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O Ateneu - Fundação Biblioteca Nacional

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contemplação demente da vergonha.<br />

- Como tem descido Sérgio, lastimavam os inspetores, palestrando a ordem do dia com o diretor, é o<br />

íntimo do Franco.<br />

Ainda que isso não fosse rigorosamente exato, não foi surpresa para mim ver o excomungado<br />

convidar-me para uma extraordinária empresa à noite. “Vingar-me da corja!” murmurava,<br />

gargarejando um riso incompleto e azedo. Isto à tardinha, depois da ginástica, no mesmo dia do<br />

processo da bomba.<br />

Conseguira no lusco-fusco escapar à sala onde o haviam encerrado para a tarefa das páginas. E<br />

juntos eu e ele porque eu lhe aceitara o convite com uma facilidade que ainda hoje não compreendo,<br />

galgamos um canto de muro que havia no pátio e saltamos para o jardim florestal.<br />

Embaixo das árvores era já noite espessa. Demos uma volta no escuro acompanhando a curva de<br />

uma alameda. O Franco ia adiante calado, andando leve e rápido como uma sombra no ar. Eu o<br />

seguia irresistivelmente, como sonhando, num sonho de curiosidade e de espanto. Que ia fazer o<br />

Franco? Aonde ia ele? Chegamos ao capinzal, a um de cujos lados extremos ficava a natação. Logo<br />

ao portão de ingresso nesse terreno, havia um depósito de lixo, onde os jardineiros acumulavam as<br />

varreduras da chácara, negrejando putrefatas, virando estrume ao tempo.<br />

Franco deteve-se junto ao monturo. Sempre em silêncio e ativamente como para não perder aquele<br />

raro estímulo de vontade que o impelia, foi examinando o lixo com o pé.<br />

A um canto, entre tocos de bambu, tiniram garrafas. Franco abaixou-se e como em ação mecânica,<br />

sem se voltar, apanhou uma garrafa, outra e outra; foi-me dando, sobraçou ainda outras e<br />

prosseguimos, o Franco adiante, leve e rápido sempre no seu andar de sombra, como suspenso e<br />

difuso na névoa quase lúcida do campo aberto.<br />

Atravessamos o capinzal quase sumidos entre as altas bandas de capim-de-angola, cuja escura<br />

vastidão se constelava de vaga-lumes e vibrava da grita intensa dos grilos e do clamor dos sapos.<br />

Diante da natação o Franco parou e me fez parar. “A minha vingança!” disse entre dentes, e me<br />

indicou a toalha d’água do grande tanque. A massa líquida, imóvel, na calma da noite, tinha o<br />

aspecto de lustrosa calçada de azeviche; algumas estrelas repetiam-se na superfície negra com uma<br />

nitidez perfeita.<br />

Com o mesmo modo atarefado de todo aquele singular empreendimento o Franco acercou-se de<br />

mim, tirou-me as garrafas que me dera e desapareceu da minha vista.<br />

Eu ouvi que ele quebrava as garrafas uma por uma. Daí a pouco reaparecia, trazendo as abas da blusa<br />

em regaço. E começou a lançar então com o maior sossego ao tanque, para todos os lados, aqui, ali,<br />

dispersamente, como semeando as lascas do vidro que partira. Um breve rumor de mergulho<br />

borbulhava à flor d’água, abrindo-se em círculos concêntricos os reflexos do céu. Eu vi muitas vezes<br />

contra o albor mais claro do muro fronteiro, passando, repassando, a sombra do sinistro semeador.<br />

“A minha vingança!” repetiu-me ainda o Franco. “Para o sangue, sangue”, acrescentou com o risinho<br />

seco.<br />

“Amanhã rirei da corja!... Trouxe-te aqui para que alguém soubesse que eu me vingo!”<br />

Ao falar mostrava-me o lenço que enxugara o sangue do golpe à testa.<br />

O justo terror da aventura, em lugar vedado, por aquelas horas, só me assaltou quando, a pular o<br />

muro do pátio, fui cair entre as mãos do Silvino. Nos apuros da alhada, mal vi o Franco seguro pelo<br />

pescoço, como um ladrão em flagrante.<br />

Em presença do diretor, no escritório inquisitorial, improvisei uma mentira. Fôramos colher sapotis,<br />

afirmei, explicando à tremenda argüição a estranheza da surtida. O diretor marcou a pena de oito<br />

páginas. Franco, que andava com um déficit de vinte pelo menos, teve de acrescentar mais estas ao<br />

passivo insolvável. Pela vergonha da tentativa de furto e no sistema dos castigos morais, adicionouse<br />

a observação suplementar: passaríamos, os delinqüentes, no outro dia, as horas do almoço e do

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