percursos do artista como agente transformador - UFF
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />
INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA ARTE - PPGCA<br />
Davi Silva Pereira<br />
Utopias possíveis:<br />
<strong>percursos</strong> <strong>do</strong> <strong>artista</strong> <strong>como</strong> <strong>agente</strong> transforma<strong>do</strong>r<br />
Niterói<br />
2011
Davi Silva Pereira<br />
Utopias possíveis:<br />
<strong>percursos</strong> <strong>do</strong> <strong>artista</strong> <strong>como</strong> <strong>agente</strong> transforma<strong>do</strong>r<br />
Dissertação de Mestra<strong>do</strong> apresentada junto ao Programa de<br />
Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal<br />
Fluminense, Área de Concentração Teorias da Arte, Linha de<br />
Pesquisa Estu<strong>do</strong>s Poéticos, para obtenção <strong>do</strong> título de Mestre<br />
em Ciência da Arte.<br />
Orienta<strong>do</strong>r: Prof. Dr. Luiz Sérgio de Oliveira<br />
Niterói<br />
2011<br />
2
Davi Silva Pereira<br />
Utopias possíveis:<br />
<strong>percursos</strong> <strong>do</strong> <strong>artista</strong> <strong>como</strong> <strong>agente</strong> transforma<strong>do</strong>r<br />
Dissertação de Mestra<strong>do</strong> apresentada junto ao Programa de<br />
Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal<br />
Fluminense, Área de Concentração Teorias da Arte, Linha de<br />
Pesquisa Estu<strong>do</strong>s Poéticos, para obtenção <strong>do</strong> título de Mestre<br />
em Ciência da Arte.<br />
3<br />
BANCA EXAMINADORA<br />
Prof. Dr. Luiz Sérgio Oliveira<br />
(Presidente e Orienta<strong>do</strong>r)<br />
Universidade Federal Fluminense - <strong>UFF</strong><br />
Prof. Dr. Luiz Guilherme Vergara<br />
(Membro Interno)<br />
Universidade Federal Fluminense – <strong>UFF</strong><br />
Profa. Dra. Isabela Frade<br />
(Membro Externo)<br />
Universidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro – UERJ
À Juliana,<br />
Luz que ilumina meus dias e minhas noites.<br />
4
5<br />
Agradecimentos<br />
A Luiz Sérgio Oliveira, professor e orienta<strong>do</strong>r, por sua<br />
generosidade, apoio e confiança em to<strong>do</strong>s os<br />
momentos.<br />
Aos professores Isabela Frade e Luiz Guilherme<br />
Vergara, pela sensibilidade ímpar no Exame de<br />
Qualificação e por terem aceito o convite para compor a<br />
Banca Examina<strong>do</strong>ra.<br />
A John McClaine, por me ensinar que nossos olhos<br />
podem brilhar seja qual for a situação.<br />
Aos companheiros da jornada Rio - Machu Picchu, por<br />
proporcionarem os dias mais felizes de minha vida.<br />
Às queridas amigas Bianca Bernar<strong>do</strong> e Cristina Ribas,<br />
por compartilharem o desejo de um mun<strong>do</strong> melhor.<br />
À Lilian Soares, pela amizade e companhia durante os<br />
<strong>do</strong>is anos de Mestra<strong>do</strong>.<br />
Aos meus pais, pelo amor incondicional e pelos<br />
incontáveis esforços para minha formação <strong>como</strong> ser<br />
humano.<br />
Ao grande companheiro Emanuel, por estar sempre ao<br />
meu la<strong>do</strong>.
SUMÁRIO<br />
Introdução 1<br />
1 Esculpin<strong>do</strong> o imaterial 8<br />
1.1 Três vidas 9<br />
1.2 A biophilia beuysiana 16<br />
1.3 O escultor de almas 20<br />
1.4 Serviços de um an-<strong>artista</strong> 26<br />
Utopias Possíveis 33<br />
Arte de/para to<strong>do</strong>s 34<br />
1.5 Vazios de arte, cheios de vida 37<br />
2 O lugar da arte 41<br />
2.1 A cidade que brilha no alto <strong>do</strong> monte 42<br />
2.2 A (im)possibilidade <strong>do</strong> museu <strong>como</strong> abrigo 53<br />
3 Desejo um mun<strong>do</strong> melhor 62<br />
3.1 No corpo um desejo 63<br />
3.2 Do altruísmo das flores 65<br />
O altruísmo <strong>do</strong> <strong>artista</strong> 68<br />
3.3 A fome de to<strong>do</strong>s nós 69<br />
3.4 A possibilidade <strong>do</strong> sonho 72<br />
3.5 A vida em pauta 75<br />
3.6 A potência de agir 80<br />
Conclusão 86<br />
Referências Bibliográficas 88<br />
6
Relação das Figuras<br />
Fig. 1 - Davi Ribeiro<br />
Desejo um mun<strong>do</strong> melhor, 2008.<br />
ação<br />
Fotografia: Juliana Lanhas<br />
Fig. 2 - Davi Ribeiro<br />
Do altruísmo das flores, 2008.<br />
ação<br />
Fotografia: Carolline Tinôco<br />
Fig. 3 - Joseph Beuys<br />
I like America and America likes Me, 1974.<br />
performance<br />
Imagem livre da internet<br />
Figs. 4 e 5 - Cristina Ribas<br />
Troca de azulejos, 2004-2008.<br />
ação<br />
Imagem livre da internet<br />
Fig. 6 - Joseph Beuys<br />
7000 carvalhos, 1982 (em processo).<br />
ação<br />
Imagem livre da internet<br />
Fig. 7 - Davi Ribeiro<br />
Utopias possíveis, 2008.<br />
fotografia<br />
Fig. 8 - Davi Ribeiro<br />
Ruas das bruxas – La Paz, 2009.<br />
Fotografia<br />
1<br />
8<br />
18<br />
29<br />
36<br />
41<br />
49<br />
7
Fig. 9 - Davi Ribeiro<br />
Crianças – La Paz, 2009.<br />
fotografia<br />
Fig. 10 - Davi Ribeiro<br />
Trilha Inca, 2010.<br />
fotografia<br />
Fig. 11 - Davi Ribeiro<br />
Trilha Inca, 2010.<br />
fotografia<br />
Fig. 12 - Davi Ribeiro<br />
A nona parte de um ovo ou beba água com<br />
açucar e vá <strong>do</strong>rmir, 2011.<br />
performance<br />
Fotografia: Arthur Scovino<br />
Fig. 13 - Davi Ribeiro<br />
Do altruísmo das flores, 2008.<br />
ação<br />
Fotografia: Carolline Tinôco<br />
Fig. 14 - Davi Ribeiro<br />
Série Utopias possíveis: PAZ, 2010.<br />
performance<br />
Fotografia: Lilian Soares<br />
Fig. 15 - Davi Ribeiro<br />
Série Utopias possíveis: FELICIDADE, 2009.<br />
fotografia<br />
49<br />
51<br />
52<br />
62<br />
67<br />
76<br />
82<br />
8
PEREIRA, Davi Silva. Utopias possíveis: <strong>percursos</strong> <strong>do</strong> <strong>artista</strong> <strong>como</strong> <strong>agente</strong><br />
transforma<strong>do</strong>r. 2011 (Dissertação de Mestra<strong>do</strong>, Programa de Pós-Graduação em<br />
Ciência da Arte – Universidade Federal Fluminense. Orienta<strong>do</strong>r: Dr Luiz Sérgio de<br />
Oliveira)<br />
RESUMO<br />
A dissertação é estruturada em três capítulos. Por convergência de<br />
pensamentos estabeleceremos um diálogo com as teorias e práticas de<br />
Joseph Beuys, Allan Kaprow e André Comte-Sponville. O <strong>artista</strong> alemão, a<br />
partir de suas construções no pós-guerra, sobretu<strong>do</strong> as que tangenciam o<br />
conceito amplia<strong>do</strong> de arte, escultura social e de que to<strong>do</strong>s somos <strong>artista</strong>s; o<br />
<strong>artista</strong> norte-americano, especialmente no que concerne às suas<br />
considerações acerca <strong>do</strong> an-<strong>artista</strong> e da relação arte e vida; e o filósofo<br />
francês através de seus conceitos a respeito de um possível alcance da<br />
felicidade no mun<strong>do</strong> contemporâneo. As concepções desses <strong>do</strong>is <strong>artista</strong>s-<br />
autores-pesquisa<strong>do</strong>res e <strong>do</strong> filósofo servirão para orientar as investigações<br />
sobre <strong>como</strong> a arte e o <strong>artista</strong> podem se fazer presentes em uma possível<br />
transformação da sociedade, a partir <strong>do</strong> contato com os pequenos<br />
movimentos da vida e seus atores sociais.<br />
Palavras-chave: arte, contemporaneidade, felicidade.<br />
9
PEREIRA, Davi Silva. Utopias possíveis: <strong>percursos</strong> <strong>do</strong> <strong>artista</strong> <strong>como</strong> <strong>agente</strong><br />
transforma<strong>do</strong>r. 2011 (Dissertação de Mestra<strong>do</strong>, Programa de Pós-Graduação em<br />
Ciência da Arte – Universidade Federal Fluminense. Orienta<strong>do</strong>r: Dr Luiz Sérgio de<br />
Oliveira)<br />
Abstract<br />
The thesis is structured into three chapters. Due<br />
to the interlacement of thoughts it will be establish a dialogue among theories<br />
and practices of Joseph Beuys, Allan Kaprow and Andre Comte-<br />
Sponville. The German artist, from its construction in post- war, especially<br />
those that touch the expanded concept of art, social sculpture and the belief<br />
that we are all artists; the American artist, especially in considerations to their<br />
concerns about an-artist and the connection between art and life; and the<br />
French philosopher through his concepts about a possible range<br />
of happiness in the contemporary world. The ideas of these two artists-<br />
authors and researchers and the philosopher will lead investigations about<br />
how art and artist can be present in a possible transformation of society, from<br />
the contact with little movements of life and its social actors.<br />
Keywords: art, contemporaneity, happiness.<br />
10
Introdução<br />
Figura 1 – Davi Ribeiro - Desejo um mun<strong>do</strong> melhor, 2008.<br />
11
Meu primeiro contato com as idéias <strong>do</strong> filósofo contemporâneo francês<br />
André Comte-Sponville se deu no esboço <strong>do</strong> texto que a <strong>artista</strong> Cristina Ribas<br />
desenvolvia para minha exposição individual Desejo um mun<strong>do</strong> melhor. Dizia assim:<br />
“Trata-se de habitar esse universo que é nosso, ou antes, que nos contém, em que<br />
nada é para acreditar, já que tu<strong>do</strong> é para conhecer, em que nada é para esperar, já<br />
que tu<strong>do</strong> é para fazer ou amar.” 1 Desde então A felicidade, desesperadamente<br />
tornou-se livro de cabeceira e a frase citada vagueia por meus pensamentos <strong>como</strong><br />
um mantra. Outra sentença emblemática contida em A felicidade,<br />
desesperadamente é fruto de uma pergunta que ronda (ou poderia rondar) a vida de<br />
qualquer ser humano na Terra: “<strong>como</strong> escapar desse ciclo da frustração e <strong>do</strong> tédio,<br />
da esperança e da decepção? Há várias estratégias possíveis.” 2 Uma dessas<br />
estratégias foi defendida pelo filósofo e servirá de norte para algumas de nossas<br />
questões.<br />
Os três principais verbos empunha<strong>do</strong>s por André Comte-Sponville são<br />
conhecer, fazer e amar. Partin<strong>do</strong> das ações que esses três verbos propõem o<br />
filósofo caminha à procura de uma solução que preencha o vazio - e mais <strong>do</strong> que o<br />
vazio - que possa ir na contramão <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de sofrimento em que o humano<br />
permanentemente se encontra. Para entendermos um pouco melhor as afirmações<br />
de que “nada é para acreditar” e que “nada é para esperar”, precisamos recuperar o<br />
senti<strong>do</strong> da frase que intitula seu livro. Em A felicidade, desesperadamente, o<br />
significa<strong>do</strong> guarda<strong>do</strong> por desespero não é o mesmo usa<strong>do</strong> corriqueiramente, de<br />
aflição extrema, cólera, furor. Ao contrário, o filósofo francês deseja resgatar a noção<br />
de se manter uma postura de não-esperança, ou seja, deseja criar um panorama em<br />
que exista a presença da felicidade conjugada à ausência da esperança. E para que<br />
1 COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.<br />
72.<br />
2 Ibid., p. 38.<br />
12
esse panorama se concretize, três verbos ou três ações se fazem necessários:<br />
conhecer, fazer e amar.<br />
A esperança, segun<strong>do</strong> Comte-Sponville, nos mantém em um esta<strong>do</strong><br />
improdutivo em que nossos pensamentos e desejos têm sempre <strong>como</strong> alvo um<br />
porvir distante e inalcançável. Por outro la<strong>do</strong>, a filosofia <strong>do</strong> desespero nos coloca em<br />
um lugar onde nossos desejos, preocupações, problemas e felicidade encontram-se<br />
sob nossos pés. Ao invés de nos atermos ao passo que daremos alguns metros<br />
adiante, ocupamos nosso tempo com a passada que está acontecen<strong>do</strong> neste exato<br />
momento e somos felizes por isso, comprometi<strong>do</strong>s com as pequenas maravilhas <strong>do</strong><br />
cotidiano da vida, desejan<strong>do</strong> a cada instante o próprio instante, regozijan<strong>do</strong>-nos com<br />
aquilo que temos; o presente nos basta e nos sacia. André Comte-Sponville cita<br />
então o exemplo <strong>do</strong> sábio e sua postura desesperada:<br />
Como esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio<br />
não espera nada. Não que ele saiba tu<strong>do</strong> (ninguém sabe tu<strong>do</strong>), nem<br />
que possa tu<strong>do</strong> (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer<br />
(o sábio, <strong>como</strong> qualquer um, pode ter uma <strong>do</strong>r de dente), mas porque<br />
ele cessou de desejar outra coisa além <strong>do</strong> que sabe, ou <strong>do</strong> que pode,<br />
ou <strong>do</strong> que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e<br />
esse desejo, sempre satisfeito – já que o real, por definição, nunca<br />
falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre<br />
satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o<br />
que se chama felicidade. É também o que se chama amor. 3<br />
A tarefa proposta parece um tanto quanto árdua – visto que talvez<br />
nenhum ser humano na terra seja capaz de cumpri-la - e ao mesmo tempo<br />
extremamente palpável, na medida em que se atem especificamente ao conjunto de<br />
coisas que compõem nossa realidade. Para nos aproximarmos <strong>do</strong> êxito nessa<br />
empreitada devemos, antes de mais nada, agir. A felicidade, de acor<strong>do</strong> com os<br />
3 Ibid., p. 75-76.<br />
13
preceitos <strong>do</strong> filósofo francês, é a meta da filosofia e, consequentemente, da vida. Se<br />
as aplicações práticas dadas à tal teoria pudessem de fato tornar-se verdade,<br />
estaríamos então diante da solução para o objetivo de cada ser humano (alcançar a<br />
felicidade) e, por conseguinte, um pouco mais próximo da possibilidade de um<br />
mun<strong>do</strong> melhor.<br />
A necessidade de uma arte que se pretende transforma<strong>do</strong>ra tem me<br />
acompanha<strong>do</strong> há alguns anos. Ainda criança convivi constantemente com o<br />
universo artístico, através de minha avó, meu pai, meus tios. Ao ingressar na<br />
graduação em Artes, esse convívio tornou-se diário e forte; estava num centro de<br />
produção prática e teórica, pensan<strong>do</strong>, discutin<strong>do</strong> e realizan<strong>do</strong>. Desde tenra idade o<br />
incômo<strong>do</strong> e, ao mesmo tempo, o fascínio com os fazeres artísticos estiveram<br />
sempre presentes. Na faculdade esses sentimentos só fizeram-se acentuar,<br />
proporcionan<strong>do</strong> um embate por diversas vezes – e até hoje – sofri<strong>do</strong>, entre minhas<br />
(in)certezas e o sistema das artes. Isso porque a necessidade de uma utilidade para<br />
o fazer artístico, o anseio por uma arte que estabelecesse relações com os mínimos<br />
fluxos cotidianos da vida, por uma arte que construísse uma base de troca com os<br />
mais varia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mínios da sociedade no intuito de fincar pilares para uma vida<br />
coletiva melhor, ininterruptamente estiveram presentes na construção <strong>do</strong>s meus<br />
ideais acerca da arte.<br />
A pergunta que se segue brotou no desenrolar <strong>do</strong>s pensamentos que a<br />
leitura de A felicidade, desesperadamente suscitou: poderíamos fazer uso <strong>do</strong>s<br />
verbos 4 , que serviram de mote para André Comte-Sponville no campo <strong>do</strong><br />
pensamento filosófico, na vereda <strong>do</strong> produzir e pensar arte? Consideramos tal<br />
questionamento primordial para as discussões na esfera da arte na<br />
4 Conhecer, fazer e amar.<br />
14
contemporaneidade, visto que agendas urgentes se apresentam em uma velocidade<br />
galopante, agendas que, segun<strong>do</strong> nossas convicções, não devem se restringir a<br />
determina<strong>do</strong>s setores da sociedade. Aos <strong>artista</strong>s cabe a tarefa de, ao la<strong>do</strong> de<br />
ambientalistas, cientistas, filósofos, garis, caixas de supermerca<strong>do</strong>, sociólogos,<br />
médicos, professores, pensar alternativas para a transformação positiva da<br />
sociedade e, mais importante ainda, trabalhar no imperativo <strong>do</strong>s verbos conhecer,<br />
fazer e amar, em suma, fazer valer a força da palavra agir em prol da coletividade.<br />
Buscaremos através dessa escrita refletir acerca de algumas alternativas<br />
para a arte na contemporaneidade, direcionan<strong>do</strong> especial atenção àquelas reflexões<br />
em que as produções de arte encontram-se diluídas na vida em seu desejo de uma<br />
guinada frente ao mo<strong>do</strong> <strong>como</strong> nós – humanos - encaramos e afetamos o mun<strong>do</strong>.<br />
Por convergência de pensamentos e <strong>como</strong> ponto de partida de uma<br />
mudança de consciência, Joseph Beuys e Allan Kaprow se fizeram presentes na<br />
pesquisa. Seus projetos se mostraram valiosas contribuições para o campo <strong>do</strong>s<br />
pensamentos artísticos, e mais especificamente, para um pensamento direciona<strong>do</strong><br />
às possíveis transformações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pela arte. Aqui nos interessa não só o rigor<br />
teórico conti<strong>do</strong> nos trabalhos desses <strong>do</strong>is <strong>artista</strong>s, mas o mo<strong>do</strong> <strong>como</strong> encaravam e<br />
produziam arte, e nos diálogos que suas reflexões engendravam com as questões<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e com pensamentos que não se restringiam ao universo artístico.<br />
Sabemos que frente à complexidade <strong>do</strong>s personagens aqui em questão e<br />
a amplitude de suas idéias precisaremos estabelecer sobre que verdades, dentre as<br />
infinitas existentes, iremos nos debruçar. E, acima de tu<strong>do</strong>, estamos cientes de que<br />
construiremos nossa verdade particular contan<strong>do</strong> com a colaboração de figuras<br />
controversas, porém de absoluta relevância para a pesquisa <strong>como</strong> Joseph Beuys,<br />
Allan Kaprow e André Comte-Sponville.<br />
15
No primeiro capítulo abordaremos o embate <strong>do</strong> <strong>artista</strong> com a vida e a<br />
possível dissolução completa das barreiras que apartam esses <strong>do</strong>is universos. Na<br />
verdade, o embate já não deve existir e, sim, um processo de contribuição mútua<br />
entre os diversos setores da sociedade. Para isso debateremos sobre a maneira de<br />
o <strong>artista</strong> enfrentar as dificuldades da imaterialidade da obra no processo artístico e,<br />
mais ainda, fazer dessa imaterialidade seu motor, agin<strong>do</strong> ativamente <strong>como</strong><br />
transforma<strong>do</strong>r social e facilita<strong>do</strong>r das relações humanas.<br />
No segun<strong>do</strong> capítulo discutiremos o lugar dessa arte e desse <strong>artista</strong> pós-<br />
modernos, comprometi<strong>do</strong>s com a defesa de idéias <strong>como</strong> as de Allan Kaprow e<br />
Joseph Beuys e envoltos numa produção pautada nas relações com os distintos<br />
âmbitos da sociedade, tentan<strong>do</strong> entender o lugar desse <strong>artista</strong> e sua arte de maneira<br />
que a eficácia de sua produção simbólica possa de fato contribuir para as<br />
transformações da comunidade na qual está inserida.<br />
No terceiro capítulo, faremos uma análise de minha produção artística,<br />
oportunidade em que algumas questões fundamentais ao trabalho serão tratadas,<br />
atravessada pelos conceitos de Comte-Sponville e seus parceiros. Acima de tu<strong>do</strong>,<br />
estaremos lidan<strong>do</strong> com a vida e seus desejos, problemas e alegrias reais, e<br />
desenfatizan<strong>do</strong> o objeto artístico para atentarmos aos pequenos movimentos<br />
cotidianos muitas vezes relega<strong>do</strong>s a segun<strong>do</strong> plano, mas que podem perfeitamente<br />
ser o estopim das mudanças.<br />
Frente à urgência e ao desejo de se criar um novo mun<strong>do</strong>, afastan<strong>do</strong>-nos<br />
cada vez mais das mazelas contemporâneas, pensar em fazeres artísticos<br />
orienta<strong>do</strong>s a esses anseios, estabelecen<strong>do</strong> um contato íntimo com os matizes da<br />
vida, nos parece ser questão primordial a qualquer campo <strong>do</strong> pensamento. Os ideais<br />
16
de Kaprow e Beuys nos servem de bússola perante essas urgências; os textos 5<br />
desses <strong>artista</strong>s-autores apontam caminhos e possíveis escolhas. Sabemos que<br />
algumas idéias carreiam um caráter seguramente utópico, mas nos enlaçamos e<br />
tomamos <strong>como</strong> nossas suas certezas seguros de que os significa<strong>do</strong>s de utopia 6<br />
possuem alcance muito além <strong>do</strong> trivial.<br />
5 Aqui citamos principalmente A Educação <strong>do</strong> an-<strong>artista</strong> I e II de Allan Kaprow e A revolução somos<br />
nós e Chama<strong>do</strong> para uma alternativa de Joseph Beuys.<br />
6 Ver página 47.<br />
17
Capítulo 1<br />
Esculpin<strong>do</strong> o imaterial<br />
Miséria <strong>do</strong> homem: somente os humanos podem ser<br />
desumanos. Grandeza <strong>do</strong> homem: somente eles podem - e<br />
devem – tornar-se humanos. 7<br />
Figura 2 – Davi Ribeiro - Do altruísmo das flores, 2008.<br />
7 COMTE-SPONVILLE, André. A vida humana. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 17.<br />
18
1.1 Três vidas<br />
Noite de verão, eu e mais oito amigos estávamos no Arco <strong>do</strong> Teles,<br />
famoso lugar da boêmia carioca, localiza<strong>do</strong> no centro da cidade. Uma costela no<br />
bafo com cebolas, aipim e farofa nos foi especialmente preparada e o tradicional<br />
chopp dava o ar de sua graça. As horas passavam sem que sentíssemos (fato<br />
corriqueiro quan<strong>do</strong> se está acompanha<strong>do</strong> por pessoas queridas) e a conversa ficava<br />
cada vez mais gostosa. Quan<strong>do</strong> o relógio marcava por volta de duas da madrugada<br />
surgiu aquele que seria a grande figura da noite. Pés descalços, sem camisa,<br />
aparentan<strong>do</strong> uns 10 anos de idade, carregan<strong>do</strong> consigo toda a malandragem que a<br />
vivência das ruas acarreta. Nossa receptividade, infelizmente, foi aquela <strong>do</strong>s que<br />
encontram-se endureci<strong>do</strong>s pelo dia-a-dia de cidades <strong>como</strong> a <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />
esperan<strong>do</strong> sempre o pior de quem quer que seja. To<strong>do</strong>s obrigatoriamente devem<br />
possuir segundas intenções... Mas o moleque, acostuma<strong>do</strong> a ouvir “não” antes de<br />
fazer qualquer pergunta, não dava importância às nossas testas franzidas; ele<br />
precisava realizar sua performance independentemente <strong>do</strong>s quereres alheios. Para<br />
ajudar a família vendia chicletes, daqueles de marca vagabunda, que em cinco<br />
mastigadas já perdem seu sabor. Cada cartela custava <strong>do</strong>is reais, já que no valor,<br />
<strong>como</strong> ele mesmo disse, “estava embuti<strong>do</strong> seu pé-de-obra”. A qualidade e o preço <strong>do</strong><br />
produto tornaram-se irrelevante frente à desenvoltura <strong>do</strong> menino. O sorriso não o<br />
aban<strong>do</strong>nava, os olhos, incrivelmente brilhantes, pareciam querer conquistar o<br />
mun<strong>do</strong>, e a forma <strong>como</strong> usava palavras e gestos era digna <strong>do</strong>s grandes ora<strong>do</strong>res.<br />
As mulheres à mesa logo se convenceram de que deveriam comprar<br />
aquele “precioso” chiclete e os homens não demoraram muito para seguir os passos<br />
das damas. Conquistan<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s o garoto vendeu oito cartelas de chiclete. Não o<br />
deixamos ir embora, não podíamos; precisávamos saber algo ínfimo que fosse<br />
19
daquela apaixonante criança. Seu nome era John McClaine, homenagem ao<br />
personagem de Bruce Willis na franquia hollywoodiana “Duro de Matar”. A genitora<br />
gostara muito <strong>do</strong> filme em que nada nem ninguém consegue derrubar o policial<br />
durão encarna<strong>do</strong> pelo ator americano. Apesar de engraça<strong>do</strong>, o nome era muito<br />
propício àquele menino cujo mun<strong>do</strong> ao qual pertencia fazia de tu<strong>do</strong> para esmagá-lo<br />
e desacreditá-lo e ele, resistin<strong>do</strong>, persistia em usar sorrisos <strong>como</strong> retribuição.<br />
Morava longe, no município de São João de Meriti, de onde saía to<strong>do</strong>s os dias para<br />
proporcionar um pouco de fé (na vida) aos corações <strong>do</strong>s frequenta<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s bares<br />
<strong>do</strong> centro. Inquieto, precisan<strong>do</strong> vender um pouco mais antes de regressar ao lar,<br />
despediu-se nos contan<strong>do</strong> seu grande sonho: “estudar muito para ser<br />
desembarga<strong>do</strong>r.” Foi embora corren<strong>do</strong> para continuar sua missão. Na mesa<br />
estávamos to<strong>do</strong>s felizes por aquele inespera<strong>do</strong> encontro, torcen<strong>do</strong> para que a<br />
aspiração de McClaine algum dia se realizasse. A lembrança daquele menino tem<br />
servi<strong>do</strong> <strong>como</strong> conforto nos momentos de angústia. Talvez por isso eu lhe conceda a<br />
honra (que é minha de fato) de iniciar este texto.<br />
Oitenta anos antes, para ser mais preciso no dia 12 de maio de 1921,<br />
uma pequena cidade alemã encontra-se coberta de flores. Os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> pacato<br />
recanto andam nas ruas portan<strong>do</strong> sorrisos de quem já deixou no esquecimento os<br />
meses de rigoroso inverno. Agora a vida floresce; em umas das casas de Krefeld,<br />
nasce Joseph Beuys, filho <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>r Josef Jakob Beuys e de Johanna Maria<br />
Margarete Hulsermann. O menino cresceu em Kleve e Rindern talvez sem saber o<br />
que o destino lhe reservara. Seus pais tampouco poderiam imaginar que 22 anos<br />
após o nascimento aquela criança ingressaria na Luftwaffe 8 e participaria <strong>do</strong>s<br />
horrores nazistas. “Felizmente”, em 1944, durante a Segunda Grande Guerra, o<br />
8 Força Aérea Alemã.<br />
20
avião pilota<strong>do</strong> por Beuys caiu enquanto sobrevoava a região da Criméia.<br />
Gravemente feri<strong>do</strong>, foi resgata<strong>do</strong> por tártaros, os nativos daquela região, após<br />
alguns dias de sofrimento na neve. Ali, enrola<strong>do</strong> em gordura animal e feltro, recebeu<br />
a cura, física e espiritual. Regressou à Alemanha para então tornar-se <strong>artista</strong>,<br />
professor e ativista político. Ensinou por toda a vida, produziu trabalhos que<br />
contribuíram para que seu desejo de um mun<strong>do</strong> melhor fosse possível. Em 1986 nos<br />
deixou, certo de que havia cumpri<strong>do</strong> sua missão. Seu lega<strong>do</strong> nos acompanha até<br />
hoje. A história de Beuys talvez não seja em absoluto real, “mas sua lenda deve ser<br />
tomada aqui por seu efeito de verdade, indispensável a qualquer análise de sua<br />
obra, e <strong>como</strong> tal deve ser louvada.” 9 Me atreveria a ir um pouco além: Joseph Beuys<br />
é uma lenda.<br />
Uma das grandes máximas desse <strong>artista</strong> alemão <strong>do</strong> pós-guerra era a de<br />
que “toda pessoa é um <strong>artista</strong>”. Tal asserção, que Beuys carregou junto ao peito por<br />
longos anos, suscita inúmeras interpretações e tantos outros questionamentos. O<br />
que almejava ao expandir a possibilidade de ser <strong>artista</strong> a to<strong>do</strong>s os seres humanos<br />
<strong>do</strong> planeta? E qual é a dimensão da palavra “<strong>artista</strong>” na afirmação?<br />
De início devemos nos desvencilhar da tendência naif, arraigada na<br />
tradição ocidental, de tornar sinônimos os termos “<strong>artista</strong>” e “gênio”. É de praxe<br />
pensarmos o <strong>artista</strong> <strong>como</strong> alguém que nasce <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de um <strong>do</strong>m, divino talvez, e que<br />
a todas as outras pessoas, reles mortais, não está consentida a possibilidade de sê-<br />
lo.<br />
Com freqüência nos deparamos com a idéia de que a maturação <strong>do</strong><br />
talento de um “gênio” é um processo autônomo, “interior”, que<br />
acontece de mo<strong>do</strong> mais ou menos isola<strong>do</strong> <strong>do</strong> destino humano <strong>do</strong><br />
indívíduo em questão. Esta idéia está associada à outra noção<br />
9 BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Editora Cosac e Naify, 2001, p. 12.<br />
21
comum, a de que a criação de grandes obras de arte é independente<br />
da existência social de seu cria<strong>do</strong>r, de seu desenvolvimento e<br />
experiência <strong>como</strong> ser humano no meio de outros seres humanos. 10<br />
As faculdades lhe foram concedidas ainda no ventre materno com o<br />
propósito de saber <strong>do</strong>minar o ofício. O pensamento orienta<strong>do</strong> a esse caminho é o<br />
mesmo que estabelece o <strong>artista</strong> <strong>como</strong> um artífice. Sen<strong>do</strong> assim, define-se o <strong>artista</strong><br />
<strong>como</strong> aquele que, de frente para uma tela, por exemplo, externará to<strong>do</strong>s os seus<br />
sentimentos e reflexões através de sua mão virtuosa, com um mínimo possível de<br />
dificuldade, originan<strong>do</strong> uma obra-prima.<br />
Os escritos de Norbert Elias no livro Mozart, sociologia de um gênio nos<br />
passam grande credibilidade e veracidade pelo mo<strong>do</strong> <strong>como</strong> o autor constrói seu<br />
pensamento acerca da vida <strong>do</strong> compositor Wolfgan Amadeus Mozart. O afastamento<br />
de cerca de 200 anos entre Mozart e Norbert Elias poderia, <strong>como</strong> é costumaz entre<br />
nós, suscitar falsos históricos, mas ao invés de colocar mais fichas no “fato” de que<br />
Mozart foi um grande gênio da humanidade, desde os cinco anos já compon<strong>do</strong>, Elias<br />
pinta um retrato extremamente sóbrio <strong>do</strong> que seriam os anos de existência <strong>do</strong><br />
austríaco.<br />
É verdade que o menino Wolfgan compunha desde ce<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> alvo de<br />
admiração da corte de Salzburgo e de outras cortes européias. O pai de Mozart,<br />
Leopold, era regente-substituto da corte, frustra<strong>do</strong> por sua posição (os músicos,<br />
integrantes da burguesia, eram apenas mais uma classe de trabalha<strong>do</strong>res <strong>como</strong> os<br />
cozinheiros ou copeiros), mas sem coragem de enfrentá-la, submeten<strong>do</strong>-se aos<br />
caprichos da aristocracia. Fez então, para o bem ou para o mal, o que muitos pais<br />
fazem quan<strong>do</strong> seus sonhos de juventude não se materializam: depositou todas as<br />
suas esperanças na educação <strong>do</strong> filho caçula para que, de alguma forma, pudesse<br />
10 ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1995, p.53.<br />
22
através dele satisfazer seus mais íntimos anseios. Encarregou-se da educação<br />
musical de Mozart desde os três anos de idade e, dia após dia, de 1762 (quan<strong>do</strong> a<br />
criança prodígio tinha seis anos) a 1777, Leopold e seu rebento viveram uma rotina<br />
exaustiva, porém extremante gratificante (para o pai), visitan<strong>do</strong> as principais cortes<br />
da Europa e triunfan<strong>do</strong> de maneira freqüente. O sucesso parecia inevitável visto<br />
que, já aos seis anos, Mozart tocava <strong>como</strong> adulto, surpreenden<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong> e a to<strong>do</strong>s.<br />
Contrarian<strong>do</strong> suas próprias expectativas e, especialmente, as de seu pai, Mozart<br />
morre aos 35 anos rejeita<strong>do</strong>, incompreendi<strong>do</strong>, fali<strong>do</strong> e em profun<strong>do</strong> desespero.<br />
Não resta dúvida de que Wolfgan Amadeus Mozart foi uma grande mente<br />
e um <strong>do</strong>s grandes <strong>artista</strong>s de sua época e de todas as épocas, todavia, tal<br />
constatação não nos obriga a dar-lhe o rótulo de gênio. As brincadeiras <strong>do</strong> pequeno<br />
John McClaine são na rua, venden<strong>do</strong> chicletes a pedi<strong>do</strong> de sua mãe; Mozart<br />
(guardemos as devidas proporções) em sua infância tinha <strong>como</strong> brinque<strong>do</strong>s<br />
instrumentos musicais; suas brincadeiras faziam parte <strong>do</strong> projeto paterno de torná-lo<br />
um grande músico. Sabe-se também que foi um ser humano deveras carente e que<br />
a cada ocasião em que satisfazia as vontades de seu pai recebia <strong>como</strong> recompensa<br />
aquilo de que mais necessitava: atenção e, sobretu<strong>do</strong>, amor. Sem negar de forma<br />
alguma sua extraordinária capacidade musical, percebemos que o mun<strong>do</strong> da música<br />
foi o seu universo desde o nascimento; a sociedade, refletida nesse caso<br />
principalmente em seu genitor, lhe impôs esse “far<strong>do</strong>”. Fredric Jameson ao discursar<br />
sobre a Utopia de Thomas More, mais especificamente a respeito <strong>do</strong><br />
desaparecimento das classes, das hierarquias e das desigualdades individuais, nos<br />
oferece uma visão bastante clara dessas construções sociais:<br />
Visto que a natureza humana é histórica antes que natural, produzida<br />
por seres humanos antes que inscrita de forma inata nos genes ou<br />
no DNA, conclui-se que os seres humanos podem mudá-la e que ela<br />
23
não é um destino ou uma fatalidade, mas apenas o resulta<strong>do</strong> da<br />
práxis humana. 11<br />
Ainda pensan<strong>do</strong> em Joseph Beuys e na máxima que serve de<br />
combustível à essa escrita, caminho um pouco mais, em direção à Walter Benjamin<br />
e seu texto O autor <strong>como</strong> produtor. 12 Benjamin nos fala de um tipo de <strong>artista</strong> que<br />
aban<strong>do</strong>nou os preceitos de Clement Greenberg 13 , no tocante à autonomia da arte, e<br />
buscou uma aproximação com os contextos sociais em que está inseri<strong>do</strong>, focan<strong>do</strong><br />
sua atividade “em função <strong>do</strong> que for útil ao proletaria<strong>do</strong>, na luta de classes”. 14<br />
Sem a intenção de julgar os méritos da tese, a mudança de postura que<br />
Benjamin anuncia diluiu a barreira existente entre o <strong>artista</strong> e seu público, numa<br />
espécie de via de mão dupla, onde o especta<strong>do</strong>r é também produtor. O surgimento<br />
de processos colaborativos que atenuaram as distinções entre autor e receptor e,<br />
consequentemente, o germinar da arte <strong>como</strong> ação ampliada no campo da vida nos<br />
permite estabelecer pontos de tangência com o conceito Beuysiano de escultura<br />
social, esgarçan<strong>do</strong>, <strong>como</strong> desejava o <strong>artista</strong> alemão, a definição de arte de mo<strong>do</strong><br />
que to<strong>do</strong>s exercitassem sua “criatividade latente [...] terminan<strong>do</strong> por moldar a<br />
sociedade <strong>do</strong> futuro.” 15 A preocupação de Beuys sempre esteve mais voltada para a<br />
humanidade de seus alunos <strong>do</strong> que para as obras que produziam, procuran<strong>do</strong><br />
estabelecer uma rede de cooperação (palavra de ordem) com o intuito de abarcar<br />
todas as camadas sociais transforman<strong>do</strong> o planeta através da arte; queria retirar a<br />
11<br />
JAMESON, Fredric. Espaço e Imagem: teorias <strong>do</strong> pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro:<br />
Editora UFRJ, 2006, p. 265.<br />
12<br />
BENJAMIN, Walter. O autor <strong>como</strong> produtor. In BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política:<br />
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.<br />
13<br />
Consideramos apenas os conceitos de Walter Benjamin e Clement Greenberg, visto que<br />
cronologicamente os escritos <strong>do</strong> crítico de arte norte-americano são posteriores ao O autor <strong>como</strong><br />
produtor.<br />
14<br />
Ibid., p. 120.<br />
15<br />
GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: <strong>do</strong> futurismo ao presente. São Paulo: Editora<br />
Martins Fontes, 2006, p. 141.<br />
24
arte e os indivíduos da situação de isolamento em que se encontravam, realizan<strong>do</strong>,<br />
para isso, inúmeras ações e conferências.<br />
Beuys acreditava que a arte deveria modificar concretamente a vida das<br />
pessoas, arte era sinônimo de libertação. Com sua premissa (to<strong>do</strong>s são <strong>artista</strong>s)<br />
pretendia mudar o mun<strong>do</strong> que lhe era apresenta<strong>do</strong>. Sen<strong>do</strong> <strong>artista</strong>, a solução que<br />
encontrou para dar vazão à sua volição foi articular um plano visionário político-<br />
social cuja base fundamental é a arte. Vemos, portanto, Beuys vestir todas as suas<br />
facetas (xamã, pedagogo, político, pastor) em suas ações para, no final, convergi-las<br />
em seu objetivo maior: salvar o mun<strong>do</strong>. Numa Europa assolada e horrorizada pela<br />
capacidade humana de destruir, um filho da Alemanha não teria dificuldades em<br />
colocar seu desígnio, dessa vez bem intenciona<strong>do</strong>, em prática. Estimamos (passa<strong>do</strong><br />
e presente uni<strong>do</strong>s em verbo) as verdades da lenda Beuys, estimamos reconciliar o<br />
homem com o mun<strong>do</strong>.<br />
Hoje a vida (num sentin<strong>do</strong> mais amplo) está destroçada. A moral <strong>do</strong><br />
homem está devastada. Não há possibilidade de os <strong>artista</strong>s permanecerem alheios<br />
aos acontecimentos. Uma sociedade de <strong>artista</strong>s (no senti<strong>do</strong> beuysiano <strong>do</strong> termo)<br />
poderia modificar esse panorama. Ou uma comunidade em que a criatividade de<br />
cada um pudesse aflorar em prol de um programa de cooperação mútuo. Criar é<br />
mudar, é desejar o super-homem; não nos moldes daquele persegui<strong>do</strong> por<br />
Nietzsche, mas no âmbito de se buscar um além homem diferente de nós, melhor.<br />
Precisamos nos permitir sonhar (palavra fora de moda), sonhar <strong>como</strong> fez Beuys e<br />
<strong>como</strong> ainda faz o menino John; agir, desejar, não o “desejo <strong>como</strong> carência<br />
(esperança ou paixão)” 16 , mas o “desejo <strong>como</strong> poder ou gozo (prazer ou ação).” 17<br />
16 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Trata<strong>do</strong> das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes,<br />
2007, p. 263.<br />
17 Ibid., p. 263.<br />
25
Dessa maneira poderíamos realizar o “humilde” anseio, ainda distante, <strong>do</strong> pequeno<br />
John McClaine.<br />
1.2 A Biophilia Beuysiana<br />
As brutalidades da II Guerra Mundial fizeram germinar uma consciência<br />
<strong>do</strong> que nós de fato não queremos ver se repetin<strong>do</strong>. A guerra na qual Joseph Beuys<br />
esteve presente deixou 50 milhões de mortos, 28 milhões de mutila<strong>do</strong>s e 150<br />
milhões de desabriga<strong>do</strong>s. Soma<strong>do</strong> a isso foram gastos aproximadamente um trilhão<br />
e meio de dólares a fim de patrocinar a morte. Em determina<strong>do</strong> momento de seu<br />
texto-manifesto Chama<strong>do</strong> para uma alternativa 18 , Beuys discorre sobre o absur<strong>do</strong><br />
desperdício de dinheiro e das faculdades criativas de milhões de pessoas quan<strong>do</strong> a<br />
guerra se faz presente. O <strong>artista</strong> alemão viveu os horrores das batalhas; foi vítima e,<br />
provavelmente também as fez; ele tem conhecimento de causa e, por isso mesmo,<br />
sua palavra tem legitimidade. “Joseph Beuys foi o primeiro <strong>artista</strong> a emergir na<br />
Alemanha pós-guerra e alcançar fama internacional baseada na exploração de sua<br />
identidade germânica.” 19 Carregan<strong>do</strong> consigo o sentimento de culpa pelas<br />
atrocidades <strong>do</strong> Nacional Socialismo de Hitler, precisava redimir e curar a si próprio e<br />
ao povo alemão, almejava reconstruir seu país, mergulha<strong>do</strong> em uma crise coletiva<br />
sem precedente. Mas em 1949, corpo e mente de Beuys entraram em colapso. Ele<br />
nos fala que a profunda crise que se instalou “tornou-se de fato <strong>do</strong>ença, uma<br />
18<br />
Ver NOBLE, Richard. Utopias. Londres: Whitechapel Gallery; Cambridge: The MIT Press, 2009, p.<br />
117.<br />
19<br />
FINEBERG, Jonathan David. Art since 1940: strategies of being. New York: Harry N. Abrams, 2000.<br />
No original: “Joseph Beuys was the first artist to emerge in postwar Germany and achieve<br />
international celebrity based on the exploration of his german identity.”<br />
26
temporada no inferno pela qual toda pessoa criativa deve passar.” 20 E ainda<br />
segun<strong>do</strong> suas próprias palavras,<br />
o aspecto positivo é o princípio de uma nova vida. Tu<strong>do</strong> isso é um<br />
processo terapêutico. Foi uma época em que compreendi o papel<br />
que a arte pode desempenhar apontan<strong>do</strong> os traumas de um tempo e<br />
inician<strong>do</strong> um processo de cura. 21<br />
Em 1955 Joseph Beuys deixa a Academia de Dussel<strong>do</strong>rf a fim de passar<br />
um perío<strong>do</strong> no campo, na fazenda de amigos, em contato com a natureza que lhe<br />
era tão cara, aduban<strong>do</strong> a terra, alimentan<strong>do</strong> os animais. Atribuiu a palavra<br />
whitewashing 22 ao retiro; em profunda depressão, Beuys estava ali para reabilitar-se,<br />
limpar sentimentos de culpa e ansiedade para posteriormente colocar em prática seu<br />
projeto de curar a coletividade.<br />
A queda na Criméia foi a chave que proporcionou o desencadeamento de<br />
to<strong>do</strong> o porvir. Beuys encarou a morte de frente, venceu e, a partir de então, an<strong>do</strong>u<br />
de braços da<strong>do</strong>s com a vida até o fim de seus dias. Alain Borer, citan<strong>do</strong> Mircea<br />
Eliade, apresenta o outro la<strong>do</strong> de uma mesma moeda, ou melhor, outra visão sobre<br />
o mesmo la<strong>do</strong>:<br />
Dir-se-ia que Beuys lendariamente retornou da morte, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> desse<br />
saber superior possuí<strong>do</strong> apenas pelos acidenta<strong>do</strong>s, por aqueles que<br />
retornam <strong>do</strong> além. Essa é a figura <strong>do</strong> xamã nas sociedades<br />
tradicionais, figura que é descrita por Mircea Eliade – sobretu<strong>do</strong> “um<br />
<strong>do</strong>ente que conseguiu curar a si mesmo”, um mestre da morte,<br />
20<br />
Ibid., p. 231. No original: “[...] became a real illness, the season in hell through which every creative<br />
person must go.”<br />
21<br />
Ibid., p. 231. No original: “The positive aspect of this is the start of a new life. The whole thing is a<br />
therapeutic process. For me it was a time when I realized the part the art can play in indicating the<br />
traumas of a time and initiating a healing process.”<br />
22<br />
A expressão “whitewash” é utilizada no senti<strong>do</strong> de “encobrir” algo. No caso, Joseph Beuys lutava,<br />
não só para encobrir, <strong>como</strong> também para se redimir de seu passa<strong>do</strong>.<br />
27
geralmente “escolhi<strong>do</strong>” por um acidente, de preferência insólito,<br />
<strong>como</strong> cair de uma árvore, por exemplo: em suma, cair <strong>do</strong> céu. 23<br />
Figura 3 – Joseph Beuys - I like America and America likes me, 1974.<br />
À frente de Joseph havia duas direções: a alternativa mais plausível e<br />
talvez a mais fácil seria trilhar a estrada que levaria ao amor à morte 24 . Mas Joseph<br />
Beuys quase sempre optou pelos caminhos mais intrica<strong>do</strong>s, pelas vias mais<br />
nebulosas. E dessa vez não foi diferente: na vereda onde decidiu deixar suas<br />
pegadas o amor à vida 25 era o estandarte empunha<strong>do</strong>.<br />
Em determina<strong>do</strong> momento da ação “e em nós... embaixo de nós... terra<br />
abaixo” 26 , Beuys, com os inseparáveis chapéu de feltro e colete, deita no chão e<br />
reclina a cabeça sobre um montante de gordura coloca<strong>do</strong> sobre um pedestal. Seu<br />
23<br />
BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac Naify, 2001, p. 30.<br />
24<br />
Ver NOBLE, Richard. Utopias. Londres: Whitechapel Gallery; Cambridge: The MIT Press, 2009, p.<br />
138-140.<br />
25<br />
Ibid.<br />
26<br />
Ver Figura 85 In BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac Naify, 2001.<br />
28
osto encosta<strong>do</strong> na matéria, os olhos fecha<strong>do</strong>s. Naquele instante sentimos toda sua<br />
ânsia pela vida, seu amor pelo caráter espiritual e matérico da existência. O<br />
encontro com os tártaros em 1944 lhe trouxe um olhar mais atento às propriedades,<br />
simbolismos e funções <strong>do</strong>s materiais (em especial o feltro, o mel e a gordura).<br />
Quan<strong>do</strong> Beuys falava de seu trabalho com a matéria <strong>como</strong> uma<br />
espécie de processo psicológico de auto-cura, ou de suas<br />
performances <strong>como</strong> uma ação psicoanalítica nas quais toda pessoa<br />
poderia participar, ele estava explicitamente reconhecen<strong>do</strong> o papel<br />
terapêutico da arte e sua biophilia. 27<br />
A substância gordura, devi<strong>do</strong> às suas propriedades físico-químicas,<br />
simbolizava para Beuys a metamorfose que ele tanto ambicionava transferir para a<br />
sociedade. Quan<strong>do</strong> Beuys, em sua ação, estabelece esse contato íntimo com a<br />
matéria-prima gordura é <strong>como</strong> se, através desse simples gesto, estivesse bradan<strong>do</strong><br />
a todas as pessoas o seu grito de “guerra”. A certeza de que dentro de cada um nós<br />
está a potência que pode transformar a sociedade sempre o acompanhou.<br />
Por meio de suas ações uniu alunos, estranhos, políticos, ambientalistas,<br />
<strong>artista</strong>s, teóricos. Desejava a cura de um planeta que viu o derramamento de sangue<br />
de seus patriotas 28 . “To<strong>do</strong>s são <strong>artista</strong>s”, ele dizia, <strong>como</strong> se quisesse proferir:<br />
“somos to<strong>do</strong>s humanos, to<strong>do</strong>s iguais”. Como pastor queria, não a subserviência,<br />
mas a confiança de suas ovelhas e “dar a Beuys um voto de confiança é dar vitória à<br />
vida.” 29 Donald Kuspit atribui a Beuys uma biophilia, um amor à vida. Por tu<strong>do</strong> que<br />
passou e sofreu, Beuys perseguiu a cura de si próprio, para que pudesse se per<strong>do</strong>ar<br />
e viver. Cura<strong>do</strong>, mas ainda ven<strong>do</strong> sua “casa” <strong>do</strong>ente, iniciou o cultivo de um novo<br />
27 NOBLE, Richard. Utopias. Londres: Whitechapel Gallery; Cambridge: The MIT Press, 2009, p. 139.<br />
No original: “When Beuys spoke of his work with material as „a sort of psychological process‟ of<br />
self-healing, or of his performances as „a psychoanalytical action in which people could participate‟,<br />
He was explicity acknowledging art‟s therapeutic task and his biophilia.”<br />
28 Entenden<strong>do</strong> <strong>como</strong> patriotas to<strong>do</strong>s aqueles vítimas diretas ou indiretas <strong>do</strong> conflito mundial, alemães<br />
ou não. Uni<strong>do</strong>s pelo laço comum de SER humano.<br />
29 Ibid., p. 140. No original: “To give Beuys a vote of confidence is to give victory to life.”<br />
29
planeta. Para isso precisava iniciar uma revolução social, transforma<strong>do</strong>ra da alma e<br />
da mente de cada pessoa habitante da Terra. No entanto, antes de qualquer coisa o<br />
que to<strong>do</strong>s nós precisávamos era introduzir em nosso âmago, a vontade e a força<br />
presentes na essência de Joseph Beuys.<br />
1.3 O escultor de almas<br />
“Pensar é esculpir”, assim costumava dizer Joseph Beuys quan<strong>do</strong> o tema<br />
em debate era aquele que o acompanhou durante praticamente toda sua vida pós-<br />
segunda guerra. Os fatos ocorri<strong>do</strong>s na vida <strong>do</strong> <strong>artista</strong> alemão nos permitem dizer<br />
que Beuys buscou novas formas de encarar a produção artística, científica, política,<br />
educacional, ambiental <strong>do</strong> homem. Esse novo paradigma originou o termo cria<strong>do</strong> por<br />
ele mesmo de Escultura Social, que “consiste em discussões com numerosos<br />
grupos de pessoas de todas as tendências propensas a estender a definição da arte<br />
e da ciência – a rigor não só a definição, mas a própria prática – fora <strong>do</strong>s âmbitos<br />
específicos de cada ramo.” 30 Com esse dilatamento de instituições antes herméticas,<br />
Beuys procurava “uma nova visão de ambas práticas humanas, sain<strong>do</strong>-se <strong>do</strong><br />
encarceramento reducionista resultante de dezenas de anos de falta de imaginação<br />
e isolamento.” 31 Nessa nova ordem, to<strong>do</strong>s somos <strong>artista</strong>s, uma vez que o que de<br />
mais comum temos é o que em primeiro plano se apresenta: pensar e falar. Beuys é<br />
o preconiza<strong>do</strong>r dessa estrutura desejosa em transformar política em arte.<br />
Traçan<strong>do</strong> um paralelo entre Beuys e o filósofo Friedrich Nietzsche,<br />
constatamos que as intenções <strong>do</strong> <strong>artista</strong> alemão tocam os desejos de Nietzsche<br />
30 GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 131.<br />
31 Ibid., p. 131.<br />
30
efleti<strong>do</strong>s em seu personagem Zaratustra. Desesperança<strong>do</strong>s com a sociedade que<br />
lhes era apresentada, implementaram um novo código de ética, “superior” ao em<br />
voga, que proporcionaria o surgimento de um além homem. Para Nietzsche,<br />
conforme aponta<strong>do</strong> Pierre Héber-Suffrin<br />
era esse super-homem que, leva<strong>do</strong> pela nova virtude de uma nova<br />
moral, a vontade de potência, iria proceder à segunda etapa da<br />
transmutação <strong>do</strong>s valores, isto é, à criação de novos valores, valores<br />
novos pelo fato de que nenhum ser transcendente estará presente<br />
para impô-los. 32<br />
Angustia<strong>do</strong> e em crise devi<strong>do</strong> às barbaridades que viveu em combate,<br />
Beuys apoiou sua produção na busca dessa nova moral que pudesse acordar o<br />
homem <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de torpor em que se encontrava e o movesse para a construção<br />
da sociedade vin<strong>do</strong>ura, por meio de programas colaborativos, onde conceitos<br />
tradicionais de arte eram esgarça<strong>do</strong>s e diluí<strong>do</strong>s, agregan<strong>do</strong>-se aos mais varia<strong>do</strong>s<br />
setores da sociedade. Nietzsche, bem <strong>como</strong> Beuys, “empreende uma contestação<br />
radical de toda a nossa cultura, com o ambicioso projeto de substituí-la por uma<br />
outra tão diferente ou superior que se pode dizê-la super-humana.” 33<br />
De fato, é real que Joseph Beuys nunca citou o super-homem<br />
nietzschiano <strong>como</strong> uma de suas inspirações, mas não podemos deixar de ver<br />
semelhanças entre seus pensamentos no tocante a uma reestruturação de um<br />
planeta enfermo e em decadência. O super-homem é tu<strong>do</strong> aquilo que o homem<br />
poderia ser, é a centelha de uma potência guardada em nosso imo. O que Beuys<br />
quer de nós, quan<strong>do</strong> diz que “to<strong>do</strong>s somos <strong>artista</strong>s”, é acender essa centelha a fim<br />
de, por meio <strong>do</strong> exercício de nossa inventividade, oculta nos mais recônditos<br />
32 HÉBER-S<strong>UFF</strong>RIN, Pierre. O “Zaratustra” de Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 35. A<br />
respeito <strong>do</strong>s conceitos conti<strong>do</strong>s na sentença ver página 145.<br />
33 Ibid., p. 38.<br />
31
lugares, construirmos um mun<strong>do</strong> melhor. Para alcançarmos o super-homem,<br />
esculpi<strong>do</strong> pelas idéias de seu precursor, devemos primeiramente saber ouvi-lo:<br />
“precisamos revolucionar o pensamento humano. Antes de mais nada, toda<br />
revolução ocorre no interior <strong>do</strong> ser humano. Quan<strong>do</strong> o homem é realmente livre e<br />
criativo, capaz de produzir algo de novo e original, ele pode revolucionar o tempo.” 34<br />
Com Beuys o conceito de arte tornou-se muito mais amplo. Considerava<br />
não apenas suas ações, performances e esculturas <strong>como</strong> pertencentes ao campo<br />
das produções de um <strong>artista</strong>. Suas aparições em conferências ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e<br />
as aulas que ministrava da Universidade de Dussel<strong>do</strong>rf também entraram no rol das<br />
experiências possíveis a um <strong>artista</strong>. O <strong>artista</strong> seria aquele cuja visão de mun<strong>do</strong> e<br />
pensamento estariam volta<strong>do</strong>s a um trabalho cooperativo de mudança <strong>do</strong> status quo<br />
vigente. Como Suzi Gablik explicita, “a atividade criativa deve estar direcionada para<br />
responder uma necessidade cultural coletiva em vez de um desejo pessoal de auto-<br />
expressão” 35 . Tal mudança de paradigma provocou um esvaziamento <strong>do</strong> culto às<br />
imagens e, por conseguinte, <strong>do</strong> estatuto das obras de arte. Os espaços<br />
institucionais, então, tornaram-se limita<strong>do</strong>s para uma arte pautada nas formas de<br />
comunicação social e que tratava das discussões <strong>do</strong> homem em cultura. Essa ação<br />
ampliada da arte no campo da vida, enxergada claramente na idéia de Escultura<br />
Social, fez emergir um novo tipo de <strong>artista</strong>, o <strong>artista</strong> <strong>como</strong> <strong>agente</strong> político e social. O<br />
“novo” <strong>artista</strong> será aquele que, sem relegar a segun<strong>do</strong> plano a articulação de alguma<br />
poesia, provocará uma aproximação entre sua prática artística e a comunidade na<br />
qual está inseri<strong>do</strong>; o <strong>artista</strong> não é mais solitário, to<strong>do</strong>s somos <strong>artista</strong>s.<br />
34<br />
GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: <strong>do</strong> futurismo ao presente. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2006, p. 139.<br />
35<br />
GABLIK, Suzi. The Reenchantment of Art. Nova York: Thames and Hudson, 2002, p. 1.<br />
32
Beuys assumiu papel de protagonista na “tarefa coletiva de “reencantar”<br />
nossa cultura” 36 . Concluiu, então, que a arte poderia ser o instrumento de que<br />
necessitava para realizar seu desejo de metamorfose <strong>do</strong> ser humano. Defenden<strong>do</strong><br />
por toda a vida sua crença na arte e na afirmação de que to<strong>do</strong> ser humano é um<br />
<strong>artista</strong>, encarnou as mais variadas funções para colocar em prática seu programa.<br />
Suzy Gablik nos serve mais uma vez <strong>como</strong> referência quan<strong>do</strong> discorre que<br />
Hoje, permanecer distante tem implicações perigosas. Estamos<br />
to<strong>do</strong>s juntos no mesmo anfiteatro global. Não há mais qualquer<br />
margem. As estruturas sociais e psíquicas nas quais vivemos se<br />
transformaram em extremamente antiecológicas, insalubres e<br />
destrutivas. Existe a necessidade de novas formas que enfatizem<br />
nossa interconexão essencial em vez de nossa separação, formas<br />
que evoquem o sentimento de pertencimento a um to<strong>do</strong> mais amplo<br />
em vez de expressar o “eu” isola<strong>do</strong>, aliena<strong>do</strong>. 37<br />
Dessa maneira, precisamos aprender a habitar melhor o mun<strong>do</strong>. Como<br />
Beuys afirmava e colocava em prática, e <strong>como</strong> Suzy Gablik parece reforçar,<br />
carecemos de um projeto em que utilizemos o potencial das interações humanas em<br />
defesa de nossa própria humanidade perdida. Precisamos, portanto, estar atentos<br />
aos mais ínfimos movimentos que nos são apresenta<strong>do</strong>s pela vida, de mo<strong>do</strong> que ao<br />
direcionarmos nossa atenção aos pequenos fluxos <strong>do</strong> cotidiano, ao despendermos<br />
energia e cuida<strong>do</strong> às microestruturas, estaremos modifican<strong>do</strong> concretamente as<br />
macroestruturas. Como Beuys mesmo declara: “a revolução somos nós, artífices-<br />
<strong>artista</strong>s <strong>do</strong> cotidiano da vida” 38<br />
Em suas ações coletivas, o <strong>artista</strong> alemão estava à procura <strong>do</strong><br />
compartilhamento de idéias, onde pudesse impregnar uma reumanização <strong>do</strong> ser<br />
36 Ibid., p. 3.<br />
37 Ibid., p. 3.<br />
38 Os Múltiplos Beuys: Joseph Beuys na coleção Paola Colacurcio. São Paulo: Museu de Arte<br />
Contemporânea da USP; Centro Cultural FIESP, 2000, p. 8.<br />
33
humano, onde conseguisse alcançar um esta<strong>do</strong> de desalienação da coletividade.<br />
Estava sempre em processo de trocas discursivas e negociações, uma vez que “a<br />
prática da arte em Beuys se dá sempre pela vontade, pelo pensamento e sentimento<br />
<strong>como</strong> mo<strong>do</strong> de realizar a vida.” 39 Seja <strong>como</strong> professor em Dussel<strong>do</strong>rf, na<br />
Universidade Internacional Livre, no Parti<strong>do</strong> Verde Alemão ou na Documenta de<br />
Kassel, Joseph propunha um alargamento das definições de arte para fazer emergir<br />
a evidência de que esta era o único poder evolucionário-revolucionário capaz de<br />
desmantelar os efeitos repressivos de um sistema social senil a fim de construir um<br />
organismo social profícuo e pulsante.<br />
Como um revolucionário solitário, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> apenas <strong>do</strong>s seus preceitos e<br />
intenções, Joseph Beuys prega liberdade, igualdade e solidariedade em busca da<br />
dignidade <strong>do</strong> homem; em especial uma necessidade básica, dentre as três que<br />
segun<strong>do</strong> Beuys a humanidade abraça ou deve abraçar, nos chama a atenção:<br />
Ele (o homem) quer DESENVOLVER LIVREMENTE suas faculdades<br />
e sua personalidade e colocar em uso suas capacidades, juntamente<br />
com as de seus companheiros, COM LIBERDADE para um propósito<br />
que ele tenha considera<strong>do</strong> SIGNIFICATIVO. 40<br />
A Universidade Internacional Livre, fundada por Beuys em 1974, seria o<br />
local de encontro dessas idéias; lugar de diálogo e discussão das questões<br />
importantes ao futuro da humanidade e de propulsão e propagação dessas idéias<br />
para a sociedade <strong>como</strong> um to<strong>do</strong>. Em determina<strong>do</strong> momento, Beuys nos fala:<br />
“Escultura Social / Arquitetura Social só irá alcançar fruição quan<strong>do</strong> cada ser vivo se<br />
39 Ibid., p. 9.<br />
40 NOBLE, Richard. Utopias. Londres: Whitechapel Gallery; Cambridge: The MIT Press, 2009, p. 118.<br />
No original: “He wants to DEVELOP FREELY his faculties and his personality and to put to use his<br />
capacities, jointly with the capacities oh his fellow men, FREELY for a purpose which he hás<br />
recognized to de MEANINGFUL.”<br />
34
tornar um cria<strong>do</strong>r, escultor ou arquiteto <strong>do</strong> organismo social” 41 , e completa: “mas<br />
tu<strong>do</strong> isso, e muito <strong>do</strong> que ainda é inexplora<strong>do</strong>, deve primeiramente fazer parte de<br />
nossa consciência.” 42 Podemos dizer que a sociedade, refletida nos acontecimentos<br />
que nos movem e nos moldam, conduziu Beuys às reflexões que o motivaram em<br />
seus atos artísticos, educacionais, ambientais e, sobretu<strong>do</strong>, políticos. Antes de tu<strong>do</strong>,<br />
Joseph Beuys é um ser político, desejoso de mudanças para si e seu próximo.<br />
Voltan<strong>do</strong> os olhos para seu lega<strong>do</strong> vemos que a arte de Beuys “pretende reconstituir<br />
espiritualmente a unidade <strong>do</strong> homem, devolver-lhe a energia e tensão para<br />
transformar sua relação com o mun<strong>do</strong>.” 43 Sua vida está voltada para o coletivo;<br />
Joseph necessitava trabalhar junto, viver junto, sonhar junto, seu projeto era para<br />
to<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s aqueles que <strong>como</strong> ele aspiram ao super-homem, compartilhar,<br />
comunicar, trocar, criar e construir, mais uma vez juntos, o que nos faz lembrar de<br />
algumas palavras de Stephen Wright: “O que poderia ser mais satisfatório, mais<br />
revigorante que a felicidade pública experimentada na ação coletiva?” 44 A resposta<br />
pode estar em Joseph Beuys.<br />
41<br />
Ibid., p. 114. No original: “Social Sculpture / Social Architecture will only reach fruition when every<br />
living person becomes a creator, a sculptor or architect of the social organism.”<br />
42<br />
Ibid., p. 114. No original: “But all this, and much that is as yet unexplored, hás first to form part of our<br />
consciousness.”<br />
43<br />
Os Múltiplos Beuys: Joseph Beuys na coleção Paola Colacurcio. São Paulo: Museu de Arte<br />
Contemporânea da USP; Centro Cultural FIESP, 2000, p. 10.<br />
44<br />
WRIGHT, Stephen. The Delicate Essence of Artistic Collaboration. Lon<strong>do</strong>n: Third Text, Vol. 18,<br />
Issue 6, 2004, p. 533.<br />
35
1.4 Serviços de um an-<strong>artista</strong><br />
De acor<strong>do</strong> com as palavras de Alain Borer: “é importante perceber que a<br />
“escultura social”, assim <strong>como</strong> a fórmula “To<strong>do</strong> homem é um <strong>artista</strong>”, implicam<br />
logicamente e radicalmente a impossibilidade de admitir a obra individual...” 45 Talvez<br />
a maior contribuição de Beuys tenha si<strong>do</strong> abrir mão da condição de <strong>artista</strong>, nas<br />
acepções tradicionais <strong>do</strong> termo, para direcionar suas energias com o propósito de<br />
nos servir. Seu trabalho realiza<strong>do</strong> para a Documenta de Kassel de 1982, “7000<br />
carvalhos”, traduz sua disposição em buscar um objetivo coletivo maior; após quase<br />
trinta anos o trabalho continua reverberan<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>como</strong> na cidade de<br />
Nova York, por exemplo, onde “7000 carvalhos” (Fig. 6) cobre(m) toda a extensão da<br />
West 22nd Street.<br />
No dicionário Houaiss uma das definições atribuídas ao verbete trabalho<br />
é: “atividade produtiva ou criativa, exercida para um determina<strong>do</strong> fim.” Para Joseph<br />
Beuys, a noção de Escultura Social estava intimamente conectada à idéia de<br />
exercermos nossa criatividade com o objetivo de mudar a sociedade; ele exerce<br />
uma atividade criativa com uma intenção clara: Beuys trabalha. A propósito da arte<br />
<strong>como</strong> trabalho / serviço e suas possíveis implicações trazemos à tona o pensamento<br />
a seguir:<br />
O que acontece com a arte em uma sociedade onde to<strong>do</strong>s se<br />
tornam cria<strong>do</strong>res? A idéia de profanar a arte no mun<strong>do</strong>, pela<br />
proposição <strong>do</strong> <strong>artista</strong> <strong>como</strong> um trabalha<strong>do</strong>r, pode ser vista, contu<strong>do</strong>,<br />
de forma negativa. Poderia forçar uma desaparição, na sociedade,<br />
das experiências sensíveis, tal <strong>como</strong> numa <strong>do</strong>minação totalitária de<br />
governo que sobre-significaria uniformemente a religiosidade, a<br />
economia, a cultura. Mas, na ficção da produção artística, a elipse da<br />
45 BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac Naify, 2001, p. 33.<br />
36
arte <strong>como</strong> trabalho no âmbito de um discurso e, portanto o desfecho<br />
<strong>do</strong> me<strong>do</strong> de seu desaparecimento pode ser trava<strong>do</strong> da mesma forma<br />
que, se tu<strong>do</strong> é trabalho, também nada o é.<br />
O desejo de ver o <strong>artista</strong> <strong>como</strong> um profissional (trabalho autônomo)<br />
relaciona<strong>do</strong> aos demais em uma cadeia de colaboração seguramente<br />
refere-se à procura de um valor social para as artes, de um valor de<br />
uso a princípio por fora da valoração econômica, que pode, contu<strong>do</strong>,<br />
passar pelo exercício desta valoração (ou por uma mesura) para<br />
tentar encontrar este valor (e ou expulsar-se dele). 46<br />
Talvez seja o caso de ver o <strong>artista</strong>, antes de tu<strong>do</strong>, <strong>como</strong> alguém que pode<br />
estabelecer uma relação de troca com os demais trabalha<strong>do</strong>res da sociedade<br />
trazen<strong>do</strong> o seu fazer para um patamar mais baixo, fora <strong>do</strong> palco ou <strong>do</strong> altar, sem<br />
que isso represente uma diminuição da relevância <strong>do</strong> trabalho artístico na<br />
constituição de vínculos mais horizontaliza<strong>do</strong>s que agregarão valor à sua produção.<br />
A questão <strong>do</strong> valor (nas) das artes é um ponto crucial a que chegamos e<br />
que vai direcionar nosso pensamento por agora. Mais que qualquer valoração de<br />
caráter monetário, econômico ou quantitativo o que de fato nos é caro e que nos<br />
interessa no momento é a dimensão qualitativa, é o valor imensurável, subjetivo, que<br />
pode ser agrega<strong>do</strong> à produção artística. O referi<strong>do</strong> lega<strong>do</strong> imaterial a que podemos<br />
nos dedicar em arte na forma de afetos, cooperações, colaborações, nos traz à<br />
produção e à história de um trabalho específico de uma <strong>artista</strong> brasileira: Certa tarde<br />
de <strong>do</strong>mingo Bianca Bernar<strong>do</strong>, parceira, <strong>artista</strong> visual e pesquisa<strong>do</strong>ra, abriu as portas<br />
de sua casa para receber Cristina Ribas, igualmente <strong>artista</strong> visual e pesquisa<strong>do</strong>ra.<br />
Haviam combina<strong>do</strong> alguns dias antes a visita, o que permitiria à Bia exercer to<strong>do</strong>s os<br />
seus conheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong>tes de ótima anfitriã. Na mesa, pães, bolos e geléias, daqueles<br />
46 RIBAS, Cristina. Trabalho-operação: Disponível em<br />
http://azulejista.wordpress.com/cristin/escritos/trabalho-operacao/. Acessa<strong>do</strong> no dia 27 de<br />
setembro de 2010.<br />
37
que saboreamos quan<strong>do</strong> temos a oportunidade de viajar para cidades <strong>do</strong> interior. A<br />
avó de Bia, a pedi<strong>do</strong> da neta, fez especialmente para a ocasião o delicioso pão<br />
caseiro português, cuja receita é guardada a sete chaves e passada de geração em<br />
geração. Cris chegou por volta das 15h, tocou a campainha; trocaram os primeiros<br />
sorrisos ali mesmo, uma no portão, a outra na janela. Depois de um longo abraço<br />
ainda na porta, Bianca encarregou-se de preparar um chá de camomila para<br />
confortar a conversa que fluiu agradavelmente <strong>como</strong> de costume, em meio a<br />
dezenas de livros de arte. Cris estava na casa de Bia com o intuito de realizar um de<br />
seus trabalhos, denomina<strong>do</strong> Troca de azulejos. Ela, autoproclamada a propositora,<br />
troca um azulejo da casa <strong>do</strong> participa<strong>do</strong>r por outro de cor azul, estabelecen<strong>do</strong> uma<br />
espécie de destruição criativa. A proposta de Cris coloca em movimento uma<br />
engrenagem originan<strong>do</strong> um campo afetivo em que a dimensão das palavras “<strong>artista</strong>”<br />
e “especta<strong>do</strong>r” tornam-se sem importância. Bianca é amiga de Cristina, mas não<br />
precisaria sê-la; na premissa de sua ação Cristina descreve:<br />
Demorar-se na casa de conheci<strong>do</strong>s e desconheci<strong>do</strong>s, saber das<br />
histórias de suas moradas, intervir na “pele da casa” (Bianca<br />
Bernar<strong>do</strong>), pensar a cidade e o espaço urbano de outra forma<br />
diferentes das intervenções que acontecem em grande parte no<br />
espaço “público” da cidade e raramente constituem um ambiente de<br />
troca de tempo prolonga<strong>do</strong> que permita a relação intersubjetiva entre<br />
propositor e participa<strong>do</strong>r. 47<br />
Relacionar-se com o outro e sua casa (preciosa para aquele que abriga) é<br />
questão essencial ao referi<strong>do</strong> trabalho de Cristina Ribas; <strong>como</strong> <strong>artista</strong> e cidadã <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> Cristina precisa <strong>do</strong> contato, permutar sentimentos, imprimir sua marca e se<br />
47 RIBAS, Cristina. Troca de Azulejos: Disponível em<br />
http://azulejista.wordpress.com/cristin/estampas/troca-de-azulejo/. Acessa<strong>do</strong> no dia 22 de<br />
Setembro de 2010.<br />
38
deixar marcar. Ao final Cris vai embora, mas a lembrança daqueles momentos não<br />
se perdem; no lar de Bia ela deixou sua marca permanentemente.<br />
Um pequeno azulejo azul no banheiro da casa de Bianca Bernar<strong>do</strong> está<br />
repleto de potências e significâncias. Ele traz lembranças de Cristina Ribas. Do<br />
tempo que passaram juntas na casa de Bia e em outros lugares. Memórias de<br />
tempos compartilha<strong>do</strong>s, sorrisos, viagens, lágrimas talvez, afetos. Evidente que o<br />
azulejo não é o mais importante nesse caso. Ele é apenas o estopim, a fagulha que<br />
desencadeia associações, divagações, reminiscências que guardamos dentro de<br />
nós e que não podem ser mensuradas, mas que certamente carregam mais pujança<br />
que qualquer objeto material possa oferecer.<br />
39
Figuras 4 e 5 – Cristina Ribas - Troca de azulejos, 2004-2008.<br />
Troca de azulejos permite que to<strong>do</strong>s nós sejamos cria<strong>do</strong>res. Com seu<br />
trabalho – e a palavra trabalho se encaixa perfeitamente aqui - Cristina serve a<br />
Bianca e a si mesma. Estabelecen<strong>do</strong> um paralelo entre Cristina Ribas e Allan<br />
Kaprow constatamos que ambos tem uma visão muito próxima quanto às atribuições<br />
da arte em seus mun<strong>do</strong>s, valorizan<strong>do</strong> a produção <strong>do</strong> <strong>artista</strong> <strong>como</strong> trabalho de<br />
relacionar-se e robustecen<strong>do</strong> a importância <strong>do</strong> patrimônio imaterial em arte.<br />
Em determina<strong>do</strong> momento de “A educação <strong>do</strong> an-<strong>artista</strong> I”, Allan Kaprow<br />
discorre sobre certa condição da arte naquele instante de sua escrita: “As artes, pelo<br />
menos até o presente, têm si<strong>do</strong> lições pobres, exceto possivelmente para <strong>artista</strong>s e<br />
seus reduzi<strong>do</strong>s públicos.” 48 E Kaprow nos mostra situações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, da vida, que<br />
apesar de cotidianas se configuram <strong>como</strong> extraordinárias. Para citar um exemplo,<br />
48 KAPROW, Allan. In Concinnitas: Revista <strong>do</strong> Instituto de Artes da Uerj. Vol. 4, n. 4, 2003, p. 217.<br />
40
ainda em “A educação <strong>do</strong> an-<strong>artista</strong> I” ele nos fala: “A sofisticação da consciência na<br />
arte hoje em dia (1969) 49 é tão grande, que não é difícil afirmar <strong>como</strong> fatos: que o<br />
módulo LM de pouso na lua é patentemente superior a to<strong>do</strong>s os esforços da<br />
escultura contemporânea.” 50 Kaprow tem razão; tornou-se árduo, para não dizer<br />
impossível, para a arte buscar de alguma forma competir com a vida na tarefa de<br />
atrair a atenção das pessoas; viver é bem mais interessante. Que direção, então, os<br />
<strong>artista</strong>s deveriam seguir para que não tivessem suas produções rotuladas <strong>como</strong><br />
“lições pobres”? Esse continua a ser um problema atual, mas que caminhou muito<br />
desde Kaprow e que hoje nos permite ter algumas indicações das possibilidades a<br />
serem desbravadas.<br />
É certo que para Allan Kaprow os <strong>agente</strong>s da arte deveriam sair de seus<br />
nichos mais que restritos e voltar os olhos ao universo a sua volta. Abrir mão da<br />
pureza requerida pela arte moderna e validar as alternativas que consideram as<br />
contaminações entre o campo da arte e as mais diversas esferas da sociedade;<br />
assim <strong>como</strong> vimos em Joseph Beuys, essa centelha teve outro de seus focos iniciais<br />
com Kaprow, em pequenos gestos, na performance diária da vida que se tornou<br />
cara ao <strong>artista</strong> e que pode ser exemplificada em alguns trechos <strong>do</strong> livro Essays on<br />
the Blurring of Art and Life. 51 Em alguns desses fragmentos, referin<strong>do</strong>-se ao seu<br />
despertar para as maravilhas <strong>do</strong> cotidiano, ele escreve:<br />
Comecei a prestar atenção no quanto este ato de escovar meus<br />
dentes tornou-se rotineiro, um comportamento inconsciente se<br />
compara<strong>do</strong> com meus primeiros esforços em realizá-lo quan<strong>do</strong><br />
criança. Comecei a suspeitar que 99% de minha vida diária era<br />
49<br />
E apesar <strong>do</strong>s 42 anos que separam a escrita de Kaprow desta, seus pensamentos ainda<br />
conservam o mesmo frescor.<br />
50<br />
KAPROW, Allan. In Concinnitas: Revista <strong>do</strong> Instituto de Artes da Uerj. Vol. 4, n. 4, 2003, p. 215.<br />
51<br />
KAPROW, Allan. Essays on the blurring of art and life. Berkeley: University of California Press,<br />
2003.<br />
41
simplesmente rotinizada e despercebida; que meu pensamento<br />
estava sempre em outro lugar qualquer; e que centenas de sinais<br />
que meu corpo enviava a cada minuto eram ignora<strong>do</strong>s. Supus<br />
também que a maioria das pessoas era <strong>como</strong> eu nesse caso. 52<br />
Esse pequeno insight de Allan Kaprow no trivial exercício de escovar os<br />
dentes resultou nos des<strong>do</strong>bramentos de sua produção e pensamento traduzi<strong>do</strong>s de<br />
forma límpida na execução de seus happenings. Ainda refletin<strong>do</strong> sobre sua singela<br />
atividade matinal de higiene bucal Kaprow completa: “Foi um despertar para minha<br />
privacidade e humanidade.” 53 Um movimento mínimo de nosso cotidiano permitiu<br />
algumas mudanças de paradigmas em que a era <strong>do</strong>s objetos especializa<strong>do</strong>s<br />
relega<strong>do</strong>s aos espaços museológicos deu lugar à uma produção que iria se dissolver<br />
no oceano da vida, arte lifelike <strong>como</strong> o próprio Kaprow dizia. O <strong>artista</strong> comprometi<strong>do</strong><br />
com esse pensamento ao mesmo tempo produz e não produz arte e esse desvio<br />
nas operações (não) artísticas converte o (an) <strong>artista</strong> em senhor de inúmeras<br />
possibilidades: educa<strong>do</strong>r, sociólogo, ativista em greve de fome, azulejista. Os<br />
desejos de Kaprow podem estar guarda<strong>do</strong>s naquele momento da vida em que o<br />
ordinário se converte em maravilhoso; por isso se faz necessário um esta<strong>do</strong> de<br />
atenção permanente perante as trajetórias de nossa existência para que<br />
oportunidades <strong>como</strong> as da história que compartilharemos agora não sejam perdidas<br />
no tempo.<br />
52 Ibid., p. 221. No original: “I began to pay attention to how much this act of brushing my teeth had<br />
become routinized, nonconcious behaviour, compared with my firsts efforts to <strong>do</strong> it as a child. I<br />
began to suspect that 99 percent of my daily life was Just as routinized and unnoticed; that my<br />
mind was always somewhere else; and that the thousand signals my body was sending me each<br />
minute was ignored. I guessed also that most people were like me in this respect.”<br />
53 Ibid., p. 221. No original: “This was an eye-opener to my privacy and to my humanity.”<br />
42
1.4.1 Utopias Possíveis<br />
No primeiro dia de um fim de semana mágico chegamos aonde os <strong>do</strong>utos<br />
diriam ser um lugar inexistente.<br />
Estava acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong>s super-queri<strong>do</strong>s Quiniro, GG, Carrasco e<br />
Amada. Após algumas horas de um agradável almoço resolvemos ver o pôr-<strong>do</strong>-sol<br />
no alto de uma colina. Já na subida algo que não conseguiria explicar me dizia que<br />
estava prestes a experimentar um <strong>do</strong>s melhores momentos de minha vida. Próximo<br />
ao cume, já em terreno plano percebi que não era o único a estar com os olhos<br />
mareja<strong>do</strong>s; lágrimas percorriam vagarosamente o rosto sardento de Quiniro. O Sol já<br />
estava se pon<strong>do</strong> e uma garoa quase imperceptível deixava nossos corpos úmi<strong>do</strong>s e<br />
arrepia<strong>do</strong>s. Andamos um pouco, abraça<strong>do</strong>s uns aos outros sorrin<strong>do</strong> da vida, para a<br />
vida.<br />
Chegamos à beira de um precipício onde uma singela placa, em esta<strong>do</strong><br />
precário, nos dizia: RUA SEM SAÍDA. Por detrás da placa, à noroeste, três arco-íris<br />
respondiam graciosamente aos nossos sorrisos. Juntos pareciam nos provocar,<br />
mostran<strong>do</strong> <strong>como</strong> nossas humanas descrenças eram pequenas demais para alguma<br />
tentativa de explicação sobre o que estaria acontecen<strong>do</strong> naquele momento. Não<br />
ousarei classificá-lo de divino, palavra repleta de significâncias, longe da<br />
unanimidade entre nós, os mortais. Naquele instante, toma<strong>do</strong>s de todas as certezas<br />
que alguém seria capaz de possuir havíamos chega<strong>do</strong> ao lugar que os antigos<br />
acharam por bem denominar Utopias Possíveis (Fig. 7).<br />
Naquele fantástico pedaço de terra não conseguíamos controlar os fáceis<br />
sorrisos e as lágrimas soltas de felicidade; éramos plenitude, repletos de um amor<br />
desinteressa<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong> nada de algo ou de alguém. Desejávamos apenas que<br />
43
esse mun<strong>do</strong> pudesse se estender para to<strong>do</strong>s, sem julgamentos de méritos ou<br />
hierarquias, sem distinções, sem classificações. 54<br />
1.4.2 Arte de/para to<strong>do</strong>s<br />
Assim <strong>como</strong> Kaprow percebeu uma nova ordem nas operações artísticas<br />
ao escovar seus dentes, Utopias possíveis nos conta esse maravilhamento presente<br />
nas coisas mais corriqueiras da vida; <strong>do</strong> que poderia ser apenas mais um momento<br />
a passar despercebi<strong>do</strong> em nossa existência e que, por receber um pouco de zelo de<br />
nossa parte, admite essa guinada, ou melhor, essa fusão entre a esfera da arte e da<br />
vida: an-arte. Um feliz encontro entre velhos amigos diante <strong>do</strong> inespera<strong>do</strong> poderia se<br />
inserir no campo da produção artística? Allan Kaprow diria que sim. De Utopias<br />
Possíveis Cristina Ribas sentencia: “A utopia pode ser, nesta forma, levar<br />
constantemente à vida a normalidade estranha das coisas extraordinárias.” 55 Um<br />
novo enfoque aos pensamentos artísticos lançan<strong>do</strong> à arte a possibilidade de<br />
descobrir os pequenos prodígios da vida poderia ser interpreta<strong>do</strong>, <strong>como</strong> fez o cria<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong>s happenings, de forma que as hierarquias sociais se horizontalizassem<br />
aproximan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> que Dick Higgins optou por bem chamar “intermídia” 56 . A<br />
respeito <strong>do</strong> termo Higgins discorre que “intermídia implica fluidez e simultaneidade<br />
de papéis. Quan<strong>do</strong> a arte é apenas uma das várias funções possíveis que uma<br />
situação pode ter, ela perde seu status privilegia<strong>do</strong> e se torna, de certa forma, um<br />
54 RIBEIRO, Davi. Outono de 2009.<br />
55 RIBAS, Cristina. “U-topos, experiência maravilhante <strong>do</strong> mesmo”: Disponível em:<br />
http://azulejista.files.wordpress.com/2010/03/davi_ribeiro_epi_curo_97_2.pdf. Acessa<strong>do</strong> no dia 16<br />
de fevereiro de 2011.<br />
56 KAPROW, Allan. In Concinnitas: Revista <strong>do</strong> Instituto de Artes da Uerj. Vol. 4, n. 4, 2003, p. 222.<br />
44
atributo menor.” 57 E talvez essa atribuição menor à arte (e de forma alguma<br />
devemos ter uma visão depreciativa <strong>do</strong> fato) pudesse ser a peça faltante que<br />
aproximaria o fazer artístico de seu público e que possibilitaria vislumbrar uma<br />
utilidade à essa produção artística, exemplificada em casos <strong>como</strong> o de Joseph<br />
Beuys com sua atuação pela social democracia e pelo livre intercâmbio de<br />
conhecimento, seu engajamento ambiental e em trabalhos potentes e simbólicos<br />
<strong>como</strong> “7000 carvalhos”; ou também nas referências que Kaprow nos dá ao desvelar<br />
seu pequeno despertar em suas atividades matutinas que abriram seus olhos para<br />
inúmeras possibilidades e desencadearam no advento <strong>do</strong> Happenings.<br />
Simples e utópico 58 simultaneamente, Kaprow ansiava expandir os<br />
horizontes da arte, caben<strong>do</strong> essa função ao an-<strong>artista</strong>. Aos não-<strong>artista</strong>s ele oferece<br />
uma alternativa:<br />
Ao mesmo tempo, os não-<strong>artista</strong>s, agora povoan<strong>do</strong> o globo, que<br />
continuam a acreditar que são parte da Velha Igreja da Arte<br />
poderiam pensar sobre quão incompleta é sua posição e <strong>como</strong>,<br />
pratican<strong>do</strong> a an-arte – ou seja, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> sua fé -, poderiam<br />
direcionar seus <strong>do</strong>ns para aqueles que poderiam usá-los: to<strong>do</strong>s. 59<br />
57<br />
In Ibid., p. 222.<br />
58<br />
No senti<strong>do</strong> mais raso <strong>do</strong> termo, consideran<strong>do</strong> a utilização mais simplória e disseminada de utopia,<br />
<strong>como</strong> algo impossível, inatingível.<br />
59<br />
KAPROW, Allan. In Concinnitas: Revista <strong>do</strong> Instituto de Artes da Uerj. Vol. 6, n. 6, 2004, p. 180.<br />
45
Figura 6 – Joseph Beuys – 7000 carvalhos, 1982 (em processo).<br />
Ou seja, Kaprow vislumbra a mínima possibilidade de, através de seu<br />
projeto de an-<strong>artista</strong>, ampliar o alcance <strong>do</strong> até então fecha<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da arte a to<strong>do</strong>s.<br />
Porém, naquele momento, as intenções <strong>do</strong> <strong>artista</strong> norte-americano ficariam<br />
relegadas ao <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> pensamento; mesmo que ele tentasse e de fato colocasse<br />
em prática seus conceitos <strong>como</strong> fez, o alcance de tais idéias ainda era muito restrito.<br />
O programa de Kaprow e seu caráter inclusivo, global, aspirava a uma coletividade<br />
imbuída em seu papel construtivo, aproximan<strong>do</strong> a arte da sociedade e, por<br />
conseguinte, a sociedade de um certo humanismo esqueci<strong>do</strong> ou talvez nunca<br />
utiliza<strong>do</strong>. Allan Kaprow acreditava em uma (an) arte que pudesse de alguma forma<br />
ter um propósito perante o mun<strong>do</strong> e a respeito disso escreveu: “Não tem si<strong>do</strong> feito o<br />
bastante em relação às desvantagens da celebrada falta de utilidade da arte. Visões<br />
utópicas de sociedades ajudadas ou governadas por <strong>artista</strong>s tem falha<strong>do</strong> porque a<br />
46
arte em si tem falha<strong>do</strong> <strong>como</strong> instrumento social.” 60 Acreditamos que, mais <strong>do</strong> que ter<br />
falha<strong>do</strong> <strong>como</strong> instrumento social, a arte fracassou em não se fazer presente<br />
enquanto tal. Pensemos a seguinte situação: Se de algum mo<strong>do</strong> os <strong>artista</strong>s <strong>do</strong><br />
planeta se reunissem e resolvessem entrar em esta<strong>do</strong> de greve geral? Nessa<br />
situação imaginária seria plausível que o mun<strong>do</strong> não sentisse nossa falta?<br />
1.5 Vazios de arte, cheios de vida<br />
O início <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> livro Essays on the Blurring of Art and Life 61 é<br />
inaugura<strong>do</strong> com o tópico “The Meaning of Life”, que poderíamos traduzir <strong>como</strong> “O<br />
Senti<strong>do</strong> (ou Significa<strong>do</strong>) da Vida” e que acreditamos ser uma busca comum e<br />
relevante a to<strong>do</strong>s os seres humanos. Kaprow começa assim dizen<strong>do</strong>: “O <strong>artista</strong><br />
experimental hoje é o an-<strong>artista</strong>. Não o anti-<strong>artista</strong>, mas o <strong>artista</strong> esvazia<strong>do</strong> de<br />
arte.” 62 Quan<strong>do</strong> nos deparamos com o título <strong>do</strong> tópico de Kaprow e a frase que<br />
inaugura o mesmo concluímos: O <strong>artista</strong> experimental de que fala, esse an-<strong>artista</strong>, o<br />
<strong>artista</strong> esvazia<strong>do</strong> de arte é o <strong>artista</strong> cheio de vida.<br />
Recorren<strong>do</strong> às raízes da palavra utopia verificamos que através <strong>do</strong>s<br />
séculos seu significa<strong>do</strong> se afastou de seu uso nos dias atuais. Na origem utopia<br />
guarda o senti<strong>do</strong> de um não-lugar (<strong>do</strong> grego, ou topos) e pode também abrigar o<br />
significa<strong>do</strong> de bom lugar (<strong>do</strong> grego, eu topos).<br />
60<br />
In Ibid., p. 181.<br />
61<br />
KAPROW, Allan. Essays on the blurring of art and life. Berkeley: University of California Press,<br />
2003.<br />
62<br />
Ibid., p. 229. No original: “The experimental artist today is the un-artist. Not the antiartist but the<br />
artist emptied of art.”<br />
47
Ao analisar as obras de Joseph Beuys e Allan Kaprow constatamos que<br />
ambos não só foram contemporâneos no espaço-tempo, mas também nas linhas<br />
gerais que guiavam e articulavam seus pensamentos. O que os difere? Talvez a<br />
dimensão de seus projetos utópicos. Enquanto Beuys, acompanha<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> seu<br />
misticismo, permanecia imbuí<strong>do</strong> de idéias utópicas que pudessem mudar to<strong>do</strong> um<br />
sistema planetário, Kaprow, através de suas micro-utopias, buscava apenas<br />
melhores formas de convívio social, modifican<strong>do</strong> o dia-a-dia.<br />
Quan<strong>do</strong> tomamos o significa<strong>do</strong> corriqueiro da palavra utopia - e a carga<br />
que o acompanha, de algo fantasioso, ilusório, impossível – e tentamos aplicá-lo aos<br />
conceitos de Kaprow e Beuys corremos o risco de cometer um equívoco. Mas se<br />
lançamos mão de sua etimologia percebemos que a palavra, com efeito, veste-lhes<br />
bem. As utopias de Beuys e Kaprow se anunciam <strong>como</strong> a direção a trilharmos em<br />
busca desse bom lugar, eu topos; ou desse não-lugar – porque é espaço ainda a ser<br />
preenchi<strong>do</strong>. Em ambos os casos o caminho deve ser percorri<strong>do</strong> junto. O nós de<br />
Kaprow pode ser apenas eu e você, o de Beuys é a multidão. No âmago de suas<br />
apostas comunicar, colaborar, transformar.<br />
Beuys e Kaprow conseguiram discernir o modus operandi <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
constituí<strong>do</strong> de camadas que se entrecruzam e crenças diversas que se roçam, um<br />
mun<strong>do</strong> repleto de necessidades urgentes que impossibilitam qualquer tentativa de<br />
tratar e definir conceitos isoladamente. “A arte imita a vida e a vida imita a arte”,<br />
Kaprow diria; “to<strong>do</strong>s somos <strong>artista</strong>s”, completaria Beuys. O muro imaginário, porém<br />
bastante sóli<strong>do</strong>, há tempos ergui<strong>do</strong>, quiçá de pé desde sempre, entre os termos arte<br />
e vida esvaiu-se quan<strong>do</strong> Joseph Beuys e Allan Kaprow, cada um de sua maneira e<br />
em seu tempo e espaço, se propuseram a trabalhar, servir, agir, brincar. Suas<br />
práticas colaborativas se propunham a promover mudanças sensíveis nos teci<strong>do</strong>s<br />
48
sociais. Em “A educação <strong>do</strong> an-<strong>artista</strong> II” 63 , Kaprow se mostra em certos momentos<br />
ao mesmo tempo reticente e esperançoso quanto às possibilidades reais de se<br />
ocorrer alguma mudança. Em um desses trechos ele discorre:<br />
Basicamente, nosso mo<strong>do</strong> de vida, refleti<strong>do</strong> em nossa vida amorosa<br />
tanto quanto em nossa política externa, acredita no mo<strong>do</strong> <strong>como</strong> as<br />
coisas costumavam ser. Desde a época da redação da Declaração<br />
da Independência, uma ambivalência em relação ao prazer estava<br />
indicada na saudação a nosso direito à “vida, liberdade e busca da<br />
felicidade”. A parte da “busca” parece ter ocupa<strong>do</strong> a maior parte de<br />
nosso tempo, implican<strong>do</strong> que a felicidade seja apenas um sonho...<br />
Nós lutamos para não lutar. 64<br />
Ao contrário <strong>do</strong> que falamos aqui, quan<strong>do</strong> anteriormente chamamos Allan<br />
Kaprow de “esperançoso” ou ao contrário <strong>do</strong> que o próprio Kaprow escreve acima<br />
sobre a busca da felicidade - essa busca que aparentemente nos leva a lugar<br />
nenhum, já que é uma espera <strong>do</strong> que poderá nunca chegar -, o filósofo André<br />
Comte-Sponville nos apresenta outro ponto de vista, perfeitamente plausível aos<br />
<strong>artista</strong>s aqui em questão: Allan Kaprow e Joseph Beuys. Cheios de vida que são,<br />
Kaprow e Beuys se encaixam perfeitamente na filosofia <strong>do</strong> desespero levantada por<br />
Comte-Sponville. O filósofo francês nos diz: “Numa palavra, ou antes em três, o<br />
contrário de esperar é conhecer, agir e amar.” 65 Em outras palavras - e os planos de<br />
Beuys e Kaprow se tornam cada vez mais límpi<strong>do</strong>s e possíveis – “trata-se de<br />
aprender a desejar o que depende de nós (isto é, aprender a querer e agir), trata-se<br />
de aprender a desejar o que é (isto é, a amar), em vez de desejar sempre o que não<br />
é (esperar ou lamentar).” 66 E acrescentaríamos: esse não-lugar a ser preenchi<strong>do</strong><br />
63<br />
KAPROW, Allan. In Concinnitas: Revista <strong>do</strong> Instituto de Artes da Uerj. Vol. 6, n. 6, 2004.<br />
64<br />
In Ibid., p. 175.<br />
65<br />
COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.<br />
86.<br />
66 Ibid., p. 86-87.<br />
49
pode e deve ser ocupa<strong>do</strong> por ações – e mais uma vez aqui ressaltamos a<br />
importância da imaterialidade – e não por objetos.<br />
Dota<strong>do</strong>s de alguns verbos que lhe eram caros – comunicar, colaborar,<br />
transformar – e, sem dúvida, <strong>do</strong>s que Comte-Sponville propõe, o <strong>artista</strong> norte-<br />
americano e o <strong>artista</strong> alemão foram às ruas, ao ar livre, por em prática suas ações.<br />
50
Capítulo 2<br />
O lugar da arte<br />
Conta a lenda que um entrevista<strong>do</strong>r ira<strong>do</strong>, gritan<strong>do</strong>, perguntou<br />
a Joseph Beuys: “Você fala de tu<strong>do</strong> sob o Sol, exceto de arte!”,<br />
ao que ele respondeu: “Mas tu<strong>do</strong> sob o Sol é arte!” 67<br />
Figura 7 – Davi Ribeiro - Utopias possíveis, 2008.<br />
67 FREIRE, Cristina. Poéticas <strong>do</strong> processo: arte conceitual no museu. São Paulo: Iluminuras, 1999, p.<br />
58.<br />
51
2.1 A cidade que brilha no alto <strong>do</strong> monte<br />
Foram três anos pensan<strong>do</strong> a viagem, daquelas que rotulamos <strong>como</strong> “a<br />
viagem de nossas vidas”. Estava em busca de algo que colocasse meu corpo à<br />
prova, que pudesse me exaurir física e mentalmente, que proporcionasse as mais<br />
variadas sensações, emoções, relações, que permitisse conhecimento e<br />
autoconhecimento; buscava o estrangeiro. Uma peregrinação de 5600 quilômetros,<br />
<strong>do</strong> Atlântico ao Pacífico. O ápice eram as montanhas. Ficaria boa parte <strong>do</strong> tempo<br />
nos Alpes Andinos. Como companheiros, minha amada, quatro amigos, um livro,<br />
uma bota e alguns quilos nas costas. Os dias que antecederam a viagem foram<br />
especialmente longos. Sentia falta de ar, formigamento, impaciência, irritação, não<br />
conseguia <strong>do</strong>rmir. A partida estava marcada para 25 de dezembro, nascimento <strong>do</strong><br />
Cristo. Véspera de Natal, malas prontas, comemorações em família, troca de<br />
presentes, lembranças especiais. Mais uma noite em claro.<br />
Caminhei para a ro<strong>do</strong>viária, de onde partiria às 19h com destino à Campo<br />
Grande, capital <strong>do</strong> Mato Grosso <strong>do</strong> Sul. Percebi, então, que não seria tão simples<br />
assim carregar 15 quilos nas costas durante três semanas. Pressão nos ombros, <strong>do</strong>r<br />
nos ombros. Às 18h30 estava na ro<strong>do</strong>viária, o veículo, para<strong>do</strong> no terminal. Ganhei o<br />
sempre aperta<strong>do</strong> e sincero abraço de meu pai, despachei os 15 quilos e entrei no<br />
ônibus. Saímos às 19h em ponto, <strong>como</strong> previsto. Meu pai estava lá fora com meu<br />
irmão, sorriso no rosto <strong>como</strong> de costume, acenou sem parar até que nossos olhares<br />
não se cruzaram mais. O início <strong>do</strong> caminho mostrou paisagens há muito conhecidas<br />
nas visitas que fazia à casa de minha querida e sau<strong>do</strong>sa avó Solony em São Paulo.<br />
Os olhos teimavam em fechar, sintoma <strong>do</strong> sono acumula<strong>do</strong> <strong>do</strong>s dias que se<br />
passaram.<br />
52
Após uma merecida noite de sono ao fim de trinta horas de viagem,<br />
acordamos os seis, dispostos e decidi<strong>do</strong>s a conhecer o Pantanal, partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> porto<br />
de Corumbá. Era dia 27 de dezembro. Na volta <strong>do</strong> passeio repleto de jacarés e<br />
tuiuius, ao sairmos <strong>do</strong> barco, fomos recebi<strong>do</strong>s calorosamente por milhares e<br />
milhares de borboletas numa cena que, provavelmente, nunca se repetirá em<br />
nossas vidas. To<strong>do</strong> o grupo ficou emociona<strong>do</strong> pela incrível sensação de ter a pele<br />
tocada por uma nuvem viva, colorida, pela própria encarnação da beleza. Por onde<br />
passávamos mais e mais borboletas nos acompanhavam de perto. Relembran<strong>do</strong><br />
uma frase de Nietzsche, por intermédio de Zaratustra: “... parece-me que as<br />
borboletas e as bolhas de sabão e o que mais <strong>do</strong> gênero há entre os homens, são<br />
as que melhor conhecem a felicidade. Ver voejar essas alminhas loucas, leves e<br />
graciosas – induz Zaratustra a chorar e cantar.” 68 Nosso sentimento aproximava-se<br />
bastante das sábias palavras de Nietzsche. Voltamos, porém, apressa<strong>do</strong>s para a<br />
pousada, a fim de almoçar e pegar as mochilas para atravessar a fronteira. Depois<br />
<strong>do</strong> refrescante banho e de bagagens conferidas, almoçamos juntos a deliciosa<br />
comida caseira preparada pela esposa <strong>do</strong> proprietário da hospedaria. Sob um Sol de<br />
40°C, solicitamos um táxi e fomos os seis amontoa<strong>do</strong>s num mesmo carro rumo à<br />
Bolívia.<br />
A fronteira Corumbá – Puerto Suárez proporciona uma peculiar<br />
transformação. Com os pés no Brasil a natureza mostra to<strong>do</strong> seu vigor e, de certa<br />
maneira, riqueza; as borboletas, ainda estavam lá. Um passo à diante e,<br />
literalmente, somos envolvi<strong>do</strong>s por pobreza, poeira, aridez; borboletas não existem<br />
mais; até o Sol parece castigar mais a pele, o que nos obrigou a passar uma<br />
camada extra de protetor solar para suportarmos a ação <strong>do</strong> grande astro impie<strong>do</strong>so<br />
68 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007, p. 67.<br />
53
<strong>do</strong> eterno retorno 69 . Apesar de tu<strong>do</strong> conseguíamos enxergar beleza naquela nova<br />
paisagem. Pegamos <strong>do</strong>is taxis que estavam para<strong>do</strong>s logo após o posto alfandegário<br />
e rumamos à estação de Puerto Quijarro. O local já estava lota<strong>do</strong> de pessoas<br />
esperan<strong>do</strong> a chegada <strong>do</strong> trem. Em sua maioria eram mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> próprio povoa<strong>do</strong>,<br />
de vestimentas bem simples e de olhares um tanto quanto desconfia<strong>do</strong>s. Porém, o<br />
que realmente nos chamou atenção foi o cheiro exala<strong>do</strong> pelos bolivianos, único em<br />
to<strong>do</strong>s os aspectos. Não se pode afirmar que era desagradável, mas <strong>como</strong> tu<strong>do</strong> que<br />
nos é desconheci<strong>do</strong> provocava certa estranheza. Era um aroma agri<strong>do</strong>ce que o<br />
grande amigo Belle, com seu costumeiro bom humor, logo definiu <strong>como</strong> “toucinho<br />
fumeiro caramela<strong>do</strong>”.<br />
Ainda faltavam duas horas para a saída <strong>do</strong> trem e o calor beirava o<br />
insuportável. Imerso na atmosfera daquele lugar inóspito decidi ler um pouco <strong>do</strong><br />
onipresente “Assim falou Zaratustra” <strong>do</strong> filósofo alemão Friedrich Nietzsche.<br />
Zaratustra tem o poder de me retirar da realidade. Tão logo começo a ler suas<br />
palavras o mun<strong>do</strong> à minha frente se dissolve e eu entro <strong>como</strong> que em uma espécie<br />
de transe, alheio a tu<strong>do</strong> e a to<strong>do</strong>s. Na estação de Puerto Quijarro comecei a ler o<br />
discurso intitula<strong>do</strong> “Dos despreza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> corpo”. E os poucos momentos pelos<br />
quais já havia passa<strong>do</strong> no que resolvi por bem chamar de “a viagem de nossas<br />
vidas”, se descortinavam <strong>como</strong> a tradução <strong>do</strong> que Nietzsche falava em tão<br />
apropria<strong>do</strong>s versos: o até logo de meu pai, as muitas horas incômodas no ônibus, a<br />
escuridão da estrada que amedrontava, as borboletas tocan<strong>do</strong> meu corpo, o Sol<br />
escaldante em minha pele, o contato com estrangeiros, os cheiros que descobria, a<br />
noite de amor com minha amada. Tu<strong>do</strong> aquilo para mim, Davi, <strong>artista</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
todas aquelas experiências que costumeiramente passariam despercebidas por<br />
69 Ver HÉBER-S<strong>UFF</strong>RIN, Pierre. O “Zaratustra” de Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.<br />
130.<br />
54
qualquer olho não “treina<strong>do</strong>”, eram de inestimável valor e, talvez por isso, Zaratustra<br />
me seja tão caro; através dele Nietzsche deu seu grande grito de exaltação à vida.<br />
Enquanto meus pensamentos viajam imersos em Nietzsche, abordaremos<br />
outras questões; André Comte-Sponville, filósofo francês contemporâneo e Epicuro,<br />
pensa<strong>do</strong>r grego nasci<strong>do</strong> 341 anos antes <strong>do</strong> Cristo. Separa<strong>do</strong>s por vinte e três<br />
séculos, Comte-Sponville busca Epicuro, segun<strong>do</strong> ele o filósofo que mais o marcou<br />
em seus anos de estu<strong>do</strong>, para desenvolver seus pensamentos nos séculos XX e<br />
XXI. Reata assim com velhas noções que importavam aos pensa<strong>do</strong>res gregos e que<br />
de alguma forma são questões ainda essenciais ao mun<strong>do</strong> contemporâneo. De<br />
acor<strong>do</strong> com suas palavras: “A verdade é que o passa<strong>do</strong> da filosofia está sempre<br />
diante de nós, que nunca terminaremos de explorá-lo, de compreendê-lo, de<br />
prolongá-lo...” 70 Comte-Sponville inicia sua caminhada pelo mo<strong>do</strong> mais simples<br />
possível. Sua questão germinal é se perguntar “o que é filosofia?”. A<strong>do</strong>ta, então,<br />
<strong>como</strong> sua, a linda definição de Epicuro: “A filosofia é uma atividade que, por<br />
discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz.” 71 Sen<strong>do</strong> assim, a vida é o<br />
objeto da filosofia e, através de práticas discursivas ten<strong>do</strong> a razão <strong>como</strong> meio,<br />
pretende-se chegar a um fim, a felicidade.<br />
Falan<strong>do</strong> ainda de filosofia. O <strong>artista</strong> norte-americano Joseph Kosuth, em<br />
seu conheci<strong>do</strong> ensaio “A arte depois da filosofia”, pretende fornecer um melhor<br />
entendimento <strong>do</strong> que seria, para ele, a Arte Conceitual. Em determina<strong>do</strong> momento,<br />
ainda no início <strong>do</strong> texto ele afirma que “o século XX trouxe à tona uma época que<br />
poderia ser chamada “o fim da filosofia e o começo da arte.” 72 E completa dizen<strong>do</strong><br />
que “não afirma isso de maneira estrita, claro, mas sim <strong>como</strong> uma “tendência” da<br />
70<br />
COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.<br />
4.<br />
71<br />
EPICURO apud Ibid., p.8.<br />
72<br />
FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de <strong>artista</strong>s – anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge<br />
Zahar, 2006. p. 212.<br />
55
situação.” 73 Toman<strong>do</strong> tais afirmações por verdade, chegaríamos a um determina<strong>do</strong><br />
fazer artístico que, assumin<strong>do</strong> o modus operandi específico <strong>do</strong> campo da filosofia<br />
defini<strong>do</strong> por Comte-Sponville e Epicuro, teria <strong>como</strong> objeto a vida e <strong>como</strong> meta a<br />
felicidade.<br />
Sem colocar ainda em pauta a tão desejada felicidade, mas ten<strong>do</strong> <strong>como</strong><br />
foco a vida, voltaremos a refletir sobre alguns pontos, já aborda<strong>do</strong>s anteriormente,<br />
<strong>do</strong> pensamento de Allan Kaprow. Em seus ensaios “A educação <strong>do</strong> an-<strong>artista</strong> I e II”<br />
Kaprow elabora questões acerca de um novo mo<strong>do</strong> de se produzir arte no qual<br />
ocorre uma diluição da barreira arte-vida. Seria uma arte de imitação, lifelike <strong>como</strong><br />
ele mesmo define, onde a arte está designada a imitar a vida, e a vida a imitar a<br />
arte. Para Kaprow arte lifelike nos faz, sobretu<strong>do</strong>, lembrar de nossas existências. Há<br />
uma aproximação e, consequentemente, um olhar mais atento aos movimentos<br />
cotidianos <strong>do</strong> viver; atitudes e coisas ganham status de arte - se bem que tu<strong>do</strong> que<br />
não queremos aqui é status. Um exemplo digno de atenção, que explicita de mo<strong>do</strong><br />
muito apropria<strong>do</strong> o que estamos pensan<strong>do</strong>, é a descrição de Kaprow de um trabalho<br />
de Dennis Oppenheim:<br />
no Canadá ele cruzou corren<strong>do</strong> um terreno enlamea<strong>do</strong>, fez moldes<br />
de gesso de suas pegadas (<strong>como</strong> fazem os policiais que investigam<br />
as cenas de crimes) e então exibiu pilhas <strong>do</strong>s moldes em uma<br />
galeria. A atividade foi excelente; a parte da exposição foi banal. Os<br />
moldes poderiam ter si<strong>do</strong> deixa<strong>do</strong>s na delegacia de polícia local sem<br />
identificação. Ou joga<strong>do</strong>s fora. 74<br />
Não nos resta dúvida de que Kaprow aponta um caminho mais adequa<strong>do</strong><br />
e, reaproximan<strong>do</strong> seus discursos aos de seu contemporâneo, o <strong>artista</strong> alemão<br />
Joseph Beuys, percebemos que em Beuys a vida se encorpa <strong>como</strong> caráter<br />
73 Ibid., p. 212.<br />
74 KAPROW, Allan. Concinnitas: Revista <strong>do</strong> Instituto de Artes da Uerj. Vol. 4, n. 4, 2003, p. 220.<br />
56
primordial da produção artística. A arte não imita mais a vida; arte é vida e vice-<br />
versa. Na trajetória de Beuys por diversas vezes confundimos sua produção, sua<br />
carreira <strong>como</strong> mestre e as lendas que giram em torno dele. Confusão que se resolve<br />
se pensarmos em to<strong>do</strong> o conjunto <strong>como</strong> uma única grande obra. A vida de Beuys é<br />
uma obra de arte e seria temeroso tentar separar suas ações e mitos em nichos que<br />
não se misturam. Assim ele mesmo o quis; seu perímetro para a arte é esse: tu<strong>do</strong><br />
sob o Sol.<br />
Todas as questões transcorridas nessa narrativa formam uma teia que<br />
define um pouco as direções para as quais meus pensamentos apontam. Tu<strong>do</strong> que<br />
vivencio pode ser encara<strong>do</strong> <strong>como</strong> potencialmente artístico. Por meio de meu corpo<br />
estabeleço relações com o outro, comigo mesmo, com o mun<strong>do</strong>. Busco por<br />
permanentemente meu corpo à prova, conferin<strong>do</strong> atenção especial às mais ínfimas<br />
sensações que meu organismo proporciona. Preocupo-me com meus movimentos e<br />
sua influência sobre a qualidade da vida cotidiana. Como homem contemporâneo<br />
ainda sou reflexo <strong>do</strong> homem moderno, por vezes impotente para me mover, agir,<br />
repleto de experiências pobres devi<strong>do</strong> à agitação e velocidade da sociedade da qual<br />
faço parte; temo acabar <strong>como</strong> to<strong>do</strong>s, por não apreender nada de útil, tornan<strong>do</strong>-me<br />
vazio.<br />
Após cruzarmos as cidades de Santa Cruz de La Sierra e<br />
Cochabamba, chegamos a La Paz, capital da Bolívia. Ali sentimos toda a força da<br />
altitude agin<strong>do</strong> em nossos corpos. O chama<strong>do</strong> sorochi agiu de forma diferente sobre<br />
cada um. A falta de ar foi o sintoma escolhi<strong>do</strong> por meu organismo. Belle estava com<br />
nariz sangran<strong>do</strong> e Diogo parecia reunir to<strong>do</strong>s os sintomas de uma vez e era o mais<br />
debilita<strong>do</strong>. Além disso, apesar <strong>do</strong> verão, a altitude de 4.200 metros nos<br />
proporcionava uma temperatura que se aproximava de 0°C. La Paz é uma cidade<br />
57
de geografia muito peculiar. No caminho ficamos o tempo to<strong>do</strong> ven<strong>do</strong> passar à<br />
nossa direita montanhas gigantescas cobertas de neve. De Cochabamba até a<br />
capital boliviana as estradas são só subidas; quan<strong>do</strong> finalmente chegamos a La Paz<br />
parece que estamos prestes a entrar em um vulcão. A cidade se situa em um vale,<br />
cercada de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s por montanhas repletas de favelas. Chegamos já na hora<br />
de encontrar um hotel e <strong>do</strong>rmir. Pagamos o equivalente a dez reais pela estadia, o<br />
que nos permite perceber a pobreza em que o país encontra-se imerso. No dia<br />
seguinte acordamos ce<strong>do</strong>, já que de tarde partiríamos para Copacabana. Tomamos<br />
café na rua, visitamos a rua das bruxas, com suas incríveis barracas recheadas de<br />
patuás, utensílios para magia, plantas medicinais e alucinógenas, fetos de lhama 75<br />
e toda sorte de objetos direciona<strong>do</strong>s para determina<strong>do</strong>s fins, to<strong>do</strong>s eles<br />
proporcionan<strong>do</strong> coisas boas para seu possui<strong>do</strong>r. Próximo à sede <strong>do</strong> governo<br />
encontramos três lindas crianças vestidas a caráter, tocan<strong>do</strong> instrumentos,<br />
dançan<strong>do</strong> e cantan<strong>do</strong> em troca de algumas moedinhas. Cena triste e linda ao<br />
mesmo tempo e que nos chamou mais atenção porque uma das crianças, sentada<br />
em um canto, chorava muito, inconsolável. Tentamos algumas coisas para que o<br />
pranto cessasse, sem êxito. Por fim, a menina parou de chorar e abriu um largo<br />
sorriso quan<strong>do</strong> Belle lhe deu uma pequena barra de chocolate que estava em sua<br />
mochila.<br />
75 Os fetos de lhama são compra<strong>do</strong>s pela população e por turistas para realizar oferendas. O ritual,<br />
segun<strong>do</strong> as bruxas de La Paz, serve para trazer fortuna (no senti<strong>do</strong> de abundância de amor, paz,<br />
dinheiro, saúde, ...) àquele que realiza o trabalho.<br />
58
Figura 8 – Davi Ribeiro - Rua das bruxas – La Paz, 2009.<br />
Figura 9 – Davi Ribeiro - Crianças - La Paz, 2009.<br />
59
Fizemos uma pequena pausa para almoço e embarcamos no ônibus para<br />
mais algumas horas de estrada. Eu e meus companheiros passamos o inesquecível<br />
réveillon de 2009 em Copacabana, pequena cidade da padroeira da Bolívia, às<br />
margens <strong>do</strong> Lago Titicaca, servi<strong>do</strong>s de excelentes charutos cubanos e espumantes<br />
peruanos de qualidade duvi<strong>do</strong>sa. Segun<strong>do</strong> a lenda, foi às margens <strong>do</strong> Titicaca que<br />
nasceu a civilização Inca, por instrução <strong>do</strong> deus Sol. E foi ali, a poucos metros dele,<br />
que festejamos até o amanhecer na companhia de pessoas <strong>do</strong>s mais varia<strong>do</strong>s<br />
lugares <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, acolhi<strong>do</strong>s pelos locais <strong>como</strong> irmãos. Longe de casa, mas nos<br />
sentin<strong>do</strong> sob o teto de um lar, dançamos, sorrimos, confraternizamos.<br />
De lá rumamos para Cuzco, no Peru, sede <strong>do</strong> Império Inca. A cidade seria<br />
a base para o clímax da longa viagem: quatro dias andan<strong>do</strong> até alcançarmos a<br />
cidade de Machu Picchu. Chegamos a Cuzco na madrugada gélida <strong>do</strong> dia 02 de<br />
janeiro. Tínhamos <strong>do</strong>is dias para aclimatar, providenciar os provimentos da jornada e<br />
conhecer as belezas e histórias indescritíveis da cidade. Começamos a trilha no dia<br />
04 de janeiro às cinco horas da manhã. Logo no início da caminhada atravessamos<br />
por uma precária ponte o temível e sagra<strong>do</strong> rio Urubamba. A visão e o som que<br />
Urubamba oferecia tiravam o fôlego até <strong>do</strong>s mais experientes guias. Após<br />
atravessarmos o rio começaríamos a longa subida rumo às montanhas Incas. O<br />
primeiro dia parece mais fácil. Pelo caminho estão to<strong>do</strong>s limpos, arruma<strong>do</strong>s,<br />
sorridentes, cheios de energia. Conforme as horas e os metros vão passan<strong>do</strong><br />
começamos a perceber o tamanho <strong>do</strong> desafio, sobretu<strong>do</strong> mental, que irá se<br />
desenrolar no interior de cada um.<br />
60
Figura 10 – Davi Ribeiro – Trilha Inca, 2010.<br />
No segun<strong>do</strong> dia de caminhada fomos acorda<strong>do</strong>s pelo guia às quatro da<br />
manhã. Tomamos chá de coca e já preveni<strong>do</strong>s de que este seria o pior <strong>do</strong>s dias<br />
começamos a caminhar. O acampamento em que passamos a noite estava a 2700<br />
metros de altitude; ao final da subida estaríamos a 4200 metros de altura e ainda<br />
teríamos que descer 700 metros até o novo acampamento. Cada um seguiu seu<br />
ritmo, não poderia ser diferente. Foi uma caminhada solitária, pensativa, sofrida e<br />
prazerosa ao mesmo tempo. Vimos animais que pareciam mágicos. Até hoje tenho a<br />
certeza de que vi um unicórnio. Subíamos degrau por degrau uma trilha que parecia<br />
não querer acabar. Andamos por horas dentro de um bosque. Os animais sagra<strong>do</strong>s<br />
61
Incas nos abençoavam e acompanhavam. Vimos o puma e o con<strong>do</strong>r. O ar faltava a<br />
cada passo, as pernas e as costas <strong>do</strong>íam demasiadamente. Cada um <strong>do</strong>s amigos<br />
pensou em desistir algumas vezes. Chorei, sorri, desesperei; fui o penúltimo a<br />
chegar ao topo. Meu corpo estava em êxtase, o espírito era um misto de satisfação<br />
e raiva. A visão lá de cima era estonteante e inigualável. Depois <strong>do</strong> último passo,<br />
esgota<strong>do</strong>, quebrei o caja<strong>do</strong> que havia compra<strong>do</strong>, pinta<strong>do</strong> e entalha<strong>do</strong> por um nativo<br />
peruano. Não é preciso dizer que me arrependi e, mais uma vez, as lágrimas<br />
molharam meu rosto.<br />
Figura 11 – Davi Ribeiro - Trilha Inca, 2010.<br />
62
Foram seis horas seguidas subin<strong>do</strong> vagarosamente os degraus de pedra<br />
construí<strong>do</strong>s pelos Incas. Ainda precisávamos descer até o acampamento, apesar de<br />
nossos corpos dizerem que não aguentaríamos. Firme, <strong>do</strong>lorosamente e, dessa vez,<br />
uni<strong>do</strong>s, andamos montanha abaixo. Chegamos ao acampamento às 15 horas,<br />
completamente exaustos, dez horas após o início da caminhada. Tomamos o banho<br />
mais gela<strong>do</strong> de nossas vidas, comemos a típica comida peruana acompanha<strong>do</strong> da<br />
deliciosa chicha morada e nos recolhemos, cada um em sua barraca. Inebria<strong>do</strong>s<br />
pela estonteante paisagem, ilumina<strong>do</strong>s pelo céu mais estrela<strong>do</strong> já visto e<br />
abençoa<strong>do</strong>s pelos deuses Incas que nos acompanhavam, eu e minha amada<br />
esperamos abraça<strong>do</strong>s o sono chegar. Antes de a<strong>do</strong>rmecer pensava na vida. Pensei<br />
em Nietzsche, em Beuys, no Jardim de Epicuro, nos passos deixa<strong>do</strong>s para trás, nos<br />
poucos quilômetros que faltavam para atingirmos Machu Picchu. Depois de tu<strong>do</strong> que<br />
vivi e experimentei naquela viagem, minha arte só teria relevância se houvesse uma<br />
fusão por completo com a vida, tornan<strong>do</strong>-se as duas, apenas uma.<br />
2.2 A (im)possibilidade <strong>do</strong> museu <strong>como</strong> abrigo<br />
Vimos a história de um <strong>artista</strong> atravessan<strong>do</strong> o continente americano, <strong>do</strong><br />
Atlântico ao Pacífico, na companhia de pessoas queridas. Como abrigo apenas o<br />
mun<strong>do</strong> ao qual pertence, com todas as suas peculiaridades: pessoas, línguas,<br />
animais, paisagens, alimentos, climas, cores, vestuário. To<strong>do</strong>s esses elementos<br />
supracita<strong>do</strong>s podem ser encara<strong>do</strong>s <strong>como</strong> arte – de cada um deles podemos retirar<br />
alguma potencialidade – e, sen<strong>do</strong> assim, a casa que abriga esse conjunto de coisas,<br />
63
nosso planeta, também carrega sua potência e, enquanto tal, pode se corresponder<br />
com o universo da arte. Iniciamos o capítulo resgatan<strong>do</strong> a afirmativa de Beuys que,<br />
em algum momento de sua trajetória, empunhou a certeza de que to<strong>do</strong> o universo<br />
material e imaterial, ou seja, - ten<strong>do</strong> <strong>como</strong> base o conceito amplia<strong>do</strong> de arte aqui<br />
discuti<strong>do</strong> e que, <strong>como</strong> sabemos, foi defendi<strong>do</strong> pelo <strong>artista</strong> alemão e <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong><br />
por Allan Kaprow - tu<strong>do</strong> aquilo que se apresentava ao humano sob o Sol, poderia<br />
encaixar-se na categoria arte;<br />
Consideran<strong>do</strong> a posição que assumimos no que se refere ao fazer<br />
artístico, pauta<strong>do</strong> em relações e comunicações que abdicam da presença de objetos<br />
matéricos, cabe a nós ponderar de que maneira os museus podem ainda exercer<br />
seu papel na pós-modernidade ou se restou apenas às instituições a função de<br />
abrigar as mais diversas formas de expressão artística, <strong>como</strong> um arquivo <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> à disposição <strong>do</strong> público geral e “especializa<strong>do</strong>”. Ou se, consideran<strong>do</strong> a<br />
minimização <strong>do</strong> poder das instituições e de seus produtores, ainda podemos pensar<br />
numa produção contemporânea que possa vir a ser abrigada por tais instituições e<br />
se o <strong>artista</strong> hoje pode fazer <strong>do</strong> museu o seu habitat.<br />
Os museus, searas <strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rismo e da manutenção das tradições,<br />
ainda hoje conseguem guardar certa aura sagrada aos olhos de seus milhares de<br />
freqüenta<strong>do</strong>res que, se não conservarem a postura “adequada” de não tocar, comer,<br />
beber, gritar, correr (falan<strong>do</strong> apenas das mais corriqueiras) em suas dependências,<br />
seguramente serão alerta<strong>do</strong>s por monitores ou guardas de galeria: “Não toque na<br />
obra senhor, é sagrada!”. Desde sua origem 76 os museus foram instrumento das<br />
classes <strong>do</strong>minantes a fim de salvaguardar objetos de valor (e isso certamente<br />
acarreta uma escolha arbitrária) responsáveis por representar um determina<strong>do</strong><br />
76 Consideramos que a origem <strong>do</strong>s museus está nos gabinetes de curiosidades.<br />
64
presente, proteger o passa<strong>do</strong> e contar histórias no futuro, sem dúvida alguma as<br />
histórias <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res. Devemos ficar atentos para a constatação de que “a idéia<br />
de museu, de uma maneira ou de outra, sempre esteve intimamente ligada a um<br />
projeto das elites que propiciasse a educação das camadas populares da<br />
sociedade.” 77 Ou seja, foram escolhidas <strong>como</strong> instituições responsáveis por produzir<br />
verdades direcionadas para determina<strong>do</strong> fim. Mesmo saben<strong>do</strong> que os objetos<br />
integrantes de museus fazem parte apenas de um recorte da produção cultural e<br />
intelectual <strong>do</strong> homem, gostaríamos de atentar para o fato de que “...esta operação<br />
de inclusão 78 tem um preço, que em geral se contabiliza no custo de se arrancar a<br />
obra de arte de seu contato direto com as dinâmicas da vida e da sociedade, para<br />
lançá-la dentro <strong>do</strong> espaço artificialmente construí<strong>do</strong> da instituição.” 79<br />
Aos <strong>artista</strong>s, no que concerne à inserção de suas produções nos espaços<br />
museológicos, exige-se o cuida<strong>do</strong> para que seus trabalhos não passem por um crivo<br />
que tente tolher, direcionar, modificar suas idéias com o intento de obter um ajuste<br />
mais adequa<strong>do</strong> às plataformas de uma instituição. Ciente de que tais ocasiões não<br />
são raras no meio artístico Ricar<strong>do</strong> Basbaum disserta:<br />
... para se manter – no presente! – as possibilidades de um fluxo de<br />
pensamento, intervenção e mobilização crítica é necessário agir com<br />
pragmatismo, no senti<strong>do</strong> de desenvolver estratégias para-<br />
institucionais acopladas às linguagens e conceitos com os quais<br />
opera o <strong>artista</strong>. Ou seja, tanto aceitar as ofertas de ocupar o espaço<br />
institucional, procuran<strong>do</strong> compreender as sutilezas de sua atual<br />
estruturação e mobilizan<strong>do</strong> ferramentas de linguagem que possam<br />
oferecer algum grau de resistência (atentan<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> agu<strong>do</strong> às<br />
77 OLIVEIRA, Luiz Sérgio. QUE MUSEU É ESSE? Um estu<strong>do</strong> sobre a ideologia e as práticas políticas<br />
<strong>do</strong>s museus de arte na modernidade, 2002, p. 1.<br />
78 Inclusão de objetos representativos no espaço museológico.<br />
79 BASBAUM, Ricar<strong>do</strong>. Perspectivas para o museu <strong>do</strong> século XXI: Disponível em<br />
http://forumpermanente.incuba<strong>do</strong>ra.fapesp.br/portal/.painel/artigos/rb_museus/. Acessa<strong>do</strong> no dia<br />
01 de setembro de 2008, p. 1.<br />
65
especificidades discursivas), quanto prosseguir na invenção de<br />
outros formatos de agenciamento... 80<br />
Os museus possuem uma gama de ofertas e anseios que talvez não<br />
satisfaçam nossas aspirações no campo das atividades artísticas <strong>do</strong> século XXI.<br />
Mesmo que as palavras acima de Ricar<strong>do</strong> Basbaum nos sirvam de lema, aceitar<br />
ocupar os espaços institucionais operan<strong>do</strong> alguma resistência conceitual está em<br />
desacor<strong>do</strong> com o mo<strong>do</strong> de produção e pensamento que procuramos defender; tais<br />
conceitos talvez não sobrevivam aperta<strong>do</strong>s entre as paredes de um museu.<br />
Servin<strong>do</strong> <strong>como</strong> contraponto ao que tentamos delinear, Douglas Crimp em<br />
“Sobre as ruínas <strong>do</strong> museu” 81 cita Foucault e sua análise sobre as “modernas<br />
instituições de confinamento – o hospício, a clínica e a prisão – e suas estruturas<br />
discursivas respectivas – loucura, <strong>do</strong>ença, criminalidade.” 82 Crimp traz à tona a<br />
análise foulcautiana a fim de acrescentar mais uma instituição ao hall <strong>do</strong> filósofo<br />
francês. Para Douglas Crimp “existe outra instituição similar de confinamento à<br />
espera de uma análise arqueológica – o museu -, e uma outra disciplina – a história<br />
da arte.” 83 E ele completa: “Elas são a pré-condição <strong>do</strong> discurso que conhecemos<br />
<strong>como</strong> arte moderna.” 84<br />
Ao classificar o museu <strong>como</strong> espaço de confinamento, Crimp finca a<br />
bandeira <strong>do</strong> modernismo, e to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>gmas que o acompanham, nos espaços<br />
institucionais, <strong>como</strong> se declarasse que à arte moderna - que de todas as formas<br />
manifestou e afirmou a existência <strong>do</strong>s espaços museológicos - pertencem os<br />
museus e vice-versa. Esses museus (modernos) encaravam a arte <strong>como</strong> algo <strong>do</strong><br />
qual se pudesse extrair uma taxonomia, classifican<strong>do</strong>, agrupan<strong>do</strong> e arquivan<strong>do</strong><br />
80 Ibid., p. 7.<br />
81 CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas <strong>do</strong> museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />
82 Ibid., p. 45.<br />
83 Ibid., p. 45.<br />
84 Ibid., p. 45.<br />
66
objetos. Diametralmente em oposição e responden<strong>do</strong> a essa arte voltada ao arquivo<br />
estão os germens de um recorte <strong>do</strong> pós-modernismo, comprometi<strong>do</strong>s com uma arte<br />
colaborativa, presentes em Allan Kaprow e Joseph Beuys. As produções desses<br />
personagens reivindicavam um patrimônio assumidamente imaterial e que não<br />
caberia em um local defini<strong>do</strong> por Crimp <strong>como</strong> instituição de confinamento. De forma<br />
enfática Beuys e Kaprow optaram por dispensar o “ordeiro discurso <strong>do</strong> museu” 85 e,<br />
consequentemente, a proteção de sua aura. Ao contrário <strong>do</strong> que escreveu o pós-<br />
modernista Rauschenberg em 1970 86 , Allan e Joseph guardavam e mantinham vivos<br />
suas histórias e amores dentro de si; os sonhos e ideais da humanidade eram<br />
defendi<strong>do</strong>s por eles, com propriedade, nos espaços públicos, sob o brilho <strong>do</strong> Sol de<br />
alguma cidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; a educação <strong>do</strong> povo era uma construção coletiva em que<br />
o povo adquiria também o papel de construtor.<br />
Observan<strong>do</strong> as averiguações supracitadas percebemos que o mo<strong>do</strong><br />
moderno de ser <strong>do</strong>s museus, fornecen<strong>do</strong> o “certo” para o povo e soberanamente<br />
demonstran<strong>do</strong> e exercen<strong>do</strong> sua força e riqueza, apenas permitiu que as massas, o<br />
público “leigo”, se afastassem cada vez mais das produções posteriores. Não nos<br />
surpreende o fato de que no perío<strong>do</strong> que engloba o pós-modernismo continuaram a<br />
existir práticas alinhadas às relações institucionais que se fortaleceram na era<br />
moderna. Ainda hoje as elites confirmam serem as aliadas de sempre dessas<br />
instituições de poder e, não menos, podemos constatar <strong>artista</strong>s comprometi<strong>do</strong>s com<br />
os jogos políticos de tais instituições. Já que é evidente o fato de que os espaços<br />
museológicos e seus objetos arquiva<strong>do</strong>s não atraem as massas – ou se atraem não<br />
conseguem atingi-las -, não seria oportuno inverter o senti<strong>do</strong> e caminhar em direção<br />
ao público?<br />
85 Ibid., p. 54.<br />
86 Ver Certifica<strong>do</strong> <strong>do</strong> Centenário <strong>do</strong> Museu Metropolitano. In Ibid., p. 57.<br />
67
O isolamento de obras e <strong>artista</strong>s nesses espaços de confinamento ao<br />
invés de práticas <strong>como</strong> as de Beuys e Kaprow, que buscavam se inserir nos teci<strong>do</strong>s<br />
sociais e assim modificá-los (ou ao menos pensá-los e questioná-los), transformou a<br />
história da arte em algo estéril, que não consegue impetrar maneiras de reverberar.<br />
No museu, onde mun<strong>do</strong> exterior não pode entrar, perde-se toda a riqueza <strong>do</strong> que<br />
está lá fora. O mun<strong>do</strong> a céu aberto configura-se <strong>como</strong> bem mais interessante, a<br />
opulência da vida se sobrepõe em muito à presente nos museus.<br />
Isso nos impulsiona a resgatar exemplos <strong>como</strong> o de Hélio Oiticica,<br />
viven<strong>do</strong> na Mangueira, vestin<strong>do</strong>-se de verde e rosa e vestin<strong>do</strong> o povo da Mangueira<br />
com seus parangolés, dançan<strong>do</strong> e samban<strong>do</strong> em frente ao Museu de Arte Moderna<br />
<strong>do</strong> Rio de Janeiro; ou de Marcel Duchamp, quan<strong>do</strong> certa vez visitava um salão de<br />
aviação com Léger e Brancusi e de repente se deparou com a hélice de um avião.<br />
Ali percebeu que nenhum <strong>artista</strong> seria capaz de realizar objeto tão potente e, porque<br />
não, tão esteticamente interessante quanto aquele. Recorda-me também de um<br />
especial acontecimento que presenciei semana passada, no dia 28 de julho de 2011.<br />
Era abertura da Exposição Novíssimos na Galeria de Arte IBEU. Enquanto a <strong>artista</strong><br />
Bianca Bernar<strong>do</strong>, uma das selecionadas para o salão, realizava a ação Ataque<br />
Poiético em plena Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no vernissage, mais de<br />
cem pessoas se acotovelavam no interior da Galeria. Não focarei minha análise nos<br />
trabalhos em si, visto que era impossível vê-los e, portanto impossível fruí-los e<br />
julgá-los, mas no contexto cria<strong>do</strong> no dia da abertura de Novíssimos. Em Ataque<br />
Poiético Bianca fica de pé, olhos fecha<strong>do</strong>s, portan<strong>do</strong> uma placa em que se lê a<br />
palavra SILÊNCIO. Ao seu re<strong>do</strong>r o mun<strong>do</strong> corre e ela, “pousada sobre a<br />
delicadeza” 87 , permanece serena sob olhares curiosos. Segun<strong>do</strong> ela mesma sua<br />
87 Palavra da própria <strong>artista</strong>.<br />
68
obra “quer ser respiro, provocar suave arrepio, perceber o invisível...” Fiquei por 30<br />
minutos observan<strong>do</strong> o trabalho de Bia; na Galeria permaneci por 10 sufocantes<br />
minutos e fui embora com a seguinte questão na cabeça: o que fazíamos ali?<br />
Vale mais estar sob o teto de um museu ou sob o Sol? O que vale a pena<br />
colecionar? Ressaltamos mais uma vez que o patrimônio imaterial (relações,<br />
sentimentos, comunicações, colaborações) é qualitativamente superior às obras de<br />
um museu. Esse patrimônio imaterial presente em to<strong>do</strong>s nós e ao nosso re<strong>do</strong>r está à<br />
espera de ser apreendi<strong>do</strong> e ventila<strong>do</strong> por alguém, por to<strong>do</strong>s, <strong>artista</strong>s ou não.<br />
Nas décadas de 60 e 70 emergiram <strong>artista</strong>s - dentre os quais podemos<br />
citar Joseph Beuys e Allan Kaprow e aqui no Brasil, Hélio Oiticica e Lygia Clark –<br />
que defenderam certos princípios em voga no pós-modernismo e que<br />
tentaram romper os limites da arte, fazen<strong>do</strong> com que a produção de<br />
arte transbordasse para os limites da sociedade, para a arena<br />
ampliada da cultura <strong>do</strong> cotidiano, em um embate direto com os<br />
habitantes das grandes cidades contemporâneas. 88<br />
Essa pequena parcela de <strong>artista</strong>s percebeu que era preciso se livrar das<br />
amarras que os obrigavam a corresponder a um sistema deveras perverso para que<br />
produzissem poesia frente aos problemas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; problemas esses que a arte<br />
não conseguiu dar conta em nenhum momento. Podemos registrar <strong>como</strong><br />
desalenta<strong>do</strong>r o fato de que as práticas desses <strong>artista</strong>s “se mantiveram ainda<br />
circunscritas às áreas restritas <strong>do</strong> campo da arte, não suceden<strong>do</strong> seu<br />
transbordamento para o território das vivências sociais, conforme persegui<strong>do</strong> pelas<br />
vanguardas históricas.” 89<br />
88 OLIVEIRA, Luiz Sérgio. VANGUARDAS, NEOVANGUARDAS, GEOVANGUARDAS: os desafios<br />
meto<strong>do</strong>lógicos da história da arte diante das novas práticas de arte na esfera pública, p. 4.<br />
89 Ibid., p. 7.<br />
69
Imagino um museu que possa ficar de portas abertas vinte e quatro horas<br />
por dia, <strong>como</strong> uma trilha na natureza que se permite ser desbravada a qualquer<br />
hora, receben<strong>do</strong> nossas pegadas repletas de histórias, sentimentos e significâncias<br />
e permitin<strong>do</strong> ao “público” 90 participar e construir ativamente esse laboratório. As<br />
instituições (museus, galerias, centros culturais) e as agências de fomento artístico e<br />
cultural precisam repensar diariamente suas políticas de atuação frente às<br />
demandas de uma sociedade que apresenta transformações galopantes e carências<br />
que gritam e urgem ser abordadas. Os abrigos – prefiro assim chamá-los - <strong>do</strong>s<br />
<strong>artista</strong>s e suas produções devem estar prepara<strong>do</strong>s para receber processos<br />
contínuos e comunicações entre a arte e as comunidades que os circundam;<br />
necessitam transformar-se em verdadeiros laboratórios criativos que permitam o<br />
caminhar a passos largos <strong>do</strong> <strong>artista</strong> em direção ao seu público, penetran<strong>do</strong> o poético<br />
no mun<strong>do</strong> instituí<strong>do</strong>; devem estar aptos a receber e trocar experiência de<br />
humanidade entre as partes envolvidas, de preferência destituin<strong>do</strong> as velhas<br />
nomenclaturas que ainda rondam os chama<strong>do</strong>s “templos”. E quiçá o mais relevante,<br />
esses abrigos precisam permitir que os <strong>artista</strong>s os deixem – sem a obrigação de<br />
voltar - e usufruam <strong>do</strong> cardápio que estar sob o Sol proporciona, ten<strong>do</strong> a<br />
responsabilidade de apoiar, incentivar e produzir esse contato com o exterior. Sem<br />
estarem reclusos, alçan<strong>do</strong> vôos pelo mun<strong>do</strong> aberto, os <strong>artista</strong>s podem realizar um<br />
embate mais íntimo e direto com múltiplos grupos que, por conseguinte, poderão se<br />
tornar, assim <strong>como</strong> os <strong>artista</strong>s, inventores de linguagem e realidades.<br />
Pode ser o caso de os <strong>artista</strong>s - <strong>como</strong> alternativa ao aprisionamento de<br />
suas produções pelas elites da arte que tu<strong>do</strong> absorvem - cessarem de pensar em<br />
produzir obras tanto para espaços institucionais quanto para a esfera pública, e<br />
90 Já não podemos utilizar tais nomenclaturas sem fazer uso das aspas, visto que pensamos em uma<br />
produção poética desatada desses laços.<br />
70
estenderem suas produções ao campo das possibilidades imateriais, desenvolven<strong>do</strong><br />
colaborações, ativismos, trocas com cidadãos “comuns”, em busca de alternativas<br />
para a sociedade e ditan<strong>do</strong> novos rumos para o mun<strong>do</strong>.<br />
Mudanças <strong>como</strong> essas podem nos levar a um dia em que nos<br />
perguntaremos se a arte sumiu, se diluiu completamente com a vida e, sen<strong>do</strong> assim,<br />
já não conseguimos distingui-la e percebê-la. O mais surpreendente será constatar<br />
que isso realmente não tem importância, pois a “arte” e o “<strong>artista</strong>” terão encontra<strong>do</strong><br />
seu lugar.<br />
71
Capítulo 3<br />
Desejo um mun<strong>do</strong> melhor<br />
Figura 12 – Davi Ribeiro - A nona parte de um ovo ou beba água<br />
com açúcar e vá <strong>do</strong>rmir, 2011.<br />
72
3.1 No corpo, um desejo<br />
Escreveu pungin<strong>do</strong> em sua própria pele o encadeamento de<br />
melhor – mun<strong>do</strong> – desejo . No corpo tatua<strong>do</strong>, uma<br />
permanência. Tem <strong>como</strong> desdesejar um outro mun<strong>do</strong>, que não<br />
este, que te faz insatisfeito? 91<br />
No exato momento em que escrevo, ela me acompanha.<br />
Permanentemente marquei a pele de meu corpo com um desejo (Fig. 1). Aonde quer<br />
que vá, o desejo pungente de um mun<strong>do</strong> melhor está comigo. Marca<strong>do</strong> em meu<br />
peito para jamais ser esqueci<strong>do</strong>, porque sim, eu esqueço, e continuarei esquecen<strong>do</strong>,<br />
infelizmente ou felizmente, sinal cristalino da minha condição humana. Deixar-se<br />
marcar com o grandioso anseio de um mun<strong>do</strong> melhor, desejar-se marcar com esse<br />
anseio é um ato de coragem, justamente porque é muito difícil cumpri-lo. Na<br />
verdade, diariamente, nem que seja por alguns instantes, exerço a função de<br />
descumprir tal desejo. A tatuagem está aqui comigo, neste momento; e ela pulsa<br />
conforme meu coração bate avisan<strong>do</strong> que estou vivo; vivo e apto a praticar ações<br />
que me permitam aproximar-me de meu desejo. Acima de tu<strong>do</strong> é isso que quer a<br />
tatuagem; sim, ela tem vida própria, ela é um tributo à vida. O mais profun<strong>do</strong> é a<br />
pele e o mais raso também. É a pele que nos mantém em contato com o mun<strong>do</strong>,<br />
com a vida; a pele sente e faz sentir – frio, <strong>do</strong>r, coceira, calor, tesão, temor –, a pele<br />
é intimidade com a vida.<br />
Desejo um mun<strong>do</strong> melhor foi realiza<strong>do</strong> em Buenos Aires, <strong>como</strong> parte<br />
integrante <strong>do</strong> projeto Deseo Bs. As.. Poderia ter executa<strong>do</strong> tantos outros trabalhos<br />
na capital argentina que estabelecessem uma relação com o lugar. Durante a estada<br />
91 RIBAS, Cristina. Repartir um corpo: Disponível em:<br />
http://azulejista.wordpress.com/cristin/escritos/repartir/. Acessa<strong>do</strong> no dia 28 de maio de 2011.<br />
73
de cinco dias na cidade pensei em diversas coisas, em projetos previamente<br />
anota<strong>do</strong>s para Deseo Bs. As., porém sem que nenhum deles me satisfizesse.<br />
Projetar algo que será realiza<strong>do</strong> em uma cidade que você nunca esteve presente<br />
mostrou-se tarefa um tanto quanto complexa. Podemos obter centenas de<br />
informações a respeito <strong>do</strong> local, mas nada se aproxima à experiência de viver o<br />
lugar. Buenos Aires é uma cidade fascinante nos mais varia<strong>do</strong>s aspectos, e deveras<br />
sedutora. Ela necessita e consegue ser amada por aqueles que a visitam. E é nessa<br />
atmosfera que se desenrolou minha estada. Apesar <strong>do</strong> frio, me senti aqueci<strong>do</strong>. Amei<br />
a cidade, desejei Buenos Aires. A tatuagem foi surgin<strong>do</strong> e amadurecen<strong>do</strong> (rápi<strong>do</strong>)<br />
em meus pensamentos ao caminhar pelos bairros da cidade. Por fim decidi fazê-la;<br />
não foi fácil a decisão. Na cadeira <strong>do</strong> tatua<strong>do</strong>r, Roberto, aguardava enquanto ele<br />
preparava os materiais, tinta, luvas, pomada, agulha. Roberto não demorou a<br />
finalizar seu trabalho; foram cerca de vinte minutos de traços surpreendentemente<br />
precisos. Diria que ficou perfeita. Pronto, aos 26 anos, estava eu, imutavelmente<br />
marca<strong>do</strong> pelo desejo de um mun<strong>do</strong> melhor. Desejo, se não nasci<strong>do</strong>, ao menos<br />
aflora<strong>do</strong> na cidade de Buenos Aires. Marca<strong>do</strong> com tinta e <strong>do</strong>r me sentia feliz por<br />
exaltar a vida nos seus mais singelos deslocamentos. A <strong>do</strong>r, presente em alguns de<br />
meus trabalhos, é comum a to<strong>do</strong>s, homens, animais e até plantas segun<strong>do</strong> alguns.<br />
Talvez seja esse o la<strong>do</strong> bom da <strong>do</strong>r, ela nos iguala; ou permite que nossos sonhos-<br />
desejos-utopias permaneçam <strong>como</strong> uma pipa que voa à mais longínqua altura até se<br />
tornar um pequeno pontinho no céu, mas está sempre conectada à terra por uma<br />
singela linha branca.<br />
74
3.2 Do altruísmo das flores<br />
Uma das primeiras lembranças que conservo ainda fresca, em minha<br />
mente, data de 1983. Tinha eu pouco menos de um ano de idade; lembro de um<br />
lençol ou colcha, não sei bem ao certo, sempre presente na cama de meus pais.<br />
Esse lençol, vamos chamá-lo assim, possuía uma textura bem peculiar, que se<br />
assemelhava a seda e, por mais que estivesse calor, o que é natural no Rio de<br />
Janeiro, o teci<strong>do</strong> conservava-se sempre fresco. Seu fun<strong>do</strong> era branco e sua estampa<br />
de flores; flores rosas. Quan<strong>do</strong> fecho os olhos ainda posso sentir aquele teci<strong>do</strong><br />
tocan<strong>do</strong> o delica<strong>do</strong> corpo de quem saiu há pouco <strong>do</strong> ventre materno.<br />
Passaram-se 28 anos e, apesar de ter vivi<strong>do</strong> muitas situações adversas<br />
que mantiveram fragiliza<strong>do</strong> o já não tão jovem corpo, continuo acreditan<strong>do</strong> nas<br />
flores; no poder das flores. Sim, naquela época já cria nelas, algo inato e, por isso<br />
mesmo, verdadeiro.<br />
Flores - alegrias, conquistas, amores possíveis e platônicos - também<br />
tristeza, <strong>do</strong> ser ama<strong>do</strong> que se foi. Vasculhan<strong>do</strong> meus arquivos, lembranças<br />
guardadas, percebo que as flores acompanharam minha trajetória essencialmente<br />
em momentos <strong>do</strong>s quais, de fato, não gostaria de recordar. A morte de meu avô e de<br />
meu padrinho, um amor não correspondi<strong>do</strong>, o leito <strong>do</strong> hospital, aquele lençol, que ao<br />
mesmo tempo ressuscita sensações boas e uma certa melancolia que me aperta o<br />
peito. Hoje não. As flores agora me são companheiras saudáveis, amigas que, se<br />
fazem verter lágrimas, não são por sal<strong>do</strong>s negativos na inconstante balança que é<br />
viver. São minhas colabora<strong>do</strong>ras para o que denomino utopias possíveis, para<br />
desejos de criação de um mun<strong>do</strong> melhor. Podemos transformar vidas, cada um de<br />
nós tem esse poder e capacidade. Entregar uma flor a alguém, desconheci<strong>do</strong> ou<br />
75
não, pode desencadear algum processo, possibilitar uma guinada (pequena que<br />
seja) na vida de um ser humano.<br />
Realiza<strong>do</strong> em duas ocasiões, Do altruísmo das flores (Figs. 2 e 13)<br />
procura, a partir <strong>do</strong> componente FLOR, estabelecer contatos e trocas mais íntimas<br />
entre os interlocutores da ação. A proposta <strong>do</strong> trabalho diz assim:<br />
Além de sua beleza e perfume, as flores trazem consigo toda carga<br />
sentimental daquele que as comprou com o intuito de presentear<br />
alguém. Depois de alguns dias sen<strong>do</strong> instrumento de felicidade, amor<br />
e homenagem, elas morrem. Você está receben<strong>do</strong> uma flor. Fique<br />
com ela e receba tu<strong>do</strong> que ela pode oferecer. Quan<strong>do</strong> quiser e, se<br />
quiser, a passe à diante para que outra pessoa desfrute de seus<br />
benefícios. Se ela morrer em sua posse, antes de jogá-la fora<br />
agradeça por tu<strong>do</strong> que fez por nós.<br />
Nas instruções acima, que entrego às pessoas juntamente com a flor,<br />
aquele que as recebe tem <strong>do</strong>is caminhos possíveis a seguir, nenhum deles mais<br />
importante: reverberar a ação, estabelecen<strong>do</strong> trocas, estranhamentos, conversas,<br />
entre os mais varia<strong>do</strong>s indivíduos ou manter a flor em sua posse e refletir sobre os<br />
significa<strong>do</strong>s e direcionamentos que o ato de dar ou receber uma flor e o próprio<br />
objeto flor trazem consigo. As flores requerem cuida<strong>do</strong>, cultivo de sua beleza,<br />
<strong>do</strong>ação; e retribuem. Nós também precisamos e podemos retribuir.<br />
Sem dúvida mais importante que a flor ou as instruções da ação são os<br />
desencadeamentos que o trabalho suscita. Do altruísmo das flores deixa claro que<br />
existe uma relação de troca entre as partes e, mais ainda, eu <strong>como</strong> <strong>artista</strong> propositor<br />
recebo algo em troca. Invariavelmente, salvo pouquíssimas exceções, acontecem<br />
reações positivas logo após a entrega da flor e a leitura <strong>do</strong> texto. Tanto os<br />
conheci<strong>do</strong>s quanto as pessoas cujo encontro se dá pela primeira vez reagem à<br />
proposta com sorrisos, abraços, beijos. Ali se estabelece uma relação afetuosa entre<br />
76
o propositor e receptor que acredito se mantenha por algum tempo. As ondas de<br />
afeto perduram e reverberam.<br />
Figura 13 – Davi Ribeiro – Do altruísmos das flores, 2008.<br />
77
3.2.1 O altruísmo <strong>do</strong> <strong>artista</strong><br />
Qual a reciprocidade da disposição <strong>do</strong> <strong>artista</strong>? O que recebemos em<br />
troca? O altruísmo traz em seu significa<strong>do</strong> a capacidade que o homem possui em<br />
<strong>do</strong>ar-se sem a expectativa de ser beneficia<strong>do</strong> de alguma forma. É uma entrega<br />
desinteressada. Mas também pode denotar uma aptidão humana em dedicar-se ao<br />
outro, visto que o homem pode ser bom e generoso naturalmente. Se por um la<strong>do</strong><br />
parece quase impossível sermos altruístas em sua acepção mais radical, apenas<br />
dedicar-se ao outro – com o aden<strong>do</strong> da troca - nos parece tarefa um tanto quanto<br />
fácil. A felicidade é uma troca, está atrelada a um receber algo de volta. Até o<br />
suicida, <strong>como</strong> diria André Comte-Sponville, em seu ato extremo de dar cabo à vida,<br />
está à procura da felicidade. O fim é sua satisfação.<br />
Nas sociedades arcaicas era expediente comum a obrigação de retribuir<br />
um presente, uma oferenda recebida de outrem. Dissertan<strong>do</strong> sobre o espírito da<br />
coisa dada na cultura Maori, Marcel Mauss nos relata que o presente recebi<strong>do</strong><br />
possui em si um poder espiritual que obrigará o desenrolar de uma cadeia de trocas<br />
entre as partes (aquele que dá, aquele que recebe), poden<strong>do</strong> até se estender a<br />
outros indivíduos. Mauss nos fala: “O que, no presente recebi<strong>do</strong>, troca<strong>do</strong>, obriga, é o<br />
fato de a coisa recebida não ser inerte. Mesmo aban<strong>do</strong>nada pelo <strong>do</strong>a<strong>do</strong>r, é ainda<br />
qualquer coisa dele.” 92<br />
Em Do altruísmo das flores a relação estabelecida entre o <strong>artista</strong> Davi e o<br />
receptor, tem seu componente “presente” refleti<strong>do</strong> na flor. E nos parece claro que,<br />
apesar de não ser solicitada, a troca é quase que imediata, seja por meio de um<br />
sorriso, abraço ou beijo. E a coisa dada, a flor, assim <strong>como</strong> na frase supracitada de<br />
92 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 69.<br />
78
Mauss, assume sua forma ativa e perdura, em posse daquele que foi escolhi<strong>do</strong>,<br />
ainda sen<strong>do</strong> qualquer coisa minha, reverberan<strong>do</strong> o <strong>artista</strong> Davi até ou depois de a<br />
flor se esvair. Mais à diante Marcel Mauss complementa:<br />
Compreende-se clara e logicamente, neste sistema de idéias, que seja<br />
necessário retribuir a outrem aquilo que é, na realidade, parcela da sua<br />
natureza e substância; porque aceitar qualquer coisa de alguém é aceitar<br />
qualquer coisa da sua essência espiritual, da sua alma. 93<br />
As produções em arte que aqui defendemos estão orientadas a construir<br />
relações de mão dupla entre produtores e receptores – to<strong>do</strong>s fazen<strong>do</strong> parte de<br />
ambos os la<strong>do</strong>s -, em suma, estabelecer um processo contínuo de troca entre os<br />
indivíduos e comunidades em questão. A flor é altruísta absoluta, se <strong>do</strong>a por<br />
completo e não pede nada em troca. Nós podemos criar vínculos, que poderiam<br />
parecer inviáveis, entre a arte e o altruísmo. O que <strong>do</strong>amos, nossas produções,<br />
carregam junto fragmentos de nossas almas que irão se fundir àqueles que as<br />
recebem e nós, <strong>artista</strong>s, também carregaremos – e deste mo<strong>do</strong> edificaremos aquilo<br />
que somos - partículas daqueles que cruzam nosso caminho. O que recebemos em<br />
troca? Conhecimento, afeto, amplificação de nosso trabalho, a melhoria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
3.3 A fome de to<strong>do</strong>s nós<br />
No dia 23 de março de 2011 realizei nos pilotis <strong>do</strong> Museu de Arte<br />
Moderna <strong>do</strong> Rio de Janeiro a performance A nona parte de um ovo ou beba água<br />
93 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 70.<br />
79
com açúcar e vá <strong>do</strong>rmir (Fig. 12). O trabalho integrou o Festival PerformanceArte<br />
Brasil, com cura<strong>do</strong>ria geral de Daniela Labra, que buscava através de trabalhos de<br />
<strong>artista</strong>s de todas as regiões brasileiras e palestras exibir um panorama <strong>do</strong> gênero<br />
performance no Brasil. Todas as ações deveriam ocorrer nos pilotis ou jardins <strong>do</strong><br />
MAM. Como premissa da ação, o texto a seguir a acompanhava:<br />
Áurea tinha nove filhos. Certas noites, sem ter o que lhes dar para<br />
comer, dizia com a voz embargada: "Beba água com açúcar e vá<br />
<strong>do</strong>rmir meu filho." Outras noites, em silêncio, repartia um ovo em<br />
nove partes, uma para cada rebento.<br />
Nas próximas 24 horas só poderás consumir um copo de água com<br />
açúcar e a nona parte de um ovo, para que não esqueças que 925<br />
milhões de pessoas ainda passam fome no mun<strong>do</strong>.<br />
Durante 24 horas permaneci no espaço restrito de uma esteira poden<strong>do</strong><br />
consumir apenas a nona parte de um ovo e um copo de água com açúcar. A tarefa<br />
iniciou-se às 19h30; lá eu deveria permanecer até as 19h30 <strong>do</strong> dia seguinte. O<br />
trabalho estava sen<strong>do</strong> transmiti<strong>do</strong> ao vivo via streaming para to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Os<br />
acessos à transmissão on-line atingiram a casa <strong>do</strong>s milhares, enquanto dezenas de<br />
pessoas mandavam mensagens me acompanhan<strong>do</strong>. Optei por realizar a<br />
transmissão via web para que mais pessoas pudessem apreender a totalidade da<br />
ação, mas também para que a amplitude <strong>do</strong> trabalho fosse global assim <strong>como</strong> o<br />
problema aborda<strong>do</strong>. Para quem quisesse e pudesse eu estava nos pilotis <strong>do</strong> MAM<br />
receptivo a qualquer visita em minha casa provisória. Várias pessoas foram me<br />
visitar; apareceram alguns solidários ao trabalho de madrugada. Nessas visitas<br />
conversávamos não só sobre arte, mas acerca de tu<strong>do</strong>, acerca da vida <strong>como</strong> um<br />
to<strong>do</strong>. Dois rapazes vin<strong>do</strong>s da Lapa ficaram horas ao meu la<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> cerveja e<br />
me fazen<strong>do</strong> companhia em minha empreitada.<br />
80
Os dias que antecederam a ação foram de preparação, mais psicológica<br />
que física. Precisava estar concentra<strong>do</strong> para 24 horas de jejum quase completo. A<br />
preparação serviu apenas para mostrar que não estava prepara<strong>do</strong>; nunca estamos.<br />
Somente vivencian<strong>do</strong> as coisas da vida é que ficamos prontos para ela, durante o<br />
próprio ato de viver ou vivenciar.<br />
A jornada foi extremamente difícil, <strong>do</strong>lorosa. No início tentei conter as<br />
lágrimas que teimavam em escorrer. As primeiras <strong>do</strong>ze horas foram tranqüilas, mais<br />
até <strong>do</strong> que imaginava. O sofrimento veio por outras vias que não a da fome. Fazia<br />
muito frio e o cobertor e a esteira que providenciei não foram suficientes para conter<br />
o vento géli<strong>do</strong> e intermitente que adentrava to<strong>do</strong> meu corpo. As costas <strong>do</strong>íam<br />
bastante devi<strong>do</strong> ao chão duro. De vez em quan<strong>do</strong> passavam figuras estranhas que<br />
preocupavam o suficiente para me fazer demorar a cair no sono novamente. Acordei<br />
tão logo surgiram os primeiros raios de sol. Ainda faltavam cerca de 14 horas. As<br />
<strong>do</strong>res nas costas tornavam-se cada vez mais fortes. Quanto mais se aproximava <strong>do</strong><br />
meio dia, mais a fome maltratava meu corpo e minha mente. Desistir não esteve em<br />
momento algum em pauta. A vida estava em pauta. Por volta das 13h bebi o<br />
primeiro gole da água e comi a nona parte <strong>do</strong> ovo por completo. Esse pequeno<br />
lanche parece que aguçou e fez aflorar a fome de forma impie<strong>do</strong>sa. A partir daí,<br />
associa<strong>do</strong> às <strong>do</strong>res nas costas que já beiravam o insuportável, vivi um <strong>do</strong>s<br />
momentos mais intensos e sofríveis de minha vida. A garganta estava<br />
completamente fechada, talvez pelo frio passa<strong>do</strong> na noite anterior, e as <strong>do</strong>res só<br />
eram amenizadas, ou pelo menos disfarçadas, nos instantes em que uma alma<br />
cari<strong>do</strong>sa vinha trocar algumas palavras comigo. Recebi a visita de muitos amigos e<br />
algumas oferendas de pessoas que não conhecia: uma maça, balas, barra de<br />
cereal, que permaneceram intocadas e aguçaram a fome; não podia reclamar de<br />
81
nobres intenções. Na última hora chegaram amigos que vieram me buscar e tantas<br />
outras pessoas que permaneceram ao meu la<strong>do</strong> na reta final, sem dúvida o perío<strong>do</strong><br />
mais difícil. Ao fim das 24 horas, apesar de toda a <strong>do</strong>r, me sentia realiza<strong>do</strong>. Foram<br />
horas vividas profundamente, sentin<strong>do</strong> cada segun<strong>do</strong> deslizar vagarosamente por<br />
meu corpo, receben<strong>do</strong> a cada momento estímulos internos e externos.<br />
Sobre a premissa <strong>do</strong> trabalho gostaria de deixá-los seguros de uma coisa.<br />
Áurea não precisava e não precisa de nossa pena. Ela é um lembrete grave <strong>do</strong> que<br />
existe por toda parte por conta de nossa inação. Todavia, apesar de seu sofrimento<br />
e de seus filhos, seu lar era aqueci<strong>do</strong>, repleto de amor (palavra cafona, fora de<br />
moda) e seu gesto – ação – de proporcionar a seus filhos a nona parte de um ovo<br />
que fosse ou um simples copo de água (com açúcar, não podemos esquecer) fez<br />
com que aquelas nove crianças pudessem crescer, todas saudáveis e lhes dessem<br />
vinte e um netos igualmente com saúde. As pequenas maravilhas de Áurea estavam<br />
contidas no ovo e na água. Onde estão nossas pequenas maravilhas?<br />
3.4 A possibilidade <strong>do</strong> sonho<br />
Nenhum ser humano jamais viveu sem sonhos diurnos, mas o que importa<br />
é saber sempre mais sobre eles e, desse mo<strong>do</strong>, mantê-los direciona<strong>do</strong>s de<br />
forma clara e solícita para o que é direito. 94<br />
Ernst Bloch dedicou seus esforços a escrever um extenso trata<strong>do</strong> de três<br />
volumes a fim de versar sobre sonhos, utopias e esperança. Três <strong>do</strong>s elementos que<br />
94 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 14.<br />
82
servem de propulsão ao homem na tarefa diária de acordar pela manhã; um homem<br />
sem sonhos, expectativas é um homem morto. As palavras que constroem esse<br />
texto são a soma das mais distintas utopias possíveis, próprias ou de pessoas com<br />
quem tive o privilégio de estabelecer uma relação, à distância que fosse. John<br />
McClaine, o menino pobre, sem chinelos, com sorriso no rosto a vender chicletes,<br />
tinha um sonho que fazia seus olhos de jabuticaba brilharem; ele queria e talvez<br />
ainda queira (assim esperamos) ser desembarga<strong>do</strong>r; O pai de Mozart depositou em<br />
seu filho to<strong>do</strong> o peso de seus sonhos frustra<strong>do</strong>s; Joseph Beuys sonhou a<br />
democracia direta, a Universidade Livre, o mun<strong>do</strong> pleno de potências artísticas 95<br />
semeadas em/por cada ser humano <strong>do</strong> planeta; Allan Kaprow não precisou ir longe<br />
para desvelar sua humanidade - quem sabe perdida –, seus sonhos foram<br />
descobertos nas performances ordinárias da vida. Bianca Bernar<strong>do</strong> deseja apenas<br />
que outras pessoas compartilhem com ela de seu silêncio; Cristina Ribas quer ir em<br />
nossa casa, quer partilhar <strong>do</strong> seu espaço sagra<strong>do</strong>; O sonho de um mun<strong>do</strong> melhor<br />
está escrito em minha pele. Segun<strong>do</strong> Ernst Bloch,<br />
O desejo de ver as coisas melhorarem não a<strong>do</strong>rmece. Nunca nos livramos<br />
<strong>do</strong> desejo, ou então nos livramos apenas ilusoriamente. Seria mais cômo<strong>do</strong><br />
esquecer esse anseio <strong>do</strong> que realizá-lo, mas para onde isso levaria hoje?<br />
Os desejos ainda assim não cessariam, ou se travestiriam em novos, ou até<br />
nós, os sem-desejo, seríamos cadáveres que os maus pisariam no caminho<br />
para sua vitória. 96<br />
Os sonhos das pessoas descritos acima são latentes, prontos para serem<br />
postos em prática e concretiza<strong>do</strong>s. Como Bloch nos diz é mais fácil deixar os sonhos<br />
de la<strong>do</strong> <strong>do</strong> que lutar para realizá-los, mas ele também nos alerta de que não é hora<br />
de fugirmos de nossos desejos. Sonhos e utopia caminham quase sempre de mãos<br />
95 Criativas.<br />
96 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 79.<br />
83
dadas. Nossa consciência é deveras utópica, principalmente quan<strong>do</strong> estamos<br />
<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Acorda<strong>do</strong>s, nossos sonhos permanecem e adquirem um caráter mais<br />
palpável, visto que podemos agir para convertê-los em utopias possíveis e contamos<br />
com o auxílio de nossos pares na empreitada; a solidão <strong>do</strong> sono já não se faz mais<br />
presente. A arte que pregamos carrega consigo a possibilidade desse sonho<br />
coletivo. Por intermédio de produções orientadas para os processos colaborativos,<br />
onde as construções poéticas se dão horizontalmente, destituin<strong>do</strong> as distâncias<br />
entre o <strong>artista</strong> e seu público, a coletividade pode estabelecer metas conjuntas a<br />
serem alcançadas, tornan<strong>do</strong> os sonhos antes inatingíveis em algo tangível. Bloch<br />
nos abre um leque de recursos para que vejamos as portas abertas para nossos<br />
sonhos. Ao contrário de André Comte-Sponville que defende uma atitude<br />
desesperançada 97 , Bloch planta uma semente de esperança em nossas mentes ao<br />
dissertar que:<br />
...enquanto a realidade não for completamente determinada, enquanto ela<br />
contiver possibilidades inconclusas em novas germinações e novos espaços<br />
de conformação, enquanto for assim, não poderá proceder da realidade<br />
meramente fática qualquer objeção absoluta contra a utopia. 98<br />
As utopias são possíveis, os sonhos podem e devem ser construí<strong>do</strong>s em<br />
conjunto, “a felicidade não decorre mais da infelicidade <strong>do</strong> outro nem se mede por<br />
ela. Isto porque a pessoa ao la<strong>do</strong> não é mais barreira para a própria liberdade, mas<br />
o lugar em que ela se concretiza.” 99 Podemos trabalhar pelo outro e com o outro, a<br />
magnitude humana permite que construamos esse outro mun<strong>do</strong> “utópico”. Somos<br />
97 De forma alguma Comte-Spoville quer fazer nossos sonhos ruir, veremos em breve que a<br />
esperança, mesmo que timidamente, está presente em seus ideais.<br />
98 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 195.<br />
99 Ibid., p. 42.<br />
84
construtores de sonhos e desejos que encontram chance de materialização na<br />
vontade de cada um aliada à <strong>do</strong> outro.<br />
3.5 A vida em pauta<br />
Se fosse possível definir em poucas palavras sobre que objeto se<br />
debruçam meus trabalhos diria que meus olhos estão volta<strong>do</strong>s para a vida e seus<br />
pequenos prodígios. Buscamos possibilidades de uma vida feliz, construções para<br />
uma coletividade melhor, anseios esses que se inserem na minha definição de<br />
utopias possíveis. A busca por transformar o ordinário em maravilhoso não encontra<br />
fronteiras, são desejos transterritoriais, linguagem comum a to<strong>do</strong>s, Esperanto. Perto<br />
<strong>do</strong> coração uma condição para o mun<strong>do</strong>, lê-se: deseo un mun<strong>do</strong> mejor. O idioma<br />
não é o meu, naquele momento desejava-amava Buenos Aires, assim <strong>como</strong> desejei-<br />
amei Bolívia e Peru.<br />
85
Figura 14 – Davi Ribeiro - Série Utopias possíveis: PAZ, 2010.<br />
É possível que se conjuguem desejo-amor e <strong>do</strong>r? Por conhecimento de<br />
causa diria que sim. De acor<strong>do</strong> com Ernst Bloch “o ser humano fabula desejos” 100 e<br />
acreditamos que a <strong>do</strong>r traz tais anseios para perto <strong>do</strong> chão, próximos à realidade<br />
sólida onde podem ser de fato realiza<strong>do</strong>s. A <strong>do</strong>r é recorrente em meus trabalhos, o<br />
amor também. Ambos são onipresentes na vida. Tatuei na infinitude de um círculo o<br />
desejo de um outro mun<strong>do</strong> e simultaneamente sentia as <strong>do</strong>res dessa aspiração<br />
penetran<strong>do</strong> minha carne. Conclamei o querer de um mun<strong>do</strong> sem fome ao longo de<br />
24 horas de sofrimento e a longínqua bandeira da paz (Fig. 14) em troca de alguns<br />
ferimentos.<br />
Sabemos que, <strong>como</strong> seres humanos, ou melhor, <strong>como</strong> seres vivos,<br />
fugimos instintivamente da <strong>do</strong>r. Longe estou de menosprezar as <strong>do</strong>res que tem si<strong>do</strong><br />
companheiras em meus caminhos, tampouco tenho intenção de exaltá-las, mas elas<br />
100 Ibid., 194.<br />
86
existem e faz-se necessário o aprendiza<strong>do</strong> de saber encará-las e superá-las quan<strong>do</strong><br />
possível; ou esperar que elas nos deixem. Mas <strong>como</strong> fazer uso <strong>do</strong>s verbos<br />
conhecer, fazer e amar, <strong>como</strong> fazer valer o imperativo de um mun<strong>do</strong> melhor onde a<br />
<strong>do</strong>r é onipresente?<br />
Em maio de 2006 fui atropela<strong>do</strong> por um caminhão em frente à<br />
Universidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, quan<strong>do</strong> me dirigia ao Departamento<br />
Cultural da Universidade, onde gozava de bolsa de pesquisa de Artista Visitante.<br />
Assim que o semáforo fechou coloquei meus pés na faixa para atravessar a rua. Um<br />
caminhão avançou o sinal a toda velocidade e me acertou em cheio. Acordei alguns<br />
minutos depois dentro de uma ambulância <strong>do</strong>s bombeiros, sem saber o que havia<br />
aconteci<strong>do</strong>. Quebrei quatro costelas, a clavícula esquerda e até hoje tenho asfalto<br />
no nariz. Permaneci uma semana no leito <strong>do</strong> Hospital <strong>do</strong> Andaraí e mais <strong>do</strong>is meses<br />
em casa até a completa recuperação e alta médica. A verdade é que foram quase<br />
três meses de convivência diária com as <strong>do</strong>res que irradiavam por to<strong>do</strong> o corpo e<br />
que até hoje, de vez em quan<strong>do</strong>, dão o ar de sua graça me lembran<strong>do</strong> que aquele<br />
dia existiu. E apesar de todas as <strong>do</strong>res inenarráveis que senti durante esse perío<strong>do</strong>,<br />
que me impediam até de respirar normalmente, me senti vitorioso após o episódio,<br />
minha utopia naquele momento, poder viver, se concretizou; sem sombra de dúvidas<br />
saí modifica<strong>do</strong> não só fisicamente, mas também com uma visão da vida<br />
completamente distinta da que possuía antes <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong>; sinto que de alguma<br />
forma sou alguém melhor.<br />
A filosofia de Epicuro, com o qual compartilho algumas idéias, prega que<br />
a finalidade de nossas existências é a vida feliz e é para isso que direcionamos e<br />
praticamos todas as nossas ações. Todas as nossas escolhas são arbitradas de<br />
acor<strong>do</strong> com nossas distinções entre prazer e <strong>do</strong>r. Das experiências de <strong>do</strong>r Epicuro<br />
87
nos ensina que precisamos aprender a relativizá-las e numa de suas máximas<br />
capitais ele nos diz:<br />
Não dura ininterruptamente a <strong>do</strong>r da carne; o seu cume dura um<br />
tempo brevíssimo; e o que deste ultrapassa o prazer não se prolonga<br />
por muitos dias na nossa carne. As longas enfermidades trazem,<br />
posteriormente, à carne mais prazer que <strong>do</strong>r. 101<br />
E ainda completa em outro trecho: “Toda <strong>do</strong>r é facilmente desprezável: o<br />
que traz intenso sofrimento tem também breve duração, e o que dura por muito<br />
tempo na carne traz pequeno sofrimento.” 102<br />
Estamos seguros e de plena consciência de que Epicuro e seu pupilo de<br />
séculos mais tarde, André Comte-Sponville, nos introduzem ao discurso <strong>do</strong> sábio e<br />
que aqui apresentamos <strong>como</strong> pesquisa e possibilidade de exercício (porque não?),<br />
visto que estou longe de alcançar a sabe<strong>do</strong>ria e acredito que – com to<strong>do</strong> respeito e<br />
humildade – nenhum leitor destas palavras será capaz de sê-lo. O sábio de Epicuro<br />
e Comte-Sponville é aquele que consegue ter absoluta felicidade em toda e qualquer<br />
circunstância. O filósofo francês contemporâneo nos dá um exemplo:<br />
Sua casa acaba de pegar fogo? Não tem importância: se você tem<br />
sabe<strong>do</strong>ria, você é feliz! “Mas na minha casa estavam minha mulher,<br />
meus filhos... Morreram to<strong>do</strong>s!” Não tem importância: se você tem<br />
sabe<strong>do</strong>ria, você é feliz. 103<br />
Assim <strong>como</strong> Comte-Sponville não me sinto capaz de vestir os trajes de<br />
um sábio nesses moldes, portanto me falta sabe<strong>do</strong>ria para exercer a felicidade<br />
plena. Apesar de não podermos ser sábios em absoluto, temos a capacidade e<br />
101<br />
EPICURO apud REALE, Giovanni. Filosofias Helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Edições<br />
Loyola Jesuítas, 2011, p. 217.<br />
102<br />
EPICURO apud Ibid., p. 217.<br />
103<br />
COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2005,<br />
p. 20.<br />
88
podemos ter a coragem de exercitar algumas de suas propostas, “podemos ser mais<br />
ou menos sábios, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que podemos ser mais ou menos loucos.” 104 Ser<br />
mais ou menos sábio, exercitar um pouco da sabe<strong>do</strong>ria seria de alguma maneira<br />
procurar praticar uma sabe<strong>do</strong>ria da vida cotidiana. Dentre as proposições gerais que<br />
guiavam o Jardim de Epicuro gostaríamos de destacar: A realidade é perfeitamente<br />
penetrável e conhecível pela inteligência <strong>do</strong> homem; Nas dimensões <strong>do</strong> real há<br />
espaço para a felicidade <strong>do</strong> homem; Para alcançar a felicidade o homem só<br />
depende de si mesmo. Ou seja, essa busca que por diversas vezes nos soa<br />
inalcançável está em nosso poder se soubermos aplicar nosso intelecto para tal fim.<br />
Ao discursar sobre Epicuro e sua Escola, Giovanni Reale nos fala: “O Jardim de<br />
Epicuro nasceu para criar homens que tomassem plenamente consciência de ser<br />
indivíduos, e que aprendessem a compreender que toda salvação não pode vir<br />
senão deles mesmos.” 105<br />
Quan<strong>do</strong> o conjunto de coisas necessárias para concretizar nossos<br />
desejos depende apenas de nós, tu<strong>do</strong> parece tornar-se mais fácil. Fico tentan<strong>do</strong> me<br />
lembrar <strong>do</strong> momento em que minha produção alcançou o patamar que reflete as<br />
direções para as quais meus trabalhos apontam atualmente. Confesso que não<br />
consigo resgatar tal lembrança e talvez não seja uma recordação necessária diante<br />
da relevância que os processos – esses sim – carregam nos dias atuais. A<br />
construção <strong>do</strong> <strong>artista</strong> Davi aconteceu vagarosamente, associada ao ser humano que<br />
de forma adjacente ia se moldan<strong>do</strong>. Decididamente foi um processo de<br />
autodescoberta que pôde desvendar algumas facetas e ao menos rascunhar uma<br />
silhueta de crenças, desejos, quereres, me<strong>do</strong>s. Alguns clímaces existiram, <strong>como</strong> a<br />
viagem a Machu Picchu e o atropelamento, experiências que, para o bem ou para o<br />
104 Ibid., p. 12.<br />
105 REALE, Giovanni. Filosofias Helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2011,<br />
p. 225.<br />
89
mal, trataram de acelerar alguns conflitos internos. Ser atingi<strong>do</strong> por um caminhão e<br />
ficar no tênue limite <strong>do</strong> viver me levou ao zero absoluto. Os meses que se<br />
sucederam providenciaram e desvelaram o esvaziamento completo <strong>do</strong> ser humano<br />
Davi. Estava vazio de tu<strong>do</strong>, inclusive de arte. E foi esse esvaziamento, e uma certa<br />
sensação de estar perdi<strong>do</strong>, que permitiu que eu fosse infla<strong>do</strong> por completo de novos<br />
pensamentos e seguisse novos rumos. Chegan<strong>do</strong> às últimas conseqüências por<br />
experimentar o gosto de uma quase morte pude, após algum tempo mergulha<strong>do</strong><br />
dentro de mim, fazer minhas obras eclodirem.<br />
Quan<strong>do</strong> a vida parece estar in<strong>do</strong> embora percebemos que o ponto crucial<br />
da existência está em descortinar os pequenos prodígios <strong>do</strong> cotidiano, as utopias<br />
que se mostram possíveis apesar de to<strong>do</strong>s os pesares. Quan<strong>do</strong> temos a capacidade<br />
de enxergar a grandeza <strong>do</strong> simples, quan<strong>do</strong> dirigimos nosso pensar criativo para o<br />
plantar de uma árvore e isso se torna um ato artístico, quan<strong>do</strong> percebemos as<br />
qualidades <strong>do</strong> movimento de nosso corpo ao escovar os dentes, quan<strong>do</strong> essas<br />
coisas acontecem a vida se engrandece de tal forma que tu<strong>do</strong> torna-se mais fácil e<br />
feliz porque as maravilhas estão à nossa volta, ao alcance de nossas mãos.<br />
3.6 A potência de agir<br />
O que enxergamos <strong>como</strong> congruência entre minha produção e a de<br />
Joseph Beuys é que ambas são movidas pelo desejo e, mais <strong>do</strong> que isso, possuem<br />
o desejo (de transformação) <strong>como</strong> cerne. Não acredito que nossas experiências<br />
comuns de quase morte sejam a circunstância que nos levou a isso. Esse desejo de<br />
90
transformação é inato aos seres humanos. Aqui no caso não podemos confundir as<br />
propostas das palavras “desejo” e “esperança” que podem nos levar a cair em uma<br />
emboscada. O desejo que propomos está desvencilha<strong>do</strong> <strong>do</strong> conceito inalcançável<br />
de Platão, de que só desejamos aquilo que não temos e, tão logo nossos desejos<br />
sejam sacia<strong>do</strong>s, o antigo alvo deixa de ser cobiça<strong>do</strong> e passamos a desejar outra<br />
coisa. A resposta de André Comte-Sponville nos clarifica a visão: Platão “confunde o<br />
desejo e a esperança, e é nessa confusão que tu<strong>do</strong> se joga.” 106 E logo em seguida<br />
completa:<br />
Só se espera o que não se tem: a esperança está fadada, para<br />
sempre, ao irreal e a falta, e nos destina a tanto. Tomemos nota. Mas<br />
to<strong>do</strong> desejo é esperança? Só sabemos verdadeiramente desejar o<br />
que não é? Como poderíamos amar então o que é? 107<br />
Como há pouco falamos a respeito da felicidade, não temos a pretensão e<br />
tampouco nos sentimos aptos a nos julgarmos sábios o suficiente para gozarmos da<br />
felicidade plena. Assim <strong>como</strong> não nos qualificamos competentes nem almejamos<br />
assumir uma conduta totalmente desesperançada, somos super humanos. Mais uma<br />
vez Comte-Sponville nos deixa um reca<strong>do</strong>:<br />
Vocês não podem amputar vivos sua esperança. Por quê? Porque<br />
sempre que há desejo e ignorância, desejo e impotência, desejo e<br />
falta, há inevitavelmente esperança. Sempre que desejamos o que<br />
não sabemos, o que não depende de nós, o que não temos, a<br />
esperança está presente, sempre. Não se trata de se impedir de<br />
esperar: trata-se de aprender a pensar, a querer e a amar! Não<br />
tentem amputar a sua parte de loucura, de esperança, portanto de<br />
angústia e de temor. Aprendam ao contrário a desenvolver sua parte<br />
106 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Trata<strong>do</strong> das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes,<br />
2007, p. 262.<br />
107 Ibid., p. 262.<br />
91
de sabe<strong>do</strong>ria, de potência, em outras palavras, de conhecimento,<br />
ação e amor. 108 [grifo meu]<br />
Figura 15 – Davi Ribeiro - Série Utopias possíveis: FELICIDADE, 2009.<br />
Trata-se então – e encaramos este posicionamento <strong>como</strong> uma postura<br />
que deve ser tomada por mim <strong>como</strong> <strong>artista</strong> e que segun<strong>do</strong> determinadas verdades<br />
aqui apresentadas, também foram tomadas por Joseph Beuys e Allan Kaprow – de,<br />
108 COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.<br />
87.<br />
92
em suma, aprender a viver, desmembran<strong>do</strong> desejos e descobrin<strong>do</strong> dentro deles as<br />
palavras potência e ação. Desejo é potência, de existir, agir, gozar, regozijar,<br />
comer, amar; com apetite. Lembram? São 925 milhões de pessoas passan<strong>do</strong> fome<br />
no mun<strong>do</strong>. E tantos outros milhões ou bilhões famintos de suas necessidades, com<br />
apetite para devorar e saciar suas urgências, que de nenhum mo<strong>do</strong> podem ser<br />
diminuídas, sejam elas quais forem.<br />
O que devemos fazer para não ficarmos restritos ao campo da teoria,<br />
presos apenas às esperanças que talvez nunca cheguem? Que caminho seguir para<br />
que a realização de nossos desejos sejam, ao menos, plausíveis? André Comte-<br />
Sponville relata:<br />
Não se trata de se impedir de esperar, nem de esperar o desespero.<br />
Trata-se, na ordem teórica, de crer um pouco menos e de conhecer<br />
um pouco mais; na ordem prática, política ou ética, trata-se de<br />
esperar um pouco menos e de agir um pouco mais; enfim, na ordem<br />
afetiva ou espiritual, trata-se de esperar um pouco menos e amar um<br />
pouco mais. 109<br />
O filósofo francês nos convida a a<strong>do</strong>tar uma atitude em que, ao invés de<br />
sermos simpatizantes de uma causa, objetivo, desejo, meros especta<strong>do</strong>res passivos<br />
<strong>do</strong> desenrolar de um processo, abraçamos a militância desse processo para que sua<br />
meta seja alcançada.<br />
É muito difícil ser sábio; e saber viver pode ser igualmente difícil. O<br />
momento em que vivemos não nos deixa dúvida que buscar a felicidade plena não<br />
passará apenas de um desejo quimérico. E enquanto sonhamos a vida passa e nós<br />
ficamos. Não estamos aqui para jogar por terra os sonhos de ninguém, por mais<br />
inalcançáveis que sejam. Nossa meta é, sim, abordar o anseio coletivo de felicidade,<br />
109 Ibid., p. 89.<br />
93
mas uma felicidade possível, utopia possível. E assim <strong>como</strong> não ficaremos ata<strong>do</strong>s à<br />
busca da felicidade absoluta, consideramos impraticável uma conduta que tome<br />
<strong>como</strong> norma a impossibilidade da felicidade frente às mazelas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e os<br />
problemas da vida. Logo, os preceitos de André Comte-Sponville nos servem outra<br />
vez de parâmetro:<br />
Não se trata de esperar a sabe<strong>do</strong>ria <strong>como</strong> outra vida; trata-se de aprender a<br />
amar a vida <strong>como</strong> ela é – inclusive, insisto, dan<strong>do</strong>-nos os meios, no que<br />
depende de nós, de transformá-la. O real é para pegar ou largar, dizia eu. A<br />
sabe<strong>do</strong>ria está em pegá-lo: o sábio é parte ativa <strong>do</strong> universo. 110<br />
Os princípios apresenta<strong>do</strong>s por André Comte-Sponville colocam em<br />
nossas mãos a faculdade de alterar situações vigentes. A tarefa de criar novas<br />
realidades pode tomar a forma de uma cadeia produtiva iniciada com os <strong>artista</strong>s,<br />
concretizada no outro e assim sucessivamente. Somos seres criativos, diria Beuys,<br />
podemos ser to<strong>do</strong>s inventores de realidades. Nesse ponto <strong>do</strong> pensamento os<br />
escritos de Comte-Sponville, as premissas de Beuys e nossos anseios particulares<br />
provocam um encontro com o retrato <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>res explicita<strong>do</strong> por Pierre Héber-<br />
Suffrin em seus escritos sobre o Zaratustra de Nietzsche. O super homem, aquele<br />
que tem em si humanidade em abundância, vem para criar novos valores; criar é<br />
palavra de ordem e a transformação inicia-se com cada um de nós: “Seguir-se a si<br />
mesmo é prolongar-se, expandir-se, realizar-se, dar-se à luz e dar à luz. Seguir-se a<br />
si mesmo é criar-se. O que criam esses cria<strong>do</strong>res que se seguem a si mesmos é,<br />
antes de mais nada, ELES PRÓPRIOS.” 111 E em outra ocasião Pierre Héber-Suffrin<br />
demonstra a compatibilidade de idéias entre os personagens aqui em pauta ao nos<br />
apresentar os pensamentos nietzscheanos a respeito da vida e nossa capacidade<br />
110 Ibid., p. 126.<br />
111 HÉBER-S<strong>UFF</strong>RIN, Pierre. O “Zaratustra” de Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 103.<br />
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sobre ela: “Nietzsche responde que já possuímos a vida plena e completa, eterna,<br />
não no além, mas aqui na terra, neste mun<strong>do</strong> de nossa ação.” 112<br />
Os <strong>artista</strong>s deveriam então assumir a responsabilidade de encetar o<br />
trabalho encantatório de criar um novo mun<strong>do</strong>; aos <strong>artista</strong>s caberia a função de<br />
serem os primeiros a encarnar o posto de super-homem, “aquele que só faz o que<br />
merece ser repeti<strong>do</strong> uma infinidade de vezes, e durar uma eternidade;” 113 super-<br />
humano 114 ; é nossa grandeza, não <strong>do</strong>s <strong>artista</strong>s – podemos ser os precursores -, mas<br />
de to<strong>do</strong>s. O super-homem é “apenas” aquilo que o próprio homem pode vir a ser e a<br />
felicidade, possível em nossas ações, almejada em nossos corações, “não é um<br />
absoluto, é um processo, um movimento, um equilíbrio, só que instável (somos mais<br />
ou menos felizes), uma vitória, só que frágil, sempre a ser defendida, sempre a ser<br />
continuada ou recomeçada.” 115<br />
112 Ibid., p. 111.<br />
113 Ibid., p. 114.<br />
114 Ver nota número 7.<br />
115 COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.<br />
88.<br />
95
Conclusão<br />
O <strong>artista</strong> pode ser monge, santo, filósofo, super-herói. O <strong>artista</strong> pode<br />
ser nômade, pode ser humano, super humano. O <strong>artista</strong> pode ser to<strong>do</strong>s e nenhum<br />
desses. Somos inventores de linguagem, antes somente visual, hoje plurisensorial,<br />
somos inventores de realidades.<br />
A arte passa a ser compreendida pelo mo<strong>do</strong> <strong>como</strong> definimos as conexões<br />
que tecemos em nosso dia a dia. O lugar da arte estabelece suas raízes nos<br />
espaços de socialização das experiências <strong>do</strong> <strong>artista</strong> e a comunidade a qual integra,<br />
sen<strong>do</strong> seus limites o mun<strong>do</strong>. O <strong>artista</strong> desvenda as pequenas maravilhas <strong>do</strong><br />
cotidiano e faz uso dessas pequenas potências para converter a realidade vigente<br />
em existências coletivas melhores.<br />
O ideal de felicidade de André Comte-Sponville por diversas vezes me<br />
fizeram titubear no que tange minhas crenças e convicções. A felicidade hoje, neste<br />
mun<strong>do</strong>, é possível, é a mola propulsora de qualquer mudança que possa vir a ser<br />
executada por nós <strong>artista</strong>s e não <strong>artista</strong>s; ou apenas <strong>artista</strong>s, já que to<strong>do</strong>s os somos.<br />
Conhecer, fazer e amar, é esse o nosso lema para que sejam possíveis as utopias.<br />
Elas estão ao nosso la<strong>do</strong>, ao nosso alcance, de nossas ações.<br />
Hoje algumas pessoas queridas choravam à minha volta num belo lugar<br />
repleto de verde e flores. Não sei bem por que motivo, mas detive as lágrimas o<br />
quanto pude, até que as forças acabassem e elas vertessem mais tarde, de frente<br />
para a tela <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r, molhan<strong>do</strong> a capa de um livro. É das coisas mais difíceis<br />
ver sofrer alguém que se ama. Hoje escolho ser super humano, em demasia, com<br />
lágrimas nos olhos.<br />
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O que de mais importante a arte pode nos proporcionar senão as<br />
experiências de humanidade? Me pergunto e não consigo lembrar quan<strong>do</strong> conheci<br />
Joseph Beuys. Ele, ou sua lenda, encheram-me o peito de desejos, vontades,<br />
quereres, sonhos, esperanças, que criaram suas próprias asas e ganharam<br />
autonomia para voar. O que há de mais fantástico que perceber, naquele instante<br />
único, que escovar os dentes pode sim ser alça<strong>do</strong> ao espaço da arte? Que obra de<br />
arte seria mais relevante que o sorriso e os olhos brilhantes de John McClaine?<br />
Sabe a lenda <strong>do</strong> rapaz que cruzou <strong>do</strong> Atlântico ao Pacífico por terra e viu unicórnio,<br />
bruxas, e subiu a mais de quatro mil metros a pé para sentir falta de ar e ser feliz por<br />
isso? Pois então, é tu<strong>do</strong> verdade.<br />
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