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O Ateneu - Fundação Biblioteca Nacional

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improvisando súplicas, veementes, angustiosas, que deviam forçar a ombro a porta de São Pedro.<br />

Implorava de Deus diretamente, sem o intermediário empenho da minha padroeira. Até que, não<br />

posso dizer como, adormeci.<br />

Uma palmada acordou-me. Era dia. Ergui-me vexado, de camisola, diante do Margal e de uma<br />

porção de colegas que miravam. “É sonâmbulo, é sonâmbulo”, explicavam.<br />

Esta saída dispensava-me de dizer a que fora ali; encampei a explicação, concordando. “Que horas<br />

são?” perguntei. “Seis horas, responderam. Chegamos agora do banho.” Tinham os cabelos<br />

empastados sobre os olhos. “E os cacos?!” gritei espavorido. Examinei os pés dos companheiros.<br />

Nas chinelas com que desciam ao banho não via sangue! Esclarecia-se: houvera ordem de banhos de<br />

chuva no competente banheiro, alojado em um dos cômodos baixos do <strong>Ateneu</strong>, pelo motivo de ter<br />

servido seis vezes a água da natação. Graças ao Senhor! Vinha-me do céu esta solução de águas<br />

sujas, alcançada pela minha prece. Dilatou-se-me a alma em ditoso alívio.<br />

À minha interjeição explosiva de cacos, os colegas supuseram tontura de sono. Não assim o inspetor,<br />

que me chamou a indagar. Nova mentira: durante a escapada dos sapotis, uma garrafa, que<br />

arremessei de mau jeito, fizera-se em cacos contra o muro, sobre o tanque. Providenciou-se. O criado<br />

encarregado de varrer o tanque, com o zelo da domesticidade, chamou atenção para o número dos<br />

fragmentos; tão extraordinária era a hipótese da intenção perversa que não pegou.<br />

No mesmo dia estive com o Franco, durante os recreios, a completar a pena. Não me disse palavra<br />

acerca da decepção da sua vingança. Julgando-se comprometido, concentrava-se na insensibilidade<br />

de carapaça que o defendia, esperando tudo, a minha delação, uma trovoada de doestos, a cafua, um<br />

acréscimo ao déficit permanente da dívida penal. Aborrecia-se, porém, da necessidade de ser punido<br />

por um fiasco de tentativa.<br />

Quanto ao requinte da exposição no refeitório, mãos cheias de sapotis, não houve meio de obrigarme<br />

Aristarco. Concordara em ficar de pé; não era pouco. Franco naturalmente submeteu-se e lá<br />

esteve, braços abertos, a fazer de fruteira, no interesse do sistema das punições morais. Tanto melhor<br />

para o sistema.<br />

À vista da relutância, calculou-se em páginas de escrita quanto podiam valer dois punhados de<br />

sapotis; redução difícil, que a justiça colegial alcançou matematicamente, pronunciando uma<br />

condenação que me daria que fazer até mais de meia-noite.<br />

Este rasgo de vigor mentia ao meu religioso papel de submissão e sofrimento. Foi o repentino<br />

prenúncio de próxima reforma no interior espiritual. E, como as evoluções da vontade sabem extrair<br />

de qualquer fato a hermenêutica do determinismo, deu-se imediatamente uma ocorrência que<br />

ponderou muito na transformação.<br />

De noite, novamente ao lado do Franco, a fatigar-me na tarefa das páginas, tive que ficar até tarde<br />

numa das salas do primeiro andar. Pelas dez e meia, o diretor antes de sair para casa veio ver-nos.<br />

“Ainda escrevem... estes peraltas?...” disse-nos de enorme altura, à guisa de boas-noites, e<br />

desapareceu confiando-nos ao amável João Numa, bácoro, inspetor das salas de cima. Na sua<br />

qualidade de gorducho, o João não era diligente. Apenas viu partir Aristarco, trancou a última porta<br />

do <strong>Ateneu</strong> e foi dormir.<br />

Acabrunhado pela noitada anterior, estava eu de sono que mal podia erguer a cabeça. De uma vez<br />

que cedi ao cansaço fui despertado por sentir que me alisavam a mão. Adormecera sobre o braço<br />

direito contra a carteira, pousando o rosto na tinta do castigo, deixando cair o braço esquerdo para o<br />

banco. Um instante depois estava fora da sala, de um pulo, como se tivesse reconhecido em sonhos<br />

que o Franco era um monstro.<br />

Ao dia imediato saí da cama como de uma metamorfose. Imaginei, generalizando errado, que a<br />

contemplação era um mal, que o misticismo andava traidoramente a degradar-me: a convivência

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