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Ela ouviu tudo em silêncio, imóvel, atrás<br />
da cortina na janela e guardou pra si a revelação.<br />
Na gíria, diria-se que naquele exato instante,<br />
após tão forte sacudida, a ficha finalmente<br />
caiu.<br />
A situação financeira deles era preocupante<br />
e muito pouco promissora. Viviam de ranchos<br />
ofertados pela sogra de Kleiva e ás vezes<br />
por sua própria mãe, que trazia compras ás escondidas<br />
do marido, homem duro, que não admitia<br />
“sustentar vagabundo”. Pra piorar, Arthur<br />
andava jurado de morte por traficantes e alertado<br />
pra si o olhar da polícia.<br />
As ofertas de trabalho, isso ela não ignorava,<br />
estavam escassas. Haviam vagas, mas<br />
só para pessoas qualificadas com cursos e,<br />
principalmente, com experiência na função.<br />
Trabalhar num tambo, porém, parecia ser a<br />
chance de ouro para os dois, que não tinham<br />
assim tanto estudo. Além disso sairiam daquela<br />
vila onde o clima começava a ficar nebuloso. A<br />
luz no fim do túnel havia brilhado de fato naquele<br />
anúncio.<br />
Acabaram caindo nas graças do tal<br />
Enilson, proprietário daquele rebanho leiteiro,<br />
residente na zona rural do município de Viamão,<br />
à 10 km de Porto Alegre. Deixaram a pequena<br />
Úrsula com a mãe de Arthur e partiram<br />
para aquela guinada em suas vidas.<br />
O tambo abastecia armazéns e casas<br />
das redondezas, dispondo de vasta freguesia e<br />
credibilidade. O rapaz em sua primeira semana<br />
no emprego até que demonstrou algum empenho.<br />
Contudo, como de costume, começou a<br />
achar desgastante aquela rotina de acordar cedo<br />
em pleno inverno gaúcho. Seu Enilson, que<br />
simpatizara bastante com ele, ofereceu-lhe um<br />
remanejamento de função. Foi transferido para<br />
um abatedouro do fazendeiro, distante 2 km<br />
dali, onde lavaria sangue do chão e recolheria<br />
tripas, chifres, pêlos e tudo que não era aproveitado<br />
pelo açougue. O novo horário da pegada,<br />
às 10:00 h da manhã, de imediato lhe<br />
agradou. Dava para descansar um pouco mais<br />
na cama.<br />
Observando, certa vez, a linha de produção<br />
e abate da firma, deparou-se com um<br />
fato curioso que fez-lhe pensar com seriedade.<br />
O abatedouro executava o chamado “abate humanitário”,<br />
onde os animais são respeitados e<br />
vivem com dignidade todos os seus dias. Certa<br />
ocasião, resolveu o rapaz assistir passo a passo,<br />
como os bois e vacas eram tratados nos<br />
momentos finais de vida. Sentou-se confortavelmente<br />
num banquinho, bem perto do corredor<br />
final ou mangueira, por onde dois bois aca-<br />
Varal do Brasil janeiro/fevereiro de <strong>2013</strong><br />
bavam de passar, espetados pela lança do carneador.<br />
O da frente, marrom de patas brancas,<br />
pêlo lustroso e ralo, foi golpeado na cabeça por<br />
uma barra de ferro. Emitiu um longo mugido de<br />
dor. Apanhou ainda outras vezes, sempre na<br />
região do crânio, e por fim dobrou os joelhos,<br />
tombando pesadamente ao chão. O de trás,<br />
branco da raça zebu, brecou à 10m da linha de<br />
abate com um olhar assombrado. Parecia nitidamente<br />
perceber o que lhe aguardava logo à<br />
frente, sendo necessários vários gritos e algumas<br />
leves espetadas humanitárias dos peões<br />
para fazê-lo prosseguir.<br />
Arthur é hoje um convicto trabalhador<br />
do tambo, parece resignado à sorte que teve ao<br />
lado da companheira e não come mais carne<br />
de gado. Kleiva, por sua vez, pôde enfim agradecer<br />
e pagar as promessas à sua Nossa Senhora<br />
das Causas Impossíveis. Seu homem<br />
finalmente enveredou pela trilha do esforço e<br />
do suor para ganhar o pão. Úrsula mora com<br />
eles no chalé de madeira cedido pelo Sr. Enilson,<br />
adaptando-se com bastante rapidez à vida<br />
no campo.<br />
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