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VISÃO JUDAICA • outubro 20<strong>06</strong> • Tishrei / Chesvan • 5767<br />
Celso Lafer,<br />
professor titular da<br />
Faculdade de<br />
Direito da USP, foi<br />
ministro das<br />
Relações Exteriores<br />
no governo FHC.<br />
O Oriente Médio<br />
e o discurso de ódio<br />
Celso Lafer *<br />
ão indizíveis, adverte a Carta<br />
da ONU, os sofrimentos da<br />
guerra. Atingem os que padecem<br />
uma pena sem culpa, vitimados<br />
pela violência empregada<br />
nos conflitos bélicos. A intervenção<br />
de Israel no Líbano, induzida por<br />
uma provocação militar do Hezbolá,<br />
trouxe à tona a sensibilidade em relação<br />
a estes sofrimentos que incidem<br />
no contexto dos conflitos no<br />
Oriente Médio.<br />
O contencioso Israel-palestinos é<br />
um dos epicentros destes conflitos.<br />
Ele não tem a clareza jurídica de uma<br />
controvérsia, qual seja a das condições<br />
de criação de um Estado palestino<br />
política e economicamente viável<br />
e o reconhecimento do direito<br />
de Israel de viver em paz dentro de<br />
fronteiras reconhecidas. Não tem esta<br />
clareza, pois o problema se insere num<br />
ambiente de tensões. As tensões, em<br />
contraste com as controvérsias, são<br />
difusas. Manifestam-se por posturas<br />
que escapam à razoabilidade da lógica<br />
diplomática.<br />
O Oriente Médio está permeado de<br />
múltiplas tensões. Entre elas a tensão<br />
da hegemonia provocada pelo unilateralismo<br />
da intervenção norte-americana<br />
no Iraque e seus efeitos; a tensão<br />
do solipsismo da razão terrorista;<br />
a tensão estratégica, induzida pelas<br />
aspirações de poder do Irã; a tensão<br />
da sublevação dos particularismos<br />
religiosos e nacionais.<br />
Um entorno regional com estas<br />
características é centrífugo<br />
e heterogêneo. Carece de uma<br />
vontade comum de estabilidade.<br />
Por isso os esforços de persua-<br />
são diplomática se vêem atropelados<br />
pela violência. Esta é a razão pela<br />
qual a política na região está mais<br />
vinculada à busca dos meios para sobreviver<br />
e vencer, ficando em segundo<br />
plano a aspiração kantiana de<br />
construir a paz e evitar os sofrimentos<br />
da guerra, reconhecendo o direito<br />
à hospitalidade universal.<br />
Esta contextualização de complexidades<br />
é necessária para o tema<br />
deste artigo, que diz respeito ao<br />
impacto, no Brasil, da importação das<br />
tensões no Oriente Médio.<br />
Uma das características da globalização<br />
é a internalização, nos<br />
países, das tensões do mundo. É o<br />
que vem ocorrendo com a situação<br />
do Oriente Médio, no qual um dos<br />
elementos de irradiação é a tensão<br />
de hegemonia trazida pela ação<br />
norte-americana no Iraque. Esta<br />
leva ao antiamericanismo e afeta<br />
Israel, que tem nos Estados Unidos<br />
um decidido aliado.<br />
No caso do Brasil, para a equação<br />
da internalização contribui o fato<br />
de existir um expressivo número de<br />
cidadãos brasileiros de origem libanesa<br />
com laços de família e de memória<br />
afetiva em relação ao Líbano,<br />
com compreensível sensibilidade ao<br />
que se passa num país que se estava<br />
reconstruindo em meio a suas dificuldades.<br />
Também é um dado desta<br />
equação a existência de um número<br />
relevante de cidadãos brasileiros de<br />
origem judaica, muitos dos quais<br />
também têm laços de família e de<br />
afeto com o Estado de Israel e que,<br />
por isso mesmo, olham para a segurança<br />
deste país com atenção. Neste<br />
olhar existe a memória de guerras do<br />
passado e dos insucessos das nego-<br />
ciações, permeado por uma sensibilidade<br />
própria em relação aos atentados<br />
terroristas em Israel e ao fato<br />
de o Hezbolá operar a partir do Líbano,<br />
respaldado pela Síria com o declarado<br />
apoio logístico-militar do Irã<br />
- cujo presidente denega o Holocausto<br />
e propõe o desaparecimento de<br />
Israel do mapa do Oriente Médio.<br />
Feitos estes registros, observo<br />
que o preâmbulo da Constituição<br />
considera como valores supremos do<br />
nosso país a concepção de uma sociedade<br />
fraterna, pluralista e sem<br />
preconceitos, comprometida, na ordem<br />
interna e internacional, com a<br />
solução pacífica de controvérsias.<br />
Esta diretriz tem sido bem-sucedida<br />
na construção histórica do<br />
amálgama do povo brasileiro na diversidade<br />
das suas origens.<br />
Daí o tranqüilo entendimento<br />
entre brasileiros de origem árabe e<br />
de origem judaica. Este é um adquirido<br />
da convivência nacional a ser<br />
preservado. Não pode ser corroído<br />
pelo discurso de ódio que, lamentavelmente,<br />
tem aparecido como parte<br />
das internalizações das tensões do<br />
Oriente Médio. É o caso, por exemplo,<br />
de certas virulentas manifestações<br />
antiisraelenses mescladas de<br />
inequívoco anti-semitismo do tipo<br />
das relatadas pela revista Carta Capital<br />
de 6/9 em matéria apropriadamente<br />
intitulada O Líbano é aqui.<br />
A contenção do discurso de ódio<br />
tem sido objeto das normas internacionais<br />
dos Direitos Humanos às<br />
quais o Brasil aderiu. É o que estipula<br />
a Convenção para a Eliminação de<br />
Todas as Formas de Discriminação<br />
Racial, o Pacto de Direitos Civis e<br />
Políticos e o Pacto de São José. Este,<br />
no seu artigo 13, 5, reza: ‘A lei deve<br />
proibir toda propaganda a favor da<br />
guerra, bem como toda apologia ao<br />
ódio nacional, racial ou religioso que<br />
constitua incitamento à discriminação,<br />
à hostilidade, ao crime ou à violência.’<br />
É nesta moldura que o Direito<br />
brasileiro, no âmbito do artigo<br />
5º, XLII, da Constituição, que prevê<br />
o crime da prática de racismo, capitula<br />
como prática de racismo o discurso<br />
de ódio (artigo 20 da Lei<br />
7.716/89, com a redação dada pela<br />
Lei 8.081/90).<br />
Foi esse o entendimento que o<br />
Supremo Tribunal Federal consagrou<br />
ao decidir, em 2003, o caso Ellwanger,<br />
observando que a liberdade de<br />
expressão não consagra o ‘direito à<br />
incitação ao racismo’.<br />
Daniel Sarmento, escrevendo sobre<br />
o hate speech, explica, neste contexto,<br />
por que ele compromete a dinâmica<br />
da democracia. Observa que o<br />
discurso de ódio está mais próximo<br />
de um ataque que de uma participação<br />
no debate de opiniões; não se<br />
baseia no recíproco reconhecimento<br />
da igualdade da dignidade humana,<br />
que é a garantia da integridade da<br />
discussão na esfera pública, e, ao estigmatizar<br />
grupos, a eles causa dano,<br />
propiciando preconceitos.<br />
Em síntese, a importação das tensões<br />
do Oriente Médio na forma de<br />
discurso de ódio precisa ser afastada.<br />
É inaceitável, pois fere a dignidade<br />
humana e compromete um dos<br />
objetivos constitucionais do Brasil,<br />
que é o de ‘promover o bem de todos,<br />
sem preconceitos de origem,<br />
raça, sexo, cor, idade e quaisquer<br />
outras formas de discriminação’<br />
(Constituição federal, artigo 3º, IV).