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O Ateneu - Fundação Biblioteca Nacional

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dissabores como jamais encontrei tão amargos.<br />

Natação chamava-se o banheiro, construído num terreno das dependências do <strong>Ateneu</strong>, vasta toalha<br />

d’água ao rés da terra, trinta metros sobre cinco, com escoamento para o Rio Comprido, e alimentada<br />

por grandes torneiras de chave livre. O fundo, invisível, de ladrilho, oferecia uma inclinação,<br />

baixando gradualmente de um extremo para outro. Acusava-se ainda mais esta diferença de<br />

profundidade por dois degraus convenientemente dispostos para que tomassem pé as crianças como<br />

os rapazes desenvolvidos. Em certo ponto a água cobria um homem.<br />

Por ocasião dos intensos calores de fevereiro e março e do fim do ano, havia aí dois banhos por dia.<br />

E cada banho era uma festa, naquela água gorda, salobra da transpiração lavada das turmas<br />

precedentes, que as dimensões do tanque impediam a devida renovação; turbulento debate de corpos<br />

nus, estreitamente cingidos no calção de malha rajado a cores, enleando-se os rapazes como<br />

lampreias, uns imergindo, reaparecendo outros, olhos injetados, cabelos a escorrer pela cara, vergões<br />

na pele de involuntárias unhadas dos companheiros; entre gritos de alegria, gritos de susto, gritos de<br />

terror; os menores agrupados no raso, dando-se as mãos em cacho, espavoridos, se algum mais forte<br />

chegava.<br />

Dos maiores, alguns havia que faziam medo realmente, singrando a braçadas, levando a ombro a<br />

resistência d’água; outros precipitavam-se cabeça para baixo, volteando os pés no ar como cauda de<br />

peixe, prancheando sem ver a quem. E, borbulhando entre os nadadores, fartas ondas de ressaca<br />

embarcavam-se e iam transbordar pelas imediações do banheiro, alagando tudo.<br />

Ao longo do tanque, corria o muro divisório, além do qual ficava a chácara particular do diretor. À<br />

distância, viam-se as janelas de uma parte da casa, onde às vezes eram recolhidos os estudantes<br />

enfermos, fechadas sempre a venezianas verdes.<br />

Trepada ao muro e meio escondida por uma moita de bambus e ramos de hera, vinha Ângela, a<br />

canarina, ver os banhos da tarde. Lançava pedrinhas aos rapazes; os rapazes mandavam-lhe beijos e<br />

mergulhavam, buscando o seixo. Ângela, torcendo os pulsos, reclinando-se para trás, ria<br />

perdidamente um grande riso, desabrochado em corola de flor através dos dentes alvos.<br />

Ao primeiro banho, amedrontou-me a desordem movimentada.<br />

Procurei o recanto dos menores. Determinava a disciplina a divisão dos banhistas em três turmas,<br />

conforme as classes de idade. Mas, o descuido da fiscalização permitia que as turmas se<br />

confundissem e o inspetor de serviço, com a varinha destinada aos retardatários, vigiava afastado, de<br />

sorte que ficavam expostos os mais fracos aos abusos dos marmanjos que as espadanas d’água<br />

acobertavam. Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos, no fundo, prendiam-me o tornozelo, o<br />

joelho. A um impulso violento caí de costas; a água abafou-me os gritos, cobriu-me a vista. Senti-me<br />

arrastado. Num desespero de asfixia, pensei morrer. Sem saber nadar, vi-me abandonado em ponto<br />

perigoso; e bracejava à toa, imerso, a desfalecer, quando alguém me amparou. Um grande tomou-me<br />

ao ombro e me depôs à borda, estendido, vomitando água. Levei algum tempo para me inteirar do<br />

que ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei que o Sanches me tinha salvo. “Ia afogar-se!”<br />

disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio<br />

aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me haviam feito. “Perversos!” observou-me o colega<br />

com pena, e atribuiu a brutalidade a qualquer peste que fugira no atropelo dos nadadores,<br />

desvelando-se em solicitudes por tranqüilizar-me. Tive depois motivo para crer que o perverso e a<br />

peste fora-o ele próprio, na intenção de fazer valer um bom serviço.<br />

Mas a conseqüência imediata do fato foi que forcei a repugnância que o Sanches me causava e me<br />

fiz todo gratidão para com ele e íntima amizade. Curiosa e acidentada tinha de ser essa minha<br />

aventura de apego e confiança.<br />

No <strong>Ateneu</strong> formávamos a dois para tudo. Para os exercícios ginásticos, para a entrada na capela, no<br />

refeitório, nas aulas, para a saudação ao anjo da guarda, ao meio-dia, para a distribuição do pão seco

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