente a tudo o<br />

que está acontecendo”, o t<strong>em</strong>po do “último humanismo”, o humanismo <strong>da</strong>queles<br />

que “só conhec<strong>em</strong> o primeiro Édipo, o que ain<strong>da</strong> não furou os olhos” 629 .<br />

Dentre as respostas <strong>de</strong> Dom Quixote que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> ao futuro, como<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, há uma muito significativa. Em seu t<strong>em</strong>po, Dom Quixote não sabia<br />

ain<strong>da</strong> o t<strong>em</strong>po exato <strong>em</strong> que a batalha-dis-puta aconteceria. Entretanto, já é possível<br />

a<strong>pro</strong>ximá-lo <strong>de</strong>sse momento.<br />

O que naquela época seria somente fonte <strong>de</strong> especulação, ao cair no<br />

contexto <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, encontra razão <strong>de</strong> ser: Dom Quixote, quando lhe<br />

<strong>em</strong>pare<strong>da</strong>m a biblioteca, sua ama lhe informa ter sido, o <strong>de</strong>saparecimento, obra <strong>de</strong><br />

um gênio “Frestón”, i<strong>de</strong>ntificado imediatamente pelo cavaleiro como um “sabio<br />

encantador” 630 . Quando penetra <strong>em</strong> “la cueva”, <strong>em</strong>bora qu<strong>em</strong> o receba seja<br />

Montesinos, apresentando-se como “Yo soy el alcai<strong>de</strong>”, 631 seu modo <strong>de</strong> vestir l<strong>em</strong>bra<br />

também algum sábio encantador:<br />

Un venerable anciano, vestido con un capuz <strong>de</strong> bayeta mora<strong>da</strong>, que por el<br />

suelo le arrastraba: ceñíale los hombros y los pechos una beca <strong>de</strong> colegial,<br />

<strong>de</strong> raso ver<strong>de</strong>; cubríale la cabeza una gorra milanesa negra, y la barba,<br />

canísima, le pasaba <strong>de</strong> la cintura; no tenía a arma ninguna, sino un rosario<br />

<strong>de</strong> cuentas en la mano, mayores que medianas nueces, y los dieces<br />

asimismo como huevos medianos <strong>de</strong> avestruz; el continente, el paso, la<br />

grave<strong>da</strong>d y la anchísima presencia, ca<strong>da</strong> cosa <strong>de</strong> por sí y to<strong>da</strong>s juntas, me<br />

suspendieron y admiraron. 632<br />

De tal modo parecia um sábio que chegou a paralisar Dom Quixote.<br />

De todos os referentes, o que mais nos chama a atenção é o ovo. Ele<br />

aparece como imag<strong>em</strong> significativa. Além <strong>da</strong> <strong>de</strong>sci<strong>da</strong> <strong>à</strong>s <strong>pro</strong>fun<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> “la cueva”,<br />

há o sono que fechou as duas pontas <strong>de</strong> seu estar ali. Tanto sua entra<strong>da</strong> como a<br />

629<br />

CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p.51<br />

630<br />

Sábio encantador (1, VII, p.44)<br />

631<br />

Eu sou prefeito (2, XXIII, p.442)<br />

632<br />

Um venerável ancião, vestido com um capuz <strong>de</strong> baeta roxa, que pelo chão se arrastava: cingia-lhe nos ombros e no tronco<br />

uma beca <strong>de</strong> colegial, <strong>de</strong> tecido sedoso ver<strong>de</strong>; cobria-lhe a cabeça um gorro negro <strong>à</strong> mo<strong>da</strong> italiana, e a barba, muito grisalha,<br />

passava <strong>da</strong> sua cintura; não levava arma alguma, mas sim um rosário <strong>de</strong> contas na mão, maiores que nozes comuns, e ca<strong>da</strong><br />

décima conta tal como ovos medianos <strong>de</strong> avestruz; a conduta, o an<strong>da</strong>r, a imponência e imensa presença, ca<strong>da</strong> coisa <strong>de</strong> por si<br />

e to<strong>da</strong>s juntas, <strong>de</strong>ixaram-se suspenso e admirado. (2, XXIII, p. 441)


saí<strong>da</strong> são marca<strong>da</strong>s por um dormir e <strong>de</strong>spertar. O sentido <strong>de</strong>ssas experiências está<br />

relacionado com o contactar o originário e <strong>da</strong>li receber orientação. O ovo é símbolo<br />

do nascimento do mundo para muitos povos, é o que contém o germe [...] a partir do<br />

qual se <strong>de</strong>senvolverá a manifestação. No ovo, reali<strong>da</strong><strong>de</strong> primordial, está preserva<strong>da</strong><br />

a multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos seres. Na Índia, o ovo nasceu do Não-Ser e engendrou todos os<br />

el<strong>em</strong>entos. Em ca<strong>da</strong> cultura, <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> civilização, os <strong>pro</strong>cessos <strong>de</strong> manifestação que<br />

têm como germe o ovo são variados, mas estão intimamente relacionados <strong>à</strong><br />

manifestação pelo verbo.<br />

O sábio <strong>de</strong> “la cueva” também t<strong>em</strong> um rosário com “huevos”, o que <strong>de</strong>sfaz<br />

qualquer dúvi<strong>da</strong> quanto a ter tido Dom Quixote, uma experiência originária, tendo<br />

entrado <strong>em</strong> contato com o mais íntimo do ser.<br />

O que há <strong>de</strong> significativo nas duas experiências <strong>em</strong> que Dom Quixote foi<br />

alertado para uma intervenção no t<strong>em</strong>po, assimilando-as, tanto a <strong>da</strong> biblioteca como<br />

a <strong>de</strong> “la cueva”, aceitando como <strong>de</strong>stino uma e como com<strong>pro</strong>misso outra, é a<br />

coincidência <strong>de</strong> ser<strong>em</strong>, as duas, orquestra<strong>da</strong>s por seres especiais, seres que, além<br />

<strong>de</strong> sábios, são encantados.<br />

Isso sinaliza po<strong>de</strong>r tratar-se do mesmo. Os dois têm po<strong>de</strong>res mágicos e, a<br />

segun<strong>da</strong> aparição configura experiência indiscutivelmente originária. Experiência<br />

que, por sua vez e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, traça os contornos <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, alertando<br />

para <strong>pro</strong>jeções e irradiações na época <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rna.<br />

O que quer<strong>em</strong>os é encontrar pontos <strong>de</strong> ancorag<strong>em</strong> que nos permitam avaliar<br />

as previsões dos sábios <strong>da</strong> obra, perfeitamente ajusta<strong>da</strong>s ao t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que estamos<br />

vivendo, além <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos nelas sentir sinais que apont<strong>em</strong> na direção <strong>da</strong><br />

obra <strong>de</strong> arte.


2 A PÓS-MODERNIDADE, É CHEGADO O TEMPO<br />

É chegado o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno per<strong>de</strong>r a gran<strong>de</strong> ilusão, o t<strong>em</strong>po do<br />

“último humanismo”. A <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> parece apontar para a época atual, como<br />

algum tipo <strong>de</strong> encerramento, acabamento ou mesmo superação <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Apesar <strong>de</strong> cercado <strong>de</strong> inúmeras controvérsias, o termo aponta para um<br />

fenômeno que se mostra aparent<strong>em</strong>ente constante, a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição e <strong>da</strong><br />

certeza, não só do “lugar e papel” do hom<strong>em</strong>, mas <strong>de</strong> sua relação com o mundo,<br />

com a História e com a natureza. Ao lado <strong>da</strong> aceleração avassaladora <strong>da</strong>s<br />

tecnologias <strong>da</strong> informação, <strong>de</strong> diversos materiais tecnológicos e mesmo <strong>da</strong><br />

genética, ocorreram mu<strong>da</strong>nças paradigmáticas no modo <strong>de</strong>sse pensar a<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e suas instituições, que parec<strong>em</strong> radicalizar o paradigma<br />

cont<strong>em</strong>porâneo.<br />

A <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> surge <strong>da</strong> assunção <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> superação <strong>de</strong>ste<br />

paradigma absolutista, cuja falência é evi<strong>de</strong>nte, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que<br />

naturalmente se faz<strong>em</strong> sentir numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do conhecimento. É a assunção <strong>de</strong><br />

uma crise. Correspon<strong>de</strong> <strong>à</strong> percepção <strong>de</strong> que a radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s certezas <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma razão absoluta, estreitando-se ca<strong>da</strong> dia mais <strong>de</strong>ntro dos<br />

limites do racional, com o acervo conceitual <strong>à</strong> espreita, vigiando o mínimo sinal do<br />

novo, para aprisioná-lo <strong>de</strong>ntro dos arquivos já existentes, radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> calca<strong>da</strong> no<br />

rigor do método e nas certezas mat<strong>em</strong>áticas, que pouco a pouco expurga do hom<strong>em</strong><br />

seu caráter instintivo, irracional e bárbaro; na<strong>da</strong> disso é mais sustentável. Antes, se<br />

trata <strong>de</strong> um discurso que se esgotou, que se fragmentou paulatinamente, não sendo<br />

mais capaz, hoje, <strong>de</strong> <strong>da</strong>r conta do jogo que compõe a relação do hom<strong>em</strong> com o<br />

mundo <strong>em</strong> todo seu âmbito.<br />

Por outro lado, um contexto <strong>de</strong> rigores absolutos t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre uma<br />

contraparti<strong>da</strong>; vai acumulando um quantum que, <strong>à</strong> espreita, aguar<strong>da</strong> o momento<br />

para irromper também <strong>em</strong> radicali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.


É chega<strong>da</strong> a hora, talvez, <strong>em</strong> que um <strong>da</strong>queles momentos, que perpassam<br />

to<strong>da</strong>s as culturas <strong>em</strong> todos os t<strong>em</strong>pos, se esteja mostrando; um momento <strong>de</strong> crise<br />

<strong>em</strong> que são cobrados “a <strong>em</strong>ergência do hom<strong>em</strong> e o âmbito <strong>de</strong> sua atuação e <strong>de</strong> seu<br />

lugar <strong>de</strong>ntro do real – e o enigma do seu <strong>de</strong>stino”, 633 questões que encontram<br />

acolhi<strong>da</strong>s na obra <strong>de</strong> arte.<br />

Nessa transição, po<strong>de</strong>rá Dom Quixote travar a gran<strong>de</strong> batalha <strong>pro</strong>meti<strong>da</strong> para<br />

o futuro e tão espera<strong>da</strong> com o cavaleiro, até então <strong>de</strong>sconhecido?<br />

Quando nos referimos ao futuro, estamos simplesmente sendo fiéis ao<br />

<strong>pro</strong>gnóstico feito na biblioteca no início <strong>da</strong> história. Assim o registra Dom Quixote:<br />

“que tengo <strong>de</strong> venir, an<strong>da</strong>ndo los ti<strong>em</strong>pos, a pelear en singular batalla”. 634<br />

Esse futuro que usamos não se refere a um t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>terminado, fixo que<br />

possa esgotar-se. T<strong>em</strong>po aqui significa qualquer t<strong>em</strong>po, qualquer t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

Cervantes espontaneamente ache seu leitor. Nesse caso, consi<strong>de</strong>rando que nós<br />

somos agora seus últimos e mais recentes leitores, supomos que essa batalha<br />

estaria prevista para agora, para este momento que, casualmente é o t<strong>em</strong>po <strong>pós</strong>-<br />

mo<strong>de</strong>rno on<strong>de</strong>, talvez, haja leitores tocados e sensíveis pela predisposição que abre<br />

essa compreensão no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> crise.<br />

Talvez esse t<strong>em</strong>po previsto por Dom Quixote, com o qual estamos, nós,<br />

atuais leitores, afinados, seja esse o que viria ao encontro do t<strong>em</strong>po do verso <strong>de</strong><br />

Hol<strong>de</strong>rlin: “Pero don<strong>de</strong> está el peligro, crece también lo que salva”, 635 verso que<br />

incitou Hei<strong>de</strong>gger a pensar a técnica e a acreditar na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um retorno <strong>à</strong><br />

orig<strong>em</strong>; a poiesis <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> técnica.<br />

É possível; muitos aguar<strong>da</strong>m esse retorno <strong>à</strong> orig<strong>em</strong> poiética, porque<br />

também a arte foi alcança<strong>da</strong> pela essência técnica que sobre ela repercutiu,<br />

633<br />

CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p.13<br />

634<br />

Tenho <strong>de</strong> vir, an<strong>da</strong>ndo os t<strong>em</strong>pos, a pelejar <strong>em</strong> singular batalha com um cavaleiro (1, VII, p.44)<br />

635<br />

On<strong>de</strong> mora o maior perigo, está a maior possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> salvação (HEIDEGGER, M. La pregunta por la técnica.<br />

Conferencias y Artículos. Barcelona: Serbal, 1994, p.30).


fazendo-a per<strong>de</strong>r o caráter mito-poético. Chegamos ao ponto mais dramático<br />

para on<strong>de</strong> a essência <strong>da</strong> técnica po<strong>de</strong>ria nos conduzir. Des<strong>de</strong> que o pensar<br />

humano saiu <strong>de</strong> seu el<strong>em</strong>ento e se esgotou, esse vazio foi compensado como<br />

techné, e os mesmos <strong>pro</strong>cessos utilizados <strong>em</strong> relação <strong>à</strong> natureza foram<br />

estendidos <strong>à</strong> linguag<strong>em</strong>.<br />

O hom<strong>em</strong> é o único ser capaz <strong>de</strong> palavra. É enquanto ser falante que o<br />

hom<strong>em</strong> é hom<strong>em</strong>. Entretanto, é fun<strong>da</strong>mental que se estabeleça aqui o sentido<br />

radical <strong>de</strong> falar e dizer. Língua não é um simples instrumento <strong>de</strong> troca e <strong>de</strong><br />

comunicação. Entretanto, é exatamente essa concepção corrente <strong>da</strong> língua que se<br />

vê aviva<strong>da</strong> pela <strong>dom</strong>inação <strong>da</strong> técnica mo<strong>de</strong>rna.<br />

Entretanto, uma outra língua experiencia<strong>da</strong> pelos pensadores originais<br />

abre-se <strong>à</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> porque <strong>de</strong>ixa livre o ser <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas, ao mostrar-se.<br />

Tudo isso nos leva a <strong>de</strong>sconfiar tratar-se <strong>de</strong> um alerta no que se refere ao<br />

esvaziamento <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> que <strong>pro</strong>lifera rápido por to<strong>da</strong> parte, ameaçando a<br />

essência do hom<strong>em</strong>.<br />

É a metafísica avançando a passos largos. A intervenção técnica atinge até<br />

o nível lingüístico, com a virtuosi<strong>da</strong><strong>de</strong> do virtual que na globalização <strong>da</strong> Internet<br />

se esten<strong>de</strong> numa escala planetária, reduzindo a comunicação <strong>à</strong> informatização.<br />

Enquanto o virtual fala <strong>de</strong> muitas coisas, quer e po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> tudo, e<br />

mesmo que o virtual tenha tudo armazenado, o dizer não po<strong>de</strong> tudo dizer. Mas o<br />

não po<strong>de</strong>r dizer tudo não significa não dizer na<strong>da</strong>; significa que todo dizer, para<br />

dizer, resguar<strong>da</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> si o que não po<strong>de</strong> ser dito. Essa é a vigência do<br />

poético, on<strong>de</strong> a linguag<strong>em</strong> <strong>pro</strong>tege, cultiva o mistério, o mesmo mistério que,<br />

segundo Emmanuel Carneiro Leão, pulsa escondido no coração do virtual. O<br />

mistério <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> que se retrai naturalmente para ser s<strong>em</strong>pre doação e força<br />

<strong>de</strong> ser do dizer.<br />

3 A POESIA E A “OUTRA VOZ”<br />

Ao percorrermos os liames do virtual na linguag<strong>em</strong>, mais a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, a<strong>pro</strong>ximando-nos do poético.<br />

Octavio Paz i<strong>de</strong>ntifica a poesia com mercadoria barata, “forma verbal <strong>de</strong><br />

pouca utili<strong>da</strong><strong>de</strong> e preço”. Sua riqueza, no entanto, é imensurável, <strong>da</strong>í a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> submetê-la a um preço; o próprio mercado com ela não po<strong>de</strong>, porque, rebel<strong>de</strong>, ao<br />

contrário <strong>de</strong> outras manifestações que precisam ser “formas e coisas”, a poesia,


in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, não precisa necessariamente ocupar lugar no espaço. Poesia é<br />

espírito, “uma lufa<strong>da</strong> <strong>de</strong> ar”, o so<strong>pro</strong> vital. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, seu lugar é, com to<strong>da</strong><br />

rebeldia, estar correndo <strong>da</strong>qui pra ali, rolando <strong>de</strong> boca <strong>em</strong> boca, flutuando como ar,<br />

escorrendo como água, <strong>em</strong> total “gastança”. E não se po<strong>de</strong> estranhar; quase<br />

imaterial, é ela a “fazedora”, só ela po<strong>de</strong>, do fluido, <strong>pro</strong>duzir imag<strong>em</strong> na mente<br />

<strong>da</strong>quele que, <strong>de</strong>ntro do seu raio <strong>de</strong> ação, não escapa do conjuro verbal que ela é. É<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> irrefutável: “poesia é pra qu<strong>em</strong> diz”. Enquanto escrita e guar<strong>da</strong><strong>da</strong>, na<strong>da</strong> é;<br />

esse é seu gran<strong>de</strong> mistério: “o po<strong>em</strong>a contém poesia sob a condição <strong>de</strong> não guardá-<br />

la”. É o próprio paradoxo manifestando-se; é conceito e é imag<strong>em</strong>; é idéia e é forma;<br />

é som e é silêncio. Octavio Paz assim a resume: “suas imagens são criaturas<br />

anfíbias”; essa é a marca <strong>da</strong> poesia. 636<br />

O mais intrigante está nesse mais um paradoxo: por mais que a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

tenha <strong>pro</strong>duzido material expresso <strong>em</strong> guerras, revoluções, regimes, teorias e<br />

aspirações, to<strong>da</strong>s as suas perguntas “continuam s<strong>em</strong> resposta” 637 .<br />

Do mesmo modo que <strong>em</strong> “la cueva”, Octavio Paz também nos fala <strong>de</strong> um<br />

“outro mundo”, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é possível ouvir uma “outra voz”. Explica não se tratar <strong>de</strong><br />

mera facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, e resume dizendo ser uma voz que soa no mais íntimo do ser s<strong>em</strong>,<br />

contudo, ser sua somente. Qu<strong>em</strong> ouve a outra voz, sendo ele mesmo, é outro. A<br />

outra voz é do outro mundo e <strong>de</strong>ste mundo, é antiga e é <strong>de</strong> hoje, é plenitu<strong>de</strong> e é<br />

vazio. 638<br />

Teria ouvido, Dom Quixote, essa voz? Para um louco, na<strong>da</strong> mais a<strong>de</strong>quado. É<br />

b<strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, sua formação <strong>de</strong> filósofo o preparara mais para ver do que para<br />

escutar. Entretanto, é impossível que não ouvisse vozes, sintoma tão característico<br />

<strong>de</strong> seu estado <strong>de</strong> louco. É b<strong>em</strong> possível que sim. Com a energia com que se <strong>de</strong>ixa<br />

636 PAZ, Octávio. A outra voz São Paulo: Siciliano, 1993, p.143.<br />

637 Ibi<strong>de</strong>m, p.136.<br />

638 Ibi<strong>de</strong>m, p.140.


tomar s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> suas atuações, só po<strong>de</strong> ser movido por algo que lhe venha <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro, algo que lhe sussurre coisas tão <strong>em</strong>polgantes que o encham <strong>de</strong> entusiasmo.<br />

E isso t<strong>em</strong> sentido, porque entusiasmo significa “Deus <strong>de</strong>ntro”.<br />

Todos os do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, tentavam<br />

preencher o vazio. Compreen<strong>de</strong>r a estrutura e os níveis do diálogo po<strong>de</strong> nos<br />

encaminhar para o modo diferenciado <strong>de</strong> Dom Quixote colocar-se no mundo.<br />

Reinterpretando a dialética: o prefixo “dia” significa a presença <strong>de</strong> dois, e<br />

logos é linguag<strong>em</strong>. Dialética significa dois que <strong>pro</strong><strong>cura</strong>m a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

entretanto, não está nos dois, ela está no logos; a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> está na linguag<strong>em</strong>.<br />

A compreensão <strong>da</strong> dialética melhor se esclarece quando sab<strong>em</strong>os que o<br />

significado <strong>de</strong> “dia” é: “através <strong>de</strong>” e “entre”. “Diá-logos” não é, pois, n<strong>em</strong> um n<strong>em</strong><br />

outro; é mistério. O “dia” como “entre” se dá no silêncio, a partir do qual, ca<strong>da</strong> um<br />

dialogante <strong>pro</strong>fere o seu dizer, a partir <strong>da</strong> escuta do logos. Em “la cueva”, Dom<br />

Quixote é escuta <strong>de</strong> um na<strong>da</strong> que se atualiza ininterruptamente. Esse ininterrupto é<br />

<strong>pro</strong>piciado pela ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do “entre”; o mesmo que falava Heráclito sobre a<br />

physis: ambos ten<strong>de</strong>m ao encobrimento e <strong>de</strong>scobrimento que se faz ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />

“entre”.<br />

Para o quadro do mundo captado por Dom Quixote, foram partícipes os<br />

sofistas e o <strong>pro</strong>cesso por eles imposto. Eram os portadores <strong>da</strong> “Sofia”, que<br />

funcionavam segundo os ditames do aprendizado. Eram mestres na manipulação<br />

<strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> argumentação e or<strong>de</strong>nação do pensamento, o que possibilitou a<br />

fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> retórica, <strong>da</strong> gramática e <strong>de</strong> qualquer sist<strong>em</strong>a técnico que vise o b<strong>em</strong><br />

falar e o b<strong>em</strong> conhecer.<br />

Sent<strong>em</strong>-se, aí, os primeiros sinais do vazio <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> como comunicação<br />

que se apresentarão nos t<strong>em</strong>pos <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> forma avassaladora. Nessa<br />

esfera <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> fica <strong>de</strong>finitivamente <strong>de</strong>scartado o que há <strong>de</strong> mais complexo na<br />

linguag<strong>em</strong> que é a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do real.


Os sofistas se alimentaram <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s obras poéticas como fonte <strong>de</strong><br />

nutrição <strong>de</strong> sua retórica e <strong>de</strong> sua gramática. Entretanto, tais obras restringiam-se ao<br />

que hoje está fixado como estilos; tudo voltado para a estética do Belo. Lança-se<br />

mão do estilo como muleta que permite percorrer a obra pinçando, aqui e ali, aquele<br />

mo<strong>de</strong>lar que o método <strong>de</strong>marca como correto. Dos caminhos <strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s, per<strong>de</strong>-<br />

se a linguag<strong>em</strong>, linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> que o “pol<strong>em</strong>os”, aquela disputa que caracteriza a<br />

physis e o logos, se transforma <strong>em</strong> controvérsia.<br />

Do “pol<strong>em</strong>os”, colhia-se a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como lógica, claramente marca<strong>da</strong> pelas<br />

orações do discurso. O objetivo <strong>de</strong>sse ensino/aprendizado era treinar a<br />

argumentação para o <strong>de</strong>staque dos mais inteligentes, a partir dos seus pontos <strong>de</strong><br />

vista e <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> convencimento. Ao retomar esse caminho, o Oci<strong>de</strong>nte<br />

silencia o não-caminho e inviabiliza a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

E a poiesis? Pelas metodologias platônica e sofística, impossível alcançar a<br />

poiesis. Esse <strong>pro</strong>cedimento metodológico, além <strong>da</strong> physis e <strong>da</strong> aletheia, esquece<br />

também o mito e há dois mil e quinhentos anos, <strong>em</strong> todo o Oci<strong>de</strong>nte há o pre<strong>dom</strong>ínio<br />

<strong>da</strong> fala sobre o silêncio e, conseqüent<strong>em</strong>ente, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong><br />

linguag<strong>em</strong> sobre o discurso, do Thanatos sobre o Eros. Privilegiam-se os rígidos nós<br />

<strong>da</strong> trama <strong>da</strong> re<strong>de</strong>, os vazios e seus abismos assustam, <strong>de</strong> modo a impotencializar o<br />

contato do ser com o ser.<br />

Bendita seja a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> re<strong>de</strong> do estabelecido mundo espanhol. Cheia <strong>de</strong><br />

puídos, a trama não se impunha, inevitável era o abismo. Sendo assim, na<strong>da</strong> mais<br />

restava a Dom Quixote, senão lançar-se no abismo, viver a cavalaria e <strong>da</strong>r-se a<br />

chance do experienciar.<br />

Não só na Espanha, mas <strong>em</strong> todo o Oci<strong>de</strong>nte, estavam todos <strong>em</strong> busca <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Acreditando estar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> no apossar-se <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, confundiam,<br />

todos, reali<strong>da</strong><strong>de</strong> com ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. E o diálogo que mantêm, para <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong>ssa


eali<strong>da</strong><strong>de</strong>, se dá no nível do código, <strong>da</strong> representação. Li<strong>da</strong>m com o mundo <strong>de</strong><br />

significados estabelecidos e compartilhados; o vazio é sentido, mas tenta-se<br />

preenchê-lo com equívocos. Como dito no 2 o Périplo, estão todos <strong>em</strong>penhados <strong>em</strong><br />

um viver, pautados no ter e na vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ter. Por isso estão todos voltados<br />

para o exterior, <strong>em</strong>penhados <strong>em</strong> acionar e pôr <strong>em</strong> uso o pensamento, <strong>em</strong> fazer valer<br />

seu po<strong>de</strong>r. E, mesmo que não conquist<strong>em</strong> a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, conquistam todo o resto;<br />

tudo conquistam, tudo sab<strong>em</strong>, <strong>de</strong> tudo se apossam, <strong>em</strong> nome do conhecimento.<br />

No diálogo, invert<strong>em</strong> as posições: um diálogo apressado on<strong>de</strong> o “tu” parece<br />

estar fora, parece ser o “outro”.<br />

No diálogo, o vazio, preench<strong>em</strong>-no com o “outro”, não <strong>de</strong>ixando espaço livre<br />

para ressonâncias. No auto-diálogo – “Eu-Tu”, a ressonância se dá no vazio do<br />

“entre”; este sim, o outro, o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro “Tu”. Para isso, entretanto, é preciso silêncio,<br />

é preciso um “Tu”-silêncio, um “Tu”-vazio, um “tu”-não-ser. É preciso escutar porque<br />

o diálogo se <strong>pro</strong>cessa <strong>de</strong>ntro: <strong>de</strong>ntro o convite <strong>à</strong> escuta <strong>da</strong> ressonância do “outro”<br />

que é o logos, no “outro” <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, ganha espaço o silêncio. O diálogo é, na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, “entre” o “Eu” que somos e o “Tu” que não somos, a partir <strong>da</strong> escuta do<br />

logos. Um diálogo entre o que somos e o que não somos é abertura ao ser; é<br />

“entre”, é logos. O mesmo logos <strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre.<br />

Com esses sinais, po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r porque as perguntas <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

continuam s<strong>em</strong> resposta,não há outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não há resposta que seja<br />

suficiente já que, feita a pergunta-resposta, essa mesma resposta, assedia<strong>da</strong> pela<br />

“outra voz”, se torna novamente pergunta e reinicia o movimento cíclico.<br />

Compreen<strong>de</strong>-se também porque Dom Quixote é aquele que só vive<br />

escutando vozes. Ser hom<strong>em</strong> é ser Cura, ser Cura é ser questão. Por isso, qu<strong>em</strong><br />

mais escuta vozes, mais é questão, mais é Cura, mais é hom<strong>em</strong>. Para Dom Quixote,<br />

que está <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura, <strong>de</strong> todos os cantos vozes ecoam e ressoam,


principalmente <strong>da</strong>s brechas, dos “buraquinhos”, como os “gritos e sussurros [...]<br />

vozes e murmúrios (que) sa<strong>em</strong> <strong>de</strong> todos os cantos, <strong>da</strong>s rachaduras <strong>da</strong>s pare<strong>de</strong>s,<br />

dos cômodos trancados, dos sulcos <strong>da</strong> terra”. 639 Desse mesmo modo, Dom Quixote<br />

escuta a outra voz <strong>em</strong> “la cueva”, do mesmo modo, que é o modo <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte<br />

ser <strong>de</strong>finitivamente questão.<br />

Descrito <strong>de</strong>sse modo, parece que Dom Quixote não está <strong>em</strong> sintonia com o<br />

esqu<strong>em</strong>a <strong>da</strong> época, pois suas <strong>de</strong>cisões eram por <strong>de</strong>mais atípicas; funcionava<br />

s<strong>em</strong>pre na contramão: enquanto todos permanec<strong>em</strong> lendo, Dom Quixote inventa<br />

mundo, vai viver a cavalaria; enquanto estão todos lúcidos, Dom Quixote<br />

enlouquece e ouve vozes. Quer ente mais impróprio, quer ente mais “outro”<br />

que esse?<br />

4 DE IMITAR A SER “O OUTRO”, HÁ MUITA DIFERENÇA<br />

Só no liame aprendizado-aprendizag<strong>em</strong> foi possível que Dom Quixote se<br />

configurasse como obra <strong>de</strong> arte.<br />

A leitura <strong>da</strong>s novelas cumpriu plenamente seu <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> formação do<br />

filósofo; haja vista o critério com que Dom Quixote formatou o mundo <strong>da</strong> cavalaria,<br />

segundo os ditames <strong>da</strong> Paidéia platônica.<br />

Embora sua <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> viver a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> cavalaria tenha a chancela do<br />

aprendizado platônico metafísico, seu ingresso real nesse mundo, com ele não está<br />

<strong>em</strong> sintonia.<br />

639 MATTOS, Celia Regina <strong>de</strong> Barros. Pedro Páramo, vi<strong>da</strong> e morte <strong>em</strong> r<strong>em</strong>ontag<strong>em</strong>. Revista Matraga, Rio <strong>de</strong> Janeiro: UERJ:<br />

IFL, v.1, n.2/3, p.58-62, mai-<strong>de</strong>z 1987.


No 1º Périplo, confirmou-se a previsão metafísica <strong>da</strong> tendência humana <strong>à</strong><br />

imitação; tendência que acabou vitimando Dom Quixote com a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> sua<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, substituí<strong>da</strong> pela “persona” do cavaleiro, assunção que a<strong>pro</strong>veitou ao<br />

limite máximo. No 3º Périplo, entretanto, a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> assume novos<br />

contornos.<br />

O que para a república cristã foi drástico e ameaçador - a per<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, no 3 o Périplo ganha <strong>em</strong> importância: só com a leitura <strong>de</strong>sses livros Dom<br />

Quixote pô<strong>de</strong> ser tocado pelo “querer-ser” o que não era. Foram esses livros, lidos<br />

na solidão <strong>da</strong> leitura silenciosa, que sinalizaram a Dom Quixote ser ele possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

S<strong>em</strong> o suporte dos livros <strong>de</strong> cavalaria, s<strong>em</strong> a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> assumir-se cavaleiro, Dom<br />

Quixote jamais teria tido a chance <strong>de</strong> abrir-se ao diálogo <strong>pro</strong>motor <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>.<br />

Isso é <strong>de</strong> tal modo significativo, que o corrobora o primeiro regresso do<br />

cavaleiro <strong>à</strong> sua al<strong>de</strong>ia, <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> primeira saí<strong>da</strong>,<br />

[...] sin que nadie le viese, una mañana, antes <strong>de</strong>l día, que era uno <strong>de</strong> los<br />

calurosos <strong>de</strong>l mes <strong>de</strong> julio, se armó <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s sus armas, subió sobre<br />

Rocinante, puesta su mal compuesta cela<strong>da</strong>, <strong>em</strong>brazó su a<strong>da</strong>rga, tomó su<br />

lanza, y por la puerta falsa <strong>de</strong> un corral salió al campo 640<br />

Depois <strong>da</strong> primeira saí<strong>da</strong>, Dom Quixote regressa e convence seu vizinho,<br />

hom<strong>em</strong> rústico __ “un labrador vecino suyo, hombre <strong>de</strong> bien __ si es que este título se<br />

pue<strong>de</strong> <strong>da</strong>r al que es pobre __ , pero <strong>de</strong> muy poca sal en la mollera” 641 __ a acompanhá-<br />

lo <strong>em</strong> suas aventuras, na função <strong>de</strong> escu<strong>de</strong>iro.<br />

Essa <strong>pro</strong>vidência <strong>de</strong> Dom Quixote assegura sua constatação <strong>de</strong> faltar-lhe,<br />

ain<strong>da</strong>, no aparato com o qual configurou o mundo <strong>da</strong> cavalaria an<strong>da</strong>nte, uma peça<br />

fun<strong>da</strong>mental: Sancho, o escu<strong>de</strong>iro. Afinal, entre dulcinéias e rocinantes, entre lanças<br />

640 S<strong>em</strong> que ninguém o visse, uma manhã, antes do dia, que era um dos calorosos do mês <strong>de</strong> julho, armou-se <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s suas<br />

armas, subiu <strong>em</strong> Rocinante, posta sua mal composta cela<strong>da</strong>, segurou sua espa<strong>da</strong>, tomou sua lança, e pela porta falsa <strong>de</strong> um<br />

curral saiu ao campo (1, II, p.21)<br />

641 Um lavrador seu vizinho, hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> b<strong>em</strong> (se é que este título se po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r a qu<strong>em</strong> é pobre), mas <strong>de</strong> pouquíssimo<br />

entendimento. (1, VII, p.44)


e armaduras, qu<strong>em</strong> acionaria o diálogo? Alguns teóricos reconhec<strong>em</strong> que a obra só<br />

t<strong>em</strong> início com o ingresso <strong>de</strong> Sancho:<br />

[...] <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> los seis primeros capítulos, la cual abarca la Primera Sali<strong>da</strong><br />

que Don Quijote <strong>em</strong>pren<strong>de</strong> solo: es <strong>de</strong>cir, durante el resto <strong>de</strong> la Primera<br />

parte (la Segun<strong>da</strong> Sali<strong>da</strong>), cuando la llega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Sancho le <strong>da</strong> a su amo<br />

alguien con quien hablar. A partir <strong>de</strong> entonces, ca<strong>da</strong> “acontecimiento” o<br />

aventura por separado se vuelve, <strong>pro</strong>gresivamente, más conciente <strong>de</strong> sí<br />

misma. Como permanecen juntos, los dos hombres se sienten “existir” en lo<br />

que acontece. 642<br />

S<strong>em</strong> o bronco escu<strong>de</strong>iro não seria possível que Dom Quixote pusesse o<br />

mundo <strong>da</strong> cavalaria <strong>em</strong> xeque, não haveria diálogo, n<strong>em</strong> confronto <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s. É<br />

recomendável, portanto, a<strong>pro</strong>ximação do dil<strong>em</strong>a configurado: a imitação e o outro.<br />

Recebera perfeita acolhi<strong>da</strong>, no 1º Périplo, a im<strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um cavaleiro<br />

an<strong>da</strong>nte medieval no liame do século XVII, condição que lhe valeu o diagnóstico <strong>de</strong><br />

louco por per<strong>da</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Foi assim que entrou na vi<strong>da</strong>: como um louco <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<br />

<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura. Tanto leu, tanto imitou, e só assim pô<strong>de</strong> por-se a <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>r Cura. É<br />

claro que essa é a lou<strong>cura</strong> trata<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro dos limites necessários <strong>à</strong> compreensão do<br />

1º Périplo. Outra lou<strong>cura</strong>, entretanto, ain<strong>da</strong> está por vir.<br />

Uma vez passa<strong>da</strong> a experiência <strong>de</strong> Cura, ain<strong>da</strong> ciente do transitório <strong>de</strong>ssa<br />

conquista, Dom Quixote alça outro patamar que permite, tanto a ele como aos que,<br />

com olhos curiosos, o avaliam, ampla visão. Pontos sombrios <strong>de</strong> sua história se<br />

insinuam então: um <strong>de</strong>sses pontos, cuja peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> exige atenção, é o “outro”.<br />

S<strong>em</strong> muito esforço, um breve olhar no 2º Périplo é suficiente para traçar o<br />

perfil <strong>de</strong> infelici<strong>da</strong><strong>de</strong> e aprisionamento do hom<strong>em</strong>. Algo os a<strong>pro</strong>xima <strong>de</strong> modo<br />

642 Depois dos seis primeiros capítulos, que compreen<strong>de</strong> a primeira saí<strong>da</strong> que Dom Quixote <strong>em</strong>preen<strong>de</strong> sozinho: quer dizer,<br />

durante o resto <strong>da</strong> primeira parte (a segun<strong>da</strong> saí<strong>da</strong>), quando a chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Sancho dá ao seu amo alguém com qu<strong>em</strong> falar. A<br />

partir <strong>de</strong> então, a ca<strong>da</strong> acontecimento ou aventura, se torna, <strong>pro</strong>gressivamente, mais consciente <strong>de</strong> si mesmo. Como<br />

permanec<strong>em</strong> juntos, os dois homens se sent<strong>em</strong> existir no que acontece. (GILMAN, S. La novela según Cervantes. México:<br />

Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993, p.30)


contun<strong>de</strong>nte: dotados <strong>de</strong> alguma falta, anseiam todos por preenchê-la;<br />

preenchimento não muito simples, <strong>da</strong>do o radicalismo que pontua suas histórias.<br />

Quanto a afirmar-se o exterior como direcionamento comum <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

expectativas, não se t<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>: se era para <strong>dom</strong>inar e a<strong>pro</strong>priar-se pelo<br />

conhecimento ou pela posse física, isso são nuances s<strong>em</strong> pertinência. O que se<br />

quer i<strong>de</strong>ntificar é a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um completar-se a partir do outro, ou melhor,<br />

com o outro; <strong>pro</strong>cedimento comum a todos os infelizes que, mesmo fora <strong>de</strong> “la<br />

cueva” eram prisioneiros cont<strong>em</strong>plados pelo olhar avaliador <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

Dom Quixote, no entanto, não se enquadra nesse esqu<strong>em</strong>a. Por mais louco<br />

que pareça, seu agir parece estar no limite do saudável. Porque estava no liame <strong>da</strong><br />

<strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>, s<strong>em</strong> que soubesse exatamente o “outro” que lhe correspondia, Dom<br />

Quixote, encantado com o viver <strong>da</strong> cavalaria, o absorve como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, s<strong>em</strong>,<br />

contudo, tornar-se integralmente impróprio.<br />

Isso fica visível <strong>em</strong> dois <strong>pro</strong>cedimentos:<br />

Primeiramente, não encarna a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> nenhum cavaleiro específico<br />

__ seu cui<strong>da</strong>do está <strong>em</strong> ser um cavaleiro simplesmente. Visto <strong>de</strong>sse modo, po<strong>de</strong><br />

parecer que Dom Quixote se reduz ao <strong>de</strong>nominador comum: cavaleiro an<strong>da</strong>nte __<br />

mais um <strong>de</strong>ntre os tantos inventados por aquela ficção. Entretanto, ao dizer o herói<br />

que os livros <strong>de</strong> cavalaria não po<strong>de</strong>m ser mentira, porque contam tudo, está<br />

pontuando exatamente o contrário. Inicialmente, porque a pergunta é expressa <strong>em</strong><br />

tom <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>: “¿habían <strong>de</strong> ser mentira?; y más llevando tanta apariencia <strong>de</strong> ver<strong>da</strong>d,<br />

pues nos cuentan el padre, la madre, la patria, los parientes, la e<strong>da</strong>d, el lugar, las<br />

hazañas, punto por punto y día por día, que el caballero hizo, o caballeros<br />

hicieron” 643 , posteriormente, porque <strong>de</strong>clara ser tudo apenas aparência <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>;<br />

643 Havia <strong>de</strong> ser mentira e ain<strong>da</strong> mais tendo tanta aparência <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a<br />

i<strong>da</strong><strong>de</strong>, o lugar e as façanhas, <strong>de</strong>talhe ponto por ponto e dia a dia, que o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304)


além <strong>da</strong> maliciosa correção <strong>de</strong> “el caballero hizo” para “caballeros hicieron”, tornando<br />

indiferente a marca individualizadora do cavaleiro.<br />

Com isso, Dom Quixote <strong>de</strong>ixa claro sua realização diferencia<strong>da</strong>. Os cavaleiros<br />

<strong>da</strong>s novelas são resultado <strong>de</strong> esqu<strong>em</strong>as on<strong>de</strong> cabia e se encaixava qualquer herói,<br />

bastava querer entrar na fôrma. Dom Quixote, entretanto, não é um herói enformado,<br />

construído, a priori. Ao contrário, ele engendra a si próprio, a partir <strong>de</strong> um gesto <strong>de</strong><br />

lou<strong>cura</strong>, s<strong>em</strong> necessitar <strong>de</strong> “padre”, “madre”, “patria”, n<strong>em</strong> “parientes”. No que se<br />

refere <strong>à</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, s<strong>em</strong> nascimento biológico, Dom Quixote só começa a ganhar corpo<br />

aos cinqüenta anos, quando cruza o liame <strong>da</strong> ficção. Quanto ao lugar, apesar <strong>de</strong><br />

localizar-se “En un lugar <strong>de</strong> la Mancha”, a oração seguinte “<strong>de</strong> cuyo nombre no<br />

quiero acor<strong>da</strong>rme”, 644 imediatamente <strong>de</strong>sconstrói a localização.<br />

Ser cavaleiro simplesmente não é, portanto, reduzir-se ao <strong>de</strong>nominador<br />

comum <strong>de</strong> cavaleiro. Isso coinci<strong>de</strong> com o segundo <strong>pro</strong>cedimento aqui retomado: o<br />

nomear-se. Seu cavaleiro, além <strong>de</strong> ter nome próprio, mantém vínculo com a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; cui<strong>da</strong>do criterioso do fi<strong>da</strong>lgo ao nomear todos os <strong>de</strong>mais el<strong>em</strong>entos que<br />

iam compor o mundo <strong>da</strong> cavalaria. Fica com<strong>pro</strong>vado, com isso, que Dom Quixote,<br />

apesar <strong>de</strong> usar o expediente <strong>da</strong> imitação, não cai na armadilha <strong>de</strong> assumir a<br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro. Não se constrói entrando numa forma com limites e<br />

contornos <strong>de</strong>finidos <strong>de</strong>finitivamente. Seu <strong>pro</strong>cedimento po<strong>de</strong>ria ser comparado ao <strong>da</strong><br />

ciência, caso não tivesse a malícia <strong>de</strong> não admitir que o contorno se fechasse<br />

<strong>de</strong>finitivamente. No ser cavaleiro <strong>de</strong> Dom Quixote fica disponível o “entre”, ser<br />

cavaleiro é só uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esse “entre” acontece nas <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>s, on<strong>de</strong> se dá<br />

um aprendizado <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong>.<br />

Na mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> fi<strong>da</strong>lgo <strong>em</strong> cavaleiro, ao contrário <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r, Dom Quixote só<br />

po<strong>de</strong> ganhar, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que, alguma mínima abertura o fez intuir o “entre”.<br />

644 Em um lugar <strong>de</strong> la Mancha, <strong>de</strong> cujo nome não quero l<strong>em</strong>brar-me (1, I, p.17)


1.1.1.1.1 5 DESDE QUANDO, DOM QUIXOTE OUVE A VOZ?<br />

Dom Quixote enfrenta o dil<strong>em</strong>a <strong>de</strong> ser conhecedor dos limites <strong>em</strong> que todos<br />

li<strong>da</strong>m com o viver, e precisa encontrar a melhor forma <strong>de</strong> dizer isso a todos. Sabe<br />

não ser possível usar qualquer linguag<strong>em</strong>. Ain<strong>da</strong> que criasse um sist<strong>em</strong>a sofisticado<br />

<strong>de</strong> informação e comunicação, sua mensag<strong>em</strong> alcançaria o mundo, s<strong>em</strong> chegar, no<br />

entanto, a tocá-los como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. No nível <strong>da</strong> comunicação, a<br />

linguag<strong>em</strong> sequer a<strong>pro</strong>ximar-se-ia do mundo: só a obra <strong>de</strong> arte abre mundo, “A obra<br />

<strong>de</strong> arte é obra na medi<strong>da</strong> que abre e institui mundo, mas esse só é mundo no operar<br />

<strong>da</strong> obra” 645<br />

Em Dom Quixote permanece a preocupação <strong>em</strong> chamar a atenção para o seu<br />

“falar”. Revela, com isso, estar inquieto, buscando, ele mesmo, a forma que <strong>de</strong>ve <strong>da</strong>r<br />

a seu falar. T<strong>em</strong> que ser um “falar” <strong>de</strong> tal modo que possibilite que todos o escut<strong>em</strong>,<br />

do mesmo modo como ele também um dia, também já escutara. Desse modo,<br />

estamos evoluindo: já sab<strong>em</strong>os que Dom Quixote já escutara um dia.<br />

É preciso saber como teve, Dom Quixote, a experiência <strong>da</strong> outra voz.<br />

Dom Quixote, ele mesmo sinaliza não se ter sujeitado ao fechamento do mero<br />

conceito do cavaleiro an<strong>da</strong>nte, vigente no mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria.<br />

Dizíamos que, se houve imitação, essa só funcionou enquanto nos limites do 1 o<br />

Périplo, o necessário para que ele fizesse a travessia <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>da</strong> Cura.<br />

645 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 41


No 3 o Périplo, sua função parece ser outra. Quer-nos dizer que, apesar <strong>da</strong><br />

aparência <strong>de</strong> abertura nos limites do mero conceito, ele não chegou a aprisionar-se<br />

nos limites mais limitados <strong>de</strong> uma personali<strong>da</strong><strong>de</strong> específica, o que significaria<br />

im<strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais radical. Desse modo, parece que Dom Quixote, ao contrário <strong>de</strong><br />

expandir-se <strong>em</strong> im<strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong>, se expandiu <strong>em</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Se quisermos compreen<strong>de</strong>r melhor os motivos que levaram Dom Quixote a<br />

assumir tão radicalmente o papel <strong>de</strong> cavaleiro no 1 o Périplo, caindo no impróprio,<br />

também radicalmente, radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> que foi-se <strong>de</strong>svanecendo até chegar ao 3 o<br />

Périplo, quando é possível <strong>da</strong>r-lhe nova cara; se quisermos melhor compreen<strong>de</strong>r,<br />

pens<strong>em</strong>os no seguinte: é t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> saber <strong>de</strong> tudo; até do hom<strong>em</strong>: há passagens na<br />

obra que <strong>de</strong>ixam claro uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> traçar perfis <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>: “que no<br />

todos son corteses ni bien mirados: algunos hay follones y <strong>de</strong>scomedidos”. 646<br />

Circula pela obra uma dinâmica que t<strong>em</strong>, no ver e no pensar, a função <strong>de</strong><br />

observar, avaliar, <strong>de</strong>finir, <strong>de</strong>screver, saber. É claro que esse sentimento também se<br />

apo<strong>de</strong>rou <strong>de</strong> Dom Quixote que queria também ser e saber-se alguma coisa que não<br />

sabia, mas que, contraditoriamente, bra<strong>da</strong>va dizendo saber: “Yo sé quien soy”.<br />

Só assim é possível compreen<strong>de</strong>r que, do que precisava, naquele momento,<br />

era <strong>de</strong> saber a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; tudo abria <strong>à</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acercá-lo <strong>à</strong> Cura, tudo<br />

indicava que o que <strong>pro</strong><strong>cura</strong>va Dom Quixote era Cura. S<strong>em</strong> nenhum r<strong>em</strong>orso, por<br />

essa <strong>de</strong>cisão no 1 o Périplo, a reafirmamos na voz do próprio Quixote, quando<br />

<strong>de</strong>clara no final <strong>da</strong> história não ser mais cavaleiro, reencontrando-se consigo<br />

mesmo, recuperando sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong>, etc, etc: “yo fui loco, y ya soy cuerdo; fui<br />

don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, y soy agora, como he dicho, Alonso Quijano el Bueno”. 647<br />

646 Que n<strong>em</strong> todos são corteses n<strong>em</strong> b<strong>em</strong> vistos: há alguns fanfarrões e <strong>de</strong>scomedidos. (2, VI, p.353)<br />

647 Já fui louco e já sou sensato; fui Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano, o<br />

Bom. (2, LXXIV, p.699)


Convém l<strong>em</strong>brar que as novelas <strong>de</strong> cavalaria têm diferentes funções na obra:<br />

no 1 o Périplo, <strong>de</strong>svirtuando-se do que lhe é próprio, Dom Quixote passa a ser a<br />

perfeita representação do impróprio. Po<strong>de</strong>r-se-ia chamar, nesse caso, o impróprio <strong>de</strong><br />

Dom Quixote __ “impróprio <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático”.<br />

Caberia investigar o grau <strong>de</strong> alienação <strong>de</strong> si mesmo <strong>de</strong> Dom Quixote, se é<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> ter sido, ele mesmo, a primeira vítima <strong>da</strong> ficção poética do século XVI. Se<br />

assim for, que leitura po<strong>de</strong>mos fazer <strong>de</strong>ssa mensag<strong>em</strong>? Seria um alerta para não<br />

ler? Ou, o que queriam, era que se lesse?<br />

Deve haver algo que individualize Dom Quixote no quadro geral dos leitores<br />

do seu t<strong>em</strong>po. Dizer que só por ser louco ouvia vozes, t<strong>em</strong> sentido, mas, s<strong>em</strong><br />

<strong>pro</strong>vas, po<strong>de</strong> parecer irresponsável. Principalmente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> concluirmos, acima,<br />

ter sido a voz que ouvia, a responsável por ele, mesmo s<strong>em</strong> consciência, ter-se<br />

<strong>pro</strong>tegido do fechamento radical e <strong>de</strong>finitivo do cerco, pelo menos no tocante a ter<br />

assumido a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> do “outro”: outro cavaleiro qualquer, herói <strong>da</strong>s muitas<br />

novelas que lia. É b<strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que Dom Quixote <strong>de</strong>monstra ter lá suas preferências<br />

e que toma como referência Amadis <strong>de</strong> Gaula, para ele o melhor <strong>de</strong> todos; mas<br />

chegar a virar Amadis, isso, ele não <strong>de</strong>ixou acontecer.<br />

No que tange ao cavaleiro mo<strong>de</strong>lar, tipificado <strong>em</strong> to<strong>da</strong>s as novelas <strong>de</strong><br />

cavalaria, ter-lhe sido, esse sim, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> imitação do qual se a<strong>pro</strong>priou, ain<strong>da</strong><br />

assim, se ele <strong>de</strong>monstrou ter caído nessa armadilha, há um ligeiríssimo equívoco <strong>de</strong><br />

fração <strong>de</strong> segundos.<br />

Suponhamos que, enquanto Dom Quixote lia as perigosas novelas <strong>de</strong><br />

cavalaria, dois motivos evi<strong>de</strong>nciavam-se e po<strong>de</strong>riam, ou não, excluir-se mutuamente:<br />

ou não estava <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> uma leitura satisfatória que o estivesse plenificando, n<strong>em</strong><br />

o fazendo feliz, n<strong>em</strong> <strong>pro</strong>duzindo nele os efeitos que uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira leitura, os<br />

efeitos que uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira obra <strong>de</strong> arte <strong>de</strong>ve <strong>pro</strong>duzir e, assim se sentindo, o “pobre


fi<strong>da</strong>lgo”, <strong>de</strong>la quis escapar, saltando para fora e indo viver aquela mesma vi<strong>da</strong> para<br />

experimentá-la na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e verificar até que ponto tudo aquilo que lera era<br />

mentira ou ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. E, nesse caso, muito b<strong>em</strong> se a<strong>da</strong>pta o estranho gestual: “sus<br />

labios aún se movían mientras sus manos se contraían”, 648 mais afinado com a<br />

ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> insatisfação, do que com a euforia <strong>da</strong> plenitu<strong>de</strong>.<br />

Ou ain<strong>da</strong>, outro motivo: talvez, ao contrário do primeiro, aquela leitura estava<br />

sendo <strong>pro</strong>dutiva, tornando-o <strong>de</strong> tal modo pleno e feliz, a ponto <strong>de</strong> não resistir e<br />

precisar torná-la vi<strong>da</strong> e experimentá-la. Nesse caso, <strong>de</strong> tão excitado, o já n<strong>em</strong> tão<br />

“pobre fi<strong>da</strong>lgo” entra na vi<strong>da</strong> cavaleiresca para adotá-la <strong>em</strong> sua vi<strong>da</strong>, para<br />

experienciá-la.<br />

Se feliz ou infeliz, se pleno ou não, o que importa é que as novelas <strong>de</strong><br />

cavalaria <strong>pro</strong>duziram, <strong>em</strong> Dom Quixote, um agir inédito: <strong>de</strong> todos os leitores<br />

aficcionados por novelas <strong>de</strong> cavalaria que, do mesmo modo que o fi<strong>da</strong>lgo, como<br />

“ratones <strong>de</strong> biblioteca” 649 liam <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente e s<strong>em</strong> nenhum controle “<strong>de</strong> claro<br />

en claro [...] <strong>de</strong> turbio en turbio”; 650 <strong>de</strong> todos, Dom Quixote foi o único que saiu para<br />

pôr a cavalaria <strong>em</strong> prática. E foi assim que, submetendo-a <strong>à</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po,<br />

a expôs ao diálogo e virou obra.<br />

É preciso, no entanto, estar-se atento: não foi assim, como num passe <strong>de</strong><br />

mágica, não foi querer simplesmente ser obra e virar obra. Há muito ain<strong>da</strong> a<br />

acrescentar. O que se po<strong>de</strong> adiantar é o diálogo, visto anteriormente, como a<br />

dinâmica fun<strong>da</strong>mental para esse acontecer <strong>da</strong> obra.<br />

Em se tratando <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, entretanto, acrescent<strong>em</strong>os outra, talvez só<br />

a titulo <strong>de</strong> esclarecimento: Dom Quixote relutou um pouco <strong>em</strong> optar por ser obra <strong>de</strong><br />

arte. Se b<strong>em</strong> pensado, é justo seu preocupar-se. Já se ouvia na época, “por todos<br />

648 Seus lábios ain<strong>da</strong> se moviam, enquanto suas mãos se contraíam. (GILMAN, S. La novela según Cervantes. México:<br />

Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993, p.18)<br />

649 Ratos <strong>de</strong> biblioteca.<br />

650 Dia a<strong>pós</strong> dia, noite a<strong>pós</strong> noite (1, I, p.18)


los rincones”, 651 murmúrios sobre ser<strong>em</strong> as novelas <strong>de</strong> cavalaria mentiras. Ora, caso<br />

optasse por ser um ser <strong>de</strong> ficção, o simples fato <strong>de</strong> fazer ele parte <strong>da</strong>quele estilo<br />

literário tão perseguido, po<strong>de</strong>ria tirar-lhe a paz. E na<strong>da</strong> pior do que ser uma mentira,<br />

sua formação o instrumentalizara para estar s<strong>em</strong>pre do lado <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> essencial.<br />

Caso não estivesse apto a alcançar a essência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> pela luz <strong>da</strong> razão, estaria<br />

<strong>à</strong> mercê do engano, cairia no território do “falso”. Qu<strong>em</strong>, afinal, quer ser mentira,<br />

qu<strong>em</strong> se contenta <strong>em</strong> ser falso? Estaria Dom Quixote, ele mesmo, uma imag<strong>em</strong>-<br />

questão, apto a <strong>de</strong>cifrar um enigma entre ser falso e ser “fingere”?<br />

Foi por isso que Dom Quixote acabou fazendo essa escolha apressa<strong>da</strong> sim,<br />

mas só aparent<strong>em</strong>ente fecha<strong>da</strong> e entifica<strong>da</strong> nos limites do cavaleiro. Atenção, só<br />

aparent<strong>em</strong>ente: Dom Quixote não se fecha, n<strong>em</strong> se <strong>de</strong>ixa estigmatizar, assumindo<br />

to<strong>da</strong>s as correspondências ao mundo <strong>da</strong> cavalaria, por mera a<strong>de</strong>quação. Saberia<br />

po<strong>de</strong>r ser a amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa escolha, b<strong>em</strong> mais generosa? Só para adiantar, no que<br />

se refere <strong>à</strong> sua preocupação <strong>em</strong> ser ou não falso, só mais adiante, Dom Quixote vai<br />

ter a chance <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r-se com o que é ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente “falso”.<br />

Volt<strong>em</strong>os <strong>à</strong> “outra voz”; é preciso <strong>de</strong>scobrir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando Dom Quixote ouve<br />

vozes. Sobre o modo como as escutava, a obra oferece três gran<strong>de</strong>s momentos <strong>em</strong><br />

que o recôndito <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> sussurra <strong>em</strong> suas linhas. É o auto-diálogo<br />

evi<strong>de</strong>nciando-se enquanto escuta do logos. São momentos <strong>em</strong> que a própria<br />

referência ao local indicia movimento <strong>em</strong> direção ao interior. Trata-se <strong>de</strong> “La cueva<br />

<strong>de</strong> Montesinos”, muito b<strong>em</strong> explora<strong>da</strong> <strong>em</strong> suas <strong>pro</strong>fun<strong>de</strong>zas; se trata do retiro que<br />

faz Quixote na Floresta <strong>de</strong> “Sierra Morena”: “Preguntónos que cuál parte <strong>de</strong>sta sierra<br />

era la más áspera y escondi<strong>da</strong>; dijímosle que era esta don<strong>de</strong> ahora estamos; y es<br />

ansí la ver<strong>da</strong>d, porque si entráis media legua más a<strong>de</strong>ntro, quizá no acertaréis a<br />

651 Por todos os cantos (2, XVI, p.402)


salir”, 652 local para on<strong>de</strong> se retiravam os cavaleiros, na busca <strong>de</strong> compreensão dos<br />

males enfrentados, via <strong>de</strong> regra, os males <strong>de</strong> amor vividos na li<strong>da</strong> cavaleiresca.<br />

Não <strong>de</strong>ix<strong>em</strong>os que se perca <strong>de</strong> vista a floresta, não por acaso presente na<br />

obra, para tentarmos a<strong>pro</strong>ximá-la <strong>da</strong>quela que também Hei<strong>de</strong>gger utiliza como<br />

imag<strong>em</strong>. É na floresta que t<strong>em</strong> lugar a dis-puta. É on<strong>de</strong> o não-ser, enquanto<br />

somente mistério, por b<strong>em</strong> aten<strong>de</strong>r ao chamado <strong>pro</strong>vocador do ser, se sente<br />

mobilizado a ser. O espaço mais importante, no entanto, não é a floresta, e sim o<br />

seu encolhimento; encolhimento que é, por sua vez, o entregar-se <strong>à</strong> renúncia do ser.<br />

O espaço realmente importante é a clareira, o espaço liberado para que se dê a dis-<br />

puta ferrenha entre ser e não-ser; o espaço do “entre”; o espaço do logos, on<strong>de</strong> se<br />

colhe e recolhe o que é para o ser; espaço on<strong>de</strong> o ser, no colher e recolher, trata <strong>de</strong>,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, dissimular-se <strong>em</strong> não-ser.<br />

Há s<strong>em</strong>elhanças entre as florestas. Do muito que ela encerra, selecionamos o<br />

que as a<strong>pro</strong>xima. Ali, no escuro e no silêncio, Dom Quixote vai, como os <strong>de</strong>mais<br />

cavaleiros famosos, com o <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> liberar-se <strong>de</strong> algum mal, buscando conforto<br />

para alguma injúria ou lenitivo causado por mal <strong>de</strong> amor. Normalmente na floresta se<br />

refugiavam, com o <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>da</strong> reflexão sobre situação <strong>de</strong>sconfortante ou <strong>de</strong><br />

sofrimento.<br />

Comec<strong>em</strong>os dizendo que não fora b<strong>em</strong> esse o motivo que tinha levado Dom<br />

Quixote a “la Sierra Morena”. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, para ali n<strong>em</strong> iria, não fosse a insistência<br />

<strong>de</strong> Sancho. Este, precavido, <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> aventura dos galeotes, <strong>da</strong> qual participaram<br />

facilitando a fuga <strong>da</strong>queles priosioneiros, alerta Dom Quixote para o risco que<br />

estavam correndo, caso chegasse ao conhecimento <strong>de</strong> “La Santa Herman<strong>da</strong><strong>de</strong>” a<br />

<strong>de</strong>sastrosa atuação naquele evento.<br />

652 Perguntou-nos qual parte <strong>de</strong>sta serra era a mais áspera e escondi<strong>da</strong>; diss<strong>em</strong>os-lhe que era esta, on<strong>de</strong> agora estamos; e<br />

assim é <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, porque, se entrar<strong>de</strong>s meia légua mais a<strong>de</strong>ntro, talvez não consigais sair. (1, XXIII, p.128)


Entretanto, mesmo não fora esse o <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito, ali acabou colocando-se Dom<br />

Quixote, novamente <strong>em</strong> diálogo, e ouvindo a voz do logos . É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, na trilha<br />

<strong>da</strong> Cura, já estava <strong>em</strong> <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> a<strong>pro</strong>priação do próprio. A partir do diálogo, a<br />

ca<strong>da</strong> vez, era <strong>pro</strong>vocado a renunciar <strong>à</strong>quelas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que lhe eram <strong>de</strong> todo<br />

impróprias. Ali, também se <strong>de</strong>u um diálogo <strong>em</strong> que uma outra voz lhe sussurrou não<br />

ter nenhum sentido o que ali estava a ponto <strong>de</strong> realizar. Também, o cavaleiro<br />

manchego radicalizou, foi escolher o cavaleiro mais polêmico e controvertido como<br />

parâmetro para a aventura na floresta.<br />

No final, Dom Quixote consi<strong>de</strong>ra ser to<strong>da</strong> a mise-en-scène pratica<strong>da</strong> por<br />

aquele cavaleiro tão ridícula, que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não realizá-la. Não vê sentido porque,<br />

como aquele cavaleiro que tentava imitar, não passara por nenhuma traição <strong>de</strong><br />

amor; logo, não havia porque repetir suas ações, só pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> copiá-las.<br />

Depois <strong>de</strong> “la cueva <strong>de</strong> Montesinos” e <strong>de</strong> “Sierra Morena”, o terceiro momento<br />

<strong>em</strong> que ouve a “outra voz” joga, ao mesmo t<strong>em</strong>po, com dois el<strong>em</strong>entos: a casa e o<br />

sono. Será preciso falar, tanto dos regressos ao habitar <strong>de</strong> Dom Quixote, como do<br />

insistente e recorrente sono com o qual se restabelece e que, a seguir, nutrido <strong>de</strong><br />

forças e <strong>de</strong> luci<strong>de</strong>z, sente-se novamente preparado para nova jorna<strong>da</strong>.<br />

Embora este terceiro seja o mais difícil no <strong>de</strong>finir, não só o grau <strong>de</strong> escuta,<br />

como também, suas nuances, se b<strong>em</strong> observado, ele reserva <strong>de</strong>sdobramentos e<br />

surpresas. Saber exatamente <strong>em</strong> que medi<strong>da</strong> o regresso e o sono <strong>de</strong> per si, a ca<strong>da</strong><br />

vez, permitiram a escuta <strong>da</strong> voz é impossível; <strong>de</strong>finir e i<strong>de</strong>ntificá-la, também. Do que<br />

não é possível duvi<strong>da</strong>r, é do reconfortante e renovador que é o sono, realizado no<br />

cenário feito para ele sob medi<strong>da</strong> __ a noite, a hora do escuro, a hora do silêncio, a<br />

hora gran<strong>de</strong> para escutar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.


Entretanto, esse contato interior e sugestivo, <strong>da</strong> primeira parte <strong>da</strong> obra,<br />

parece querer dizer que a voz é só um chamado, uma leve convocação, um apelo,<br />

talvez <strong>em</strong> tom sussurrado.<br />

Chamamos a atenção, mais uma vez, para o valor simbólico dos referentes:<br />

“casa”, “al<strong>de</strong>ia”, “ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”, “pátria”, pois eles, na<strong>da</strong> mais são que aberturas <strong>de</strong> acesso<br />

<strong>à</strong> questão do ser e do logos. São lugar, são linguag<strong>em</strong>, são a casa do ser, on<strong>de</strong> o<br />

hom<strong>em</strong> habita.<br />

No início <strong>da</strong> história, tudo o que se sabe fazer parte <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

casa, pouco é apresentado; muito mal se fala <strong>da</strong>s relações afetivas que preench<strong>em</strong><br />

o cotidiano familiar. No que se refere, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>à</strong> dupla ama e sobrinha e a<br />

relação que estabelec<strong>em</strong> com Dom Quixote, observa-se que sua presença é senti<strong>da</strong><br />

como preocupação sim, mas uma preocupação que mais se restringe ao escrutínio,<br />

objetivando <strong>da</strong>r fim a todos os livros <strong>de</strong> cavalaria, responsáveis pela lou<strong>cura</strong> do<br />

fi<strong>da</strong>lgo. Diz a ama: “estos libros [...] les quer<strong>em</strong>os <strong>da</strong>r echándolos <strong>de</strong>l mundo [...];<br />

abrid la ventana y echadle al corral” 653 ; diz a sobrinha: “no hay para que perdonar a<br />

ninguno [...], todos han sido los <strong>da</strong>ñadores” 654 . As duas: “tal era la gana que las dos<br />

tenían <strong>de</strong> la muerte <strong>de</strong> aquellos inocentes”; 655 <strong>de</strong>sse modo, s<strong>em</strong>pre se referiam aos<br />

livros. O clima familiar só volta a aparecer, no final, quando regressa Dom Quixote<br />

<strong>de</strong> suas loucas aventuras disposto a morrer.<br />

De sua casa, <strong>de</strong> seu lar ôntico, a obra dá conta, no pequeno espaço <strong>da</strong>s duas<br />

primeiras páginas que registram o seguinte: situa<strong>da</strong> <strong>em</strong> “la Mancha”, tinha animais:<br />

um “rocín flaco” e um “galgo corredor”. 656 Sua alimentação era simples; s<strong>em</strong><br />

criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> alguma, comia: “más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos<br />

653 Estes livros [...] quer<strong>em</strong>os <strong>da</strong>r arrojando-os do mundo [...] abri a janela e atirai-o ao curral (1, VI, p.37)<br />

654 Não há por que perdoar nenhum [...]; todos têm sido <strong>da</strong>nosos (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

655 Tal era a vonta<strong>de</strong> que as duas tinham <strong>de</strong> matar aqueles inocentes (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

656 Rocim magro e galgo corredor (1, I, p.17)


y quebrantos los sábados, lantejas los viernes”. 657 Nisso consumia quase todos os<br />

seus ganhos mensais. E, assim, arr<strong>em</strong>ata, logo na segun<strong>da</strong> página: “El resto”; e o<br />

resto é todo o seu pouco vestuário: “un sayo <strong>de</strong> velarte, calzas <strong>de</strong> velludo para las<br />

fiestas [...] pantuflos”. 658 Com ele moravam “una ama que pasaba <strong>de</strong> los cuarenta, y<br />

una sobrina que no llegaba a los veinte, y un mozo <strong>de</strong> campo y plaza”. 659<br />

Da casa, na<strong>da</strong> transpira, além do mínimo indispensável para apresentar e<br />

i<strong>de</strong>ntificar um personag<strong>em</strong>. O que mais significativo t<strong>em</strong> a casa com o viver <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote é, exatamente, um <strong>da</strong>do que só toma a casa como imag<strong>em</strong>-questão <strong>de</strong><br />

recolhimento. Esse recolhimento se dá, efetivamente, no interior <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

Trata-se <strong>da</strong>s saí<strong>da</strong>s e regressos que Dom Quixote faz nos seus primeiros<br />

arroubos <strong>de</strong> cavaleiro: a ca<strong>da</strong> regresso do herói <strong>à</strong> sua al<strong>de</strong>ia, cai ele <strong>em</strong> sono<br />

<strong>pro</strong>fundo com duração <strong>de</strong> dias, o que, <strong>de</strong> certa forma, restabelece seu juízo. Até <strong>em</strong><br />

“la cueva”, a experiência está amarra<strong>da</strong> pelo sono nas duas pontas – na entra<strong>da</strong> e<br />

na saí<strong>da</strong>. O sono lhe resulta balsâmico até a hora <strong>da</strong> morte. Dom Quixote, antes <strong>de</strong><br />

morrer, <strong>de</strong>ita-se para dormir e parece ser, esse, o seu último sono; é nesse sono que<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> morrer. Po<strong>de</strong>mos a<strong>pro</strong>veitar essas passagens, para a<strong>pro</strong>ximá-las do mito <strong>de</strong><br />

Orfeu: nesse mito, Eros, Arte e Sabedoria nasc<strong>em</strong> <strong>de</strong> um ovo posto pela Noite. O<br />

sono po<strong>de</strong> estar a isso relacionado, <strong>à</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o cavaleiro passar pela<br />

experiência revivendo, no recolhimento <strong>de</strong>ntro do ovo, o originário. Essa experiência<br />

se reduplica na morte, quando, <strong>à</strong> noite, volta ao ovo, entregando-se ao<br />

recolhimento originário.<br />

Na primeira saí<strong>da</strong>, <strong>de</strong>paramo-nos com Dom Quixote retornando<br />

completamente moído <strong>de</strong> sua última aventura; dormira pouco, e <strong>de</strong>spertou<br />

sobressaltado, querendo <strong>da</strong>r punhala<strong>da</strong>s <strong>em</strong> todos. Sendo o primeiro sono <strong>de</strong> uma<br />

657<br />

Mais vaca que carneiro, guisado a maioria <strong>da</strong>s noites, ovos com torresmo aos sábados, lentilhas <strong>à</strong>s sextas (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

658<br />

Uma capa <strong>de</strong> gala, calças <strong>de</strong> veludo para as festas [...] pantufos (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

659<br />

Uma ama que passava dos quarenta, e uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um moço <strong>de</strong> campo e praça (Ibi<strong>de</strong>m)


seqüência, sinaliza superficiali<strong>da</strong><strong>de</strong>: o sono não fora duradouro n<strong>em</strong> <strong>pro</strong>fundo o<br />

suficiente. Foi preciso duração b<strong>em</strong> maior, para assinalar <strong>pro</strong>fundi<strong>da</strong><strong>de</strong> também<br />

maior: só quando dormiu um longo sono recuperador – dois dias: “Hiciéronlo así:<br />

diéronle <strong>de</strong> comer, y quedóse otra vez dormido, y ellos, admirados <strong>de</strong> su lo<strong>cura</strong> [...]<br />

De allí a dos días se levantó don Quijote, y lo primero que hizo fue ir a ver sus<br />

libros”. 660 Levantou-se agindo <strong>de</strong> forma normal.<br />

Na segun<strong>da</strong> saí<strong>da</strong>, Dom Quixote, acreditando estar encantado, leva uma<br />

surra <strong>de</strong> uma comitiva e, mais uma vez é levado <strong>de</strong> volta <strong>à</strong> sua al<strong>de</strong>ia. Em casa, sua<br />

ama e sua sobrinha o esticam na cama e ele dorme <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>mente, recobrando, ao<br />

acor<strong>da</strong>r, sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>: “el ama y sobrina <strong>de</strong> don Quijote le recibieron, y<br />

le <strong>de</strong>snu<strong>da</strong>ron, y le tendieron en su antiguo lecho. Mirábalas él con ojos<br />

atravesados, y no acababa <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r en qué parte estaba”. 661<br />

Entretanto, n<strong>em</strong> esse longo sono resistiu: “el Cura”, <strong>em</strong> conversa, voltou ao<br />

t<strong>em</strong>a e, um simples tocar no assunto, ligado <strong>à</strong> imaginária cavalaria, foi o bastante<br />

para que a lou<strong>cura</strong> se <strong>pro</strong>nunciasse <strong>de</strong> forma avassaladora. Este sono anuncia um<br />

grau maior <strong>de</strong> <strong>pro</strong>fundi<strong>da</strong><strong>de</strong> que lhe fez até recobrar a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Foi, no entanto,<br />

momentânea sua eficácia.<br />

Na última saí<strong>da</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vencido pelo “Caballero <strong>de</strong> la Blanca Luna”, Dom<br />

Quixote é obrigado a voltar para sua al<strong>de</strong>ia, com o com<strong>pro</strong>misso <strong>de</strong>, durante um<br />

ano, não voltar a ser cavaleiro:<br />

[...] si tú peleares y yo te venciere, no quiero otra satisfación sino que,<br />

<strong>de</strong>jando las armas y absteniéndote <strong>de</strong> buscar aventuras, te recojas y retires<br />

660 Fizeram isso assim: <strong>de</strong>ram-lhe <strong>de</strong> comer, e ficou outra vez adormecido, e eles admirados <strong>de</strong> sua lou<strong>cura</strong> [...] Daí a dois dias<br />

levantou-se Dom Quixote, e a primeira coisa que fez foi ir ver seus livros(1, VII, p.43)<br />

661 A ama e a sobrinha <strong>de</strong> Dom Quixote o receberam, <strong>de</strong>spiram, e esten<strong>de</strong>ram <strong>em</strong> seu antigo leito. Olhava para elas com os<br />

olhos atravessados, e não conseguia enten<strong>de</strong>r <strong>em</strong> que lugar estava. (1, LII, p.317)


a tu lugar por ti<strong>em</strong>po <strong>de</strong> un año, don<strong>de</strong> has <strong>de</strong> vivir sin echar mano a la<br />

espa<strong>da</strong>, en paz tranquila y en <strong>pro</strong>vechoso sosiego 662<br />

É quando se dá o encontro com Dom Álvaro <strong>de</strong> Tarfe, personag<strong>em</strong> “<strong>de</strong>l otro<br />

Quijote”, o plágio publicado por Avellane<strong>da</strong>. Entre a primeira e a segun<strong>da</strong> parte, esse<br />

personag<strong>em</strong> transita livr<strong>em</strong>ente numa “taberna”, saindo fora dos limites <strong>da</strong> ficção,<br />

para cruzar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do cavaleiro. Quixote e Sancho se entreolham e perguntam,<br />

um ao outro, o <strong>de</strong>stino para on<strong>de</strong> os levavam aqueles caminhos: “A una al<strong>de</strong>a que<br />

está aquí cerca, <strong>de</strong> don<strong>de</strong> soy natural”, respon<strong>de</strong>u um; e “Voy a Grana<strong>da</strong>, que es mi<br />

buena pátria” 663 , respon<strong>de</strong>u o outro.<br />

Esses últimos ex<strong>em</strong>plos, os encontramos no 1 o Périplo. Ali, indicam<br />

<strong>pro</strong>ximi<strong>da</strong><strong>de</strong> do lar, quando a travessia <strong>de</strong> Dom Quixote está a ponto <strong>de</strong> terminar;<br />

caracterizando um a<strong>pro</strong>priar-se. Ambos os personagens estão <strong>de</strong> regresso ao lar,<br />

indicando um retorno ao próprio. O mesmo ex<strong>em</strong>plo que ali o a<strong>pro</strong>ximava <strong>de</strong> Cura,<br />

aqui está r<strong>em</strong>etendo Dom Quixote <strong>à</strong> escuta do logos.<br />

1.1.1.2 O segundo estágio se <strong>pro</strong>cessa <strong>em</strong> dois planos: o primeiro é<br />

intraterreno: a experiência <strong>de</strong> “la cueva <strong>de</strong> Montesinos” e o segundo acontece nas<br />

alturas <strong>de</strong> “Sierra Morena”.<br />

Qualquer um <strong>de</strong>sses movimentos sugere, <strong>em</strong> diferentes graus, um movimento<br />

<strong>de</strong> interiorização <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>. Tanto o sono duradouro e reconfortante, as <strong>pro</strong>fun<strong>de</strong>zas<br />

<strong>de</strong> “la cueva”, como o fechamento <strong>da</strong> floresta <strong>em</strong> “Sierra Morena”, não passam <strong>de</strong><br />

imag<strong>em</strong>-questão <strong>de</strong>sse mergulho <strong>pro</strong>fundo. Todos são um só, são o próprio logos,<br />

no qual Dom Quixote mergulha, ao mesmo t<strong>em</strong>po que nos convi<strong>da</strong> <strong>à</strong> escuta <strong>da</strong>quela<br />

voz. É o <strong>pro</strong>fundo mergulhar no logos do auto-diálogo.<br />

Agora já não resta dúvi<strong>da</strong>; o falar, a que se referia Dom Quixote, não era tão<br />

louco, esse falar: o falar do logos do qual há muito estava na escuta. O mesmo falar<br />

662 Se tu pelejares e eu te vencer, não quero outra satisfação senão que, <strong>de</strong>ixando as armas e abstendo-te <strong>de</strong> buscar<br />

aventuras, te recolhas e retires a teu lugar pelo t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> um ano, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>ves viver s<strong>em</strong> lançar mão <strong>da</strong> espa<strong>da</strong>, <strong>em</strong> paz<br />

tranqüila e <strong>em</strong> <strong>pro</strong>veitoso sossego. (2, LXIV, p.659)<br />

663 A uma al<strong>de</strong>ia que está aqui perto, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> sou natural [...] Vou a Grana<strong>da</strong>, que é minha boa pátria (2, LXXII, p.690)


característico do terceiro nível do diálogo; 664 o mesmo falar que faz, <strong>da</strong> obra, um<br />

experienciar, uma aprendizag<strong>em</strong>.<br />

1.1.1.3 6 CRÔNICA DE UMA BATALHA ANUNCIADA<br />

Foi paciente, Cervantes; estava certo Dom Quixote: haveria um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que o mistério, na salvaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra, com todo vigor, abriria novas clareiras para<br />

novos combates. O rigor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> metafísica, reinante por muitos séculos, alcança<br />

o esgotamento; nega-se tudo o que a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> recru<strong>de</strong>sceu <strong>de</strong> forma<br />

avassaladora; reivindica-se que se libere uma zona que não era n<strong>em</strong> conheci<strong>da</strong> n<strong>em</strong><br />

benquista. Convocam-se muitos combatentes <strong>à</strong> clareira tensional do ser; são muitas<br />

as questões a respon<strong>de</strong>r.<br />

Compreen<strong>de</strong>-se agora o porquê <strong>de</strong>sse impasse. Sua raiz está no test<strong>em</strong>unho<br />

que é Dom Quixote: essa foi a zona consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> doente; e não podia ser <strong>de</strong> outro<br />

modo: acatá-la, seria abrir a guar<strong>da</strong> para incertezas num t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que só se<br />

precisava <strong>de</strong> certezas . Basta a avaliação <strong>de</strong> Descartes, para qu<strong>em</strong>, na imaginação,<br />

na<strong>da</strong> havia <strong>de</strong> claro n<strong>em</strong> distinto. É por isso que Cervantes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVII,<br />

continua buscando seu leitor; uma longa espera que precisou cruzar to<strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, para mostrar novas facetas, já que não há leitura que dê conta <strong>da</strong><br />

arte, caso não se <strong>de</strong>sdobre <strong>em</strong> questões.<br />

Reconheci<strong>da</strong> a lou<strong>cura</strong> como imaginação e imaginação como “ex”, que tudo<br />

exce<strong>de</strong>, que está fora e além <strong>de</strong> todo e qualquer limite, vê-se que só o transitar no<br />

imaginário que é o logos, num t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que essa zona ain<strong>da</strong> não estava<br />

664 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A configuração <strong>da</strong> obra como diálogo e escuta. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2007, p.2.


franquea<strong>da</strong>, tornou possível que Dom Quixote fizesse a travessia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> para<br />

a vi<strong>da</strong> experiencia<strong>da</strong>. Só assim, o cavaleiro Dom Quixote se torna Dom Quixote <strong>de</strong> la<br />

Mancha, só assim, vira obra.<br />

Dom Quixote, contudo, do século XVII, continua cumprindo sua missão <strong>de</strong><br />

porta-voz <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> arauto <strong>da</strong> <strong>pós</strong>; e formula <strong>de</strong> novo a pergunta que<br />

não admite calar-se:<br />

Los libros que están impresos con licencia <strong>de</strong> los reyes y con a<strong>pro</strong>bación <strong>de</strong><br />

aquellos a quien se r<strong>em</strong>itieron, y que con gusto general son leídos y<br />

celebrados <strong>de</strong> los gran<strong>de</strong>s y <strong>de</strong> los chicos, <strong>de</strong> los pobres y <strong>de</strong> los ricos, <strong>de</strong><br />

los letrados e ignorantes, <strong>de</strong> los plebeyos y caballeros, finalmente, <strong>de</strong> todo<br />

género <strong>de</strong> personas, <strong>de</strong> cualquier estado y condición que sean, ¿habían <strong>de</strong><br />

ser mentira?; y más llevando tanta apariencia <strong>de</strong> ver<strong>da</strong>d. 665<br />

Agora Dom Quixote já não se escon<strong>de</strong>, formulando a pergunta <strong>de</strong> forma<br />

enviesa<strong>da</strong>; encontrou seu real lugar, está frente a frente com a obra, e quer saber<br />

qual é a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Dos muitos <strong>de</strong>scaminhos metafísicos <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>à</strong> arte lhe coube<br />

também seu quinhão, o quinhão chamado estética.<br />

Inicialmente, não cabendo a arte nos limites i<strong>de</strong>ais do Belo, esta fica <strong>à</strong> mercê<br />

do gosto traduzido como sentimento, impossível <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar, até que a idéia<br />

estética captura a arte também para os <strong>dom</strong>ínios do inteligível; mascarado <strong>de</strong><br />

intuição supra-sensível. Apesar <strong>de</strong> diferente, era a arte também uma forma <strong>de</strong><br />

conhecimento <strong>da</strong>s coisas.<br />

Mas essa <strong>pro</strong>vidência parece não ser suficiente para <strong>da</strong>r <strong>à</strong> arte a liberação<br />

total do sensível; permanecia incômo<strong>da</strong> a sua relação com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; incômodo<br />

equacionado pelo gênio, figura na qual investiu maciçamente o Renascimento. Este,<br />

665 Os livros que estão impressos com licença dos reis e com a<strong>pro</strong>vação <strong>da</strong>queles a qu<strong>em</strong> se dirig<strong>em</strong>, e que com gosto geral<br />

são lidos e celebrados pelos gran<strong>de</strong>s e pelos pequenos, pelos pobres e pelos ricos, pelos letrados e pelos ignorantes, pelos<br />

plebeus e cavaleiros, finalmente, por todo o gênero <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong> qualquer estado e condição que sejam, haviam <strong>de</strong> ser<br />

mentira? E mais, levando tanta aparência <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (1, L, p.304)


<strong>de</strong> tão b<strong>em</strong> treinado no exercício <strong>da</strong>s coisas do mundo, para só captar o essencial,<br />

ganha o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> dispensar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> como partícipe do <strong>pro</strong>cesso, garantindo, por<br />

essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> especial, sua total autonomia no ato <strong>da</strong> criação. Sua geniali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

está <strong>em</strong> ter conseguido eliminar a eterna <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> que a arte não passava<br />

<strong>de</strong> cópia <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. É claro que Dom Quixote, formado pela Paidéia<br />

renascentista, é o próprio gênio; seu po<strong>de</strong>r alcança também a arte. Gênio é o<br />

“<strong>de</strong>miurgo”, aquele que, por seu po<strong>de</strong>r criador, com Deus se i<strong>de</strong>ntifica. Para esse<br />

hom<strong>em</strong>, a formação que lhe dá acesso ao conhecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> continua sendo<br />

necessária e fun<strong>da</strong>mental: “las letras humanas, las cuales tan bien parecen en un<br />

caballero <strong>de</strong> capa y espa<strong>da</strong>, y así le adornan, honran y agra<strong>de</strong>cen como las mitras a<br />

los obispos, o como las garnachas a los peritos jurisconsultos”. 666<br />

O gênio po<strong>de</strong> aperfeiçoar a natureza e essa perfeição é <strong>de</strong>sloca<strong>da</strong> e<br />

estendi<strong>da</strong> ao próprio hom<strong>em</strong>. Este <strong>de</strong>ve também se aperfeiçoar na arte do<br />

conhecimento. Aquele b<strong>em</strong> formado nas letras terá <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho brilhante <strong>em</strong><br />

qualquer área do conhecimento, porque estará <strong>pro</strong>nto para reconhecer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que se escon<strong>de</strong> por trás <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas. Nesse caso, tanto “cavaleiros <strong>de</strong> capa e<br />

espa<strong>da</strong>”, bispos e jurisconsultos, todos, <strong>em</strong> qualquer <strong>pro</strong>fissão, serão beneficiados<br />

pela bela formação que arranca <strong>da</strong>s coisas do mundo a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> essencial.<br />

Estando nesse caminho, não t<strong>em</strong> porque se preocupar, o pai, com o <strong>de</strong>stino<br />

<strong>de</strong> seu filho: “señor hi<strong>da</strong>lgo, que vuesa merced <strong>de</strong>je caminar a su hijo por don<strong>de</strong> su<br />

estrella le llama”. 667 Isso porque, a formação do hom<strong>em</strong> i<strong>de</strong>al do Renascimento<br />

cui<strong>da</strong>ria do resto: “que el natural poeta (aquele que nasceu com essa “estrella”, com<br />

essa aptidão) que se ayu<strong>da</strong>re <strong>de</strong>l arte será mucho mejor y se aventajará al poeta<br />

666 As letras humanas, as quais tão b<strong>em</strong> parec<strong>em</strong> <strong>em</strong> um cavaleiro <strong>de</strong> capa e espa<strong>da</strong>, e assim o adornam, honram e<br />

agra<strong>de</strong>c<strong>em</strong> como as mitras aos bispos, ou como as togas aos jurisconsultos (2, XVI, p.404)<br />

667 Senhor fi<strong>da</strong>lgo, que o senhor <strong>de</strong>ixe caminhar seu filho por on<strong>de</strong> sua estrela o chama (2, XVI, p.403)


que solo por saber el arte quisiere serlo”. 668 Vê-se a importância <strong>da</strong> aptidão, mas que<br />

só <strong>da</strong>rá bons frutos, caso a ela seja associa<strong>da</strong> a formação “que se ayu<strong>da</strong>re <strong>de</strong>l arte”.<br />

É um modo figurado <strong>de</strong> colocar a educação cumprindo no hom<strong>em</strong>, o mesmo papel<br />

que a arte cumpre sobre a natureza. Se a arte aperfeiçoa a natureza, aperfeiçoa<br />

também o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> seu estado natural.<br />

Um Eu expressando-se é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontar a or<strong>de</strong>m causal <strong>da</strong> natureza<br />

que, nessa eterna repetição, na<strong>da</strong> <strong>de</strong> novo traz ao mundo, ficando a <strong>pro</strong>dução<br />

artística completa e <strong>de</strong>finitivamente nas mãos do sujeito. Não um sujeito qualquer,<br />

mas um sujeito sensível, um sujeito-gênio; tanto o que <strong>pro</strong>duz, como o que<br />

cont<strong>em</strong>pla. A orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte fica <strong>à</strong> mercê <strong>de</strong> seu criador. A arte <strong>em</strong> si, já não<br />

conta; <strong>de</strong>sloca-se a arte para aquilo que o sujeito po<strong>de</strong> <strong>de</strong>la arrancar, a partir <strong>de</strong><br />

uma experiência artística vivi<strong>da</strong>. A obra <strong>de</strong> arte é reduzi<strong>da</strong> a objeto <strong>de</strong> um sujeito<br />

metafísico pensante que garante a ascendência <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> como <strong>pro</strong>dutora <strong>de</strong><br />

“certezas”. A arte cai nas malhas <strong>da</strong> metafísica, fica submeti<strong>da</strong> ao controle do<br />

hom<strong>em</strong> – o único que t<strong>em</strong> acesso <strong>à</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> do real, e que passa a <strong>de</strong>la dispor<br />

com sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cálculo e <strong>de</strong> previsão, até como b<strong>em</strong> <strong>de</strong> consumo.<br />

Com essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cálculo e previsão, o seu po<strong>de</strong>r é tal que <strong>dom</strong>ina<br />

todo o universo <strong>da</strong> arte: julga, classifica, avalia, caracteriza, <strong>de</strong>fine os espaços que a<br />

acolherão, abre um imenso leque <strong>de</strong> ocupações que vão cui<strong>da</strong>r e <strong>pro</strong>teger a obra.<br />

Ain<strong>da</strong> que essas ocupações estejam completamente fora do âmbito do<br />

originário <strong>da</strong> arte, nesse contexto <strong>de</strong> ocupação e preocupação alheio <strong>à</strong> essência <strong>da</strong><br />

arte, é possível que nos <strong>de</strong>par<strong>em</strong>os com as obras <strong>em</strong> si mesmas. Esse foi, também,<br />

o encontro <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger com a obra <strong>de</strong> arte.<br />

Mas, e a arte, o que é afinal?<br />

668 Que o natural poeta que se aju<strong>da</strong>r <strong>da</strong> arte será muito melhor e se avantajará ao poeta que só por saber a arte quiser sê-lo.<br />

(Ibi<strong>de</strong>m)


A com<strong>em</strong>oração dos 400 anos <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha, obra <strong>de</strong> Miguel<br />

<strong>de</strong> Cervantes, é a <strong>pro</strong>va mais cabal <strong>de</strong> que o histórico <strong>da</strong> obra não está <strong>em</strong> ela já ter<br />

passado no t<strong>em</strong>po. Nesse caso, a obra Dom Quixote não seria consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong><br />

histórica, já que continua resistindo há 400 anos.<br />

Do mesmo modo que o ser só é, enquanto “sendo”, também a obra, mesmo<br />

que tenha sido cria<strong>da</strong> no passado, tendo já passado o “sendo”, po<strong>de</strong> cair na<br />

condição <strong>de</strong> mero instrumento e ser, ilusoriamente, <strong>pro</strong>tegi<strong>da</strong> pelos cui<strong>da</strong>dos ônticos<br />

tecnológicos que a preserv<strong>em</strong>. Entretanto, isso não significa que ela não esteja<br />

impregna<strong>da</strong> do mesmo vigor que a criou, não significa que nela algo não esteja<br />

ain<strong>da</strong> preservado.<br />

Não é preciso esclarecer que o que nela se preserva não é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong><br />

conservação ôntico-tecnológica. Tendo o mundo que a constituiu já <strong>de</strong>saparecido no<br />

t<strong>em</strong>po, parece que a obra fica também s<strong>em</strong> mundo. Esse parecer é o que explica a<br />

ânsia <strong>de</strong> perpetuá-la <strong>de</strong> alguma forma no t<strong>em</strong>po, fixando-a num estilo vigente <strong>em</strong><br />

<strong>da</strong>do momento, aprisionando-a numa t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong><strong>de</strong> já perdi<strong>da</strong>. Tudo isso <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

que o ser, que lhe <strong>de</strong>u orig<strong>em</strong>, já se foi.<br />

Porém, se o que se per<strong>de</strong> é o mundo que <strong>em</strong> obra se entificou, o que, então<br />

nela permanece, o que a preserva, afinal?<br />

O que permanece é a obra. Nos diz Hei<strong>de</strong>gger: “Per<strong>de</strong>mos o mundo, mas não<br />

per<strong>de</strong>mos as obras”. 669 Permanece na obra, portanto, uma historici<strong>da</strong><strong>de</strong> efetiva que<br />

ali ficara latente; só ela po<strong>de</strong> recuperar a experiência histórica que a obra assinala.<br />

Quando falamos “permanecer a obra”, estamos falando <strong>da</strong>quilo que na obra<br />

permanece, estamos junto com Hei<strong>de</strong>gger, dizendo: o que permanece na obra é o<br />

que na obra está <strong>em</strong> obra <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Como a obra é s<strong>em</strong>pre dis-puta terra-mundo,<br />

po<strong>de</strong> parecer incoerente essa afirmação. Entretanto, quando o autor se refere a<br />

669 NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.113.


mundo, ele é b<strong>em</strong> claro: “o que passou foi o mundo que os utensílios constituíram<br />

para o Dasein”. 670 E acrescenta: “Se <strong>de</strong>paramos com obras nas exposições,<br />

conforme diz Hei<strong>de</strong>gger, não encontramos mais o mundo a que pertenciam”.<br />

Entretanto, a obra <strong>de</strong> arte “<strong>de</strong>tém uma historici<strong>da</strong><strong>de</strong> efetiva [...] na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que<br />

po<strong>de</strong>mos recuperar a experiência histórica que elas assinalam”. 671<br />

Não é por magia que essa recuperação po<strong>de</strong> acontecer. Para isso é preciso,<br />

a princípio, que, tanto o t<strong>em</strong>po faça o jogo retrospectivo, indo, do presente, buscar<br />

no passado, aquilo que ali ficou registrado como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, interpretando-o e<br />

lançando-o para o futuro. Dom Quixote, a todo momento sinaliza isso: “–¿Quién<br />

du<strong>da</strong> sino que en los veni<strong>de</strong>ros ti<strong>em</strong>pos, cuando salga a luz la ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra historia <strong>de</strong><br />

mis famosos hechos”. 672 É preciso também <strong>da</strong>r lugar ao jogo <strong>da</strong>s interiori<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

abandonado por influência avassaladora <strong>da</strong> estética que abstraiu os el<strong>em</strong>entos<br />

fun<strong>da</strong>mentais do <strong>pro</strong>cesso. S<strong>em</strong> a relação participativo comunal artista-<strong>de</strong>stinatário,<br />

impossível recuperar a experiência histórica, impossível <strong>de</strong>ixar-se atravessar pelo<br />

inaugural que na obra opera, impossível <strong>de</strong>ixar-se tomar pelo vibrar <strong>da</strong> arte, pelo<br />

vigor do poético: esse é o introspectivo que, junto com o retrospectivo, abre a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> interpretação hermenêutica. Crivar <strong>de</strong> perguntas a obra, esse é o<br />

<strong>pro</strong>cesso. Nos diz<strong>em</strong> Hei<strong>de</strong>gger e Ga<strong>da</strong>mer.<br />

S<strong>em</strong> que se dê importância excessiva ao hom<strong>em</strong>, por não ser ele maior que<br />

sua tarefa, “o fato <strong>de</strong> o ser-criado <strong>pro</strong>vir <strong>da</strong> obra não significa que se <strong>de</strong>va<br />

reconhecer que a obra foi feita por um gran<strong>de</strong> artista”. 673 Tira-se do centro o autor,<br />

670 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

671 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

672 Qu<strong>em</strong> duvi<strong>da</strong> que nos séculos vindouros, quando venha a luz a história ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira <strong>de</strong> meus célebres feitos. (1, II, p.21)<br />

673 HEIDEGGER, M. A orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. 3ªp. Kriterium. Revista <strong>de</strong> Filosofia, n.86, p.125. Apud. NUNES, Benedito.<br />

Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.114.


edimensiona-se a obra que “possui mais perfeição do que aqueles que a(s)<br />

<strong>pro</strong>duz<strong>em</strong>”. 674<br />

Fica, assim, a obra <strong>de</strong> arte, resgata<strong>da</strong> do quadro estático <strong>da</strong> estética. Nesse<br />

quadro foi coloca<strong>da</strong>, partícipe dos mesmos <strong>pro</strong>cessos <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>mais coisas<br />

conheci<strong>da</strong>s.<br />

Se não é o hom<strong>em</strong> o senhor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, on<strong>de</strong>, então,<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>pro</strong>curá-la?<br />

O que é a arte? E sua <strong>pro</strong>veniência, on<strong>de</strong> fica? Qual a relação entre obra <strong>de</strong><br />

arte e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>? São perguntas que, caso não as respon<strong>da</strong>mos agora, inútil será<br />

todo esforço <strong>em</strong>preendido. Apesar <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> grega <strong>da</strong> arte ser techné, Hei<strong>de</strong>gger<br />

esclarece essa relação. Antes <strong>de</strong> significar realização prática ou ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

fazer, techné é um modo do saber essencial que suporta e dirige to<strong>da</strong> a relação com<br />

o ente; e o a<strong>pro</strong>xima <strong>da</strong> aletheia, pela s<strong>em</strong>elhança do seu significado: modo<br />

essencial do saber que não se restringe <strong>à</strong> obra <strong>de</strong> arte, mas que se esten<strong>de</strong> a todo e<br />

qualquer ente.<br />

1.1.1.3.1.1.1.1 O conhecimento <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte se ass<strong>em</strong>elha ao conhecimento<br />

<strong>de</strong> qualquer outro ente. Esse conhecimento não se reduz ao concreto<br />

instrumental. Conhecer uma obra significa muito mais do que seus<br />

limites físicos; conhecer uma obra é um saber. É uma experiência <strong>em</strong><br />

que, no ente, se dá um acontecer. No ente “obra”, como nos <strong>de</strong>mais<br />

entes, também se dá um saber. É por isso que Hei<strong>de</strong>gger, ao explicar,<br />

a<strong>pro</strong>xima techné <strong>de</strong> aletheia. Aletheia significa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não uma<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> fixa, váli<strong>da</strong> e <strong>de</strong>finitiva que se impõe no mundo, mas ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

como acontecer.<br />

674 VERNANT. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Paris: La Dècouverte, 1989. p.73-74. Apud. NUNES, Benedito. Hermenêutica<br />

e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.114.


Para os gregos, o poeta <strong>pro</strong>vocado pelas musas era o porta-voz dos <strong>de</strong>uses,<br />

graças <strong>à</strong> sua realização <strong>de</strong> ente que fala. Por ser sua essência, a poiesis, e por ser<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escuta <strong>da</strong> fala, é ao hom<strong>em</strong> que cabe essa tarefa: trazer, ao<br />

mundo, a voz dos <strong>de</strong>uses. Isto é manifestar mundo. Assim <strong>pro</strong>ce<strong>de</strong>ndo, está o<br />

hom<strong>em</strong> cumprindo um man<strong>da</strong>to divino que <strong>pro</strong>íbe esquecê-los.<br />

“É <strong>pro</strong>ibido esquecer” é, <strong>em</strong> última análise, o significado <strong>de</strong> aletheia: “a” –<br />

significa “não”, privativo, é o <strong>de</strong>s-velar-se; “lethe” – significa o velar-se, o esquecer.<br />

Aletheia significava, então, não esquecer a palavra dos <strong>de</strong>uses, porque essa palavra<br />

era a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aletheia implica necessariamente o jogo não-ser e ser.<br />

Sendo o que fala, tendo como essência a poiesis, o hom<strong>em</strong> é aquele que é<br />

possuído pela linguag<strong>em</strong>, como algo originário, o logos. Isso significa que será<br />

s<strong>em</strong>pre o hom<strong>em</strong> que po<strong>de</strong>rá, pela linguag<strong>em</strong>, originar, <strong>da</strong>r orig<strong>em</strong> a novas coisas<br />

manifestando mundo. A linguag<strong>em</strong> é, <strong>em</strong> si mesma, o originário. O mundo,<br />

entretanto, é linguag<strong>em</strong>, mas uma linguag<strong>em</strong> que se distanciou <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>, pelo<br />

mesmo fenômeno acima <strong>de</strong>scrito, a linguag<strong>em</strong> <strong>da</strong> gramática e dos lingüistas. No<br />

momento mesmo quando, como originária, seu ser se tornou o mundo, virou ente,<br />

esvaziando-se, per<strong>de</strong>ndo gran<strong>de</strong> parte do vigor. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, na<strong>da</strong> está perdido. A<br />

idéia <strong>de</strong> per<strong>da</strong> é, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, um equívoco. Tudo se resume no intrigante <strong>pro</strong>cesso<br />

<strong>de</strong> doação do ser, no cumprimento do man<strong>da</strong>to divino, traduzido como aletheia. Mas<br />

é um ser que se dá e se guar<strong>da</strong>. Daí <strong>de</strong>svelar-e-velar, <strong>da</strong>í ver<strong>da</strong><strong>de</strong>-e-não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Man<strong>da</strong>to é man<strong>da</strong>to; <strong>de</strong>sse modo, é preciso cumpri-lo: o “é <strong>pro</strong>ibido esquecer<br />

os <strong>de</strong>uses” é substituído por Hei<strong>de</strong>gger por: “é <strong>pro</strong>ibido escon<strong>de</strong>r”; o que significa<br />

que a condição básica <strong>da</strong> aletheia é o velado, caso contrário, não haveria<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>terminação que <strong>pro</strong>íbe escon<strong>de</strong>r.


Isso significa que o velamento é a forma <strong>em</strong> que se encontram todos os<br />

entes, cabendo ao hom<strong>em</strong>, por cumprir o man<strong>da</strong>to divino, não permitir que se<br />

escon<strong>da</strong>, não <strong>de</strong>ixar velado, não permitir que se cale a palavra do <strong>de</strong>us.<br />

O que <strong>pro</strong>move e possibilita que se cumpra o man<strong>da</strong>to é o assédio do ser.<br />

Sob todo o ente <strong>de</strong>svelado pulsa s<strong>em</strong>pre um vigor originário. É esse vigor que está,<br />

a todo o momento, assediando o ser, o vigor do mistério, convocando o hom<strong>em</strong> a<br />

posicionar-se na abertura do “entre-ser”, para mais e novas aberturas, para mais e<br />

novos “mostrar-se”.<br />

O segundo velamento é assim consi<strong>de</strong>rado porque outro já o antece<strong>de</strong><br />

primordialmente. Este velamento acaba sendo um impedimento para o acolhimento<br />

do chamado do ser. Nesse caso, o que faz o hom<strong>em</strong> é não se abrir, optando pelo<br />

acervo <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> velha, estabeleci<strong>da</strong>, já conheci<strong>da</strong>. É a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, não a<br />

ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> poética, a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> retórica, a que t<strong>em</strong> lugar no falatório e no<br />

escritório, ex<strong>em</strong>plificados no 1 o Périplo. O hom<strong>em</strong> é <strong>de</strong>caído s<strong>em</strong>pre que a<br />

linguag<strong>em</strong> é <strong>de</strong>caí<strong>da</strong>, alija<strong>da</strong> do originário.<br />

No âmbito <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, acontece o mesmo: primeiro que sua essência não<br />

é o instrumental concreto que a torna visível e palpável; por que guar<strong>da</strong>r, então,<br />

livros que não foram a<strong>pro</strong>vados pelo escrutínio, se <strong>de</strong>les, o que sobra é somente<br />

papel com sinais tipográficos enca<strong>de</strong>rnados? Depois, do mesmo modo que aos<br />

<strong>de</strong>mais entes, <strong>à</strong> obra <strong>de</strong> arte também é ve<strong>da</strong>do o velamento. Isso significa que ela<br />

também guar<strong>da</strong> o mistério, vigoroso o suficiente para cobrar que lhe dê<strong>em</strong> espaço<br />

sob a forma <strong>de</strong> novas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Na obra também acontece o acontecer <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

sua essência aí está: ser obra <strong>da</strong> obra. Ser obra <strong>da</strong> obra exige que se dê lugar <strong>à</strong> dis-<br />

puta.<br />

Caracteriza-se assim, como dis-puta, a atuação <strong>de</strong> duas forças na clareira do<br />

<strong>de</strong>svelamento: uma é a <strong>de</strong>socultação que, para abrir-se e mostrar-se, já trava o


combate <strong>da</strong> primeira ocultação para também abrir e mostrar-se; a outra fica por<br />

conta <strong>da</strong> imposição do segundo velamento. O retraimento se impõe também, pois só<br />

assim é possível a configuração do ente e o mostrar-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nesta mesma<br />

pesquisa t<strong>em</strong>os uma tími<strong>da</strong> mostra <strong>da</strong> lei: “é <strong>pro</strong>ibido escon<strong>de</strong>r”. A <strong>pro</strong>vidência <strong>de</strong><br />

dividir <strong>em</strong> três Périplos foi a solução mínima encontra<strong>da</strong> para o pulsar <strong>de</strong> tanto vigor<br />

no assédio ao ser. Os três t<strong>em</strong>as apresentados são <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong> um só: a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e a não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> dis-puta.<br />

A obra, como ente, foi <strong>pro</strong>duzi<strong>da</strong> e está <strong>à</strong> disposição.<br />

Mas o que ali está <strong>à</strong> disposição?<br />

A obra; mas o que nela está <strong>à</strong> disposição é somente o “estar-aí”; o estar-aí,<br />

na<strong>da</strong> mais é do que o habitual, e não há ver<strong>da</strong><strong>de</strong> no simples e mero habitual. É<br />

preciso mais; é preciso <strong>de</strong>spertar e fazer acontecer o ser <strong>da</strong> obra. On<strong>de</strong> está<br />

o mais?<br />

Ain<strong>da</strong> que contraditório, o mais localiza-se exatamente no na<strong>da</strong>. Na<strong>da</strong> do que<br />

já é visível, na<strong>da</strong> do que estiver disponível é suficiente para instaurar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Só<br />

na abertura o na<strong>da</strong> po<strong>de</strong> vir-a-ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A <strong>pro</strong>veniência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é a não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o ain<strong>da</strong>-não-(<strong>de</strong>s)-ocultado. No<br />

primeiro velamento, quando ha o <strong>de</strong>socultar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> oculta, simultaneamente se<br />

configura o segundo velamento. Não po<strong>de</strong>mos esquecer que há um duplo negar-se<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Transferindo esse <strong>pro</strong>cesso para a obra, sabe-se que ela reserva uma dis-<br />

puta. O responsável pelo <strong>de</strong>safio <strong>à</strong> batalha, Dom Quixote já sabia, mas não contou<br />

n<strong>em</strong> quando n<strong>em</strong> como essa batalha foi planeja<strong>da</strong>, para que ele a tivesse anunciado<br />

com tamanha antecedência.


Agora sab<strong>em</strong>os: que essa “batalla singular” está marca<strong>da</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

Hei<strong>de</strong>gger 675 interpretou o Mito <strong>da</strong> Caverna, como A doutrina <strong>de</strong> Platão sobre a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, e que Dom Quixote <strong>de</strong>ve fazê-lo <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> estilo. Deve realizá-lo<br />

poeticamente; só poeticamente pareceria a Dom Quixote uma batalha digna. E<br />

manteve segredo sobre a arena on<strong>de</strong> ela travar-se-ia.<br />

Se inicialmente foi só suspeita, agora não há dúvi<strong>da</strong>: essa batalha singular<br />

será um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e digno combate, uma dis-puta. E Dom Quixote, sabedor do<br />

calibre <strong>de</strong> sua missão, segue buscando, ain<strong>da</strong>, a melhor performance para o<br />

<strong>em</strong>bate. Talvez possamos ajudá-lo, <strong>de</strong>screvendo-lhe, <strong>em</strong> linhas gerais, como se<br />

<strong>pro</strong>cessa uma bela dis-puta, uma simulação, qu<strong>em</strong> sabe.<br />

Ao receber o chamado do ser, o não-ser só po<strong>de</strong> querer-ser, a partir do que já<br />

é; a partir do ente que é. Só o ente que é, nutrido <strong>de</strong> vigor, t<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>pro</strong>vocar<br />

o não-ser a ser. O <strong>pro</strong>cesso é ininterrupto: “Eu sou”, o ser constitui o ser do “eu”.<br />

Mas eu só posso ser, porque Eu não-sou. Logo, o ser que o eu é, só, é pelo impulso<br />

do não-ser.<br />

O ser <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente <strong>pro</strong>vocador, e o não-ser <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente <strong>pro</strong>vocado, os dois<br />

se dispõ<strong>em</strong> <strong>à</strong> luta, e <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>m um gran<strong>de</strong> dis-puta: nessa quase instantânea<br />

luta, <strong>em</strong> que concorr<strong>em</strong> “o reunir/colher/ recolher” e o “encolher” o que no máximo se<br />

mostra é um “sendo” que apaga não-ser e ser, <strong>de</strong>ixando-os invisíveis, até que, ao<br />

final do dis-puta, novo ente se configure.<br />

Convoqu<strong>em</strong>os, então, para o combate, os contendores.<br />

7 DA FORMA À FULGURAÇÃO, NESSE “FINGIR” SE MOVE DOM QUIXOTE<br />

675 HEIDEGGER, Martin. A doutrina <strong>de</strong> Platão sobre a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tradução <strong>de</strong> Antonio Jardim, 2002 (mimeo)


A obra já nos oferece <strong>de</strong> cara um enigma instigante: o trânsito ficção-<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>-ficção. Isso falando grosso modo, s<strong>em</strong> consi<strong>de</strong>rarmos seus<br />

<strong>de</strong>sdobramentos.<br />

Percebe-se que, on<strong>de</strong> está o humano, está o fingir. Alonso Quijano/Dom<br />

Quixote, o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro fi<strong>da</strong>lgo, ao afirmar-se cavaleiro, imitava ou fingia? Ao <strong>de</strong>clarar<br />

aos quatro ventos: “Yo sé quien soy”, Dom Quixote <strong>da</strong>va a todos o sinal <strong>de</strong> que,<br />

sendo fi<strong>da</strong>lgo e também cavaleiro, não tinha sentido sua <strong>de</strong>claração. Ao agir assim,<br />

Dom Quixote imitava ou fingia? E ain<strong>da</strong>, resoluto e cheio <strong>de</strong> certeza, dizia po<strong>de</strong>r ser<br />

todos os <strong>de</strong>mais cavaleiros; quando assim <strong>pro</strong>cedia, Dom Quixote imitava ou fingia?<br />

Buscando a essência do humano, foi assim que Dom Quixote pô<strong>de</strong> ser<br />

<strong>pro</strong>cesso que se dá na vi<strong>da</strong> enquanto travessia, e Curar-se. Se pretendíamos porém,<br />

resposta <strong>de</strong>finitiva, <strong>de</strong>ntro dos mol<strong>de</strong>s metafísicos, que <strong>de</strong>finisse e classificasse o<br />

hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong>ntro do esqu<strong>em</strong>a pirami<strong>da</strong>l dos conceitos; o hom<strong>em</strong> como ser fixo,<br />

acabado e <strong>de</strong>finitivo, respon<strong>de</strong>ríamos que Dom Quixote estava imitando. Entretanto,<br />

é claro que fingia. Afortuna<strong>da</strong>mente, o “fingere” intrigante fez morrer no nascedouro<br />

tal pretensão.<br />

Por isso, foi <strong>de</strong>scarta<strong>da</strong> a tradução “forma”, para a mo<strong>de</strong>lag<strong>em</strong> realiza<strong>da</strong> por<br />

Cura, exatamente para não permitir a contaminação que esse conceito po<strong>de</strong>ria<br />

exercer sobre a obra mo<strong>de</strong>la<strong>da</strong>. Preferiu-se então a tradução latina “figuração”.<br />

Estamos perfeitamente <strong>de</strong> acordo com esse sentido <strong>de</strong> Cura. E não podia ser<br />

diferente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> termos realizado com Dom Quixote a gran<strong>de</strong> travessia, que teve<br />

na morte seu pleno fechamento, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> arranca<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as renitentes capas do<br />

impessoal que, <strong>de</strong> tão pesa<strong>da</strong>s, tanto fizeram <strong>de</strong>cair o cavaleiro <strong>da</strong> Triste Figura,<br />

isso significa acatamento.


Constata-se o <strong>da</strong>do figuração nas an<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> Dom Quixote pela reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, quando, por sua conta e risco, opta claramente por abandonar uma ficção,<br />

para transportá-la e, com ela, se lançar na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Mas a reduplicação<br />

não é tão simples, n<strong>em</strong> pára por aí. Quando <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> abandonar a leitura, abandona<br />

só a leitura dos livros que entupiam sua biblioteca, mas não abandona aquele<br />

universo ficcional; tanto que o traz consigo para a vi<strong>da</strong>. V<strong>em</strong>os aí uma ficção <strong>em</strong><br />

primeiro grau __ a ficção <strong>da</strong> cavalaria ingressa na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do pacato fi<strong>da</strong>lgo<br />

que está no liame do século XVI. Dom Quixote não é o cavaleiro enformado, que se<br />

<strong>de</strong>ixou aprisionar é uma outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser. Isso é fulguração.<br />

Mas a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> fingir é tal que aquela reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é também uma ficção<br />

__ a história <strong>de</strong> um louco cavaleiro que tinha seus registros nos anais <strong>de</strong> La Mancha,<br />

história que se pretendia história com<strong>pro</strong>meti<strong>da</strong> com o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, uma história to<strong>da</strong><br />

cui<strong>da</strong>dosa para não fugir um triz dos fatos, “Pero esto importa poco a nuestro<br />

cuento; basta que en la narración <strong>de</strong>l no se salga un punto <strong>de</strong> la ver<strong>da</strong>d”. 676 Está<br />

dizendo que o que importa para a história é não sair um ponto sequer <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

mas que, <strong>de</strong> tanto cui<strong>da</strong>do e critério, acabou conta<strong>da</strong> por muitas vozes.<br />

Com todo cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> preservar fi<strong>de</strong>digni<strong>da</strong><strong>de</strong> com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, escapou ao<br />

controle e virou ficção. Virou ficção por causa do jogo ver<strong>da</strong><strong>de</strong> X não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mas o<br />

que a caracteriza como ficção não é o controle no tocante <strong>à</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, sim, o jogo.<br />

Uma solução eficaz foi o acolhimento <strong>de</strong> muitas vozes: o ser contado por<br />

muitas vozes é a estratégia mais eficaz para que se <strong>de</strong>ix<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre espaços abertos<br />

– os “entres” on<strong>de</strong> a obra po<strong>de</strong> movimentar-se fazendo o jogo <strong>da</strong>s ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Tudo <strong>em</strong> Dom Quixote transita pela ficção: ficção <strong>da</strong> ficção, ficção <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> ficção; não po<strong>de</strong> ser gratuita essa relação reinci<strong>de</strong>nte<br />

e insidiosa hom<strong>em</strong>/ficção. O que po<strong>de</strong>ria ter criado esse vínculo que chega quase <strong>à</strong>s raias <strong>da</strong> <strong>de</strong>pendência?<br />

Ao cair a máscara <strong>da</strong> razão, cabe aqui um parêntesis: com a máscara, há dis-puta, há paradoxo. S<strong>em</strong> máscara, a razão é aquela <strong>em</strong><br />

que o <strong>pro</strong>jeto civilizatório <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> apostara como única possível salvação dos impasses <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> que instalou o ceticismo, na época<br />

<strong>de</strong> Dom Quixote. Ela mesma se revela muito mais que impotente para essa <strong>em</strong>presa, é a sua própria perdição. Vimos que essa gran<strong>de</strong> e<br />

po<strong>de</strong>rosa aquisição <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> __ a razão __ obstaculizou o livre pensar, submetendo-o <strong>à</strong>s amarras dos esqu<strong>em</strong>as mentais,<br />

respeitadíssimos pelo que têm <strong>de</strong> eterno e universal, respeitadíssimos pelo lugar conquistado <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r assegurar, garantir as certezas <strong>de</strong> que<br />

676 Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração <strong>de</strong>le não <strong>de</strong> saia na<strong>da</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. (1, I, p.18)


precisa o hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno para viver s<strong>em</strong> o risco <strong>de</strong> ser tragado pelo <strong>de</strong>sconhecido. Nesse capítulo, não só Dom Quixote, como todos nós<br />

experimentamos um mundo que transpira fragmentos <strong>de</strong> aparência esquáli<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> vigor; fragmentos que foram submetidos a amputações do<br />

que neles havia <strong>de</strong> diferente, <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> uma uniformi<strong>da</strong><strong>de</strong> s<strong>em</strong> prece<strong>de</strong>ntes. Lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> um lado, razão <strong>de</strong> outro, impossíveis submetendose<br />

ao possível, mentira/ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, reali<strong>da</strong><strong>de</strong>/ficção, fantasia e imaginação, opondo-se <strong>à</strong> razão.<br />

Tom<strong>em</strong>os essa oposição que já nos tinha sido apresenta<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ficara<br />

louco Dom Quixote. Foi exatamente na imaginação que fora localizado seu mal.<br />

Com seu oposto __ a razão, entretanto, não se preocuparam médicos n<strong>em</strong><br />

autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s. E naquele momento, também nós acatamos o rigoroso e <strong>de</strong>talhado<br />

diagnóstico: do mesmo modo que D<strong>em</strong>ócrito, os belos discursos que <strong>pro</strong>feria Dom<br />

Quixote eram <strong>de</strong> entendimento, não <strong>de</strong> imaginação. Concluiu-se assim que a lesão<br />

estava localiza<strong>da</strong> num único setor <strong>de</strong> sua mente __ na imaginação.<br />

Em primeiro lugar, t<strong>em</strong>os que é preciso <strong>de</strong>scaracterizar a fragmentação<br />

sofri<strong>da</strong> pela mente <strong>de</strong> Quixote <strong>em</strong> zona <strong>de</strong> entendimento e zona <strong>de</strong> imaginação. A<br />

tendência do momento <strong>à</strong> geometrização espacial, que já alcançava até a poesia, é<br />

toma<strong>da</strong> por Bachelard, como estratégia <strong>de</strong> alerta para os riscos <strong>de</strong> redução do<br />

espaço <strong>da</strong> criação poética.<br />

Dessa maneira, fica também <strong>de</strong>scarta<strong>da</strong> <strong>de</strong>finitivamente a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

diagnóstico feito por algumas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> que é exatamente essa – a zona do<br />

imaginário, a que está afeta<strong>da</strong>, <strong>da</strong>ndo sinais <strong>de</strong> doença. Achavam que, se a zona do<br />

entendimento estava saudável, é porque, <strong>pro</strong>vavelmente, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> ali estava; e,<br />

por oposição, na zona do imaginário, por estar doente, nela não residia a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Isso se <strong>de</strong>ve a “normalmente, termos um conceito <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> muito limitado e<br />

imediatista <strong>em</strong> relação <strong>à</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e passarmos a ler o mundo <strong>da</strong> arte como sendo<br />

ficcional e não real, porque nele opera o imaginário. Acontece que o imaginário é o<br />

lugar <strong>da</strong> arte, mas também do ser humano e <strong>de</strong> to<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 677<br />

T<strong>em</strong>os então que Dom Quixote, <strong>de</strong>ixando que operasse o imaginário, estava<br />

no mais pleno exercício <strong>de</strong> sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, permitindo que nele fluísse a mais real<br />

677 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A leitura e a interpretação. 2005, p.51 (mimeo).


eali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Estando no imaginário, Dom Quixote - “só por ser hom<strong>em</strong> é que também<br />

é arte”. 678<br />

Parece que o círculo nos colocou outra vez diante <strong>da</strong> questão inicial: a<br />

estreitíssima relação entre o humano e a arte. Se ain<strong>da</strong> não t<strong>em</strong>os respostas,<br />

volt<strong>em</strong>os a Quixote.<br />

Consi<strong>de</strong>rando a porta “entre aberta” que é o hom<strong>em</strong>; consi<strong>de</strong>rando a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do exagero do fenomenológico, <strong>pro</strong>tegendo o ser <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s;<br />

consi<strong>de</strong>rando a exposição máxima ao extr<strong>em</strong>o <strong>de</strong> uma experiência, <strong>de</strong> tal modo que<br />

enfrente todos os perigos <strong>de</strong> tal exposição, porque essa é a única forma <strong>de</strong> um<br />

apossar-se pleno e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; consi<strong>de</strong>rando o extr<strong>em</strong>ismo do impulso<br />

poético, único capaz <strong>de</strong> um abrir-se fenomenológico tão radical, a ponto <strong>de</strong> incitar o<br />

uso <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> poética para além do liame <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>, <strong>pro</strong>pondo-a, assim, como<br />

“lou<strong>cura</strong> “experiencial”, assim consi<strong>de</strong>rando, parece estar Dom Quixote <strong>em</strong> seu<br />

“metiê”.<br />

De todos os heróis que, na época, com ele conviviam, Dom Quixote foi o<br />

único a superar suas circunstâncias. O que teria permitido tal façanha? Constata-se<br />

que: “É só por ser hom<strong>em</strong> é que também é arte. Mas é por força <strong>da</strong> ficção poética<br />

que o sonho e a utopia eclo<strong>de</strong>m. É por força <strong>da</strong> arte que o hom<strong>em</strong> ultrapassa as<br />

meras circunstâncias e penetra na dinâmica <strong>de</strong> suas realizações” 679 .<br />

A resposta é a arte. O que se tornou possível foi Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha,<br />

a ficção poética. Só movido pela força <strong>da</strong> arte, pô<strong>de</strong> Dom Quixote ultrapassar as<br />

meras circunstâncias e colocar os pés naquele espaço dinâmico que vai além <strong>da</strong><br />

razão. Só assim, pô<strong>de</strong> Dom Quixote liberar o vigor que, por si só, é capaz <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>slocar causas e efeitos, <strong>de</strong> inibir ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s retóricas, <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontar, enfim, o<br />

678 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

679 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A leitura e a interpretação. 2005, p.51 (mimeo).


edifício sólido e estabelecido <strong>da</strong>s meras circunstâncias, <strong>de</strong>simpedindo assim o fluido<br />

trânsito reali<strong>da</strong><strong>de</strong>-ficção.<br />

Porque não preten<strong>de</strong>mos nos distanciar <strong>de</strong>ssa constatação, <strong>de</strong>ix<strong>em</strong>os, aqui<br />

registrado, uma pequena mostra do po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> arte-ficção: Dom Quixote cruza a<br />

porta<strong>da</strong> dos livros <strong>de</strong> cavalaria e não se sabe b<strong>em</strong> se entrando ou saindo. Não é<br />

possível <strong>de</strong>limitar o momento exato <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote. Por isso, também,<br />

não é possível <strong>de</strong>terminar qual foi o primeiro trânsito: se <strong>da</strong> ficção para a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>;<br />

se <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> para a ficção __ por test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> sua sobrinha, <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando,<br />

atirava longe o livro, tomava <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> e lutava até o suor pingar como as gotas <strong>de</strong><br />

sangue que ele mesmo <strong>de</strong>screvia. Não estaria, nesse momento, saindo por curtos<br />

momentos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e entrando já na ficção? Sejamos, portanto, mais mo<strong>de</strong>stos<br />

e comec<strong>em</strong>os pelo tradicional: Dom Quixote abandona a leitura dos livros <strong>de</strong><br />

cavalaria e instala esse mundo na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. É a ficção virando reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Desse primeiro trânsito, os <strong>de</strong>sdobramentos são infinitos: uma ficção que<br />

entra na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma tal que essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, contraditoriamente, é ficção.<br />

Dom Quixote sai <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e entra na ficção; Dom Quixote sai <strong>da</strong> ficção e entra<br />

na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> convive com a ficção; a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é espaço <strong>de</strong> passag<strong>em</strong><br />

entre ficções; a ficção se comunica com a ficção; a ficção esclarece a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> confirma a ficção; <strong>da</strong> ficção-ficção <strong>à</strong> ficção-representação etc.<br />

8 PENETRANDO NO TERRITÓRIO DA ARTE<br />

Eis que cruzamos, então, a tênue linha divisória; a<strong>de</strong>ntramo-nos, ca<strong>da</strong> vez<br />

mais, no território <strong>da</strong> arte, já anunciado anteriormente.


Aqui, a luta alcança seu ponto mais nobre. Portanto, será injusto não<br />

conce<strong>de</strong>r espaço <strong>à</strong> figura mais digna <strong>de</strong> tanta nobreza. To<strong>da</strong>s as experiências do ser<br />

e do real necessitam <strong>de</strong> muito espaço; pois só se plenificam na arena <strong>da</strong> arte.<br />

9 DOM QUIXOTE, ANJO E DEMÔNIO DAS ARTES<br />

Diante <strong>da</strong> cena que ama e sobrinha <strong>de</strong> Dom Quixote armaram, assim que se<br />

<strong>de</strong>ram conta <strong>da</strong> <strong>de</strong>sgraça que sobre aquela casa caíra: “[...] malditos libros <strong>de</strong><br />

caballería [...]. Encomen<strong>da</strong>dos sean a Satanás y a Barrabás tales libros [...] 680 le<br />

aconteció a mi señor tío estarse leyendo en estos <strong>de</strong>salmados libros <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sventuras” 681 ; outra coisa não se po<strong>de</strong>ria esperar, senão o veredito final: “[...] que<br />

no se pase el día <strong>de</strong> mañana sin que <strong>de</strong>llos no se haga acto público, y sean<br />

con<strong>de</strong>nados al fuego [...].” 682<br />

Em se tratando do teor <strong>da</strong> obra que estamos interpretando, é impossível<br />

ignorar o capítulo do escrutínio como a entra<strong>da</strong> principal. Associados <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong>, os<br />

livros <strong>de</strong> cavalaria são os gran<strong>de</strong>s vilões do romance e, por isso, merec<strong>em</strong><br />

tratamento rigoroso, aten<strong>de</strong>ndo a uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>pro</strong>filática, para que não “<strong>de</strong>n<br />

683 __<br />

ocasión a quien los leyere <strong>de</strong> hacer lo que mi buen amigo <strong>de</strong>be <strong>de</strong> haber hecho”<br />

assim falou “el <strong>cura</strong>”, tentando evitar que outros casos pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> se repetir: ficar<br />

louco <strong>em</strong> conseqüência <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

680<br />

Malditos livros <strong>de</strong> cavalaria [...] encomen<strong>da</strong>dos sejam a Satanás e a Barrabás tais livros. (1, V, p.35)<br />

681<br />

Aconteceu a meu senhor tio estar lendo nestes <strong>de</strong>salmados livros <strong>de</strong> <strong>de</strong>sventura (1, V, p.36)<br />

682<br />

Que não passe o dia <strong>de</strong> amanhã s<strong>em</strong> que <strong>de</strong>les não se faça ato público, e sejam con<strong>de</strong>nados ao fogo (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

683 Dê<strong>em</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> a qu<strong>em</strong> os ler <strong>de</strong> fazer o que meu bom amigo <strong>de</strong>ve ter feito (Ibi<strong>de</strong>m)


O capítulo do escrutínio, anunciado no início, aponta para algumas reflexões<br />

preliminares, a respeito do que se julga arte. Nesse capítulo, só nos são<br />

disponibilizados os livros que na época faziam parte do rol dos que contribuíram<br />

efetivamente para enlouquecer o fi<strong>da</strong>lgo manchego. Dentre “los libros autores <strong>de</strong>l<br />

<strong>da</strong>ño”, 684 era possível que alguns não “mereciesen castigo <strong>de</strong> fuego”. 685<br />

Fica evi<strong>de</strong>nte o radicalismo <strong>da</strong>s duas mulheres responsáveis pelo b<strong>em</strong>-estar<br />

<strong>de</strong> Dom Quixote; “tal era la gana que las dos tenían <strong>de</strong> la muerte <strong>de</strong> aquellos<br />

inocentes”. 686 Para elas todos os livros <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ir para a fogueira. Não é, no entanto,<br />

essa a opinião n<strong>em</strong> “<strong>de</strong>l barbero” n<strong>em</strong> “<strong>de</strong>l <strong>cura</strong>” .<br />

Assim, com justificativas plausíveis, escapa do fogo o livro pioneiro <strong>da</strong><br />

cavalaria – Los cuatro <strong>de</strong> Amadís <strong>de</strong> Gaula. Apesar <strong>de</strong>, na opinião “<strong>de</strong>l barbero”,<br />

sendo o livro, por sua condição <strong>de</strong> pioneiro, o “dogmatizador <strong>de</strong> una secta tan<br />

mala”, 687 <strong>de</strong>veria ser, irr<strong>em</strong>ediavelmente, con<strong>de</strong>nado ao fogo. Entretanto, esse é o<br />

motivo exato e justo para que fosse poupado; tanto por ser o primeiro “<strong>de</strong> todos los<br />

libros que <strong>de</strong> este género se han compuesto”, 688 como por ser avaliado o “único en<br />

su arte” 689 .<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que t<strong>em</strong>os expressa a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> que os livros <strong>de</strong><br />

cavalaria eram todos cópias <strong>de</strong> um único mo<strong>de</strong>lo, <strong>de</strong>claração confirma<strong>da</strong> pelo<br />

“canónigo”: “jamás me he podido acomo<strong>da</strong>r a leer ninguno <strong>de</strong>l principio al cabo,<br />

porque me parece que, cuál más, cuál menos, todos ellos son una mesma cosa, y<br />

no tiene más éste que aquél, ni estotro que el otro”; 690 t<strong>em</strong>os também uma<br />

contradição. É contraditório que, apesar do reconhecimento <strong>de</strong> ser o pior dos livros,<br />

684<br />

Os livros autores do <strong>da</strong>no (1, VI, p 37)<br />

685<br />

[Não] merecess<strong>em</strong> o castigo do fogo (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

686<br />

Tal era a vonta<strong>de</strong> que as duas tinham <strong>da</strong> morte <strong>da</strong>queles inocentes (1, VI, p.37)<br />

687<br />

Como dogmatizador <strong>de</strong> uma seita tão má (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

688<br />

De todos os livros que <strong>de</strong>ste gênero foram compostos (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

689<br />

(Ibi<strong>de</strong>m)<br />

690<br />

Jamais pu<strong>de</strong> acomo<strong>da</strong>r-me a ler nenhum do princípio ao fim, porque me parece que, uns mais, outros menos, todos eles<br />

são a mesma coisa, e não t<strong>em</strong> mais este que aquele, n<strong>em</strong> é outro senão o outro (1, XLVII, p.293)


Amadis seja preservado como único <strong>em</strong> sua arte. Contradição maior está no<br />

equívoco <strong>de</strong> arte ser toma<strong>da</strong> como representação formal <strong>de</strong> um gênero ou estilo,<br />

segundo seus conteúdos. Nesse caso, Amadis <strong>de</strong> Gaula era o <strong>pro</strong>tótipo do romance<br />

<strong>de</strong> cavalaria, e sua conservação parece estar liga<strong>da</strong> <strong>à</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> preservá-la<br />

como mo<strong>de</strong>lo ou cânon.<br />

Parece, ain<strong>da</strong>, a crença na materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>: acreditar-se que a obra se restringe<br />

<strong>à</strong> concretu<strong>de</strong> que está nos limites do livro. Fica ain<strong>da</strong> algo no ar, na <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong><br />

perdoar o livro pioneiro <strong>de</strong> Amadis <strong>de</strong> Gaula - “por esa razón se le otorga la vi<strong>da</strong> por<br />

ahora”. 691 Acrescenta “el <strong>cura</strong>” ser tal <strong>de</strong>cisão t<strong>em</strong>porária; o que na<strong>da</strong> acrescenta, a<br />

não ser, um mero disfarçar do <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito real, aliviado pelo “por ahora”.<br />

Todos os <strong>de</strong>mais livros, filhos e pertencentes <strong>à</strong> mesma linhag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Amadis,<br />

saciam a gana dos guardiões <strong>da</strong> sani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Dom Quixote; vão para a fogueira<br />

todos. Dentre eles, aparec<strong>em</strong> tipos variados: dois que disputam o lugar dos menos<br />

mentirosos; outros por não passar<strong>em</strong> <strong>de</strong> disparates; outros por seu estilo seco;<br />

alguns por não apresentar<strong>em</strong> na<strong>da</strong> <strong>de</strong> fabuloso que mereça louvor; e até aqueles<br />

que também não escapam porque n<strong>em</strong> o nome santo lhes dá garantias: “tras la cruz<br />

está el diablo; vaya al fuego”. 692 A brinca<strong>de</strong>ira comparativa soa como alerta,<br />

sugerindo haver “por trás” alguma marca sutil significativa, nessas obras<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s perigosas e, <strong>à</strong>s quais se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>dicar atenção.<br />

Ao fogo, os que, tendo vindo <strong>de</strong> outro lugar, entram no país traduzidos. Os<br />

juízes do escrutínio crê<strong>em</strong> que, por mais habili<strong>da</strong><strong>de</strong> que tenham os tradutores,<br />

jamais chegarão <strong>à</strong> perfeição <strong>da</strong> língua <strong>de</strong> seu primeiro nascimento. O que v<strong>em</strong>os<br />

aqui discutido é a própria arte. Essa questão se torna concreta, ao querer Dom<br />

Quixote “realizar” esse mundo inaugural. Dessa realização é que surge o próprio<br />

691 Por essa razão se lhe conce<strong>de</strong> a vi<strong>da</strong> por agora (1, VI, p 37)<br />

692 Atrás <strong>da</strong> cruz está o diabo; vai para o fogo (1, VI, p.39)


Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha, como obra. Quando se trata <strong>de</strong> cópia, no copiar, é<br />

impossível inaugurar “mundo”.<br />

Além <strong>de</strong> Amadis, pouquíssimos são poupados; todos com justificativas<br />

varia<strong>da</strong>s: um por ser consi<strong>de</strong>rado autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, não só por ter sido composto por um<br />

discreto rei <strong>de</strong> Portugal, como também “porque él por sí es muy bueno”. 693 V<strong>em</strong>os<br />

que a obra é avalia<strong>da</strong> como boa, porque escrita por um rei e, principalmente, porque<br />

“las razones [...] guar<strong>da</strong>n y miran el <strong>de</strong>coro <strong>de</strong>l que habla con mucha <strong>pro</strong>pie<strong>da</strong>d y<br />

entendimiento”. 694 Ser bom, por si mesmo, não é critério para avaliar-se uma obra.<br />

Entretanto, é bom, o que escrito com clareza tal que facilite igualmente “el<br />

entendimiento” <strong>de</strong> todos. Esses livros primam pela clareza – “las razones” que não<br />

permit<strong>em</strong> que se instale a dúvi<strong>da</strong> n<strong>em</strong> a incerteza.<br />

Outra obra sobrevive ao escrutínio: Historia Del famoso Caballero Tirante el<br />

Blanco é consi<strong>de</strong>rado o melhor livro do mundo. O motivo fun<strong>da</strong>mental é conter, esse<br />

livro, um el<strong>em</strong>ento que falta a todos os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong> cavalaria: nele “comen los<br />

caballeros, y duermen y mueren en sus camas, y hacen testamento antes <strong>de</strong> su<br />

muerte”. 695 Ou mesmo tomando outro caminho: “pues nos cuentan el padre, la<br />

madre, la patria, los parientes, la e<strong>da</strong>d, el lugar y las hazañas, punto por punto y día<br />

por día, que el tal caballero hizo, o caballeros hicieron”. 696<br />

Não é s<strong>em</strong> motivo que essa frase fique martelando na cabeça <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote que, volta e meia, a ela retorna. “Y más llevando tanta apariencia <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong>d”. 697 Esse com<strong>pro</strong>misso com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, já o vimos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ingresso <strong>de</strong> Dom<br />

Quixote na vi<strong>da</strong> cavaleiresca, haja vista o critério escrupuloso com que insere todos<br />

os ingredientes necessários <strong>à</strong> composição <strong>de</strong>sse mundo.<br />

693 Porque ele, por si mesmo, é muito bom (1, VI, p.39)<br />

694 As razões [...] guar<strong>da</strong>m e olham o <strong>de</strong>coro <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> fala com muita <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong> e entendimento (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

695 Com<strong>em</strong> os cavaleiros, e dorm<strong>em</strong> e morr<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas camas, e faz<strong>em</strong> testamento antes <strong>de</strong> sua morte (1, VII, p.40)<br />

696 Pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a i<strong>da</strong><strong>de</strong>, o lugar e as façanhas <strong>de</strong>talhe ponto por ponto e dia a dia, que<br />

o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304)<br />

697 E mais levando tanta aparência <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (Ibi<strong>de</strong>m)


Além disso, <strong>em</strong>bora comesse e dormisse pouco, mesmo já estando no final<br />

<strong>de</strong> sua travessia, Dom Quixote não <strong>de</strong>ixa faltar os mesmos ingredientes para<br />

compor<strong>em</strong> o cenário <strong>de</strong> sua morte: “tráiganme un confesor que me confiese y un<br />

escribano que haga mi testamento” 698 e, preparando-se para morrer, “se tendió <strong>de</strong><br />

largo a largo en la cama”, 699 tal é a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vínculo com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mesmo<br />

tendo ouvido do “escribano” “que nunca había leído en ningún libro <strong>de</strong> caballerías<br />

que algún Caballero an<strong>da</strong>nte hubiese muerto en su lecho tan sosega<strong>da</strong>mente y tan<br />

cristiano como don Quijote”, 700 Dom Quixote não dispensa esses <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

necessários para que se cumprisse, do compêndio <strong>de</strong> novelas <strong>de</strong> cavalaria, o it<strong>em</strong><br />

“apariencia <strong>de</strong> ver<strong>da</strong>d” 701 .<br />

Essa contradição expressa pelo “escribano”, entretanto, só reforça que o<br />

perseguido nesse it<strong>em</strong> é, na<strong>da</strong> mais que a questão do rigoroso com<strong>pro</strong>metimento<br />

com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ordinária. Para falar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ordinária, seguindo rigorosamente seus<br />

rituais estabelecidos, não é preciso ser arte, ou melhor, não é arte.<br />

Acrescenta-se, ain<strong>da</strong>, que neste livro não há “nece<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> industria”; 702 o<br />

que traduzimos como não havendo bobagens mirabolantes, cheias <strong>de</strong> artifício,<br />

comuns a esses livros. Em nota <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>pé, esclarece-se que o autor <strong>de</strong>ssa obra, só<br />

por esse feito, não merecia nunca ter ido parar na prisão. A crítica aqui fica por conta<br />

do <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> composição <strong>de</strong>ntro dos rigores do mo<strong>de</strong>lo estabelecido. As novelas<br />

con<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s eram aquelas que no intento <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar evi<strong>de</strong>nte a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, eram<br />

obras-primas <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lag<strong>em</strong>, atingindo <strong>de</strong> tal modo os extr<strong>em</strong>os, a ponto <strong>de</strong> ser<strong>em</strong><br />

caracteriza<strong>da</strong>s “indústria”. Do que se fala é <strong>de</strong> obras fabrica<strong>da</strong>s que não nasceram<br />

do movimento espontâneo <strong>da</strong> Linguag<strong>em</strong>.<br />

698<br />

Tragam-me confessor que me confesse e um escrivão que faça meu testamento (2, LXXIV, p.698)<br />

699<br />

Esten<strong>de</strong>u-se <strong>de</strong> ponta a ponta na cama (2, LXXIV, p.700)<br />

700<br />

Que nunca havia lido <strong>em</strong> nenhum livro <strong>de</strong> cavalaria que algum cavaleiro an<strong>da</strong>nte houvesse morrido <strong>em</strong> seu leito tão<br />

sossega<strong>da</strong>mente e tão cristão como Dom Quixote (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

701 (1, L, p.304)<br />

702 (1, VI, p.40)


Aparec<strong>em</strong> também outros livros <strong>de</strong> pequeno porte que não “<strong>de</strong>ben <strong>de</strong> ser <strong>de</strong><br />

caballería, sino <strong>de</strong> poesía”. 703 Um gênero, assim caracterizado e conhecido na<br />

época, que já convivia com os livros <strong>de</strong> cavalaria, gênero, segundo se comenta,<br />

muito admirado por Cervantes. Esses livros não receb<strong>em</strong> a atenção dos homens do<br />

escrutínio: La Diana, <strong>de</strong> Mont<strong>em</strong>ayor, gênero pastoril, não causará a seus leitores o<br />

<strong>da</strong>no que os <strong>de</strong> cavalaria estavam causando: “son libros <strong>de</strong> entendimiento”, 704 s<strong>em</strong><br />

prejuízo <strong>de</strong> terceiros, porque não contêm más ações a ser<strong>em</strong> imita<strong>da</strong>s. A menção a<br />

esses livros [que não são perigosos, que não <strong>pro</strong>duz<strong>em</strong> <strong>da</strong>nos], entretanto, ressalta<br />

mais ain<strong>da</strong> o alvo visado: os <strong>de</strong> cavalaria.<br />

Por outro lado, é interessante que, neste ponto, nos primeiros capítulos,<br />

v<strong>em</strong>os antecipa<strong>da</strong> a menção a pastor e a poeta que só retornarão, com clareza, no<br />

final <strong>da</strong> obra. É a sobrinha <strong>de</strong> Dom Quixote, t<strong>em</strong>erosa e precavi<strong>da</strong>, qu<strong>em</strong> aconselha<br />

queimar também aqueles livros <strong>de</strong> histórias pastoris; qu<strong>em</strong> sabe po<strong>de</strong>ria seu tio,<br />

“habiendo sanado [...] <strong>de</strong> la enferme<strong>da</strong>d caballeresca, leyendo éstos se le antojase<br />

<strong>de</strong> hacerse pastor y an<strong>da</strong>rse por los bosques y prados cantando y tañendo”; 705 e, o<br />

que seria ain<strong>da</strong> pior: “hacerse poeta; que, según dicen, es enferme<strong>da</strong>d in<strong>cura</strong>ble y<br />

pegadiza”. 706<br />

Essa caracterização __ poesia pastoril __ po<strong>de</strong> r<strong>em</strong>eter também para uma<br />

reflexão: ser<strong>em</strong> ficção e poesia meramente retóricas, uma doença que “pega”,<br />

doença contagiosa e incurável, consi<strong>de</strong>rando que, nesse nível, não sobra espaço<br />

para a <strong>cura</strong>. A poesia e ficção retóricas trabalham com os esqu<strong>em</strong>as <strong>pro</strong>ntos, com<br />

os mo<strong>de</strong>los fixos que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> e <strong>de</strong>terminam estilos e gêneros no t<strong>em</strong>po. Nesses não<br />

703<br />

Não <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser <strong>de</strong> cavalaria e sim <strong>de</strong> poesia (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

704<br />

(1, VI, p.40)<br />

705<br />

Havendo <strong>cura</strong>do [...] <strong>da</strong> doença cavaleiresca, lendo estes lhe ocorresse tornar-se pastor e an<strong>da</strong>r pelos bosques e prados<br />

cantando e tangendo (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

706<br />

Tornar-se poeta, que, segundo diz<strong>em</strong>, é doença incurável e contagiosa (Ibi<strong>de</strong>m)


há espaço para o jogo ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Isso basta para justificar o incurável<br />

<strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>, já que, s<strong>em</strong> abertura ao ser, Cura é <strong>de</strong>finitivamente impossível.<br />

Por outro lado, o ser poeta po<strong>de</strong> também ter o real sentido <strong>de</strong> poiesis. Nesse<br />

caso, a doença (“enferme<strong>da</strong>d”) está aqui aplica<strong>da</strong> <strong>em</strong> seu sentido figurado: ser poeta<br />

é uma “enferme<strong>da</strong>d in<strong>cura</strong>ble y pegadiza”, consi<strong>de</strong>rando que ser poeta não é uma<br />

<strong>de</strong>-cisão. Aquele que <strong>pro</strong>duz arte não o faz porque quer, não há n<strong>em</strong> consciência<br />

n<strong>em</strong> intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> nesse agir. É um agir especial, extraordinário. É diferente do<br />

ordinário porque há s<strong>em</strong>pre um po<strong>de</strong>r outro, s<strong>em</strong>pre algo que move o poeta, algo<br />

s<strong>em</strong>pre arrebatador que o toma irr<strong>em</strong>ediavelmente. Ser, pela poesia, tomado é “mal”<br />

(enferme<strong>da</strong>d) que pega (pegadiza) e não larga (in<strong>cura</strong>ble). O poeta é movido pelos<br />

<strong>de</strong>uses, por isso é s<strong>em</strong>pre puro entusiasmo. Cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>us <strong>de</strong>ntro, o poeta é puro<br />

vigor. Ser tomado pelos <strong>de</strong>uses é a lou<strong>cura</strong> mais divina. Talvez seja esse o <strong>de</strong>stino<br />

<strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

De qualquer modo, a preocupação <strong>da</strong> sobrinha volta a tocar no ponto<br />

vulnerável <strong>da</strong> imitação. Todos os presentes, concor<strong>da</strong>ndo perfeitamente com o alerta<br />

<strong>da</strong> sobrinha, tomam <strong>pro</strong>vidências para que Dom Quixote não corra nenhum risco. Do<br />

livro <strong>em</strong> questão, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m tirar quase todos os versos, <strong>de</strong>ixando somente a <strong>pro</strong>sa,<br />

esta menos perigosa no que se refere <strong>à</strong>s ações <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que não<br />

com<strong>pro</strong>metess<strong>em</strong> o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> valores <strong>da</strong> “república cristiana”, s<strong>em</strong> aquelas<br />

perigosas más ações que, na época <strong>de</strong> Platão, representavam os versos <strong>de</strong><br />

Homero. E <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m poupá-lo, orientados pelo mesmo motivo que os levara a poupar<br />

o pioneiro <strong>de</strong> Amadis: “la honra <strong>de</strong> ser primero” 707 no estilo. Todos os <strong>de</strong>mais do<br />

estilo não consegu<strong>em</strong> escapar. De novo se insinua a intenção <strong>de</strong> perpetuar a obra,<br />

<strong>de</strong>ntro dos estreitos limites que dimensionam o livro, além do cui<strong>da</strong>do com a<br />

manutenção do cânon.<br />

707 (1, VI, p.41)


É por isso que Dom Quixote per<strong>de</strong> a paciência com o canónigo, falando-lhe<br />

<strong>em</strong> tom imperativo: “Léalos”, 708 sugerindo-lhe, com isso, que, a partir do diálogo,<br />

experiencie com o “outro” que é a obra <strong>de</strong> arte; sugerindo-lhe a escuta do que a obra<br />

diz. Não a escuta <strong>da</strong> obra, mas a escuta do que <strong>em</strong> nós ressoa, porque só a escuta<br />

torna possível a compreensão. Só se compreen<strong>de</strong> o que na obra está <strong>em</strong> obra,<br />

quando o “outro” que é a obra, o ouvimos ressoar <strong>em</strong> nós. A voz que escutamos na<br />

leitura não é a voz <strong>da</strong> obra é a voz do logos.<br />

Não há cânon, não há mo<strong>de</strong>lo, não há base possível para se tomar como guia<br />

<strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Quando Dom Quixote diz: “léalos”, está dizendo que o que i<strong>de</strong>ntifica<br />

a obra <strong>de</strong> arte é o que na obra está <strong>em</strong> obra <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e isso se apresenta através<br />

<strong>da</strong>s questões.<br />

Muito do que foi poupado no escrutínio se <strong>de</strong>ve a motivos que extrapolam os<br />

parâmetros <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte: ou porque “su autor es amigo mío” 709 ou porque seus<br />

versos soam b<strong>em</strong> “tal es la suavi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la voz con que los canta, que encanta”; ou<br />

porque, por ser<strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s rari<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mereciam ser preserva<strong>da</strong>s: “guár<strong>de</strong>se<br />

como joya preciosa” 710 “guár<strong>de</strong>nse como las más ricas pren<strong>da</strong>s <strong>de</strong> poesía que tiene<br />

España”; 711 mesmo que a recomen<strong>da</strong>ção fosse <strong>de</strong> tê-los fechados a sete chaves “en<br />

vuestra casa, mas no los <strong>de</strong>jéis leer a ninguno”. 712 Essa contradição, entretanto, por<br />

mais inocente, <strong>de</strong>ixa claro nenhum grau <strong>de</strong> consciência do acima apresentado: que<br />

uma obra só é obra se li<strong>da</strong>, porque só na leitura é possível verificar o que a<br />

essencializa como obra: as questões que permit<strong>em</strong> que se <strong>de</strong>svele o que nelas está<br />

<strong>em</strong> obra <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Dom Quixote assim sinaliza, <strong>em</strong> vários momentos:<br />

708<br />

Lê-los (os livros <strong>de</strong> cavalaria) (1, L, p.304)<br />

709<br />

(1, VI, p.41)<br />

710<br />

(Ibi<strong>de</strong>m)<br />

711<br />

Que sejam guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s como as mais ricas pren<strong>da</strong>s <strong>de</strong> poesia que t<strong>em</strong> na Espanha (1, VI, p.42)<br />

712 Em vossa casa; mas não <strong>de</strong>ixai que ninguém os leia (1, VI, p.40)


Callad, hijas __ les respondió don Quijote __ , que yo sé bien lo que me<br />

cumple. Llevadme al lecho, que me parece que no estoy muy bueno, y<br />

tened por cierto que, ahora sea caballero an<strong>da</strong>nte o pastor por an<strong>da</strong>r, no<br />

<strong>de</strong>jaré si<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> acudir a lo que hubiére<strong>de</strong>s menester, como lo veréis por<br />

la obra. 713<br />

N<strong>em</strong> Cervantes escapa do escrutínio. O fragmento apresenta, além <strong>de</strong> um<br />

lamento que expressa a dureza biográfica do autor, mas que indicia muito mais seu<br />

drama <strong>de</strong> escrever principalmente no que se refere a <strong>da</strong>r conta do que significa<br />

realmente o fenômeno chamado arte: “tiene algo <strong>de</strong> buena invención; <strong>pro</strong>pone algo,<br />

y no concluye na<strong>da</strong>” 714 . Assim, o <strong>de</strong>ixam na expectativa <strong>de</strong> que possa mais adiante,<br />

encontrar a chave, o ponto certo que lhe permita alcançar “la misericordia que ahora<br />

se le niega”. 715 Essa menção nos serve para confirmar que o seu próprio fazer<br />

poético, Cervantes o põe <strong>em</strong> questão. O ponto nevrálgico está exatamente <strong>em</strong> que<br />

só <strong>pro</strong>põe, mas “no concluye na<strong>da</strong>”.<br />

Esse “no concluye na<strong>da</strong>”, ponto nevrálgico aos olhos <strong>de</strong> escrutínio é, ele<br />

mesmo, no entanto, ponto fun<strong>da</strong>mental no que tange ao específico <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte.<br />

Refere-se <strong>à</strong> abertura infinita que é a obra. Uma gran<strong>de</strong> obra só “<strong>pro</strong>pone”, s<strong>em</strong><br />

nunca fechar “y no concluye na<strong>da</strong>”. Para <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong>sse it<strong>em</strong>, basta r<strong>em</strong>etê-lo <strong>à</strong><br />

“obra aberta” <strong>de</strong> Umberto Eco e ao “labirinto”, com o qual Borges caracteriza a obra<br />

<strong>de</strong> arte. E, a isso, acrescentar, o círculo hermenêutico, on<strong>de</strong> a obra na<strong>da</strong> mais é do<br />

que perguntas que, respondi<strong>da</strong>s, geram novas perguntas <strong>em</strong> movimento s<strong>em</strong> fim.<br />

Perfeitamente hermenêutico é o fazer <strong>de</strong> Cervantes, um fazer que na<strong>da</strong> mais t<strong>em</strong> a<br />

fazer do que “<strong>pro</strong>poner”, do que perguntar.<br />

No 3 o Périplo está <strong>em</strong> questão a obra <strong>de</strong> arte <strong>em</strong> seus vários aspectos. Um<br />

<strong>de</strong>les ressalta-se nos limites do fragmento: “Los libros que están impresos con<br />

713 Cal<strong>em</strong>-se, filhas __ respon<strong>de</strong>u-lhes Dom Quixote __ , que eu sei b<strong>em</strong> o que me cabe. Lev<strong>em</strong>-me ao leito, pois me parece que<br />

não estou muito b<strong>em</strong>, e tenham, por certo, que agora, sendo cavaleiro an<strong>da</strong>nte ou pastor só por an<strong>da</strong>r, não <strong>de</strong>ixarei <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r<br />

s<strong>em</strong>pre ao que for necessário, como vocês verão pela obra. (2, LXXIII, p.696)<br />

714 T<strong>em</strong> boa invenção, <strong>pro</strong>põe alguma coisa e não conclui na<strong>da</strong> (1, VI, p.42)<br />

715 A misericórdia que agora lhe é nega<strong>da</strong> (Ibi<strong>de</strong>m)


licencia <strong>de</strong> los reyes y con a<strong>pro</strong>bación <strong>de</strong> aquellos a quien se r<strong>em</strong>itieron”. 716 Trata-se<br />

do po<strong>de</strong>r instituído e <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, tendo <strong>de</strong> submeter-se a esse po<strong>de</strong>r, a ponto <strong>de</strong><br />

ser possível jogar com os el<strong>em</strong>entos rei e mecenas, seus representantes __ aqueles<br />

que dão o aval, porque têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> avaliar e julgar; aqueles que <strong>de</strong>têm o<br />

conhecimento do que é arte <strong>de</strong>ntro dos mol<strong>de</strong>s estabelecidos.<br />

Por outro lado v<strong>em</strong>os estabelecer-se uma gran<strong>de</strong> contradição: aquelas obras<br />

que passavam pelo rigor <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s políticas e <strong>da</strong> arte, não esqueçamos, foram<br />

as responsáveis pelo enlouquecimento <strong>de</strong> Dom Quixote, e seus efeitos consi<strong>de</strong>rados<br />

tão drásticos, não só por pessoas do senso comum __ a sobrinha e a ama do fi<strong>da</strong>lgo<br />

__ que as classificaram no rol <strong>da</strong>s artimanhas do <strong>de</strong>mônio, como também por<br />

homens, leitores que <strong>de</strong>tinham o po<strong>de</strong>r do conhecimento __ “el <strong>cura</strong>” e “el barbero” __ ,<br />

<strong>da</strong>ndo-lhes, por isso, o <strong>de</strong>vido <strong>de</strong>stino __ a fogueira. Ao ressaltarmos esse t<strong>em</strong>a, a<br />

intenção foi a <strong>de</strong> alimentar a questão, acrescentando-lhe ingrediente polêmico.<br />

Entretanto, o que estará aqui <strong>em</strong> <strong>de</strong>staque não são as opiniões parciais já<br />

publica<strong>da</strong>s a respeito <strong>da</strong> obra e, sim, as questões com as quais ela po<strong>de</strong> nos<br />

<strong>pro</strong>vocar.<br />

Dom Quixote, muito mais que vítima do expurgo dos livros <strong>de</strong> sua biblioteca,<br />

ficara impedido <strong>de</strong> sequer transitar por ela. Por medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> precaução, a melhor<br />

solução, tanto para “el barbero” como para “el <strong>cura</strong>”, foi “que le murasen y tapiasen<br />

el aposento <strong>de</strong> los libros, porque cuando se levantase no los hallase”. 717 Achavam<br />

que, eliminando a causa, estaria elimina<strong>da</strong> a conseqüência. Só <strong>de</strong>pois veio a<br />

explicação: “un encantador se los había llevado, y el aposento y todo”. 718<br />

Deu resultado a estratégia maliciosa dos <strong>pro</strong>tetores <strong>de</strong> Dom Quixote. Deu<br />

certo, é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; mas s<strong>em</strong> ter sido assimila<strong>da</strong> pelo cavaleiro. Tanto que, além <strong>de</strong><br />

716 Os livros que estão impressos com licença e com a<strong>pro</strong>vação <strong>da</strong>queles a qu<strong>em</strong> foram <strong>de</strong>dicados [os mecenas] (1, L, p.304)<br />

717 Que se <strong>em</strong>pare<strong>da</strong>ss<strong>em</strong> e encobriss<strong>em</strong> o aposento dos livros, para que quando se levanta não os achasse. (1, VII, p.43)<br />

718 Um encantador havia levado, o aposento e tudo (Ibi<strong>de</strong>m)


Dom Quixote ter ficado como louco <strong>pro</strong><strong>cura</strong>ndo o dito aposento, e <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> ama e<br />

sobrinha atribuído a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> a um encantador, Dom Quixote o i<strong>de</strong>ntificou<br />

imediatamente como inimigo que tinha <strong>em</strong> sua história o firme <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> impedir o<br />

cumprimento <strong>de</strong> sua travessia.<br />

Fica patente que Dom Quixote não se conforma com o encantamento <strong>da</strong><br />

biblioteca, porque não acata as interferências <strong>de</strong>sse encantador, avisando-lhe que<br />

não será possível “él contra<strong>de</strong>cir ni evitar lo que por el cielo está or<strong>de</strong>nado”. 719 É<br />

graças a esse estar molesto <strong>de</strong> Dom Quixote que o texto se enriquece, porque<br />

permite e justifica que, a ca<strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, seja trazi<strong>da</strong> novamente a questão<br />

relaciona<strong>da</strong> aos livros <strong>de</strong> cavalaria. No 3 o Périplo a questão ganha nova dimensão e<br />

po<strong>de</strong> ser trata<strong>da</strong> mais amplamente. Trata-se <strong>da</strong> mentira e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong><br />

arte. Dom Quixote sustenta sua questão, a partir <strong>da</strong> aparência <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que ele<br />

reconhece nos livros <strong>de</strong> cavalaria, e essa aparência está b<strong>em</strong> <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>: os livros <strong>de</strong><br />

cavalaria parec<strong>em</strong> conter a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> “pues nos cuentan el padre, la madre, la patria,<br />

los parientes, la e<strong>da</strong>d, el lugar y las hazañas punto por punto y día por día, que el tal<br />

caballero hizo, o caballeros hicieron” 720<br />

Se o referencial retomado constant<strong>em</strong>ente pelas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s do escrutínio é a<br />

república – “yo hallo por mi cuenta que son perjudiciales en la república estos que<br />

llaman libros <strong>de</strong> caballerías”, 721 diante <strong>de</strong>ssas evidências, só po<strong>de</strong>mos pensar que a<br />

fala <strong>de</strong> Quixote é ambígua e que não se atém somente <strong>à</strong>s obras menciona<strong>da</strong>s. Do<br />

mesmo modo que se restringe a questão <strong>da</strong> arte, aos limites <strong>da</strong> Paidéia,<br />

representa<strong>da</strong> na obra pela “república cristiana”, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o espaço que se abre<br />

é o <strong>da</strong> discussão num âmbito mais amplo. Seu alcance é muito maior, atinge, acima<br />

<strong>de</strong> tudo, a obra <strong>de</strong> arte. É impossível que o querer <strong>de</strong> Dom Quixote seja um mero<br />

719<br />

Ele contradizer n<strong>em</strong> evitar o que pelos céus está or<strong>de</strong>nado (1, VII, p.44)<br />

720<br />

Pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a i<strong>da</strong><strong>de</strong>, o lugar e as façanhas <strong>de</strong>talhe, ponto por ponto e dia a dia, que<br />

o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304)<br />

721<br />

E acho por minha conta que são prejudiciais na república estes que chamam livros <strong>de</strong> cavalaria (1, XLVII, p.293)


capricho. Ain<strong>da</strong> que pareça capricho, no avançado <strong>de</strong>sta pesquisa, não há como<br />

acreditar naquilo que parece. Com tanto parecer, Dom Quixote só po<strong>de</strong> querer<br />

conduzir-nos <strong>à</strong> reflexão do significado <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Na<strong>da</strong> mais justo; era<br />

Renascimento; ao hom<strong>em</strong>, lhe cabia <strong>da</strong>r conta do mundo e explicá-lo.<br />

T<strong>em</strong>os <strong>em</strong> resumo que arte an<strong>da</strong>va, por aqueles t<strong>em</strong>pos, mistura<strong>da</strong> com tudo<br />

o que dissesse respeito ao fazer. Estava na hora <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong>, assumindo seu lugar<br />

no cosmo, <strong>da</strong>r <strong>à</strong> arte a <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> atenção.<br />

10 APROXIMA-SE A DIS-PUTA FINAL; É TEMPO DE AGIR<br />

Se estamos próximos <strong>da</strong> dis-puta, é hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>legar. Dom Quixote escolhe tanto o espaço on<strong>de</strong> terá lugar a batalha-dis-puta com o<br />

cavaleiro <strong>de</strong>sconhecido, como, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>fine qu<strong>em</strong> são os contendores.<br />

T<strong>em</strong> sentido nossa hipótese inicial, a partir do fragmento: “porque sabe por sus artes y letras” 722 . Estavam corretas as suspeitas.<br />

Essa batalha era, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, aquela trava<strong>da</strong> entre terra e mundo, entre não-ser e ser, no espaço “entre”, on<strong>de</strong> tudo po<strong>de</strong> ser.<br />

Dom Quixote <strong>de</strong>lega, porque, se o sábio <strong>pro</strong>tetor do cavaleiro com qu<strong>em</strong> irá lutar pertence ao universo <strong>da</strong>s letras e <strong>da</strong>s artes,<br />

também ele precisará contar com <strong>pro</strong>tetores do mesmo nível. Para dis-puta <strong>de</strong>sse porte, Dom Quixote quer contar com qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong><br />

familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com a arte.<br />

10.1 A HERMES O QUE É DE HERMES, A PAZ O QUE É DE PAZ<br />

Se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros capítulos, até com a própria sombra lutava Dom Quixote, como <strong>de</strong>sperdiçar mana<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ovelhas que<br />

po<strong>de</strong>riam ser exércitos, como evitar moinhos que b<strong>em</strong> pareciam gigantes? Era preciso exercitar-se. Não o exercício do braço n<strong>em</strong> <strong>da</strong> espa<strong>da</strong>.<br />

O exercício que precisava exercitar era o do “fingir”. Essa foi a única arma escolhi<strong>da</strong> por unanimi<strong>da</strong><strong>de</strong> pelos contendores para a batalha final.<br />

Agora compreen<strong>de</strong>mos; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu agir até o seu falar. Sabia a missão que o aguar<strong>da</strong>va no futuro; por isso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros<br />

capítulos lutava até com a sombra, esmerando-se, insistindo <strong>em</strong> seguir com mana<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ovelhas e moinhos, precisava exercitar-se para essa<br />

batalha-dis-puta final. Quanta responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, quanto com<strong>pro</strong>misso!<br />

O t<strong>em</strong>po é pouco, muito há ain<strong>da</strong> a fazer. Dom Quixote começa, então, a lançar mão do que já dispõe: por reivindicação <strong>de</strong><br />

Hermes, a ele entrega a tarefa do “<strong>de</strong>spistar”; <strong>em</strong> melhores mãos não po<strong>de</strong>ria cair. Pois se até a nós mesmos conseguiu enganar. Nós, que há<br />

tanto t<strong>em</strong>po estamos nessa li<strong>da</strong> “<strong>quixote</strong>sca”.<br />

Tanto nos enganou o astuto Hermes que, para driblá-lo, foi preciso inventar a estratégia dos Périplos. Se íamos por um caminho,<br />

quando seguros <strong>de</strong> que nos conduzia para on<strong>de</strong> as pistas indicavam; on<strong>de</strong> estavam as pistas? Sumiam, <strong>de</strong>sapareciam s<strong>em</strong> explicação. Dele,<br />

tudo se po<strong>de</strong> esperar, consi<strong>de</strong>rando que é capaz até <strong>de</strong> amarrar galhos <strong>de</strong> árvore no rabo <strong>de</strong> animais para, apagando os rastros, <strong>de</strong>sorientar os<br />

viajantes. E não nos engan<strong>em</strong>os, porque os viajantes somos nós mesmos, leitores que, como loucos, <strong>de</strong> Périplo <strong>em</strong> Périplo, <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>mos o<br />

caminho que leva <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Isso custou muito trabalho, exigindo um “ir e vir” exaustivo e molesto, mas necessário e inevitável. A solução encontra<strong>da</strong> no “ir e<br />

vir” são os três Périplos <strong>em</strong> que está dividi<strong>da</strong> esta pesquisa.<br />

Na urgência, Dom Quixote também entrega a Hermes o “fingir”, atribuição a qual se <strong>de</strong>dica o <strong>de</strong>us, com <strong>de</strong>svelo, tal era sua<br />

maestria. Embora Dom Quixote não tenha <strong>de</strong>legado a Hermes o quinhão <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>, pois <strong>de</strong>sse era cioso, o estar<strong>em</strong> tão juntas lou<strong>cura</strong> e<br />

ficção, no final, ele também <strong>de</strong>la participou. O resultado que se vê é perfeito, consegu<strong>em</strong> os dois – Hermes e Dom Quixote –, <strong>pro</strong>mover a<br />

maior festa do fingir na ficção <strong>de</strong> que já teve notícia o Oci<strong>de</strong>nte.<br />

Com respeito <strong>à</strong> autoria, ain<strong>da</strong> que encontrasse <strong>em</strong> Hermes competência para perfeito <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho, Dom Quixote não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />

<strong>de</strong> pagar tributo a Octavio Paz. Foi o escritor mexicano que lhe <strong>de</strong>u o sinal essencial: “a outra voz”.<br />

722 Porque sabe por suas artes e letras (1, VII, p.44)


Deix<strong>em</strong>os, aqui registra<strong>da</strong>, a parte que a Paz cabe. Deixamos este it<strong>em</strong> nas mãos <strong>de</strong> Octavio Paz, por se tratar <strong>da</strong>s vozes que<br />

contam a história <strong>de</strong> Dom Quixote. A ele, que introduziu a “outra voz”, <strong>de</strong>legar<strong>em</strong>os essa mesma atribuição.<br />

O ouvir a “outra voz” que não é n<strong>em</strong> do “eu” n<strong>em</strong> do “outro”, é aqui cont<strong>em</strong>plado porque na obra, a outra voz não é só outra, é<br />

outras. É claro que, também aqui, foi impossível a Octavio Paz livrar-se <strong>da</strong> influência <strong>de</strong> Hermes.<br />

Além <strong>da</strong> riqueza já conheci<strong>da</strong> <strong>em</strong> relação aos que divi<strong>de</strong>m a autoria <strong>da</strong> obra,<br />

anotamos alguns <strong>da</strong>dos que mais ain<strong>da</strong> enriquec<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>a: muitas são as<br />

anotações encontra<strong>da</strong>s nas margens __ “Está, [...], aquí en el margen escrito esto:<br />

‘Esta Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso [...] que tuvo la mejor mano para salar puercos [...]’”. 723<br />

Essas anotações vão do ex<strong>em</strong>plo acima, a outras mais com<strong>pro</strong>metedoras, como no<br />

episódio <strong>em</strong> “la cueva” <strong>de</strong> Montesinos, <strong>em</strong> que a anotação marginal põe <strong>em</strong><br />

movimento o jogo ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, levando-o <strong>à</strong>s últimas conseqüências.<br />

Muitas são as histórias, contos, cartas e biografias que aparec<strong>em</strong> interpola<strong>da</strong>s<br />

ao longo <strong>da</strong> obra, todos contados por diferentes vozes, vozes que não se restring<strong>em</strong><br />

a contar como também penetram na psicologia dos contados.<br />

O contar e o escrever aparec<strong>em</strong> <strong>em</strong> várias mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s: há s<strong>em</strong>pre a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um tradutor que seja capaz <strong>de</strong> tirar uma dúvi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer mal-<br />

entendidos: “y puesto que aunque los conocía no los sabía leer, anduve mirando si<br />

parecía por allí algún morisco aljamiado que los leyese.” 724<br />

Some-se a isso o universo <strong>de</strong> conjecturas que também interfere na<br />

lineari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> narração: “aunque por conjecturas verosímiles, se <strong>de</strong>ja enten<strong>de</strong>r que<br />

se llamaba Quejana”. 725 S<strong>em</strong> contar com a peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> que caracteriza os árabes,<br />

<strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte, responsáveis pela veiculação <strong>da</strong> história. Sendo eles, por orig<strong>em</strong>,<br />

mentirosos [é o que diz a obra], novas aberturas põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> jogo novas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “su<br />

autor arábigo, siendo muy <strong>pro</strong>pio <strong>de</strong> los <strong>de</strong> aquella nación ser mentirosos” 726 .<br />

723<br />

Está, [...], aqui na marg<strong>em</strong>, escrito isto: “Esta Dulcinea <strong>de</strong>l Toboso [...] que teve a melhor mão para salgar porcos [...]”<br />

(1, IX, p.53)<br />

724<br />

Visto que ain<strong>da</strong> que os conhecesse não os sabia ler, andou olhando se aparecia por ali algum mourisco intérprete que os<br />

lesse (1, IX, p.53)<br />

725<br />

Ain<strong>da</strong> que por conjecturas verossímeis, se <strong>de</strong>ixa enten<strong>de</strong>r que se chamava Quejana (1, I, p.18)<br />

726 Seu autor arábico, sendo muito próprio dos <strong>da</strong>quela nação ser<strong>em</strong> mentirosos (1, IX, p.54)


Esse <strong>da</strong>do <strong>da</strong> autoria é <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental importância. É ele que enriquece a<br />

obra com o ingrediente “mentira”, essencial para acionar o jogo <strong>de</strong> dobraduras. Esse<br />

jogo <strong>de</strong> mentiras e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que se dobram e <strong>de</strong>sdobram é o espaço maior on<strong>de</strong> a<br />

questão do fingir <strong>da</strong> ficção se amplia ao limite máximo, num dobrar-se-questão,<br />

<strong>de</strong>sdobrar-se-resposta, infinito. Esse movimento é acionado por Ci<strong>de</strong> Hamete, o<br />

próprio autor que, sendo <strong>de</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong> árabe, é mentiroso.<br />

Ci<strong>de</strong> Hamete, entretanto, não é mentiroso porque nós, leitores, assim o<br />

julgamos. Ele é mentiroso porque é assim que a obra o avalia. Avalia-o<br />

indiretamente, é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, por sua orig<strong>em</strong> e casta, o que nos leva a repetir o<br />

ex<strong>em</strong>plo: “su autor arábigo, siendo muy <strong>pro</strong>pio <strong>de</strong> los <strong>de</strong> aquella nación ser<br />

mentirosos”. Entretanto, o que está <strong>em</strong> jogo não é a com<strong>pro</strong>vação <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> ou não<br />

mentirosos os “arábigos”, e sim a questão <strong>da</strong> arte, questão que a coloca no pe<strong>de</strong>stal<br />

do po<strong>de</strong>r-ser possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Essa marca <strong>da</strong> obra está com<strong>pro</strong>meti<strong>da</strong> com duas questões. Como passa por<br />

muitos autores e tradutores, há gran<strong>de</strong> preocupação com o garantir a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Isso<br />

o faz<strong>em</strong> <strong>da</strong> seguinte maneira: mesmo que a história passe <strong>de</strong> mão <strong>em</strong> mão, <strong>de</strong> boca<br />

<strong>em</strong> boca, incluindo até a tradução, há s<strong>em</strong>pre um alerta: “sin quitarles ni añadirles<br />

na<strong>da</strong>” 727 ; e, ain<strong>da</strong>: “Pero esto importa poco a nuestro cuento; basta que en la<br />

narración <strong>de</strong>l no se salga un punto <strong>de</strong> la ver<strong>da</strong>d” 728 . Trata-se <strong>de</strong> um alerta ambíguo<br />

que afirma algo inviável. Como se fosse possível tal restrição.<br />

Com isso, só se acentua a abertura que é a obra <strong>de</strong> arte. Nela, na<strong>da</strong> é n<strong>em</strong> seguro, n<strong>em</strong> certo; a sombra <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> estará s<strong>em</strong>pre<br />

presente, permitindo que permaneça o jogo. E, on<strong>de</strong> há jogo, Hermes não resiste. Portanto, Hermes “verbo”, Hermes “sentido”, Hermes<br />

“mensageiro”, “caminho”, “portador <strong>da</strong> palavra”, “<strong>de</strong>us <strong>da</strong>s encruzilha<strong>da</strong>s responsável pelas ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s”, Hermes “responsável pelos<br />

encontros e <strong>de</strong>sencontros, pelas confluências e difluências dos caminhos”, 729 acabou não resistindo, e, nesse jogo, acabou também entrando.<br />

727 S<strong>em</strong> lhes tirar n<strong>em</strong> acrescentar na<strong>da</strong> (1, IX, p.53)<br />

728 Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração <strong>de</strong>le não <strong>de</strong> saia na<strong>da</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. (1, I, p.18)<br />

729 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005, p.58


11 DOM QUIXOTE VIDA, DOM QUIXOTE FICÇÃO: A LOUCURA COMO<br />

CONTRAPONTO<br />

O que tanto a<strong>pro</strong>xima, afinal, vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ficção?<br />

Des<strong>de</strong> o 1 o Périplo nos instigam situações que teimam <strong>em</strong> confundir vi<strong>da</strong> com<br />

ficção. A tal ponto que o texto <strong>de</strong>nota essa marca intrigante e ambígua <strong>em</strong> relação a<br />

Dom Quixote: personag<strong>em</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ou <strong>da</strong> ficção? Essa marca<br />

preocupante percorre to<strong>da</strong> obra e, <strong>em</strong>bora não pareça, é orquestra<strong>da</strong> por uma<br />

marcação radical <strong>de</strong> com<strong>pro</strong>vação.<br />

Assim, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é persegui<strong>da</strong>. Usa-se <strong>de</strong> todo recurso disponível para <strong>de</strong>ixar<br />

registrado sua com<strong>pro</strong>vação na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Muitos são os ex<strong>em</strong>plos <strong>em</strong> que essa<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> com<strong>pro</strong>vação se faz sentir <strong>de</strong> diversos modos. Dentre eles, o mais<br />

freqüente aparece, ou com o próprio substantivo “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” ou com o termo “razão” e<br />

seus <strong>de</strong>rivados: “Por ser todo lo que he contado tan averigua<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>d”. 730 Vão, no<br />

entanto, até os esqu<strong>em</strong>as mais sofisticados, quando chegam a exigir test<strong>em</strong>unhas e<br />

registros:<br />

[...] una petición, <strong>de</strong> que a su <strong>de</strong>recho convenía <strong>de</strong> que don Álvaro Tarfe,<br />

aquel caballero que allí estaba presente, <strong>de</strong>clarase ante su merced como no<br />

conocía a don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, que asimismo estaba allí presente, y<br />

que no era aquél que an<strong>da</strong>ba impreso en una historia intitula<strong>da</strong>: Segun<strong>da</strong><br />

parte <strong>de</strong> don Quijote <strong>de</strong> la Mancha, compuesta por un tal <strong>de</strong> Avellane<strong>da</strong>. 731<br />

Nesse intenso questionar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, chega-se ao ponto <strong>de</strong><br />

fotografar para garantir os <strong>de</strong>talhes necessários <strong>à</strong> sua com<strong>pro</strong>vação. Uma luta que é<br />

interrompi<strong>da</strong> faz cessar também a narrativa, para ser retoma<strong>da</strong> no capítulo seguinte:<br />

730 Por ser tudo o que contei tão averigua<strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (1, XII, p.66)<br />

731 Uma petição, <strong>de</strong> que a seu direito convinha que Dom Álvaro Tarfe, aquele cavaleiro que ali estava presente, <strong>de</strong>clara-se<br />

diante <strong>de</strong> sua mercê como não conhecia Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, que também estava presente, e que não era aquele que<br />

an<strong>da</strong>va impresso na história intitula<strong>da</strong>: Segun<strong>da</strong> parte <strong>de</strong> Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, composta por um tal <strong>de</strong> Avellane<strong>da</strong>.<br />

(2, LXXII, p.692)


“que en este punto y término <strong>de</strong>ja pendiente el autor <strong>de</strong>sta historia esta batalla,<br />

disculpándose que no halló más escrito <strong>de</strong>stas hazañas <strong>de</strong> don Quijote <strong>de</strong> las que<br />

<strong>de</strong>ja referi<strong>da</strong>s”. 732<br />

O narrador, para não fugir ”un punto <strong>de</strong> la ver<strong>da</strong>d”, como recomen<strong>da</strong>ra Dom<br />

Quixote, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> história, para que não se per<strong>de</strong>sse um ponto sequer do<br />

como a luta acontecera, põe-se a <strong>pro</strong><strong>cura</strong>r um documento que lhe <strong>de</strong>sse a garantia<br />

<strong>da</strong> seqüência. Acaba encontrando uma pintura <strong>da</strong> cena on<strong>de</strong> a luta tinha cessado:<br />

“Estaba en el primero cartapacio, pinta<strong>da</strong> muy al natural la batalla <strong>de</strong> don Quijote<br />

con el vizcaíno, puestos en la mesma postura que la historia cuenta”. 733<br />

Essa necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> com<strong>pro</strong>var mostra como a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> está com<strong>pro</strong>meti<strong>da</strong><br />

com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A obra acaba assumindo ares <strong>de</strong> texto histórico, tal é a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> expressá-la como reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e esta, como certeza inquestionável:<br />

[...] <strong>de</strong>biendo ser [...] puntuales, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ros y no na<strong>da</strong> apasionados, y que ni<br />

el interés ni el miedo, el rancor, ni la afición, no les hagan torcer <strong>de</strong>l camino<br />

<strong>de</strong> la ver<strong>da</strong>d, cuya madre es la historia, émula <strong>de</strong>l ti<strong>em</strong>po, <strong>de</strong><strong>pós</strong>ito <strong>de</strong> las<br />

acciones, testigo <strong>de</strong> lo pasado, ej<strong>em</strong>plo y aviso <strong>de</strong> lo presente, advertencia<br />

<strong>de</strong> lo por venir”. 734<br />

Em outra passag<strong>em</strong>, o narrador levanta a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s mentiras do<br />

escritor “arábigo” aparecer<strong>em</strong> na obra, não por excesso, mas por falta. Tal é sua<br />

performance <strong>de</strong> mentiroso, que o simples omitir, por faltar com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong><br />

constituir uma mentira irreparável. Alega-se que essa falta, esse <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> dizer, se<br />

<strong>de</strong>ve a que, sendo inimigos dos espanhóis, os árabes prefer<strong>em</strong> escon<strong>de</strong>r: “antes se<br />

pue<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r haber que<strong>da</strong>do falto en ella que <strong>de</strong>masiado”. 735<br />

732<br />

Que neste ponto e termo <strong>de</strong>ixa pen<strong>de</strong>nte o autor <strong>de</strong>sta história esta batalha, <strong>de</strong>sculpando-se que não achou mais escrito<br />

<strong>de</strong>stas façanhas <strong>de</strong> Dom Quixote do que as que <strong>de</strong>ixa referi<strong>da</strong>s. (1, VIII, p.51)<br />

733<br />

Estava, no primeiro calhamaço, pinta<strong>da</strong> muito ao natural, a batalha <strong>de</strong> Dom Quixote com o biscainho, postos na mesma<br />

postura que a história conta (1, IX, p.53)<br />

734<br />

Devendo ser [...] pontuais, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros e na<strong>da</strong> apaixonados, e que n<strong>em</strong> o interesse, n<strong>em</strong> o medo, o rancor e a simpatia,<br />

não os façam torcer o caminho <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, cuja mãe é a história, rival do t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong><strong>pós</strong>ito <strong>da</strong>s ações, test<strong>em</strong>unha do passado,<br />

ex<strong>em</strong>plo e advertência do porvir (1, IX, p.54)<br />

735<br />

Antes se po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r haver ficado nela lacuna que excesso (Ibi<strong>de</strong>m)


Nesse parecer, há índices <strong>de</strong> significativa comparação entre o modo <strong>de</strong> ser<br />

do povo árabe e o do povo espanhol, no que se refere ao contar. Os árabes, ao<br />

contrário <strong>de</strong> fabricar<strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, com a indústria sofistica<strong>da</strong> do pensamento,<br />

prefer<strong>em</strong> a omissão, prefer<strong>em</strong> escon<strong>de</strong>r, prefer<strong>em</strong> o vazio do silêncio: “parece que<br />

<strong>de</strong> industria las pasa en silencio”. 736<br />

Isso dá ao jogo mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, iniciado <strong>em</strong> páginas anteriores, por aqueles que têm sangue árabe, dimensão b<strong>em</strong> mais ampla, no<br />

que se refere <strong>à</strong> caracterização <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. O estar<strong>em</strong> com<strong>pro</strong>meti<strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>-reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, esse é um conflito instalado na obra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu<br />

início, conflito que só pô<strong>de</strong> ser minimizado no nível do suportável e do tornar possível uma obra <strong>de</strong>sse calibre pela lou<strong>cura</strong>.<br />

De qualquer modo, vê-se que lou<strong>cura</strong> está intimamente liga<strong>da</strong> <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>à</strong> mentira. Parece que na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo civil,<br />

louco é aquele que não se ajusta <strong>à</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e, assim consi<strong>de</strong>rando ver<strong>da</strong><strong>de</strong> aquilo que é real, louco é aquele que não se enquadra <strong>de</strong>ntro do que<br />

se consi<strong>de</strong>ra reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Louco é assim, aquele que não é n<strong>em</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> n<strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Conseqüent<strong>em</strong>ente, por <strong>de</strong>dução lógica, louco será,<br />

então, mentira.<br />

Esse é o estigma mais contun<strong>de</strong>nte e assustador que carrega a condição <strong>de</strong> louco. O que diz o louco não é digno <strong>de</strong> confiança, isso<br />

porque, o que diz não se restringe aos limites do certo, do seguro e do com<strong>pro</strong>vável. Parece haver aí uma contradição: qu<strong>em</strong> diz mais, qu<strong>em</strong><br />

diz fora do limite, diz o “ex”; por isso <strong>de</strong>veria ser, o tradicionalmente classificado louco, aquele que mais po<strong>de</strong>ria a<strong>pro</strong>ximar-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; e<br />

parece ser exatamente aí que sua voz representa ameaça: porque mais se a<strong>pro</strong>xima <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o louco se torna ameaçador; sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

constrange porque escapa ao controle do limite do real com<strong>pro</strong>vável.<br />

Entretanto, só ultrapassando o já estabelecido, só indo além do “ex-perado”, é possível abrir-se ao ser, permitindo que o sentido<br />

redimensione o ser entificado. Se para isso é preciso ultrapassar a linha <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>, se para isso é preciso pisar o terreno movediço do “entr<strong>em</strong>entira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”,<br />

Dom Quixote paga o preço. Risco por risco, Dom Quixote opta por correr risco e abre mão do único tranqüilizante que<br />

po<strong>de</strong>ria permitir-lhe o sono s<strong>em</strong> riscos, s<strong>em</strong> o risco <strong>da</strong>s surpresas espontâneas do ser.<br />

Poucas vezes a dupla mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong> foi substituí<strong>da</strong> por ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A partir <strong>de</strong> agora, <strong>de</strong>ixar<strong>em</strong>os <strong>de</strong>finido que,<br />

apesar <strong>de</strong> ser essa a marca registra<strong>da</strong> que percorre to<strong>da</strong> obra: o jogo mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é um <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ador <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong><br />

arte. Segundo Hei<strong>de</strong>gger, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra não cabe <strong>de</strong>ntro do estreito limite exclu<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> metafísica, limites on<strong>de</strong> só há espaço para<br />

oposições radicais. Nesse caso, o jogo mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, longe <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser substituído por ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, teria <strong>de</strong> contentar-se com<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro X falso.<br />

Nesse dil<strong>em</strong>a se encontra o mundo <strong>de</strong> Dom Quixote, nesse dil<strong>em</strong>a se<br />

encontra Dom Quixote. Mesmo sabendo dos riscos, mesmo sabendo que o<br />

manicômio po<strong>de</strong> reservar-lhe um triste fim, porque ele também sabe aquilo que, por<br />

medo, ninguém quer enfrentar, mesmo assim, Dom Quixote <strong>de</strong>-ci<strong>de</strong> e enfrenta o<br />

<strong>de</strong>sconforto constrangedor do “ex”, enfrenta a instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do passageiro e mutante<br />

que não se <strong>de</strong>ixa jamais imobilizar e o imobiliza.<br />

Sofreriam esse mesmo dil<strong>em</strong>a todos os <strong>de</strong>mais loucos que preenchiam o<br />

território espanhol do século XVI? Talvez não, porque, <strong>de</strong> todos, era Dom Quixote o<br />

único a ter consciência <strong>de</strong> sua condição. Nesse caso, aumenta-se a contradição:<br />

como é possível um louco consciente <strong>de</strong> que é louco?<br />

Muitos não sab<strong>em</strong>: n<strong>em</strong> todos nasc<strong>em</strong> hermeneutas. Muitos sab<strong>em</strong> e, pelo<br />

medo do risco, não quer<strong>em</strong> saber, mas Dom Quixote sabe. É possível que t<strong>em</strong>a o<br />

736 Parece que, <strong>de</strong> <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito, as passa <strong>em</strong> silêncio (1, IX, p.54)


visco, mas ao risco se sobrepõe; não há outra saí<strong>da</strong>: se quer ser, só sendo “entre-<br />

ser”, não há ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mais humana.<br />

Qu<strong>em</strong> po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar ser mentira? Não é gratuita, portanto, a “martelação” <strong>de</strong><br />

Dom Quixote nessa palavra t<strong>em</strong>i<strong>da</strong> e amaldiçoa<strong>da</strong> por todo aquele que do mol<strong>de</strong><br />

perfilado pela lou<strong>cura</strong> se a<strong>pro</strong>xime: a “mentira”. É por isso que Dom Quixote precisa<br />

estar, a todo o momento, com ela li<strong>da</strong>ndo, mostrando, com isso, que o ameaça o<br />

“triz”; parecendo equilibrar-se na “cor<strong>da</strong>-bamba”, a ponto <strong>de</strong> cair irr<strong>em</strong>ediavelmente<br />

no poço escuro do falso.<br />

Por que <strong>pro</strong><strong>cura</strong>r caminhos tão tortuosos? Para ingressar no mundo <strong>da</strong> ficção<br />

é preciso ficar louco?<br />

Ao justificar-se “loco por no po<strong>de</strong>r menos”, Dom Quixote parece reafirmar<br />

nossa suspeita. O que preten<strong>de</strong>, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é a<strong>pro</strong>ximar vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> e vi<strong>da</strong> ficcional,<br />

torná-las muito próximas, tão próximas que os liames se confun<strong>da</strong>m. Esta parece ser<br />

a missão primordial <strong>de</strong> Dom Quixote, uma missão que ele garante só ser possível<br />

pela via <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>.<br />

1.1.1.3.1.1.1.1.1 12 DOM QUIXOTE, UMA LOUCURA<br />

“EXPERIENCIAL”<br />

Tomou-se a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste título, aparent<strong>em</strong>ente estranho, com a licença <strong>de</strong><br />

Bachelard que introduziu expressão s<strong>em</strong>elhante <strong>em</strong> sua pesquisa sobre a<br />

Imaginação.<br />

S<strong>em</strong> a lou<strong>cura</strong>, Dom Quixote não po<strong>de</strong>ria ter aberto o espaço necessário para<br />

a eclosão do ser. Como conseguiu essa façanha? “Fingindo” é a resposta. Só no


fingir, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> manifestar-se. Isso porque o fingir funciona no mesmo<br />

esqu<strong>em</strong>a <strong>da</strong> aletheia: escon<strong>de</strong>-mostra-escon<strong>de</strong>, só assim é po<strong>de</strong>r-ser, só assim é<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. É no escon<strong>de</strong>r que se preserva o vigor necessário ao ser; necessário<br />

a novas manifestações, necessário <strong>à</strong>s epifanias. É o mistério que só se <strong>de</strong>svela,<br />

mas jamais se revela.<br />

Vejamos a lou<strong>cura</strong>. Como esteve ela a serviço <strong>da</strong> abertura ao ser na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Dom Quixote? É ela que dá entra<strong>da</strong> ao “loco por no po<strong>de</strong>r menos”. Foi ela que 737<br />

tornou possível a um maduro fi<strong>da</strong>lgo-cavaleiro criar um mundo totalmente atípico,<br />

<strong>de</strong>slocado no t<strong>em</strong>po, convivendo paralelamente com o seu mundo real. Foi a lou<strong>cura</strong><br />

que permitiu que Dom Quixote <strong>à</strong>quela reali<strong>da</strong><strong>de</strong> se apegasse, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo com<br />

sangue e suor as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s do edifício medieval, com a intenção <strong>de</strong> perpetuá-las.<br />

Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s já ameaça<strong>da</strong>s, mas <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental importância para que o fi<strong>da</strong>lgo-<br />

cavaleiro pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>las dispor, no caso <strong>de</strong> essas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s o surpreen<strong>de</strong>r<strong>em</strong> e<br />

mostrar<strong>em</strong> por si mesmas que não eram tão ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como pareciam.<br />

737 A<strong>pro</strong>veitamos o espaço que nos está sendo concedido, para um comentário interessante: o <strong>pro</strong>nome “qu<strong>em</strong>” dá <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong><br />

atribuições humanas. Isso se <strong>de</strong>ve ao gosto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar registra<strong>da</strong> a contraparti<strong>da</strong> erasmista ou erasmiana ao ritual __ <strong>pro</strong>va<br />

contun<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> soberania <strong>da</strong> razão, ou melhor, com todo o respeito <strong>da</strong> <strong>de</strong>usa Razão, título que Sergio Paulo Rouanet dá ao<br />

artigo <strong>em</strong> que narra o ritual substitutivo, consagrando a vitória <strong>da</strong> razão sobre o cristianismo. Aconteceu <strong>em</strong> 10 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong><br />

1793, na Catedral <strong>de</strong> Notre-Dame: “On<strong>de</strong> ficava o altar-mor, fora construí<strong>da</strong> uma montanha <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira pinta<strong>da</strong>. Sobre o<br />

rochedo havia um t<strong>em</strong>plo <strong>da</strong> Razão, iluminado pelo archote <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em torno do t<strong>em</strong>plo, os bustos <strong>de</strong> Voltaire,<br />

Rousseau e Franklin. Os m<strong>em</strong>bros <strong>da</strong> Comuna, escoltados por um coro <strong>de</strong> meninas vesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> branco e coroa<strong>da</strong>s com folhas<br />

<strong>de</strong> carvalho, tinham se instalado na base <strong>da</strong> montanha. A porta do t<strong>em</strong>plo se abriu, <strong>da</strong>ndo passag<strong>em</strong> a uma figura f<strong>em</strong>inina,<br />

com um vestido branco e um manto azul. Era a <strong>de</strong>usa Razão, representa<strong>da</strong> por uma atriz, Thérèse-Angélique Aubry. Ela se<br />

sentou num banco <strong>de</strong> verdura, enquanto o coro cantava o ‘Hino <strong>à</strong> Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>’, com música <strong>de</strong> Gossec e letra <strong>de</strong> Joseph-Marie<br />

Chénier: ‘Desce, ó Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, filha <strong>da</strong> Natureza; / O povo reconquistou seu po<strong>de</strong>r imortal; / Sobre os pomposos <strong>de</strong>stroços <strong>da</strong><br />

antiga impostura / Suas mãos reergueram teu altar’”. (ROUANET, Sergio Paulo. Crise <strong>da</strong> razão. Tradução <strong>de</strong> A<strong>da</strong>uto <strong>de</strong><br />

Novaes. São Paulo: Cia <strong>da</strong>s Letras, 1992, p.287). Muitos anos antes, entretanto, Erasmo já conce<strong>de</strong>ra igual lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque<br />

<strong>à</strong> Senhora Lou<strong>cura</strong> que ascen<strong>de</strong> <strong>em</strong> sua obra <strong>à</strong> categoria <strong>de</strong> personag<strong>em</strong>. Em Elogio <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>, ela se reconhece a mais<br />

a<strong>pro</strong>pria<strong>da</strong> para falar <strong>de</strong> si mesma: “Não tens qu<strong>em</strong> te elogie? Elogia-te a ti mesmo: [...] <strong>de</strong> fato, que mais po<strong>de</strong>ria convir <strong>à</strong><br />

lou<strong>cura</strong> do que ser arauto do próprio mérito e fazer ecoar por to<strong>da</strong> parte os seus próprios louvores?” (ROTTERDAM, Erasmo<br />

<strong>de</strong>. Elogio <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.16.). Se pensamos que quis essa Senhora receber alguma vez as<br />

mesmas honrarias que recebera a <strong>de</strong>usa Razão, estamos enganados. Ela já o dispensara dizendo: “Até agora, é voz geral,<br />

ninguém pensou <strong>em</strong> prestar <strong>à</strong> Lou<strong>cura</strong> honras divinas; ninguém lhe consagrou um t<strong>em</strong>plo; ninguém a nutriu com vapores <strong>da</strong>s<br />

vítimas. Para falar-vos com franqueza, e creio que já o disse, tamanha ingratidão me causa gran<strong>de</strong> surpresa; mas pouco me<br />

importa isso e, <strong>de</strong> acordo com a minha natural facili<strong>da</strong><strong>de</strong>, não levo a coisa a mal. Eu cheiraria <strong>à</strong> sabedoria e seria indigna <strong>de</strong><br />

ser Lou<strong>cura</strong> se reclamasse essas honras divinas. Que é que se me ofereceria sobre os altares? Um pouco <strong>de</strong> incenso, um<br />

pouco <strong>de</strong> farinha, um bo<strong>de</strong>, um porco. Po<strong>de</strong>ria eu permitir que se <strong>de</strong>golass<strong>em</strong> esses inocentes animais para <strong>de</strong>leitar-me o<br />

olfato? Oh! que ridículas bagatelas! Tenho um culto, sim, um culto que abrange o mundo inteiro e que todos os mortais me<br />

prestam, e os próprios teólogos o consoli<strong>da</strong>m pelo ex<strong>em</strong>plo. Não tenho a bárbara e cruel ambição <strong>de</strong> Diana, que vê com prazer<br />

as vítimas humanas, mas creio, ao contrário, ser religiosamente servi<strong>da</strong> e venera<strong>da</strong> quando me vejo esculpi<strong>da</strong> <strong>em</strong> ca<strong>da</strong><br />

coração e representa<strong>da</strong> <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> coração e representa<strong>da</strong> pelos costumes e conduta”. Além <strong>de</strong> revelar o alcance na linha do<br />

t<strong>em</strong>po do po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> razão, além <strong>de</strong> ser este um espaço <strong>pro</strong>pício para fazer justiça e reverenciar aquela que, até então, não<br />

recebera nenhuma homenag<strong>em</strong>, v<strong>em</strong>os que há um confronto entre as dimensões <strong>de</strong> razão e lou<strong>cura</strong>.


Sancho, por mi vi<strong>da</strong>, porque te <strong>de</strong>sengañes y veas ser ver<strong>da</strong>d lo que te<br />

digo: sube en tu asno y síguelos bonitamente, y verás cómo, en alejándose<br />

<strong>de</strong> aquí algún poco, se vuelven en su ser primero, y, <strong>de</strong>jando <strong>de</strong> ser<br />

carneros, son hombres hechos y <strong>de</strong>rechos, como yo te los pinté primero... 738<br />

Não po<strong>de</strong> ser gratuito que Dom Quixote, <strong>de</strong>signado arauto <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, tão<br />

insistent<strong>em</strong>ente repita a pergunta-dúvi<strong>da</strong> que percorre to<strong>da</strong> obra: “¿habían <strong>de</strong> ser<br />

mentira?” 739<br />

Lou<strong>cura</strong>-mentira-ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e o dil<strong>em</strong>a <strong>de</strong> sua com<strong>pro</strong>vação, isso só vai<br />

acontecer porque tudo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> como uma experiência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> é mais que<br />

experiência, quando ela é experienciação. Mas o experienciar só acontece quando o<br />

hom<strong>em</strong>, <strong>em</strong> primeira instância, se conscientiza <strong>de</strong> seu lugar <strong>de</strong> “entre-ser”<br />

cumprindo sua parte no acordo: consciente <strong>de</strong> ser po<strong>de</strong>r-ser, “<strong>de</strong>ixar-ser” o mistério<br />

<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas. Só na dinâmica <strong>de</strong>sse acordo, uma simples experiência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

vivi<strong>da</strong>, uma mera experiência do cotidiano, como aquela <strong>em</strong> que Heráclito está <strong>em</strong><br />

seu <strong>pro</strong>saico forno <strong>à</strong> lenha assando pães ganha sentido e ganha a dimensão <strong>de</strong><br />

experienciação.<br />

Nesse imenso ginásio <strong>de</strong> Hermes, seria possível <strong>da</strong>r mais folga <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong>.<br />

Dom Quixote reconhece isso, quando distribui tarefas e <strong>de</strong>lega responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Estaria <strong>em</strong> boas mãos, se Hermes a conduzisse. Entretanto, Dom Quixote<br />

reconhece na lou<strong>cura</strong> a chancela que é sua. Isso parece que lhe dá, sobre ela,<br />

alguma ascensão. Por isso, acredita ser possível cumprir todos os com<strong>pro</strong>missos<br />

que <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong> digam respeito. Sabe não se tratar <strong>de</strong> qualquer lou<strong>cura</strong>: só ele a<br />

experimentara, só ele conhecia seus muitos perfis, só ele, aten<strong>de</strong>ndo ao chamado<br />

do ser, não economizou <strong>em</strong> investimentos para vivê-la como obra, ou melhor, para,<br />

por ser louco, ser obra. Tudo isso, a ponto <strong>de</strong> um só “loco por no po<strong>de</strong>r menos”,<br />

738 Sancho, por minha vi<strong>da</strong>, para que te <strong>de</strong>silu<strong>da</strong>s e vejas ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o que te digo: monta no teu asno e siga-os bonitamente,<br />

e verás como se afastando <strong>da</strong>qui, um pouquinho, volta a ser primeiro e, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser carneiros, são homens e direitos,<br />

como eu os pintei para ti antes [...] (1, XVIII, p.96)<br />

739 Haviam <strong>de</strong> ser mentira? (1, L, p.304)


<strong>de</strong>sdobrar-se <strong>em</strong> três. Desdobrou-se louco para tornar real o mundo <strong>da</strong> cavalaria<br />

an<strong>da</strong>nte. Desdobrou-se louco para fazer frente <strong>à</strong> razão que avançava a passos<br />

largos, formatando, nessa trajetória, a Essência <strong>da</strong> Técnica. Foi quando tudo ao<br />

redor era só paradoxo <strong>de</strong>sconcertante, fazendo <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, também, um mero<br />

ente aprisionado <strong>em</strong> conceitos. Agora, mais uma vez, Dom Quixote é, mais do que<br />

nunca, s<strong>em</strong> nenhuma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alternativa, obrigado a <strong>de</strong>sdobrar-se<br />

novamente louco. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, na<strong>da</strong> disso experimentou Dom Quixote, pois tudo o<br />

que <strong>de</strong> louco viveu, tudo o que <strong>de</strong> louco foi, é o próprio “experienciar”.<br />

O “mais do que nunca” se <strong>de</strong>ve a ser aqui, no 3 o Périplo, que a lou<strong>cura</strong> se<br />

redimensiona. Aqui, ela mostra ser <strong>de</strong> outra natureza. Não é a lou<strong>cura</strong> estabeleci<strong>da</strong><br />

e compartilha<strong>da</strong> pelos muitos loucos <strong>de</strong> que está a Espanha entupi<strong>da</strong>. Não é a<br />

lou<strong>cura</strong> do louco <strong>de</strong> Sevilha que é “Júpiter”, n<strong>em</strong> a <strong>de</strong> seu companheiro <strong>de</strong><br />

manicômio, “Netuno”: “No tenga vuestra merced pena, señor mío, ni haga caso <strong>de</strong> lo<br />

que este loco ha dicho; que si él es Júpiter y no quisiere llover, yo, que soy Neptuno,<br />

el padre y el dios <strong>de</strong> las aguas, lloveré to<strong>da</strong>s las veces que se me antojare y fuere<br />

menester”. 740 Não é a lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> Grisóstomo, n<strong>em</strong> <strong>de</strong> Anselmo, n<strong>em</strong> a <strong>de</strong> Basílio<br />

que quer<strong>em</strong> usar até o amor como álibi aparente para o exercício do po<strong>de</strong>r<br />

apo<strong>de</strong>rar-se do outro, seja pela ingênua malícia <strong>de</strong> ser simplesmente pastor, seja<br />

pelo estratag<strong>em</strong>a técnico, tanto <strong>de</strong> artefatos como <strong>da</strong> própria linguag<strong>em</strong>, seja pelo<br />

querer mais conhecer para mais <strong>dom</strong>inar, usando o po<strong>de</strong>r do pensamento que<br />

submete o objeto ao esgotamento até murchá-lo como murcharam não só Camila,<br />

também Lotario e até Anselmo murcharam até a morte. Todos “sin po<strong>de</strong>r acabar la<br />

740 Não tenha Vossa Mercê, pena, senhor meu, n<strong>em</strong> faça caso do que este louco disse, pois se ele é Júpiter e não quiser fazer<br />

chover, eu que sou Netuno, o pai e o <strong>de</strong>us <strong>da</strong>s águas e choverei to<strong>da</strong>s as vezes que me <strong>de</strong>r na telha e que for necessário<br />

(2, I, p.331)


azón, se le[s] acabó la vi<strong>da</strong> [...] y acabó en breves días la vi<strong>da</strong>” 741 . A vi<strong>da</strong> “se le[s]<br />

acabó” porque tinham total confiança no po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> razão:<br />

lo<strong>cura</strong>”.<br />

Así que, es razón concluyente que el intentar las cosas <strong>de</strong> las cuales antes<br />

nos pue<strong>da</strong> suce<strong>de</strong>r <strong>da</strong>ño que <strong>pro</strong>vecho es <strong>de</strong> juicios sin discurso y<br />

t<strong>em</strong>erarios, y más cuando quieren intentar aquellas a que no son forzados ni<br />

compelidos, y que <strong>de</strong> muy lejos traen <strong>de</strong>scubierto que el intentarlas es<br />

manifiesta lo<strong>cura</strong>. 742<br />

Porque tinham total confiança na razão foram acometidos por “manifiesta<br />

Dom Quixote não é nenhum dos loucos “galeotes” que não resist<strong>em</strong> ao objeto<br />

externo, querendo com eles locupletar-se, n<strong>em</strong> é a lou<strong>cura</strong> <strong>de</strong> “el cautivo” eterno<br />

prisioneiro que, mesmo que, no espaço por on<strong>de</strong> transitava, lhe tivesse passado<br />

diante dos olhos, o único <strong>de</strong>ntre todos os igualmente prisioneiros, um somente livre –<br />

um poeta:<br />

Pedro <strong>de</strong> Aguilar [...] tenía particular gracia en lo que llaman poesía [...] al<br />

cabo <strong>de</strong> dos años que estuvo en Constantinopla se huyó [...] Pues lo fue –<br />

respondió el caballero -, porque ese don Pedro es mi hermano, y está ahora<br />

en nuestro lugar, bueno y rico, casado y con tres hijos. 743<br />

Mesmo assim, o cativo não foi capaz <strong>de</strong> fazer a <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> leitura. Sequer sabia<br />

dizer b<strong>em</strong> os po<strong>em</strong>as: “Dígalos, pues, vuestra merced -dijo el cautivo-, que los sabrá<br />

<strong>de</strong>cir mejor que yo”. 744 Esses eram os versos que Pedro Aguilar compôs, cantando o<br />

heroísmo dos sol<strong>da</strong>dos que jamais conseguiam a glória pelo vigor <strong>de</strong> seus braços,<br />

741 S<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r acabar sua razão, acabou-se sua vi<strong>da</strong> [...] e acabou <strong>em</strong> breves dias (1, XXXVI, p.217)<br />

742 Assim que, é razão geral que, tentar as coisas <strong>da</strong>s quais é mais <strong>pro</strong>vável per<strong>da</strong>s que ganhos, é mais ajuizado não fazer<br />

discursos t<strong>em</strong>erários, quanto mais quando se quer tentar coisas a que não se é forçado ou compelido, que <strong>de</strong> longe se<br />

perceba que o simples tentá-las é oura lou<strong>cura</strong>. (1, XXXIII, p.193)<br />

743 Pedro <strong>de</strong> Aguilar [...] tinha particular graça no que chamam poesia [...] ao fim <strong>de</strong> dois anos que esteve <strong>em</strong> Constantinopla<br />

fugiu [...] Por foi isso – respon<strong>de</strong>u o cavaleiro –, porque esse Dom Pedro é meu irmão, e está agora <strong>em</strong> nosso lugar, bom e<br />

rico, casado e com três filhos (1, XXXIX, p.238)<br />

744 Diga-os, pois, vossa mercê – disse o cativo, – que saberá dizê-los melhor que eu (Ibi<strong>de</strong>m)


porque eram todos consumidos pela guerra, todos morriam s<strong>em</strong> que chegass<strong>em</strong> a<br />

ser homens criadores:<br />

[...] primero que el valor faltó la vi<strong>da</strong>, / en los cansados brazos, que,<br />

muriendo / [...] por el suelo echados, / las almas santas <strong>de</strong> tres mil sol<strong>da</strong>dos<br />

/ subieron vivas a mejor mora<strong>da</strong> / siendo primero, en vano, ejercita<strong>da</strong> / la<br />

fuerza <strong>de</strong> sus brazos esforzados, / hasta que, al fin, <strong>de</strong> pocos y cansados, /<br />

dieron la vi<strong>da</strong> al filo <strong>de</strong> la espa<strong>da</strong> 745<br />

Todos, nesse capítulo, são prisioneiros, ca<strong>da</strong> um a seu modo. Somente o<br />

corpo morre, porque as almas sob<strong>em</strong> vivas, indicando que todos foram consumidos<br />

s<strong>em</strong> que experimentass<strong>em</strong> o seu próprio vigor <strong>de</strong> “po<strong>de</strong>r-ser”. Todos, mesmo os que<br />

não morriam na guerra (“la arma<strong>da</strong> volvió a Constantinopla triunfante y vencedora, y:<br />

<strong>de</strong> allí a pocos meses murió mi amo”) 746 , acabam <strong>da</strong>ndo a vi<strong>da</strong>, sinal <strong>de</strong> que não<br />

viveram vi<strong>da</strong> experiencia<strong>da</strong> e sim vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> por uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> causa<br />

“imprópria”, sinal <strong>de</strong> que não tiveram uma “boa morte”.<br />

Embora a aparição do poeta se limite ao espaço “<strong>de</strong>l cautivo”, ele é imag<strong>em</strong>-<br />

questão que se esten<strong>de</strong> a todos os <strong>de</strong>mais prisioneiros. Mas não o viu “el cautivo”,<br />

não o viu ninguém. Ninguém enxergou o poeta que ali estava <strong>à</strong> disposição, livre para<br />

ser visto, livre para ser escutado. Ninguém na<strong>da</strong> lhe perguntou. Recitaram e ouviram<br />

seus versos s<strong>em</strong> que os tenha mobilizado nenhuma questão. Imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> mesma<br />

sintonia já aparecera. O pastor já aparecera a Car<strong>de</strong>nio e a Grisóstomo. Eles, no<br />

entanto, também não fizeram a leitura <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>. Tiveram, os dois, o pastor ao seu<br />

alcance: Car<strong>de</strong>nio quis <strong>de</strong>le arrancar aos bocados, não aceitando a forma sutil e<br />

<strong>de</strong>lica<strong>da</strong> como fazia sua doação, o pastor. Grisóstomo, s<strong>em</strong> compreen<strong>de</strong>r que o ser<br />

pastor era uma prerrogativa <strong>da</strong> sua espécie, um privilégio <strong>de</strong> sua condição humana,<br />

s<strong>em</strong> compreen<strong>de</strong>r sobre o ser pastor tão disponível, disponível a um passo <strong>de</strong> si<br />

745 Antes que a corag<strong>em</strong> faltou a vi<strong>da</strong>, / nos cansados braços, que, morrendo / [...] pelo chão jogados, / as almas santas <strong>de</strong><br />

três mil sol<strong>da</strong>dos / subiram vivas a melhor mora<strong>da</strong> / sendo primeiro, <strong>em</strong> vão, exercita<strong>da</strong> / a força <strong>de</strong> seus braços diligentes, /<br />

até, enfim, por ser poucos e cansados, / <strong>de</strong>ram a vi<strong>da</strong> ao fio <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> (1, XL, p.239)<br />

746 A frota voltou a Constantinopla triunfante e vencedora, e <strong>da</strong>í a poucos meses morreu meu amo (1, XL, p.240)


para si, ali mesmo no “entre”, Grisóstomo sobre ele se lança com a intenção <strong>de</strong> se<br />

apossar, com vistas a subjugá-lo nessa a<strong>pro</strong>priação. Resumindo: Grisóstomo vai<br />

buscar, fora, o que <strong>de</strong>ntro s<strong>em</strong>pre fora seu, forja uma situação falsa, fabrica um<br />

pastor-falso, um pastor-mentira, quando um pastor-ver<strong>da</strong><strong>de</strong> ali s<strong>em</strong>pre esteve como<br />

pura possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> doação.<br />

Também não era Dom Quixote a confusa personali<strong>da</strong><strong>de</strong> racional <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>nio,<br />

n<strong>em</strong> a <strong>de</strong> todos aqueles que <strong>de</strong>le mesmo (Dom Quixote) se a<strong>pro</strong>priam. Tanto os<br />

que, na terceira parte, leitores, conhecedores <strong>da</strong> sua história, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m imitá-lo <strong>em</strong><br />

sua lou<strong>cura</strong> acreditando o estar<strong>em</strong> auxiliando uns; outros, pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

maliciosa <strong>de</strong> submetê-lo ao ridículo. Outros ain<strong>da</strong>, pela simples gana <strong>de</strong> se<br />

a<strong>pro</strong>priar<strong>em</strong> do “outro”, como é o caso do personag<strong>em</strong> “falso” que se apo<strong>de</strong>rou <strong>de</strong><br />

seu lugar na ficção, por estratégia <strong>de</strong> seu plagiador, como o próprio Avellane<strong>da</strong> que<br />

também se a<strong>pro</strong>pria <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Cervantes.<br />

Dom Quixote, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> atento olhar ao redor, percebe que sua lou<strong>cura</strong> é<br />

diferente. Percebe o quanto ela lhe franqueou os caminhos do experienciar. Só a<br />

lou<strong>cura</strong> permite que Dom Quixote <strong>de</strong>sça a “la cueva”, coisa que os <strong>de</strong>mais, divididos<br />

<strong>em</strong> dois grupos __ um representado por Sancho, outro representado por “el primo” __ ,<br />

não realizam. Graças <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong>, pô<strong>de</strong> Dom Quixote experienciar tudo o que<br />

ultrapassa os limites do ordinário já conhecido, que está visível e disponível aos<br />

olhos <strong>de</strong> todos sobre a terra. Só a lou<strong>cura</strong> permite que Dom Quixote penetre <strong>em</strong><br />

“Sierra Morena” e <strong>de</strong>scubra o s<strong>em</strong>-sentido <strong>de</strong> ali estar. Se a escolha <strong>da</strong>quela floresta<br />

fora por s<strong>em</strong>elhança com a floresta <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática por on<strong>de</strong> se <strong>em</strong>brenhavam os<br />

cavaleiros para se <strong>de</strong>safogar<strong>em</strong> <strong>de</strong> seus males, principalmente dos males <strong>de</strong> amor,<br />

isso seria o suficiente para <strong>de</strong>smontar o <strong>pro</strong>jeto <strong>de</strong> Dom Quixote. Ele não se dirigira<br />

para Sierra Morena por nenhum <strong>de</strong>sses motivos.


Entretanto, porque era louco, não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> a<strong>pro</strong>veitar aquela oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

“que le venía <strong>de</strong> mol<strong>de</strong>”, estratégia que s<strong>em</strong>pre adotara para reviver as aventuras <strong>da</strong><br />

cavalaria. A<strong>pro</strong>veita para eliminar aquele it<strong>em</strong> constante do manual <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong><br />

cavalaria – o isolamento para reflexão e <strong>cura</strong> dos males, e se hiberna <strong>em</strong> “Sierra<br />

Morena”. Ali estando, quer repetir os ritos realizados por “Roldán el furioso” 747 e/ou<br />

“Amadís <strong>de</strong> Gaula” que foram ou traídos ou <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhados <strong>de</strong> suas ama<strong>da</strong>s, tirando a<br />

roupa e mantendo-se nus como penitência ou <strong>da</strong>ndo açoites nas árvores para livrar-<br />

se do mal. Entretanto, logo se dá conta do impróprio <strong>da</strong>quela situação e assim se<br />

coloca:<br />

¿para qué quiero yo tomar trabajo agora <strong>de</strong> <strong>de</strong>snu<strong>da</strong>rme <strong>de</strong>l todo, ni <strong>da</strong>r<br />

pesadumbre a estos árboles, que no me han hecho mal alguno? Ni tengo<br />

para qué enturbiar el agua clara <strong>de</strong>stos arroyos, los cuales me han <strong>de</strong> <strong>da</strong>r<br />

<strong>de</strong> beber cuando tenga gana. 748<br />

Do mesmo modo, reconhece sequer restar-lhe a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir<br />

imitando Amadis <strong>de</strong> Gaula naquilo que soubera ser um <strong>de</strong> seus hábitos finais, rezar,<br />

“lo más que el hizo fue rezar y encomen<strong>da</strong>rse a Dios.” Dom Quixote lamenta, mas<br />

pergunta a si mesmo: “¿qué haré <strong>de</strong> rosario, que no le tengo?” 749 . Sua conclusão<br />

final é simples e irônica: não po<strong>de</strong> imitar Amadis porque não t<strong>em</strong> rosário.<br />

Este ex<strong>em</strong>plo é muito contun<strong>de</strong>nte <strong>da</strong>s benesses <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>. É a lou<strong>cura</strong><br />

como abertura para a própria recuperação, a recuperação do próprio <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> era<br />

somente impróprio.<br />

Só a lou<strong>cura</strong> faz Dom Quixote sair dos parcos limites do viver para alcançar o<br />

patamar mais alto, digno e nobre. Tudo isso só foi possível porque sua lou<strong>cura</strong> lhe<br />

permitiu an<strong>da</strong>r solto e livre pelos caminhos <strong>de</strong> Hermes, para livre po<strong>de</strong>r encontrar<br />

747 Roldão, o furioso (1, XXVI, p.145)<br />

748 Para que quero eu tomar trabalho agora <strong>de</strong> <strong>de</strong>spir-me <strong>de</strong> todo, n<strong>em</strong> <strong>da</strong>r <strong>de</strong>sgosto a estas árvores, que não me fizeram<br />

nenhum mal? N<strong>em</strong> tenho que sujar a água clara <strong>de</strong>stes arroios, que me dão <strong>de</strong> beber quando tenho vonta<strong>de</strong> (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

749 O que mais fez foi rezar e encomen<strong>da</strong>r-se a Deus [Dom Quixote (...) mesmo] mesmo o que farei <strong>de</strong> rosário, que não tenho<br />

(Ibi<strong>de</strong>m)


todos os que estão pelos caminhos perdidos e <strong>de</strong>sorientados, mas que, s<strong>em</strong> a<br />

corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> abrir<strong>em</strong> mão <strong>da</strong> segura e certeira razão, não se submet<strong>em</strong> <strong>à</strong>s<br />

estratégias lúdicas <strong>de</strong> Hermes. Imagin<strong>em</strong>, amarrar galhos no rabo dos animais, para<br />

<strong>de</strong>sfazer as trilhas e colocar os viajantes tontos <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>. Esse, sim, sabe brincar<br />

<strong>de</strong> “escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong>”, <strong>de</strong> “entrou por uma porta saiu pela outra”, sabe jogar o jogo<br />

irônico <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, jogo que só amplia e plenifica. Ao contrário <strong>da</strong> razão que <strong>de</strong>sorienta,<br />

<strong>de</strong>sestabiliza, mas não move. Hermes é puro dinamismo.<br />

Dom Quixote percebe que a lou<strong>cura</strong> diss<strong>em</strong>ina<strong>da</strong> no mundo t<strong>em</strong> uma<br />

peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>, to<strong>da</strong>s revelam a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> preenchimento do próprio, mas um<br />

preenchimento com o “outro”, com as realizações do “outro”. L<strong>em</strong>bra-se <strong>de</strong> que, por<br />

um triz, não chegara a cair na esparrela do “outro”. Foi quase, o cavaleiro foi só uma<br />

escolha <strong>de</strong>ntre muitas, com a qual foi-lhe possível, no diálogo com o mundo, entrar<br />

<strong>em</strong> diálogo consigo mesmo, “só a linguag<strong>em</strong> é a própria manifestação do Da-sein<br />

como Entre-ser”. 750<br />

Dom Quixote jogou-se na vi<strong>da</strong> ocupando seu lugar <strong>de</strong> direito, o lugar <strong>de</strong><br />

“entre-ser”. E se <strong>de</strong>ixou experienciar, abandonando gradualmente a rigi<strong>de</strong>z dos<br />

conceitos e teorias, pelos quais tanto lutara para fixar e eternizar no mundo as suas<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s. B<strong>em</strong> que tentaram apagar-lhe o <strong>da</strong>imon, mas não conseguiram. Dom<br />

Quixote consegue reverter o quadro, liberando o <strong>de</strong>mônio, <strong>de</strong>positório do que <strong>em</strong><br />

ca<strong>da</strong> um é original e originário. Liberou o <strong>de</strong>mônio, libertou-se do estigma cristão<br />

Não conseguiram apagar-lhe o <strong>da</strong>imon e a <strong>pro</strong>va está <strong>em</strong> sua brilhante façanha<br />

heróica.<br />

Foi assim que, mesmo aos cinqüenta anos, Dom Quixote resistiu. Entrou no<br />

<strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> diálogo, on<strong>de</strong> o esvaziamento <strong>da</strong> renúncia acabou sendo inevitável,<br />

<strong>de</strong>ixando espaço vazio para que o na<strong>da</strong> virasse assédio, virasse apelo do ser. Só <strong>à</strong><br />

750 CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005.


medi<strong>da</strong> que ia sendo Dom Quixote ia adquirindo corpo porque o oco ia consumando-<br />

se pelo agir favorecido pela dis-puta céu-terra, aten<strong>de</strong>ndo s<strong>em</strong>pre a um chamado do<br />

ser. E, nesse atendimento, Dom Quixote <strong>de</strong>scobre que t<strong>em</strong> <strong>da</strong>imon, percebe que<br />

t<strong>em</strong> impulso para a vi<strong>da</strong>, percebe ser o <strong>da</strong>imon impulso tal para a vi<strong>da</strong>, capaz <strong>de</strong><br />

driblar até a morte.<br />

Mas do que estamos falando, <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>mônios? Esse que participa<br />

<strong>da</strong> morte como tensão é Eros. É aí on<strong>de</strong> está o <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a que Sócrates tenta<br />

explicar. Em nota <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>pé <strong>de</strong> nossa edição está explicita<strong>da</strong> a não <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>imon. Se se trata <strong>de</strong> “consciência moral”, algum “gênio familiar”, nesse caso<br />

po<strong>de</strong>m ser “pressentimentos interiores inspirados pela divin<strong>da</strong><strong>de</strong> e os <strong>de</strong>mônios <strong>da</strong><br />

mitologia grega”; se são “gêneros intermediários entre o hom<strong>em</strong> e a divin<strong>da</strong><strong>de</strong>” ou<br />

sugestões do subconsciente presente nos místicos, uma presença nos estados<br />

<strong>pro</strong>fundos <strong>de</strong> sua alma, também um “misterioso so<strong>pro</strong>” que só aparece como<br />

manifestação, aparecendo também na poesia, se <strong>de</strong>us ou <strong>de</strong>mônio, não se sabe, só<br />

se sabe ser voz que v<strong>em</strong> <strong>da</strong>s entranhas, um alerta, talvez, “manifestou-se o sinal<br />

costumeiro [...] pareceu-me ouvir uma voz que vinha cá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro” 751 , o que obriga o<br />

personag<strong>em</strong> a ficar atento para não se <strong>de</strong>ixar levar pelas <strong>pro</strong>fecias que não sejam<br />

divinas. Parece realmente um estágio intermediário. Ter <strong>da</strong>imon significaria ter a<br />

porta aberta para os <strong>de</strong>uses, uma porta que só po<strong>de</strong> ser franquea<strong>da</strong> aos <strong>de</strong>uses.<br />

Volt<strong>em</strong>os a Eros: Eros é também um <strong>de</strong>us. Se é assim, t<strong>em</strong> franquia total do<br />

<strong>da</strong>imon, foi <strong>de</strong>ssa mesma maneira que Sócrates o percebeu. Embora o amor-paixão<br />

tenha o estigma <strong>de</strong> louco e perigoso, também essa lou<strong>cura</strong> é santa, porque, como<br />

diz Sócrates, “obt<strong>em</strong>os bens <strong>de</strong> uma lou<strong>cura</strong> inspira<strong>da</strong> pelos <strong>de</strong>uses”. 752 São os<br />

“<strong>de</strong>lírios” que inspiram os homens nas <strong>pro</strong>fecias, <strong>pro</strong>fecias que <strong>pro</strong>teg<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong><br />

751 PLATÃO. Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p. 75-76<br />

752 PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p. 79-80


<strong>da</strong>s expiações, que o induz<strong>em</strong> aos ritos misteriosos <strong>de</strong> purificação para livrá-lo <strong>de</strong><br />

todos os males.<br />

Dentre esses <strong>de</strong>lírios-inspiração está o inspirado pelas Musas. Aquele que se<br />

a<strong>pro</strong>xima “dos umbrais <strong>da</strong> arte poética” é, inevitavelmente, <strong>pro</strong>vocado pelas Musas.<br />

Embora o ex<strong>em</strong>plo do discurso <strong>de</strong> Dom Quixote dirigido a um pai sobre os talentos<br />

<strong>de</strong> seu filho seja ambíguo, parece que o fragmento seguinte, no que se refere a não<br />

bastar somente o conhecimento sobre arte, corrobora o que dir<strong>em</strong>os sobre a<br />

intervenção <strong>da</strong>s Musas: “También digo que el natural poeta que se ayu<strong>da</strong>re <strong>de</strong>l arte<br />

será mucho mejor y se aventajará al poeta que sólo por saber el arte quisiere<br />

serlo”. 753 Comparado com o que nos diz Sócrates sobre o ser fun<strong>da</strong>mental a<br />

<strong>pro</strong>vocação <strong>da</strong>s Musas, que aquele que se a<strong>pro</strong>ximar <strong>da</strong> arte poética, “julgando que<br />

apenas pelo intelecto será bom poeta, sê-lo-á imperfeito, pois que a obra poética<br />

inteligente <strong>em</strong>pali<strong>de</strong>ce perante aquela nasci<strong>da</strong> do <strong>de</strong>lírio”, 754 vê-se o ineficaz do<br />

poético orientado, conduzido por normas e teorias apriorísticas e pelo intelecto, s<strong>em</strong><br />

o <strong>de</strong>lírio, s<strong>em</strong> a possessão <strong>da</strong>s Musas.<br />

Precisar exatamente o momento <strong>em</strong> que isso se dá <strong>em</strong> Dom Quixote é tarefa<br />

dificílima. Entretanto, pelos caminhos <strong>da</strong> leitura, alguns momentos nos pareceram<br />

significativamente fortes. Um <strong>de</strong>les é o “¡léalos!, resposta brusca que dá Dom<br />

Quixote a “el canónigo”. Tão brusca que marca <strong>de</strong>finitivamente a mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> rumo<br />

que tinha na pergunta - “¿habían <strong>de</strong> ser mentira?”, 755 seu ponto crucial.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po que parece sair <strong>da</strong>s entranhas <strong>de</strong> Dom Quixote uma voz<br />

que exorciza um <strong>de</strong>mônio, parece também que a voz é o próprio <strong>de</strong>mônio alertando-<br />

o, não permitindo que se cometa nenhuma impie<strong>da</strong><strong>de</strong> contra os <strong>de</strong>uses, “uma voz<br />

que vinha cá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e que não me permitia ir <strong>em</strong>bora antes <strong>de</strong> oferecer aos<br />

753 Também digo que o natural poeta que se aju<strong>da</strong>r <strong>da</strong> arte será muito melhor e se avantajará ao poeta que somente por saber<br />

a arte quiser ser poeta (1, XVI, p.403)<br />

754 PLATÃO, op.cit., p.81<br />

755 Haviam <strong>de</strong> ser mentira? (1, L, p.304)


<strong>de</strong>uses uma expiação, como se houvesse cometido uma impie<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 756 Nesse caso,<br />

estaria Dom Quixote sendo o <strong>em</strong>issário <strong>de</strong>sse alerta, através <strong>de</strong> seu <strong>da</strong>imon? É b<strong>em</strong><br />

possível, já que o rompante é dirigido exata e diretamente a “el canónigo”. Este,<br />

além <strong>de</strong> fazer o papel do duplo <strong>de</strong> Dom Quixote-filósofo __ aquele a qu<strong>em</strong> coube<br />

especificamente tratar <strong>da</strong>s questões <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, tomando como referência as<br />

novelas <strong>de</strong> cavalaria, é, também, o “cânon” que está <strong>em</strong>butido <strong>em</strong> seu próprio nome.<br />

A cena parece que reúne, ao limite máximo um esgotamento, uma saturação <strong>de</strong><br />

tantos equívocos que se estão cometendo contra a arte, um mar <strong>de</strong> golpes que se<br />

<strong>de</strong>sfer<strong>em</strong> sobre a arte que, <strong>de</strong> tão visíveis, já ultrapassam todos os limites, exigindo<br />

uma expiação, “uma voz que vinha cá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e que não me permitia ir <strong>em</strong>bora<br />

antes <strong>de</strong> oferecer aos <strong>de</strong>uses uma expiação, como se eu houvesse cometido<br />

alguma impie<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 757<br />

É b<strong>em</strong> possível que o “léalos” ganhe sentido como uma gran<strong>de</strong> intervenção<br />

<strong>da</strong>imoníaca, reivindicando a prevalência dos <strong>de</strong>uses no fazer poético. Isso é<br />

possível.<br />

Mas volt<strong>em</strong>os <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong> “experiencial”. Se há ou não <strong>de</strong>uses e <strong>de</strong>mônios, só o<br />

saber<strong>em</strong>os num próximo it<strong>em</strong>, quando, <strong>pro</strong>vocado por alguma força, Dom Quixote<br />

fecha os olhos e se lança no lago escuro e misterioso. Por enquanto, fiqu<strong>em</strong>os na<br />

lou<strong>cura</strong> “experiencial”. Ela também esteve, partícipe ferrenha, presente na tarefa <strong>de</strong><br />

reservar a Dom Quixote gran<strong>de</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e a nós, gran<strong>de</strong>s revelações.<br />

Com a lou<strong>cura</strong> experimental, foi possível a Dom Quixote driblar até a morte.<br />

Basta que se conheça o “buen morir”, basta que se <strong>de</strong>scubra, <strong>da</strong> morte, sua<br />

acepção <strong>de</strong> “buena muerte”. Com a lou<strong>cura</strong>, até a morte ganha mais espaço, sai do<br />

estreito limite <strong>de</strong> morte-finalização, se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong> perecer até a “boa morte”.<br />

756 PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p.76<br />

757 Ibi<strong>de</strong>m.


Aquela b<strong>em</strong>-vin<strong>da</strong> e até <strong>de</strong>seja<strong>da</strong>, pois revela a gratui<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser. E Dom Quixote<br />

pô<strong>de</strong> ter acesso a to<strong>da</strong>s as mortes. Basta que se <strong>de</strong>scubra que, mesmo ausente, fria<br />

e sombria, é a terra qu<strong>em</strong> guar<strong>da</strong> todo o vigor no velamento, enquanto aguar<strong>da</strong> que<br />

o céu venha com ela dialogar, aquecendo o frio, iluminando o sombrio, <strong>pro</strong>movendo<br />

a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> recolhi<strong>da</strong> no <strong>de</strong>svelar. Desse diálogo, no entanto, a razão não participa.<br />

Isso parece instigante. Se não participa a razão do diálogo céu-terra, on<strong>de</strong> fica a<br />

luz? Se substituirmos os níveis terra – céu por divin<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ter<strong>em</strong>os “Lúcifer” como a<br />

luz do céu e “Satanás”, a escuridão <strong>da</strong> terra.<br />

Por mais estranho o caminho percorrido por Dom Quixote, intui-se qu<strong>em</strong> o<br />

guiou <strong>em</strong> sua travessia, qu<strong>em</strong> possibilitou que se constituísse, <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que, <strong>em</strong><br />

direção a si mesmo, avançava: foi o logos, a sua voz e luz interior. Todo o estranho<br />

<strong>em</strong> Dom Quixote, tudo o que ultrapassasse os limites <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> ter<br />

sido assim interpretado, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não cabia no espaço <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>, mas <strong>em</strong><br />

espaço maior, espaço que parece estarmos agora i<strong>de</strong>ntificando com o espaço <strong>da</strong><br />

luci<strong>de</strong>z e <strong>da</strong> sabedoria. Assim, Dom Quixote, no parecer o mais louco, foi o mais<br />

lúcido cavaleiro que o Oci<strong>de</strong>nte já <strong>pro</strong>duziu. Por ter-se entregue a um modo <strong>de</strong> viver<br />

especial, um modo <strong>em</strong> que a vi<strong>da</strong> não é simplesmente vivi<strong>da</strong> e sim experiencia<strong>da</strong>.<br />

É por isso que ele entra na vi<strong>da</strong> e essa vi<strong>da</strong> é, ao mesmo t<strong>em</strong>po, ficção, para<br />

mostrar que o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro viver é o viver sendo arte, o viver a arte.<br />

13 DOM QUIXOTE FALA, CONTA E SE CONTA POETICAMENTE


“¿Habían <strong>de</strong> ser mentira?”. 758 Persegue, Dom Quixote, a mesma pergunta. Se<br />

a obra é mentira ou ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não há na<strong>da</strong>, nenhum mo<strong>de</strong>lo, nenhuma “escola” que<br />

possa respon<strong>de</strong>r. Essa resposta só a leitura po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r. Só entregando-se <strong>à</strong> aventura<br />

do lugar <strong>de</strong> entre-ser, po<strong>de</strong>-se ficar <strong>à</strong> escuta <strong>da</strong> “outra voz”. É preciso entregar-se,<br />

manter-se no “entre”, único espaço on<strong>de</strong>, por uma bela e digna dis-puta, o poético<br />

po<strong>de</strong> acontecer, só o vigor do vazio do não-ser po<strong>de</strong> irromper. Por isso, por mais<br />

que Dom Quixote insista <strong>em</strong> perguntar, não receberá resposta. A resposta só virá do<br />

vazio, uma resposta que já não será resposta.<br />

É preciso, entretanto, estar disposto. É preciso fechar os olhos e lançar-se. É<br />

preciso a disposição <strong>da</strong> renúncia porque tanto para <strong>da</strong>r o salto, como para fazer a<br />

travessia, é preciso leveza. A obra só po<strong>de</strong> dizer aquilo que pu<strong>de</strong>r ser escutado. Se<br />

muito cheia <strong>de</strong> ruído, se muito interferi<strong>da</strong> <strong>de</strong> sons, não haverá voz que possa ser<br />

escuta<strong>da</strong>. É preciso a corag<strong>em</strong> do esvaziar-se para que se instale o novo, permitindo<br />

que o que já é, pela <strong>pro</strong>vocação e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser no espaço do não-ser, seja.<br />

Vislumbra-se Dom Quixote, fingindo estar nos caminhos <strong>de</strong> la Mancha,<br />

estando, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, no <strong>de</strong> Hermes. Tanto se exercitou nesse caminho, que acabou<br />

apren<strong>de</strong>ndo. Foi com Hermes que apren<strong>de</strong>u a fingir tão b<strong>em</strong>, tão b<strong>em</strong> que ninguém<br />

<strong>de</strong>sconfiava. Não <strong>de</strong>sconfiava até certo ponto. Até que chega a um ponto que não<br />

dá mais para escon<strong>de</strong>r.<br />

Diante do impasse “ser” ou “não-ser” louco, que já alcançava o olhar <strong>de</strong> todos<br />

os que o observavam, o próprio Dom Quixote, ain<strong>da</strong> que não fosse essa sua<br />

intenção, sob o olhar inquiridor <strong>de</strong> todos, respon<strong>de</strong>: “Soy loco en mis acciones, pero<br />

no soy loco en lo que hablo”, 759 o que reforça a perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> todos que não<br />

po<strong>de</strong>m imaginar ser possível tamanha contradição. Só então, Dom Quixote vai<br />

758 Haviam <strong>de</strong> ser mentira? (1, L, 304)<br />

759 Sou louco <strong>em</strong> minhas ações, mas não sou louco no que falo.


acrescentar o “tan”: “no soy tan loco ni tan menguado como <strong>de</strong>bo <strong>de</strong> haberle<br />

parecido”. 760 O “tan” é a <strong>pro</strong>va mais cabal do incontornável-paradoxo, <strong>de</strong>sconstruindo<br />

o edifício dos conceitos, evoluindo <strong>de</strong> contradição para questão.<br />

Dom Quixote consegue perceber perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> no olhar <strong>de</strong> todos. Todos<br />

estão intrigados com as contradições paradoxais que vê<strong>em</strong> <strong>de</strong>sfilar <strong>em</strong> Quixote,<br />

diante <strong>de</strong> seus olhos.<br />

Primeiro, foi Tomé Cecial, “Don Quijote loco, nosotros cuerdos: él se va sano<br />

y riendo; vuesa merced que<strong>da</strong> molido y triste. Sepamos pues, ahora: cuál es más<br />

loco: ¿el que lo es por no po<strong>de</strong>r menos, o el que lo es por su voluntad?”. 761 Trata-se<br />

<strong>de</strong> contexto on<strong>de</strong> o que se quer urgent<strong>em</strong>ente é <strong>de</strong>sfazer os paradoxos.<br />

Depois é a vez <strong>de</strong> Dom Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong> a qu<strong>em</strong>, <strong>de</strong> tão intrigado, não basta<br />

observar, registra, anotando tudo:<br />

todo atento a mirar y a notar los hechos y palabras <strong>de</strong> don Quijote,<br />

pareciéndole que era un cuerdo loco y un loco que tiraba a cuerdo, [Don<br />

Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>] [...] ya le tenía por cuerdo, y ya por loco, porque lo que<br />

hablaba era concertado, elegante y bien dicho, y lo que hacía , disparatado,<br />

t<strong>em</strong>erario y tonto. 762<br />

Logo a seguir, é Dom Quixote qu<strong>em</strong> começa a <strong>da</strong>r esclarecimentos.<br />

Primeiro respon<strong>de</strong>:<br />

–¿Quién du<strong>da</strong>, señor don Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>, que vuestra merced no me<br />

tenga en su opinión por un hombre disparatado y loco? Y no sería mucho<br />

que así fuese, porque mis obras no pue<strong>de</strong>n <strong>da</strong>r testimonio <strong>de</strong> otra cosa.<br />

Pues, con todo esto, quiero que vuestra merced advierta que no soy tan<br />

loco ni tan menguado como <strong>de</strong>bo <strong>de</strong> haberle parecido. 763<br />

760 Não sou tão louco n<strong>em</strong> tão mentecapto quanto <strong>de</strong>vo haver-lhe parecido (2, XVII, p.410)<br />

761 Dom Quixote louco, nós sensatos, ele vai sadio e risonho; vossa mercê fica moí<strong>da</strong> e triste. Saibamos, pois, agora, qual é o<br />

mais louco: o que é por falta <strong>de</strong> alternativa ou o que é por sua própria vonta<strong>de</strong>? (2, XV, 397)<br />

762 Todo atento, observando e anotando atos e palavras <strong>de</strong> Dom Quixote, parecendo-lhe que era um sensato louco ou um<br />

louco que parecia sensato [...] [Dom Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>] ora o tomava por sensato, e ora por louco, porque o que falava era<br />

concertado, elegante e b<strong>em</strong> dito, e o que fazia, disparatado, t<strong>em</strong>erário e tolo. (2, XVII, p.410)<br />

763 Qu<strong>em</strong> duvi<strong>da</strong>, senhor Dom Diego <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>, que vossa mercê não me tenha <strong>em</strong> sua opinião como hom<strong>em</strong> disparatado e<br />

louco? E não seria muito que assim fosse, porque minhas obras não po<strong>de</strong>m <strong>da</strong>r test<strong>em</strong>unho <strong>de</strong> outra coisa. Pois, com tudo<br />

isto, quero que vossa mercê advirta que não sou tão louco n<strong>em</strong> tão mentecapto como <strong>de</strong>vo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410)


Depois faz um resumo <strong>de</strong> sua situação no seguinte discurso, “Soy loco en mis<br />

acciones pero no soy loco en lo que hablo”.<br />

Concentr<strong>em</strong>os, entretanto, a atenção no seguinte fragmento: “no soy tan loco<br />

ni tan menguado”. Restrinjamos um pouco mais: “tan [...] tan”.<br />

A resposta <strong>de</strong> Dom Quixote a Dom Diego é intencional. Parece ter captado<br />

seu dil<strong>em</strong>a – o dil<strong>em</strong>a <strong>da</strong> contradição estampado <strong>em</strong> seu rosto, dil<strong>em</strong>a já instalado e<br />

por todos vivido. Preocupado, é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas com uma pontinha <strong>de</strong> alegria pelo que<br />

via acontecer, Dom Quixote resolve oferecer-lhe um refrigério para amenizar o seu<br />

conflito, com o cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> avisar que sua resposta é uma advertência, “quiero que<br />

vuestra merced advierta”; advertência que esclarece <strong>de</strong>finitivamente seu <strong>pro</strong><strong>pós</strong>ito.<br />

Com o “tan”, Dom Quixote instala a zona do “entre”. Com essa afirmação,<br />

suaviza a primeira resposta: “Soy [...] no soy”, esta também perfeitamente ajusta<strong>da</strong><br />

ao “entre”, sou e não-sou. Entretanto, como parece que ain<strong>da</strong> não ficara claro,<br />

reforça a advertência acrescentando o “tan” que <strong>de</strong>ixa claro que há, “entre” os<br />

aparentes opostos, uma região amplíssima on<strong>de</strong> mil possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m-ser.<br />

Com isso, quer nos dizer Dom Quixote que opostos radicais não se<br />

sustentam, fun<strong>da</strong>mentalmente, lou<strong>cura</strong> e razão. É por isso que não <strong>de</strong>scarta a<br />

lou<strong>cura</strong>, é claro que tampouco não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>scartar a razão. Não se trata <strong>de</strong> ler a<br />

obra como um tratado contra a ciência, o que ele quer chamar a atenção para a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> cientificamente imposta ao mundo que po<strong>de</strong>, <strong>em</strong> sua arrogância, tornar-se a<br />

arrogância <strong>da</strong> razão.<br />

Embora seja a partir do falar que Dom Quixote anuncia e abre este Périplo, é<br />

ao pensar que ele irá <strong>de</strong>dicar-se. Até então, só o conhecíamos como falar-falatório.<br />

Outro falar também se mostrou, o falar-enunciação, rigoroso e elaborado, segundo<br />

as leis <strong>da</strong> lógica discursiva, primoroso, segundo as normas gramaticais. Entretanto,<br />

não é a esses falares que nos referíamos e sim ao falar-pensar, aquele falar do que


é digno <strong>de</strong> ser pensado. Custou ao cavaleiro <strong>de</strong>scobrir o melhor falar para a tarefa<br />

do contar e <strong>de</strong>sencantar.<br />

Falta ain<strong>da</strong> outro cui<strong>da</strong>do. Se há fala é porque há escuta. Nesse caso, para a<br />

escuta, o sentido correto seria a audição. Ledo engano, porque o sentido que inclui<br />

os termos com ela afins não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do aparelho auditivo, <strong>em</strong> seu sentido ôntico,<br />

seu alcance é muito mais amplo. Quando é a escuta que se quer convocar,<br />

acompanha-a s<strong>em</strong>pre o silêncio: “Y así, estén vuestras merce<strong>de</strong>s atentos, y oirán un<br />

discurso ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro a quien podría ser que no llegasen los mentirosos”. 764 Para isso,<br />

<strong>pro</strong>ssegue com a seguinte solicitação: “dijo [...] que todos se acomo<strong>da</strong>sen y le<br />

prestasen un gran<strong>de</strong> silencio” 765 Silêncio. Quando se trata <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é preciso<br />

haver silêncio.<br />

Ain<strong>da</strong> que pareça contraditório, Heráclito nos convoca ao mistério, nos<br />

convoca a ouvir o mistério: “ouvir não a mim, mas o logos”.<br />

Dom Quixote vai falar, contar e <strong>de</strong>sencantar escutando a voz do logos __<br />

logos, o único que, assediado pelo ser e para aten<strong>de</strong>r a esse assédio, percebe o<br />

mistério velado para torná-lo linguag<strong>em</strong>. No preparar-se para falar a fala poética,<br />

Dom Quixote se l<strong>em</strong>bra, quase no último minuto, <strong>de</strong> que a batalha com o cavaleiro<br />

<strong>de</strong>sconhecido ain<strong>da</strong> não acontecera. L<strong>em</strong>brava ter <strong>de</strong>ixado, lá atrás, a batalha<br />

somente anuncia<strong>da</strong>, s<strong>em</strong> a inscrição dos combatentes n<strong>em</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> arena. A<br />

busca na m<strong>em</strong>ória agora é nossa. Em que ponto <strong>da</strong> obra acontece o combate tão<br />

esperado e qu<strong>em</strong> são os contendores? E a m<strong>em</strong>ória nos lança novamente para o<br />

capítulo on<strong>de</strong> o título anuncia que vão acontecer “[...] discretas altercaciones que<br />

764<br />

E assim, estejam vossas mercês atentas, e ouvirão um discurso ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro ao qual po<strong>de</strong>ria ser que não chegass<strong>em</strong> os<br />

mentirosos (1, XXXVIII, p.233)<br />

765<br />

Disse que todos se acomo<strong>da</strong>ss<strong>em</strong> e lhe prestass<strong>em</strong> um gran<strong>de</strong> silêncio (Ibi<strong>de</strong>m)


don Quijote y el Canónigo tuvieron, con otros sucesos”. 766 E lá está ele, novamente<br />

intrigado, insistindo com a velha questão, “¿habían <strong>de</strong> ser mentira?”.<br />

Surpreen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, diferente <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>mais, <strong>de</strong>ssa vez sua resposta é<br />

brusca, s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po sequer <strong>de</strong> pensar, “Calle vuestra merced, no diga tal blasf<strong>em</strong>ia,<br />

(y créame que le aconsejo en esto lo que <strong>de</strong>be <strong>de</strong> hacer como discreto), sino<br />

léalos”. 767 É surpreen<strong>de</strong>nte como a resposta sai <strong>de</strong> chofre, como se estivesse<br />

respon<strong>de</strong>ndo a si próprio, como se já conhecesse <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre a resposta. Ao<br />

respon<strong>de</strong>r Dom Quixote a “el canónigo”, a resposta é para o leitor, a resposta é para<br />

si mesmo, ler é a resposta. A resposta era para todos.Todos liam na Espanha, todos<br />

escreviam, todos publicavam. O escrever <strong>em</strong>butido no ler. Em muitos casos, o<br />

escrever era, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma forma <strong>de</strong> contar-se, <strong>de</strong> saber <strong>de</strong> si enquanto se<br />

escreve. Digno <strong>de</strong> registro, repetimos, é uma cena do episódio “Aventura <strong>de</strong> los<br />

Galeotes”: Ginés <strong>de</strong> Pasamonte, o bandido mais perigoso <strong>da</strong> época, porque percebe<br />

haver um equívoco no modo como o chamam, equívoco que o molesta, quer<br />

resolver o impasse registrando sua vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> um livro. Um livro que já está começado,<br />

não <strong>de</strong>ixando dúvi<strong>da</strong>s sobre “sua pessoa”, porque é on<strong>de</strong> ele “dice ver<strong>da</strong>d”. 768<br />

Quando Dom Quixote lhe pergunta se já está terminado, ele assim lhe respon<strong>de</strong>:<br />

“¿Como pue<strong>de</strong> estar acabado [...] si aun no está acaba<strong>da</strong> mi vi<strong>da</strong>?”. 769 O autor do<br />

livro revela ter clareza do percurso <strong>de</strong> Cura. Primeiro, porque, estando vivo, há vi<strong>da</strong><br />

para contar. Depois, porque assim o explica: “lo que está escrito es <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mi<br />

nacimiento hasta el punto que esta última vez me han echado en galeras”. 770<br />

Vê-se que, no que se refere a esse percurso, Ginés, o galeote-escritor, o<br />

<strong>de</strong>lineia perfeitamente, imprimindo-lhe a marca <strong>de</strong> Cura. Por outro lado, entretanto,<br />

766<br />

Atina<strong>da</strong>s altercações que Dom Quixote e o Canónigo tiveram, com outros acontecimentos (1, L, p.304)<br />

767<br />

Cale vossa mercê, não diga tal blasfêmia, e creia-me que lhe aconselho no que <strong>de</strong>ve fazer como atinado, senão leia-os.<br />

(Ibi<strong>de</strong>m)<br />

768<br />

Diz ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. (1, XXII, p.120)<br />

769<br />

Como po<strong>de</strong> estar acabado [...] se ain<strong>da</strong> não está acaba<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>? (1, XXII, p.121)<br />

770<br />

O que está escrito é <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o meu nascimento até o ponto que esta última vez me atiraram nas galés (1, XXII, p.121)


v<strong>em</strong>os, nesse movimento do contar o “galeote” a sua história, um pulsar <strong>de</strong><br />

ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que exig<strong>em</strong>, talvez, vê-lo como imag<strong>em</strong>-questão. É claro que Ginés<br />

<strong>de</strong> Pasamonte não precisa contar sua história seguindo rigorosamente os<br />

acontecimentos <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> dia, dia por dia, “lo que está escrito es <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mi nacimiento<br />

hasta el punto que esta última vez”. O termo “punto” nos r<strong>em</strong>ete <strong>à</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong><br />

como eram narra<strong>da</strong>s as novelas <strong>de</strong> cavalaria: “punto por punto y día por día”. 771<br />

Assim, por mais que lhe pareça ser essa forma o que vai garantir a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua<br />

obra, essa será sua marca diametralmente oposta.<br />

Consi<strong>de</strong>rando seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> contar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> para <strong>de</strong>linear-se e inscrever-se<br />

no mundo, eliminando qualquer dúvi<strong>da</strong> a seu respeito, nos preocupa que sua<br />

intenção seja a <strong>de</strong> contar rigorosamente to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> com todos os <strong>de</strong>talhes,<br />

cometendo, com isso, o mesmo <strong>de</strong>slize <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria: confundir<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> com ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Outro <strong>da</strong>do importante é sua resignação <strong>de</strong> estar na ca<strong>de</strong>ia, acreditando que<br />

ali, pelo menos, ele po<strong>de</strong> contar com a tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong> necessária para escrever b<strong>em</strong> o<br />

que precisa escrever, “Y no me pesa mucho <strong>de</strong> ir a ellas, porque allí tendré lugar <strong>de</strong><br />

acabar mi libro, que me que<strong>da</strong>n muchas cosas que <strong>de</strong>cir”. 772 Entretanto, algumas<br />

questões já nos <strong>pro</strong>vocam. Primeiro, porque Ginés <strong>de</strong> Pasamonte faz parte <strong>da</strong>queles<br />

prisioneiros, não só no sentido ôntico, como também no sentido <strong>de</strong> não saber-se<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Desse modo, impossível será fazer-se obra, o “fingir” estará fora <strong>de</strong><br />

seu alcance. Depois, porque, s<strong>em</strong> abrir-se a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, jamais po<strong>de</strong>rá<br />

experimentar o experienciar fun<strong>da</strong>mental <strong>à</strong> experiência <strong>da</strong> arte. Acrescent<strong>em</strong>os,<br />

ain<strong>da</strong>, não lhe passar pela cabeça contar aquilo que seguramente é digno <strong>de</strong> ser<br />

771 Ponto a ponto e dia a dia (1, L, p.304)<br />

772 E não me pesa muito ir a elas, porque ali terei lugar <strong>de</strong> acabar meu livro, que me restam muitas coisas que<br />

dizer (1, XXII, p.121)


contado. Ao dizer que sabe tudo o que vai contar <strong>de</strong> cor __ “me lo sé <strong>de</strong> coro” 773 __ ,<br />

não parece sinalizar com outro el<strong>em</strong>ento importantíssimo para o contar, a<br />

espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, o <strong>de</strong>ixar acontecer espontâneo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Ao dizer, “aunque no es<br />

menester mucho más para lo que yo tengo <strong>de</strong> escribir, porque me lo sé <strong>de</strong> coro”, 774<br />

po<strong>de</strong> Ginés <strong>de</strong> Pasamonte estar assegurando saber <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>,<br />

exatamente aquilo que é digno <strong>de</strong> ser contado. Tudo é possível.<br />

Dom Quixote estava convocando todos <strong>à</strong> leitura quando o interromp<strong>em</strong>os. Ler<br />

o quê? Ler os livros <strong>de</strong> cavalaria? Não importa. O que importa é que nessa resposta<br />

está a intenção <strong>de</strong> tomar a palavra para revelar o gran<strong>de</strong> segredo. E seu gran<strong>de</strong><br />

segredo era saber-se ele mesmo obra.<br />

Têm sentido os sinais com os quais já tentara alertar a todos. No início <strong>da</strong><br />

história nos <strong>de</strong>paramos com eles “cuando el famoso caballero don Quijote <strong>de</strong> la<br />

Mancha, <strong>de</strong>jando las ociosas plumas, subió sobre su famoso caballo Rocinante y<br />

comenzó a caminar por el antiguo y conocido campo <strong>de</strong> Montiel”. 775 Antes ain<strong>da</strong>,<br />

<strong>de</strong>ra outro sinal: referindo-se <strong>à</strong> falta <strong>de</strong> sentido que os “requiebros lingüísticos”<br />

encerravam. O incômodo era tal que “muchas veces le vino <strong>de</strong>seo <strong>de</strong> tomar la pluma<br />

y <strong>da</strong>lle fin al pie <strong>de</strong> la letra”. 776<br />

Por duas vezes, Dom Quixote teve contato com “la pluma”. Numa <strong>de</strong>las<br />

manifesta expressamente seu <strong>de</strong>sejo que não chegou a concretizar-se. Na segun<strong>da</strong>,<br />

entretanto, sua relação com um objeto, que lhe parecera tão significativo, é menos<br />

tensa, indiciando <strong>de</strong>sistência total e <strong>de</strong>finitiva <strong>da</strong> intenção <strong>de</strong> escrever. Fica b<strong>em</strong><br />

claro que a intenção é, ao contrário, <strong>de</strong> não escrever. O que <strong>à</strong> sua frente estava<br />

eram “plumas” ociosas, “plumas” que não escrev<strong>em</strong> e que jamais escreverão.<br />

773 O sei <strong>de</strong> cor (1, XXII, p.121)<br />

774 Mesmo que não seja preciso muito mais para o que tenho <strong>de</strong> escrever, por que o sei <strong>de</strong> cor (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

775 Quando o famoso cavaleiro Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha, <strong>de</strong>ixando as ociosas plumas, subiu sobre seu famoso cavalo<br />

Rocinante e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo <strong>de</strong> Montiel (1, II, p.21)<br />

776 Muitas vezes lhe veio <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> tomar a pluma e <strong>da</strong>r-lhe fim ao pé <strong>da</strong> letra. (1, I, p.18)


Com relação ain<strong>da</strong> ao escrever e contar-se, é interessante mencionar outro<br />

momento <strong>em</strong> que esse movimento do contar-se insinuou-se, tentando ganhar<br />

espaço. No entanto, se estamos nos limites <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, tudo é possível. Visto<br />

<strong>de</strong> outro ângulo, não po<strong>de</strong> significar o abandono <strong>da</strong> “pluma”, exatamente o ponto <strong>em</strong><br />

que ela <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ficar ociosa? Não significaria que, <strong>da</strong>quele momento <strong>em</strong> diante<br />

ela <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser ociosa, ou, mais ain<strong>da</strong>, que não seria sequer necessária porque a<br />

partir <strong>da</strong>quele momento era ele qu<strong>em</strong> começaria a escrever-se? E, nesse caso, a<br />

pluma não era uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> vital.<br />

“Léalos” e “plumas ociosas”. Parece que chegamos ao ponto mais importante<br />

<strong>da</strong> Tese. Ler-se, escrever-se, contar-se. Un<strong>em</strong>-se as pontas entre vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> e vi<strong>da</strong><br />

experiencia<strong>da</strong>, entre Dom Quixote fi<strong>da</strong>lgo e Dom Quixote cavaleiro, entre Dom<br />

Quixote reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e Dom Quixote ficção.<br />

14 A CORAGEM DO SALTO MORTAL<br />

Na intrigante resposta ao “canónigo”, “Tú, caballero, quienquiera que seas,<br />

que el t<strong>em</strong>eroso lago estás mirando, si quieres alcanzar el bien que <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong>stas<br />

negras aguas se encubre, muestra el valor <strong>de</strong> tu fuerte pecho y arrójate en mitad <strong>de</strong><br />

su negro y encendido licor” 777 , Dom Quixote, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o convoca a<br />

entrar no lago se dirige a um cavaleiro que parece ser ele mesmo. Isso só reforça<br />

nossa <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> que está, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, dirigindo a sua fala a si próprio. Nesse<br />

caso, a resposta é para o canónigo, mas a convocação e o <strong>de</strong>safio <strong>da</strong> aventura são<br />

777 Tu, cavaleiro, qu<strong>em</strong> quer que sejas, que o t<strong>em</strong>eroso lago estás olhando, se queres alcançar o b<strong>em</strong> que <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>ssas<br />

negras águas se encobre, mostra o valor do teu forte peito e lança-te na meta<strong>de</strong> do seu negro e aceso licor (1, L, p.304-305)


para si mesmo. Dom Quixote exulta ao <strong>de</strong>screver o fascínio que exerce o lago,<br />

mesmo com a superfície tão assustadora:<br />

¿hay mayor contento que ver, como si dijés<strong>em</strong>os: aquí ahora se muestra<br />

<strong>de</strong>lante <strong>de</strong> nosotros un gran lago <strong>de</strong> pez hirviendo a borbollones, y que<br />

an<strong>da</strong>n na<strong>da</strong>ndo y cruzando por él muchas serpientes, culebras y lagartos, y<br />

otros muchos géneros <strong>de</strong> animales feroces y espantables. 778<br />

Enquanto a superfície do lago ferve, borbulha e está povoa<strong>da</strong> <strong>de</strong> animais<br />

ferozes, as novelas <strong>de</strong> cavalaria expõ<strong>em</strong> uma aparência <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m absoluta, on<strong>de</strong><br />

tudo está previsto, com todos os referentes passíveis <strong>de</strong> com<strong>pro</strong>vação, todo o<br />

necessário para garantir a verossimilhança, “cuentan el padre, la madre, la patria, los<br />

parientes, la e<strong>da</strong>d, el lugar y las hazañas, punto por punto y día por día que el tal<br />

caballero hizo, o caballeros hicieron”. 779<br />

Embora seja a partir <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria que, <strong>em</strong> resposta ao<br />

“canónigo”, o cavaleiro irrompe com “léalos”, apresentando um conto ex<strong>em</strong>plar, o<br />

conto do lago não é uma novela <strong>de</strong> cavalaria. Ao apresentá-lo <strong>de</strong> forma brusca e<br />

repentina, Dom Quixote dá uma guina<strong>da</strong> significativa, finalizando <strong>de</strong>finitivamente o<br />

ciclo <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>: “¿habían <strong>de</strong> ser mentira?”, tudo concentrado <strong>em</strong> um só verbo.<br />

Sobre a arte, muitas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s estão concorrendo no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

O escrutínio é a representação do próprio Dom Quixote querendo <strong>de</strong>scobrir a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. É ele qu<strong>em</strong> rege e administra todo <strong>pro</strong>cesso, com sua<br />

dúvi<strong>da</strong> questionadora que, ao mesmo t<strong>em</strong>po que duvi<strong>da</strong>, na entonação <strong>de</strong> seu<br />

discurso, parece querer <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r. Essa atitu<strong>de</strong> seria previsível a um aficcionado que,<br />

além <strong>de</strong> aficcionado simplesmente, traz <strong>em</strong> si, na performance do cavaleiro Dom<br />

778 Há maior contentamento que ver, como se disséss<strong>em</strong>os, aqui agora se mostra diante <strong>de</strong> nós um gran<strong>de</strong> lago <strong>de</strong> peixe<br />

fervente <strong>em</strong> ebulição, e que an<strong>da</strong>m na<strong>da</strong>ndo e cruzando por ele muitas serpentes, cobras e lagartos, e outros muitos gêneros<br />

<strong>de</strong> animais ferozes e espantosos. (1, L, p.304)<br />

779 Contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a i<strong>da</strong><strong>de</strong>, o lugar e as façanhas, <strong>de</strong>talhe ponto por ponto e dia a dia, que o tal<br />

cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (Ibi<strong>de</strong>m)


Quixote, o referencial medieval que será posto <strong>à</strong> <strong>pro</strong>va, naquele ambiente <strong>em</strong> que<br />

na<strong>da</strong> mais é confiável n<strong>em</strong> seguro.<br />

Dom Quixote está, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, pondo <strong>em</strong> confronto a turbulência e o<br />

aparente caos <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> arte com a or<strong>de</strong>m extr<strong>em</strong>a <strong>da</strong>s novelas mo<strong>de</strong>lo que<br />

são o gran<strong>de</strong> referencial para a multiplicação num s<strong>em</strong> número <strong>de</strong> cópias. Nesse<br />

caso, ao apresentar o conto do lago, parece estar Dom Quixote lançando mão <strong>de</strong><br />

um <strong>pro</strong>cedimento didático, no qual, as novelas <strong>de</strong> cavalaria são somente os<br />

<strong>de</strong>tonadores do <strong>pro</strong>cesso comparativo radical que <strong>de</strong>fine, <strong>de</strong>finitivamente, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte.<br />

Nesse <strong>pro</strong>cedimento, o cavaleiro é só a manutenção do personag<strong>em</strong>-<br />

referência para preservar a idéia <strong>de</strong> ser, o personag<strong>em</strong> que vai mergulhar no lago, o<br />

próprio cavaleiro Dom Quixote <strong>de</strong> la Mancha, indicando que será sua a história que<br />

será conta<strong>da</strong>.<br />

É aqui que talvez se encontre a encruzilha<strong>da</strong> que obriga Dom Quixote a<br />

mu<strong>da</strong>r o rumo do insistente perguntar pela mentira e ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong><br />

cavalaria. É nesse rompante brusco que imaginamos ter sido Dom Quixote tomado<br />

pelo <strong>da</strong>imon com a missão <strong>de</strong> <strong>de</strong>scartar-se tudo o que até então participara do<br />

horizonte <strong>da</strong> arte s<strong>em</strong>, contudo, <strong>à</strong> arte pertencer, tudo o que fosse alheio e que só<br />

contribuísse para <strong>em</strong>pali<strong>de</strong>cer a obra, tudo o que pertencesse ao puramente<br />

intelectual. Nessa imposição-convocação, ao mesmo t<strong>em</strong>po que o <strong>da</strong>imon preserva<br />

o espaço dos <strong>de</strong>uses, o <strong>de</strong>lírio é também imediato, e Dom Quixote é possuído pelas<br />

Musas. Ao dizer “léalos”, é como se dissesse ao canónigo, “entregue-se <strong>à</strong> leitura,<br />

antes <strong>de</strong> ficar tentando falar, avaliar, julgar”; é como se dissesse a si mesmo, “Leia-<br />

se! Seja você mesmo, obra!” Nesse momento, já estava, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, possuído.<br />

A comparação feita no conto é com um lago. É somente a arte ganhando aqui<br />

a forma <strong>de</strong> um lago. Esse lago, na superfície, está borbulhando, está fervendo,


muitos são os animais “feroces y espantables” 780 que na<strong>da</strong>m e cruzam a superfície:<br />

“serpientes, culebras y lagartos.” 781 Embora diga que muitos outros animais<br />

igualmente ferozes também ameaçam, só nomeia esses animais que, por acaso,<br />

transitam entre a terra e a água. Parece que, ain<strong>da</strong> que pareçam perigosos, sua<br />

dupla vi<strong>da</strong> indica ser<strong>em</strong>, eles as várias possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s conti<strong>da</strong>s na ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Se<br />

freqüentam água e terra são seres ambíguos. Relação s<strong>em</strong>elhante faz Octavio Paz,<br />

<strong>em</strong> relação ao poético: “A poesia se ouve com os ouvidos, mas se vê com o<br />

entendimento. Suas imagens são criaturas anfíbias: são idéias e são formas, são<br />

sons e são silêncio”. 782<br />

Das entranhas <strong>de</strong>sse lago sai uma voz triste que convi<strong>da</strong> o cavaleiro, o<br />

próprio Dom Quixote, a entrar no lago: “si quieres alcanzar el bien que <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong>stas<br />

negras aguas se encubre”. 783<br />

O convite feito apela ao cavaleiro seus dotes mais característicos: “muestra el<br />

valor <strong>de</strong> tu fuerte pecho y arrójate en mitad <strong>de</strong> su negro y encendido licor”. 784 Esse<br />

“mitad” sugere a recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> alerta a um espaço que <strong>pro</strong>vavelmente está no<br />

“meio”, “en mitad”, na meta<strong>de</strong> do lago.<br />

O ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução está, entretanto, no meio lago. É <strong>de</strong> lá, do<br />

meio, que v<strong>em</strong> a voz. Mais uma vez, aparece a “voz”: a outra voz, o <strong>da</strong>imon, o<br />

logos? Uma voz-convite com a <strong>pro</strong>messa do “b<strong>em</strong>”: “Si quieres alcanzar el bien”, que<br />

anima e encoraja a <strong>da</strong>r o salto, enfrentando o perigo.<br />

O perigo <strong>da</strong> superfície do lago está <strong>em</strong> suas “negras aguas”.<br />

Po<strong>de</strong>ríamos imaginar tratar-se, mais uma vez, <strong>de</strong> uma armadilha metafísica<br />

on<strong>de</strong> o escuro <strong>da</strong>s águas está <strong>em</strong> oposição contrária e radical ao sol que “luce con<br />

780 Ferozes e assustadores (1, L, p.304)<br />

781 Serpentes, cobras e lagartos (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

782 PAZ, Octávio. A outra voz São Paulo: Siciliano, 1993, p.143.<br />

783 Se queres alcançar o b<strong>em</strong> que <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>stas negras águas se encobre (1, L, P.305)<br />

784 Mostra o valor <strong>de</strong> teu forte peito e arroja-te no meio <strong>de</strong> seu negro e aceso licor (Ibi<strong>de</strong>m)


clari<strong>da</strong>d”. 785 Entretanto, a inversão com que eles são dispostos [escuro na superfície,<br />

clari<strong>da</strong><strong>de</strong> nas <strong>pro</strong>fun<strong>de</strong>zas] é o suficiente para <strong>de</strong>sfazer qualquer suspeita nesse<br />

sentido. S<strong>em</strong> contar com o aparente <strong>da</strong> superfície. Além <strong>de</strong> quente, ela borbulha,<br />

indicando haver ali muito vigor, indicando haver uma relação <strong>de</strong> troca, a superfície<br />

no meio, o meio na superfície.<br />

A meta<strong>de</strong> do lago __ “mitad <strong>de</strong>l lago” __ se refere a licor com o adjetivo “negro”<br />

que po<strong>de</strong> significar a ausência, o vazio do não-ser, a não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e com “encendido<br />

licor” 786 o que, pelo significado <strong>de</strong> licor, pelos <strong>pro</strong>cessos por que passam as<br />

substâncias naturais para <strong>de</strong>las tirar-se o máximo <strong>da</strong> essência, po<strong>de</strong> r<strong>em</strong>eter para<br />

“vigor”, além do adjetivo “encendido” que também indica força, po<strong>de</strong>r, logo vigor. Só<br />

qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a corag<strong>em</strong> <strong>de</strong> mergulhar po<strong>de</strong>rá encontrar, na meta<strong>de</strong>, no meio, no “entre”<br />

do lago, maravilhas. Essas maravilhas que jaz<strong>em</strong> <strong>de</strong>baixo <strong>da</strong> negrura são<br />

apresenta<strong>da</strong>s <strong>em</strong> número <strong>de</strong> “7”, “los siete castillos <strong>de</strong> las siete fa<strong>da</strong>s” 787 , talvez<br />

significando a abertura infinita, consi<strong>de</strong>rando o cabalístico inerente ao numeral “7”.<br />

O cavaleiro se enche <strong>de</strong> corag<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> “entrar más en cuentas consigo, sin<br />

ponerse a consi<strong>de</strong>rar el peligro a que se pone”, 788 n<strong>em</strong> pensa nos perigos que<br />

po<strong>de</strong>rá enfrentar; mas, ain<strong>da</strong> assim, não largando o peso <strong>da</strong> arma que carrega, n<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> encomen<strong>da</strong>r-se a Deus e <strong>à</strong> sua ama<strong>da</strong>, mergulha, se entrega <strong>à</strong><br />

aventura, a <strong>de</strong> uma nova experiência que po<strong>de</strong>rá abrir-lhe novos mundos. Quando<br />

menos se dá conta, já está no meio do lago e t<strong>em</strong> a primeira visão, a <strong>de</strong> campos<br />

com os quais os “los Elíseos no tienen que ver en ninguna cosa” 789 , indicando,<br />

talvez, a superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, <strong>em</strong> perfeição.<br />

785<br />

Brilha com clari<strong>da</strong><strong>de</strong> (1, L, p.305)<br />

786<br />

Aceso licor (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

787<br />

Os sete castelos <strong>da</strong>s sete fa<strong>da</strong>s (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

788<br />

Entrar mais <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>rações consigo mesmo, s<strong>em</strong> se por a consi<strong>de</strong>rar o perigo ao qual se expõe (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

789 Os Elíseos não têm a ver com coisa nenhuma (1, L, p.305)


Dos el<strong>em</strong>entos apresentados, um merece atenção: os símbolos <strong>de</strong> força e <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r que caracterizam o cavaleiro-<strong>pro</strong>tótipo <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria – o braço e a<br />

espa<strong>da</strong> são <strong>de</strong>slocados para o peito, “fuerte pecho”, a parte do corpo requisita<strong>da</strong><br />

para acionar no hom<strong>em</strong> o movimento que o impulsionará <strong>em</strong> direção a si mesmo.<br />

Vale comentar o instrumental com que o cavaleiro mergulha no lago, o<br />

mesmo que esteve acompanhando Dom Quixote <strong>em</strong> sua jorna<strong>da</strong> no 1 o Périplo. O<br />

acompanham a arma, sua ama<strong>da</strong> e Deus. Essa referência parece ser também uma<br />

forma <strong>de</strong> marcar o liame entre “novelas <strong>de</strong> cavalaria” e o “conto do lago”, feito nos<br />

mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um rito <strong>de</strong> passag<strong>em</strong>. Mesmo parecendo levar para o lago aquele<br />

instrumental, estava, para eles, acenando <strong>em</strong> sinal <strong>de</strong> renúncia.<br />

Trata-se <strong>de</strong> mais uma renúncia no vasto elenco <strong>de</strong> Dom Quixote feita <strong>de</strong><br />

forma sutil, talvez pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar marcado que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não está n<strong>em</strong><br />

numa n<strong>em</strong> noutra, mas sim, no meio, no trânsito. A passag<strong>em</strong> ritualística tanto se<br />

refere ao trânsito cavaleiro-fi<strong>da</strong>lgo, como ao cavaleiro-pastor, como ao cavaleiro-<br />

poeta, como, ain<strong>da</strong>, <strong>à</strong> obra <strong>de</strong> arte que dispensa qualquer aparato, a obra <strong>de</strong> arte<br />

livre na fres<strong>cura</strong> do seu vigor, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>finições, s<strong>em</strong> teorias, s<strong>em</strong> conceitos, tudo<br />

representado pelos três ícones: arma, ama<strong>da</strong>, Deus. A passag<strong>em</strong> ritualística se<br />

refere <strong>à</strong> obra <strong>de</strong> arte simplesmente, na simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> contar um conto.<br />

É possível, nesse caso, que o ingressar no lago, carregando dito aparato,<br />

signifique a resistência do hom<strong>em</strong> que insiste no ente entificado, na realização<br />

realiza<strong>da</strong>, <strong>de</strong>satento <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> “entre-ser”.<br />

No meio do lago, esperar-se-ia encontrar a escuridão, entretanto, o convite ao<br />

mergulho cumpre o <strong>pro</strong>metido. A sedução <strong>pro</strong>vocadora t<strong>em</strong> a intenção <strong>de</strong> garantir as<br />

maravilhas que se po<strong>de</strong> encontrar na obra-<strong>de</strong>-arte sob o brilho <strong>de</strong> outro sol, um sol


diferente porque “el cielo es más transparente, y [...] el sol luce con clari<strong>da</strong>d más<br />

nueva”. 790<br />

A ca<strong>da</strong> momento, uma coisa nova vai sendo <strong>de</strong>scoberta: “se le <strong>de</strong>scubre un<br />

fuerte castillo o vistoso alcázar”. 791 O interessante é que, <strong>em</strong>bora sejam as coisas<br />

feitas <strong>de</strong> material <strong>de</strong> valor <strong>de</strong>slumbrante __ ouro maciço, pérolas, esmeral<strong>da</strong>s,<br />

diamantes, rubis, etc __ nelas, o que há <strong>de</strong> mais precioso não é a superfície <strong>de</strong><br />

aparência e, sim, o modo como são feitas, sua “feitura” (“es <strong>de</strong> más estimación su<br />

hechura” ). 792<br />

Isso nos l<strong>em</strong>bra:<br />

Bien – dijo el <strong>cura</strong> – me parece esta novela; pero no me puedo persuadir<br />

que esto [referindo-se <strong>à</strong> história <strong>de</strong> Anselmo e Camila, <strong>em</strong> que o marido,<br />

para experimentar mais <strong>pro</strong>fun<strong>da</strong>mente, até esgotar, a fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> esposa,<br />

arquiteta um plano <strong>em</strong> que seu melhor amigo <strong>de</strong>ve seduzi-la] [...] sea<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; y si es fingido, fingió mal el autor; porque no se pue<strong>de</strong> imaginar<br />

que haya marido tan necio que quiera hacer tan costosa experiência como<br />

Anselmo. Si este caso se pusiera entre un galán y una <strong>da</strong>ma, pudiérase<br />

llevar; pero entre marido y mujer, algo tiene <strong>de</strong>l imposible; y, en lo que toca<br />

al modo <strong>de</strong> contarle, no me <strong>de</strong>scontenta. 793<br />

Pelos fragmentos: “es <strong>de</strong> más estimación su hechura” e “en lo que toca al<br />

modo <strong>de</strong> contarle”, percebe-se que ambos os personagens citados dão relevo, não <strong>à</strong><br />

forma mo<strong>de</strong>lar e esqu<strong>em</strong>ática que sab<strong>em</strong>os caracterizar as novelas <strong>de</strong> cavalaria,<br />

mas ao modo <strong>de</strong> contar que dá a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s novelas sua marca própria.<br />

Logo a seguir, a pergunta formula<strong>da</strong>: “Y ¿hay más que ver [...]?”, 794 anuncia<br />

que o que vai ser <strong>de</strong>scrito é tão maravilhoso que não <strong>de</strong>ixará nenhuma dúvi<strong>da</strong> sobre<br />

a maravilha do seu contar.<br />

790<br />

O céu é mais transparente, e [...] o sol brilha com clari<strong>da</strong><strong>de</strong> mais nova (1, L, p.305)<br />

791<br />

Ele <strong>de</strong>scobre um forte castelo ou vistoso palácio (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

792<br />

É mais preciosa a sua feitura (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

793<br />

Essa novela me parece ser boa, mas não posso convencer-me, disse o padre, [...] <strong>de</strong> que isto seja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; e, se tiver<br />

fingido, fingiu mal o autor, porque não é possível imaginar que haja marido tão idiota que queira fazer experiência tão<br />

complica<strong>da</strong> como Anselmo. Se este caso acontecesse entre um galã e uma <strong>da</strong>ma, se podia tolerar, mas entre marido e mulher,<br />

t<strong>em</strong> algo <strong>de</strong> impossível; e, no tocante ao modo <strong>de</strong> contar-lhe, não me <strong>de</strong>sagra<strong>da</strong>. (1, XXXV, p.217)<br />

794<br />

E há mais para ver? (1, L, p.305)


A partir <strong>da</strong>í, insinuam-se “aberturas” que se suce<strong>de</strong>m: 1) Primeiro vê sair, pela<br />

porta <strong>de</strong> um castelo, um bom número <strong>de</strong> donzelas __ “ver salir por la puerta <strong>de</strong>l<br />

castillo un buen número <strong>de</strong> doncellas” 795 , 2) as donzelas <strong>de</strong>snu<strong>da</strong>m o cavaleiro,<br />

colocando-o como sua mãe o pariu. Dão-lhe banho, passam óleos perfumados <strong>em</strong><br />

seu corpo e o vest<strong>em</strong> com camisa <strong>de</strong> um tecido finíssimo, 3) outra donzela coloca<br />

sobre os ombros do cavaleiro um manto que diz<strong>em</strong> valer uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ou até mais,<br />

4) Abre-se outra sala, on<strong>de</strong> há uma mesa posta, com água perfuma<strong>da</strong>, ele senta-se<br />

<strong>em</strong> ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> marfim, as donzelas o serv<strong>em</strong>, traz<strong>em</strong> muitos manjares tão saborosos<br />

que seu apetite não sabe qual escolher, ouve música s<strong>em</strong> saber qu<strong>em</strong> canta n<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> v<strong>em</strong>, e ain<strong>da</strong> mais, no final se recosta na ca<strong>de</strong>ira palitando os <strong>de</strong>ntes, <strong>em</strong> sinal<br />

<strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong> e satisfação, 5) Em segui<strong>da</strong>, entra na sala outra donzela muito mais<br />

bonita que as anteriores, senta-se ao lado do cavaleiro e começa a <strong>da</strong>r-lhe contas,<br />

começa a contar-lhe que castelo é aquele <strong>em</strong> que está e <strong>de</strong> como ela está ali<br />

encanta<strong>da</strong>.<br />

À <strong>pro</strong>porção que vai narrando, a donzela vai <strong>da</strong>ndo a ele ciência <strong>de</strong> muitas<br />

coisas como se estivesse explicando. Essas coisas “suspen<strong>de</strong>n al caballero y<br />

admiran a los leyentes que van leyendo su historia” 796 . Aqui parece que se chama a<br />

atenção para o que é contado, para a história <strong>em</strong> si, para a obra, afinal. Tira-se o<br />

foco tanto do autor, como do narrador eventual __ a donzela, como do personag<strong>em</strong> __<br />

o cavaleiro. Deposita-se atenção maior no leitor quando o narrador se refere a “otras<br />

cosas”, ou seja, não ao que está escrito, mas <strong>à</strong>quilo que está além do que está<br />

escrito, <strong>à</strong>quilo que está sob o título <strong>de</strong> “otras cosas”.<br />

795 (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

796 Suspen<strong>de</strong>m o cavaleiro e admiram os leitores que vão lendo sua história (1, L, p.305-306)


“Otras cosas” é abertura máxima ao máximo <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Essa abertura<br />

on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong>-leitor ocupa o lugar <strong>de</strong> entre-ser, é o lugar do po<strong>de</strong>r-ser <strong>da</strong> obra <strong>de</strong><br />

arte, o lugar on<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s têm lugar.<br />

Esse é o “entre”, esse é o “entre-ser”, esse é o “meio”. Esse entre-meio é o<br />

lugar, o lugar do acontecer poético.<br />

O meio do lago está marcado pelo silêncio: “sin hablarle palabra”; 797<br />

“guar<strong>da</strong>ndo un maravilloso silencio”. 798 A atuação <strong>da</strong>s donzelas se dá no mais<br />

absoluto silêncio, o que parece coincidir com essas “otras cosas” que no texto,<br />

apesar <strong>de</strong> aparecer<strong>em</strong>, aparent<strong>em</strong>ente verbaliza<strong>da</strong>s pela donzela, resum<strong>em</strong>-se a<br />

muito pouco. As expressões “qué castillo es aquel” e “como está encanta<strong>da</strong>” são<br />

imediatamente substituí<strong>da</strong>s por “otras cosas”, o que, por sua vez, parec<strong>em</strong> r<strong>em</strong>eter <strong>à</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

É como se dissesse que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> se dá no silêncio, se dá na não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, e<br />

que, <strong>de</strong>pois, ao <strong>de</strong>finir melhor esse silêncio, esclarece que tal silêncio não chega a<br />

ser ausência total <strong>de</strong> palavras e sim a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> dita com poucas palavras até chegar<br />

<strong>à</strong> não-palavra, ao silêncio como plenitu<strong>de</strong> do falar. E muito mais que isso, quer dizer<br />

que se <strong>de</strong>ve s<strong>em</strong>pre <strong>pro</strong><strong>cura</strong>r “outras coisas”, coisas que não estão ditas, mas que<br />

estão silencia<strong>da</strong>s no que está dito. O cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> passar a questão <strong>da</strong> importância<br />

que t<strong>em</strong> o silêncio é tal que, quando o narrador percebe que está ca<strong>da</strong> vez mais se<br />

a<strong>pro</strong>ximando <strong>de</strong> revelar <strong>de</strong>finitivamente a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte, ele, além <strong>de</strong><br />

suspen<strong>de</strong>r o cavaleiro que até então estava <strong>em</strong> primeiro plano (“suspen<strong>de</strong> el<br />

Caballero”) para <strong>da</strong>r relevo <strong>à</strong> voz <strong>da</strong>s ninfas e não <strong>à</strong> voz do narrador, talvez insira a<br />

<strong>de</strong> Min<strong>em</strong>ósine, voz que ecoa tanto na obra, como no leitor, aciona<strong>da</strong> pelo logos. É<br />

possível o <strong>de</strong>sdobramento. Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a voz <strong>da</strong> donzela é uma voz-<br />

797 S<strong>em</strong> dizer palavra (1, L, p.305)<br />

798 Guar<strong>da</strong>ndo um maravilhoso silêncio (Ibi<strong>de</strong>m)


narrador, <strong>de</strong>ve-se suspeitar que uma voz encarna<strong>da</strong> no f<strong>em</strong>inino seja Min<strong>em</strong>ósine.<br />

Essa voz po<strong>de</strong> ser também a voz do logos.<br />

Qu<strong>em</strong> está contando o conto do cavaleiro e do lago, aterrorizado com o risco<br />

do <strong>de</strong>svelamento permanente e total, trata <strong>de</strong> tomar a seguinte <strong>pro</strong>vidência, dizendo:<br />

“no quiero alargarme más en esto”. 799 Essa estratégia faz-nos l<strong>em</strong>brar <strong>de</strong> Jorge Luis<br />

Borges que, ao tentar falar <strong>de</strong> sua experiência com “el aleph”, recorre ao expediente<br />

do esquecimento. Diz ter esquecido <strong>da</strong> experiência por ser impossível registrá-la <strong>em</strong><br />

sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O narrador, que ilustra com o conto do lago o que é uma novela <strong>de</strong> cavalaria,<br />

sabe também que essa totali<strong>da</strong><strong>de</strong> é impossível, inalcançável e utiliza como saí<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>sse perigoso limite o álibi, “no quiero alargarme más en esto”.<br />

Qualquer novela <strong>de</strong> cavaleiro an<strong>da</strong>nte po<strong>de</strong> causar prazer e maravilhar, “ha<br />

<strong>de</strong> causar gusto y maravilla a cualquiera que la leyere”. 800 Aqui parece que não está<br />

referindo-se <strong>à</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria que circulam como gênero específico, mas <strong>à</strong><br />

ficção literária. Mais ain<strong>da</strong>, <strong>à</strong> poiesis. Quer dizer que o <strong>pro</strong>bl<strong>em</strong>a não está <strong>em</strong> ser<br />

uma ficção <strong>de</strong> cavaleiros ou não <strong>de</strong> cavaleiros. O que está <strong>em</strong> questão são outras<br />

coisas. Não será a obra, a qual esteja se referindo, a própria obra Dom Quixote <strong>de</strong> la<br />

Mancha? Que também não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a história <strong>de</strong> um cavaleiro, mas<br />

radicalmente diferente <strong>da</strong>quelas que estavam <strong>em</strong> voga no momento.<br />

A leitura <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte po<strong>de</strong> trazer benefícios ao hom<strong>em</strong>, “<strong>de</strong>stierran la<br />

melancolía que tuviere, y le mejoran la condición, si acaso la tiene mala”. 801 Há<br />

dúvi<strong>da</strong> se aqui a obra está sendo vista como <strong>de</strong>tonador <strong>de</strong> prazer, aquela tal fruição<br />

<strong>de</strong> que se fala ao criticar<strong>em</strong>-se os caminhos por on<strong>de</strong> a estética conduziu a arte.<br />

799 Não quero esten<strong>de</strong>r-me nisso (1, L, p.306)<br />

800 Deve causar gosto e maravilha a qu<strong>em</strong> quer que a leia (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

801 Desterram a melancolia que tiver e melhoram sua condição, se por acaso estiver ruim. (Ibi<strong>de</strong>m)


A relação arte-b<strong>em</strong>-estar po<strong>de</strong> ser também resultante <strong>da</strong>s reais benesses <strong>da</strong><br />

literatura. Se consi<strong>de</strong>rarmos a questão do ponto <strong>de</strong> vista do diálogo, este, sendo<br />

abertura, sendo o próprio “entre”, vai possibilitar ao hom<strong>em</strong>, além <strong>de</strong> estar no pleno<br />

exercício <strong>de</strong> sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong> com a abertura <strong>de</strong> mundos que a obra <strong>de</strong> arte<br />

possibilita, estar <strong>em</strong> contato com o ser, não esquecer do ser, não esquecer <strong>de</strong> ouvir<br />

a palavra dos <strong>de</strong>uses que se renova s<strong>em</strong>pre, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que respeita<strong>da</strong> a lei <strong>da</strong> aletheia:<br />

“é <strong>pro</strong>ibido escon<strong>de</strong>r”; “é <strong>pro</strong>ibido <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mostrar”. Para respeitar a lei e não<br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mostrar é preciso que o mostrado se vele.<br />

Nesse caso, a benesse oferta<strong>da</strong> pela arte-ficção é o ser possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, e qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>la se beneficia não experimenta <strong>cura</strong> no sentido<br />

ôntico, experiencia Cura <strong>pro</strong>priamente, aquela <strong>da</strong> qual estão todos os homens <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>.<br />

É possível beneficiar-se <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte <strong>de</strong>sterrando a melancolia e melhorando a condição <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong>, no entanto, <strong>de</strong>la<br />

<strong>de</strong>sfrutar?<br />

O que compl<strong>em</strong>enta a idéia <strong>de</strong> ganho <strong>pro</strong>movido pela literatura é a fala <strong>de</strong> Dom Quixote corroborando os benefícios <strong>da</strong> leitura.<br />

Nesse caso específico, volta a fazer menção <strong>à</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria, retomando o <strong>pro</strong>cedimento do início do capítulo.<br />

Feita a a<strong>pro</strong>ximação, comparando as novelas <strong>de</strong> cavalaria ao seu viver <strong>de</strong> cavaleiro, Dom Quixote diz sentir-se muito beneficiado.<br />

Dentre o muito que teve <strong>de</strong> <strong>pro</strong>veito com a cavalaria, o que mais o tocou foi o fato <strong>de</strong>, não há muito t<strong>em</strong>po, encontrar-se louco trancafiado<br />

numa jaula [trata-se do episódio <strong>em</strong> que Dom Quixote é capturado pelos amigos e vizinhos e reconduzido <strong>à</strong> casa num carro <strong>de</strong> bois fechado<br />

com gra<strong>de</strong>s] e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>, logo a seguir, ver-se rei, graças ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seus braços.<br />

Dom Quixote encerra com o louvor <strong>à</strong> poesia naquilo <strong>de</strong> mais digno que ela oferece ao hom<strong>em</strong>: a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa liber<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r-ser a gratui<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser. Os ex<strong>em</strong>plos: estar preso no carro <strong>de</strong> bois como animal e logo a seguir ser rei<br />

são extr<strong>em</strong>os por on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> transitar o hom<strong>em</strong> – <strong>da</strong> maior pequenez <strong>à</strong> maior gran<strong>de</strong>za. Compreen<strong>de</strong>-se agora a relação entre a “falta”<br />

apresenta<strong>da</strong> por Nóbrega, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro capítulo, e a maior gran<strong>de</strong>za do hom<strong>em</strong>.<br />

Os braços __ “el valor <strong>de</strong> mi brazo” como símbolo do po<strong>de</strong>r que franqueia ao hom<strong>em</strong> a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> __ assum<strong>em</strong> a posição horizontal,<br />

articulando-se com a verticali<strong>da</strong><strong>de</strong> do céu (“pienso, por el valor <strong>de</strong> mi brazo, favorecién<strong>dom</strong>e el cielo”) 802 e <strong>da</strong>rão a Dom Quixote gran<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r (“en pocos días verme rey <strong>de</strong> algún reino”). 803 Compõ<strong>em</strong> a quaterni<strong>da</strong><strong>de</strong> céu-terra-divinos-mortais como imag<strong>em</strong>-questão sugerindo,<br />

talvez, um resgate do sagrado. De igual modo, é possível esten<strong>de</strong>r essa imag<strong>em</strong> <strong>à</strong> dupla Dom Quixote-Sancho. Dom Quixote, alongadíssimo,<br />

representa o movimento ascen<strong>de</strong>nte do hom<strong>em</strong> na terra <strong>em</strong> busca do infinito. Sancho, baixo e gordo, aficcionado pelas coisas <strong>da</strong> terra,<br />

seduzido pelos sentidos, é seu compl<strong>em</strong>ento horizontal <strong>de</strong> extensão e expansão. Inseparáveis, os dois realizam a travessia com os pés<br />

fincados na terra, na busca do autoconhecimento, <strong>em</strong> movimento <strong>de</strong> ascendência e expansão, até o retorno ao Lar. Ou melhor, ao Habitar.<br />

Cui<strong>da</strong>r e erigir. Essas duas ações são a tarefa do hom<strong>em</strong>. Dom Quixote e Sancho, essa dupla <strong>de</strong> mortais, ao mesmo t<strong>em</strong>po que<br />

constrói habita, o habitar que alberga a Quaterni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Nesse trânsito quando entra Sancho dizendo que, mesmo que não consiga ganhar a ilha, soubera haver, naqueles t<strong>em</strong>pos, uma<br />

nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

hay hombres en el mundo que toman en arren<strong>da</strong>miento los estados <strong>de</strong> los señores, y<br />

les <strong>da</strong>n un tanto ca<strong>da</strong> año, y ellos se tienen cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong>l gobierno, y el señor se está a<br />

pierna tendi<strong>da</strong>, gozando <strong>de</strong> la renta que le <strong>da</strong>n, sin <strong>cura</strong>rse <strong>de</strong> otra cosa. 804<br />

Como esta conversa está implícita na discussão sobre a obra <strong>de</strong> arte/novelas <strong>de</strong> cavalaria, pensamos também po<strong>de</strong>r ler o<br />

arren<strong>da</strong>mento, no mesmo t<strong>em</strong>a. É o que Borges faz, eliminando o conceito <strong>de</strong> autoria (<strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong>) <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Feita a obra, a<br />

salvaguar<strong>da</strong> é a própria obra que guar<strong>da</strong> o vigor <strong>da</strong> “historici<strong>da</strong><strong>de</strong> efetiva” e o leitor, por sua vez, aquele que arren<strong>da</strong> a terra __ “estado” __ e<br />

<strong>de</strong>la cui<strong>da</strong> com o seu governo (a ética do cui<strong>da</strong>do). O autor, este <strong>de</strong>saparece. De “pierna tendi<strong>da</strong>, gozando la renta que le <strong>da</strong>n, sin <strong>cura</strong>rse <strong>de</strong><br />

802<br />

Penso, pelo valor <strong>de</strong> meu braço, favorecendo-me o céu (1, L, p.306)<br />

803<br />

Em poucos dias ver-me rei <strong>de</strong> algum reino (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

804<br />

Há homens no mundo que tomam <strong>em</strong> arren<strong>da</strong>mento os estados dos senhores, e lhes dão um tanto ca<strong>da</strong> ano, e eles tomam<br />

cui<strong>da</strong>do do governo, e o senhor está com a perna estica<strong>da</strong>, gozando <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> que lhe dão, s<strong>em</strong> cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> outra<br />

coisa. (1, L, p.306)


otra cosa”. 805 O autor sai <strong>de</strong> cena, fica com as pernas estica<strong>da</strong>s, refestelado, só “recebendo a ren<strong>da</strong>”, s<strong>em</strong> meter-se <strong>em</strong> mais na<strong>da</strong>. Feita a<br />

obra, ela não mais pertence ao autor, é <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong> do leitor.<br />

Finalizar<strong>em</strong>os avaliando o seguinte fragmento: “es muerta la fe sin obras”. 806 O<br />

fragmento, ao mesmo t<strong>em</strong>po que <strong>de</strong>lineia o perfil do hom<strong>em</strong> do Renascimento, a<br />

qu<strong>em</strong> cabe o <strong>pro</strong>duzir obras, o coloca <strong>em</strong> oposição ao hom<strong>em</strong> medieval, para qu<strong>em</strong>,<br />

só restava ter fé, pois sequer havia o conceito <strong>de</strong> autoria. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, ain<strong>da</strong>,<br />

requisita e convoca o hom<strong>em</strong> ao agir que consuma, a um <strong>pro</strong>duzir-se a si mesmo,<br />

fazendo-o ser ca<strong>da</strong> vez mais próprio, fazendo-se obra.<br />

Dom Quixote, só ele pô<strong>de</strong> fazer a travessia porque não se <strong>de</strong>ixou manipular,<br />

entregando-se ao exército espanhol como massa <strong>de</strong> manobra, do mesmo modo<br />

como foi vítima Cervantes. Dom Quixote entra na vi<strong>da</strong> e, ao viver a vi<strong>da</strong><br />

experiencia<strong>da</strong>, acumula viver com arte. É por isso que o seu viver cavaleiro é vi<strong>da</strong> e<br />

ficção. Dom Quixote é vi<strong>da</strong> e é obra.<br />

Conclui-se que “fingir” não é realizar, “fingere” não é o já realizado, mas o<br />

“entre”, o não-ser, a não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por isso o “entre” é fulguração, o lugar do “clarão<br />

rápido”. 807 Entretanto, isso só é possível caso se viva como poiesis.<br />

E o que é viver como poiesis?<br />

Viver como poiesis não é viver tomando para si a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro,<br />

permitindo que no diálogo o “tu” do outro seja prepon<strong>de</strong>rante e pleno. Viver como<br />

poiesis é não permitir que o “entre” – aquele espaço que está reservado para que o<br />

hom<strong>em</strong> exerça a sua maior “gran<strong>de</strong>za”, a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> ser entre-ser, o que o faz<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> – seja preenchido pelo “tu” do outro; preenchimento que interrompe o<br />

diálogo, já que, preenchido assim o “entre”, não é mais diálogo. Viver. Viver como<br />

poiesis é viver a vi<strong>da</strong> experiencia<strong>da</strong>, é viver tendo chegado a travar o auto-diálogo, é<br />

ter chegado a escutar a voz do logos, é ter permitido que o dizer do outro se faça<br />

805<br />

Perna estendi<strong>da</strong>, gozando a ren<strong>da</strong> que lhe dão, s<strong>em</strong> cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> outra coisa (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

806<br />

É morta a fé s<strong>em</strong> obras (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

807<br />

HOLANDA, Aurélio Buarque <strong>de</strong>. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1999, p.949


“clarão rápido”, se faça fulguração. Viver como poiesis é viver sendo abertura plena<br />

e eterna para ser “linguag<strong>em</strong>”, tornando possível que aquele “verbo” que era lá “no<br />

início”, seja.<br />

T<strong>em</strong> todo o sentido que Dom Quixote, <strong>de</strong>pois do tormento que querer saber-<br />

se ser <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e ser <strong>da</strong> ficção __ posição por ele mesmo acumula<strong>da</strong> __ tenha<br />

sido no último momento, iluminado e recebido o “clarão rápido” <strong>da</strong> resposta. Foi tudo<br />

muito rápido, instantâneo. Tão instantâneo que sequer houve t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> resposta.<br />

CONCLUSÃO<br />

Provocados pela voz <strong>de</strong> Dom Quixote que inicia seu caminhar cavaleiresco<br />

dizendo: “Yo sé quien soy”, 808 <strong>de</strong>cidimos investigar tão sugestiva afirmação, e a<br />

questão do ser tornou-se inevitável.<br />

Diante <strong>de</strong>ssa <strong>em</strong>presa, Hei<strong>de</strong>gger, inevitável, também, revelou-se o norte por<br />

excelência, para nos liberar do peso s<strong>em</strong>pre presente nas gran<strong>de</strong>s obras: o estigma<br />

do caos.<br />

Confiantes na orientação, cientes <strong>da</strong> falácia do aparente caos, ou por este<br />

mesmo caos instigados, foi-nos possível optar pelo método hermenêutico que t<strong>em</strong>,<br />

na leitura, a gran<strong>de</strong> estratégia suavizadora do caos com seus <strong>pro</strong>cedimentos <strong>de</strong><br />

a<strong>pro</strong>ximação lenta, amorosa, <strong>de</strong>finitivamente <strong>de</strong>sarma<strong>da</strong>.<br />

Se, como diz Heráclito, no parágrafo 123, a “physis ama escon<strong>de</strong>r-se”,<br />

<strong>de</strong>cidimos respeitar a obra, enquanto natureza também, permitindo que faça ela<br />

mesma o jogo.<br />

808 Eu sei qu<strong>em</strong> sou.


Bastou ficarmos atentos e teve início a abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong>: lenta, <strong>de</strong>spoja<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

qualquer instrumento impositivo e inibidor, impedindo, assim, o troco <strong>da</strong> resistência.<br />

Se com tanta <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, ain<strong>da</strong> assim, traqueja<strong>da</strong> que está <strong>em</strong> dissimular, a obra<br />

não se entrega facilmente, com ela é preciso todo cui<strong>da</strong>do. O próprio Cervantes <strong>de</strong>ra<br />

o alerta, chamando-a “mesa <strong>de</strong> trucos”. 809<br />

Acatamos, assim, a sugestão <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, <strong>de</strong>cidimos abor<strong>da</strong>r a obra<br />

circularmente, <strong>em</strong> círculos que permitiss<strong>em</strong> o máximo possível <strong>de</strong> abrangência e os<br />

chamamos “Périplos”, i<strong>de</strong>ntificando-os com viagens marítimas <strong>de</strong> circunavegação.<br />

B<strong>em</strong> sabíamos ser necessário muita calma e muita espera. A ca<strong>da</strong> volta, muita dis-<br />

puta; a ca<strong>da</strong> dis-puta, muito recolhimento e encolhimento. Como diss<strong>em</strong>os na<br />

introdução: para libertar Aletheia dos séculos <strong>de</strong> cativeiro, só com muito jeito.<br />

À medi<strong>da</strong> que nos a<strong>pro</strong>ximamos <strong>da</strong> obra, o caos vai <strong>da</strong>ndo lugar a<br />

complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. E <strong>da</strong>í tiramos a primeira: bastou insinuar-se o complexo, “yo sé<br />

quien soy” __ ser fi<strong>da</strong>lgo, ser cavaleiro, po<strong>de</strong>r-ser todos os <strong>de</strong>mais cavaleiros, po<strong>de</strong>r-<br />

ser e ser superior a todos “los doce Pares <strong>de</strong> Francia”, 810 __ e, imediatamente, o<br />

i<strong>de</strong>ntificamos com Cura, perceb<strong>em</strong>os o inevitável <strong>da</strong> questão do Ser.<br />

I<strong>de</strong>ntificado Cura, <strong>de</strong>mos início <strong>à</strong> primeira viag<strong>em</strong>. Ao afirmar saber <strong>de</strong> si,<br />

quando menos sabe, o que anuncia Dom Quixote é seu “querer-saber”, seu “querer-<br />

ser”, é “querer fazer-se travessia”. E faz. A pé ou a cavalo, faz a travessia<br />

brilhant<strong>em</strong>ente, permitindo que, <strong>em</strong> segurança, ancoráss<strong>em</strong>os <strong>em</strong> todos os portos.<br />

Des<strong>de</strong> seu nascimento poético, momento <strong>em</strong> que passou a ganhar corpo<br />

realmente, até o sub complexo __ angústia-morte __ , Dom Quixote colocou-se<br />

disponível no mundo, atento que estava ao “ser-<strong>em</strong>” <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger. Tão atento, fiel e<br />

diligente que acabou ultrapassando a medi<strong>da</strong>. Não satisfeito com seu mundo, criou<br />

809 Mesa <strong>de</strong> truques.<br />

810 Os doze Pares <strong>da</strong> França.


dois mundos para “ser”. Superpôs, ao seu, o mundo <strong>da</strong> cavalaria para nele po<strong>de</strong>r<br />

transitar na obliqüi<strong>da</strong><strong>de</strong> exigi<strong>da</strong> pelo “zigue-zague” que precisaria fazer <strong>de</strong> um a<br />

outro mundo.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que era cavaleiro e, com a força do seu braço e o fio <strong>de</strong><br />

sua espa<strong>da</strong> punha <strong>em</strong> prática seu conhecimento <strong>da</strong> cavalaria, “en<strong>de</strong>rezando tuertos<br />

y <strong>de</strong>sfaciendo agravios”, 811 <strong>em</strong> uma palavra: fazendo justiça, tentando consertar um<br />

mundo que se <strong>de</strong>sfazia <strong>em</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e injustiças, ele era também filósofo,<br />

realizando, como camaleão, magnificamente a troca <strong>de</strong> armas. Quando queria ser<br />

filósofo, abandonava a espa<strong>da</strong> e bastava falar, fazer belos discursos, <strong>pro</strong>pagar a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, por exigência absoluta <strong>da</strong> missão que lhe fora confia<strong>da</strong>, <strong>de</strong> perpetuar os<br />

valores e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> república cristã.<br />

Enquanto assim agia, Dom Quixote não se <strong>da</strong>va conta <strong>de</strong> que seu mundo e<br />

todos os que ali viviam estavam mergulhados num petrificado <strong>de</strong> significações<br />

velhas e gastas, <strong>de</strong> tão repeti<strong>da</strong>s. Tudo era conhecido, tudo já publicado, tudo<br />

tornado público, exposto na galeria morta dos significados estabelecidos e por todos<br />

compartilhado. Naquele mundo, na<strong>da</strong> ganhava sentido. Ele mesmo que<br />

enlouquecera, vítima do s<strong>em</strong>-sentido linguajar <strong>da</strong>s novelas <strong>de</strong> cavalaria, esforçando-<br />

se para “enten<strong>de</strong>rlas y <strong>de</strong>sentrañarles sentido”, 812 não percebia que no mundo <strong>da</strong><br />

cavalaria, por ele criado, a estagnação era a mesma, estagnação representa<strong>da</strong><br />

pelas novelas <strong>de</strong> cavalaria <strong>em</strong> constante repetição. E não podia ser diferente pois se<br />

tudo o que havia sobre to<strong>da</strong>s “las or<strong>de</strong>nanzas y leyes <strong>de</strong> la caballería an<strong>da</strong>nte” 813 só<br />

po<strong>de</strong>riam ser encontra<strong>da</strong>s “en el pecho” 814 <strong>de</strong> Dom Quixote, único “<strong>de</strong><strong>pós</strong>ito y<br />

811 Consertando injustiças e <strong>de</strong>sfazendo <strong>de</strong>sacertos.<br />

812 Entendê-las e arrancar-lhes sentido.<br />

813 As regras e leis <strong>da</strong> cavalaria an<strong>da</strong>nte.<br />

814 No peito.


archivo” 815 <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> cavalaria, único <strong>de</strong><strong>pós</strong>ito <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> república<br />

cristã.<br />

A segurança <strong>de</strong>posita<strong>da</strong> na missão e a certeza nas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que o formaram<br />

o faziam reagir <strong>à</strong> qualquer dissonância. Nesse percurso, a <strong>de</strong>cadência é uma<br />

constante: <strong>de</strong>caía como fi<strong>da</strong>lgo, retornando, como todos, insistent<strong>em</strong>ente aos livros<br />

<strong>de</strong> cavalaria. Feito cavaleiro, <strong>de</strong>caía reatando com a prática cavaleiresca, tão logo se<br />

recuperasse <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> <strong>de</strong>rrota, <strong>de</strong>cepção ou dor. Decaía também como filósofo,<br />

ancorando-se no conhecimento do acervo medieval nele cristalizado que lhe <strong>da</strong>va<br />

segurança e estabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Nesse zigue-zague oblíquo, havia espaço para todos os existenciais <strong>de</strong> Cura.<br />

Fun<strong>da</strong>mentais e não fun<strong>da</strong>mentais, todos foram cont<strong>em</strong>plados. Decaía Dom<br />

Quixote, <strong>de</strong>caíam todos, o tédio os obrigava a voltar ao mesmo, ao velho,<br />

estabelecido e petrificado. Decaíam levados pela força do comum e compartilhado,<br />

do “com” <strong>da</strong> co-pre-sença, <strong>de</strong>caíam pelo “junto-<strong>à</strong>(s)” coisas <strong>da</strong> cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>caíam <strong>em</strong> ocupações e pre-ocupações, movidos pela curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> fortíssima no<br />

momento, <strong>de</strong>caíam na ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, no falatório e no escritório que, <strong>em</strong> ca<strong>de</strong>ia se<br />

apresentavam. Decaía Sancho no senso comum, <strong>de</strong>caía Dom Quixote no discurso<br />

or<strong>de</strong>nado, cheio <strong>de</strong> “entendimiento”.<br />

Todos o experimentam, mas só Dom Quixote sai do circuito doentio do tédio,<br />

usa a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, e faz a escolha: sai <strong>da</strong> leitura e vai viver a cavalaria na vi<strong>da</strong><br />

experiencia<strong>da</strong>. Por isso t<strong>em</strong> a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser acometido pela angústia. Ao<br />

colocar <strong>em</strong> confronto os dois mundos superpostos, pô<strong>de</strong> viver o que <strong>pro</strong>vavelmente<br />

não lhe estava permitindo a leitura. Ou foi pela leitura que <strong>de</strong>sejou viver a<br />

cavaleiresca vi<strong>da</strong> experiencia<strong>da</strong>.<br />

815 De<strong>pós</strong>ito e arquivo.


Enquanto Dom Quixote somente lia as novelas <strong>de</strong> cavalaria como fuga do<br />

tédio, repetindo o mesmo mo<strong>de</strong>lo, s<strong>em</strong> que nenhum espaço <strong>de</strong> <strong>pro</strong>vocação exigisse<br />

e impusesse mu<strong>da</strong>nça e transformação, enquanto isso acontecia, estavam todos no<br />

nível <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> simplesmente vivi<strong>da</strong>. O momento, entretanto, já anunciava mu<strong>da</strong>nça. A<br />

dúvi<strong>da</strong> abria espaço para que Descartes a ela se lançasse. Há anseio <strong>de</strong> segurança<br />

e certeza no ar. E Dom Quixote também respira e transpira esse ar cheio <strong>de</strong><br />

novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que, com a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> estabeleci<strong>da</strong>, concorr<strong>em</strong> ao lugar <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Esse contexto é o que, no entanto, impõe o confronto. Na cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong>, a<br />

ca<strong>da</strong> momento Dom Quixote esbarra com outras reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que o obrigam, ain<strong>da</strong><br />

que resistente, a ouvir o outro, a escutar-se.<br />

Na vi<strong>da</strong> experiencia<strong>da</strong>, Dom Quixote, no exercício cotidiano do diálogo,<br />

experimenta o auto-diálogo, ouve a voz do logos, entra <strong>em</strong> contato consigo mesmo<br />

e, <strong>à</strong> medi<strong>da</strong> que ce<strong>de</strong> <strong>à</strong> aprendizag<strong>em</strong> e o novo ganha sentido, renuncia ao<br />

aprendizado velho e s<strong>em</strong> sentido.<br />

No experienciar, esse <strong>pro</strong>cesso se dá paulatinamente, até o momento <strong>em</strong> que<br />

tudo o que conhecia e <strong>em</strong> que acreditava se fragiliza <strong>de</strong> tal modo que cai o último<br />

sustentáculo, fazendo <strong>de</strong>smoronar o po<strong>de</strong>roso edifício medieval-cristão. Dom<br />

Quixote vive a angústia mais radical, marca<strong>da</strong> ficcionalmente por uma febre<br />

altíssima e inexplicável que <strong>de</strong>fine a linha divisória – antes e <strong>de</strong>pois. Dom Quixote,<br />

que antes era Alonso Quijano, toma consciência <strong>da</strong> im<strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong> do cavaleiro e<br />

recupera sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Dom Quixote que antes era louco toma consciência do<br />

impróprio <strong>de</strong> sua lou<strong>cura</strong> e recupera a luci<strong>de</strong>z. Mas, não é só a linha divisória antes<br />

e <strong>de</strong>pois que a angústia estabelece. Além <strong>de</strong>ssa, a <strong>de</strong>-cisão <strong>de</strong> ser pastor revela a<br />

radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> angústia. Além <strong>de</strong> recuperar a <strong>pro</strong>prie<strong>da</strong><strong>de</strong>, na escolha <strong>de</strong> ser<br />

pastor, Dom Quixote <strong>de</strong>ixa aberto um leque <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.


Com essa <strong>de</strong>-cisão, antes <strong>de</strong> morrer, man<strong>da</strong> sua última mensag<strong>em</strong> para todo<br />

o Oci<strong>de</strong>nte: só na travessia, torna-se possível, ao hom<strong>em</strong>, encontrar a sua essência<br />

que é po<strong>de</strong>r-ser to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. E que esse encontro só será franqueado,<br />

graças <strong>à</strong> escuta <strong>da</strong> voz do logos.<br />

No entanto, “la muerte no triunfó”, 816 diz o epitáfio.<br />

Completado o primeiro círculo, cumprido o primeiro Périplo <strong>da</strong> viag<strong>em</strong>, Dom<br />

Quixote a<strong>pro</strong>veitando a brecha <strong>da</strong> morte/não-morte, esgueirando-se, escorre pelo<br />

vão e segue conosco viag<strong>em</strong> no 2 o Périplo.<br />

Como Cura não t<strong>em</strong> fim, Dom Quixote sabe do risco <strong>de</strong> novas <strong>de</strong>cadências,<br />

do mesmo modo que sabe do fluxo <strong>de</strong> novas questões. A posição <strong>em</strong> patamar mais<br />

elevado, o abrir <strong>da</strong> consciência t<strong>em</strong> seu preço: quanto mais amplo o horizonte, mais<br />

se vê, quanto mais se vê, mais questões, quanto mais questões, mais escuta, e<br />

quanto mais se escuta, mais o logos respon<strong>de</strong>. É preciso, portanto, silenciar para<br />

escutar o logos. É preciso estar atento <strong>à</strong> “agitação inquieta que é característica do<br />

ser-aí”, estar atento ao “vaivém do hom<strong>em</strong> no qual ele se afasta do mistério e se<br />

dirige para a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> corrente (...)”. 817<br />

Dom Quixote, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir que uma voz há muito já lhe falava, mesmo<br />

quando ele, ain<strong>da</strong> louco cavaleiro, sequer a percebia e, a ca<strong>da</strong> regresso <strong>à</strong> casa, caía<br />

<strong>em</strong> sono <strong>pro</strong>fundo, foi assim que, reconhecendo a voz, <strong>de</strong>la tornou-se familiar.<br />

Mais sensível, mesmo <strong>de</strong> longe, Dom Quixote pressente a voz e é tomado<br />

por um “querer” incontido que o faz <strong>de</strong>sejar conhecer uma cova – “La cueva <strong>de</strong><br />

Montesinos, um manancial <strong>de</strong> referentes que faz<strong>em</strong> <strong>de</strong>ssa “cueva”, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po que a caverna <strong>de</strong> Platão, a mesma caverna <strong>de</strong> Descartes.<br />

816 A morte não triunfou.<br />

817 Sobre a essência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s,1970, p.42.


A<strong>pro</strong>veitando, concorrer<strong>em</strong>, nessa “cueva”, os dois responsáveis pela<br />

fragmentação que separa mente-corpo, essência-aparência, espírito-corpo,<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro-falso, reconhece Dom Quixote, reconhec<strong>em</strong>os nós que a presença <strong>da</strong><br />

razão radicalmente <strong>em</strong> oposição <strong>à</strong> lou<strong>cura</strong> t<strong>em</strong> a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recru<strong>de</strong>scer essa<br />

cisão, <strong>de</strong> apresentar um quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcertantes paradoxos, on<strong>de</strong> ser parece<br />

não-ser, on<strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> parece não-ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Nessa experiência originária, o Oci<strong>de</strong>nte é mostrado a Dom Quixote, <strong>em</strong><br />

retrospectiva, recompondo o perfil que tomou o pensar no Oci<strong>de</strong>nte. E uma “cueva”<br />

po<strong>de</strong> ser uma mesma caverna: uma “cueva-caverna” metafísica.<br />

Percebe então que fora, ele mesmo, partícipe <strong>da</strong>quele estado <strong>de</strong> coisas, que<br />

na hora <strong>de</strong> acatar a “justiça” socrática, tomando-a como referência <strong>da</strong> justiça que<br />

precisava implantar no mundo <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, não se l<strong>em</strong>brara <strong>da</strong> “justiça” prega<strong>da</strong> por<br />

Anaximandro, numa bela sentença: a justiça natural e espontânea <strong>da</strong> physis.<br />

Percebe que o agir ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro não está na ação <strong>de</strong>smedi<strong>da</strong> e irrefrea<strong>da</strong>. Quando<br />

assim agia, estava louco <strong>em</strong> “sus acciones”. Mas agora Dom Quixote, consciente <strong>de</strong><br />

sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, consciente <strong>da</strong> essência do hom<strong>em</strong>, está habilitado a refletir, a<br />

questionar as questões que, no 1 o Périplo, mesmo s<strong>em</strong> que ele quisesse, já se<br />

impunham ao mundo. Agora, mais maduro, já está apto <strong>à</strong> reflexão. E é o que vai<br />

fazer no 2 o Périplo.<br />

O 2 o Périplo funciona como uma transição, um período <strong>em</strong> que Dom Quixote<br />

está <strong>em</strong> <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> “escuta” para sentir-se habilitado a po<strong>de</strong>r “falar”.<br />

O interior <strong>de</strong> “la cueva” é imag<strong>em</strong>-questão <strong>da</strong> escuta do logos, porque foi o<br />

seu interior que lhe <strong>de</strong>svendou alguns mistérios, mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po, é também<br />

essa revelação, é o conhecimento do que escutou <strong>em</strong> seu interior. A escuta <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> “la cueva-caverna” lhe mostra que, além do Platão <strong>de</strong> todos os platonismos que<br />

trouxeram uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, havia outra ver<strong>da</strong><strong>de</strong> __ era Descartes inaugurando um novo


modo <strong>de</strong> pensar, igualmente fragmentado e portanto metafísico, mas que lhe <strong>da</strong>va a<br />

sensação <strong>de</strong> ser mais ameaçador.<br />

Esse pensar traz consigo uma figura chama<strong>da</strong> “sujeito” que, por conhecer as<br />

estratégias mentais <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> extrair <strong>da</strong>s coisas tudo o que <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> elas<br />

contêm, esse sujeito aprisiona todo o real, colocando-o sob o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu<br />

pensamento, fazendo-o objeto. É quando diss<strong>em</strong>os, no 1 o Périplo, que o simples<br />

“estar-lançado”, o hom<strong>em</strong> o converte <strong>em</strong> “lançar-se” ele mesmo sobre as coisas para<br />

<strong>dom</strong>iná-las. Esse <strong>pro</strong>cesso cresce até a “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”.<br />

Neste Périplo não há ação, não há o agir do fazer. É como se Dom Quixote<br />

estivesse <strong>em</strong> repouso, <strong>de</strong>ixando agir o agir do pensar, um agir meditativo,<br />

extr<strong>em</strong>amente dinâmico, <strong>de</strong> um dinamismo calmo, silencioso. Precisa refletir e esse<br />

refletir é o interpretar. Agora é o hermeneuta e, como tal, precisa <strong>de</strong> silêncio para a<br />

escuta do sagrado.<br />

Dom Quixote percebe as pessoas que interpretaram mal a frase <strong>de</strong> Sileno.<br />

Eram to<strong>da</strong>s <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s, <strong>em</strong>penha<strong>da</strong>s num viver calcado no fazer, no fabricar, num<br />

fazer que já tomava conta até do pensamento. Era um tal <strong>de</strong> “elaborar”, “industriar”,<br />

“arquitetar”, “fabricar”, verbos assim usados literalmente na obra, verbos com uma<br />

única marca s<strong>em</strong>ântica, a <strong>de</strong> referir-se a essa forma <strong>de</strong> pensar.<br />

Dom Quixote percebe que isso já está tão arraigado no hom<strong>em</strong> e na<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que ele o exercita <strong>de</strong> forma tão natural, s<strong>em</strong> <strong>da</strong>r-se conta <strong>de</strong> que está<br />

alimentando um monstro - o gran<strong>de</strong> responsável pelo modo do viver que tomara<br />

conta do viver no Oci<strong>de</strong>nte. De tal modo isso se dá, que é i<strong>de</strong>ntificado como uma<br />

ética aceita e compartilha<strong>da</strong> por todos. Dom Quixote sensível já consegue i<strong>de</strong>ntificar<br />

o cavaleiro com qu<strong>em</strong> precisa travar a luta singular. Se antes tinha algumas dúvi<strong>da</strong>s<br />

entre ser esse cavaleiro a razão, o pensamento cartesiano, ou a metafísica, agora é<br />

capaz <strong>de</strong> enxergar a fisionomia <strong>de</strong>sse perigoso cavaleiro. A Essência <strong>da</strong> Técnica é o


cavaleiro com qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>verá lutar no futuro, um <strong>de</strong>sdobramento do pensar metafísico.<br />

Essa batalha é anuncia<strong>da</strong> no início <strong>da</strong> obra quando, ao mesmo t<strong>em</strong>po que Dom<br />

Quixote <strong>de</strong>scobre ter<strong>em</strong> <strong>da</strong>do fim <strong>à</strong> sua biblioteca, o mesmo sábio encantado<br />

responsável por tal ato lhe anuncia, agen<strong>da</strong>ndo para o futuro a luta inevitável.<br />

Quando apresentamos os personagens observados por Quixote como<br />

material <strong>de</strong> interpretação (os mesmos personagens que interpretaram<br />

equivoca<strong>da</strong>mente as palavras <strong>de</strong> Sileno), os apresentamos todos interferidos já por<br />

algum dos males <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> técnica: ou são infelizes, ou traz<strong>em</strong> a infelici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ou morr<strong>em</strong>. Isso corrobora o aviso <strong>de</strong> Sileno: “É na vi<strong>da</strong> que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> que<br />

buscar a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, o único lugar on<strong>de</strong> ela não está”. Nenhum <strong>de</strong>les, entretanto,<br />

encontra na vi<strong>da</strong> um alento que os anime a viver porque, com o modo <strong>de</strong> pensar<br />

interferido pela essência <strong>da</strong> técnica, o viver já se tornara um viver somente vivido,<br />

s<strong>em</strong> que houvesse nenhuma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do novo. Esgota<strong>da</strong> to<strong>da</strong> a natureza pelo<br />

conhecimento do hom<strong>em</strong> que só se sentia seguro, caso estivesse munido <strong>da</strong>s<br />

certezas, na<strong>da</strong> mais havia, caía-se num abismo s<strong>em</strong> fim. E, como seguir vivendo<br />

num mundo que na<strong>da</strong> mais t<strong>em</strong> a oferecer?<br />

Da experiência <strong>de</strong> “la cueva”, Dom Quixote sai acreditando estar <strong>de</strong> posse <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do seu t<strong>em</strong>po, ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que precisa contar a todos os homens. Com isso<br />

aten<strong>de</strong>rá ao com<strong>pro</strong>misso assumido com Montesinos: contar a todos o que vira <strong>em</strong><br />

seu interior e libertá-los do encantamento do pensar metafísico. “Todos” são aqueles<br />

homens que, <strong>em</strong> frenesi, usavam o pensamento como máquina.<br />

É quando Dom Quixote <strong>de</strong>scobre o “entre” <strong>da</strong>queles paradoxos. É quando se<br />

dá conta <strong>de</strong> que o paradoxo é o próprio “entre”, é quando percebe que o paradoxo<br />

posto no mundo como mera oposição é, nele mesmo que se encontra to<strong>da</strong> a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> abertura, to<strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser possível. É nele que está a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Des<strong>de</strong> o 1 o Périplo, Dom Quixote ficara sabendo do


sentido <strong>da</strong> gran<strong>de</strong>za que assume a “falta” para o hom<strong>em</strong>. A “falta” é o “não-ser, o<br />

máximo <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> para ser. Estar no não-ser é estar no grau máximo <strong>de</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, é estar no mais íntimo <strong>da</strong> essência humana.<br />

Essa possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> não está fora do hom<strong>em</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o 1 o Périplo, muito<br />

corre, muito fala, muito escreve, num fazer <strong>de</strong>scontrolado, agindo um agir sobre o já<br />

existente, sobre o já dito, sobre o já publicado. A possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, como<br />

diz Heráclito no fragmento 123, “o <strong>de</strong>svelado ama velar-se”, está no amor.<br />

Sabe o que dizer, mas o estigma <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong> o inibe, t<strong>em</strong>e não acreditar<strong>em</strong>.<br />

Por isso sua atenção se volta para o como contar. Afinal, “para contar e<br />

<strong>de</strong>sencantar, não basta falar, é preciso “falar”.<br />

Só então, Dom Quixote elabora tudo <strong>em</strong> seu coração. Por amor precisa falar,<br />

contar a boa nova. Ain<strong>da</strong> mais que se l<strong>em</strong>bra do com<strong>pro</strong>misso assumido com<br />

“Montesinos”, o prefeito <strong>de</strong> “la cueva”, <strong>de</strong> contar ao mundo, tudo o que experienciara<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva”. E não é só esse, o com<strong>pro</strong>misso. Resta ain<strong>da</strong>, o <strong>de</strong> libertar<br />

todos os que estão encantados <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> “la cueva” e que <strong>da</strong>li não po<strong>de</strong>m sair,<br />

libertá-los do encantamento.<br />

A viag<strong>em</strong> não acabou. Outro Périplo, outra volta no círculo. O que falta ain<strong>da</strong><br />

recolher, do que ficou encolhido?<br />

É nesse momento que Dom Quixote resolve <strong>pro</strong>sseguir viag<strong>em</strong> e, junto<br />

conosco, entra no 3 o Périplo.<br />

Perceb<strong>em</strong>os que estamos ingressando no terreno <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte,<br />

consi<strong>de</strong>rando alguns referenciais apresentados na própria obra. Um <strong>de</strong>les é o<br />

t<strong>em</strong>po: Dom Quixote a todo o momento lança essa questão do t<strong>em</strong>po como algo que<br />

está s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> aberto como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> futura.<br />

Com tanta responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>: a <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencantar e libertar, a <strong>de</strong> contar ao<br />

mundo a sua própria necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r to<strong>da</strong> “pendência” que percorre ta


obra, a “pendência” <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte que <strong>de</strong>ixa ain<strong>da</strong> no ar o dil<strong>em</strong>a “mentira-<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”, Dom Quixote <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> resolver tudo <strong>de</strong> uma só vez. Com uma só caja<strong>da</strong><strong>da</strong>,<br />

quer matar todos os incômodos “coelhos” <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. “Coelhos” não, o que vai<br />

enfrentar <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dom Quixote, são outros animais simbólicos que traz<strong>em</strong> <strong>à</strong><br />

tona a questão <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Aqueles animais assustadores que estão na<br />

superfície do lago, os mesmos “anfíbios” <strong>de</strong> que nos falou Octavio Paz.<br />

Assustadores, talvez, só na aparência do <strong>de</strong>sconforto paradoxal <strong>de</strong> não ser<strong>em</strong> uma<br />

só coisa, <strong>de</strong> viver<strong>em</strong> na água e na terra, <strong>de</strong> transitar<strong>em</strong> na ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Só quando Dom Quixote resolve aceitar a or<strong>de</strong>m, or<strong>de</strong>m essa que, <strong>em</strong>bora<br />

pareça vin<strong>da</strong> “<strong>de</strong>l canónigo”, com qu<strong>em</strong> estava dialogando sobre ser<strong>em</strong> as novelas<br />

<strong>de</strong> cavalaria, mentira ou ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, só nesse momento, espontânea ela acontece. É<br />

Dom Quixote, ele mesmo qu<strong>em</strong> respon<strong>de</strong>. Respon<strong>de</strong> a si, a sua própria pergunta.<br />

Descobre e põe fim ao dil<strong>em</strong>a que, atormentando a si e a todos, cruzou to<strong>da</strong> obra:<br />

“¿habían <strong>de</strong> ser mentira?” Descobre que, o que essa pergunta estivera todo t<strong>em</strong>po<br />

perseguindo, era a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> metafísica, a mesma que formatou o personag<strong>em</strong>-plágio<br />

<strong>de</strong> Avellane<strong>da</strong> – “Don Quijote el Malo”, Dom Quixote o “Falso”.<br />

A essa pergunta recorrente, “¿habían <strong>de</strong> ser mentira?”, t<strong>em</strong> Dom Quixote a<br />

resposta nas mãos. É Dom Quixote qu<strong>em</strong> vai respon<strong>de</strong>r <strong>de</strong>finitivamente: “léalos”.<br />

“Léalos” é a resposta para o dil<strong>em</strong>a que atormenta Dom Quixote <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

início <strong>da</strong> obra.<br />

É como se dissesse a si mesmo: se quer saber <strong>de</strong> si e <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, se quer<br />

contar algo que viveu, leia-se a si mesmo, no <strong>pro</strong>cesso <strong>de</strong> estar lendo o mundo;<br />

conte-se a si mesmo, contando o mundo.<br />

Dom Quixote percebe, então, que a batalha que precisa travar está mais para<br />

dis-puta do que para batalha. A batalha a ser trava<strong>da</strong> no futuro, é chega<strong>da</strong>, enfim, a


sua hora. E a dis-puta será trava<strong>da</strong> na clareira que se abre <strong>em</strong> nosso t<strong>em</strong>po, no<br />

t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>sta leitura-pesquisa, no t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Com isso fica posta a questão <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Só então Dom<br />

Quixote se dá conta <strong>de</strong> que esse é o “falar” i<strong>de</strong>al que há muito o preocupava. Para<br />

que todos o compreen<strong>de</strong>ss<strong>em</strong>, era preciso falar como obra, era preciso ser obra, era<br />

preciso ser, ele mesmo, um experienciar. Era preciso ser auto-diálogo e consigo<br />

mesmo dialogar __ <strong>de</strong>ixar falar, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, a voz do logos, atento, todo escuta, para<br />

só assim, como obra, abrir-se ao po<strong>de</strong>r-ser.<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra é po<strong>de</strong>r-ser, é ser abertura para ser-no-t<strong>em</strong>po o <strong>de</strong>svelo<br />

Conclui-se, então: tanto a essência do hom<strong>em</strong> é poiesis, como a essência <strong>da</strong><br />

obra é poiesis. A essência do hom<strong>em</strong> e <strong>da</strong> obra-<strong>de</strong>-arte é ser po<strong>de</strong>r-ser, é ser<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, é po<strong>de</strong>r-ser possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Ao se contar, Dom Quixote conta, não só a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao se contar, Dom<br />

Quixote convoca todos os homens a com ele saír<strong>em</strong> <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>de</strong> si mesmos, <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<br />

<strong>cura</strong> <strong>de</strong> sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>à</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong> <strong>de</strong> sua essência que é ser Cura também.


BIBLIOGRAFIA<br />

ARÊAS, James. O <strong>de</strong>lírio dos <strong>de</strong>uses e a lou<strong>cura</strong> dos filósofos. Comum. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Facha, v.11, n.25, p.5-24, jun-<strong>de</strong>z<br />

2005. [impresso]<br />

ARIES, Philippe; DUBY, Georges. História <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>: <strong>da</strong> renascença ao<br />

século <strong>da</strong>s luzes. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1991.<br />

ARRABAL, Fernando. Um escravo chamado Cervantes: um retrato do criador <strong>de</strong><br />

Dom Quixote. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 1999.<br />

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes,1989.<br />

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução <strong>de</strong> J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977.<br />

BASANTA, Angel. Cervantes y la creación <strong>de</strong> la novela mo<strong>de</strong>rna. Madri: Anaya,<br />

1992.<br />

BAUTISTA AVALLE-ARCE, Juan Don Quijote como forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Valencia: Castalia, 1976.<br />

BEAUFRET, Jean. Introdução <strong>à</strong>s filosofias <strong>da</strong> existência. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

1976.<br />

BERARDINELLI, Cleonice. Fernando Pessoa; Martin Hei<strong>de</strong>gger: o poetar pensante.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Uapê, 1994.<br />

BICCA, Luiz. O mesmo e os outros. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras,1999.<br />

BORNHEIM, Gerd. Hei<strong>de</strong>gger: a questão do ser e a dialética. In: ____. O idiota e o<br />

espírito objetivo. Porto Alegre: Globo,1980.<br />

______. Introdução ao filosofar: O Pensamento filosófico <strong>em</strong> bases existenciais.<br />

Porto Alegre: Globo, 1970.<br />

BRANDÃO, Junito. Mitologia grega, vol.1. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

______. ______, vol.2. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

______. ______, vol.3. Petrópolis: Vozes, 2001<br />

CAMPOS, Maria José Rago. Arte e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. São Paulo: Loyola, 1992. (Coleção Filosofia).<br />

CASANOVA, Marco. A Linguag<strong>em</strong> do Acontecimento A<strong>pro</strong>priativo. Revista Natureza<br />

Humana. São Paulo: Escuta / Puc, jul-<strong>de</strong>z 2002.<br />

CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. O acontecer poético: A história literária. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Antares, 1982.<br />

______. A arte <strong>em</strong> questão: as questões <strong>da</strong> arte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2005.<br />

______. O canto <strong>da</strong>s sereias: <strong>da</strong> escuta <strong>à</strong> travessia poética. Art. Fac. Letras –<br />

UFRJ: 2004<br />

CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. A configuração <strong>da</strong> obra como diálogo e escuta. Art.<br />

Fac. Letras – UFRJ: 2007<br />

______. ______. Disponível <strong>em</strong>: Acesso <strong>em</strong>: 25 jul 2007.<br />

______. A construção poética do real. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2004.<br />

______. Édipo e a representação. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2001<br />

______. Ensino <strong>da</strong> literatura e libertação. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Letras. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UFRJ,<br />

2003.<br />

______. O hom<strong>em</strong> <strong>pro</strong>visório no gran<strong>de</strong> ser-tão. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro,1976.<br />

______. Interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong>, dimensões poéticas. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, n.164, 2006


______. Interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong> poética: o “entre”. Art. Fac. Letras. UFRJ: 2006<br />

______. Interdisciplinari<strong>da</strong><strong>de</strong> poética: o “entre”. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, n.164, 2006<br />

______. A leitura e a interpretação, 2005 (mimeo)<br />

______. A linguag<strong>em</strong>. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2005<br />

______. O mito Cura: o apelo e escuta <strong>da</strong> <strong>pro</strong>-<strong>cura</strong>. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2004<br />

______. ______. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2006<br />

______. O mito <strong>de</strong> <strong>cura</strong> e a leitura poético-ontológica. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2006<br />

______. Nosso t<strong>em</strong>po: pequena reflexão. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2001<br />

______. A obra como caos poético. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2000<br />

______. A poesia e o mito <strong>de</strong> <strong>cura</strong>. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2006<br />

______. A poesia e os quatro cui<strong>da</strong>dos. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2006<br />

______. Poética. Revista Vidya. Santa Maria, jan-jun 2000<br />

______. A poética do diálogo. Art. Fac. Letras – UFRJ: 1997<br />

______. Poética <strong>da</strong> leitura. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2003<br />

______. Poética <strong>da</strong> leitura e ensino <strong>da</strong> literatura. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2002<br />

______. Poética e poiesis: a questão <strong>da</strong> interpretação. Fun<strong>da</strong>ção Eng o Antonio <strong>de</strong><br />

Almei<strong>da</strong>. Porto: Vere<strong>da</strong>s, 1999<br />

______. Pós-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> e representação. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2003<br />

______. A <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> e o t<strong>em</strong>po. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2003<br />

______. A questão e os conceitos. Art. Fac. Letras. UFRJ: 2007<br />

______. A questão <strong>da</strong> interpretação. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2000<br />

______. A questão do real. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2000<br />

______. O real e a metafísica. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2001<br />

CASTRO, Manuel Antonio <strong>de</strong>. Representação e mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Art. Fac. Letras –<br />

UFRJ: 2001<br />

______. Sinais <strong>da</strong> <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2003<br />

______. Sobre Descartes. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2001<br />

______. T<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> metamorfose. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

T<strong>em</strong>po Brasileiro,1994.<br />

______. A violência do religioso e do <strong>pro</strong>fano. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Letras. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

UFRJ, 2002<br />

CERVANTES, Miguel <strong>de</strong>. El ingenioso hi<strong>da</strong>lgo Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha. Barcelona: Juventud, 1955.<br />

______. El ingenioso hi<strong>da</strong>lgo Don Quijote <strong>de</strong> la Mancha.<br />

Buenos Aires: Colihue, s/d.<br />

______. ______. Disponível <strong>em</strong>: , versão Projeto Gutenberg. Acesso <strong>em</strong>: 31 jul 2007.<br />

______. ______. Madri: Espasa Calpe, 1986


CHAUÍ, Marilena. Convite <strong>à</strong> filosofia. 17.ed. São Paulo: Ática, 2002.<br />

______. Público, privado, <strong>de</strong>spotismo. In: NOVAES, A<strong>da</strong>uto <strong>de</strong> (Org.). Crise <strong>da</strong> razão. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong> São Paulo, 1992.<br />

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire <strong>de</strong>s symboles: mythes,<br />

rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres. Paris: Seghers et<br />

Jupiter, 1973.<br />

DAMASIO, Antonio. O erro <strong>de</strong> Descartes. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1996.<br />

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Abril Cultural, 1999. (Coleção<br />

Os Pensadores).<br />

DINIZ, Alai Garcia. (Org.). Hispanismo 2004: Literatura Espanhola. Trabalho<br />

apresentado no Congresso Brasileiro <strong>de</strong> Hispanistas. Florianópolis: UFSC, 2004.<br />

DODDS, E.R. Os gregos e o irracional. Lisboa: Gradiva, 1988.<br />

DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia<br />

mo<strong>de</strong>rna. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1993.<br />

DUQUE ESTRADA, Paulo César. Sobre a obra <strong>de</strong> arte como acontecimento <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. O que nos faz pensar. [Periódico] Rio <strong>de</strong> Janeiro: [s.n.], vol. 13, abr 1999.<br />

FERRATER MORA, José. Dicionário <strong>de</strong> Filosofia. Tradução <strong>de</strong> Roberto Leal Ferreira<br />

e Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998.<br />

FIGURELLI, Roberto. A orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte segundo M. Hei<strong>de</strong>gger. Revista<br />

Brasileira <strong>de</strong> Filosofia, [S.l.: s.n.], fascículo 109, 1978.<br />

FOGEL, Gilvan Luiz. A respeito do fazer necessário e inútil __ Ou: do silêncio. In:<br />

SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante (Org.). Por uma Fenomenologia do Silêncio. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 1996<br />

FOLTZ, Bruce V. Habitar a terra: Hei<strong>de</strong>gger, ética ambiental e a metafísica <strong>da</strong><br />

natureza. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.<br />

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: ____. Edição stan<strong>da</strong>rt brasileira <strong>da</strong>s<br />

obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1980.<br />

GADAMER, Hans. A razão na época <strong>da</strong> ciência. Tradução <strong>de</strong> Angela Dias. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, 1983.<br />

GADAMER, Hans. Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e método. Petrópolis: Vozes, 1998.<br />

GARCÍA BACCA, Juan David. Sobre el Quijote y Don Quijote <strong>de</strong> La Mancha.<br />

Barcelona: Anthropos, 1985.<br />

______. ______. Barcelona: Anthropos, 1991.<br />

GILMAN, Stephen. La novela según Cervantes. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1993.<br />

HEIDEGGER, Martin. A doutrina <strong>de</strong> Platão sobre a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tradução <strong>de</strong> Antonio Jardim, 2002 (mimeo)<br />

______. Caminhos <strong>da</strong> floresta. Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 2002.<br />

______. Cartas sobre o humanismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, 1995.<br />

______. Conceitos Fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> Metafísica: Mundo Finitu<strong>de</strong> Solidão. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Forense Universitária, 2003.<br />

______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril<br />

Cultural, 1979.


______. El Arte y el Espacio. Traducción <strong>de</strong> Tulia <strong>de</strong> Dross. Revista Eco. Bogotá,<br />

Colômbia. Tomo 122, Junio 1970.<br />

______. A questão <strong>da</strong> técnica. In: ____. Ensaios e conferências. Tradução <strong>de</strong><br />

Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis:<br />

Vozes, 2002.<br />

______. O fim <strong>da</strong> filosofia e a tarefa do pensamento. Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São<br />

Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).<br />

______. Heráclito. Tradução <strong>de</strong> Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Relume Dumará, 1998.<br />

______. I<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e diferença. Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural,<br />

1973. (Coleção Os Pensadores).<br />

______. Interpretaciones sobre la poesía <strong>de</strong> Höl<strong>de</strong>rlin. Tradução <strong>de</strong> J. Maria<br />

Valver<strong>de</strong>. Barcelona: Ariel, 1983.<br />

______. Introdução <strong>à</strong> Metafísica. Tradução <strong>de</strong> Emmanuel Carneiro Leão. 3.ed. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, 1987.<br />

______. Introducción a la filosofía. Tradução <strong>de</strong> Jiménez Redondo. Madrid:<br />

Universitat <strong>de</strong> València, 2000.<br />

______. Língua <strong>de</strong> tradição e língua técnica. Tradução <strong>de</strong> Mario Botas. Lisboa:<br />

Vega, 1995<br />

______. Nietzsche: metafísica e niilismo. Tradução <strong>de</strong> Marco Antonio Casa Nova.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume Dumará, 2000.<br />

______. A orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Tradução <strong>de</strong> Maria <strong>da</strong> Conceição Costa. Biblioteca<br />

<strong>de</strong> Filosofia Cont<strong>em</strong>porânea. Lisboa: Edições 70, 2000.<br />

HEIDEGGER, Martin. O originário <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte. Tradução <strong>de</strong> Manuel Antônio <strong>de</strong> Castro e I<strong>da</strong>lina Azevedo <strong>da</strong> Silva. 2006<br />

(mimeo).<br />

______. La pregunta por la técnica. In: ____. Conferencias y artículos, Barcelona:<br />

Serbal, 1994.<br />

______. O princípio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Abril<br />

Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).<br />

______. Protocolo do s<strong>em</strong>inário sobre a conferência “T<strong>em</strong>po e ser". Tradução <strong>de</strong><br />

Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).<br />

______. O que é uma coisa? Lisboa: Edições 70, 1992.<br />

______. Que é isto – A filosofia? Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural,<br />

1973. (Coleção Os Pensadores).<br />

______. Que é metafísica? Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.<br />

(Coleção Os Pensadores).<br />

______. S<strong>em</strong>inários <strong>de</strong> Zollikon. Editado por Me<strong>da</strong>r Boss. Tradução <strong>de</strong> Gabriela<br />

Arnhold e Maria <strong>de</strong> Fátima <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> Prado. Petrópolis: Vozes, 2001.<br />

______. Ser e t<strong>em</strong>po. Tradução <strong>de</strong> Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis:<br />

Vozes, 1995, Partes 1 e 2. (Coleção Pensamento Humano)<br />

______. ______. Petrópolis: Vozes, 1998, Parte 1. (Coleção Pensamento Humano)


______. ______. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2002, Parte 1. (Coleção Pensamento<br />

Humano)<br />

______. Sereni<strong>da</strong>d. (Gelassenheit). Versión castellana <strong>de</strong> Yves Zimmermann.<br />

Barcelona: Serbal, 1994.<br />

______. Sobre a essência <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Duas<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s,1970.<br />

______. ______. Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção<br />

Os Pensadores).<br />

______. Sobre o "Humanismo". Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural,<br />

1973. (Coleção Os Pensadores).<br />

______. T<strong>em</strong>po e ser. Tradução <strong>de</strong> Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.<br />

(Coleção Os Pensadores).<br />

______. La Vuelta (Die Kehre). Traducción <strong>de</strong> Francisco Soler. Santiago <strong>de</strong> Chile:<br />

Universitaria, 1993.<br />

HOLANDA, Aurélio Buarque <strong>de</strong>. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo:<br />

Nova Fronteira, 1999.<br />

INWOOD, Michael, Dicionário Hei<strong>de</strong>gger. Tradução <strong>de</strong> Luisa Buarque <strong>de</strong> Holan<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar, 2002.<br />

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do povo grego. São Paulo: Martins Fontes,<br />

2001.<br />

JARDIM, Antonio. A dimensão poética no contexto heg<strong>em</strong>ônico <strong>da</strong> técnica. (mimeo)<br />

JARDIM, Antonio. Os caminhos <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória. cap.3. In: ____. Música: vigência do<br />

pensar poético. Dissertação (Tese <strong>de</strong> Doutorado <strong>em</strong> Poética) __ Ciência <strong>da</strong> Literatura,<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, UFRJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1997.<br />

JOHNSON, Robert A. Hom<strong>em</strong>: A chave do entendimento dos três níveis <strong>da</strong> consciência masculina. São Paulo: Mercuryo,<br />

1994.<br />

KARAGULLA, Shafica. O <strong>de</strong>stino criativo do hom<strong>em</strong>. Tradução <strong>de</strong> J. Treiger. 10.ed.<br />

1.ed. <strong>em</strong> Português. Niterói: Fun<strong>da</strong>ção Cultural Avatar, 1986.<br />

KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. Tradução<br />

<strong>de</strong> Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994.<br />

KÖHLER, Pe. H. Dicionário escolar latino-português. Porto Alegre: Globo [s.d.].<br />

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Apren<strong>de</strong>ndo a pensar. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2000, vol.1<br />

______. Apren<strong>de</strong>ndo a pensar. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2000, vol.2<br />

______. Hei<strong>de</strong>gger e a ética. Revista T<strong>em</strong>po Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: T<strong>em</strong>po Brasileiro, n.157, abr-jun, 2004.<br />

______. Hermenêutica e mito. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Letras n.11. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Fac. <strong>de</strong> Letras, Dept o <strong>de</strong><br />

Letras Anglo-Germânicas, UFRJ, 1995.<br />

______. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio <strong>de</strong> (Org.).<br />

A construção poética do real. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2004.<br />

LYOTARD, Jean-François. O <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rno. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1988.<br />

MADARIAGA, Salvador <strong>de</strong>. Guía <strong>de</strong>l lector <strong>de</strong>l Quijote. Buenos Aires: Su<strong>da</strong>mericana,<br />

1972.


MALDONATO, Mauro. A beira do na<strong>da</strong>. Revista viver, mente e cérebro. [S.l]: Duetto, ano XII, n.148, mai, 2005.<br />

MARAVALL, José Antonio. Antiguos y mo<strong>de</strong>rnos. Madri: Alianza, 1996.<br />

MARCONDES, Danilo e JAPIASSU, Hilton. Dicionário Básico <strong>de</strong> Filosofia. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar, 1991.<br />

MATTOS, Celia Regina <strong>de</strong> Barros. Pedro Páramo, vi<strong>da</strong> e morte <strong>em</strong> r<strong>em</strong>ontag<strong>em</strong>.<br />

Revista Matraga. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UERJ: IFL v.1, n.2/3, p. 58-62, mai-<strong>de</strong>z 1987.<br />

MEDINA, Cr<strong>em</strong>il<strong>da</strong>. Novo pacto <strong>da</strong> ciência. São Paulo: USP, 1991.<br />

MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como uni<strong>da</strong><strong>de</strong>. São Paulo: Annablume, 1999.<br />

MODENESI, Jean Calmon. O Dom Quixote <strong>de</strong> Foucault. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Papers, 2003.<br />

MOLINER, María. Diccionario <strong>de</strong>l uso <strong>de</strong>l Español. Madrid: Gredos, 1987.<br />

NIETZSCHE, F. Sobre a mentira e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> no sentido extra-moral. São Paulo: Abril, 1979. (Coleção Os Pensadores).<br />

______. Sobre a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e a mentira no sentido extra-moral. In: Livro do filósofo.<br />

Porto: Rés, 1984.<br />

NOBREGA, Francisca. Laboratório <strong>de</strong> literatura poética. Ano 1, n.1, março <strong>de</strong> 1998<br />

(mimeo).<br />

NUNES, Benedito. Hei<strong>de</strong>gger & Ser e T<strong>em</strong>po. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2002.<br />

______. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG,<br />

1999.<br />

______. Passag<strong>em</strong> para o poético: filosofia e poesia <strong>em</strong> Hei<strong>de</strong>gger. São Paulo:<br />

Ática, 1986.<br />

O´GORMAN, Edmundo. Crisis y porvenir <strong>de</strong> la Ciencia histórica. México: Imprenta<br />

Universitaria, 1947.<br />

PASQUA, H. Introdução <strong>à</strong> leitura <strong>de</strong> Ser e T<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Martin Hei<strong>de</strong>gger. Tradução<br />

<strong>de</strong> Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. (Coleção Pensamento e Filosofia).<br />

PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993.<br />

PLATÃO. A república. Livro VII. São Paulo: Martin Claret. 2001. (Coleção A obraprima<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> autor).<br />

______. Fedro. Tradução <strong>de</strong> Alex Marins. São Paulo: Martin Claret. 2005. (Coleção A<br />

obra-prima <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> autor).<br />

PORTELLA, Eduardo. Fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> investigação literária. 2.ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

T<strong>em</strong>po Brasileiro, 1974.<br />

PRIGOGINE, Ilya. O fim <strong>da</strong> certeza. In: MENDES, Cândido (Org.). Representação e<br />

complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garamond Universitária, 2003.<br />

RÉE, Jonathan. Hei<strong>de</strong>gger: História e ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> Ser e T<strong>em</strong>po. Tradução <strong>de</strong> José<br />

O. <strong>de</strong> A. Marques e Karen Volobuef. São Paulo: UNESP, 2000. (Coleção Gran<strong>de</strong>s<br />

filósofos).<br />

RICOEUR, Paul. História e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense, 1968.<br />

RIQUER, Martín <strong>de</strong>. A<strong>pro</strong>ximación al Quijote. Barcelona: Tei<strong>de</strong>,<br />

1967.


ROTTERDAM, Erasmo <strong>de</strong>. Elogio <strong>da</strong> lou<strong>cura</strong>. São Paulo: Martin Claret, 2002.<br />

(Coleção A obra-prima <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> autor).<br />

ROUANET, Sergio Paulo. Crise <strong>da</strong> razão. Tradução <strong>de</strong> A<strong>da</strong>uto <strong>de</strong> Novaes. São Paulo: Cia <strong>da</strong>s Letras, 1992.<br />

______. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1987.<br />

ROZA, Luiz Alfredo Garcia. Palavra e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: na filosofia antiga e na psicanálise.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1995.<br />

SAFRANSKI, Rüdiger. Hei<strong>de</strong>gger: um mestre na Al<strong>em</strong>anha entre b<strong>em</strong> e o mal.<br />

Tradução <strong>de</strong> Lya Luft. São Paulo: Geração, 2000.<br />

STEIN, Ernildo. Epist<strong>em</strong>ologia e crítica <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ijuí: Unijuí. 1991.<br />

______. A questão do método na filosofia: um estudo do mo<strong>de</strong>lo Hei<strong>de</strong>ggeriano.<br />

São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 1973.<br />

______. Racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e existência. Rio <strong>de</strong> Janeiro: L&PM, 1988.<br />

STEINER, George. As idéias <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger. Tradução <strong>de</strong> Álvaro Cabral. São Paulo:<br />

Cultrix, 1982.<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Biblioteca e Informação<br />

– SIBI. Manual para elaboração e normatização <strong>de</strong> dissertações e teses. Série<br />

manual <strong>de</strong> <strong>pro</strong>cedimentos, no. 5. 3.ed. rev. atual. e ampl. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UFRJ, 2004.<br />

Disponível <strong>em</strong>: Acesso <strong>em</strong>: 25 ago 2007.<br />

VATTIMO, Gianni. Fim <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>: niilismo e hermenêutica na cultura <strong>pós</strong>mo<strong>de</strong>rna.<br />

Tradução <strong>de</strong> Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1998.<br />

______. Introdução a Hei<strong>de</strong>gger. Tradução <strong>de</strong> João Gama. Biblioteca <strong>de</strong> Filosofia<br />

Cont<strong>em</strong>porânea. Lisboa: Edições 70, 1989.<br />

VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História dos Filósofos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Freitas<br />

Bastos, 1988.<br />

VILAR, Pierre. Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1993<br />

______. El ti<strong>em</strong>po <strong>de</strong>l “Quijote”. In: ____. Crecimiento e<br />

<strong>de</strong>sarrollo: Economía e historia. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 27 jul 2007.<br />

WATT, Ian. Os mitos do individualismo mo<strong>de</strong>rno: Fausto,<br />

Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoé. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar, 1997.<br />

Piaget, 1997.<br />

ZARADER, Marlene. Hei<strong>de</strong>gger e as palavras <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>. Lisboa: Instituto

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!