Morde-me, mas pouco - Fonoteca Municipal de Lisboa
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y Cash<br />
o mito do “Man In Black”. “Johnny Cash<br />
E escava mais fundo. Mário Lopes<br />
<strong>me</strong>nte. Porém, aquilo que dá um interesse<br />
adicional a “Johnny Cash At Folsom<br />
Prison” é não se ficar por aí.<br />
Alarga o foco e escava mais fundo.<br />
No limite, é tanto sobre Cash e aquilo<br />
que o conduziu à manhã <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong><br />
Janeiro <strong>de</strong> 1968 - <strong>de</strong>u dois concertos, o<br />
pri<strong>me</strong>iro às 9h40, o segundo três horas<br />
<strong>de</strong>pois -, quanto sobre aqueles que o<br />
viram em palco. Ho<strong>me</strong>ns como Millard<br />
Dedmon, à altura um jovem imponente,<br />
com ares <strong>de</strong> estrela <strong>de</strong> cinema blaxploitation,<br />
que cumpria pena por um assalto<br />
com gangue <strong>de</strong> ocasião que não correu<br />
como normal<strong>me</strong>nte - uma mulher viajando<br />
sozinho num carro “apetecível”,<br />
a resistência <strong>de</strong>la e Millard a trocar a<br />
vida <strong>de</strong> <strong>de</strong>linquência “glamorosa”<br />
pela prisão <strong>de</strong> Folsom. Não mais voltou<br />
à prisão e fala pacificado <strong>de</strong>sse<br />
passado, atribuindo-o a <strong>de</strong>slumbra<strong>me</strong>ntos<br />
inconscientes da juventu<strong>de</strong>.<br />
Lembra-se perfeita<strong>me</strong>nte do concerto.<br />
Não era gran<strong>de</strong> fã <strong>de</strong> country,<br />
<strong>mas</strong> isso, neste caso, era irrelevante.<br />
Johnny Cash falava-lhes na <strong>me</strong>sma língua,<br />
olhos nos olhos, sem <strong>de</strong>sdém ou<br />
paternalismo. Sabia o que sentiam,<br />
sabia o que era estar atrás das gra<strong>de</strong>s,<br />
acreditavam. Tratava-os como<br />
“ho<strong>me</strong>ns”, diz alguém, e isso fazia toda<br />
a diferença.<br />
Entre aqueles que o ouviram em<br />
Folsom, um <strong>de</strong>stacou-se <strong>de</strong>cisiva<strong>me</strong>nte.<br />
O seu no<strong>me</strong> é Glen Sherley e<br />
era personagem cujo percurso não se<br />
limita a parecer saído <strong>de</strong> uma canção<br />
<strong>de</strong> Johnny Cash: <strong>de</strong> certa forma, é<br />
como se fosse o reflexo, trágico e amaldiçoado,<br />
<strong>de</strong>le próprio.<br />
À altura do concerto, Sherley cumpria<br />
pena por assalto à mão armada.<br />
Não era a pri<strong>me</strong>ira vez. Nascido em<br />
1936, passara parte da sua vida adulta<br />
atrás das gra<strong>de</strong>s. Glen era também um<br />
músico, inspirado pelas <strong>me</strong>s<strong>mas</strong> canções<br />
country que Cash ouvira na sua<br />
infância, no Arkansas, e inspirado,<br />
natural<strong>me</strong>nte, no próprio Cash.<br />
Uma das fotos <strong>de</strong> Jim Marshall mostra-os<br />
em Folsom. Sherley <strong>de</strong> pé na<br />
pri<strong>me</strong>ira fila, braço estendido em<br />
direcção ao palco, mãos unidas num<br />
cumpri<strong>me</strong>nto. O mo<strong>me</strong>nto foi captado<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cash anunciar que iria interpretar<br />
“Greystone chapel”, canção que<br />
Glen Sherley escrevera em Folsom - a<br />
capela do título era a da prisão - e que<br />
Johnny Cash e a sua banda (os habituais<br />
Tenessee Three, acrescidos do guitarrista<br />
Carl Perkins) tinham ensaiado<br />
na madrugada anterior.<br />
Depois <strong>de</strong>sse encontro, a vida <strong>de</strong><br />
Glen Sherley mudaria. Tornou-se próximo<br />
<strong>de</strong> Johnny Cash, que se envolveu<br />
na sua libertação - no fil<strong>me</strong>, vemo-lo a<br />
esperá-lo à porta da prisão, quando<br />
saiu em liberda<strong>de</strong> condicional.<br />
Enquanto se empenhava no seu lança<strong>me</strong>nto<br />
como músico, levando Sherley<br />
em digressão ou, quando este ainda<br />
cumpria pena, patrocinando a gravação<br />
<strong>de</strong> um disco, formou com ele uma<br />
parceria que levou à <strong>de</strong>núncia das más<br />
condições das prisões a<strong>me</strong>ricanas ao<br />
Congresso - <strong>de</strong> certa forma, Johnny<br />
Cash, esse que ouvimos questionar-se<br />
“quão terrível é sentenciar os nossos<br />
à morte?”, esse que pergunta “como<br />
po<strong>de</strong> este tor<strong>me</strong>nto fazer bem a<br />
alguém?”, foi um dos responsáveis<br />
pela reforma do sistema prisional a<strong>me</strong>ricano<br />
na década <strong>de</strong> 1970.<br />
Glen Sherley, contudo, nunca recuperou.<br />
Como conta a sua filha, <strong>de</strong>bruçada<br />
sobre fotos, recortes <strong>de</strong> jornais e as<br />
<strong>me</strong>mórias <strong>de</strong> alguém que, diz, fora “o<br />
ho<strong>me</strong>m mais feliz do mundo” quando<br />
viu Johnny Cash tocar uma canção sua,<br />
não era fácil viver em liberda<strong>de</strong> quando<br />
a prisão tinha sido a sua vida. O sucesso<br />
foi efé<strong>me</strong>ro e os proble<strong>mas</strong> com a lei<br />
não tardaram a regressar. Desta vez,<br />
contudo, Sherley estava <strong>de</strong>cidido a não<br />
voltar à prisão. Em 1978, suicidou-se<br />
com um tiro <strong>de</strong> revólver. Johnny Cash<br />
pagou o seu funeral.<br />
Quase no final, regressamos ao pacificado<br />
Millard Dedmon. Vive com uma<br />
ferida impossível <strong>de</strong> sarar, porque o<br />
filho teve <strong>me</strong>nos sorte que ele. Andava<br />
pelas ruas, “durão” como o seu pai<br />
enquanto jovem, <strong>mas</strong> não acabou em<br />
Folsom a ver um músico lendário. Um<br />
<strong>de</strong>sconhecido que o abordou na rua,<br />
um tiro no coração.<br />
“Johnny Cash At Folsom Prison”<br />
também é a ferida <strong>de</strong> hoje do ho<strong>me</strong>m<br />
que esteve lá há quarenta anos.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 1 Maio 2009 • 13