O Ateneu - Fundação Biblioteca Nacional
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albergues da metrópole, até a cloaca máxima dos termos chulos. Descarnou-me em caricatura de<br />
esqueleto a circunspeção magistral do Léxicon, como poluíra a elevação parnasiana do poema.<br />
Eu me sentia amesquinhado sob o peso das revelações. Causava terror aquela sabedoria de coisas<br />
nunca sonhadas. O honrado diretor espiritual percebeu que havia agora um ascendente de domínio<br />
que me curvava. Olhava-me então de frente e tinha ousados risos de malícia. Depois dos dias de<br />
reserva, chegou-se de novo com uma segurança de possuidor forte. Eu andava num deplorável<br />
desmantelo de energia. Rabelo, de vez em quando, acabrunhava-me, através dos óculos azuis, com<br />
um olhar de desprezo ou condolência ainda mais aviltante. Meu pai vinha ver-me todas as semanas;<br />
eu mostrava os prêmios de aplicação, conversava de casa; o resto calava. Sempre desconfiado e<br />
receoso dos outros, o meu companheiro era quase exclusivamente Sanches. Sempre juntos eu e ele.<br />
Sabia-se no <strong>Ateneu</strong> que ele era meu explicador, supunham até que pago. Não causavam estranheza<br />
nossas relações.<br />
Contudo Sanches, como os mal-intencionados, fugia dos lugares concorridos. Gostava de vaguear<br />
comigo, à noite antes da ceia, cruzando cem vezes o pátio de pouca luz, cingindo-me nervosamente,<br />
estreitamente até levantar-me do chão. Eu aturava, imaginando em resignado silêncio o sexo<br />
artificial da fraqueza que definira Rabelo.<br />
Estimulado pelo abandono, que lhe parecia assentimento tácito, Sanches precipitou um desenlace.<br />
Por uma tarde de aguaceiro errávamos pelo saguão das bacias, escuro, úmido, recendendo ao cheiro<br />
das toalhas mofadas e dos ingredientes dentifrícios, solidão favorável, multiplicada pelos obstáculos<br />
à vista que ofereciam enormes pilares quadrados em ordem a sustentar o edifício - quando, sem<br />
transição, o companheiro me chegou a boca ao rosto e falou baixinho.<br />
Só a voz, o simples som covarde da voz, rastejante, colante, como se fosse cada sílaba uma lesma,<br />
horripilou-me, feito o contato de um suplício imundo. Fingi não ter ouvido; mas houve intimamente<br />
a explosão de todo o meu asco por semelhante indivíduo, e, muito calmo desviando apenas a vista,<br />
pretextei a falta de um lenço, que me endefluxara a friagem e... fui buscá-lo.<br />
Fora da zona magnética em que me cativava o bom amigo, concertaram-se os meus instintos<br />
sopitados de revolta e Sanches passou a ser um desconhecido. Sacrificava-se de golpe o amigo, o<br />
explicador e o vigilante; um rasgo de heroicidade. Ao primeiro encontro depois do rompimento, o<br />
homem viu que estava tudo acabado. Andou a rondar-me temperando o olhar com um brilho de<br />
facadas.<br />
A ocasião é que não era a melhor para o conflito. Conveniências do ensino tinham feito dividir-se em<br />
duas turmas a aula do Professor Mânlio, e eu fora incluído na seção confiada ao Sanches, como<br />
auxiliar idôneo. A conseqüência foi o que devia ser. Maltratado e condenado pelo ajudante, provando<br />
mal em razão do sobressalto no exame de verificação a que me sujeitou o professor, desmoralizado<br />
em repreensão solene com grande regozijo do Sanches, jurei vingança. Escandalizaria o mundo com<br />
uma vadiação sem exemplo! Percorrera a matéria toda em rápida antecipação de estudo. Isto, porém,<br />
não bastava. Bastasse! foi o meu lema. E toca a desandar. Fiquei abaixo do Barbalho, aliás fora de<br />
classificação decente; fiquei abaixo do Álvares. Fui o último da aula! Resultado razoável, para<br />
emprego de uma energiazinha que despontava.<br />
Ao mesmo tempo, como os filósofos atribulados, busquei a doce consolação dos astros.<br />
Aristarco iniciara um curso noturno de Cosmografia.<br />
Estrelas era com ele. O nobre ensino! Nenhum professor, sob pena de expulsão, abalançava-se a<br />
intrometer-se nas onze varas da camisola de astrólogo. E vissem-no, à janela, indicando as<br />
constelações, impelindo-as através da noite com o pontudo dedo! Nós, discípulos, não víamos nada;<br />
mas admirávamos. Bastava ele delinear sabiamente um agrupamento estelino às alturas, para cada<br />
um de nós por seu lado ficar mais a quo. E voava, fugindo, à poeira fosforescente.<br />
Quanto a mim, o que sobretudo me maravilhava era a coragem com que Aristarco fisgava os astros,