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28). No caso de Susana, os dois idosos foram condenados pelo povo por perjúrio; no<br />
caso do adultério, a posição de Jesus de Nazareth é bem diferente: | «Eu vos digo: todo<br />
aquele que olhar a mulher de outro com o desejo de possui-la, já cometeu adultério com<br />
ela no seu coração» (v. 28). Este acento no coração muda radicalmente o sentido da<br />
culpa e dá ao perdão um relevo mais humano porque o perdão deve dirigir-se<br />
igualmente ao interior do ser humano. Diz o Duque de York no Ricardo III de<br />
Shakespeare: «Mostra-me um coração humilde e não o joelho, que faz um trabalho falso<br />
e enganoso» (cena III, ato II).<br />
O tempo que tomou relevo, que se transformou em história, e precisamente por<br />
causa disso, se converte em um tempo no qual a história de cada um dos homens e das<br />
mulheres se desenvolve livremente no interior de um sentido e, portanto, nesta<br />
concepção está contida a realidade da mudança, da metavnoia, ou seja, a possibilidade<br />
real de iniciar uma nova vida, de abrir-se com esperança a um futuro de acolhida, a um<br />
tempo de plenitude ao permitir agora a possibilidade de saborear uma pitada daquela<br />
plenitude de sentido. No cristianismo o perdão joga-se na tensão esperançada que se dá<br />
entre o agora e o ainda não, uma tensão que faz possível viver já no presente petiscos de<br />
eternidade. O perdão só faz sentido plenamente se considerarmos o tempo como<br />
história, isto é, se o tempo se abrir a um âmbito de significado que dê sentido à mudança<br />
que exige o perdão. Se somente a necessidade é a que prevalece na concepção do tempo<br />
–como no universo grego- é inevitável a tragédia: a vida se converte em um transcorrer<br />
trágico de atos inevitáveis, angustiantemente inevitáveis. Se libertarmos o tempo da<br />
necessidade e o compreendermos como âmbito da gratuidade e da liberdade, então a<br />
vida (e o perdão nela) abre todas as suas possibilidades de se desenvolver, de adquirir<br />
um caráter definitivo ela mesma com os outros e com Deus. Lev Tolstoi em<br />
Ressurreição narra em voz alta o estado interior de Nekhliúdov com estas palavras:<br />
«O ser livre, o ser moral, e que é dentro de nós o sol verdadeiro, o sol pujante, o sol<br />
eterno, este ser, desde esse momento, se desvelava no seu interior. Por colossal que<br />
fosse a distância entre o que ele era e o que queria chegar a ser, este ser inferior<br />
afirmava que tudo era para ele ainda possível» [...] «–Sim, pedir-lhe-ei perdão como<br />
fazem as crianças [...] Casar-me-ei, se for necessário» [...] «Parou-se, juntou as mãos<br />
como quando era pequeno, levantou os olhos e disse: -Senhor, vem ajudar-me, instruime,<br />
penetra em mim para purificar-me!» [...] «Rezava» (cap. 28).<br />
Este vínculo entre perdão e o tempo coloca o ser humano em condições de<br />
colocar em relevo aqueles momentos mais particularmente significativos da vida,<br />
porque no perdão se inova a vida e se renasce a uma vida nova. Estes tempos intensos,<br />
carregados de significado, pedem ser simbolizados, ser notados de maneira específica.<br />
Por isso, no interior do cristianismo celebra-se o perdão que, como supõe uma vida<br />
nova com a comunidade, | demanda um tempo repousado e intenso, um celebrar um<br />
tempo tão significado. Esta celebração é celebração de gratuidade, de liberdade, é<br />
celebração de uma nova relação: é a celebração de um ato sacramental, o da<br />
reconciliação com a comunidade. Não cumpre agora lembrar tudo o que na nossa terra<br />
Bartomeu M. Xiberta escrevia na sua obra Clavis Ecclesiae, 24 cuja tese principal resulta<br />
suficientemente conhecida e de uma claridade transparente.<br />
24 B. M. XIBERTA, Clavis Ecclesiae. Barcelona: Facultat de Teologia de Barcelona, 1974.<br />
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