Morde-me, mas pouco - Fonoteca Municipal de Lisboa
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Kid Congo Powers conta-nos que está<br />
a escrever um livro <strong>de</strong> <strong>me</strong>mórias.<br />
Pensamos que não precisa <strong>de</strong> ser<br />
muito bem escrito, que nem precisa<br />
<strong>de</strong> ser um quinto do que são, por<br />
exemplo, as “Crónicas” <strong>de</strong> Dylan. A<br />
verda<strong>de</strong> é que só po<strong>de</strong> resultar em<br />
algo interessante.<br />
Nascido em La Puente, subúrbio <strong>de</strong><br />
Los Angeles, em 1960, Kid é uma<br />
figura inescapável do un<strong>de</strong>rground<br />
rock’n’roll da década <strong>de</strong> 1980. Foi<br />
guitarrista dos Cramps, com quem<br />
gravou, entre outros, o seminal<br />
“Psyche<strong>de</strong>lic Jungle”. Apren<strong>de</strong>u a<br />
tocar guitarra com Jeffrey Lee Pierce,<br />
dos Gun Club, banda a que ajudou a<br />
dar forma (estava lá, por exemplo, em<br />
“Las Vegas Story”). Depois disso, viajou<br />
até Berlim e encontrou Nick Cave,<br />
Mick Harvey ou Blixa Bargeld: “Acho<br />
que po<strong>de</strong>rias ser o nosso guitarrista”,<br />
disseram-lhe. Entre 1988 e 1990, foi<br />
um dos Bad Seeds, colaborando em<br />
“Ten<strong>de</strong>r Prey” e “The Good Son”. E<br />
há ainda as histórias com os Ramones<br />
- adolescente, foi viver para Nova Iorque<br />
e “inventou-lhes” um clube <strong>de</strong> fãs<br />
-, os encontros <strong>de</strong>lirantes com David<br />
Tho<strong>mas</strong>, dos Pere Ubu, o trabalho<br />
com Ju<strong>de</strong>e Still, a amiza<strong>de</strong> com Lydia<br />
Lunch. A lista é infindável.<br />
Kid Congo Powers, o guitarrista<br />
que, nos Cramps, queria parecer Ronnie<br />
Spector e o namorado <strong>de</strong> Ronnie<br />
Spector unidos num corpo só, tem<br />
um percurso que, co<strong>me</strong>çando na<br />
abrangente cena punk nova-iorquina,<br />
se alargou a toda uma série <strong>de</strong> manifestações<br />
un<strong>de</strong>rground - “o que <strong>me</strong><br />
interessa é aquilo que acontece por<br />
trás do cenário, o que <strong>me</strong> interessa é<br />
o ventre das coisas”, dir-nos-á o<br />
20 • Ípsilon • Sexta-feira 1 Maio 2009<br />
ho<strong>me</strong>m que acaba <strong>de</strong> editar “Dracula<br />
Boots”, gravado com os Pink Monkeybirds,<br />
a banda que o acompanha há<br />
alguns anos e que com ele estará, esta<br />
noite, na Galeria Zé dos Bois, em <strong>Lisboa</strong><br />
(23h).<br />
Kid Congo Powers diz-nos então<br />
que está a escrever um livro <strong>de</strong> <strong>me</strong>mórias<br />
- e que a experiência está a <strong>de</strong>ixar<br />
marcas na sua música. Por uma razão:<br />
aquilo <strong>de</strong> que tem retirado maior prazer<br />
neste obrigatório regresso ao passado<br />
são as recordações do antes.<br />
Antes: “quando era um miúdo e estava<br />
a <strong>de</strong>scobrir a música”; quando a irmã<br />
mais velha lhe falava <strong>de</strong> concertos a<br />
que o levaria, como os dos Thee Midniters,<br />
banda <strong>de</strong> chicano rock dos<br />
anos 1960 <strong>de</strong> quem ouvimos uma versão,<br />
“I found a peanut”, em “Dracula<br />
Boots”: “Ficava excitado só <strong>de</strong> pensar<br />
em ir vê-los, <strong>me</strong>smo sem saber ao que<br />
soariam. Claro que, <strong>de</strong>pois, estando<br />
lá, percebia i<strong>me</strong>diata<strong>me</strong>nte o que<br />
havia ali <strong>de</strong> tão excitante.” Ouvindo-o,<br />
co<strong>me</strong>çamos a compreen<strong>de</strong>r <strong>me</strong>lhor<br />
o cenário escolhido para o nasci<strong>me</strong>nto<br />
do novo álbum.<br />
Música no ginásio<br />
“Dracula Boots” foi gravado em Harveyville,<br />
cida<strong>de</strong> no Texas com <strong>me</strong>ros<br />
250 habitantes. Foi gravado, mais<br />
precisa<strong>me</strong>nte, em estúdio montado<br />
no ginásio <strong>de</strong> uma escola secundária.<br />
A escola não recebe alunos e é ali que<br />
vive o teclista e produtor Jason Ward<br />
- comprou-a quando a Câmara local,<br />
sem uso a dar-lhe, <strong>de</strong>cidiu pô-la à<br />
venda (não há miúdos em nú<strong>me</strong>ro<br />
suficiente em Harveyville).<br />
O cenário: Kid Congo Powers, instalado<br />
no palco montado no ginásio,<br />
Kid Congo<br />
Powers<br />
regressa à<br />
selva<br />
psicadélica<br />
Kid Congo Powers é inescapável no<br />
un<strong>de</strong>rground da década <strong>de</strong> 1980.<br />
Agora que edita “Dracula Boots”,<br />
e que apresenta esta noite na ZDB,<br />
diz-nos que está a escrever as<br />
suas <strong>me</strong>mórias e que, com isso,<br />
a música mudou. Mário Lopes<br />
a imaginar os concertos a que a irmã<br />
o levava e os fil<strong>me</strong>s que via das janelas<br />
<strong>de</strong> casa - nas i<strong>me</strong>diações, <strong>de</strong>stacavam-se<br />
as gran<strong>de</strong>s telas <strong>de</strong> dois driveins.<br />
Pretendia, <strong>de</strong>screve, recriar um<br />
ambiente <strong>de</strong> festa adolescente, com<br />
miúdos a dançar e outros a libertar a<br />
libido na escuridão, com miúdos a<br />
beberem os pri<strong>me</strong>iros copos e professores<br />
a juntarem-se ao baile (os<br />
mais porreiros) ou a sofrerem partidas<br />
cruéis (os que não interessavam).<br />
Claro que não é só isso - um Kid<br />
Congo Powers não po<strong>de</strong> fugir à sua<br />
natureza: em “Dracula Boots” criamse<br />
ambientes <strong>de</strong> fil<strong>me</strong> sci-fi, dança-se<br />
soul <strong>de</strong> garagem com zumbidos asse<strong>me</strong>lhados<br />
a theremins, ouve-se Kid<br />
Congo, em regi<strong>me</strong> spoken-word, contar<br />
histórias com o seu quê <strong>de</strong> tétrico<br />
- uma <strong>de</strong>las, “Late night scurry”, é<br />
“sobre estar com Pere Ubu num bar,<br />
em ácidos, a ter uma série <strong>de</strong> iluminações”.<br />
Kid Congo Powers po<strong>de</strong><br />
querer regressar a uma adolescência<br />
mitificada, <strong>mas</strong> não regressa total<strong>me</strong>nte.<br />
A conversa avança e, a <strong>de</strong>terminado<br />
ponto, falamos da morte <strong>de</strong> Lux<br />
Interior, o vocalista dos Cramps, em<br />
Fevereiro. Ele recorda que a banda<br />
só se convenceu <strong>de</strong>finitiva<strong>me</strong>nte a<br />
acolhê-lo quando lhes apareceu com<br />
um casaco dourado comprado na<br />
Lansky Brothers, a loja <strong>de</strong> roupa preferida<br />
<strong>de</strong> Elvis Presley - “o estilo era<br />
uma forma <strong>de</strong> expressar individualida<strong>de</strong><br />
e aquele casaco dourado dizia<br />
muito sobre aquilo em que estava<br />
interessado: acho que também entrei<br />
nos Bad Seeds por causa <strong>de</strong>sse<br />
casaco”.<br />
Falávamos disso e <strong>de</strong> como a cria-<br />
“Neste disco quis<br />
que as pessoas<br />
se sentissem vivas,<br />
algo que levantasse<br />
os espíritos”. Pegar<br />
no “bom lixo” que<br />
estes “anos <strong>me</strong>rdosos”<br />
têm escondido e fazer<br />
a festa, marginal<br />
e <strong>de</strong>sviante<br />
Música<br />
ção <strong>de</strong> uma personagem, que se torna<br />
real e que se transporta para a<br />
música, é algo tão entranhado na história<br />
do rock’n’roll. É então que Kid<br />
Congo Powers nos diz isto: “Estive<br />
num concerto dos Cramps há uns<br />
anos, <strong>de</strong>pois muito tempo sem os ver.<br />
Fui transportado. Nunca existiu nada<br />
assim, nem antes, nem <strong>de</strong>pois. Basta<br />
uma olha<strong>de</strong>la e percebes i<strong>me</strong>diata<strong>me</strong>nte<br />
que queres atravessar aquela<br />
porta. Isso levou-<strong>me</strong> a pensar naquilo<br />
que queria que fosse o <strong>me</strong>u próximo<br />
disco. Pensei neles e no facto <strong>de</strong><br />
terem ido propositada<strong>me</strong>nte a Memphis<br />
para gravar o pri<strong>me</strong>iro álbum.<br />
Pensei em como o espaço afecta real<strong>me</strong>nte<br />
a música que criamos.”<br />
Como sabemos, Kid Congo Powers<br />
não foi a Memphis. Montou um palco<br />
num ginásio e embrenhou-se na<br />
“selva psicadélica” inventada pelos<br />
Cramps. Neste sentido: “Não quis<br />
fazer um disco <strong>de</strong>safiante, não quis<br />
um disco que fizesse as pessoas sentirem-se<br />
terrivel<strong>me</strong>nte consigo próprias<br />
- o que já fiz no passado, a bem<br />
da beleza.” Agora, “quis que as pessoas<br />
se sentissem vivas, algo que<br />
levantasse os espíritos”. Pegar no<br />
“bom lixo” que estes “anos <strong>me</strong>rdosos”<br />
têm escondido e fazer a festa,<br />
marginal e <strong>de</strong>sviante.<br />
No concerto <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, revela,<br />
tocará as novas canções, tocará<br />
velhas canções dos Cramps e dos Gun<br />
Club. “Estejam preparados e tragam<br />
as vossas botas Drácula”, <strong>de</strong>spe<strong>de</strong>-se.<br />
Lá estaremos (só não sabemos on<strong>de</strong><br />
raio arranjar u<strong>mas</strong> botas Drácula).<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos pág. 32 e segs.<br />
e agenda <strong>de</strong> concertos pág. 35 e segs.