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O Ateneu - Fundação Biblioteca Nacional

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caracterizar em definitivo a conformação sexual do indivíduo, sentia-me possuído de certa<br />

necessidade preguiçosa de amparo, volúpia de fraqueza em rigor imprópria do caráter masculino.<br />

Convencido de que a campanha do estudo e da energia moral não era precisamente uma cavalgata<br />

cotidiana, animada pelo clarim da retórica, como nas festas, e pelo verso enfático dos hinos,<br />

entristeceu-me a realidade crua. Desiludi-me dos bastidores da gloriosa parada, vendo-a pelo avesso.<br />

Nem todos os dias do militarismo enfeitam-se com a animação dos assaltos e das voltas triunfais;<br />

desmoralizava-me o ramerrão estagnado da paz das casernas, o prosaísmo elementar da faxina.<br />

Com esta crise do sentimento casava-se o receio que me infundia o microcosmo do <strong>Ateneu</strong>. Tudo<br />

ameaça os indefesos. O desembaraço tumultuoso dos companheiros à recreação, a maneira fácil de<br />

conduzir o trabalho, pareciam-me traços de esmagadora superioridade; espantava-me a viveza dos<br />

pequenos, tão pequenos alguns! O braço do Sanches vinha assim salvar-me, segunda vez, de<br />

submersão, acudindo na vertigem do momento.<br />

Eu não estudava; a minha conta era, entretanto, regular, por um concurso de elementos eventuais:<br />

direitos da recente matricula à benevolência, a minha recomendação ao Professor Mânlio, com os<br />

retalhos alinhavados de ciência anterior. Mantinha-me em satisfatória média; mas o risco da<br />

decadência era constante. O método constituía o pior obstáculo; sem o auxílio de alguém, mais<br />

prático, estava perdido. Sanches havia sem dúvida de valer-me com a sua capacidade de grande<br />

estudante, sobretudo com a boa vontade insinuativa que desinteressadamente manifestava. Sem falar<br />

no proveito que rendia esta afeição, empunhando por meu favor o terrível sabre de vigilante, com<br />

guardas de couro!<br />

Com efeito não tardou que ele me desse a mão como a Minerva benigna de Fenelon.<br />

Entrei pela Geografia como em casa minha. As anfractuosidades marginais dos Continentes<br />

desfaziam-se nas cartas, por maior brevidade do meu trabalho; os rios dispensavam detalhes<br />

complicados dos meandros e afluíam-me para a memória, abandonando o pendor natural das<br />

vertentes; as cordilheiras, imensa tropa de amestrados elefantes, arranjavam-se em sistemas de<br />

orografia facílima; reduzia-se o número das cidades principais do mundo, sumindo-se no chão para<br />

que eu não tivesse de decorar tanto nome; arredondava-se a cota das populações, perdendo as frações<br />

importunas, com prejuízo dos recenseamentos e maior gravame dos úteros nacionais; uma<br />

mnemônica feliz ensinava-me a enumeração dos Estados e das Províncias. Graças à destreza do<br />

Sanches, não havia incidente estudado da superfície terrestre que se me não colasse ao cérebro como<br />

se fosse minha cabeça por dentro o que é por fora a esfera do mundo.<br />

A seu turno a Gramática abria-se como um cofre de confeitos pela Páscoa. Cetim cor de céu e açúcar.<br />

Eu escolhia a bel-prazer os adjetivos como amêndoas, adocicadas pelas circunstâncias adverbiais da<br />

mais agradável variedade; os amáveis substantivos! voavam-me à roda, próprios e apelativos, como<br />

criaturinhas de alfenim alado; a etimologia, a sintaxe, a prosódia, a ortografia, quatro graus de doçura<br />

da mesma gustação. Quando muito, as exceções e os verbos irregulares desgostavam-me a princípio;<br />

como esses feios confeitos crespos de chocolate: levados à boca, saborosíssimos.<br />

A História Pátria deliciou-me em quanto pôde. Desde os missionários da catequese colonizadora, que<br />

vinham ao meu encontro, com Anchieta, visões de bondade, recitando escolhidas estrofes do<br />

evangelho das selvas, mandando adiante, coroados de flores, pela estrada larga de areia branca, os<br />

columins alegres, aprendizes da fé e da civilização; acompanhados da turba selvagem do gentio cor<br />

de casca de árvores, emplumados, sarapintados de mil tintas, em respeitosa contrição de fetichismo<br />

domado, avultando do seio, do fundo da mata escura como uma marcha fantástica de troncos. Até as<br />

eras da Independência, evocação complicada de sarrafos comemorativos das alvoradas do Rocio e de<br />

anseios de patriotismo infantil; um príncipe fundido, cavalgando uma data, mostrando no lenço aos<br />

povos a legenda oficial do Ipiranga; mais abaixo, pontuadas pelas salvas do Santo Antônio, as<br />

aclamações de um povo mesclado que deixou morrer Tiradentes para esbofar-se em vivas ao ramo de

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