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o ser autêntico. Os homens e as mulheres hão de pôr-se em relação com a verdade do<br />
ser, do ser deles mesmos no trabalho quotidiano de ir convertendo-se mais plenamente e<br />
mais autenticamente em si mesmos. A verdade à qual nos referimos não é certamente a<br />
verdade redutiva dos enunciados do pensamento lógico, mas a «verdade sinfônica» (Urs<br />
von Balthasar), que diz o ser verdadeiro e, no caso que nos ocupa, diz da realização (do<br />
caminho da realização) verdadeira do ser humano. Por isso hoje, em um mundo<br />
dominado pela linguagem lógica (e tecnológica), resulta tão difícil e tão ininteligível a<br />
linguagem do perdão. A linguagem sinfônica da verdade demanda um aprendizado lento<br />
mas continuado, que não quer saber de ruído nem de dispersões. O espírito, hoje<br />
cansado de tanto barulho, pede silêncio e palavras repousadas.<br />
Perdoar supõe sempre perdoar algo objetivo: uma ofensa derivada de um ato<br />
transgressor de uma lei. As leis ou as normas são um absoluto objetivo que não é<br />
transgredido independentemente do saber ou do desconhecimento do transgressor. A<br />
transgressão é um ato que não depende da vontade: às vezes pode-se dizer que não<br />
queria, mas aconteceu. O perdão se dá a quem cometeu um ato leve ou grave, a quem<br />
transgrediu uma lei ou uma norma, mas ao reconhecer o quebranto objetivo que tem<br />
produzido com a sua falta, ao afrontar a verdade do ato e do que tem produzido nele<br />
mesmo, e ao se dispor a renovar a sua orientação para a verdade, encaminha-se na<br />
disposição de uma vida humana autêntica, desejando e esperando refazer as relações,<br />
agora quebradas, com o outro (ou com os outros). A linguagem bíblica fala bem<br />
significativamente de metavnoia, ainda que esta metavnoia vá também na direção do<br />
perdoar, não somente do pedir perdão: a metavnoia tem como fruto não somente o pedir<br />
perdão mas também o fato mesmo | de perdoar. No cristianismo este fato se põe<br />
especialmente de relevo. Lemos em Marcos: «E, quando rezardes, se tiverdes algo<br />
contra alguém, perdoai-o, e assim também vosso Pai do céu vos perdoará as vossas<br />
faltas» (11,25; veja-se Mt 18,35). E ainda: «porque se perdoardes aos outros as suas<br />
faltas, o vosso Pai celestial também vos perdoará; mas se não lhas perdoardes, o vosso<br />
Pai não vos perdoará as vossas» (Mt 6,14-15). O cristianismo desta maneira estabelece<br />
novas relações com o outro, com os outros, que incluem o perdão (o perdoar ativo)<br />
como condição da vida humana e como uma das obrigações fundamentais nas relações<br />
com os outros. Este poder perdoar deve fazer-se realidade de tal maneira que seja o<br />
poder de perdoar aquilo que nos constitui como homens e mulheres verdadeiros. Os<br />
homens e as mulheres, como seres relacionais, dispõem do poder de perdoar para se<br />
transformar realmente naquilo que são: verdade de si mesmos. Esta novidade do<br />
cristianismo vira um reto inevitável para os homens e as mulheres que querem<br />
prosseguir a orientação. E quantas vezes é preciso perdoar? Lemos em Lucas: «Se teu<br />
irmão te faz uma ofensa, adverte-o, e se ele se arrepender, perdoa-o. E, se ele te ofender<br />
sete vezes ao dia e sete vezes volta a dizer "me arrependo", tu tens de perdoá-lo» (17,3-<br />
4; veja-se Mt 18,21-22). A insistência neste ponto por parte do cristianismo faz-nos<br />
entender que só desta posição em relação ao perdoar há de verdade liberdade humana e<br />
somente nesta disposição a mudar constantemente de ponto de enfoque e de perspectiva<br />
se vê uma vida autenticamente viva, em constante realização e em constante busca da<br />
verdade (daquilo que um mesmo é, daquilo que os outros são e daquilo que Deus é).<br />
Pedir perdão, ao igual que perdoar, supõe ter a coragem de afrontar a verdade e<br />
empreender aquelas mudanças radicais para viver mais de acordo com uma vida<br />
verdadeiramente humana, de relação de perdão com os outros e consigo mesmo.<br />
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