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O Ateneu - Fundação Biblioteca Nacional

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Era a sala geral do estudo, à beira do pátio central, uma peça incomensurável, muito mais extensa do<br />

que larga. De uma das extremidades, quem não tivesse extraordinária vista custaria a reconhecer<br />

outra pessoa na extremidade oposta. A um lado, encarreiravam-se quatro ordens de carteiras de pau<br />

envernizado e os bancos. À parede em frente perfilavam-se grandes armários de portas numeradas,<br />

correspondentes a compartimentos fundos, depósito de livros. Livros é o que menos se guardava em<br />

muitos compartimentos. O dono pregava um cadeado à portinha e formava um interior à vontade.<br />

Uns, os futuros sportmen, criavam ratinhos, cuidadosamente desdentados a tesoura, que se atrelavam<br />

a pequenos carros de papelão; outros, os políticos futuros, criavam camaleões e lagartixas,<br />

declarando-se-lhes precoce a propensão pelo viver de rastos e pela cambiante das peles; outros,<br />

entomologistas, enchiam de casulos dormentes a estante e vinham espiar a eflorescência das<br />

borboletas; os colecionadores, Ladislaus Netos um dia, fingiam museus mineralógicos, museus<br />

botânicos, onde abundavam as delicadas rendas secas de filamentos das folhas descarnadas; outros<br />

davam-se à zoologia e tinham caveiras de passarinho, ovos vazados, cobras em cachaça. Um destes<br />

últimos sofreu uma decepção. Guardava preciosamente o crânio de não sei que fenomenal<br />

quadrúpede encontrado em escavações de uma horta, quando verificou-se que era uma carcaça de<br />

galinha!<br />

Eu tive a idéia de armar em capela o compartimento do meu número. Havia compartimentos<br />

enfeitados de cromos e desenhos: o meu seria um bosque de flores, e eu acharia uma lâmpada<br />

minúscula para conservar lá dentro acesa. Ao fundo, em dourado passe-partout, alojaria Santa<br />

Rosália, a padroeira.<br />

O projeto caiu pela dificuldade das flores. Pagando a um criado, mal conseguia um bogari, um botão<br />

qualquer por dia. Tive de acomodar a gravura na gaveta do móvel que possuíamos ao dormitório<br />

perto da cama, para as escovas e os pentes.<br />

E todos os dias, sobre o papel, testemunho de assídua veneração, depositava uma flor, mantendo na<br />

gaveta o clima tépido dos meus fervores, simbolizados num tributo de perfume.<br />

Quando, no dia primeiro, sorriram as rosas místicas de maio, saudei-as enternecido do alto das<br />

janelas do salão azul, como as mensageiras do amor de Maria.<br />

Iam começar os hinos pela manhã no oratório do <strong>Ateneu</strong>. Abençoados momentos de contrição e<br />

ternura, em que a disposição venturosa do corpo, depois do banho, vivia um pouco o recolhimento<br />

da poesia cristã, no magnífico salão, guardando ainda, como os vapores matinais das escarpas, as<br />

últimas sombras da noite por entre os crespos do estuque.<br />

O Sol vinha também à capela e colava de fora a fronte às vidraças, brando ainda do despertar<br />

recente, fresco da toilette da aurora, com medo de entrar, corado da vergonha de não rezar, pobre<br />

astro ateu. Pelas janelas abertas, esgalhavam-se para dentro frondosas ramas de jasmineiro, como<br />

uma invasão de floresta; e os jasmins da véspera, cansados, debulhavam-se em conchinhas de nácar<br />

pelo soalho, mortos, expirando no ambiente a alma livre do aroma.<br />

Nós, ajoelhados, ressentidos da influência moral do cenário, orávamos sinceramente. Não havia<br />

muito mal a colher nos corações daquela mocidade, naquele instante, repousando na trégua da oração<br />

das miseriazinhas da hora comum.<br />

Eu não olhava para o altar. Lá estava, rica, no trono iluminado, sobre três ordens de palmas, a<br />

imagem da Senhora da Conceição Imaculada, alteando à fronte a coroa de prata, onde engastavam<br />

pedraria os reflexos das luzes. A minha contrição, o meu canto pertenciam a Santa Rosália, ao<br />

querido cartão singelo que eu trazia dentro da blusa de brim, que comprimia ao peito com a mão,<br />

exacerbando o êxtase da fé pelo magnetismo do santo contato.<br />

O mês de maio foi a culminação do período anagógico de crença. Coincidiu com essa época<br />

levarem-no ao leito os incômodos de meu pai, impedindo-lhe as visitas do costume ao <strong>Ateneu</strong>. Eu<br />

pensava nos seus sofrimentos, e era isto mais um tema para as variações do misticismo.

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