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Morde-me, mas pouco - Fonoteca Municipal de Lisboa

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co<strong>me</strong>çou em Almada, on<strong>de</strong> os pais<br />

se instalaram nos anos 70. Nascidos<br />

em Cabo-Ver<strong>de</strong>, vieram para <strong>Lisboa</strong><br />

numa das vagas <strong>de</strong> emigração <strong>de</strong>stinadas<br />

a suprir falta <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra<br />

em tarefas específicas. “O <strong>me</strong>u pai<br />

trabalhava na construção civil, a<br />

minha mãe era empregada doméstica”,<br />

diz, acrescentando <strong>de</strong>pois que<br />

são “15 irmãos” no total. Ela não prolonga<br />

a conversa acerca do seu cresci<strong>me</strong>nto,<br />

<strong>mas</strong> ao “Guardian” disse<br />

que a infância foi “solitária”. Em casa,<br />

a mãe “nem sequer falava português”<br />

com ela. Sara “respondia-lhe sempre<br />

em português”, porque “é mais fácil<br />

para a integração” dominar bem a<br />

linguagem <strong>de</strong> chegada.<br />

Sara sempre enten<strong>de</strong>u crioulo, <strong>mas</strong><br />

co<strong>me</strong>çou a falá-lo muito tar<strong>de</strong>. Foi<br />

<strong>pouco</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> conquistar a Chuva<br />

<strong>de</strong> Estrelas: “Viajei para Cabo-Ver<strong>de</strong><br />

numa comitiva oficial, li<strong>de</strong>rada por<br />

Cavado Silva, na altura pri<strong>me</strong>iroministro.<br />

Quando se vai a Cabo-Ver<strong>de</strong>,<br />

é obrigatório apren<strong>de</strong>r crioulo, porque<br />

é o que toda a gente fala. No interior<br />

<strong>de</strong> Cabo-Ver<strong>de</strong> quase não se fala<br />

português. Fala-se, quando muito,<br />

nas repartições, na escola”.<br />

Gostou à pri<strong>me</strong>ira <strong>de</strong> <strong>de</strong> Cabo-<br />

Ver<strong>de</strong>, sentiu “que também pertencia<br />

ali”. Esteja a ser politica<strong>me</strong>nte correcta<br />

ou não, hoje diz pertencer “aos<br />

dois lugares”: “Para morar prefiro<br />

estar aqui, porque tenho tudo o que<br />

preciso, <strong>mas</strong> em termos <strong>de</strong> tempera<strong>me</strong>ntos,<br />

gosto mais <strong>de</strong> Cabo-Ver<strong>de</strong>”.<br />

Ela não tenta florear a sua relação<br />

com Cabo-Ver<strong>de</strong> para obter divi<strong>de</strong>ndos.<br />

Admite que não se sente “representante<br />

da música cabo-verdiana”,<br />

preferindo consi<strong>de</strong>rar-se como “parte<br />

<strong>de</strong> uma geração <strong>de</strong> jovens da diáspora<br />

<strong>de</strong> Cabo-Ver<strong>de</strong>”. “Sou cabo-verdiana<br />

pela cor <strong>de</strong> pele, pela língua e pela<br />

história, <strong>mas</strong> também sou portuguesa.<br />

Nasci cá.”<br />

À maneira <strong>de</strong>la<br />

Mas a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> a situar existe e<br />

“às vezes surge aquela questão:<br />

fazem-se cartazes a promover o disco<br />

“Para morar prefiro<br />

estar aqui, porque<br />

tenho tudo o que<br />

preciso, <strong>mas</strong><br />

em termos <strong>de</strong><br />

tempera<strong>me</strong>ntos,<br />

gosto mais <strong>de</strong><br />

Cabo-Ver<strong>de</strong>”<br />

como “Música nova <strong>de</strong> Cabo-Ver<strong>de</strong>”<br />

ou “Música nova <strong>de</strong> Portugal’?” Estas<br />

questões, diz, “têm a ver com o universo<br />

social da ‘world music’, que<br />

ven<strong>de</strong> o exotismo”. Sendo que é o<br />

<strong>me</strong>rcado da “world music” que a sustenta,<br />

ela po<strong>de</strong>ria ser a-crítica, <strong>mas</strong><br />

é a pri<strong>me</strong>ira a dizer que “a ‘world<br />

music’ tem um lado <strong>de</strong> turismo oci<strong>de</strong>ntal<br />

sem sair do país”. Tem razão:<br />

no <strong>me</strong>rcado da “world music” ven<strong>de</strong>se<br />

por vezes mais uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong><br />

que a própria música. “Isso<br />

incomoda-<strong>me</strong> <strong>me</strong>nos do que <strong>de</strong>via<br />

porque vejo muitas artistas bons a<br />

romper graças a isso”, diz, com<br />

honestida<strong>de</strong>..<br />

Não po<strong>de</strong>, claro, fazer uso <strong>de</strong>ssa<br />

mais valia, porque a ligação à cultura<br />

cabo-verdiana não é a <strong>me</strong>sma <strong>de</strong><br />

quem lá nasceu. “Não tenho ligação<br />

à música cabo-verdiana da tradição<br />

como vivente, não cresci com ela.<br />

Tenho como ouvinte, o que é diferente”.<br />

Não tem, assu<strong>me</strong>, interesse<br />

em fazer música tradicional, ser uma<br />

her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Cesária. “Uso instru<strong>me</strong>ntos<br />

tradicionais, <strong>mas</strong> não os uso ao<br />

<strong>me</strong>smo tempo, porque não é esse o<br />

<strong>me</strong>u papel. Sinto-<strong>me</strong> <strong>me</strong>lhor no papel<br />

<strong>de</strong> quem usa isto para fazer algo <strong>de</strong><br />

fresco”.<br />

Apesar disto, tem preferências na<br />

música cabo-verdiana, e essas são<br />

tradicionais, “como o Paulinho Vieira,<br />

o B.Leza, o Eugénio Tavares, os Bolimundo,<br />

que foi um gran<strong>de</strong> grupo <strong>de</strong><br />

funaná, o Tito Paris, o Boy Ge Men<strong>de</strong>s,<br />

o Bana e a Cesária, claro”.<br />

Daqui, o que ela aproveita é “o<br />

balanço”. “Eu brinco muito com o<br />

balanço. Acabo por usar o funaná, o<br />

batuque, a cola<strong>de</strong>ra, <strong>mas</strong> acabo por<br />

fazer tudo à minha maneira. Faço<br />

uma releitura pessoal dos géneros”.<br />

Toda a sua música diz respeito a essa<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “releitura pessoal”. O que<br />

faz, diz, “tem a ver com criar um<br />

reportório que tenha a minha cara”.<br />

Essa é a razão porque não canta tradicionais<br />

nem música <strong>de</strong> outros compositores.<br />

“Se encontrar um compositor<br />

que faça isso, canto as canções<br />

<strong>de</strong>le. A minha abordagem <strong>de</strong> composição<br />

é muito particular”.<br />

Exemplifica, com recurso a “Xinti”,<br />

o novo disco: “Tem tanto Cabo-Ver<strong>de</strong><br />

quanto o anterior: está lá tudo, <strong>mas</strong><br />

<strong>de</strong> forma mais subtil. Sendo que o<br />

que há <strong>de</strong> Cabo-Ver<strong>de</strong> em mim, já é<br />

“Não tenho ligação<br />

à música<br />

cabo-verdiana<br />

da tradição como<br />

vivente, não cresci<br />

com ela. Tenho como<br />

ouvinte, o que<br />

é diferente”<br />

reinventado. Mesmo o <strong>me</strong>u crioulo<br />

não é puro, misturo várias variantes”.<br />

É um disco tão ou mais calmo que<br />

o anterior, ou “ainda mais parado que<br />

o último”. A lentidão não era objectivo,<br />

foi consequência: “O <strong>me</strong>u processo<br />

<strong>de</strong> composição é total<strong>me</strong>nte<br />

espontâneo: pego na guitarra e <strong>de</strong>ixoa<br />

falar. Depois dar os concertos [<strong>de</strong><br />

promoção <strong>de</strong> Balancê] caí num certo<br />

estado <strong>de</strong> espírito <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso, daí<br />

este disco ser mais calmo”.<br />

É, indubitavel<strong>me</strong>nte, uma figura<br />

do seu tempo, <strong>pouco</strong> interessada em<br />

usar vestidos tradicionais para ven<strong>de</strong>r<br />

uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “real thing”. Faz a<br />

música que faz, <strong>mas</strong> gosta <strong>de</strong> ouvir<br />

Fela Kuti, Chet Baker ou Chavela Vargas.<br />

Veste-se como uma rapariga da<br />

sua ida<strong>de</strong>. A sua abordagem à música<br />

po<strong>de</strong> ser sintetizada numa frase sua:<br />

“Estou a ouvir um reggae e o que<br />

ouço lá <strong>de</strong>ntro é um semba [música<br />

tradicional angolana]. Acabo por <strong>de</strong>scobrir<br />

as se<strong>me</strong>lhanças entre os ritmos<br />

e dou por mim a tocar por cima”. É<br />

assim que a música lhe nasce.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 32 e segs<br />

Ípsilon • Sexta-feira 1 Maio 2009 • 17

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