E que eu não caia sem antes ter entesado a última ... - cpvsp.org.br
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MARÇO/93 TUPARI<<strong>br</strong> />
TEOLOGIA<<strong>br</strong> />
Aprender a dançar com o espírito<<strong>br</strong> />
Você está <strong>que</strong>rendo a história<<strong>br</strong> />
do Alama; <strong>eu</strong> vou contar. Não tu-<<strong>br</strong> />
do, se<strong>não</strong> a gente vai amanhecer<<strong>br</strong> />
aqui hoje, né? Mas a história dele<<strong>br</strong> />
é muito importante. Era um ho-<<strong>br</strong> />
mem <strong>que</strong> era o nosso pastor, quan-<<strong>br</strong> />
do todos os Gavião eram crentes.<<strong>br</strong> />
Era o grande pastor. Chegava<<strong>br</strong> />
aqui, ele dizia <strong>que</strong> a gente <strong>não</strong> po-<<strong>br</strong> />
dia beber, <strong>não</strong> podia namorar e tu-<<strong>br</strong> />
do aquilo, né? E todo mundo che-<<strong>br</strong> />
gava e olhava para ele e falava:<<strong>br</strong> />
"Pô, esse homem está falando a<<strong>br</strong> />
palavra de D<strong>eu</strong>s, certo, né? Vamos<<strong>br</strong> />
respeitar ele, vamos obedecer a pa-<<strong>br</strong> />
lavra de D<strong>eu</strong>s". Ele passou mais<<strong>br</strong> />
ou menos lutando e ensinando o<<strong>br</strong> />
povo Gavião. Um dia ele fez uma<<strong>br</strong> />
roça e lá, depois da derrubada, no<<strong>br</strong> />
tempo da <strong>que</strong>imada, ele tocou fogo<<strong>br</strong> />
na roça. Aí já estava pronto para<<strong>br</strong> />
plantar e ele começou a carregar<<strong>br</strong> />
muda de banana para plantar na ro-<<strong>br</strong> />
ça dele. Aí, quando ele estava car-<<strong>br</strong> />
regando a muda de banana, ele viu<<strong>br</strong> />
um bicho <strong>que</strong> o seringueiro chama<<strong>br</strong> />
jacami, um pássaro grande. Aí o<<strong>br</strong> />
bichinho chegou bem perto dele<<strong>br</strong> />
assim, piando e ele perguntou:<<strong>br</strong> />
"Por <strong>que</strong> esse bicho está manso<<strong>br</strong> />
assim?". Aí ele jogou um pedaço<<strong>br</strong> />
de pau para ba<strong>ter</strong> na cabeça desse<<strong>br</strong> />
pássaro e o pau <strong>não</strong> pegou na cabe-<<strong>br</strong> />
ça dele. Aí, na mesma hora, apare-<<strong>br</strong> />
c<strong>eu</strong> um da<strong>que</strong>les porcões-do-mato,<<strong>br</strong> />
bem grande mesmo. Ele estava de-<<strong>br</strong> />
sarmado. Aí ele lem<strong>br</strong>ou: "Eu sei<<strong>br</strong> />
<strong>que</strong> você é Satanás. É você <strong>que</strong> es-<<strong>br</strong> />
tá me tentando, está estragando a<<strong>br</strong> />
minha vida. Eu sei <strong>que</strong> você é Sa-<<strong>br</strong> />
tanás". Aí ele cortou o pau pafa<<strong>br</strong> />
ba<strong>ter</strong> no porco, mas ele <strong>não</strong> tinha<<strong>br</strong> />
forças mais para cortar pau para<<strong>br</strong> />
matar o porco. Aí faltou a luz da<<strong>br</strong> />
vista dele. Como quando a luz apa-<<strong>br</strong> />
ga, ninguém enxerga mais. Acon-<<strong>br</strong> />
tec<strong>eu</strong> igual com a luz da vista. Aí<<strong>br</strong> />
ele voltou para casa. Voltou, pe-<<strong>br</strong> />
gou a espingarda meio tonto e vol-<<strong>br</strong> />
tou lá. Não encontrou nem jacami<<strong>br</strong> />
nem porco. Aí ele começou a tre-<<strong>br</strong> />
mer. Na mesma hora, ele pegou<<strong>br</strong> />
fe<strong>br</strong>e. Deitou. Falou <strong>que</strong> viu um<<strong>br</strong> />
bicho, e a mulher dele começou a<<strong>br</strong> />
chorar. Eu <strong>não</strong> sei como é <strong>que</strong><<strong>br</strong> />
<strong>br</strong>anco fala, né? Eu sei mais ou<<strong>br</strong> />
menos, <strong>que</strong> é Pai-da-Mata, <strong>não</strong> sei<<strong>br</strong> />
se é bem isso <strong>que</strong> chama. Os ín-<<strong>br</strong> />
dios têm vários nomes. Eu conhe-<<strong>br</strong> />
ço assim, como Pai-da-Mata. Eu<<strong>br</strong> />
<strong>não</strong> sei se vocês falam assim. Aí<<strong>br</strong> />
ela disse: "Pode ser Pai-da-Mata<<strong>br</strong> />
<strong>que</strong> machucou m<strong>eu</strong> marido". Aí<<strong>br</strong> />
ele tomou remédio, foi no hospital<<strong>br</strong> />
da Funai, lá no posto mesmo, lá na<<strong>br</strong> />
aldeia, tomou remédio. Nada sa-<<strong>br</strong> />
rou. O homem estava piorando.<<strong>br</strong> />
Diminuía a fe<strong>br</strong>e, outra hora ia pa-<<strong>br</strong> />
ra quarenta graus, e assim vai in-<<strong>br</strong> />
do. E nada. O homem <strong>não</strong> sarou.<<strong>br</strong> />
Aí passei um rádio, e a Funai man-<<strong>br</strong> />
dou o avião buscar ele. Ele entrou<<strong>br</strong> />
no avião e foi para Porto Velho.<<strong>br</strong> />
Ficou em Porto Velho, e acho <strong>que</strong>,<<strong>br</strong> />
mais ou menos uma <strong>sem</strong>ana de-<<strong>br</strong> />
pois, dizem <strong>que</strong> o Pai-da-Mata<<strong>br</strong> />
chegou, de novo, lá na Casa do ín-<<strong>br</strong> />
dio. Tá em Porto Velho e é tudo<<strong>br</strong> />
cercado. Lá tem muro, tem guarda<<strong>br</strong> />
no portão para índio <strong>não</strong> sair fora<<strong>br</strong> />
de hora. E o índio sumiu, desapa-<<strong>br</strong> />
rec<strong>eu</strong>. Não sei para onde foi, né?<<strong>br</strong> />
E a Funai ficou com medo. Não<<strong>br</strong> />
passou rádio para nós dizendo o<<strong>br</strong> />
<strong>que</strong> acontec<strong>eu</strong>. Dez dias depois,<<strong>br</strong> />
nós ficamos sabendo <strong>que</strong> o índio<<strong>br</strong> />
fugiu da Casa do índio. Ai' <strong>eu</strong> fui<<strong>br</strong> />
atrás dele em Porto Velho, e nem<<strong>br</strong> />
rastro nem nada a gente encontrou.<<strong>br</strong> />
Voltamos para a aldeia. Queima-<<strong>br</strong> />
ram roupa, <strong>que</strong>imaram casa, <strong>que</strong>i-<<strong>br</strong> />
maram tudo. Estragaram a roça<<strong>br</strong> />
dele — <strong>sem</strong>pre <strong>que</strong> um índio mor-<<strong>br</strong> />
re, estragam tudo. E, aí, é engra-<<strong>br</strong> />
çado mesmo. Despois de quatro<<strong>br</strong> />
meses, ele aparec<strong>eu</strong> na casa dele.<<strong>br</strong> />
Ele chegou. Seis horas da manhã.<<strong>br</strong> />
Ele estava lá no meio do pessoal.<<strong>br</strong> />
Todo mundo <strong>que</strong>ria ver ele — ín-<<strong>br</strong> />
dio ao redor das casas e lá vem es-<<strong>br</strong> />
se tal de Alama: um homem <strong>que</strong><<strong>br</strong> />
mudou. Ele ficou tão diferente,<<strong>br</strong> />
trouxe o arco na mão. Rapaz, era<<strong>br</strong> />
uma coisa diferente. Não era assim<<strong>br</strong> />
como nós estamos agora. O cara<<strong>br</strong> />
mudou, emagrec<strong>eu</strong>. Ficamos mais<<strong>br</strong> />
ou menos um mês lutando com<<strong>br</strong> />
a<strong>que</strong>le homem. Ele contando histó-<<strong>br</strong> />
ria de como acontec<strong>eu</strong>, como o<<strong>br</strong> />
Pai-da-Mata carregou ele. Ele en-<<strong>br</strong> />
trou dizendo, né? Como aqui <strong>que</strong><<strong>br</strong> />
tem o metrô debaixo da <strong>ter</strong>ra, tem<<strong>br</strong> />
outra estrada debaixo da <strong>ter</strong>ra, pa-<<strong>br</strong> />
ra viver lá embaixo. Como vocês<<strong>br</strong> />
têm metrô para entrar no buraco e<<strong>br</strong> />
sair de lá do outro lado, né? Igual<<strong>br</strong> />
tatu. Uma hora ele estava debaixo<<strong>br</strong> />
da <strong>ter</strong>ra, outra hora debaixo da<<strong>br</strong> />
água, outra hora lá no outro canto,<<strong>br</strong> />
e lá ele viu o pai dele. O pai dele<<strong>br</strong> />
já tinha morrido há muito tempo.<<strong>br</strong> />
Ele conhecia o pai dele. Quando o<<strong>br</strong> />
pai dele viu ele, veio a<strong>br</strong>açar, mas<<strong>br</strong> />
<strong>não</strong> deixou ele a<strong>br</strong>açar. Ele <strong>não</strong><<strong>br</strong> />
era morto, mas ele era vivo mes-<<strong>br</strong> />
mo, pessoalmente, conhecendo es-<<strong>br</strong> />
píritos. Ele viu o pai dele, ele viu a<<strong>br</strong> />
mãe dele, ele viu o primo dele,<<strong>br</strong> />
<strong>que</strong> morr<strong>eu</strong>, viu todo o pessoal de<<strong>br</strong> />
lá. Ele dançou junto com o espíri-<<strong>br</strong> />
to, vivia com o espírito, comia co-<<strong>br</strong> />
mida de espírito. Tudo ele contou.<<strong>br</strong> />
Contam a história até hoje. Bom, a<<strong>br</strong> />
gente <strong>não</strong> tem prova para dizer <strong>que</strong><<strong>br</strong> />
ele viv<strong>eu</strong> com o espírito, né? Mas,<<strong>br</strong> />
da nossa parte, ele é um homem<<strong>br</strong> />
sério. Ele nunca mentiu. Então,<<strong>br</strong> />
por isso <strong>que</strong> os Gavião estão acre-<<strong>br</strong> />
ditando <strong>que</strong> ele <strong>não</strong> é homem men-<<strong>br</strong> />
tiroso, estamos acreditando <strong>que</strong> ele<<strong>br</strong> />
conta tudo para nós como vive. Ele<<strong>br</strong> />
aprend<strong>eu</strong> a viver junto com espíri-<<strong>br</strong> />
to. Aprend<strong>eu</strong> a dançar com espíri-<<strong>br</strong> />
to. Tudo isso ele aprend<strong>eu</strong>. E hoje<<strong>br</strong> />
ele é grande pajé nosso.<<strong>br</strong> />
Narrativa de Sebirope Gavião ■<<strong>br</strong> />
(Extraída do livro "O índio On-<<strong>br</strong> />
tem, Hoje e Amanhã" Edusp,<<strong>br</strong> />
SP)<<strong>br</strong> />
índio, da Missão Maynas, dançando na Igreja<<strong>br</strong> />
"A função da Arte 12"<<strong>br</strong> />
O pastor Miguel Brun me contou <strong>que</strong> há alguns anos esteve<<strong>br</strong> />
com os índios do Chaco paraguaio. Ele formava parte de uma<<strong>br</strong> />
missão evangelizadora. Os missionários visitaram um caci<strong>que</strong><<strong>br</strong> />
<strong>que</strong> tinha fama de ser muito sábio. O caci<strong>que</strong>, um gordo quieto<<strong>br</strong> />
e calado, escutou <strong>sem</strong> prestanejar a propaganda religiosa <strong>que</strong> le-<<strong>br</strong> />
ram para ele na língua dos índios. Quando a leitura <strong>ter</strong>minou,<<strong>br</strong> />
os missionários ficaram esperando.<<strong>br</strong> />
O caci<strong>que</strong> levou um tempo. Depois opinou:<<strong>br</strong> />
— Você coca. E coca bastante, e coca bem.<<strong>br</strong> />
E sentenciou:<<strong>br</strong> />
— Mas onde você coca <strong>não</strong> coca.<<strong>br</strong> />
(Eduardo Galeano. O Livro dos A<strong>br</strong>aços, p. 28. - Ed. LPM. Porto<<strong>br</strong> />
Alegre, 1991.)