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pergunta pelo imperdoável sempre é uma pergunta pela memória no processo do<br />
perdão: perdoar pede tempo e o tempo pode encaminhar os fatos para o esquecimento<br />
ou para a recordação. Quando Paul Ricoeur fala do perdão como cura (vejam o artigo<br />
citado na nota 7) fá-lo considerando a temporalidade e mostrando que nesta<br />
temporalidade é possível ao ser humano situar de maneira renovada na memória<br />
(reinterpretando) os atos que foram causa da ofensa e da transgressão e que ocasionaram<br />
um mal profundo no inocente. Este mal tão profundamente enraizado no inocente e no<br />
mesmo culpado faz que às vezes resulte impossível perdoar, ao menos nesse<br />
determinado presente. Sê-lo-á mais na frente, e até possivelmente não será até uma nova<br />
geração que se darão as condições humanas para oferecer o perdão, dada a radical<br />
maldade de uma ofensa. Há crimes contra a humanidade que são crimes contra a<br />
essência humana, que querem destruir metafisicamente o que é humano (destruindo o<br />
que é físico). Este seria o caso dos crimes alemães durante a segunda guerra mundial.<br />
Assim o defende Vladimir Jankélévitch na sua obra L'Imprescriptible. 26 Estes atos (e<br />
tantos outros acontecidos no presente século XX) oferecem uma resistência ao perdão,<br />
mas não o impossibilitam daqui a um tempo, por longo que seja esperá-lo (esperá-lo<br />
porque se crê possível). Esta incidên | cia do tempo e do jogo esquecimento-memória no<br />
perdão ocupou longamente a reflexão do próprio Jankélévitch em todo o capítulo I de<br />
outra obra enormemente interessante: Le pardon. 27 Somente um tempo não contínuo<br />
–diz-nos Jankélévitch (passim)- nos faz possível a conversão definitiva, o dão gratuito<br />
do perdão, da relação renovada com os outros; um tempo que permite à memória ler a<br />
verdade dos atos e dos acontecimentos e das pessoas que se encontram vinculadas. Só<br />
uma disposição do tempo em relação à verdade pode fazer da memória um espaço de<br />
reconciliação e de vida aberta a um presente e a um futuro esperançadoramente<br />
humanos.<br />
Já dissemo-lo, mas remarquemo-lo: perdoar é um processo, e um processo<br />
relacional. Em efeito, no perdão sempre há, no mínimo, duas pessoas em relação.<br />
Perdoar é um processo relacional entre duas ou mais pessoas que estabelecem, no<br />
mesmo processo de perdoar –e no perdão que se opera-, uma relação interpessoal. É,<br />
pois, um ato de comunhão entre pessoas e, de alguma maneira, um broto de<br />
comunidade. Nos âmbitos religiosos o perdão e a reconciliação vivem-se e celebram-se<br />
em comunidade, até o extremo de formar uma data festiva (o Jom Quipur) ou até todo<br />
um ano de comemoração (o Jubileu). Este elemento de relação interpessoal deve ter-se<br />
bem presente porque atende a esta característica do perdão e do perdoar (assim como de<br />
pedir perdão) que o perdoar vai desenvolvendo-se.<br />
Por isso perdoar supõe compreender o outro (e compreender um mesmo com o<br />
outro), ainda que não há de confundir-se o compreender com o perdoar. E compreender<br />
o outro pede necessariamente dialogar com o outro: só o diálogo com o outro nos<br />
aproximará a ele e nos aproximará à sua compreensão. Compreender e dialogar nascem<br />
da gratuidade mesma do ser humano, que move a iniciar o processo de perdoar. A<br />
compreensão e o diálogo são dois elementos imprescindíveis no processo de perdoar<br />
que nunca podem ser obviados; ou melhor, que em algum ou outro momento do<br />
26 V. JANKÉLEVITCH, L'Imprescriptble, Paris: Seuil 1986. esp. pp. 21-22.<br />
27 V. JANKÉLEVITCH, Le Pardon, París: Aubier-Montaigne I967.<br />
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