O Ateneu - Fundação Biblioteca Nacional
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das partes.<br />
Um livro de lembranças comprido e grosso, capa de couro, rótulo vermelho na capa, ângulos do<br />
mesmo sangue. Na véspera cada professor, na ordem do horário, deixava ali a observação relativa à<br />
diligência dos seus discípulos. Era o nosso jornalismo. Do livro aberto, como as sombras das caixas<br />
encantadas dos contos de maravilha, nascia, surgia, avultava, impunha-se a opinião do <strong>Ateneu</strong>.<br />
Rainha caprichosa e incerta, tiranizava essa opinião sem corretivo como os tribunais supremos. O<br />
temível noticiário, redigido ao sabor da justiça suspeita de professores, muita vez despedidos por<br />
violentos, ignorantes, odiosos, imorais, erigia-se em censura irremissível de reputações. O julgador<br />
podia ser posto fora por uma evidenciação concludente dos seus defeitos; a difamação estampada era<br />
irrevogável.<br />
E pior é que lavrava o contágio da convicção e surpreendia-se cada um consecutivamente de não<br />
haver reparado que era mesmo tão ordinário tal discípulo, tal colega, reforçando-se passivamente o<br />
conceito, até consumar-se a obra de vilipêndio, quando, por último, o condenado, sem mais uma<br />
sugestão de revolta, achava aquilo justo e baixava a cabeça. A opinião é um adversário infernal que<br />
conta com a cumplicidade enfim da própria vítima.<br />
Com exceção dos privilegiados, os vigilantes, os amigos do peito, os que dormiam à sombra de uma<br />
reputação habilmente arranjada por um justo conchavo de trabalho e cativante doçura, havia para<br />
todos uma expectativa de terror antes da leitura das notas. O livro era um mistério.<br />
À medida que se desenrolava a gazetilha, as ânsias iam serenando. Os vitimados fugiam,<br />
acabrunhados de vergonha, oprimidos sob o castigo incalculável de trezentas carinhas de ironia<br />
superior ou compaixão de ultraje. Passavam junto de Aristarco ao sair para a tarefa penal de escrita.<br />
O diretor, arrepiando uma das cóleras olímpicas que de um momento para outro sabia fabricar,<br />
descarregava com o livro às costas do condenado, agravante de injúria e escárnio à pena de<br />
difamação. O desgraçado sumia-se no corredor, cambaleando.<br />
Quando a coisa não dava para cóleras, Aristarco limitava-se a sublinhar com uma ponderação<br />
qualquer a sentença catedrática; ora uma exclamativa de espanto, ora uma ameaça, ora um insulto<br />
vivo e breve, ora um conselho amortalhado em fúnebre dó.<br />
Às vezes enlaçava com dois dedos o menino pela nuca, e o voltava tremente e submisso para o<br />
colégio atento, oferecendo-o às bofetadas da opinião: “Vejam esta cara!...”<br />
A criança, lívida, fechava os olhos.<br />
Em compensação, não havia expressamente punições corporais.<br />
O Professor Mânlio, sempre considerando a recomendação, poupou-me longamente ao castigo<br />
formidável das partes. Perdeu por fim a paciência e fulminou-me.<br />
No dia seguinte ao almoço, amargava eu, sem açúcar que me bastasse, o resto do café, quinado da<br />
expectativa (porque Mânlio me tinha prevenido), quando ouvi Aristarco, alargando pausas<br />
dramáticas de comoção, ler, claro, severo: “O Sr. Sérgio tem degenerado...”<br />
Eu havia figurado já na gazetilha do <strong>Ateneu</strong> com algumas notas de louvor; guardou-se a sensação<br />
para a nota má. O diretor olhou-me sombrio.<br />
No fundo do silêncio comum do refeitório, cavou-se um silêncio mais fundo, como um poço depois<br />
de um abismo. Senti-me devorado por este silêncio hiante. A congregação justiceira dos colegas<br />
voltou-se para mim, contra mim. Os vizinhos de lugar à mesa afastaram-se dos dois lados, para que<br />
eu melhor fosse visto. De longe, da copa, chegava um ruído argentino, horrível, de colheres à<br />
lavagem; os tamarineiros no parque ciciavam ao vento.<br />
Aristarco foi clemente. Era a primeira vez, perdoou.<br />
A pior hipótese do sistema do pelourinho era quando o estudante ganhava o calo da habitualidade,<br />
um assassinato do pudor, como sucedia com o Franco.<br />
Dias depois da terrível nota, voltava eu a figurar com outra má, menos filosoficamente redigida,