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Protestantismo em Revista, volume 13 (Ano 06, n.2) - Faculdades EST

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<strong>Revista</strong> eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong> (ano <strong>06</strong>, n. 02) – maio-agosto de 2007São Leopoldo – RSPeriodicidade Quadrimestral - ISSN 1678-6408http://www3.est.edu.br/nepp


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408 Coordenador GeralProf. Dr. Oneide BobsinConselho EditorialBerge Furre - Universidade de OsloEmil A. Sobottka - PUCRSAdriane Luísa Rodolpho – Escola Superior de TeologiaRicardo W. Rieth – Escola Superior de Teologia/ULBRAEdla Eggert - UnisinosISSN: 1678-6408Responsável por esta ediçãoOneide BobsinCapa desta ediçãoIuri Andréas ReblinRevisãoIuri Andréas Reblin, Kathlen Luana de Oliveira.Editoração EletrônicaIuri Andréas ReblinEsta versão <strong>em</strong> PDF é uma edição revista da edição original.Link Desta Edição: http://www3.est.edu.br/nepp/revista/0<strong>13</strong>/ano<strong>06</strong>n2.pdf<strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> é um órgão do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP),que visa ser um canal de socialização de pesquisas de docentes e discentes da área de Teologia,Ciências das Religiões, abrangendo o espectro das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas,tanto de integrantes da Escola Superior de Teologia (<strong>EST</strong>) quanto de outras instituições.<strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> está sob a coordenação do Prof. Dr. Oneide Bobsin, titular da Cadeira deCiências das Religiões da <strong>EST</strong>.A revista eletrônica <strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> é uma publicação quadrimestral (jan.-abr.; mai.-ago.,set.-dez.), sendo que as três edições do ano são tradicionalmente planejadas <strong>em</strong> duas edições t<strong>em</strong>áticase uma edição livre. Comumente, a equipe de redação aceita textos até o final do segundo mês doquadrimestre e a publicação acontece normalmente na segunda quinzena do terceiro mês doquadrimestre, salvo exceções. Confira a data estipulada na grade do tópico “edições anteriores” no siteda revista.Os trabalhos deverão ser enviados para o correio eletrônico do Núcleo de Estudos e Pesquisa do<strong>Protestantismo</strong>: nepp_iepg@yahoo.com.br. Consulte as normas no site da revista. D<strong>em</strong>aisinformações e edições anteriores, acesse o site (http://www3.est.edu.br/nepp)Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 2


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408SumárioEditorial................................................................................................................................................. 4Textos:Imagens do Juízo Final no Conto “Vozes Ceifadas” de Júlio de Queiroz.................................... 7Por Diógenes Braga RamosO caso das rezadeiras evangélicas: uma breve reflexão sobre as práticas terapêuticas e acomunhão de crenças entre as rezadeiras de Cruzeta (RN)......................................................... 15Por Francimário Vito dos SantosInterferencias en la “identidad luterana” ....................................................................................... 34Por Graciela ChamorroHistória como Contextualidade e Apatia Teológica ..................................................................... 51Por Kathlen Luana de OliveiraViabilizando a educação teológica na <strong>EST</strong>: respondendo a novos desafios .............................. 73Por Dilceu Locir Witzke e Ezequiel de SouzaAprendendo a tecer do avesso ......................................................................................................... 88Por Felipe Gustavo Koch ButtelliTeologia: Tentativas e Tentações: discutindo a relação da teologia com o cotidiano............. 102Por Iuri Andréas ReblinResenhas, Leituras e Prefácios de Obras:Resenha da Tese de Joana Bahia: "O tiro da bruxa": identidade, magia e religião entrecamponeses pomeranos do Estado do Espírito Santo................................................................. 121Por Rogério Sávio LinkComo citar esta revista.................................................................................................................... <strong>13</strong>6Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 3


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408EditorialÉ com muita satisfação que está na rede o mais novo número de<strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong>. Essa segunda edição, tradicionalmente, publica t<strong>em</strong>asdiversos, possibilitando a pesquisadores, tanto da <strong>Faculdades</strong> <strong>EST</strong> quanto de outrasinstituições de ensino superior, a publicar<strong>em</strong> suas pesquisas e suas descobertas. Nós,como Núcleo de Pesquisa, esperamos que você, leitor, leitora, aprecie os textos queselecionamos para a presente edição e contamos com seu feedback, suas críticas e suassugestões.O primeiro artigo, de autoria de Diógenes Braga Ramos, realiza uma leiturada obra “Vozes Ceifadas”, de Júlio de Queirós, e observa como acontece a interaçãoentre teologia e literatura no respectivo conto. Considerando que o religioso permeiao cotidiano, o autor analisa aspectos escatológicos e apocalípticos que se faz<strong>em</strong>presentes no conto, <strong>em</strong> especial, a idéia de juízo final. Trata-se de uma leiturapeculiar de uma obra literária à luz da teopoética.Francimário Vito dos Santos apresenta um estudo antropológico sobre asrezadeiras de Cruzeta (Seridó, RN). A pesquisa etnográfica concentrou-se <strong>em</strong>observar as práticas terapêuticas e as crenças comuns que permeiam o universo dasrezadeiras. Além disso, o autor procura perceber relações da prática das rezadeirascom as práticas terapêuticas exercidas pelos especialistas da biomedicina e com aspráticas religiosas exercidas pelo padre católico e pelo pastor evangélico que atuamnaquela região. Trata-se de uma leitura interessante para qu<strong>em</strong> deseja conhecer ouestudar a religiosidade popular e como acontece a sua relação com as instituições.O terceiro artigo é escrito por Graciela Chamorro. A autora traz uma reflexãosingular acerca da identidade luterana na realidade da América Latina, tecida aDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 4


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408partir de uma reflexão sobre o pronome da primeira pessoa do plural do idiomaguarani e do destaque de aspectos sociológicos pertinentes ao processo migratório àsAméricas. Segundo a autora, “Nuestra identidad no existe como algo anterior yexterior a nosotros y nosotras. Pero donde y cuando situaciones concretas lo exijanella es construida. Nuestra tarea es pues indagar bajo qué condiciones, en qué formay con qué espíritu la evocamos”.Já Kathlen Luana de Oliveira apresenta uma reflexão interessante acerca daepist<strong>em</strong>ologia teológica cristã através dos t<strong>em</strong>pos, tendo como ponto de partidaquestionamentos historiográficos baseados no historiador Marc Bloch. O textoevidencia a distância que o pensamento teológico adquiriu <strong>em</strong> relação à vivênciacotidiana da fé cristã, perguntando sobre os desafios e as relevâncias atuais para ateologia. Para a autora, a teologia não pode sucumbir à realidade <strong>em</strong> que se encontra;ela precisa recuperar seu papel de enxergar além da realidade e de ser portadora daesperança.O texto seguinte é de autoria de Dilceu L. Witzke e de Ezequiel de Souza. Osautores mergulham na história da Escola Superior de Teologia (<strong>EST</strong>) procurandopontos convergentes e analisando os “caminhos percorridos pela instituição parasuperação das adversidades”. O retrospecto histórico revela os desafios, osprobl<strong>em</strong>as e as transformações que o estudo de teologia luterana enfrentou no Brasilaté se consolidar na Escola Superior de Teologia. Além disso, os autores versamsobre as políticas atuais assumidas pela instituição, <strong>em</strong> especial, o ProgramaNacional de Extensão Universitária, expresso no Projeto da Ação Comunitária. Trataseum ensaio atípico e merecedor de atenção.O penúltimo texto é uma leitura sócio-teológica na perspectiva de gênero daestória infantil Tecelina, escrita por Gláucia de Souza e ilustrada por Cristina Biazetto.Felipe Gustavo Koch Buttelli realiza uma “reflexão sobre as coerções sociais eimposições de papéis sociais distintos a mulheres e homens”. Trata-se de umaDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 5


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408abordag<strong>em</strong> singular que t<strong>em</strong> por objetivo vislumbrar, a partir da estória, novasformas de ser f<strong>em</strong>inino e masculino e, assim, por meio dessas novas perspectivas,enriquecer o discurso teológico.O último artigo é de autoria de Iuri Andréas Reblin e discute a relação entre ateologia e o cotidiano por meio da apresentação de alguns perigos que o pensamentodicotômico pode trazer ao fazer teológico. A relação entre a teologia e o cotidianorevela a tensão entre a teoria e a prática não solucionada pela criação da disciplina deTeologia Prática. Segundo o autor, “os desafios permanec<strong>em</strong>, pois a construção dosaber teológico mantém uma estruturação valorativa, definindo as preferências deseus interlocutores”. A sugestão do autor é compreender ambas as realidadesambiguamente, ou seja, como realidades dinâmicas que constitu<strong>em</strong> o universohumano e se encontram num fazer e refazer constante.Por fim, essa segunda edição da <strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> traz uma resenhada tese de doutorado <strong>em</strong> antropologia de Joana Bahia realizada magistralmente porRogério Sávio Link. O foco da pesquisa de Joana Bahia é a colônia pomerana deSanta Maria de Jetibá (ES) a qual é descrita <strong>em</strong> suas peculiaridades: o cotidiano davida no campo, a questão do idioma e da religião, os ritos de passag<strong>em</strong>, e, porúltimo, as questões atinentes à bruxaria e à benzedura.São Leopoldo, agosto de 2007.prof. Dr. Oneide BobsinIuri Andréas ReblinDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 6


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Imagens do Juízo Final no Conto “Vozes Ceifadas” de Júliode QueirozPor Diógenes Braga Ramos *Resumo:Este artigo busca observar el<strong>em</strong>entos de cunho teológico através da literatura, levando-se <strong>em</strong>consideração que a mesma dialoga constant<strong>em</strong>ente com o cotidiano cultural das pessoas. E,neste cotidiano, nos deparamos com a questão do juízo final que, ao longo da história, t<strong>em</strong>sido um marco na sociedade ocidental por conta da sua influência judaico-cristã. Assim, nosdebruçar<strong>em</strong>os sobre o escritor Júlio de Queiroz e seu conto “Vozes Ceifadas” para olhar esteel<strong>em</strong>ento, que tanto assombra o imaginário popular.Palavras-chave:Juízo Final - Vozes Ceifadas - Herodes - CondenaçãoEste texto visa observar, através do conto “Vozes Ceifadas” de Júlio deQueiroz, as imagens do juízo final, el<strong>em</strong>ento que faz parte da cultura judaico-cristãdo ocidente e que atormenta, de diversas formas, o imaginário do ser humano <strong>em</strong>geral, fazendo-nos constant<strong>em</strong>ente questionar a condenação do hom<strong>em</strong>.Para nos aproximarmos do conto, é necessário destacar que Júlio de Queirozt<strong>em</strong> dedicado sua vida às palavras fazendo com que nossas racionalidadescartesianas se transcendam, apontando-nos uma variada forma de diálogo com avida através da manifestação do Sagrado. Júlio, de formação religiosa cristã, utiliza aliteratura para manifestar os desafios constantes da vida que, como diss<strong>em</strong>os,permeia hora a plenitude hora a morte. Esse escritor faz parte da Acad<strong>em</strong>iaCatarinense de Letras e da Acad<strong>em</strong>ia Sul-Brasileira de Letras.* Bacharel <strong>em</strong> Teologia. Mestre <strong>em</strong> Teologia pelo IEPG/<strong>EST</strong>, São Leopoldo-RS. Atualmentecursando doutorado na UFSC, Florianópolis-SC, na área de Literatura, com linha de pesquisa <strong>em</strong>Teopoética.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 7


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Diante da sua vasta produção literária, optei <strong>em</strong> analisar o conto citado(“Vozes Ceifadas”), pois o mesmo interage com os relatos bíblicos, dando vida e voza um personag<strong>em</strong> que geralmente fica à marg<strong>em</strong> tanto do próprio relato bíblicoquanto da literatura e das expressões culturais; Herodes que, no conto, expressa, deforma ficcional, suas dores e anseios diante do seu juízo final e morte. É importanteressaltar que esse conto se encontra no último livro de Queiroz, Perfume de Eternidade.O conto “Vozes Ceifadas” dialoga com o texto bíblico do Evangelho deMateus, especificamente 2.16 1 , dando voz a Herodes:Sabia estar morrendo. Isto não lhe era grande preocupação, desdeque não doesse. Mas doía terrivelmente... Morrer não o entristecia.Tinha vivido muito. Assimilara, com adaptações aos interesses de suacarreira política... Estava na Galiléia para onde viera banido porCésar. Não lhe deixaram desmontar a trama tecida por seu sobrinho,Herodes Agripa. 2Como v<strong>em</strong>os, o narrador dá voz a Herodes que, no conto, vai descrevendosuas dores, por conta do câncer que foi desenvolvido ao longo dos anos <strong>em</strong> que lutoupelo poder frente ao Império Romano e, conseqüent<strong>em</strong>ente, junto aos judeus, tendoagora que se defrontar com o julgamento <strong>em</strong> vida.Conforme Rub<strong>em</strong> Alves 3 , “quando chega a hora da morte, chega a hora de secontar estórias” e, neste contexto, a ficção toma contornos de realidade. A partirdestas histórias, o julgamento de Herodes vai tomando forma através de el<strong>em</strong>entosescatológicos e apocalípticos, “como um relâmpago inesperado numa tarde de calorasfixiante, um espectro tomou forma. Sentou-se sobre um dos coxins. Com a mãodiáfama e descarnada chamou-o” 4 .1 “Então Herodes, vendo-se iludido pelos magos, foi acometido de grande fúria e mandou matar, <strong>em</strong>Belém e todo o seu território, todos os meninos de até dois anos, segundo o t<strong>em</strong>po de que ele sehavia certificado com os magos”.2 QUEIROZ, Júlio de. Perfume de Eternidade. Florianópolis: Insular, 20<strong>06</strong>. p. 33.3 ALVES, Rub<strong>em</strong>. T<strong>em</strong>pus Fugit. São Paulo: Paulinas, 1990. p. 92.4 ALVES, 1983, p. 34.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 8


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Então, diante das vozes ceifadas que tanto pod<strong>em</strong> trazer a vida através dacolheita do grão, como pod<strong>em</strong> também, <strong>em</strong> sentido figurado, destruir e tirar a vida 5 ,Herodes vai ser julgado <strong>em</strong> vida pelas atrocidades que cometeu <strong>em</strong> detrimento dopoder e do status 6 . Segundo Queiroz,– Tu o fizeste, tu nos cortaste a vida muito antes de ela desabrochar.Tudo o que seríamos, todo o b<strong>em</strong> que poderíamos ter feito, todos osgestos de amor, e de amor à justiça, tu os arrancaste antes mesmo queos tivéss<strong>em</strong>os feito brotar. 7Esse julgamento ou juízo de Herodes acontece pelas dores do tumor, “quelhe atormentava o ventre” 8 . Conforme May, “o inferno particular de cada um de nósestá ali, pedindo para ser confrontado, e nos achamos impotentes para fazerprogressos, s<strong>em</strong> ajuda, contra esses obstáculos” 9 .A partir dessa intertextualidade entre a Bíblia e a literatura, segundoKristeva, Queiroz vai apresentando o juízo final com tons coloridos de um eventoepifânico e cin<strong>em</strong>atográfico no qual, <strong>em</strong> meio aos relâmpagos e aos tufões, Herodesse defronta com seu subconsciente que o acusa através de suas dores, “ao relâmpagodo convite seguiu-se o trovão do abismo ao qual se viu atirado” 10 .Pensando <strong>em</strong> juízo final, é importante contextualizar essa expressão para quepossamos observar nossa hipótese de que Queiroz dá voz a Herodes para que omesmo avalie suas agruras e vá, assim, sucumbindo por conta do seu julgamento <strong>em</strong>vida, através dos seus sofrimentos de dor com relação ao tumor.5 É importante verificar os textos que salientam esta dualidade de ceifar como vida e como morte, Mt<strong>13</strong>.30-31; 40-41, 49.6 “Num esforço enorme, sua m<strong>em</strong>ória tirou a l<strong>em</strong>brança lancinante do imenso baú transbordantecom as mortes que lhe tinham dado e garantido o trono e o mando. Antes do urro do terror final,ela o aguilhoou: - As criancinhas de Belém!” (QUEIROZ, 20<strong>06</strong>, p. 36).7 QUEIROZ, 20<strong>06</strong>, p. 35.8 QUEIROZ, 20<strong>06</strong>, p. 33.9 MAY, Rollo. A Procura do mito. Trad. Anna Maria Dalle Luche. São Paulo: Manole, 1992. p. <strong>13</strong>1.10 QUEIROZ, 20<strong>06</strong>, p. 34.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 9


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408hades, no mesmo lugar onde os maus e os ímpios recebiam umavariedade de castigos. No Gr. Cl. Também é soletrado Aides (Iônico),Aidas (Dórioco). 16V<strong>em</strong>os Herodes sofrer por conta de suas atrocidades narradas nosEvangelhos, <strong>em</strong> especial no texto de Mateus, que descreve a busca incansável porJesus (Mt 2:1-3) para lhe ceifar a vida e, <strong>em</strong> decorrência de sua tentativa frustrada,manda matar todos os meninos de Belém (Mt 2:16). Neste estágio da narrativa doconto, Queiroz dá voz a estas vidas ceifadas que buscam a justiça, “-Nunca vinenhum de vocês! Como poderia ter matado? Há um engano terrível! O inferno éfeito de mentiras. Vocês vieram do inferno para me mentir” 17 .“Com um tal inferno no peito, como é possível viver?”, interroga Ivan, <strong>em</strong> Osirmãos Karamazovi 18 . Herodes sofria por conta de seu inferno que se instalava atravésda doença, “forças malditas dos infernos, por que se juntar<strong>em</strong> às dores do meucorpo?” 19 , assim, Herodes vai percebendo que não podia exercer o papel que s<strong>em</strong>prebuscou, o de Deus (At 12.20-23), se condenando <strong>em</strong> vida.Como notamos, o conto de Queiroz recorre à escatologia e à apocalípticaseguindo a marca de outros escritores latino-americanos. Ou seja, o religioso permeianossa cultura. Conforme Paul Tillich, “a linguag<strong>em</strong> é a criação cultural básica. Poroutro lado, não há criação cultural s<strong>em</strong> que se expresse nela uma preocupaçãoúltima” 20 . Assim, o b<strong>em</strong> e o mal s<strong>em</strong>pre terão espaço na cultura do ocidente que julgae leva o indivíduo constant<strong>em</strong>ente ao juízo final, tanto por influência no âmbitoreligioso como no psicológico e no moral.16 BROWN, Colin; CONEN, Lothar (Orgs.). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 1022.17 QUEIROZ, 20<strong>06</strong>, p. 35.18 GUARDINI, 1954 apud TORRES, Queiruga Andrés. O que quer<strong>em</strong>os dizer quando diz<strong>em</strong>os “inferno”?São Paulo: Paulus, 1996. p. 52.19 QUEIROZ, 20<strong>06</strong>, p. 35.20 TILLICH, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1974. p. 46.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 12


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Com isso, o ser humano, de alguma forma, tenta expressar sua insatisfaçãodiante do mal e dos desígnios que o mesmo traz, e isso pode ser notado tanto naliteratura como nos cânones das escrituras Sagradas.As metáforas usadas pela literatura do Antigo Testamento e, porextensão, do Novo Testamento, para expressar a brutalidade do mal,são rigorosamente a imag<strong>em</strong> do feio, do horrível, daquilo que incuteno ser humano o sentimento profundo de medo e da angústia. Este éum dos lados da medalha, porque o mal sabe apresentar-se comelegância e consegue, neste seu jogo de duplicidade, atrair e afastar,como mostra a bela mulher do capítulo 17 do Apocalipse. Muitoalém, ou aquém das metáforas, o mal está presente na história dahumanidade e faz seu percurso junto com o ser humano, mostrandosurpreendent<strong>em</strong>ente novas e perigosas faces, às quais cabe opor-se,caso quisermos conquistar o espaço paradisíaco proposto por Deus es<strong>em</strong>pre sonhado pelo hom<strong>em</strong>. 21Por fim, v<strong>em</strong>os nesse conto um importante el<strong>em</strong>ento de interação entre ateologia e a literatura, pois, através da literatura, é possível dar voz a um personag<strong>em</strong>marginalizado no universo cristão mostrando que o sofrimento e a dor faz<strong>em</strong> parteda vida cotidiana de todos os seres humanos, s<strong>em</strong> falar da busca incessante pelopoder que também permeia o imaginário ocidental. Além disso, v<strong>em</strong>os também apossibilidade de desmistificar os símbolos “céu” e “inferno”, que são muito malinterpretados e usados no universo religioso e, conseqüent<strong>em</strong>ente, cultural de nossassociedades, principalmente como el<strong>em</strong>ento punitivo, trazendo seqüelas profundas<strong>em</strong> nível psicológico, social e cultural. Resta-nos, então, olhar para as palavras deBorges e pensar nos juízos finais que se levantam no nosso dia-a-dia.No cristal de um sonho eu vislumbreio Céu e o Inferno todo prometidos:ao retumbar o Juízo nas trombetasúltimas e o planeta milenáriofor esquecido e bruscas já cessar<strong>em</strong>Ó T<strong>em</strong>po! Tuas efêmeras pirâmides,teu colorido e linhas do passadodefinirão na treva um rosto imóvel,21 PINZETTA, Inácio. O mal e suas determinações na História. Estudos Bíblicos. Petrópolis, n. 74, 2002.p. 37-41.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>13</strong>


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408adormecido, fiel, inalterável(o da amada talvez, quiçá o teu)e a cont<strong>em</strong>plação desse incorruptívelrosto contíguo, intacto incessantehá de se, para os réprobos, Inferno,porém para os eleitos, Paraíso. 22ReferênciasALVES, Rub<strong>em</strong>. T<strong>em</strong>pus Fugit. São Paulo: Paulinas, 1990.BORGES, Jorge Luis. “Do Inferno e do Céu”, po<strong>em</strong>a escrito <strong>em</strong> 1942. Obras completas. SãoPaulo: Editora Globo, v. 2, 1999.BROWN, Colin; CONEN, Lothar (Orgs.). Dicionário Internacional de Teologia do NovoTestamento. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000.BÍBLIA SAGRADA. TEB. São Paulo: Loyola e Paulinas, 1995.QUEIROZ, Júlio de. Perfume de Eternidade. Florianópolis: Insular, 20<strong>06</strong>.KRISTEVA, Júlia. Introdução à s<strong>em</strong>ianálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.MAY, Rollo. A Procura do mito. Trad. Anna Maria Dalle Luche. São Paulo: Manole, 1992.PINZETTA, Inácio. O mal e suas determinações na História. Estudos Bíblicos. Petrópolis, n. 74,2002.ROLDÀN, Alberto Fernando. Do terror à esperança: paradigmas para uma escatologiaintegral. Londrina: Descoberta, 2001.TILLICH, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1974.TORRES, Queiruga Andrés. O que quer<strong>em</strong>os dizer quando diz<strong>em</strong>os “inferno”? São Paulo: Paulus,1996.22 BORGES, Jorge Luis. “Do Inferno e do Céu”, po<strong>em</strong>a escrito <strong>em</strong> 1942. Obras completas. São Paulo:Editora Globo, v. 2, 1999. p. 267.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 14


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408O caso das rezadeiras evangélicas: uma breve reflexão sobreas práticas terapêuticas e a comunhão de crenças entre asrezadeiras de Cruzeta (RN)Por Francimário Vito dos Santos *Resumo:O presente artigo aborda as práticas das rezadeiras a partir de uma perspectivaantropológica, cuja atenção estará voltada para a compreensão desta prática como umprocesso dinâmico, tendo Cruzeta (Seridó, RN) como contexto de pesquisa etnográfica. Paraa realização da pesquisa, contei com a colaboração de vinte e quatro rezadeiras. Dentre elas,duas eram “rezadeiras evangélicas”. As s<strong>em</strong>elhanças existentes entre as rezadeiras eramvisíveis, sobretudo <strong>em</strong> relação ao processo de aprendizag<strong>em</strong> e ao uso de certos objetos etécnicas rituais. No entanto, as diferenças existentes possibilitaram a realização de umareflexão acerca da própria heterogeneidade do universo de especialistas. Além disso, tenteicaptar a relação das rezadeiras com as práticas terapêuticas dos profissionais da biomedicinae as práticas religiosas do padre e do pastor evangélico.Palavras-chave:rezadeiras – trânsitos religiosos – práticas terapêuticas – Seridó (RN)IntroduçãoA discussão acerca da pluralidade de crenças se deu porque, durante otrabalho de campo, observei a existência de rezadeiras informantes que comungavamde religiões aparent<strong>em</strong>ente contrárias à religião católica, ou seja, rezadeirasevangélicas que se afirmavam também com sendo católicas e uma rezadeira adeptado culto da jur<strong>em</strong>a que também se dizia ser adepta da religião católica. Diante deste* Mestre <strong>em</strong> Antropologia Social pelo PPGAS – UFRN. Desde a graduação realiza pesquisasrelacionadas com o t<strong>em</strong>a das rezadeiras.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 15


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408quadro, Sanchis 1 foi enfático ao dizer: “As religiões dos brasileiros difer<strong>em</strong> e, <strong>em</strong>alguns casos, opõ<strong>em</strong>-se profundamente. No entanto, não formam blocos estanques:exist<strong>em</strong> pontes, relações e transferências de sentido”. Essa idéia que o autor coloca dáuma breve concepção do que seja essa pluralidade de crenças que pretendo discorrerao longo do artigo.Antes de aprofundar essa probl<strong>em</strong>ática, exponho o que seria uma rezadeira.As rezadeiras ou benzedeiras são mulheres que realizam benzeduras. Para executaressa prática, elas acionam conhecimentos do catolicismo popular, súplicas e rezascom o objetivo de restabelecer o equilíbrio material ou físico e espiritual das pessoasque buscam pela sua ajuda. Para compor o ritual de cura, as rezadeiras pod<strong>em</strong>utilizar vários el<strong>em</strong>entos: ramos verdes, gestos <strong>em</strong> cruz feitos com a mão direita,agulha, linha, pano e rezas. Estas são executadas na presença do cliente ou àdistância. Neste caso, pode ser usada uma fotografia, uma peça de vestuário, ou podeapenas rezar pela intenção de alguém que se encontra distante. Essas mulheresrezam os males de pessoas, animais ou objetos, s<strong>em</strong> que, para isso, seja necessário odeslocamento dos mesmos até ela. Basta que alguém diga os seus nomes e ond<strong>em</strong>oram. De acordo com Cascudo 2 , as rezadeiras são mulheres, geralmente idosas,que têm poderes de curar por meio de benzimento. As rezadeiras são especialistas<strong>em</strong> quebranto, mau-olhado, vento caído, e enquanto rezam <strong>em</strong> cruzes sobre a cabeçado doente com pequenos ramos verdes, estes vão murchando por adquirir o“espírito” da doença que fazia mal.Portanto, a seguir abordarei a comunhão de crenças religiosas e as práticasde saúde que estão presentes entre estas mulheres que realizam curas através dasrezas, no contexto de Cruzeta (RN). Resolvi seguir através deste viés depois de1 SANCHIS, Pierre. Religiões, religião... Alguns probl<strong>em</strong>as do sincretismo no campo religiosobrasileiro. In: ______. (Org.). Fiéis e cidadãos: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro:EDUERJ, 2001. p. 10.2 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global Editora. 2001.p. 587.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 16


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408observar a presença de diversas práticas e concepções religiosas que coexist<strong>em</strong> naprática da benzeção. Em princípio, do ponto de vista das doutrinas e dos campos designificados envolvidos, seria um caso incompatível. Mas como b<strong>em</strong> enfatizaSanchis 3 , essas diferenças são efetivamente vividas sob formas de indecisão,cruzamento, porosidade, pertença dupla, trânsito, contaminação mútua e/ou<strong>em</strong>préstimos reciprocamente criativos. No momento <strong>em</strong> que um determinadoindivíduo “aceita Jesus”, ou seja, se torna crente, as práticas religiosas consideradas“não oficiais” passam a ter sentido de pecado, coisas do diabo etc. Crente é o nomedo pentecostal, é a palavra de toda a hora <strong>em</strong> sua boca e t<strong>em</strong>os visto que equivale aosmelhores adjetivos da religião: ‘entregue para Cristo’, ‘salvo’, ‘eleito’, ‘santo’ 4 . EmCruzeta, a população, para se referir a um adepto evangélico trata-o por crente. Issonão foi, porém, o que aconteceu com uma das rezadeiras evangélicas. Ao mesmot<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> que ela freqüentava uma determinada igreja pentecostal, ela nãoconcordava com a forma de tratamento destinado aos santos católicos e à NossaSenhora pelos crentes. Continua, mesmo assim, rezando as pessoas.A questão da indecisão e indefinição era muito presente no discurso dasrezadeiras que comungavam de religiões, a princípio, incompatíveis com suaspráticas. Por ex<strong>em</strong>plo, dona Rita, que recebia caboclo, afirmou que no início, quandocomeçou a fazer trabalhos se sentia culpada. No entanto, disse ter sido autorizadapor Frei Damião a continuar realizando tais obrigações. Situação s<strong>em</strong>elhante observeina conversa com a rezadeira evangélica. Ela relatou que não concordava com a formacomo os crentes se referiam às imagens dos santos. Disse ela: “Meu filho eu não gostode um lado da lei evangélica porque alguns desfaz<strong>em</strong> dos santos” (Informaçãoverbal, dona Gilda, abril/20<strong>06</strong>).3 SANCHIS, 2001, p. 23.4 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. São Paulo:Brasiliense, 1980. p. 264.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 17


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Então, diante desses casos observados durante o trabalho de campo, procuroexpor como se processam esses “trânsitos” que tanto perpassam as crenças religiosas,quanto as práticas médicas oficiais. Na verdade, o objetivo desta reflexão é entendercomo opera a relação entre rezadeira e a igreja católica, a rezadeira e a lei evangélica,e também a rezadeira e os profissionais de saúde. Para aprofundar as análises, recorriao material etnográfico, ou seja, busquei refletir sobre os fatos observados <strong>em</strong> campo.Neste caso a etnografia teve, portanto, caráter muito especial. Foi, <strong>em</strong> certosmomentos, bastante localizada tendo sido realizada nas residências das rezadeiras,sobretudo nas salas e quartos, locais da casa que denominei de “espaços terapêuticoreligiosos”.Em resumo, os métodos para a pesquisa foram: a) observaçãoparticipante; b) entrevistas <strong>em</strong> profundidade. Para uma melhor compreensão daleitura, optei por grifar os termos referentes e falados pelas rezadeiras <strong>em</strong> negrito.Optei também <strong>em</strong> usar o termo “evangélica” ao invés de “crente” ou “protestante”,por ser desta forma que as rezadeiras se refer<strong>em</strong> às denominações pentecostais.crenças1. Os elos de mediação: a circularidade nas transmissões dos saberes eOs adornos, imagens de santos populares, altares, bonecas pretas, a bíbliasagrada, rosários, flores de plásticos, velas brancas, peças de roupas para ser<strong>em</strong>rezadas, ramos de pinhão roxo, televisão, entre outros, estavam dispostosabertamente e conviviam lado a lado nas residências ou nos “espaços terapêuticoreligiosos”das rezadeiras. Esses objetos religiosos ou não, dão pistas para analisar afacilidade que estas mulheres têm <strong>em</strong> transitar por crenças religiosas diversas.Em sua residência, a rezadeira dona Rita, mantém na sala uma mesa detrabalhos onde expõe algumas imagens e enfeites <strong>em</strong> homenagens aos santos de suadevoção e aos guias. Nas paredes e móveis, percebe-se uma enorme quantidade deimagens de santos (quadros) e no altar pode-se constatar a existência de uma imag<strong>em</strong>Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 18


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408de Nossa Senhora Aparecida protegida por um plástico por causa da poeira, umaimag<strong>em</strong> pequena de Santo Antônio, uma outra Nossa Senhora, alguns jarros comflores vermelhas e um recipiente de vidro com galhos de plantas <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> aosseus guias.Na casa de dona Hosana, havia muitos quadros com imagens de santos. Emoutro espaço da sala ela mantinha um altar com vários enfeites, sobretudo rosascoloridas, naturais e artificiais e mini-garrafas de refrigerantes com galhos de plantas.No centro deste “santuário” estavam as imagens de Padre Cícero e de Frei Damião.Em frente de cada imag<strong>em</strong> havia dois pratos, um contendo duas velas apagadas e ooutro apenas com resíduo de velas já usadas. Pelo que observei, esta rezadeiracostumava pedir aos clientes que trouxesse velas para acender aos santos. Em voltadeste altar, na parede e sobre uma cadeira, havia sacolas contendo peças devestuários que os clientes traz<strong>em</strong> para ser<strong>em</strong> rezadas.De acordo com Araújo 5 , o fato de ser rezadeira, curandeira, pai-de-santo etc.,não impede que a pessoa procure a religião católica para confessar-se e comungar. Aidéia deste autor faz sentido, pois tanto as rezadeiras evangélicas quanto a rezadeiraque recebia entidades de “caboclos” se denominavam católicas. No caso da rezadeiraadepta do culto da jur<strong>em</strong>a, ela se justificou dizendo que se confessou com freiDamião, durante suas missões 6 . Na ocasião, ele disse o seguinte para ela: “Minhafilha cumpra o dom que Deus lhe deu. Agora só não queira fazer o mal ao próximo”(Informação verbal, dona Rita). A rezadeira conta este fato como prova cabal de tersido autorizada por um santo a realizar seus trabalhos de curas. O ato de confessarcom este santo do povo tirou de seus ombros uma culpa e acusação, tal como afeitiçaria, de estar realizando uma prática ilícita e moralmente desqualificada pelaIgreja Católica. Medeiros ressalta que este conflito, no âmbito rural, onde a5 ARAÚJO, Alceu Maynard. Medicina rústica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 88.6 “As missões de Frei Damião” era uma s<strong>em</strong>ana de evangelização que este frei realizava na cidade.Durante este período aconteciam várias atividades religiosas, tais como missas campais (fora daigreja), confissões individuais, pregações matinais, entre outras.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 19


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408heg<strong>em</strong>onia do catolicismo ainda é freqüente, muitas pessoas atingidas por esse malsent<strong>em</strong> e, às vezes, desenvolv<strong>em</strong> sentimentos de culpas 7 . Acredito que não seria b<strong>em</strong>uma espécie de culpa que atormentava o dia a dia desta rezadeira, mas a pressão e ascobranças impostas pelas pessoas consideradas católicas que conviviam com ela.Dona Rita contou com entusiasmo o fato de ter sido este santo milagroso, oresponsável pela confissão do seu casamento. Há nos discursos das rezadeiras, quesão devotas de Frei Damião uma relação de proximidade latente e também deconfiança. De um lado, por elas ter<strong>em</strong> assistido às missas celebradas por ele e, poroutro, de ter<strong>em</strong> conseguido a oportunidade de confessar-se e receber suasorientações. Ouvi de uma rezadeira a seguinte observação: “Frei Damião viveu entrenós. Eu vi e falei pessoalmente com ele”. Na verdade, ela referia-se às missõesevangelizadoras que este frei realizava não apenas <strong>em</strong> Cruzeta, mas no interior detodo o Nordeste. Neste sentido, apesar da sua imag<strong>em</strong> estar entre os santos quecompõ<strong>em</strong> os espaços terapêutico-religiosos das rezadeiras, percebe-se que ele possuium status diferenciado. Nas casas das rezadeiras, pude ver fotografias, quadros eimagens <strong>em</strong> gesso que retratavam a figura deste “santo do povo”. Em algumas casas,encontrei imagens de Frei Damião <strong>em</strong> altares enfeitados com flores artificiais e fitascoloridas, nas paredes das salas, nas estantes, até sobre a geladeira.Com relação às representações de cura no catolicismo popular, Minayomostra que, mesmo a igreja oficial não aceitando suas práticas, “ela trata com umaatitude de respeito, de prudência, de receio, na tentativa de capitalizar o fenômenopara evangelizar” 8 . O que a autora discute pode ser percebido claramente nodiscurso mais institucional da Igreja Católica, representado aqui pelo padre deCruzeta:7 MEDEIROS, Bartolomeu Tito Figueirôa de. Dona Rosinha do Massapé: a cura espiritual pelo toré.In: SANCHIS, Pierre. (Org.). Fiéis e cidadãos: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro:EUERJ, 2001. p. 108.8 MINAYO, Maria Cecília de Sousa. Representações da cura no catolicismo popular. In: ______;ALVES, Paulo César.(Org.). Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,1994. p. 64.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 20


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Que existe rezadeira aqui eu sei, porque nós estamos fazendo umtrabalho das Missões Populares e dentro deste há entrevistas <strong>em</strong>determinadas áreas da sociedade. Foram feitas entrevistas combenzedeiras famosas e tudo isso está num relatório (Informaçãoverbal, Padre Amaurilo, maio/20<strong>06</strong>).Na verdade, são estratégias que permit<strong>em</strong> aos representantes da igrejaconhecer de perto para evangelizar. É um dispositivo de controle para manter sobvigilância as práticas religiosas ditas não oficiais ou clandestinas, entre elas a práticadas rezadeiras, mas que estão associadas direta ou transversalmente ao catolicismo.Este controle se apresenta <strong>em</strong> todos os aspectos e searas onde a religião católica atua 9 .E continuando sobre o que achava da prática de cura realizada pelas rezadeiras opadre teceu o seguinte comentário:Eu penso assim.... não posso fugir às regras da igreja. Eu soufavorável àquilo que não prejudique a ninguém. Desde que seja umacoisa que propicie o b<strong>em</strong> ao outro, que não vá de encontro à fé cristã.Mas, a questão das benzedeiras eu não vejo que possa ferir, desdeque não parta para um curandeirismo barato e, que no caso dasrezadeiras não é (Informação verbal, Padre Amaurilo, maio/20<strong>06</strong>).Veja que no discurso, o agente da igreja tende a privilegiar apenas aquelasrezadeiras que se diz<strong>em</strong> católicas, mas sabe-se que nessa prática não há como separarel<strong>em</strong>entos apenas da religiosidade católica, já que se trata de uma prática sócioculturalque envolve cotidiano e multiplicidade de crenças. Isso é b<strong>em</strong> o que Sanchisaponta: “o cristianismo no Brasil tornou-se plural” 10 . E entre as rezadeiras nãopoderia ser diferente. Esta pluralidade de crenças está presente no cotidiano, seja nosobjetos sagrados religiosos, nas rezas, nas crenças e nas visões de mundo.Estas mulheres consegu<strong>em</strong> organizar no seu cotidiano experiencialel<strong>em</strong>entos que, por um lado, estão ligados à religião católica e, por outro, r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> àscorrentes evangélicas e às afro-brasileiras. Há, na verdade, uma fronteira tênue entre9 Cito como ex<strong>em</strong>plo, a realização de cerimônias matrimoniais coletivas que aconteceram <strong>em</strong>dez<strong>em</strong>bro de 20<strong>06</strong>. E, foi a partir do Projeto Santas Missões, que foram mapeados os casais que nãoeram “casados na igreja”.10 SANCHIS, 2001, p. 11.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 21


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408estes trânsitos de crenças religiosas, inclusive estas mediações vão além das imagens,o próprio linguajar diz muito sobre essa comunhão de crenças. Por ex<strong>em</strong>plo, o uso determos e palavras como carregado, caboclos brabos, vultos brancos, descarregos,encostos etc. No caso de dona Gilda, rezadeira evangélica, a televisão é o meio decomunicação pelo qual ela assiste ao programa transmitido pela IIGD 11 , chamado“Show da Fé”. Todos os dias à tarde, ela costuma assistir às pregações proferidaspelo pastor. Afirmou também que preferia assistir as pregações pela televisão, aoinvés de ir para a igreja. O interessante neste caso, é que ao lado da televisãoencontrava-se uma bíblia sagrada aberta no salmo vinte e três 12 . E nesta lógica damediação, o aparelho de televisão, durante a transmissão dos cultos, possibilitavauma prática religiosa, mesmo se t<strong>em</strong>porariamente e não definida <strong>em</strong> termos de umafreqüência assídua ao espaço da igreja.Ao chegar à casa desta rezadeira já se percebe uma diferença básica entreesta e as d<strong>em</strong>ais. Não vi nenhuma imag<strong>em</strong> de santo nas paredes ou sobre os móveis.Seria esse o primeiro sinal da moral evangélica na vida de dona Gilda? No entanto,ao conversarmos, percebi que a fé nos santos católicos estava calcada <strong>em</strong> suas ações econcepções, n<strong>em</strong> tanto nas imagens. Pode-se pensar, sobretudo, na sua contrariedadede cortar os laços e a crença religiosa com alguns santos e figuras católicas, como FreiDamião e Nossa Senhora. Isso fica claro quando enfatiza que t<strong>em</strong>e um castigo porousar desqualificá-los. Prefere permanecer às margens existentes entre os evangélicose os católicos. Ou seja, as experiências vividas no catolicismo popular foram tãointensas que dona Gilda não conseguiu se desvencilhar dele para “renascer <strong>em</strong>Cristo” como costumam falar os fiéis que se convert<strong>em</strong> à lei evangélica.11 Igreja Internacional da Graça de Deus.12 “O senhor é meu pastor e nada me faltará....”. Havia também na parede da sala, sobre a porta queacesso aos outros cômodos, um quadro com os dizeres deste salmo.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 22


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408As discussões teóricas de Bakhtin <strong>13</strong> a respeito da dinâmica da culturapopular através da obra de Rabelais, são pertinentes neste momento porque mostramcomo os intercâmbios culturais aconteciam na Idade Média. Elas lançam luzes paracompreender os significados desses “trânsitos religiosos” percebidos na prática dabenzeção <strong>em</strong> Cruzeta 14 . Embora os fluxos entre as crenças religiosas sejam maisevidentes, há também as trocas de informações que se orientam <strong>em</strong> mãos duplas, queseria o caso da relação entre as rezadeiras e os profissionais de saúde. Para tanto, oentendimento do conceito de circularidade, estabelecido por este autor é interessante,porque ajuda a entender a dinâmica dos intercâmbios culturais entre as religiões, asrezadeiras e a biomedicina.As interações culturais entre as elites e as camadas médias e baixas nãoaconteciam apenas de cima para baixo. Para o autor supracitado, esta dinâmicaseguia um processo que denominou de “circularidade”. Pode-se pensar nos festejospúblicos, tal como o carnaval, que reunia tanto o povo quanto a elite eclesiástica, ummomento que permitia intercâmbios de informações e el<strong>em</strong>entos culturais.Este processo de transmissão cultural <strong>em</strong> espiral abole a idéia de que apenasas elites são formadoras de opiniões e os que faz<strong>em</strong> parte da cultura popular sóabsorv<strong>em</strong>. Ginzburg 15 , ao discutir a relação do moleiro Menocchio com as eliteseclesiásticas, sinaliza sua proximidade com a análise elaborada por Bakhtin: “Épossível resumir no termo ‘circularidade’: entre a cultura das classes dominantes e adas classes subalternas existiu um relacionamento circular feito de influênciasrecíprocas, que se movia de baixo para cima, b<strong>em</strong> como de cima para baixo”.Isso não quer dizer que haja um nivelamento entre as duas classes que sãohierarquicamente diferentes: “t<strong>em</strong>os, por um lado, dicotomia cultural, mas, por<strong>13</strong> BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de FrançoisRabelais. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 1-50.14 E que envolv<strong>em</strong> valores da religião católica oficial, da lei evangélica e o culto da jur<strong>em</strong>a.15 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pelainquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. <strong>13</strong>.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 23


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408outro, circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e culturaheg<strong>em</strong>ônica” 16 . Estas discussões serv<strong>em</strong> de fio condutor para uma maiorcompreensão da dinâmica cultural existente entre as múltiplas crenças das rezadeirase as instituições religiosas e médicas, ditas oficiais.Barth 17 , por sua vez, contribui para esta discussão mostrando como atradição do conhecimento é transmitida diretamente pelo guru ou pelo iniciador aogrupo <strong>em</strong> que eles atuam. Enquanto o mérito do guru reside <strong>em</strong> repassar seusensinamentos de modo que todos aprendam, portanto um conhecimento acessível edidático, o iniciador, por sua vez, tenta ocultar de seu público, verdades essenciais.Ou seja, enquanto a tradição do conhecimento do guru prioriza a diss<strong>em</strong>inação dosaber, a tradição do iniciador está pautada <strong>em</strong> uma atmosfera de mistério. Naverdade são duas tradições com lógicas diferentes, porém que se encarregam detransmitir conhecimentos.Trazendo essa discussão para o campo <strong>em</strong>pírico das rezadeiras, pode-sepensar a transmissão do conhecimento através de duas perspectivas. Entre asrezadeiras exist<strong>em</strong> aquelas que, diante do repasse de seus conhecimentos, secomportam tal qual o iniciador, atribuindo os poderes de suas rezas ao segredo, aomistério e, conseqüent<strong>em</strong>ente, fazendo controle desse saber aos d<strong>em</strong>ais do grupo.Por seu turno, outras não faz<strong>em</strong> restrições quanto ao ensinamento desseconhecimento a outras pessoas, neste caso, aproximam-se do tipo de tradiçãoinerente ao guru. Repare que, no caso do iniciador a ênfase do seu conhecimentoreside no segredo e, conseqüent<strong>em</strong>ente, na força da tradição. É evidente que oiniciador também prepara seus iniciados. Contudo, “sua tarefa é pôr <strong>em</strong> ação esseconhecimento de modo a fazer com que os noviços sejam afetados por sua força, enão simplesmente explicá-los a eles” 18 . Na verdade, como b<strong>em</strong> enfatiza este autor, o16 GINZBURG, 1995, p. 21.17 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa,2000. p. 141-165.18 BARTH, 2000, p. 146.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 24


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408iniciador consegue evocar uma sutil experiência de mistério e construir uma tradiçãode conhecimento complexa e dinâmica. O interessante dessa idéia é porque r<strong>em</strong>ete àtransmissão do conhecimento via ritual, crucial para a manutenção do prestígio doiniciador. A aprendizag<strong>em</strong> dos iniciantes através de um processo ritual permite queestes reelabor<strong>em</strong> os conhecimentos adquiridos a partir de suas próprias experiências.Portanto, como enfatiza Barth 19 , espera-se dos iniciantes que sejam transformadospelos ritos <strong>em</strong> si, e não pelo que lhes foi transmitido do conteúdo do rito.evangélica”2. O dil<strong>em</strong>a da rezadeira evangélica: “eu sou católica, mas sou chegada àA questão do pertencer ou não à religião católica, foi percebida através dedois aspectos. Em primeiro lugar, todas as rezadeiras, ao ser<strong>em</strong> indagadas, seidentificavam como católica, à exceção da rezadeira evangélica. Por outro lado, umnúmero muito pequeno dizia freqüentar de fato as missas, as novenas, se confessarao padre etc. Portanto, elas participavam minimamente das atividades desenvolvidaspela Igreja Católica. De acordo com dona Giselda o ambiente dessa igreja não lheoferecia o conforto espiritual necessário para que se sentisse à vontade.Um dia desse e fui à igreja católica, me sentei, e quando me ajoelheicomeçou a me dar uma dor. Eu disse: Virg<strong>em</strong> Maria! Eu vou sairdaqui! Era uma dor atravessada! Você imagine, numa igreja que eufui rezar e me dá uma dor! Eu saí me benzendo. E me considerocatólica, mas tô assim com essa religião minha mesmo. É o que euquero. (Informação verbal, nov<strong>em</strong>bro/20<strong>06</strong>).Quando a rezadeira fala essa religião minha, não é no sentido de criar umadeterminada religião e arrebanhar fiéis. Na verdade, é ter a flexibilidade de transitar19 BARTH, 2000, p. 147.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 25


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408por religiosidades e crenças diferentes, no caso dela entre a religião católica e aevangélica. Sobre esta postura, Sanchis 20 dá a seguinte explicação:O campo religioso é, cada vez mais, o campo das religiões, pois ohom<strong>em</strong> religioso, na ânsia de compor um universo para si, s<strong>em</strong>dúvida cheio de sentido, mas de sentido-para-si, subjetivo, tende anão se sujeitar às definições que as instituições lhe propõ<strong>em</strong> dosel<strong>em</strong>entos de sua própria experiência.Ainda sobre esta liberdade de transitar por religiões distintas, Birman 21afirma que, o indivíduo cont<strong>em</strong>porâneo deteria um poder maior de escolha,portanto, ganharia a liberdade de transgredir dogmas, ultrapassar fronteiras,desobedecer ortodoxias e sobretudo desrespeitar a unidade doutrinária que estasdivisórias buscam defender.Fica evidente por parte de dona Giselda a obrigação de freqüentar a igrejapor uma questão moral e de princípios, porém não de prazer.Eu vou lá rezo uma Ave-maria e um Pai-nosso e sai todadesmantelada [ela quis dizer que erra as orações]. Uma coisa meatrapalhando. Agora, que eu s<strong>em</strong>pre vou à igreja porque mamãe [jáfalecida] me aparece pedindo para eu ir lá. Deus me perdoe, porcaridade! Eu já deixei de ir até às missas dos velhos, quando chego láfico doente. Você já pensou? A pessoa vai para uma igreja católica efaz é adoecer? (Informação verbal, nov<strong>em</strong>bro/20<strong>06</strong>. Grifo dopesquisador).O discurso dessa rezadeira é s<strong>em</strong>elhante ao de dona Rita, ambas enfatizamqueixar-se de algum probl<strong>em</strong>a de saúde, com nítida referência corporal. Ressaltandoque esta última não é simpatizante da lei evangélica, e sim do culto da jur<strong>em</strong>a.Eu vou à missa, mas já faz um bocado de dia que não vou. Um t<strong>em</strong>podesse eu fui... de lá pra cá não fui mais. Eu vivo doente, chego noscantos não posso ficar <strong>em</strong> pé... as minhas pernas do<strong>em</strong> d<strong>em</strong>ais...20 SANCHIS, 2001, p. 36 (Grifo do autor).21 BIRMAN, Patrícia. Conexões políticas e bricolagens religiosas: questões sobre o pentecostalismo apartir de alguns contrapontos. In: SANCHIS, Pierre. (Org.). Fiéis e cidadãos: percursos desincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: EUERJ, 2001. p. 61.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 26


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Quando eu chego na igreja tá tudo cheio [não há local para sentar].Eu rezo aqui mesmo com os santos da minha casa [as imagensespalhadas pelas paredes de sua casa] (Informação verbal, abril/20<strong>06</strong>.Grifo do pesquisador).“Eu rezo aqui mesmo com os santos da minha casa”. Esta frase é<strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática, sobretudo porque enfatiza b<strong>em</strong> o papel de mediação inerente aossantos católicos. Pois, de tanto conviver cotidianamente com seus santos, dona Ritaacredita que tanto fazia ir à missa, como simplesmente rezar fazendo preces aossantos espalhados pela sua casa. Afinal, muitas dessas imagens também estãodispostas no interior da igreja.A experiência de lidar com os aspectos religiosos permite, como b<strong>em</strong> colocoudona Giselda, ter a liberdade de escolher e fazer o que quiser, no que diz respeito àssuas crenças. “Eu vou naquilo que simpatizo e me dá vontade” (Informação verbal,nov<strong>em</strong>bro/20<strong>06</strong>). Além desse status de poder participar das reuniões da religiãocatólica s<strong>em</strong> a obrigação imposta pela instituição. Outro fato imprescindível estavapresente <strong>em</strong> seu discurso: “S<strong>em</strong>pre vou à igreja evangélica, eu gosto de ouvir oevangelho. Onde tiver o crente, sendo para ouvir evangelho, a palavra de Deus, euvou” (Informação verbal, nov<strong>em</strong>bro/20<strong>06</strong>). Isso l<strong>em</strong>brou-me de uma passag<strong>em</strong> que aneta desta rezadeira falou quando cheguei à sua casa: “Aqui t<strong>em</strong> mais santos do quena igreja católica!” (Informação verbal, nov<strong>em</strong>bro/20<strong>06</strong>) 22 . Não sei se chegava atanto, mas o fato é que havia muitas imagens de santos, <strong>em</strong> quadros e <strong>em</strong> vultos 23 .Logo que cheguei para conversar com dona Giselda, ela conduziu-me até o quarto <strong>em</strong>ostrou-me várias imagens de santos, a maioria tinha sido herdada de sua mãe. Paracada santo, dona Giselda tinha uma história para contar. À medida que falava osnomes das imagens dos santos, ela l<strong>em</strong>brava de um fato marcante. Ao ver a imag<strong>em</strong>de santo Onofre, ela l<strong>em</strong>brou do filho. Neste sentido, as imagens criam uma espéciede mediação entre os entes queridos.22 Essa neta de dona Giselda, atualmente é crente da Igreja Cristã Evangélica.23 Geralmente, os santos <strong>em</strong> formas de esculturas são denominados de vultos.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 27


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Frei Damião, Nossa Senhora dos Desterros, Coração de Jesus e deMaria, Padre Cícero, São Geraldo. Meu filho é louco por este santo[Santo Onofre], ele faz muitos votos a ele. São Benedito, NossaSenhora das Dores, São Roque, São João Batista. Nossa Senhora dosImpossíveis, José [seu filho] trouxe para mim da festa de Acari(Informação verbal, nov<strong>em</strong>bro/20<strong>06</strong>. Grifo do pesquisador).Ao contrário de alguns ex-católicos que destro<strong>em</strong> os santos ou passam adesqualificá-los, sua neta evangélica pareceu-me compreensiva quanto à convivênciacom a prática da reza e às devoções aos santos que sua avó depositava nas imagens.Chegou, inclusive, a afirmar que tinha prazer de cuidá-los. Quando perguntadasobre o que achava de sua avó ser rezadeira, a neta evidenciou a sua opção religiosa,mas reconheceu que a prática das rezadeiras tinha um valor cultural: “Não meatinge. Eu sou evangélica, tenho as minhas crenças, mas respeito a opinião dela.Olhando pelo lado cultural acho interessante. Agora pelo lado espiritual, não medeixo influenciar” (Informação verbal, nov<strong>em</strong>bro/20<strong>06</strong>).Embora a influência de sua neta evangélica contribuísse para que donaGiselda passasse a simpatizar-se pela lei evangélica, a postura moral dos católicosdurante às missas era um fator que decepcionava a rezadeira.Um dia desse eu disse lá na igreja católica: olhe, eu sou religiosa, maseu gosto de ir à igreja dos crentes, porque ninguém ver crítica comoessa igreja daqui. Só se ver aquele povo que fica nas portas da igrejaobservando como as pessoas estão vestidas. Só não sou crente, comose diz diplomada, mas eu gosto dos crentes porque eles têm educação.Ninguém ver na igreja de crente esse qui qui [chacota], essa s<strong>em</strong>vergonhice (Informação verbal, nov<strong>em</strong>bro/20<strong>06</strong>. Grifo dopesquisador).Assim, como esta rezadeira, Dona Gilda afirmou que sua simpatia pelo ladoevangélico, se concretizou também por não concordar com os modos dos católicosvestir<strong>em</strong>-se e comportar<strong>em</strong>-se no interior da igreja.Na igreja católica [os fiéis] visa mais a pessoa andar muito lorde [b<strong>em</strong>arrumados].... e olhar para roupas, para o calçado. Lá [evangélica]não. É por isso que eu gosto mais da evangélica. A gente vai simples eDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 28


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408ninguém fica reparando (Informação verbal, junho/20<strong>06</strong>. Grifo dopesquisador).Não era esta a opinião que a rezadeira dona Santa tinha a respeito dosevangélicos. Cito como ex<strong>em</strong>plo, o comentário que ela fez, enfatizando o modo devestir-se dos crentes: engravatados. Ou seja, para ela são os crentes qu<strong>em</strong> andamb<strong>em</strong> arrumados, de terno e gravata. Essa questão que envolve o cuidado com o corpoe a aparência com base no vestuário foi muito b<strong>em</strong> observada por Rabelo e Motaentre as mulheres protestantes: “[...] a aparência precisa refletir o estado de purezainterior. Entre as mulheres há uma preocupação clara com a beleza, visível noarrumar dos cabelos e na escolhas das roupas, principalmente aquelas usadas paracultos importantes e dias de festas na igreja” 24 .No caso de dona Gilda, o fato de não ser evangélica legítima, termoenfatizado por ela, foi porque os crentes desfaz<strong>em</strong> de Frei Damião e dos santos. “Eunão gosto, porque t<strong>em</strong>o um castigo” (Informação verbal, abril/20<strong>06</strong>). Está evidentenesta fala a posição de fronteira assumida pela rezadeira. Não ser “evangélicalegítima” permite a ela, ao mesmo t<strong>em</strong>po, partilhar de alguns dogmas dopentecostalismo e também continuar rezando nas pessoas. A rezadeira questionouainda a pouca importância de Nossa Senhora para os evangélicos, que falam de Jesuscomo se ele tivesse sido encontrado, nascido s<strong>em</strong> mãe. Um outro fato curioso quepercebi durante as conversas com dona Gilda foi com relação às reuniões presididaspelo pastor Marcos. Segundo ela, este líder religioso d<strong>em</strong>onstrava-se amigável aopadre de Cruzeta e isso fez com que a rezadeira se identificasse. Ao final do culto, opastor rezava um Pai-nosso e oferecia ao padre. Em conversa que tive com o lídercatólico, confirmei que havia realmente uma relação amistosa entre ele e o pastor,sobretudo quando o padre afirmou que costumava visitá-lo <strong>em</strong> sua residência.24 RABELO, Miriam C. M; MOTA, Sueli Ribeiro. O senhor me usa tanto: experiência religiosa e aconstrução do corpo f<strong>em</strong>inino no pentecostalismo. In: GROSSI, M. Pilar; SCHWADE, Elisete.(Org.). Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade.Florianópolis: ABA/Nova Letra, 20<strong>06</strong>. p. 07.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 29


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Porém, conseguia separar a amizade dos votos religiosos que cada um tinha queseguir.Procurei saber se havia alguém na família dessa rezadeira que era convertidoao pentecostalismo. Sobre este tipo de motivação dentro do seio familiar, Van DenBerg 25 afirma que a influência de um filho(a) nessa conversão é também marcada porfazer de seus adeptos militantes religiosos dentro do próprio lar.A fronteira que separa uma religião de outra é tênue. Acontece intercâmbiocom mais freqüência do que se imagina. A ex<strong>em</strong>plo disso, Brandão 26 relata o caso deum presbítero que, desenganado da medicina, procurou um curandeiro:O presbítero de uma das seitas, conhecido dos Prados à Vila Isaurapelo seu poder de cura e “dom da palavra”, teria chamado <strong>em</strong> casa“um índio curandeiro de Jacutinga”, quando descobriu que estavaenfermo e que n<strong>em</strong> os recursos da medicina n<strong>em</strong> os da fé estavamdando resultado.Na realidade, o que torna interessante a prática das rezadeiras evangélicas éque elas se situam numa zona de fronteira, cuja d<strong>em</strong>ais não têm domínio. Essecaráter ambíguo faz com que elas mantenham suas crenças aos santos, continu<strong>em</strong>rezando e também participando dos cultos evangélicos, seja indo às igrejaspentecostais ou assistindo aos programas através da televisão. No entanto, pudeaveriguar que alguns crentes não aceitam o fato de uma rezadeira ser evangélica. Acrente com qu<strong>em</strong> conversei falou que antes de ter “aceitado Jesus” estava sepreparando para ser freira, mas decepcionou-se com a rotina do convento. Apósassistir um culto evangélico decidiu mudar de religião. Evangélica da Ass<strong>em</strong>bléia deDeus por quase trinta anos, essa “irmã” criticou o fato de uma rezadeira seconsiderar evangélica e a amizade existente entre esse pastor e o padre. Para ela:25 VAN DEN BERG, Irene de Araújo. Louvar, orar e converter: estudo etnográfico sobre um grupocarismático e seus adeptos. 2000. 78f. Monografia (Bacharelado <strong>em</strong> Ciências Sociais) –Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2000. p. 67.26 BRANDÃO, 1980, p. 281.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 30


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408A rezadeira que se diz evangélica deve ser novata na igreja e nãodeve saber nada. E não deve freqüentar os estudos bíblicos. Essaigreja dela é muito liberal. Até o pastor é amigo do padre [...] Eutenho certeza que as igrejas evangélicas não admit<strong>em</strong> esse tipo decoisa. Uma rezadeira ser evangélica? (Informação verbal, evangélicada Ass<strong>em</strong>bléia de Deus, junho/20<strong>06</strong>).Na verdade, a expressão de indignação contida nas falas dessa informanteevangélica foi s<strong>em</strong>elhante ao que aconteceu com a atitude dos fiéis do presbíteroanteriormente citado. Eles não aceitaram o fato de seu líder procurar os serviços deum curandeiro, pois ele mesmo, <strong>em</strong> seus sermões, inferiorizava e denominava aspráticas de curas como não sendo “coisas de Jesus”. “Pra mim toda rezadeira t<strong>em</strong> umnegócio de catimbozeiro” (informação verbal, junho/20<strong>06</strong>). O que se percebe é umaárdua tentativa de discriminar a pratica das rezadeiras. Como afirma Loyola 27 :Os protestantes acusam os pais e mães-de-santo de feiticeiros edenunciam suas práticas como ‘impuras e culposas’, devido ao usoritual do tabaco, do álcool e de formas de expressão corporal sensuaisou sexualmente ambíguas, associando, assim ao diabo, o símbolo domal. Embora não se evidencie neste estudo a dinâmica das regiõesafro, por outro lado, não posso deixar de percebe que algumaspessoas, incluindo esta crente, costumam se reportar às práticas dasrezadeiras como sendo uma prática de feitiçaria.Além de desqualificar, chamando-as de catimbozeiras, a informante crenteenaltece a prática da biomedicina quando questiona a eficácia das rezas ressaltando oconhecimento científico que os médicos detêm: “Como é que a rezadeira vai saberque a pessoa está com arca caída, se n<strong>em</strong> o médico sabe?” (Informação verbal,junho/20<strong>06</strong>). Obviamente, que esta informante não entende a prática das rezadeirascomo uma lógica terapêutica diferente da lógica dos médicos. Todo esse discurso erapara enfatizar que as pessoas não deviam estimular a prática das rezadeiras. Noentanto, falou que a sua irmã levava os filhos para uma rezadeira curá-los e que seupai falava da existência das pessoas que tinham o olhar mal:27 LOYOLA, Maria Andréa. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel, 1984. p. 74.(Coleção Corpo e Alma do Brasil).Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 31


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Se alguém estivesse mordido de cobra e uma dessas pessoaschegass<strong>em</strong>.... o doente se sentia mal e, caso não cuidasse ele morreria.Mulheres de resguardo também não podiam ser vistas por este tipode pessoa. Mas, isso era involuntário (Informação verbal, evangélicada Ass<strong>em</strong>bléia de Deus, junho/20<strong>06</strong>).A comunidade de crença da qual comungam essas rezadeiras, ao mesmot<strong>em</strong>po evangélicas e católicas, permite a elas construir uma visão de mundo diferentee complexa, pois consegu<strong>em</strong> reelaborar suas práticas a partir de el<strong>em</strong>entos efragmentos religiosos visivelmente contrários. Esses trânsitos religiosos possibilitama estas rezadeiras atingir uma esfera que as outras não consegu<strong>em</strong>. Talvez elas nãosejam conhecidas por suas rezas, mas, com certeza, elas são diferentes por apresentaressas características específicas.Considerações FinaisEra recorrente, nas diversas leituras que realizei, a ênfase dada à religiãodestas mulheres, sobretudo que elas eram católicas, sua orig<strong>em</strong> rural e os tipos dedoenças que curavam. Alguns autores, <strong>em</strong>bora chegass<strong>em</strong> a abordar o processo deiniciação, não aprofundavam como isso acontecia. Aqueles que abordavam a prática<strong>em</strong> um contexto urbano não mostravam como era a relação dessas agentes comoutras denominações religiosas, por ex<strong>em</strong>plo, o pentecostalismo, a prática e o sabermédico. Acredito que este trabalho traz algumas reflexões pertinentes para pensar asrelações, as mediações e os conflitos existentes entre as rezadeiras, os médicos e osevangélicos. Analiso essas mediações a partir do que pode ser pensado como umfundo “religioso comum” ou uma “comunidade de crenças”. Isso só foi possívelporque dentre as informantes que colaboraram com esta pesquisa, havia duas queeram evangélicas e, por último, uma outra que recebia caboclos da jur<strong>em</strong>a. Ou seja,ao mesmo t<strong>em</strong>po que elas diziam comungar de práticas religiosas aparent<strong>em</strong>enteincompatíveis com a religião católica, continuavam a alimentar suas crenças atravésDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 32


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408de el<strong>em</strong>entos religiosos do catolicismo popular, como por ex<strong>em</strong>plo, a devoção aossantos. O fato dessas mulheres comungar<strong>em</strong> de crenças diferentes permitia que elasse mantivess<strong>em</strong> <strong>em</strong> um espaço fronteiriço. Essa zona de fronteira, meio ambígua,possibilitava a estas mulheres se diferenciar<strong>em</strong> das outras. Por outro lado, essefenômeno lança questionamentos para se analisar uma crescente inserção dasdenominações evangélicas na sociedade, sobretudo nas camadas economicamentedesfavorecidas.Por último gostaria de enfatizar o fundo religioso comum e a comunidade decrenças que perpassam a prática das rezadeiras. Acredito que uma das contribuiçõesdeste artigo foi ter atentado para entender como outras denominações religiosas epráticas terapêuticas, como por ex<strong>em</strong>plo, o pentecostalismo, o catolicismo popular ea religião católica são articuladas pelas rezadeiras para a reelaboração de suaspráticas terapêutico-religiosas. Concluo entendendo que essa comunhão de crenças esaberes possibilitou realizar um cruzamento entre as diversas denominaçõesreligiosas e diversas práticas terapêuticas, tais como o padre, o pastor evangélico, oscrentes, os dentistas e os médicos da cidade de Cruzeta, todos articulando-se, de umaforma ou de outra, com o universo social e o ofício das rezadeiras.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 33


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Interferencias en la “identidad luterana” *Por Graciela Chamorro **Resumen:En este artículo acentúo aspectos sociológicos vinculados con el t<strong>em</strong>a de la identidad,destaco algunos datos que componen el “luteranismo” y mi experiencia luterana y propongosendas teológicas que pueden conducirnos hacia lo que quer<strong>em</strong>os ser.Palabras-clave:identidad, alteridad, ñandéva y oréva, diáspora, Lutero, utopia1. Identidad cultural y alteridad1.1 El “nosotros” como “ñandéva” y “oréva”Recurro a mi lengua materna, el guaraní, para destacar que la identidadimplica alteridad. O sea, que ella no tiene que ver sólo con quien pregunta por suidentidad, sino también con los grupos sociales de quienes uno se quiere distinguir oa quienes uno se quiere asociar. En guaraní existen dos términos para el pronombrede la primera persona del plural: oréva y ñandéva. El primer “nosotros” excluye a lapersona con quien se habla, el segundo la incluye. Ambos apuntan a una dinámicabásica en la construcción de la identidad cultural. Ésta se da si<strong>em</strong>pre en el ámbito del“nosotros”, pudiendo ser más inclusiva o más exclusiva.En la lógica del ñandéva no sólo reconoc<strong>em</strong>os al otro, sino que lo integramos auna base común que nos hace s<strong>em</strong>ejantes y necesarios. La identidad humana es* Este texto surgió de una charla presentada en Ciudad de México, en 2004, bajo auspicio de laIglesia Evangélica Luterana en (Norte)América. Lo he retomado en 2005, en conferenciaspronunciadas en instituciones teológicas de Centroamérica, México y Estados Unidos, promovidaspor la Facultad Teológica Luterana de Chicago.** Teóloga e Pastora Luterana, Professora de História Indígena na UFGD.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 34


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408originalmente compartida, relacional, basada en última instancia, según la Bibliahebrea, en el parentesco (imagen y s<strong>em</strong>ejanza) de los seres humanos con Dios (Gn1.27). Pero ese parentesco humano fundamental no debe autorizar un grupoparticular a imponer su experiencia a otro. Si lo hiciere, la supuesta identificaciónresultante puede llevar a la descaracterización del grupo sometido, a su disolución enel otro. Por librarse de una amenaza de ese género lucharon en el siglo XVI, porej<strong>em</strong>plo, los huguenotes contra reformadores protestantes en Francia y gruposindígenas contra misioneros y conquistadores en el continente americano.Ya por la vía del oréva reconoc<strong>em</strong>os al otro pero lo manten<strong>em</strong>os en su calidadde interlocutor. El énfasis aquí está en afirmar lo propio, en diferenciarse del otro; elriesgo, en endurecerse y caer en el fanatismo, en querer sobreponerse y excluir a losd<strong>em</strong>ás.Tengamos o no esa diferenciación en nuestros idiomas, la dinámica que esospronombres indican no nos es extraña. En el ámbito de las iglesias, la lógica del orévaprevalece en el discurso confesional o denominacional, en las iglesias locales,idiosincrasias de los grupos, etc.; mientras que la del ñandéva orienta elcomportamiento en los proyectos de cooperación, en los ecumenismos, en la visiónde una iglesia católica inclusiva y plural.1.2 Identidad y diásporaLa identidad no es como un repertorio fijo, heredado por una generación deuna otra, para ser ejecutado, conservado y transmitido a la siguiente. Una identidadasí no existe. El “repertorio” es si<strong>em</strong>pre alterado pues es ejecutado en el “ti<strong>em</strong>po”presente y no en el pasado. A lo heredado se le debe sumar lo inventado y descontarlo olvidado. Ad<strong>em</strong>ás, el aporte de las nuevas generaciones está marcado por elDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 35


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408contexto y las concomitancias en que ellas se afirman y en la forma en que ellas serelacionan con el pasado, en el modo en que ejecutan el repertorio heredado.Si enmarcamos lo dicho en el ambiente de la diáspora, es fácil imaginarse laidentidad cultural como un equipaje de viaje. Conociendo las vicisitudes de ladiáspora, sab<strong>em</strong>os lo que es hacer una valija y cargarla. Esa imagen nos ayuda aentender que en el éxodo la carga cultural se reduce a lo transportable y a lo que nospuede ayudar a resistir a la interferencia 1 y a adaptarnos al nuevo contexto.Los luteranos y las luteranas de Europa cargaron sólo una parte de susenseres a las Américas. De quienes <strong>em</strong>igraron a Brasil se suele decir que su equipajesimbólico-religioso contenía la Biblia, el Catecismo Menor y el Himnario. Perotambién cargaron el sueño de poder librarse de la pobreza y de olvidar un pasado sinbienaventuranzas 2 . Hoy cabría preguntarse, qué cargan los salvadoreños y lasmejicanas que <strong>em</strong>igran a los Estados Unidos? Qué cargan las paraguayas que sedesplazan para Argentina o España y qué los brasileños que <strong>em</strong>igran a Portugal?Lo que se observa es que en la diáspora la reducida carga cultural tiende aser valorada de forma distinta a lo que fue en el lugar de origen. Lo que antes pasabadesapercibido, ahora puede ser motivo de intransigencia. Así, hablando español enBrasil o en los Estados Unidos, yo puedo marcar mi origen hispánico. Ya enParaguay probabl<strong>em</strong>ente insistiría en hablar guaraní para afirmarme en medio del1 Cf. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia, construção da pessoa e resistência cultural. SãoPaulo: Brasiliense, 1986. p. 155; CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito,história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 101, 116; WIEVIORKA, Michel. KulturelleDifferenzen und kollektive Identitäten. Hamburg: Hamburger Edition, 2003.2 Ellen Wortmann ha d<strong>em</strong>onstrado que el silencio es constitutivo en el discurso de grupos teutobrasileñosdel Rio Grande do Sul. La esperanza en la tierra prodigiosa fijó la m<strong>em</strong>oria de esos gruposen Brasil. Siendo Al<strong>em</strong>ania el escenario de penosas experiencias y el propio viaje de migraciónlleno de peripecias prefirieron olvidarlos. Así, al contrario de lo afirmado por genealogistas ehistoriadores, el germanismo no hace parte de la identidad de esos grupos. Sólo las familias quehan progresado económicamente y que han migrado del campo a la ciudad se ocupan en construirel eslabón perdido con el pasado europeo (WOORTMANN, Ellen Fensterseifen. L<strong>em</strong>branças eesquecimentos: m<strong>em</strong>órias de teuto-brasileiros. In: LEIBING, A. & BENNINGHOFF, S. Devorando ot<strong>em</strong>po: Brasil, o país s<strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória. São Paulo: Siciliano. p. 205-236).Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 36


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408prejuicio de hispanohablantes contra la parte indígena de su cultura. Del mismomodo, ex-esclavos que en Brasil habían insistido en su ancestralidad africana - lo queexpresaban en su religión y nombres tradicionales - en contexto africano pasaron aenfatizar sus apellidos portugueses y su fe católica.La construcción de la identidad obedece a una lógica de la cual no si<strong>em</strong>preestamos concientes. Entre los factores que la determinan en la diáspora están lo quenosotros y nosotras representamos para el extranjero y las oportunidades ydesventajas que el extranjero nos aporta, la aceptación o el rechazo queexperimentamos de parte de la sociedad donde vivimos, la mayor o menor aperturao intolerancia que ten<strong>em</strong>os frente a las otras personas y la forma en que usamosnuestra cuota de poder delante de ellas o experimentamos el poder de parte de ellas.1.3 Identidad luterana entre “oréva” y “ñandéva”Si tomo como ej<strong>em</strong>plo del luteranismo de diáspora a la Iglesia Evangélica deConfesión Luterana en el Brasil, que es la que más tiene que ver con mi historiapersonal, diría que hasta hace poco, ella se afirmaba en el ámbito del ñandéva,reconociendo sobre todo a la iglesia católica como su otro próximo 3 , y actuando conella en los palcos del ecumenismo. Con las otras iglesias protestantes la interacciónera menor. Ellas eran el otro distante. Para ello ciertamente también influyó elantiecumenismo de esas iglesias. En especial frente a las oriundas de misión, laiglesia evangélica luterana enfatizaba su oréva 4 .3 Parte de los mi<strong>em</strong>bros de la iglesia católica en el sur de Brasil y de la iglesia luterana teníanentonces un proyecto de vida más o menos común. Ambas iglesias veían su continuidad aseguradaentre los descendientes de imigrantes.4 Es curioso observar que esa actitud parece marcar al luteranismo. Ya en la Dieta de Augsburgoconvocada por Carlos V, en enero de 1530, Melanchton, liderando el ala protestante, enfrentó a losdefensores de la Curia Romana acentuando las diferencias entre la fe en la perspectiva de Lutero ylos otros protestantes (zwinglianos, anabautistas, etc.) y afirmando las concordancias de la posiciónde Lutero con la de los católicos (DREHER, Martin. A crise e a renovação da Igreja no período daDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 37


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Hasta unas décadas atrás, ella parecía sentirse poco a gusto con personasprocedentes de otros círculos culturales. Lo experimenté en el coloquio que trató d<strong>em</strong>i ingreso en la iglesia luterana. Yo había sido mi<strong>em</strong>bro de la iglesia bautista ydocente de teología en un s<strong>em</strong>inario de esa denominación. Pero antes había sidocatólica. En eso se fijó uno de mis interlocutores y me inquirió más de una vez porqué no me reintegraba a la iglesia católica, pues la luterana supuestamente sería muyextraña para mí. La observación me dejó perpleja, pues yo me consideraba una “afín”de Lutero en el parentesco teológico y no veía en la iglesia católica una alternativa.Pero mi interlocutor se orientaba quizás por otro no menos importante componenteen la construcción de la identidad: el vínculo social, que, en mi caso, de hecho noexistía con las comunidades luteranas. Lograr establecerlo en un habiente dominadopor (descendientes de) “al<strong>em</strong>anes”, supongo, era para mi entrevistador una espinosatarea para una persona como yo. Implicaba trascender las <strong>em</strong>palizadas de nuestrosoréva, relativizar nuestras alteridades, y hacernos “afín”. Él sabía cuán inexperienteera su iglesia en ese ejercicio y presentía probabl<strong>em</strong>ente cierta inocencia de mi parte.Pero en los últimos años, también dentro de la iglesia de confesión luteranaen Brasil, se ha vuelto éticamente insostenible ignorar la pluralidad. Entre lasalteridades exteriores a “nosotros” están personas extranjeras, agnósticas, mi<strong>em</strong>brosde otras iglesias y religiones. Entre nuestros “otros” internos figuran niños y niñas,jóvenes, mujeres, pobres, indígenas y mestizos convertidos al luteranismo, laicos ylaicas, minorías sexuales. Ellos y ellas se hacen visibles como “sujetos de reflexión”,lo que sin lugar a dudas si<strong>em</strong>pre fueron pero sin ser reconocidos. Esas personascuestionan sobre todo lo establecido en las “identidades” que les fueron atribuídas yen algunos casos impuestas, a la vez de aportar creativas formas de afirmación.Reforma. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p. 37). La Confesión de Augsburgo enfatizó la catolicidad dela iglesia y la contribuición de la reforma para tal. De modo que urgía distinguir a los reformadores“luteranos” de aquéllos que entendían la reforma de forma más radical y aspiraban cambios másradicales en la iglesia y en la sociedad. En la consulta de México la posición ausgsburgiana tambiénse pudo percibir.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 38


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Hay que también reconocerse que en nuestro continente las iglesiasevangélicas aunque minoría se están tornando un sector significativo de la sociedad.En el 2000 han alcanzado el 15% de la población, siendo el 2/3 del mismopentecostal. Las iglesias pentecostales afectan la vida de muchas comunidades y sehan tornado, si no “interlocutoras”, por lo menos incómodas para las iglesiasllamadas históricas, al desafiarlas con una espiritualidad y un ecumenismo distintosy al aproximarlas a aspectos del catolicismo popular y a las religiones indígenas yafricanas.En esta coyuntura marcada por la conciencia de la pluralidad y por laimposición de un modelo cultural homogenizante, las iglesias oriundas de ladiáspora parecen sentirse sobr<strong>em</strong>anera vulnerables. Como otras, ellas perciben queya no se puede renegociar la “identidad” –ni con las nuevas generaciones ni con losnuevos mi<strong>em</strong>bros– sólo en base a “lo que si<strong>em</strong>pre fuimos”. Hay que hacerlo tambiénen base a lo que somos y a lo que quer<strong>em</strong>os ser. En esa línea prosigo mi reflexió<strong>n.2</strong>. Nuestro “legado”De un lado están la “reforma”, los escritos confesionales y otros documentosde las iglesias, la tradición de las comunidades. De otro están las trayectorias denuestros pueblos, nuestras historias de vida y nuestros sueños. Echamos raíces enambos suelos. Y no se trata de reprocharnos si nuestras raíces han ido más hondo enuno, pues, como lo ha dicho Humberto Ramos, pastor luterano aymara de Bolivia -pr<strong>em</strong>aturamente fallecido -, ya no ten<strong>em</strong>os que dejar de ser luterano o luterana paraser indígena ni dejar de ser indígena para ser luterano o luterana.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 39


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 64082.1 La identidad latinoamericana y caribeñaEl la novela Del amor y otros d<strong>em</strong>onios Gabriel García Márquez nos presenta aCayetano Delaura (sacerdote español, bibliotecario del Obispo en Cartagena deIndias, Colombia) y a Abrenuncio de Sa Pereira Cao (médico judío-portugués<strong>em</strong>igrado de España al Caribe por causa de la persecución en la península ibérica).Durante una charla sobre Voltaire, Delaura se incorpora al ser interpelado de“español” y dice: “A mi edad, y con tantas sangres cruzadas, ya no sé a ciencia ciertade dónde soy ... ni quién soy”. “Nadie lo sabe por estos reinos”, replicó Abrenuncio yconcluyó: “Creo que necesitarán siglos para saberlo” 5 . Y desde entonces ya pasarondos siglos.Como Delaura, sab<strong>em</strong>os que ya no pod<strong>em</strong>os asegurar nuestra identidadrefiriendo nuestros abuelos y nuestras abuelas de Europa. Con “sangres cruzadas ono” otros pueblos – indígenas, africanos, asiáticos – hicieron posible lo que somos. Ennosotros y en nosotras están gravadas sus huellas. Ten<strong>em</strong>os una constitución plural.Esa condición nos traspasa. Admitirla nos ayuda a aproximarnos y a apropiarnos deforma activa y crítica de nuestras tradiciones, de sus logros y <strong>em</strong>barazos, puesmiramos hacia el pasado con otros ojos. Ya no buscamos en él lo original queten<strong>em</strong>os que perpetuar. Nuestra tradición no es monolítica y sin fisuras y nuestrovínculo con ella no es marcado sólo por la fidelidad, sino también por la crítica y laruptura, por lazos afectivos y por esperanzas. Unas huellas son más hondas y otrasmás superficiales, en parte porque algunos de nuestros ancestros o vecinos hanpisado más fuerte que otros. Es el t<strong>em</strong>a del poder y de la identidad.Nuestra identidad no existe como algo anterior y exterior a nosotros ynosotras. Pero donde y cuando situaciones concretas lo exijan ella es construida.Nuestra tarea es pues indagar bajo qué condiciones, en qué forma y con qué espíritula evocamos.5 MÁRQUEZ, Gabriel García. Del amor y otros d<strong>em</strong>onios. México, 2003. p. 155.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 40


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Me arriesgaría a decir que nos marca el hecho de haber sido o no mi<strong>em</strong>brosde la iglesia católica o de otras iglesias protestantes, el hecho de haberse dado nuestrasocialización en el seno de una familia descendiente de inmigrantes al<strong>em</strong>anes o deuna comunidad indígena, el de vivir en nuestros lugares de origen, marcados por unmodo de ser que indigenizó de cierta forma lo latino, o en ambientes que nosconfrontan diariamente con la mentalidad y las formas de pensar y actuaranglosajónicas.2.2 La utopía luteranaLutero afirmó más de una vez que su intuición fundante fue (re)descubrir lajustificación por la gracia 6 . Arriésgome a decir que si esa comprensión tan sencilla ypersonal tuvo el impacto de una revolución principal, como lo consideraría mástarde Hegel, fue porque Lutero la hizo piedra angular de una utopía, que a grandesrasgos se deja resumir con o sigue.1. La teología de la salvación de Lutero relativizó la autoridad papal yclerical, transfirió responsabilidades y privilegios de la jerarquía eclesiástica a lasautoridades seglares y al dominio individual. Para él, tanto el poder de los príncipescomo el de los estamentos a ellos sometidos se fundamentaban en Dios, quien hicierasacerdote a todos los creyentes. Con esa doctrina llevó a las últimas consecuencias sucrítica al papado y preanunció aspiraciones de sociedades igualitarias 7 . El pueblodebía tener acceso a la educación, ser librado de la usura y, a partir de su fe, ser unaalternativa al poder jerárquico.6 LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre:Concórdia, 1993, v. 4. p. 15, 215.7 LUTERO, Martinho. À nobreza Cristã da Nação Al<strong>em</strong>ã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão.Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1989, v. 2. p. 278s.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 41


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 64082. Considerando la ignorancia una artimaña de la jerarquía religiosa, Luterodesafió a los príncipes a suplantarla implantando escuelas públicas cristianas, queenfatizaran el estudio de la Biblia, para que el y la creyente crecieran en el evangelio.Esas escuelas debían instruir a la juventud a ser juiciosa, honesta y bien educada,capaz de preservar y usar correctamente riquezas y todo tipo de bienes. Lutero setornó precursor de épocas posteriores al incluir a niñas en su proyecto educacional,vincular la escuela con el trabajo, crear un sist<strong>em</strong>a de servicios religiosos y lecturasbíblicas para promover la formación cristiana de la gente común y hacer que losacadémicos asumiesen su responsabilidad. Con la educación él quería reformar laiglesia y la sociedad 8 .3. Al combatir las indulgencias, Lutero desbarató una actividad económicarentable para la iglesia romana, cuyos monasterios y conventos eran destacadasentidades usureras. Él reconocía que el “trueque” ya no era suficiente para lamodalidad comercial de su época, pero también que la necesidad del dinero nojustificaba la usura 9 . Responsabiliza a la iglesia romana por la inversión de valores aque se llegó, pues muchos entendían la usura como un “servicio a Dios”; al final laiglesia y el clero vivían de los intereses que les rendía esa actividad. Lutero rechazóese pensamiento y criticó su carácter antievangélico.Para él, el servir a Dios era cumplir sus mandamientos. No robar nada denadie, no engañar a nadie, sino acudir al necesitado. No se puede burlar este genuinoservicio a Dios para después construir iglesias, donar altares, hacer rezar misas.Obrando así pisoteábase el servicio a Dios con el servicio de Dios. A los quepretendían servir a Dios practicando la usura, Lutero aplicó las palabras proféticas:8 LUTERO, Martinho. Educação. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia,1995, v. 5. p. 299; LUTERO, Martinho. Aos Conselhos de Todas as Cidades. Obras Selecionadas. SãoLeopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995, v. 5. p. 309-10s; LUTERO, Martinho. Umaprédica para que se mand<strong>em</strong> os filhos à escola. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; PortoAlegre: Concórdia, 1995, v. 5. p. 358-62.9 Lutero no es el primero en su crítica al sist<strong>em</strong>a. Él se adhiere a la opinión pública que protestabacontra el no cumplimiento de leyes monopolistas ya promulgadas.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 42


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408¡Dios rechaza el sacrificio de lo que es robado! Hay que dar limosna de lo que a unole pertenece. Su crítica se extendió a todas las prácticas s<strong>em</strong>ejantes a la usura, comotasas e impuestos exagerados.4. El amor al prójimo y la necesidad del prójimo fueron expresiones queayudaron a Lutero a discernir la práctica del préstamo como servicio a Dios. Para él,hay una vocación 10 fundamental común a todos los seres humanos y en la cual sebasan todas las actividades humanas, sean r<strong>em</strong>uneradas o no. La persona esvocacionada no sólo para ser agricultor, artesano o gobernante, sino también para sermadre, padre, hijo o hija, etc. El objetivo de la vocación es servir al prójimo ycooperar con Dios en su vocación creadora. De modo que cuando una personadesarrolla una actividad que hace parte de su vocación, ella participa de la actividadsostenedora de Dios 11 .Pero esa utopía conoció el descrétido cuando Lutero, frente a otros actoressociales que deseaban ver sus banderas de lucha enarboladas por él, objetó que ni élni el Evangelio podían responder a esas reivindicaciones. Para esas cuestionesestaban supuestamente el <strong>em</strong>perador, los príncipes y d<strong>em</strong>ás autoridades, que noextraían su sabiduría del evangelio, sino de la razón, la costumbre y la equidad 12 .Enmarañado en la complejidad de la situación, Lutero se contradice y es acusado poruno de los reformadores más radicales, Thomas Müntzer, de ser conivente con lainjusticia de los príncipes para hacerse poderoso él mismo y actuar contra losdesheredados. El conflicto des<strong>em</strong>bocó, como es sabido, en la Guerra de losCampesinos.10 Para traducir la idea de „llamado“ contenida en el término latino vocatio, Lutero acuñó el términoBeruf (oficio, trabajo), en cuya raíz está el verbo rufen (llamar).11 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre:Concórdia, 1995, v. 5. p. 375s, 425s e LUTERO, Martinho. Aos Pastores para que pregu<strong>em</strong> contra ausura. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995, v. 5. p. 479;HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 1981. p. 199.12 WA XVII: 321. Ap. Leonardo Boff. E a igreja se fez povo: eclesiogênese, a igreja que nasce da fé dopovo. Petrópolis, Vozes, 1986. p. 174.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 43


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Con este pequeño excurso quise marcar lo complejo que fue elacontecimiento histórico “reforma”, que en él no hay sólo una utopía a perseguir oque nos hace sentir parte de esa tradición, sino también lo que nos aleja de ella. Refería propósito el episodio que llevó Lutero a perder la fe en lo s y entre los campesinosy las siervas de la gleba organizados en comunidades y a aliarse definitivamente conlos príncipes, humanistas, artistas y burgueses urbanos <strong>13</strong> , porque para mí el desafíoque surge de ese fracaso es que en nuestro continent e, en nuestros lugares, hoy ymañana, la reforma puede ser diferente. No pod<strong>em</strong>os ni quer<strong>em</strong>os ser iglesia sin los“siervos y las siervas de la gleba” de hoy.La reforma <strong>em</strong>pieza con una experiencia espiritual de redescubierta delevangelio. Esto dinamiza la fe e impulsa a (re)orientar la vida bajo el signo de lagracia (Gal. 3.25-29), que no excluye la ley –la tradición, el legado– sino que lareubica en su lugar y función originales: servir al ser humano, apoyarlo en sucaminar; no paralizar, sustituir o excluir.3. Hacia lo que quer<strong>em</strong>os serDe “nuestra identidad” pod<strong>em</strong>os hablar como lo que quer<strong>em</strong>os ser, pues loque somos aún no se ha manifestado plenamente. En ese espíritu siguen algunasideas que considero pertinentes, cuando tengo en vista el “luteranismo” real y lautopía bíblica que está en la base de la reforma de Lutero.<strong>13</strong> Esa tentación se repite de forma traumática durante la 2ª. guerra mundial, cuando iglesiasluteranas, coniventes con el poder jerárquico de muerte, no escucharon las voces proféticas que lasllamaban a confesar su fe.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 44


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 64083.1 Por un discipulado de igualesA pesar del énfasis de Lutero sobre el sacerdocio universal, la iglesia luteranacontinuó el ministerio eclesiástico basado en el clero. En el contexto germánico esofue fortalecido por el encuadramiento de los ministros al funcionalismo público. Elsacerdocio universal se mantuvo vivo en las iglesias luteranas de la diáspora, en lascomunidades luteranas de indígenas, en otras iglesias protestantes, en laspentecostales y en las comunidades eclesiales de base. Ya en el luteranismo al<strong>em</strong>ánese sacerdocio tuvo una función decorativa 14 y los movimientos que intentaronreanimarlo fueron reprimidos por la teología y la jerarquía eclesiásticas. Tal el casode Nicolaus von Zinzendorf (1700-1760) y de líderes laicos de los movimientos derevitalización y misión en Al<strong>em</strong>ania.Pero según Lutero la justificación por gracia establece una comunión deiguales que sólo reconoce la jerarquía de Cristo (1Co. 12, Ef. 5.23b). El sacerdociouniversal es la base de la comunidad cristiana 15 ; el sacerdocio especial ordenado y la“dirección” de la iglesia son instancias motivadoras del protagonismo religioso ysocial del pueblo creyente. A ellas cabe animar a los y las creyentes a asumir ydesarrollar sus carismas. Las instancias directivas no pueden tornarse rehenes deinstituciones. Si ellas existen para proclamar el evangelio y continuar la reforma, nopueden dejarse paralizar por la tradición; especialmente cuando lo nuevo es mejor ymás inclusivo que establecido.El sacerdocio universal nos r<strong>em</strong>ite al discipulado de iguales entre hombres ymujeres, también en las instancias directivas. Por ej<strong>em</strong>plo, si más mujeres estudiasenteología y accediesen al sacerdocio ordenado, tendríamos la posibilidad que másmujeres y más hombres buscarían corregir la imagen archimasculina de Dios con que14 WEINGÄRTNER, Martin. A confesionalidade luterana e a questão carismática. Estudos Teológicos,41 (3): p. 74, 2001.15 La reforma consideró la división pagana de sacerdote y laico, heredada y asimilada del ImperioRomano, desprovista de fundamento bíblico (Loc. cit.).Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 45


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408la tradición nos sobrecarga 16 . Ésta desplaza el protagonismo del pueblo, de lacomunidad, y fortalece el poder jerárquico.Frente a las exclusiones que derivan de lo económico, el discipulado deiguales nos desafía a no enredarnos en la clase media 17 ni dejar de creer en la fuerzatransformadora presente en la necesidad y en el sufrimiento de la gente. No amamosnuestro prójimo cuando le asistimos en su necesidad pero sin esperar que se generenverdaderos cambios en su vida personal y social, como ser <strong>em</strong>poderado por su fe avivir en comunidad y a desarrollar en ella sus dones.El discipulado de iguales necesita inspirarse en una imagen más inclusiva deDios. Requiere una teología interesada en la fe real. La teología académicaprotestante necesita salir de las trampas del pensamiento jerárquico en que ha caído.Ella se ha desarrollado de forma tan independiente de las circunstancias concretas dela gente que es como si para ella el lenguaje sobre la fe tuviera prioridad sobre la f<strong>em</strong>isma y cuestiones abstractas sobre preocupaciones vitales cotidianas. La d<strong>em</strong>andaque se le hace aquí es que se torne accesible e inclusiva. No sólo profesionales de lateología sino las comunidades tendrían que poder entenderla, ubicarse en ella y serdespertada para una vida atenta con la realidad.3.2 Igualmente diferentes“El Evangelio no nos va a liberar desde afuera, sino desde adentro y en el‘adentro’ es donde precisamente están las raíces de nuestras culturas” afirma el16 ZAHRNT, Heinz. Gott ist tot. Marx ist tot und ich selbst befinde mich auch nicht wohl. Auf derSuche nach ein<strong>em</strong> verlässlichen Lebensgrund. In: KAISER, Thomas und Andrea. Kirchen vonmorgen denken. Gütersloh, 2000. p. 157-158.17 Presbiterios, grupos de trabajo y comisiones de las iglesias no deberían reunir, como en Al<strong>em</strong>ania,sólo a mi<strong>em</strong>bros más instruídos y mejor r<strong>em</strong>unerados, sino también a los menos instruídosescolarmente y con menos recursos económicos.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 46


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408sacerdote kuna panameño Aiban Wagua 18 . Eso no significa que “nuestras culturas”sean libres de ambivalencias, sino que es en ellas y no en lo metafísico que Dios seaproxima a nosotros. Por eso el evangelio y el espíritu de la reforma necesitaninculturarse si quieren ser buenos y nuevos en nuestro continente.El sacerdocio es universal si en él hay lugar para la diversidad cultural.Sab<strong>em</strong>os que hoy día algunos grupos están más expuestos que otros a la presión“global” de abdicar de sus “especificidades” y adherirse a un luteranismo genérico.Pero de cierta forma todos somos afectados por el juego entre diversidad e identidad,cuya lógica es más o menos la siguiente. En un determinado contexto y momento,cuando y donde ser diferente nos inferioriza, quer<strong>em</strong>os ser iguales a los d<strong>em</strong>ás,enfatizar lo que ten<strong>em</strong>os en común (ñandéva). En otro, cuando la igualdad nosdescaracteriza, entonces nos afirmamos por nuestras diferencias, acentuamos lo quenos distingue de los otros (oréva).En ese juego entre oréva y ñandéva, tendríamos que releer en nuestrascomunidades los textos (confesionales y bíblicos) y las experiencias que fundaron lareforma. El oréva nos conscientiza de las otras identidades y nos recuerda que nuestra“exclusividad” sólo tiene sentido si es un principio válido para todos los grupos ypueblos, la identidad de un grupo no debe ser obstáculo para que otro se afirme.Ñandéva apunta a la universalidad y enfatiza que la “inclusividad” sólo tiene valor sino despoja a los otros interlocutores de la profundidad que los hace diferentes.3.3 La sola gratia no basta si no r<strong>em</strong>ite a la mística y a la ortopraxisEl protestantismo ha descuidado la dimensión mística y profética de la fe alenfatizar unilateralmente la iniciativa de Dios en favor del ser humano. La versión18 A ese respecto: La nueva evangelización, la globalización y los pueblos indígenas. 2ª. Parte, AbiaYala, 4 (1998) p. 7-11. Disponível <strong>em</strong>: Acesso <strong>em</strong>: 23/03/2004.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 47


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408corrompida de ese raciocinio es la idea de que Dios nos ama incondicionalmenteimportando poco nuestra actitud. Lutero y Bonhöffer, entre otros, llaman a eso graciabarata, iglesia falsa. Esa gracia no basta, le falta reciprocidad, arriesgarse en laexperiencia con Dios.La actividad profética iniciaba cuando hombres y mujeres escuchaban unavoz, veían una luz y respondían a ese llamado. Jesús cont<strong>em</strong>pló a Moisés y a Elías. ALutero casi lo consumió un rayo, su experiencia con Dios funda la reforma. Al indioJuan Diego de México se le aparece Tonantzin. Esos episodios marcan momentosfundantes con Dios. Pero en nuestras iglesias escasean inspiración y osadía paracorresponder, para hablar con Dios, para “ver la palabra”, como se dice en lascomunidades de guaraníes. Gente que quiere aprender a orar puede frustrarse encomunidades luteranas, por no encontrar en ellas nadie que les ayude, que cultiveese lenguaje de la fe.La reciprocidad hacia Dios acarrea una cierta distancia con relación almundo, en el sentido de no conformarse a él (Rm 12.2a), de resistir a la paxoccidentalis y a su sist<strong>em</strong>a que desprecia pobres, criaturas, pueblos y gruposminoritarios. Pero el “transformaos por medio de la renovación de vuestroentendimiento para que comprobéis cuál sea la buena voluntad de Dios, agradable yperfecta” (Rm 12.2b) nos devuelve al mundo con poder para realizar cambios, paraluchar por la vida.Si dirijimos nuestra mirada hacia las personas que están al pie de la cruz,ver<strong>em</strong>os en sus rostros indignación y miedo, mas también coraje para decir no a laviolencia y la injusticia, no a los poderosos y a su instrumento de tortura. Así, esasdiscípulas y esos discípulos de Jesús bajaron el cuerpo del crucificado de la cruz ycuidaron para que nadie más lo maltratase. Ese gesto nos transforma y transforma lacruz. Muestra que del abandono y de la soledad resucitamos para la lucha cuando ungrupo nos reconoce, nos da dignidad y nos dice “¡Dios está cerca!” Eso afirma loDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 48


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408afectivo como una de las piedras sobre la cual se funda la comunidad. La identidadreligiosa nace de la pertenencia.En suma:Sobre lo que llamamos identidad(es) luterana(s) no pesa sólo la “teologíaluterana”, sino también las tradiciones e instituciones que se establecieron como“luteranas”. Ad<strong>em</strong>ás una identidad religiosa no se define sólo teológicamente, sinoque también implica en el desarrollo de un sentimiento de pertenencia. El desafío decada generación en nuestro continente es integrar ese “hacer parte” de las culturas dedonde procede y donde vive a su “hacer parte” de una familia –cristiana, reformada,luterana– más amplia y al mismo ti<strong>em</strong>po más específica que “lo latinoamericano,caribeño, norteamericano, europeo, africano, etc”.En ese sentido, dimensioné “el nosotros” en oréva, exclusivo, y ñandéva,inclusivo, para destacar que la identidad implica en asociarse a unos y diferenciarsede otros. Como asevera el sociólogo francés Michel Wieviorka la construcción de laidentidad en la diáspora se da afirmando el vínculo que uno tiene con su cultura deorigen y al mismo ti<strong>em</strong>po y reivindicando reconocimiento e igualdad departicipación en la sociedad multicultural.Del legado teológico enarbolado por Lutero destaqué el sacerdocio universal,la iglesia como comunidad de creyentes, la voz profética dirigida a ella y a lasociedad en favor del prójimo. En esos actos fundacionales Lutero rescató para suépoca aspectos olvidados de la fe cristiana: la gracia, la palabra y la fe. Entiendo,frente a las angustias de nuestro ti<strong>em</strong>po, que ese legado luterano puede inspiraractitudes inclusivas alternativas a las propagadas por el poder jerárquico autoritarioy elitista. Pueden inspirar personalidades que viven de la gracia de Dios y sedesarrollan en ella al hacer del mundo –con sus políticas pro apartheid y su economíaDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 49


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408de puertas abiertas para mercaderías y enmurallada para seres humanos– el lugardonde preguntan por lo que son y quieren ser. La gracia no basta, la palabra y lossacramentos no bastan, como piedras angulares de la identidad, si llevan a laindiferencia. Si no generan sed de Dios y compromiso con el prójimo.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 50


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408História como Contextualidade e Apatia Teológica *Por Kathlen Luana de Oliveira **Resumo:A partir de questionamentos historiográficos, este ensaio procura refletir a epist<strong>em</strong>ologiateológica cristã através dos t<strong>em</strong>pos. Assim, evidencia-se a distancia que o pensamento cristãooficial foi estabelecendo frente à realidade da vivência cristã. Tal panorama histórico dodesenvolvimento teológico visa perguntar pelos desafios e pela relevância teológica atual,apontando, que apesar das determinações da história humana, a teologia não pode sucumbira essas, mas t<strong>em</strong> o compromisso com um projeto de esperança.Palavras-chave:método historiográfico – epist<strong>em</strong>ologia teológica – contextualidade - esperançaA teologia não t<strong>em</strong> um fim <strong>em</strong> si mesma, ou como Enrique Dussel enfatiza<strong>em</strong> seus escritos: teologia é um ato segundo, reflexão posterior à experiência de fé 1 .Partindo do pressuposto de que a teologia é um ato de reflexão posterior, pode-seafirmar a existência de acontecimentos fundantes e marcantes na construção históricada teologia cristã, pois a reflexão s<strong>em</strong>pre se dará mediante situações específicas det<strong>em</strong>pos específicos. Logo, o pensamento do povo cristão, através dos t<strong>em</strong>pos, possuiuma relação direta com a realidade vivida e uma relação direta com as mudanças nahistória. Isso significa que a história das vivências e pensamentos precisa seranalisada de forma contínua, ou seja, elas não pod<strong>em</strong> ser vistas apenas <strong>em</strong>compreensões fechadas ou conceitos prontos e definitivos. E, antes de qualquer* Este artigo é parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso no Bacharelado <strong>em</strong> Teologia.** Teóloga brasileira, mestranda no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG), <strong>em</strong> São Leopoldo,RS, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Suapesquisa está direcionada à argumentação teológica dos Direitos Humanos na sociedade moderna.1 DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 115-125; 240-253. Assim comotambém afirmam outros teólogos da libertação: não há teologia s<strong>em</strong> fé; s<strong>em</strong> fé não há práxis cristã.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 51


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408tentativa de compreensão, é necessário suspeitar dos instrumentos de análise eassumir que não existe objetividade absoluta.Como indica Bernhard Lohse, o pensamento histórico se desenvolveu apartir do século XIX, o que representou a não aceitação de tradições s<strong>em</strong> uma análisecrítica sobre elas. E desencadeado pelas revoluções racionalistas do Iluminismo, opensamento histórico denota uma crítica à própria história. “S<strong>em</strong> a secularização doensino e s<strong>em</strong> uma posição crítica frente à doutrina tradicional da igreja dificilmentese encararia criticamente a história” 2 . Tal criticidade provocou rupturasprincipalmente referente à teologia e ao mundo “profano”, científico. Os textosbíblicos e o próprio Jesus Cristo passaram por muitas interpretações devido àsdúvidas surgidas pelo garimpo da veracidade dos fatos. Pode-se afirmar que “[...] oefeito do pensamento histórico sobre a teologia e a igreja foi bastante destrutivo ecorrosivo” 3 . Nesse sentido, a história impulsionou a teologia a mudançasmetodológicas.A opção pela história como auxílio ao pensamento teológico pode serexpressa sob dois critérios. Primeiro - a história serve como instrumento crítico dosmétodos teológicos que pend<strong>em</strong> a um universalismo <strong>em</strong> detrimento de suacontextualidade. Obviamente que não se pode cair <strong>em</strong> um historicismo, reduzindo ateologia à sua trajetória no t<strong>em</strong>po, mas é na história, definida <strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po e umlugar, que surg<strong>em</strong> perguntas teológicas e é a partir dessas perguntas que a teologiaprocura articular a fé cristã. Segundo - a história é necessária como um termômetropara a teologia frente ao mundo ordinário no qual ela está inserida, <strong>em</strong> outraspalavras, a história indica para a teologia que seu desafio não está somente com “[...]a formulação de certas afirmações de fé ocorridas no passado, mas também com a2 LOHSE, Bernhard. A fé cristã através dos t<strong>em</strong>pos. São Leopoldo: Sinodal, 1972. p. 239.3 LOHSE, 1972, p. 240.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 52


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408sua nova apropriação e interpretação [...]” 4 . Eis por que a teologia não t<strong>em</strong> um fim<strong>em</strong> si mesma: pelo fato de refletir um pensamento histórico e vivências históricas 5 .A intenção de se abordar a história parte da análise moltmaniana de quesomente existe uma história humana de sofrimento. No entanto, a teologia não podeser entendida fora ou acima da história humana. A história do ser humano – comohistória de sofrimento e esperança – é recuperada na “história de Deus”, isto é, o“acontecimento de Deus” na cruz. Diferent<strong>em</strong>ente de Hegel que dizia “Deus nahistória”, nesta pesquisa buscar-se-á evidenciar a “história <strong>em</strong> Deus”, que a históriaestá <strong>em</strong> Deus 6 .1. Probl<strong>em</strong>atizando a compreensão de históriaDurante muito t<strong>em</strong>po, a compreensão de história foi definida como o estudode fatos do passado, <strong>em</strong> eventos decorrentes de causas e conseqüências, os quaisestão situados <strong>em</strong> uma linha t<strong>em</strong>poral. Fatos que são relatados com a finalidade de4 LOHSE, 1972, p. 239.5 Isso se expressa nos critérios de catolicidade e de contextualidade. Segundo Rudolf E. von Sinner, acontextualidade “é o aspecto da relevância da fé e da teologia” e a catolicidade “é o aspecto daidentidade da fé e da teologia”. Em sua visão, “uma teologia que se assume como contextualcumpriria os seguintes critérios: 1. Ela reconheceria a contextualidade de cada teologia e manteriauma distância crítica frente à qualquer teologia dominante que se impunha como absoluta; 2. elafaria uma análise metodologicamente refletida do contexto nos seus aspectos culturais, religiosos,sociais, econômicos e políticos; 3. ela elaboraria uma teologia formada a partir de uma interaçãoentre texto – as Escrituras e sua tradição – e contexto; os dois sendo, a princípio, parceiros iguais; 4.ela seria teologia destinada à uma práxis num dado contexto; 5. ela entenderia que uma teologiacontextual contribui, ao mesmo t<strong>em</strong>po, para a tradição cristã no horizonte ecumênico”. Já acatolicidade, na visão de Rudolf E. von Sinner, “seria marcada pelos seguintes aspectos: 1. Ela éuma qualidade da Igreja ser, não a soma de todas as manifestações eclesiais; 2. ela pode serpensada unicamente na contextualidade, ela não existe por si só; 3. ela se encontra, de modoespecial, na igreja local institucionalizada, mas também além da igreja institucional; 4. ela unetodas e todos que crê<strong>em</strong>, pelo menos intencionalmente, no Deus encarnado <strong>em</strong> Jesus Cristo peloEspírito Santo e segu<strong>em</strong>-no; 5. ela t<strong>em</strong> uma função hermenêutica e normativa, ou seja, ajuda acompreender o ser da Igreja (hermenêutica) e diz como deveria ser (normativa). SINNER, RudolfE. von. Critérios de catolicidade e contextualidade. Material Didático, parte integrante do polígrafopara o curso de Teologia Sist<strong>em</strong>ática II, ministrado no primeiro s<strong>em</strong>estre de 20<strong>06</strong>.6 GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 295.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 53


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408inserir os seres humanos <strong>em</strong> uma dinâmica identitária. Em outras palavras,afirmava-se que certos acontecimentos do passado defin<strong>em</strong> o presente, defin<strong>em</strong> aidentidade das pessoas cont<strong>em</strong>porâneas as quais criam laços com seus antepassadose, também, são inseridas <strong>em</strong> uma linha progressiva de evolução da humanidade. Arealidade transformada <strong>em</strong> fatos é contada e recontada, e, com a finalidade de serpreservada.No entanto, Marc Bloch, já <strong>em</strong> 1940, atentava para a questão do passado e dométodo histórico. Para ele, incute <strong>em</strong> erro dizer que “a história é a ciência dopassado” 7 . Mais ainda, é impossível relatar racionalmente fatos que se refer<strong>em</strong> à vidade pessoas que não são cont<strong>em</strong>porâneas daquelas que estudam a história. Bloch t<strong>em</strong>uma compreensão de história não passadista, pois define como objeto da história oser humano, ou melhor, o ser humano no t<strong>em</strong>po. Já que a história é um estudo, o serhumano como objeto desse estudo precisa ser compreendido <strong>em</strong> dimensõesgeográficas, lingüísticas, culturais e antropológicas, o que acarreta <strong>em</strong> uma posturacontra um positivismo histórico. Nesse sentido, Bloch define t<strong>em</strong>po da história como“[...] o próprio plasma <strong>em</strong> que banham os fenômenos, e como que o lugar da suainteligibilidade” 8 . Por outro lado, não se pode imortalizar acontecimentos fixados <strong>em</strong>outros t<strong>em</strong>pos, pois “[...] esse t<strong>em</strong>po [...] é, por natureza, contínuo. É tambémperpétua mudança” 9 . Trocando <strong>em</strong> miúdos, isso significa que o sujeito dopensamento histórico precisa ser honesto e considerar sua posição e sua situação aorecontar a história, pois seu anseio racional pela imparcialidade dos fatos petrifica efragmenta a própria história que intenta contar.O ato de compreender a história, portanto, parte dos pressupostos de qu<strong>em</strong> aconta. E toda ação de recontar a história impulsiona interpretações e projeções quesão feitas sobre os acontecimentos passados. Nesse caso, é necessário reconhecer que7 BLOCH, Marc. Introdução à História. M<strong>em</strong> Martins: Europa América, 1997. p. 86.8 BLOCH, 1997, p. 89.9 BLOCH, 1997, p. 90.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 54


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408“a história do historiador começa por se fazer no ‘sentido contrário’” 10 . A atualidadeé considerada como parâmetro pelo qual se tenta compreender a história, mesmo queo sujeito do pensamento histórico não se dê conta disso. A construção dopensamento histórico acontece com os instrumentos e vivências acessíveis às pessoasda atualidade, e com isso se inicia a investigação histórica. Nessa linha, RudolfBultmann acrescenta que a existência do ser humano hoje é inerente à investigação eà interpretação histórica. Para Bultmann, a relação da hermenêutica com a históriaprecisa estar <strong>em</strong> diálogo, pois este “[...] não v<strong>em</strong> como um passo posterior, talvezcomo uma ‘avaliação’, depois que se tomou conhecimento da história mediante osseus dados objetivos. Antes, o verdadeiro encontro com a história ocorre, deant<strong>em</strong>ão, unicamente no diálogo” 11 . “[...] ao voltar-se para a história, precisa dar-seconta de que ele mesmo constitui uma parte da história e está se voltando, portanto,para um contexto (“contexto de atuação”), <strong>em</strong> que seu próprio ser está entretecido” 12 .Partindo dessa dinâmica, Bloch diferencia o compreender do julgar, s<strong>em</strong>esquecer que a posição na atualidade do historiador implica <strong>em</strong> uma condição deobservar os seres humanos no t<strong>em</strong>po. “Compreender; pois, e não julgar. É o objetivoda análise histórica [...] após os preliminares da observação e da crítica histórica” <strong>13</strong> .Portanto, é um equivoco atribuir um valor à ciência que ignora o lugar do cientista.Nesse caso, “[...] a história, ela própria co-extensiva à vida humana, [...] é umfenômeno, ele próprio histórico, submetido a condições históricas. Legitimidadehistórica, mas também fragilidade histórica” 14 . Torna-se urgente assumir umahonestidade epist<strong>em</strong>ológica: não há neutralidade absoluta, não há umdistanciamento do eu frente aos acontecimentos, pois a objetificação histórica nãoreconhece que o ser humano é um ser histórico e t<strong>em</strong> história.10 BLOCH, 1997, p. 27.11 BULTMANN, Rudolf. Jesus. São Paulo: Teológica, 2005. p. 22.12 BULTMANN, 2005, p. 21.<strong>13</strong> BLOCH, 1997, p. 31.14 BLOCH, 1997, p. 17.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 55


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408O ser humano não se encontra acima da história, de modo a poderabranger a totalidade do mundo, n<strong>em</strong> está inteiramente na história,de modo a não poder ou não dever perguntar pela totalidade e oescopo da história [...]. Ele está, ao mesmo t<strong>em</strong>po na história e acimada história. Ele experimenta a história pelo modus do ser e pelo modusdo ter. 15A história vista como a cristalização de algumas experiências, ações epensamentos dificulta uma compreensão da totalidade da realidade. Partindo desseprocesso de interpretação, a história se transforma <strong>em</strong> conceitos prontos, facilment<strong>em</strong>anipuláveis. A perspectiva dinâmica da história não pode ser reduzida a umhistoricismo, muito menos colocar os instrumentos analíticos da história acima deoutras ciências e de outras tentativas de compreensão. Se julgar é um constante riscopara o pensamento histórico, a interpretação histórica não está isenta de pressupostose influências do agora, as quais jamais deveriam ser subestimados oudesconsiderados. Assim, os acontecimentos, mesmo que inconscient<strong>em</strong>ente, sãojulgados a posteriori. A tentativa de compreensão histórica exige uma observação naqual o sujeito também faz parte do objeto a ser compreendido. “Somos sereshistóricos antes de ser observadores da história, é só porque somos aquilo é que nostornamos isto” 16 .Para Bloch, o ato de compreender a história não é passivo, pois o historiadorescolhe e seleciona o que vai estudar 17 . Isso reflete também que a história éconstituída de m<strong>em</strong>órias seletivas. Geralmente, ao se estabelecer os fatos maisimportantes, se opta <strong>em</strong> relatar os acontecimentos das pessoas que estavam nopoder. Dessa forma, por ex<strong>em</strong>plo, quando se pensa <strong>em</strong> história política, sãol<strong>em</strong>brados grandes governadores, reis, presidentes; quando se pensa <strong>em</strong> história daigreja, são relatadas a história de intelectuais teólogos, ou a de pessoas que exerciamcargos de liderança, ou o período de padres, pastores.15 MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005. p. 339-340.16 MOLTMANN, 2005, p. 318.17 BLOCH, 1997, p. 31.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 56


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Nesse viés, Moltmann afirma que a “[...] história é s<strong>em</strong>pre luta pelo poder epela supr<strong>em</strong>acia sobre outras pessoas e sobre a natureza” 18 . Logo, as relações entre osseres humanos e entre o ser humano e a natureza desenvolveram-se historicamentecom parâmetros de dominação e subordinação. Na luta pelo poder, o primeiro e maisalto degrau de uma longa escada é a distinção entre “o dono” e “a mercadoria”, entreo possuidor e a posse. No sist<strong>em</strong>a feudal e no capitalista, agravaram-se as distânciasentre o ser e o não-ser, entre o ter e o não-ter, entre o saber e o não-saber, entre omandar e o obedecer, entre o explorar e o ser explorado. Dessa forma, as pessoasproprietárias do “poder” financeiro e intelectual (que poderia também ser comprado)são consideradas as protagonistas da história de conquistas e expansão.É possível constatar uma história padrão, que ignora diferenças, na qual ospovos indígenas, africanos, latino-americanos e grupos como escravos, mulheres,idosos, portadores de deficiência são “focos” de resistência ou “impertinência”. Háqu<strong>em</strong> afirme que tais grupos são incapazes de narrar sua história; ou pior, suahistória pertence à história dos heróis conquistadores. Assim, a história está,invariavelmente, ligada a estruturas de valor. No Ocidente, as narrativas de“descoberta” e desenvolvimento apresentam-se de uma forma homogênea euniversal; ou seja, todas as pessoas, <strong>em</strong> uma primeira leitura, parec<strong>em</strong> ter vividouma mesma história.Já Marx, no que denomina de materialismo histórico, afirmava um parâmetrode história. Na ascensão do sist<strong>em</strong>a sócio-econômico do capitalismo, Marx afirmavaque se torna impossível fazer idéias s<strong>em</strong> antes comer, beber, vestir-se. Antes daspreocupações metafísicas, exist<strong>em</strong> as questões concretas de sobrevivência. Partindodessa compreensão marxista, o materialismo histórico distingue o sobreviver doviver 19 .18 MOLTMANN, Jürgen. A vinda de Deus: Escatologia Cristã. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. p. 151.19 MARX, Karl; ENGELS Friedrich. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa Omega, s.d., v. 2. p. 345.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 57


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408[...] O fato palpável, mas despercebido até então, é de que o serhumano precisa <strong>em</strong> primeiro lugar comer, beber, ter um teto e vestirsee, portanto trabalhar antes de poder lutar pelo poder, de fazerpolítica, religião, filosofia, etc. [Com Marx] Esse fato passava aocupar, enfim, o lugar histórico que naturalmente lhe cabia. 20É necessário constatar que não se pode afirmar que um povo ou um grupo depessoas não faça história por não ter “t<strong>em</strong>po” ou força de construí-la. Com certeza, aanálise marxista referia-se a um ambiente com jornadas de trabalho de 18 horas.Porém, mesmo no cansaço, as pessoas mantêm seus valores, estabelec<strong>em</strong> suasrelações e insist<strong>em</strong> criando alternativas de vivência. Um ex<strong>em</strong>plo disso é a resistênciados povos africanos escravizados no Brasil. Mesmo explorados, os negros nãoabandonam suas crenças e seus sonhos e transmit<strong>em</strong> seus valores às futurasgerações.A história se articula a partir de test<strong>em</strong>unhos. Mesmo que a história s<strong>em</strong>previva sob o risco desses test<strong>em</strong>unhos não ser<strong>em</strong> verídicos, ou ainda, de que atransmissão desses test<strong>em</strong>unhos sofra alterações durante o t<strong>em</strong>po, a história nãopode abrir mão dos test<strong>em</strong>unhos, principalmente, dos que permanec<strong>em</strong>documentados. Apesar disso, é necessário atentar para “a imensa massa detest<strong>em</strong>unhos não escritos [...]” 21 . É necessário buscar outras fontes além dasnarrativas escritas, visto que “[...] alguns fenômenos escapam ao historiador, porquenenhum documento os menciona expressamente [...]” 22 . Por isso, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre ahistória abrange a perspectiva de diferentes culturas. Mesmo dentro da própriacultura, pode acontecer da história optar por um grupo, homogeneizando, assim, aexperiência das pessoas naquele t<strong>em</strong>po.O ser humano necessariamente se serve de conceitos de generalização etipificação. Esses são interpretados sob as perspectivas de cada época. E o resultadode tudo traz ao questionamento a concepção de história dos dias atuais, pois esta não20 MARX; ENGELS , s.d., p. 345.21 BLOCH, 1997, p. 28.22 BLOCH, 1997, p. 114.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 58


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408pode prescindir de apresentar uma idéia-mestra que guie a história universal oumundial 23 . Há o risco de que uma posição particular defina o universal, ou de que ouniversal seja apenas desconsideração do particular. Por ex<strong>em</strong>plo, tendenciosamente,é atribuído à narrativa bíblica um sentido completo e absoluto. O test<strong>em</strong>unho bíbliconão é uma totalidade de uma cultura, mas um fragmento de várias culturas, sujeitasaos olhos de qu<strong>em</strong> o escreve; logo, possui determinados valores 24 .A história assume um papel determinante frente aos sist<strong>em</strong>as de valoração.Certos fatos são selecionados e valorizados, festejados. Heróis e heroínas são eleitoscomo símbolos de corag<strong>em</strong> e de qualificação moral. Assim, ao que parece, aautoridade histórica legitima o fazer história atual, o processo no qual as pessoas egrupos se inclu<strong>em</strong> e se identificam. Sendo assim, uma primeira característica quechama a atenção consiste <strong>em</strong> que a história, a priori, possui um unilateralismo, éparcial. Atuais formas de interpretação histórica precisam, primeiro, exercitar umadesconstrução do que é oficial. É isso o que propõe o movimento f<strong>em</strong>inista que,auxiliado com uma hermenêutica f<strong>em</strong>inista da libertação, visa resgatar o corpo, osaber, o poder, enfim, a integridade do ser f<strong>em</strong>inino, cavando nos textos e na vidadaquelas que os lê<strong>em</strong>, a experiência e vivência das mulheres daquela época, a partirde uma desconstrução, da história, e depois com uma reconstrução, procura o resgateda participação das mulheres na história, no rompimento do silêncio nas fontes, apartir de uma hermenêutica da m<strong>em</strong>ória. Após o rompimento do silêncio, há simespaço para uma construção de uma nova história, de uma nova interpretação; hásim espaço para propostas que abarqu<strong>em</strong> novas relações de gênero, novas relaçõeshumanas 25 .23 MOLTMANN, 2005, p. 329.24 OLIVEIRA, Kathlen Luana de. Religião: ritualização de valores: Cultura, sexismo, alteridade numareleitura de Levítico, 2005. f.1 .25 PEREIRA, Nancy Cardoso, Pautas para uma hermenêutica f<strong>em</strong>inista de libertação. <strong>Revista</strong> deInterpretação Latino-Americana, Petrópolis, n. 25, 1996. p. 8-9.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 59


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Em suma, toda perspectiva histórica, não apenas na interpretação teológicaou na história da teologia, precisa estar ciente dos limites epist<strong>em</strong>ológicos implícitosno exercício analítico. A pretensão de imparcialidade, de universalidade eobjetificação não consideram a própria historicidade da posição da crítica histórica. Adinâmica de análise requer a consideração pelas diferenças, pela contextualidade.Dessa forma poderá se evitar um ateísmo metódico ou total veracidade às fonteshistóricas. Nesse caminho, como o pensamento teológico se constrói a partir da suacontextualidade? A história pode indicar aspectos constitutivos do pensamentoteológico atual?2. Ecos da contextualidade na história do pensamento teológicoA relação de teologia e história s<strong>em</strong>pre é passível de questionamentos. Ora opensamento cristão se afirma dentro do mundo e espera pela transformação dahistória, ora reflete desprezo e indiferença frente ao mundo e espera pela aniquilaçãoda história. E mesmo que se evidencie um desprezo histórico, a teologia é fruto deum contexto, ou melhor, devido a esse contexto, a teologia expressa uma tentativa denegação a esse contexto. Apesar de caminhar entre um positivismo e um pessimismo,a epist<strong>em</strong>ologia teológica é construída dentro de seu t<strong>em</strong>po, dentro de umacontextualidade específica 26 .A teologia indica perguntas de pessoas com preocupações distintas frente àscoisas da fé. Como afirma Gustavo Gutiérrez, a teologia não pode ignorar asperguntas e os desafios impostos pela vida. A relevância da teologia reside nainterpretação e na vivência da fé <strong>em</strong> uma época e <strong>em</strong> um lugar específicos. Logo, hána teologia um aspecto que a caracteriza <strong>em</strong> um estado de constante mutação: osconteúdos da fé, conforme o lugar e o t<strong>em</strong>po, receb<strong>em</strong> acentos diferentes. S<strong>em</strong>pre a26 Confira nota 5.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 60


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408teologia é contextual. “A teologia lança s<strong>em</strong>pre as suas raízes na densidade históricada mensag<strong>em</strong> evangélica” 27 .Nesse sentido, a necessidade do labor teológico gravita ao redor do tornarrelevante o seu conteúdo para um cronos e um topos diferentes. Isso não significa quetoda a teologia é tautológica, pois ela não é um mero esforço de repetição de umamensag<strong>em</strong> e de uma m<strong>em</strong>ória. Antes a teologia se torna relevante à medida que,através da fé, o cristão hoje crê nas ações de Deus pela história, e mais, implica <strong>em</strong>esperança, pois tais ações são promessas de Deus que, proleticamente, foramrealizadas. Então, a teologia precisa da história como instrumento crítico de suatrajetória, pois, devido à riqueza do conteúdo que a teologia carrega, pode haverconfusão da ciência com as promessas sobre as quais ela reflete.A história também pode ter a ilusão dessa auto-suficiência. Dessa forma, ateologia cristã também contribui para a análise crítica, no momento <strong>em</strong> quereconhece os limites do conhecimento humano. Os instrumentos analíticos históricospod<strong>em</strong> apontar a relevância teológica <strong>em</strong> cada etapa da sua trajetória, tambémidentifica de que forma “o falar de Deus e o falar sobre Deus” foram articuladosadequadamente ao contexto no qual a teologia estava inserida. Como a teologiafacilmente pode se tornar estéril e indiferente ao contexto, é necessário que ela sejaacessível, principalmente, lingüisticamente, visto que, <strong>em</strong> épocas passadas, o latimfuncionava como essa drástica separação da realidade humana e as coisas de Deus.Sendo assim, o próximo passo é traçar, sucintamente, a história da teologia e suarelação com a história “secular”. Em alguns momentos, procurar-se-á questionar se aepist<strong>em</strong>ologia teológica foi, de fato, contextual. Tal excursão t<strong>em</strong> como finalidadesituar o pensamento da teologia atual, apontando suas influências e herançasdeterminantes.27 GUTIÉRREZ, Gustavo. A situação e as tarefas da Teologia da Libertação. In: SUSIN, Luiz Carlos(Org.). Sarça Ardente. Teologia na América Latina: Prospectivas. São Paulo: SOTER/Paulinas, 2000.p. 50.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 61


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Ao se tratar de teologia, não se pode esquecer que, se hoje a definimos <strong>em</strong>certos parâmetros, não é um exercício que se inicia do nada. Como se considera ateologia cristã um ato segundo, o primeiro ato, nas origens do cristianismo, foi vidade Cristo. A experiência de fé ocorreu entre as pessoas que viveram com Jesus, entreas que o seguiram, aquelas que, de alguma forma, experimentaram milagres etiveram suas vidas transformadas. Assim, essas pessoas iniciaram a transmissão detudo que presenciaram, propagando seus test<strong>em</strong>unhos e a mensag<strong>em</strong> que talacontecimento representava. A partir dessa divulgação, surgiram pequenascomunidades que acreditavam na mensag<strong>em</strong>. Porém, essa divulgação destinava-se aum mundo plural para o qual a mensag<strong>em</strong> cristã era novidade. Nesse sentido, atrajetória, o lugar onde se espalharam os primeiros cristãos, influencia diretamente oinício da teologia. Atenas, Antioquia, Cartago, Alexandria, Constantinopla, Cartago,Éfeso constitu<strong>em</strong> uma geografia determinante. Apesar de aderir conceitos pagãos,judaicos e símbolos existentes na história de diversas religiões, o cristianismopreservou o evento Cristo 28 .George Forrel afirma que o contexto interpelou os conteúdos da fé,inculturando-os 29 . A relevância da teologia frente ao mundo, <strong>em</strong> termosquantitativos, não era impactante. No entanto, <strong>em</strong> sua proposta inicial era umaruptura com costumes e tradições presentes. A preocupação das primeirascomunidades era voltada a um ideal de comunhão, sociabilização dos bens. Talperspectiva precisa ser analisada na espera da volta <strong>em</strong>inente de Cristo. Mesmo comas perseguições, a esperança continuava viva e a m<strong>em</strong>ória dos cristãos se preservava.“Os cristãos sab<strong>em</strong> que sua religião fica <strong>em</strong> pé ou cai com a veracidade de sua28 TILLICH, Paul. A história do pensamento cristão. São Paulo: ASTE, 1998. p. 16-20.29 FORREL, George W. Fé ativa no amor. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 66-109.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 62


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408m<strong>em</strong>ória. [...] desde cedo eles procuraram substituir a m<strong>em</strong>ória puramente oral peladocumentação escrita” 30 .O pensamento teológico atual reflete um ideal cristão <strong>em</strong> suas origens. Essareferência das origens não é uma preocupação apenas da atualidade, pois “nocontexto da história religiosa, o estudo das origens assumiu espontaneamente umlugar preponderante, dado que parecia fornecer um critério da própria importânciadas religiões” 31 . Talvez, analisando a história religiosa de distanciamento com asintenções originais, o pensamento teológico busca, <strong>em</strong> suas fontes, a verdadeiramensag<strong>em</strong> do evangelho. Tal proposta não é diferente do que reivindicava omovimento da Reforma que também denunciava certo distanciamento da estruturaeclesiástica e da teologia da época dos test<strong>em</strong>unhos bíblicos. Porém, o risco é de am<strong>em</strong>ória ser seletiva, buscam-se fontes que fundament<strong>em</strong> uma teologia, e com aconstrução de uma m<strong>em</strong>ória romântica de idealidade, pode-se correr o risco dedesprezar a realidade atual das pessoas que dificilmente poderão alcançar esse idealde comunidade e partilha de bens.Bloch aponta como risco histórico considerar as origens como um ídolo, ouseja, como “um começo que explica. Pior ainda: que basta para explicar” 32 . Isso nãosignifica que as origens são importantes na constituição da autocompreensão oucomo fundamentos teológicos. No entanto, ao se desconsiderar a trajetória dateologia na história, se desconsidera a contextualidade que a mensag<strong>em</strong> de féassumiu <strong>em</strong> lugares diferentes. Logo, a teologia cristã não pode resumir-se ao seuinício, pois não pode assumir uma imutabilidade teológica. O que ignora a história é“confundir filiação com explicação” 33 . “Por muito intacta que se suponha uma30 HOORNAERT, Eduardo. A m<strong>em</strong>ória do povo cristão. Uma história da Igreja nos três primeirosséculos. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 18.31 BLOCH, 1997, p. 91.32 BLOCH, 1997, p. 91.33 BLOCH, 1997, p. 93.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 63


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408tradição, há s<strong>em</strong>pre que encontrar razões por que se manteve” 34 . Assim comoexpressa o provérbio árabe: “os homens parec<strong>em</strong>-se mais com o seu t<strong>em</strong>po que comos seus pais” 35 .Outro fato importante, na história da teologia, foi a Era Constantiniana, querepresentou uma institucionalização da mensag<strong>em</strong> da fé com o distanciamento entreos leigos e o clero. O pensamento cristão se construiu sobre uma unidade política etambém tentou preservar uma unidade teológica. A Igreja como igreja do Estadousufruiu os benefícios estruturais, desfrutou de t<strong>em</strong>pos de paz (fim da perseguição) etolerou abusos de poder justificados a partir da mensag<strong>em</strong> cristã. Em si, o Impériotambém utilizou bases do pensamento teológico para legitimar suas ações políticas eas ações dos imperadores. E questões políticas e dogmáticas provocaram a rupturaentre a Igreja do Ocidente e Oriente, o que evidenciou um indicador de que o futuroeclesiástico seria delineado por questões de poder 36 .Pouco se fala do povo cristão; discussões teológicas ficavam na elite letrada.Política era religião. “Quando o cristianismo se tornou fé estatal, correu o risco dedesaparecer as diferenças entre mundo e igreja” 37 . Inicia-se o culto aos mártires e nãotarda a concepção milagrosa dasrelíquias e o culto a imagens. O comércio sedesenvolve. Na tentativa de ser cristão autêntico, surge o m onasticismo como formadeabandono do mundo. Resgata-se a idéia do cristão peregrino e de que a comunhãocom Deus é mais importante do que os prazeres mundanos (sexualidade/castidade).Posteriormente, até os mosteiros foram institucionalizados, adquirindo critériosrígidos de pertença 38 .Na Idade Média, o cristianismo expande e se torna meio de cultura,determina relações individuais e sociais, restringe expressões de arte, do34 BLOCH, 1997, p. 92-93.35 BLOCH, 1997, p. 94.36 DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo: Sinodal, 2002A. p. 93.37 DREHER, 2002A, p. 73.38 DREHER, 2002A, p. 74-75.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 64


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408conhecimento e da ética. Enraizado nesse poderio eclesiástico, o pensamentoteológico serviu como justificativa da existência de uma Igreja que julgava econdenava hereges com a Inquisição. Por outro lado, a construção do pensamentoteológico passou por uma reviravolta comparada com a Antigüidade, pois, <strong>em</strong>contraposição ao pensamento pagão, a teologia se afirma como capaz de falar sobreDeus, falar da Verdade. “[...] existe a inabalável convicção de que na encarnação umaVerdade se tornou acessível. Essa Verdade abre novas perspectivas de realidade, quenão pod<strong>em</strong> ser compreendidas a partir da vontade humana. Dev<strong>em</strong> ser vistas a partirde Deus” 39 .O pensamento teológico se evidenciou na preservação dos escritos antigos.Boécio foi um grande tradutor da fé e de escritos da Antigüidade cristã para omundo germânico. Essa preservação aconteceu nos conventos e posteriormente nasuniversidades. O pensamento teológico medieval é descrito por Tillich a partir detrês características: o escolasticismo, o misticismo e o biblicismo. A escolástica é umexercício especulativo e metodológico da doutrina. Tillich aponta uma posteriordeturpação do método escolástico, pois “a intenção verdadeira do escolasticismo eraa interpretação teológica de todos os probl<strong>em</strong>as da vida” 40 . Já o misticismo possuía aproposta inicial de ser “a experiência da mensag<strong>em</strong> escolástica” 41 . No entanto, asmassas populares, s<strong>em</strong> acesso à atividade intelectual, experimentavam areligiosidade de forma cont<strong>em</strong>plativa e sensorial (liturgia e arte). Porém, a teologiafomentava o medo popular para condenar alma e corpo com a idéia de inferno epurgatório. E, por fim, o biblicismo “tentava usar a Bíblia para fundamentar umcristianismo prático, especialmente entre os leigos”. Assim, o biblicismo serviu comocrítica à teologia escolástica e à piedade pessoal 42 .39 DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2002B. p. 8.40 TILLICH, 1998, p. <strong>13</strong>4.41 TILLICH, 1998, p. <strong>13</strong>5.42 TILLICH, 1998, p. <strong>13</strong>5.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 65


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408A Igreja determinava a história, a cosmovisão das pessoas. Retinha oconhecimento <strong>em</strong> seus monastérios e aumentou o distanciamento entre as pessoascomuns e o clero. A partir da escolástica, a teologia é considerada ciência, com rigoracadêmico, e ainda considerada a rainha das ciências. A indiferença frente ao mundotambém parece refletir que a igreja controlava a história, ou estava acima dela, pois ahistória pertencia a Deus e a vontade de Deus se manifestava através da Igreja. Nãofoi por acaso que, como detentora do poder político, a Igreja punia novascosmovisões. A exposição e a negação da teoria heliocêntrica de Galileu é provadisso. A teologia da época queria manter sua visão hierárquica da sociedade e, sen<strong>em</strong> os astros são fixos, como poderia ser a sociedade? É a cosmovisão que determinauma determinada leitura de um texto e não o contrário.O movimento da Reforma iniciou uma ruptura com a estrutura eclesiástica.A reforma argumentava teologicamente contra os abusos do poder papal einstitucional. Na Reforma, inicia-se um processo de mudanças, na teologia, que buscanas fontes bíblicas do cristianismo a sua legitimidade e o seu compromisso. Tambémse buscou a separação entre a filosofia e a teologia 43 . Historicamente, a modernidadee a Reforma possu<strong>em</strong> um vínculo intrínseco. Os protestantes são marcados pelacorag<strong>em</strong> de “[...] contrapor a voz da consciência individual à voz das autoridadesconstituídas” 44 . Ao fazer<strong>em</strong> isso, os protestantes afirmaram que o Espírito de Deus élivre e imprevisível e não pode ser monopolizado pelas instituições. A compreensãodo sacerdócio geral daqueles que crê<strong>em</strong> combate a questão da autoridade e evoca aliberdade de pensamento 45 . Embora a ord<strong>em</strong> seja necessária para a boa convivênciaentre as pessoas, ela não possui grau decrescente ou crescente de poder, pois essefator possibilita a idolatria e a crueldade. Os m<strong>em</strong>bros do corpo sacerdotal - o povotodo - são servos uns dos outros. Daí surge o espírito d<strong>em</strong>ocrático, tal como é43 FORREL, 1977, p. 66-109.44 ALVES, Rub<strong>em</strong>. Dogmatismo & Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004. p. 23.45 ALVES, 2004, p. 25.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 66


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408idealizado hoje. Como todos são m<strong>em</strong>bros do corpo sacerdotal, todos possu<strong>em</strong> aliberdade de pensar com audácia.Para Max Weber, existe uma afinidade entre o espírito protestante e amodernidade, mas a modernidade é totalmente o oposto do protestantismo, pois aliberdade não combina com modernidade. “[...] na medida <strong>em</strong> que o espíritoprotestante se ajusta à ética de disciplina e asceticismo do sist<strong>em</strong>a de produçãocapitalista, torna-se impossível continuar a manter os idéias individualistas,libertários críticos que encontramos nos momentos iniciais da Reforma” 46 .Modernidade significa obediência aos imperativos do progresso econômico. Étotalmente repressiva. A mesma crítica é assumida por Paul Tillich, ao afirmar que oprotestantismo escolheu a burguesia e não combina com o proletariado. “A religiãoidealista do protestantismo humanista serviu aos interesses de uma burguesiavitoriosa” 47 .Na perspectiva do catolicismo, no entanto, a liberdade provocada peloprotestantismo é negativa, pois desintegra a civilização e provoca a revolta contraordens institucionalizadas. “A grande conquista protestante, sacralizar apersonalidade, t<strong>em</strong> como seu reverso a secularização do mundo, que agora não maispode ser gozado misticamente como o ventre divino. O mundo não se constrói sobreo sagrado. Ele é fruto do utilitarismo” 48 . Do utilitarismo pode surgir a anomia. ParaErnst Troeltsch, o protestantismo é a revitalização do espírito medieval.Depois da Reforma, a pluralidade de igrejas cristãs, de confessionalidadesgera tensões. O Confessionalismo é um período de conflitos, onde a confissão de féenfatiza a declaração doutrinal e “está profundamente ligado ao surgimento doEstado Moderno. [A era confessional foi] [...] responsável pelo surgimento dasecularização da cultura e do Estado. [...] as igrejas ajudaram a criar sociedades46 ALVES, 2004, p. 94-95.47 ALVES, 2004, p. 96.48 ALVES, 2004, p. 91.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 67


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408uniformes, disciplinadas, formadas por indivíduo” 49 . Tal processo auxiliou aformação do Estado Absolutista. Também, pós-reforma, movimentos como opietismo, a ortodoxia, o racionalismo e, posteriormente, o movimento Iluministaconstitu<strong>em</strong> períodos críticos à religião e de elaboração de pensamentos teológicos. Opietismo “acentuou a teologia experiencial contra a teologia cognitiva, [...] ênfase naética, no indivíduo sobre o comunitário, ênfase na antropologia sobre a teologia[...]” 50 . A ilustração iniciou a partir da contribuição pietista de um cristianismo nãodogmático,centralidade da experiência humana, leitura histórica da bíblia. Houveum avanço tecnológico e intelectual, e críticas à religião, pois o anseio era libertar asconsciências do Estado e da religião.Frente à Modernidade, a teologia começou a se estruturar de formaapologética. Precisava argumentar sua importância depois de muitas críticas eprevisões do fim da religião. Com as revoluções técnicas, a teologia buscou novasformas de se relacionar com o mundo <strong>em</strong> transformação. Decorrente da RevoluçãoFrancesa, da industrialização e do avanço das pesquisas científicas, a teologia tentousuperar a barreira eclesiástica e dogmática. A teologia do século XIX se consolidoucomo a teologia liberal, pois buscava dialogar com o mundo. Assim, relativizava atradição, a dogmática, especialmente a cristologia, enfatizando a ética cristã 51 . Com opositivismo da própria ciência, a teologia visa ser mediadora entre o discurso eclesiale o do mundo. Enfim, a teologia do século XIX procurou o diálogo com o mundomoderno e tentou uma assimilação à nova cultura, relativizando e historicizando apessoa de Jesus Cristo e seu significado para a salvação do ser humano. Era umateologia apologética <strong>em</strong> busca da “essência do cristianismo” a partir do conceito, dahistória, da ética, da existência e da experiência. Com a teologia liberal, o objetivo era“harmonizar o mais possível à religião com a consciência cultural da época” 52 .49 DREHER, Martin. A Igreja Latino-Americana no contexto mundial. São Leopoldo: Sinodal, 1999. p. 88.50 DREHER, 1999, p. 120; 123.51 GIBELLINI, 2002, p. 19.52 GIBELLINI, 2002, p. 19.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 68


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408O otimismo das ciências e do mundo se esvai na teologia com as guerras.Nesse sentido, Karl Barth vira o pressuposto do antropológico ao teológico. Duvidasobre as capacidades humanas e a afirmação de que tudo v<strong>em</strong> de Deus e que hádistância entre Deus e o mundo. Constrói sua teologia a partir da revelação de Deusno Cristo e da palavra de Deus. A realização e o fim da história são de Deus e nãoacontec<strong>em</strong> dentro da própria história. A história da salvação entra como uma crise nahistória humana, pois esta diz um “não” ao pecado e à presença da morte, mas um“sim” ao Deus <strong>em</strong> Cristo que superou o pecado e a morte. Assim, a teologiadialéticaenfatiza a transcendência de Deus e a soberania de sua revelação frente aomundo. Também é chamada de Teologia da Palavra ou Teologia da Crise 53 . Por outrolado, Paul Tillich, inserido na teologia dialética, assume uma atitude positiva frenteao mundo para descobrir Deus nele. Sai de uma visão pessimista e vai ao encontrodo mundo. Tillich elabora um método de correlação que situa a teologia entre amensag<strong>em</strong> (cristã) e a situação (contexto). O teólogo t<strong>em</strong> a tarefa de identificar oreligioso no meio secular e as perguntas contidas nele. A teologia aponta para asrespostas às perguntas, contidas na revelação 54 .Ao que parece, a teologia se desenvolve cada vez mais <strong>em</strong> sua preocupaçãocom o mundo. Após a ênfase de Rudolf Bultmann no ouvinte da Palavra de Deuscom auxílio da filosofia existencialista, o contexto atual é reconhecido como distintoculturalmente diferente do contexto bíblico e distinto da história da teologia. Odesdobramento subseqüente da teologia leva mais a sério o contexto do ouvinte, ocontexto dos cristãos, considerando determinantes as circunstâncias políticas 55 .Depois das guerras, a Teologia da História; a Teologia da Esperança, a TeologiaPolítica, a Teologia da Libertação, a teologia dos “genitivos” (f<strong>em</strong>inista, negra),teologia ecumênica d<strong>em</strong>onstram uma mudança radical na metodologia teológica,pois se interessam diretamente pela realidade plural (<strong>em</strong> termos religiosos e53 GIBELLINI, 2002, p. 23.54 GIBELLINI, 2002, p. 83-90.55 GIBELLINI, 2002, p. 255-322.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 69


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408culturais) e desigual. Também passa a se reconhecer a produção teológica de paísesperiféricos, teologias que d<strong>em</strong>onstram uma consciência política e de engajamentosocial. Nesse sentido a Teologia da Libertação enfatiza as desigualdades econômicosociais,da situação de pobreza que escraviza pessoas. Propõe que o engajamento(práxis) do indivíduo na luta por libertar-se dos condicionamentos sociais, políticose, sobretudo, econômicos dentro do capitalismo é o ponto de partida do métodoteológico. A teologia f<strong>em</strong>inista e a teologia negra clamam por igualdade entre osgêneros e entre as etnias, buscam, na teologia cristã, a afirmação de igualdade e denegação à exploração 56 .No entanto, o espaço teológico parece estar sendo deslegitimado pela perdade espaço da religião cristã. Nesse sentido, o período atual, quando denominado depós-modernismo, compreende um mundo pós-metafísico, pós-religioso, que nãopode ser uniformizado. O pós-modernismo é uma quebra de paradigmas, d<strong>em</strong>odelos de sociedade, de identidade, de religiosidade, etc. Logo, especialmente,olhando para o contexto brasileiro, é possível perceber que exist<strong>em</strong>, ao mesmot<strong>em</strong>po, várias formas de religião e de vivência religiosa. Todos os aspectos e ênfasesque a teologia considerou no decorrer de sua história encontram-se presentes: osmissionários, os místicos, os piedosos, os racionalistas, os ortodoxos, ostradicionalistas, os sacerdotes e os profetas.Embora, na história da teologia, esses movimentos tenham tido cada um seudestaque específico num t<strong>em</strong>po específico, isso não significa que a história dateologia seja uniforme. No entanto, a impressão que se t<strong>em</strong> no século XXI é que todosos rumos parec<strong>em</strong> possíveis. Em meio a fundamentalismos, sincretismos, a teologiacaminha ora para uma postura apática (o conteúdo teológico parece irrelevante aocontexto de um mundo moderno, tornado adulto), ora para uma postura de assistênciasocial (como preenchimento das lacunas do Estado, apelo à solidariedade para avivencia harmoniosa <strong>em</strong> sociedade), ora como a religião do self (para atender a56 GIBELLINI, 2002, p. 347-520.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 70


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408necessidades, devido à individualização e a perda dos referencias comunitários ecoletivos) 57 .O pensar teológico atual é expressão das experiências de fé do hoje, dossujeitos que hoje faz<strong>em</strong> teologia, mas o pensar teológico também preserva a reflexãohistórica das experiências de fé do ont<strong>em</strong>. Com o auxílio da história, torna-sepossível fazer teologia s<strong>em</strong> cair <strong>em</strong> modismos ou reducionismos, riscos prováveisquando apenas se considera o próprio contexto ou apenas a particularidade <strong>em</strong>detrimento ou esquecimento das diferenças do universal. Como fazer uma teologiacristã contextual s<strong>em</strong> cair <strong>em</strong> relativismos do próprio conteúdo de fé ou da realidadecircundante. Afinal, como a teologia cristã se propõe a responder os novos desafiosdo mundo s<strong>em</strong> cair <strong>em</strong> saudosismos da estrutura teocêntrica medieval ou s<strong>em</strong> serrelativizada <strong>em</strong> prol da vontade humana?Ao que parece, a teologia trabalha com a história <strong>em</strong> categorias binárias: oravaloriza a história, ora despreza a história humana, ora diviniza o passadocristológico e o futuro escatológico. Todavia, o critério histórico não pode serentendido como determinante para a teologia, pois a própria teologia, quando t<strong>em</strong>como ponto de partida metodológico a fé, impulsiona para a além da história e paraalém da própria teologia. “O método da teologia pretende dar uma expressãocont<strong>em</strong>porânea ao sentido último daquilo que ocorreu na história concreta de Jesus,o Cristo de Deus” 58 . A teologia, como ciência humana, como pensamento humanonão pretende cair <strong>em</strong> absolutizações da história ou da atualidade presente. “Ométodo da teologia deve auxiliar-nos a ler o mundo de modo realista, discernindo ossinais de contraste entre o mundo assim como ele é e a vinda do novo” 59 .57 MOLTMANN, 2005, p. 379-403.58 BRAATEN, Carl E., JENSON, Robert W. Dogmática Cristã. São Leopoldo: Sinodal/IEPG, 1995. v.1. p. 40.59 BRAATEN; JENSON, 1995, p. 41.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 71


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Sendo esperança do novo, esperança da plenitude, esperança de um mundojusto, “o conhecimento da verdade teológica focaliza não só o que a realidade jáexistente contém, mas também o que não contém. Do contrário, o conhecimento éunilateral, meramente analítico e positivista” 60 . Enfim, o conhecimento teológicoaponta para além dele mesmo, para além da realidade atual ou histórica, poiscompreende a antecipação parte do conhecimento. Todavia, é justamente acapacidade de antecipação, de enxergar além da realidade presente que parece estaresquecida no pensamento teológico atual. Eis o cativeiro moderno da teologia!60 BRAATEN; JENSON, 1995, p. 41.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 72


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Viabilizando a educação teológica na <strong>EST</strong>: respondendo anovos desafiosPor Dilceu L. Witzke *Por Ezequiel de Souza **Resumo:Para compreendermos a situação presente da <strong>EST</strong>, percorr<strong>em</strong>os a sua história, procurandoidentificar se houve períodos análogos e, <strong>em</strong> caso positivo, quais os caminhos percorridospela instituição para superação das adversidades. Cont<strong>em</strong>plando o futuro, identificamos asprincipais respostas nos campos do ensino, pesquisa e extensão. Assim, avaliamos comoel<strong>em</strong>ento extr<strong>em</strong>amente fecundo de possibilidades a nova política de extensão universitária,materializada na Ação Comunitária. Ao término de nossas pesquisas, pensamos ser deproveito a sua publicação e publicização. Assim, há a possibilidade de interpretaçõessimilares e divergentes. O resultado parcial dessa <strong>em</strong>presa pode ser conferido logo a seguir.Palavras-chave:Escola Superior de Teologia – história – ação comunitáriaParticipando do grupo Teologia Protestante <strong>em</strong> contexto Latino-americano,que objetiva desenvolver uma teologia “encarnada” na realidade brasileira, o desafioque se nos apresentou era a confecção de pesquisas compl<strong>em</strong>entares. Assim,ensaiamos essa modalidade de pesquisa <strong>em</strong> nossas monografias de conclusão decurso 1 .Para compreendermos a situação presente da <strong>EST</strong>, percorr<strong>em</strong>os a suahistória, procurando identificar se houve períodos análogos e, <strong>em</strong> caso positivo,* Teólogo.** Teólogo.1 WITZKE, Dilceu L. Ministério Compartilhado e Ação Comunitária: Um novo paradigma no fazerteológico do Morro do Espelho. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado <strong>em</strong> Teologia) – SãoLeopoldo, <strong>EST</strong>, 2007; SOUZA, Ezequiel de. Autonomia e auto-suficiência: Desafios constantes àformação teológica. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado <strong>em</strong> Teologia) – São Leopoldo,<strong>EST</strong>, 2007.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 73


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408quais os caminhos percorridos pela instituição para superação das adversidades.Cont<strong>em</strong>plando o futuro, identificamos as principais respostas nos campos do ensino,pesquisa e extensão. Assim, avaliamos como el<strong>em</strong>ento extr<strong>em</strong>amente fecundo depossibilidades a nova política de extensão universitária, materializada na AçãoComunitária. Ao término de nossas pesquisas, pensamos ser de proveito a suapublicação e publicização. Assim, há a possibilidade de interpretações similares edivergentes. O resultado parcial dessa <strong>em</strong>presa pode ser conferido logo a seguir.Escola de Teologia (1946-1957)Até 1939, estudantes brasileiros podiam concluir seus estudos teológicos <strong>em</strong>universidades al<strong>em</strong>ãs. A Segunda Guerra Mundial impossibilitou esse envio e avinda de pastores da Al<strong>em</strong>anha para o Brasil. A falta de pastores levou à formaçãode duas turmas do curso propedêutico, <strong>em</strong> 1940 e 1941, respectivamente. No entanto,essas turmas tiveram que ser encerradas <strong>em</strong> 1942, “é que os pastores al<strong>em</strong>ães que seencontravam na zona de fronteira tiveram que ser retirados de seus postos” 2 , porord<strong>em</strong> da polícia. Para substituí-los, foram enviados como substitutos os estudantesdo curso propedêutico e os alunos das duas últimas séries do IPT. Terminada aguerra, não era mais possível regressar à dependência anterior. Em 1945, o cursopropedêutico foi reiniciado, com quatro estudantes e três ouvintes.Após muito t<strong>em</strong>po de reflexão, <strong>em</strong> 26 de março de 1946 surge um s<strong>em</strong>ináriopara formação teológica, sob o nome de Escola de Teologia. Localizada <strong>em</strong> SãoLeopoldo, era uma instituição do Sínodo Rio-Grandense, mas permitia o ingresso decandidatos oriundos de outros sínodos. Inicia com <strong>13</strong> estudantes, muitos dos quais jápossuíam alguma experiência pastoral, pois atuaram como pastores substitutos2 DREHER, Martin N. O papel de Hermann G. Dohms na criação e consolidação da Faculdade deTeologia. In: HOCH, Lothar (Ed.). Formação teológica <strong>em</strong> terra brasileira. Faculdade de Teologiada IECLB: 1946-1986. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 46 (p. 40-50).Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 74


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408durante a guerra. A falta de recursos era driblada com criatividade e improvisações.“Não havia nenhuma infra-estrutura que facilitasse o funcionamento da novelinstituição” 3 . Valendo-se de rodas de diálogo movidas a chimarrão, os jovensestudantes tentavam conciliar teoria teológica e prática pastoral. A precariedade erasentida principalmente no aspecto material. “A biblioteca de que dispúnhamos eratalvez a grandeza mais dúbia nesta teia de improvisações pragmáticas quecaracterizavam os primeiros anos de existência da Escola de Teologia” 4 .Essa etapa é caracterizada pelo pioneirismo e marcada pela vontade de servira Deus e pela interdependência com a igreja, que fornecia os estudantes, os docentese os recursos para tornar a formação teológica possível. A biblioteca do Sínodo Rio-Grandense, fruto de doações de pastores aposentados, serviu como base para osestudos. Composta de livros antigos <strong>em</strong> língua al<strong>em</strong>ã, “nas estantes da bibliotecafaltavam livros recentes, que expusess<strong>em</strong> os probl<strong>em</strong>as de nosso t<strong>em</strong>po à luz doevangelho e que nos l<strong>em</strong>brass<strong>em</strong> de que estávamos vivendo numa era de mudançasradicais, no séqüito da maior catástrofe que o mundo conhecera até então” 5 . O estudoera realizado totalmente <strong>em</strong> al<strong>em</strong>ão, pois essa era a língua utilizada nascomunidades naquele momento histórico. O ensino estava baseado na KirchlicheHochschule, ou seja, nos moldes de uma faculdade da Al<strong>em</strong>anha.O currículo era muito rudimentar: “lecionava-se sobre t<strong>em</strong>as das disciplinasteológicas clássicas e de matérias afins, como Filosofia e História Geral” 6 . Os docenteseram professores do IPT e pastores, todos de t<strong>em</strong>po parcial. Apenas <strong>em</strong> 1953chegaria à Escola de Teologia o primeiro docente de t<strong>em</strong>po integral, o P. Hans H.Friedrich, professor de História Eclesiástica. Os estudantes da Escola de Teologiapossuíam uma sólida base, construída pelos anos de estudo no IPT, já que “até o fimdos anos 50 todos os estudantes, s<strong>em</strong> exceção, procedia, do então Instituto Pré-3 WEINGÄRTNER, Lindolfo. Os inícios da Faculdade de Teologia. In: HOCH, 1986, p. 33 (p.33-39)4 WEINGÄRTNER, 1986, p. 35.5 WEINGÄRTNER, 1986, p. 35.6 FISCHER, Joaquim. Breve História da Faculdade de Teologia. In: HOCH, 1986, p. 22 (p.18-32).Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 75


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Teológico (IPT)” 7 . Eram aceitos apenas estudantes do sexo masculino, pois não haviaministério f<strong>em</strong>inino no Sínodo naquele momento. Algumas mulheres puderamestudar na Escola de Teologia, mas apenas para compl<strong>em</strong>entar a formação do IPT,não para seguir a carreira teológica.Faculdade de Teologia (1957-1984)Esse período é caracterizado pela consolidação da Faculdade de Teologia epela busca da auto-suficiência acadêmica. Para atingir esses objetivos, a busca daqualidade acadêmica e da qualificação do corpo docente foi constante. É também oinício da abertura ecumênica e da contextualização <strong>em</strong> relação à realidade brasileira.O P. Hermann Dohms esteve na direção da Escola de Teologia desde sua fundação,<strong>em</strong> 1946, até 1956, ano <strong>em</strong> que faleceu. Com sua morte, a direção foi assumidainterinamente pelo P. Hans H. Friedrich. Muitas mudanças ocorreram desde então. Aprimeira aconteceu <strong>em</strong> 1957: o 52º Concílio Geral do Sínodo Rio-Grandenseautorizou a transferência administrativa da Escola de Teologia para a FederaçãoSinodal, que ratificou essa decisão <strong>em</strong> seu 3º Concílio Geral, realizado <strong>em</strong> 1958.Assim, o nome da Escola de Teologia foi alterado para Faculdade de Teologia. “Emmarço de 1960, o Pastor Dr. Ernesto Th. Schlieper, presidente da Federação Sinodal,IECLB, assumiu, cumulativamente, a direção da Faculdade de Teologia” 8 .As mudanças não pararam de acontecer. Em 1960, foi aceito o primeirocandidato que não havia estudado no IPT. Até então, o estudo no IPT era condiçãonecessária para o ingresso no estudo teológico. Alguns anos antes, <strong>em</strong> 1957, opresidente da Federação Sinodal, P. Karl Gottschald decidira abrir o acesso ao estudode teologia a estudantes oriundos de outras escolas. Essa decisão foi efetivada apenas7 KIRST, Nelson. A reforma de estudo: Marca registrada da última década. In: HOCH, 1986, p. 52 (p.51-60).8 FISCHER, 1986, p. 24.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 76


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408<strong>em</strong> 1963, devido às reivindicações do Centro Acadêmico dos estudantes de teologia.Na época, o diretor do curso, Dr. Ernesto Schlieper, manifestara-se contrário a essaidéia, “mas consentiu, achando que não haveria eco. Em campanha organizada peloCADES, por meio de boletins, cartazes, folhetos e um número da revista daJuventude Evangélica, os resultados foram surpreendentes” 9 .A abertura a estudantes de outras escolas trouxe positivamente apossibilidade de mulheres estudar<strong>em</strong> teologia. A primeira mulher a estudar teologiacom intenção de seguir para o ministério pastoral entrou na Faculdade de Teologia<strong>em</strong> 1966. “Nessa caminhada aumentou também a presença f<strong>em</strong>inina entre osestudantes. Era de três, <strong>em</strong> 1969, correspondendo a pouco mais de 3%, e chegou a 48e 50, <strong>em</strong> 1982 e 1983, respectivamente, correspondendo a pouco menos de 19%” 10 . Oaumento de estudantes que não passaram pelo IPT “desafiou a Faculdade deTeologia a ensinar-lhes, ela mesma, as principais matérias pré-teológicas” 11 . Onúmero crescente de estudantes que não sabia falar al<strong>em</strong>ão, aliada à necessidade decriar uma teologia nacional, condizente com as necessidades do contexto brasileiro,tornou necessária a adoção do português como a língua do ensino, <strong>em</strong> 1968.As transformações atingiram o quadro de docentes também. “A partir do 2ºs<strong>em</strong>estre de 1968, a formação de jovens brasileiros para o ministério teológicocomeçou a trazer frutos” 12 . P. Dr. Gottfried Brak<strong>em</strong>eier e P. Dr. Nelson Kirst foram ospioneiros: assumiram as cadeiras de Novo Testamento e Antigo Testamento, <strong>em</strong> 1968e 1970, respectivamente. Com o crescimento do número de alunos, houve anecessidade de alterar o currículo. Duas deficiências procuraram ser superadas com areforma de ensino: a primeira era a superação do modelo al<strong>em</strong>ão de ensino e asegunda era a preparação para a prática. “O projeto visava concretizar o programa9 SCHUENEMANN, Rolf. Do gueto à participação: O surgimento da consciência sócio-política naIECLB entre 1960 e 1975. São Leopoldo: Sinodal, <strong>EST</strong>/IEPG, 1992. p. 58.10 FISCHER, 1986, p. 29.11 FISCHER, 1986, p. 26.12 FISCHER, 1986, p. 29.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 77


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408pedagógico da ‘educação teológica <strong>em</strong> liberdade’ com o objetivo de ‘formar teólogospastoresde aproveitamento multiforme’” <strong>13</strong> . O novo currículo que entrou <strong>em</strong> vigor<strong>em</strong> 1974 era composto de: Curso Pré-Teológico (CPT), Curso Teológico de Base(CTB), Curso de aprofundamento e Especialização Teológica (CAET), Exame deConclusão e Estágio.Escola Superior de Teologia (1984-20<strong>06</strong>)Essa etapa é caracterizada pela diversificação teológica, tendo como marca abusca da diversificação da formação, com a criação de diversos institutos deformação. A dimensão ecumênica é ampliada e o fazer teológico é calmo, s<strong>em</strong> asdisputas do período anterior. “No dia 19 de outubro de 1984 foi criada pelo XIVConcílio Geral da IECLB, <strong>em</strong> Marechal Cândido Rondon, Paraná, com 94 votosfavoráveis, três contra e doze abstenções, a Escola Superior de Teologia” 14 . Ocrescimento da Faculdade de Teologia trouxe consigo várias transformações, como aalteração da língua de ensino, a mudança do perfil do corpo docente, a ampliação doespaço físico da instituição, dentre outras. Para dar conta das mudanças que estavamocorrendo rapidamente, foi necessário um planejamento b<strong>em</strong> elaborado. “Emmeados de 1981, com base <strong>em</strong> minuciosos levantamentos estatísticos e <strong>em</strong> gráficosprojetivos para o futuro, buscou-se com intensidade um amplo planejamento” 15 .Como resultado desse planejamento, algumas medidas foram tomadas. Aprimeira foi a limitação do número de ingressos. Outra medida tomada foi oaumento do corpo docente. O aumento do número de estudantes não havia sidoseguido do aumento do número de docentes. Elaborou-se um regulamento para acontratação de professores, priorizando teólogos brasileiros, s<strong>em</strong> descuidar dos<strong>13</strong> FISCHER, 1986, p. 30.14 ALTMANN, Walter. A Faculdade de Teologia na Escola Superior de Teologia. In: HOCH, 1986, p.172 (171-181).15 ALTMANN, 1986, p. 173.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 78


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408intercâmbios, s<strong>em</strong> dúvida valiosos, com instituições estrangeiras. Além disso, foicriado o curso de mestrado que iniciou <strong>em</strong> 1982. “Os primeiros quatro mestres <strong>em</strong>Teologia se formaram <strong>em</strong> janeiro de 1985 e exerc<strong>em</strong> atualmente a docência” 16 . Aúltima medida tomada foi a ampliação do espaço físico, a fim de comportar umnúmero maior de estudantes. Foram construídas uma nova biblioteca e moradiaspara docentes e mestrandos, além de ser reformado o prédio que pertencia aoInstituto Pré-Teológico.A Escola Superior de Teologia foi formada a partir de vários institutos deformação. O Instituto de Educação Cristã (IEC), surgido do Instituto Superior deCatequese e Estudos Teológicos (ISCET), proporcionava a formação catequética. AFaculdade de Teologia manteve o nome, mas teve alteração curricular, com maiorênfase na área prática. O Instituto de Pós-Graduação foi criado para abrigar o cursode mestrado e após alguns anos iniciou o curso de doutorado. O Instituto deCapacitação Teológica Especial (ICTE) previa a formação teológica para leigos,podendo aproveitar esses estudos para uma compl<strong>em</strong>entação na Faculdade deTeologia. O Instituto de Pastoral (IP) tinha como prerrogativa a formação contínua deobreiros da IECLB. Por fim, o Departamento de Música tinha como objetivoaprimorar as condições musicais dos estudantes, para que as atividades musicais dascomunidades foss<strong>em</strong> melhoradas também.Outras transformações significativas ocorreram. Houve o aumento deestudantes do sexo f<strong>em</strong>inino e o ingresso de afro-brasileiros. No corpo docente, aabertura para a docência de mulheres e de afro-brasileiros. A criação do Grupo deMulheres, <strong>em</strong> 1981 proporcionou a reflexão sobre o papel da mulher na igreja e nasociedade e, <strong>em</strong> 1986, iniciou-se o movimento “Pró-Teóloga”, que reivindicava acontratação de uma professora para a cadeira de Teologia F<strong>em</strong>inista, que foiassumida pela professora Wanda Deifelt <strong>em</strong> 1991. A chegada do professor afroamericanoPeter Nash <strong>em</strong> 1995 catalisou a presença afro-brasileira no estudo16 ALTMANN, 1986, p. 175.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 79


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408teológico. Assim, <strong>em</strong> 1996 foi criado o Grupo de Negros e Negras da <strong>EST</strong>, que refletiaa presença negra na Bíblia e na Igreja. O Grupo Identidade reivindicou a inclusão dadisciplina de Teologia Negra no currículo e, desde 2005, foi contratada a professoraSelenir Kronbauer para o quadro docente da instituição.Ação ComunitáriaNessa seção, o interesse está no fazer teológico no Morro do Espelho, <strong>em</strong>especial no Projeto da Ação Comunitária desenvolvido pela <strong>EST</strong>, via Pró-Reitoria deExtensão, vinculado ao Programa Nacional de Extensão Universitária. É um espaçoque possibilita a proximidade e o diálogo entre o saber acadêmico e o saber docotidiano. Alguns questionamentos que dev<strong>em</strong> estar presentes são: o que aexperiência de inserção social, oferecida pela Ação Comunitária, pode contribuir coma formação teológica do Morro do Espelho? Quais os espaços que a AçãoComunitária t<strong>em</strong> disponibilizado a estudantes de teologia da <strong>EST</strong> com objetivo deinseri-lo na realidade social de São Leopoldo? A inserção social de estudantes t<strong>em</strong>oportunizado a vivência de experiências que reflet<strong>em</strong> o futuro ministério?O Programa Nacional de Extensão Universitária (PNEU) visa a formação doprofissional cidadão. Como vai ser esta formação? Num primeiro momento, éimprescindível que o futuro profissional cidadão mantenha uma intensiva interaçãocom a comunidade e com a sociedade. Essa interação pode ser apenas para fins desituar-se historicamente, para identificar-se culturalmente. Outro objetivo dessainteração é fazer com que o futuro profissional cidadão tenha condições de“referenciar sua formação técnica com os probl<strong>em</strong>as que um dia terá de enfrentar” 17 .O PNEU entende que a ciência deve se alicerçar nas prioridades locais, auniversidade precisa ser sensível aos apelos da sociedade e disponibilizar o acesso aoconhecimento a todos.17 FÓRUM de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, Natal, 8 mai. 1998.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 80


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408A sociedade brasileira necessita urgent<strong>em</strong>ente de profissionais cidadãos. Sãoas escolas e universidades que, através da Extensão, viabilizarão a interação entrealunos e sociedade. Dessa interação, resultarão profissionais comprometidos com asociedade. É a Extensão que promove a prática acadêmica que conecta auniversidade “com as d<strong>em</strong>andas da maioria da população, possibilita essa formaçãodo profissional cidadão e se credencia cada vez mais junto à sociedade como espaçoprivilegiado de produção do conhecimento significativo para a superação dasdesigualdades sociais existentes” 18 . A partir dessas interações, ela passa ades<strong>em</strong>penhar um papel de promotora contribuinte da transformação da realidadesocial local e regional, nos dois pólos: nos locais onde a inserção acontece, viaExtensão, e na universidade promotora das inserções sociais, tendo como resultadoum equilíbrio ajustado entre a d<strong>em</strong>anda e os saberes.Na <strong>EST</strong>, o PNEU vincula-se à Pró-Reitoria de Extensão desde 2005, ganhandomaior visibilidade nos projetos da Ação Comunitária. Cabe a ressalva de que, na<strong>EST</strong>, a inserção social é prática comum antes mesmo do projeto de AçãoComunitária, estando a cargo de estudantes e docentes comprometidos com a causasocial. Muitas vezes, tinha caráter de test<strong>em</strong>unho cristão. A diferença está noacompanhamento das atividades. N<strong>em</strong> todas as inserções recebiam o apoio e/ou acoordenação por parte de professores. No Projeto da Ação Comunitária, oacompanhamento é o grande diferencial.Por que a <strong>EST</strong> t<strong>em</strong> investido no projeto Ação Comunitária ?A proposta da Ação Comunitária é assumida como política educacional da<strong>EST</strong> que, através do ensino, pesquisa e extensão busca desenvolver a formaçãointegral do ser humano. A Ação Comunitária se caracteriza como um meio de‘transporte’ que sai da <strong>EST</strong> com destino às comunidades, vilas, loteamentos e18 FÓRUM, 1998.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 81


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408instituições outras da sociedade de São Leopoldo, oportunizando ao seu corpoestudantil o diálogo entre os saberes acadêmico (saber científico) e cotidiano (saberdo senso comum). Ela não surgiu do nada. A política institucional da <strong>EST</strong> ressaltaque a formação acadêmica da instituição visa formar profissionais “comprometidoscom a ética e a solidariedade, que atu<strong>em</strong> de modo a promover, através de suaatuação profissional, a dignidade humana” 19 . A <strong>EST</strong> t<strong>em</strong> por princípio promoveruma formação humanista, integral do ser humano. O projeto de Ação Comunitáriat<strong>em</strong> base no PNEU, viabilizando uma relação transformadora entre universidade esociedade.A Ação Comunitária t<strong>em</strong> por princípio apresentar a realidade social aosestudantes. A realidade social causa impacto quando colocada <strong>em</strong> diálogo com osaber científico. A <strong>EST</strong> assume como sua missão formar profissionais cidadãos, pessoascomprometidas com a ética e a solidariedade. Diante desse desafio, o impacto causadopela realidade social, quando colocada <strong>em</strong> diálogo com o saber científico, tende aprovocar uma tomada de atitude diante da realidade de São Leopoldo. É ness<strong>em</strong>omento que o discurso produzido pelo conhecimento científico necessita depostura, de atitude. O que se espera de um profissional cidadão comprometido com aética, solidariedade e dignidade humana é que seja impactado por essa realidade.Perguntas como: é necessário que essa realidade continue assim? O que é possívelfazer para transformar? Como transformar?, são conseqüências do impacto causadopela realidade.O compromisso da <strong>EST</strong> é formar pessoas comprometidas com a ética e asolidariedade recuperando a dignidade humana. O Projeto da Ação Comunitáriaquer provocar um conhecimento resultante desse confronto com a realidade e ossaberes. É por esse princípio que a <strong>EST</strong> t<strong>em</strong> investido no projeto Ação Comunitária.À <strong>EST</strong> não é suficiente perceber o crescimento acadêmico dos estudantes, seucompromisso vai além das fileiras bancárias das salas de aulas. Seu compromisso19 <strong>EST</strong>. Agenda da <strong>EST</strong>. São Leopoldo, <strong>EST</strong>, 2007.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 82


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408social e evangélico, alicerçado no Credo que t<strong>em</strong> como base o “Evangelho de JesusCristo e o compromisso com a tradição da Reforma no horizonte ecumênico” 20 . AMissão da <strong>EST</strong> busca promover o “ensino, a pesquisa e a extensão, com excelênciaacadêmica, contribuindo para a capacitação de pessoas comprometidas com a ética ea solidariedade, que atu<strong>em</strong> de modo a promover, através de sua atuação profissional,a dignidade humana” 21 . Amparada por princípios sólidos, quer “ser um centro deexcelência <strong>em</strong> teologia na transversalidade com as ciências sociais” 22 , esta é a visãoque a <strong>EST</strong> t<strong>em</strong> como instituição de ensino.Não basta ter uma nota máxima (7) na avaliação da CAPES/MEC para umainstituição de ensino. É necessário que a qualidade, a excelência <strong>em</strong> ensino, pesquisae extensão sejam assimiladas pelos corpos dos estudantes e colocadas a uso práticona sociedade, cumprindo assim com o seu papel de formadora de profissionaiscidadãos. A proposta quer oportunizar ao corpo estudantil a iniciação da integraçãoentre teoria e prática. É a partir desse olhar que as inserções e as práticas acadêmicasvão sendo incentivadas na formação de teólogos e teólogas no Morro do Espelho. Ainserção social, além de promover um conhecimento que resulta do confronto com arealidade local, quer ser um espaço de test<strong>em</strong>unho evangélico.É nesses espaços que as perguntas teológicas surg<strong>em</strong>. Da boca das pessoassimples, nasc<strong>em</strong> questionamentos que muitos livros não respond<strong>em</strong>. Comoresponder a uma criança quando pergunta: o meu cachorro morreu, ele vai pro céu?Tais perguntas necessitam de consistência teórica para transportar o conhecimentoteológico até essas pessoas. A linguag<strong>em</strong> comum não é ser simplista, linguag<strong>em</strong>comum é colocar <strong>em</strong> diálogo o conhecimento acadêmico, a teologia com o saberpopular, do senso comum, de tal forma que a criança entenda a resposta que dá ateologia. A inserção social é um exercício acadêmico e missionário. N<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se20 <strong>EST</strong>, 2007.21 <strong>EST</strong>, 2007.22 <strong>EST</strong>, 2007.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 83


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408t<strong>em</strong> respostas prontas. Muitas das perguntas voltam pra casa e vão parar nas salas deaulas, nas conversas de alas, nos encontros de café no bar. São perguntas quepromov<strong>em</strong> o compromisso acadêmico e evangélico.Já mencionamos que a Ação Comunitária t<strong>em</strong> encontrado seu espaço napolítica educativa da <strong>EST</strong>. No entanto, qual é o seu lugar na estrutura curricular?T<strong>em</strong>-se preocupado <strong>em</strong> viabilizar espaços no fazer teológico acadêmico-científicopara aprofundar as experiências desta vivência? Que espaços pod<strong>em</strong> ser organizadospara que as experiências de inserção social possam ser socializadas no Morro doEspelho? A realidade social de São Leopoldo t<strong>em</strong> causado impacto quando colocada<strong>em</strong> diálogo com o saber científico? Como são respondidas teologicamente asperguntas que surg<strong>em</strong> nas inserções sociais? Como se articulam Evangelho eAcad<strong>em</strong>ia no fazer teológico do Morro do Espelho? Perguntas que ficam para provocaruma discussão <strong>em</strong> torno do assunto.A Ação Comunitária, no primeiro s<strong>em</strong>estre de 2007, contou com noveprojetos que estão <strong>em</strong> andamento. Estão envolvidos 41 estudantes e 7 voluntárias. Osprojetos <strong>em</strong> andamento são: ABC da Mulher; Projeto São Jorge; Vila Brás; Vila Duque;Assentamento Filhos de Sepé; Fundação Luterana de Diaconia; Presídio de São Leopoldo; VilaPaim; Coordenadoria da Mulher. Há atividades oferecidas a toda população, nãoimportando a faixa etária. Atividades lúdicas com crianças, alfabetização de adultos etrabalhos manuais com mulheres, visitas às casas de famílias, celebrações ecumênicase acompanhamento de projetos são algumas das atividades <strong>em</strong> que estudantes deteologia – nas ênfases de Diaconia, Educação Cristã e Pastorado – são desafiados aenvolver-se na inserção social.Ação Comunitária: oportunidade para exercitar a liderançaA participação nos projetos da Ação Comunitária implica <strong>em</strong> promover umconstante diálogo entre o saber acadêmico e o saber cotidiano. Esse diálogo éDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 84


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408promovido pela inserção social, via projetos amparados pela universidade,potencializando novas lideranças. Tanto os estudantes quanto as pessoas que moramnos locais onde acontece a inserção são potencializadas para exercitar a liderança eaprender com os saberes <strong>em</strong> diálogo.O perfil dos estudantes do curso de Bacharelado <strong>em</strong> Teologia apresenta umdado interessante. Na sua grande maioria, qu<strong>em</strong> estuda teologia desenvolvia algumtipo de liderança na comunidade de orig<strong>em</strong>. Essa liderança, quando v<strong>em</strong> para ocontexto do Morro do Espelho, fica perdida, pois aqui exist<strong>em</strong> muitos outros líderesque exerciam liderança <strong>em</strong> sua comunidade de orig<strong>em</strong>. O contexto do Morro doEspelho é impróprio para o exercício da liderança. São poucas as pessoas queconsegu<strong>em</strong> exercer o papel de líder num ambiente assim. O que acontece é que nãohá espaço para o exercício da liderança. Nos projetos de Ação Comunitária, épossível exercer a liderança. Além disso, é possível confrontar o perfil de liderança,moldar, (re)trabalhá-lo. Ali estudantes vão coordenar trabalhos, grupos e discussões.Nesses espaços, a liderança, ou melhor, o papel do líder é colocado à prova a cadanovo encontro. Espaço apropriado para refletir o futuro ministério e colocar avocação à prova.A Ação Comunitária é um espaço onde estudantes de teologia pod<strong>em</strong> entrar,ver e ouvir a realidade gritante da desigualdade social brasileira, num contextoespecífico, o da cidade de São Leopoldo. Não é preciso ir para muito longe, aquimuito próximo do ‘lar doce lar’ da “Ilha” Morro do Espelho encontramos umarealidade que nos impacta. Em pesquisa recente 23 , estudamos a condição social deáreas invadidas no município de São Leopoldo. O déficit de reassentamento passivoatinge cinco mil famílias, e a estimativa de crescimento ao ano é de três mil famílias.A Ação Comunitária oportuniza o encontro entre o saber científico e o saber popular.23 WITZKE, Dilceu L.; BOBSIN, Oneide; HAMMES, Lúcio J. (Orgs.). Entre o sonho e a realidade.Estudo sobre a pobreza e a condição social das áreas invadidas <strong>em</strong> São Leopoldo – COREDE Valedo Sinos. São Leopoldo: Oikos, 2007.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 85


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408A formação de profissionais cidadãos, proposta do PNEU, torna-se viável quando osestudantes desejam ser profissionais cidadãos. No entanto, a transformação não épara todos! A oportunidade da experiência na inserção social é estendida a todo ocorpo estudantil da <strong>EST</strong>. Participar ou não depende de cada pessoa <strong>em</strong> particular.Mesmo que a experiência proporcionada pela inserção social a estudantes deteologia não atinja a expectativa desejada, ou seja, de ser uma experiência que nospassa, que nos acontece, que nos toca, ainda assim o projeto de Ação Comunitária jámerece seu mérito por haver facilitado que 41 estudantes saíss<strong>em</strong> da ‘ilha’. Cada umdeles possui o seu t<strong>em</strong>po e a capacidade de elaboração do sentido ou do s<strong>em</strong>-sentidoque a experiência lhe trouxe, quando se tornará um saber de experiência. Passar poruma experiência é passar por algo que nos forma e nos transforma. “Somente osujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação” 24 .ReferênciasALTMANN, Walter. A Faculdade de Teologia na Escola Superior de Teologia. In: HOCH,Lothar (Ed.). Formação teológica <strong>em</strong> terra brasileira. Faculdade de Teologia da IECLB: 1946-1986.São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 171-181.DREHER, Martin N. O papel de Hermann G. Dohms na criação e consolidação da Faculdadede Teologia. In: HOCH, Lothar (Ed.). Formação teológica <strong>em</strong> terra brasileira. Faculdade deTeologia da IECLB: 1946-1986. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 40-50.<strong>EST</strong>. Agenda da <strong>EST</strong>. São Leopoldo, <strong>EST</strong>, 2007.FISCHER, Joachim. Pequena crônica da Faculdade de Teologia. In: HOCH, Lothar (Ed.).Formação teológica <strong>em</strong> terra brasileira. Faculdade de Teologia da IECLB: 1946-1986. SãoLeopoldo: Sinodal, 1986. p. 198-200.FISCHER, Joaquim. Breve História da Faculdade de Teologia. In: HOCH, Lothar (Ed.).Formação teológica <strong>em</strong> terra brasileira. Faculdade de Teologia da IECLB 1946-1986. SãoLeopoldo: Sinodal, 1986. p. 18-32.24 LARROSA, Jorge B. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João WanderleyGERALDI. <strong>Revista</strong> Brasileira de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Departamento deLingüística, n. 19, jan./abr. 2002, p. 26.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 86


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408FÓRUM de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, Natal, 8 mai.1998.KIRST, Nelson. A reforma de estudo: Marca registrada da última década. In: HOCH, Lothar(Ed.). Formação teológica <strong>em</strong> terra brasileira. Faculdade de Teologia da IECLB: 1946-1986. SãoLeopoldo: Sinodal, 1986. p. 51-60.LARROSA, Jorge B. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de JoãoWanderley GERALDI. <strong>Revista</strong> Brasileira de Educação, Universidade Estadual de Campinas,Departamento de Lingüística, n. 19, jan./abr. 2002.SCHUENEMANN, Rolf. Do gueto à participação: O surgimento da consciência sócio-políticana IECLB entre 1960 e 1975. São Leopoldo: Sinodal, <strong>EST</strong>/IEPG, 1992.SOUZA, Ezequiel de. Autonomia e auto-suficiência: Desafios constantes à formação teológica.Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado <strong>em</strong> Teologia) – São Leopoldo, <strong>EST</strong>, 2007.WEINGÄRTNER, Lindolfo. Os inícios da Faculdade de Teologia. In: HOCH, Lothar (Ed.).Formação teológica <strong>em</strong> terra brasileira. Faculdade de Teologia da IECLB: 1946-1986. SãoLeopoldo: Sinodal, 1986. p. 33-39.WITZKE, Dilceu L. Ministério Compartilhado e Ação Comunitária: Um novo paradigma no fazerteológico do Morro do Espelho. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado <strong>em</strong> Teologia)– São Leopoldo, <strong>EST</strong>, 2007.WITZKE, Dilceu L.; BOBSIN, Oneide; HAMMES, Lúcio J. (Orgs.). Entre o sonho e a realidade.Estudo sobre a pobreza e a condição social das áreas invadidas <strong>em</strong> São Leopoldo – COREDEVale do Sinos. São Leopoldo: Oikos, 2007.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 87


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Aprendendo a tecer do avessoPor Felipe Gustavo Koch Buttelli *Resumo:Este artigo visa trazer uma abordag<strong>em</strong> diferenciada para a reflexão sobre as coerções sociaise imposições de papéis sociais distintos a mulheres e homens. Para isso, faz uso de umaestória infantil, da Tecelina, personag<strong>em</strong> mulher que promove uma ruptura com a cultura dasmulheres de sua família. A interpretação desta história faz uso de el<strong>em</strong>entos da sociologia eda reflexão de gênero para apresentar uma proposta alternativa de ruptura com a tradiçãoandrocêntrica para dentro do universo da teologia. Analisando a história do rompimentocom uma tradição familiar vivida pela Tecelina, formulam-se perguntas a respeito da históriade mulheres e vislumbram-se alguns caminhos, sugeridos pela própria estória infantil, para aconstrução de novos modos de ser f<strong>em</strong>ininos e masculinos. Por isso, este texto quer ser umapequena contribuição para a prática existente <strong>em</strong> nossas igrejas e para o discurso teológico.Palavras-chave:Hermenêutica infantil – Gênero – Ruptura – Papéis sociais1. Uma proposta inadequada?Este pequeno esboço de reflexão não se adapta perfeitamente aos padrões depublicação científica. É um pouco diferente. É diferente porque tenciona interpretarcriativamente uma estória infantil. Ora, poucas vezes no meio acadêmico teológicopod<strong>em</strong>os encontrar uma hermenêutica que incida sobre obras do campo daliteratura. Se isto já é difícil, qu<strong>em</strong> dirá uma hermenêutica teológica de uma estóriainfantil? Por isso, esta abordag<strong>em</strong> é conscient<strong>em</strong>ente inadequada à nossa maneira defazer ciência. Acredito que ela não seja menos científica. Acho até que, <strong>em</strong> nível deprofundidade, pode ir além do que muitos trabalhos que não se envolv<strong>em</strong> com oel<strong>em</strong>ento da paixão, da criatividade e da esperança incorporada no discurso.* Felipe Gustavo Koch Buttelli é teólogo brasileiro, mestrando <strong>em</strong> Teologia no Programa de Pós-Graduação da <strong>EST</strong>,e direciona sua pesquisa na Teologia Prática à área da liturgia, do gênero e dasociologia. Bolsista do CNPq.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 88


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Esta proposta também é inadequada pelo fato de considerar passível de umaaveriguação científica manifestações culturais artísticas das mais diferentes ordens.Considero, dando atenção a este tipo de hermenêutica, ser o campo destasmanifestações, talvez, aquele que mais profundamente e mais convincent<strong>em</strong>enteexpresse verdades necessárias e <strong>em</strong>ergentes, superando a esterilidade do discursoteórico frio e desengajado. Esta proposta é, portanto, pretensiosa por querer inovar etecer com outros fios a nossa história, nossa maneira de ver o mundo, propriamenteteológica, podendo ter a própria teologia retecida, e, por fim, talvez um pouco maiscapaz de interagir criativamente com o mundo, à procura de novas maneiras devivenciá-lo.Pelo fato deste tipo de análise ser bastante incipiente e experimental, elaestará também exposta a uma série de críticas, certamente pertinentes, o que espero,no entanto, não apagar a riqueza e profundidade da estória infantil <strong>em</strong> si, n<strong>em</strong> opouco a contribuir que esta hermenêutica teológica, numa perspectiva de gênero,oferecerá.2. Um pequeno resumo da estóriaO objeto desta análise é o livro infantil escrito por Gláucia de Souza,ilustrado por Cristina Biazetto, chamado Tecelina 1 . Pelo fato de o livro serrelativamente extenso e por virtude dos direitos de publicação será possível apenasresumirmos a estória. Recomendamos, no entanto, a leitura do livro. Tanto pela suaprofundidade e pela beleza enriquecedora das ilustrações, como para fins decompreender melhor esta leitura teológica do texto.1 SOUZA, Gláucia de. Tecelina. Ilustrações de Cristina Biazetto. 4. ed. Porto Alegre: Editora Projeto,2007. 40p.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 89


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Inicialmente, a autora quer contar a história da Tecelina, mas para issoprecisa retornar a r<strong>em</strong>otos t<strong>em</strong>pos da família desta personag<strong>em</strong>, para compreende-lamelhor. Ela precisa retornar à “[...] avó da avó da avó [...] porque, naquela família, ascoisas se repetiam [...]” 2 .A primeira personag<strong>em</strong> é dona Gertrudes, que morava no interior e, para suafamília não passar frio, tecia roupas de inverno. Tecia dia e noite, até que nasceu suafilha. A filha, conforme o pai, tinha “cara de Gertrudes” 3 , por isso, foi chamadatambém de Gertrudes, mas tinha o apelido de Tudinha. A Mãe, dona Gertrudes,continuava tecendo, até que sua filha casou e ganhou de presente todo o enxovaltecido pela mãe, que disse: “O que foi tecido é presente” 4 .Assim continuou por algumas gerações: nasceram Dinha, Nhãnhã e Didi.Todas se chamavam Gertrudes e teciam enxovais para suas filhas. Até que nasceuTude. Tudo que ela tecia saia do avesso, se queria tecer uma coisa, saia outra. Tudeera diferente. Ela casou-se com Técio, que gostava da maneira como ela tecia e queaprendeu com ela a tecer um pouco do avesso também. Os dois receberam o enxovalda mãe de Tude que disse “o que foi tecido é presente”, mas preferiram decorar suacasa com aquilo que eles mesmos teciam.Ao nascer a filha de Tude e Técio, todos queriam que ela se chamasseGertrudes, mas Tude preferiu chama-la de Tecelina, pois parecia com todos e com oTécio. Tecelina foi crescendo e aprendendo a tecer do avesso com Tude e Técio.Quando Tecelina noivou, Técio e Tude teceram um enxoval para ela, e, ao dá-lo,Tude se atrapalhou e falou: “O que foi Tecido é passado”. Todos riram e Tecelinaacabou não se casando.2 SOUZA, 2007, p. 7.3 SOUZA, 2007, p. 10.4 SOUZA, 2007, p. 11.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 90


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Tecelina vivia sozinha <strong>em</strong> sua casa, que era b<strong>em</strong> diferente. Tudo era coloridoe tecido por ela própria. Ela tecia suas coisas aos pouquinhos e desfazia, só pra fazerde novo. Ela também usava pedacinhos de fios que sobravam. Na frente da casahavia uma árvore, para a qual Tecelina, cada dia, tecia um fruto diferente, sendo umdia pirulito, outro chocolates, outro balas, etc. Como ela era meio do avesso, teciacoelhos brancos para o natal e parecia não levar <strong>em</strong> conta muito as noções de t<strong>em</strong>po.Tecelina tecia s<strong>em</strong>pre aos pedacinhos, lentamente, desfazendo tecidos parapoder fazer de novo. Certa vez ela tinha uma vizinha que estava grávida e resolveutecer sapatinhos de lã para o bebê. Ela teceu tantos pés esquerdos rosas que a linhaacabou e ela teve que usar, então, linha amarela para os pés direitos. Toda avizinhança gostou e muitos correram para comprar de Tecelina, achando que eramoda ou superstição.Certa vez lhe bateu um chinês na porta e se apaixonou por ela. Elessentaram-se para tomar chá e conversaram por muitos anos. Até que ele teve que ir<strong>em</strong>bora. Tecelina não gostou de ficar sozinha e queria tecer um caminho para chegaraté a China.Outra vez, ela ouviu que abriria um shopping center e resolveu tecer chapéusde todos os tipos para as pessoas não esquentar<strong>em</strong> a cabeça. Assim, quando foi aoshopping, não sabia onde colocar todos seus chapéus. Achando uma mesa livrenuma pizzaria, colocou seus chapéus lá. No que vieram os seguranças do localperguntar a ela se era credenciada. Sua resposta foi simples: “Não! Sou Tecelina!” 5 .Tecelina gostava muito de contar suas histórias e tomar chá. No entanto, aspessoas já não queriam mais ouví-las, ou porque ela s<strong>em</strong>pre repetia as mesmashistórias ou porque as pessoas não gostavam de chá. As únicas que gostavam deouvir suas histórias eram as crianças, que não viam probl<strong>em</strong>a <strong>em</strong> ouvir a mesma5 SOUZA, 2007, p. 33.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 91


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408história muitas vezes. Tecelina se preocupava com o que faria com tanta coisa que elatecia. Sua preocupação passou quando ela l<strong>em</strong>brou que tudo que tecia era tambémretecido. Assim, se alguém não precisasse dos seus panos, poderia destecê-los paratecer de novo. Mas isso só poderia saber qu<strong>em</strong> tece do avesso.Assim, a autora conclui que aprendeu a tecer do avesso com a Tecelina, queaprendeu com a Tude e com o Técio, que aprenderam com tantas outras pessoas.3. Uma proposta de interpretação da estória da TecelinaEsta proposta de hermenêutica cria subdivisões que, a rigor, não exist<strong>em</strong> notexto. O texto é dividido, portanto, <strong>em</strong> cinco partes. Na primeira, reflete-se sobre acontinuidade da tradição da família existente na estória da Tecelina que é projetadasobre a história das mulheres, como um todo.Num segundo momento é analisado aquilo que se pode chamar de gênese daruptura. Serão expostos os caminhos anteriores à ruptura que não são ainda a própriaruptura.Posteriormente será abordada a personag<strong>em</strong> Tecelina. Em sua análisepretende-se compreender todos os fatores que compõ<strong>em</strong> o processo de ruptura queTecelina efetua e, <strong>em</strong> alusão, o processo de ruptura histórica das mulheres.No quarto tópico será analisada a recepção desta ruptura, quais resultadosela pode ocasionar. Em três ex<strong>em</strong>plos da vida da Tecelina, propõe-se averiguar quaissão resultados do seu processo de libertação.Como último ponto, se fará a reflexão a respeito da perspectiva decontinuidade deste processo de libertação, de ruptura com o modo de ser dasantepassadas da Tecelina. Qu<strong>em</strong> continuará este processo que nela inicio-seDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 92


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408plenamente? Quais são os requisitos para que haja possibilidade de continuidadeneste processo?A hermenêutica será feita <strong>em</strong> processo de “costura”. Comentáriosinterpretativos serão efetuados logo após uma citação ilustrativa do próprio texto daGláucia de Souza.3.1 Tradição recebida, história repetida: O que é tecido é presente“Eu s<strong>em</strong>pre gostei de contar história, porque história é que n<strong>em</strong> fio: a gente tece e ofio cresce, a gente inventa e tudo que a gente tenta se transforma <strong>em</strong> coisa nova.” 6A análise a que me proponho é a de considerar a história como um tecidoque foi relegado a nós por uma historiografia que mantêm a mulher enclausurada adeterminados papéis. Esses papéis, estabelecidos por uma cultura masculina <strong>em</strong>asculinizante, nos imped<strong>em</strong> de enxergar a determinante contribuição das mulheresna história 7 . A opção por uma ficção infantil justifica-se de duas maneiras: a) Adificuldade <strong>em</strong> si de se <strong>em</strong>preender uma averiguação linear na história depersonagens mulheres e b) o recurso ao romance e ficctício como uma abordag<strong>em</strong>talvez mais verossímil da história de personagens mulheres, enriquecida assim pelaimaginação e pela consciência restabelecida da importância destas para a constituiçãodo que somos.“Essa história começou com a avó da avó da avó... lá no início da família da Tecelina,porque, naquela família, as coisas se repetiam de avó para neto, de pai para filho, geração egeração.” 86 SOUZA, 2007, p. 4.7 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 100-1<strong>06</strong>;PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p. <strong>13</strong>-40.8 SOUZA, 2007, p. 7.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 93


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408A estória de Tecelina é resultado da transmissão e da continuidade de ummodo de ser, supostamente, f<strong>em</strong>inino, o qual se preservava e se incutia na geraçãoseguinte.“O que foi tecido é presente!” 9Pode-se imaginar esta frase, que se repete diversas vezes no texto (e talvez navida de mulheres), a partir de duas possibilidades de significado: a) o significadoexplícito – o presente é um dom, um agrado, um presente mesmo, o qual se recebecom gratidão. Acrescenta-se o fato de a filha s<strong>em</strong>pre dizer que não queria o enxovalde presente, quando na verdade havia ficado satisfeita <strong>em</strong> recebê-lo. Ela , <strong>em</strong> si, nãoprecisaria tecer seu próprio enxoval (ops! Sua própria história?); b) O significadoimplícito – O presente como noção de t<strong>em</strong>poralidade. O que foi tecido de geração <strong>em</strong>geração é entregue ao presente, de forma que nele mesmo, não se possa encontrarnovas alternativas de vida.“Muitas Gertrudes nasceram naquela família. Todas com o nome igual, mas comapelidos diferentes: uma era Tudinha, outra Nhãnhã, mais outra Didi... Todas tecendo ecrescendo.” 10Também as mulheres da história pod<strong>em</strong> ter sido e ser s<strong>em</strong>pre a mesmaGertrudes – assim como os homens que as nomeiam. A consagração desde a infânciade um modo de ser Gertrudes é o instrumento mais poderoso de inculcação 11 . Quaispod<strong>em</strong> ser eles? A educação familiar? Educação escolar, tradição social, tradiçãoreligiosa, etc.? E a pregação, a liturgia e o culto cristão, pod<strong>em</strong>?9 SOUZA, 2007, p. 11.10 SOUZA, 2007, p. <strong>13</strong>.11 BOURDIEU, 2007, p. <strong>13</strong>-54.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 94


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 64083.2 Tecer do avesso: criando o novo, o diferente“Até que nasce Tude. Tude era diferente. Passou o t<strong>em</strong>po, ela aprendeu a tecer, mas otecido da Tude era uma tristeza! Pelo menos era o que diziam...” 12Por acidente (?) Tude tecia diferente! Pode-se, pelo texto, inferir que tecerdiferente só pode ser apreciado como algo negativo. Tristeza e que mais sentimentosnegativos se pode ter ao ver alguém que rompe com um modo de ser, de tecer? Estediferente pode ser considerado involuntário? Acho que v<strong>em</strong> da inspiração, Tude éuma artista, inspirada. Será que Deus não faz uso destas inspirações involuntáriaspara recriar a história humana?“Tude não parava. Tentava e tecia, mesmo s<strong>em</strong> saber o que iria sair.” <strong>13</strong>“A Tude n<strong>em</strong> pôde acreditar que alguém fosse gostar daquilo que ela estava tecendo.Mas Técio gostou mesmo. Fez o tapete virar bolsa e pendurou no pescoço. Ele ficou tão<strong>em</strong>polgado que quis logo aprender a tecer. E conseguiu! Só que, como ele aprendeu com aTude, aprendeu um pouco do avesso.” 14Seria Técio um novo hom<strong>em</strong>? Como pôde ele gostar do que ela tecia, já queera uma tristeza? Pode-se por aí afirmar, não só a existência da participação dehomens na reconstrução da história das mulheres, mas a necessidade de que sejauma obra conjunta. Não se esqueçam que a Gertrudes foi assim nomeada pelo pai,que imputava sobre a menina a s<strong>em</strong>elhança da mãe, a qual tecia como ele gostava. Orompimento com uma cultura pode até acontecer com a militância de mulheres sós,mas nunca será completo s<strong>em</strong> a participação dos Técios, que gostam do que estasmulheres diferentes tec<strong>em</strong> e as apóiam, sendo eles mesmos desconstrutores de umacultura específica.12 SOUZA, 2007, p. 14.<strong>13</strong> SOUZA, 2007, p. 15.14 SOUZA, 2007, p. 16.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 95


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408“O que foi tecido é presente! A Tude aceitou o presente de casamento, mas, depois decasada, usava mesmo as coisas que ela e o Técio teciam.” 15Na minha leitura, esta frase d<strong>em</strong>onstra que o vínculo com a tradição nãopôde ser ainda completamente rompido por Tude. Ela ainda é uma Gertrudes,<strong>em</strong>bora já tenha encontrado o Técio para juntos e dentro de casa tecer<strong>em</strong> seu próprioenxoval <strong>em</strong> conjunto. O rompimento com a cultura da família ainda não foicompleto, pois Tude ainda se viu na obrigação de receber o enxoval da mãe, aindaque quisesse ela mesma, junto com o Técio, tecer o enxoval para sua própria casa.“....Tude e Técio teceram uma manta de bebê que parecia um bebê. Foi quando nasceua filha deles. (...) E queriam que a menina se chamasse Gertrudes também, mas a Tudedisse:’Se ela parece com todos e com o Técio, vai se chamar Tecelina’”. 16Tude e Técio conjuntamente criaram a possibilidade para o rompimento coma tradição e cultura, denominada Gertrudes. Juntos teceram a Tecelina, que foi assimchamada pela negação de sua mãe <strong>em</strong> continuar vinculada àquele modo de ser.3.3 Tecer e retecer: a minha história e a tua“Mas a Tecelina cresceu diferente. Aprendeu a crescer com a Tude e o Técio, por isso,tecia do avesso”. 17Pod<strong>em</strong>os pensar agora na importância de se aprender a tecer do avesso! Enão ver o próprio “avesso” como uma categorização negativa, mas criativa.Aprender a ser do avesso requer a participação de homens e mulheres “avessos”para a construção de maneiras de ensinar e inculcar valores e modos de ser“avessos”. Isto significaria pensar nas instituições sociais do avesso: escola do avesso,15 SOUZA, 2007, p. 17.16 SOUZA, 2007, p. 17.17 SOUZA, 2007, p. 18.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 96


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408família, imprensa, mídia do avesso, um culto (missa) do avesso e também umapregação da Igreja do avesso.“No dia do noivado de Tecelina, foi a vez de Tude com o Técio fazer<strong>em</strong> o enxoval dafilha. B<strong>em</strong> que a Tecelina gostou do presente, mas, para não quebrar a tradição, fingiu quequeria fazer o enxoval ela mesma.Nesta hora, a Tude teria que dizer “o que foi tecido é presente!”, só que ela era mesmoatrapalhada e disse: ‘O que foi tecido é passado’”. 18Como alguém vinculado à reflexão litúrgica, eu consideraria este momentoum verdadeiro rito de passag<strong>em</strong>. Pierre Bourdieu os denomina ritos de instituição,pois têm a capacidade de instituir valores 19 . Neste momento, o rompimento com umatradição é ritualizado. Sab<strong>em</strong>os a importância dos gestos, mas também da palavrafalada. Tude e Tecelina representaram (noção de performance 20 ) uma nova realidade.E assim, esta representação tornou-se realidade. Por este fato, no conto, Tecelinaperdeu o noivo, que achou tudo muito estranho. Eu atentaria, nesta leitura alegóricaque faço, para que consider<strong>em</strong>os o poder das palavras e gestos que faz<strong>em</strong>os noespaço do culto, pois, como vimos, esta performance (ou representação) t<strong>em</strong> o poderde instituir uma realidade – a vigente ou uma nova.“Toda vez que Tecelina tecia, usava pedacinhos de linha que sobravam de outrosnovelos com pedacinhos que ela achava...” 21Às vezes só é possível tecer o diferente usando retalhos perdidos nocaminho. Construir é reconstruir fazendo uso dos pedaços de história que estãoperdidos e inutilizados. Eu chamo de insignificantes significantes.18 SOUZA, 2007, p. 18.19 BOURDIEU, Pierre. O que Falar quer Dizer: A economia das trocas lingüísticas. Portugal: DIFEL,1998. p. 109-121.20 LANGDON, E. Jean. Performance e Preocupações Pós-Modernas na Antropologia. In. TEIXEIRA,João Gabriel (Org.). <strong>Revista</strong> Performáticos, Performance e sociedade. Brasília: UNB, 1998. p. 23-28.21 SOUZA, 2007, p. 20.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 97


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408“- O quê? Coelhos brancos para o Natal?É que a Tecelina não só tecia do avesso: ela mesma era avessa e montava para cadadata a festa que queria, a festa que podia. [...] E daí? Ont<strong>em</strong> será junho, amanhã foi nov<strong>em</strong>broe hoje é hoje. Natal com balões, v<strong>em</strong> ver...” 22A alusão à t<strong>em</strong>poralidade e à capacidade de transcendê-la pode estarrelacionada com um dom ou um novo modo de ser que recrie o que já existe, quereconheça no que já existe algo novo, diferente. Para mim, isto expressa anecessidade de uma constante ruptura (reforma?) epist<strong>em</strong>ológica, que acarrete umanova forma de ver o mundo, de nomeá-lo e de fazer uso daquilo que existe nele.“Tecelina fez cara de isto-eu-já-não-me-l<strong>em</strong>bro e foi então que eu vi o que era tecer <strong>em</strong>pedacinhos: era voltar e retecer, era pular pedaços, era contar os pontos e as palavras, e,depois, pular de propósito para poder recontar. [...] fazia questão de tecer o presente com opassado e assim o presente parecia outros dias.” 23Este recondicionamento do t<strong>em</strong>po, de que Tecelina faz uso, na analogia daruptura epist<strong>em</strong>ológica que projeto sobre o conto, significa que um novo modo depensar e de ser nos instrumentaliza a reinterpretar a própria história. Não para fazeruso e tendenciosamente reconstruí-la a favor de minhas idéias, mas para ver nela oque a epist<strong>em</strong>ologia antiga não viu, não olhou, não refletiu e o pior, não escreveu,não registrou – o que dá a falsa impressão de que não existiu.3.4 Três histórias da Tecelina – três questionamentosa) Os sapatinhos do avesso que viraram moda: “A vizinhança viu e pensou queaquilo era a moda dos pés desencontrados, ou que o pé direito era diferente do esquerdo paradar sorte e fazer com que o bebê começasse a vida com o pé direito luminoso.” 2422 SOUZA, 2007, p. 23.23 SOUZA, 2007, p. 24-25.24 SOUZA, 2007, p. 26.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 98


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Para mim, isto é um ex<strong>em</strong>plo da possibilidade de que este novo modo de serpossa se tornar – ainda que do avesso e diferente – algo atrativo, que as pessoasgost<strong>em</strong>, e que faça sentido pra elas. Seria a prova de que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o diferente éruim.b) O entrelace das histórias do chinês e da Tecelina. “A Tecelina começou acontar as suas histórias também.” 25A ruptura habilita Tecelina também a contar suas histórias. Faz parte doprocesso de ruptura com a cultura masculina e masculinizante que as personagensque tec<strong>em</strong> diferente cont<strong>em</strong> suas histórias. Contar uma história diferente é construirum mundo diferente. Dar nomes diferentes a homens e mulheres é, por si só, dar achance de surgir<strong>em</strong> homens e mulheres diferentes.c) A venda dos Chapéus no shopping center. “ ‘A senhora é credenciada?’ –‘Não! Sou Tecelina!’” 26O probl<strong>em</strong>a do credenciamento é aqui refletido. Não deixa de ser umaquestão de reconhecimento e de autoridade. Tecelina, pod<strong>em</strong>os dizer, <strong>em</strong>bora tenhadesenvolvido um material que visa ajudar pessoas, por si só não consiste autoridade.Ela e o que ela produz requer<strong>em</strong> reconhecimento e credenciamento por parte daautoridade 27 . Mesmo assim, ela cria espaço para oferecer aquilo que é o resultado deseu dom. Esta analogia nos r<strong>em</strong>eteria à reflexão a respeito dos jogos de poder e dereconhecimento de discursos. O discurso novo, de ruptura epist<strong>em</strong>ológica não é umdiscurso autorizado 28 . Pod<strong>em</strong>os refletir dentro do campo religioso (espaços religiosose o discurso teológico) qu<strong>em</strong> são as pessoas que representam a rupturaepist<strong>em</strong>ológica e qu<strong>em</strong> são as autoridades com poder de autorizar ou desautorizarum discurso.25 SOUZA, 2007, p. 29.26 SOUZA, 2007, p. 33.27 FOUCAULT, Michel. A Ord<strong>em</strong> do Discurso. 8. ed. São Paulo: Loyola, 2002.28 BOURDIEU, 1998, p. 93-108.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 99


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 64083.5 Qu<strong>em</strong> continuará tecendo?“Passado um t<strong>em</strong>po, também eu já me l<strong>em</strong>bro daquela e de outras histórias porquequase ninguém mais vai visitar a Tecelina, mesmo quando ela faz chá. Penso que isso aconteceporque as pessoas não gostam muito de chá ou não têm t<strong>em</strong>po de sentar e ouvir históriasrepetidas. Só qu<strong>em</strong> gosta de ouvir reprise de histórias são as crianças que lê<strong>em</strong> dez vezes amesma história [...] e, quando tec<strong>em</strong> histórias, tec<strong>em</strong> do avesso, que n<strong>em</strong> Tecelina.” 29Neste tocante, gostaria ainda de fazer uma menção aos mecanismos que sãoestabelecidos para impedir o rompimento com a tradição 30 . A ridicularização de umdiscurso taxando-o de repetitivo, desinteressante, “papo de mulher”, o rótulo d<strong>em</strong>achismo às avessas, a ridicularização das personagens que promov<strong>em</strong> o discurso,as piadas preconceituosas, todas estas são as expressões e o modo de operar de qu<strong>em</strong>não se interessa pela mudança. São as pessoas que não quer<strong>em</strong> ouvir a Tecelina, quepod<strong>em</strong> justificar, dizendo que “não gostam de chá”.“[...] estava triste. Disse que não sabia onde iria parar tanta coisa que tecia: e sejogass<strong>em</strong> tudo fora? [...] tudo que tecia era tecido e retecido, por isso, quando ela nãoprecisasse mais de seus panos, alguém iria destecê-los para tecer de novo! Do avesso? Só qu<strong>em</strong>tece é que sabe...” 31“Hoje, eu aprendi a tecer também, a tecer meu próprio tecido. E hoje teço do avessoporque aprendi com Tecelina, que aprendeu com Tude e Técio [...] até tecer uma manta ... evirar bebê.” 32Somente as crianças que ouv<strong>em</strong> os retalhos de Tecelina serão capazesreconstruir, com aquilo que sobrou, com os pedacinhos insignificantes, uma novahistória, cada uma e cada um a sua maneira, mas para isso, t<strong>em</strong> que aprender a tecerdo avesso.29 SOUZA, 2007, p. 35-36.30 BOURDIEU, 2007, p. 45-54.31 SOUZA, 2007, p. 36.32 SOUZA, 2007, p. 38.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 100


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 64084. Considerações finaisPode alguém ainda questionar-se o que t<strong>em</strong> de teológica esta proposta deinterpretação. De fato, muitos dos conceitos apresentados são utilizados pelasociologia ou pela antropologia. Pode-se afirmar ainda que as constatações aquifeitas não são necessariamente teológicas e que se adaptam mais a uma reflexão naperspectiva de gênero. Nenhuma destas afirmações estaria equivocada, n<strong>em</strong> mesmoa que considera esta uma reflexão teológica. Talvez, poderíamos afirmar queteológica ela não é, mas evangélica. Evangélica porque ela está <strong>em</strong> continuidade comum específico modo de interpretar a palavra de Deus, ou seja, libertador.A estória das sucessivas Gertrudes é aqui interpretada como a história dasmulheres. O compromisso teológico de proclamar libertação é necessariamente o deproclamar a ruptura com o modo de ser Gertrudes. Não que seja necessário evitarnovas Gertrudes, mas que haja a possibilidade de surgir<strong>em</strong> Tecelinas. Por isso, osesforços da sociologia para identificar como ocorr<strong>em</strong> as coerções sociais e a reflexãodas próprias mulheres para descobrir um novo modo de ser dev<strong>em</strong> coadunar nointuito de contribuir para a vocação teológica engajada de proclamar um outromundo possível a homens e mulheres. Assim, a estória da Tecelina deve ser levada<strong>em</strong> conta por aqueles que se identificam com uma proposta teológica efetivamentelibertadora, já que ela aponta sutilmente para aquilo que muitos homens e mulheresnecessitam: a ruptura.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 101


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Teologia: Tentativas e Tentações: discutindo a relação dateologia com o cotidiano *Por Iuri Andréas Reblin **Resumo:O presente ensaio apresenta alguns perigos resultantes do pensamento dicotômico presentena teologia. A lacuna surgida entre a vivência cotidiana e a acad<strong>em</strong>ia, a Igreja, as instituições,forçou a necessidade de uma teologia que fizesse a ponte entre a teoria e a prática: a TeologiaPrática. No entanto, os desafios permanec<strong>em</strong>, pois a construção do saber teológico mantémuma estruturação valorativa, definindo as preferências de seus interlocutores, mesmo queimplicitamente. Essas preferências revelam alguns perigos quando se pensa na relação entrea teologia e o cotidiano: a teologização do cotidiano e a cotidianização da teologia. Por fim, otexto esboça uma proposta: enxergar a cotidiano e a teologia ambiguamente, i.e.,compreendê-las como realidades dinâmicas que não se exclu<strong>em</strong> mutuamente, mas queinterag<strong>em</strong> e constitu<strong>em</strong> o universo humano.Palavras-chave:dicotomia – teologia – cotidiano – ambigüidade1. Tentativas de aproximar a teologia e o cotidiano: Teologia PráticaA teologia cristã é nada mais e nada menos que uma conversação sobre avida que ocorre na medida <strong>em</strong> que ouvimos as vozes e cont<strong>em</strong>plamos oshorizontes do mundo bíblico.Rub<strong>em</strong> Alves 1O probl<strong>em</strong>a da relação entre a teologia e o cotidiano é que ambas asrealidades são pensadas a partir do prisma da dicotomia. Separa-se a religião oficial* O presente texto é parte integrante de uma monografia realizada para o cumprimento dasexigências acadêmicas do curso de mestrado no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG) daEscola Superior de Teologia (<strong>EST</strong>), <strong>em</strong> São Leopoldo, RS.** Teólogo, mestrando no IEPG, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq).1 ALVES, Rub<strong>em</strong>. O Enigma da Religião. Petrópolis: Vozes, 1975. p. <strong>13</strong>6.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 102


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408da religião popular, a teologia da religiosidade ou da espiritualidade do crente, aciência do senso comum e do popular, o trabalho intelectual do trabalho manual, aterra do céu. “De modo geral, as ciências sociais e a filosofia prefer<strong>em</strong> encarar aCultura Popular pelo prisma das dicotomias” 2 . É fato que a teologia se separou de talmodo do cotidiano que houve a necessidade de se criar uma Teologia Prática, i.e,uma ciência teológica que fizesse a ponte entre a acad<strong>em</strong>ia e o cotidiano, entre o saberteológico e a vida eclesial. Como um balão de ar quente, a teologia alçou um vôomuito distante de seu chão. A Teologia Prática surge como um contrapeso pararecuperar o que a teologia perdeu: o contato com o solo. Assim, houve[...] a necessidade de se criar uma disciplina teológica especial pararecuperar a dimensão prática da teologia, depois de 300 anos deprotestantismo, por si só é um indicativo de que a própria teologia sedesviou de sua mais genuína vocação, a saber, de ser teologia prática.Ela se afastou do povo da Igreja na base e passou a freqüentar oscírculos eruditos das universidades. A Teologia Prática surgiu paracorrigir uma distorção. 3O engraçado é que os tripulantes do balão de ar quente não perceberam queeles não são nativos do balão, não são como extraterrestres que vêm a Terra fazersuas experiências e abduzir pessoas, mas nativos do solo de onde o mesmo balãoalçou seu vôo. Em outras palavras, a Teologia Prática t<strong>em</strong> seu lugar de nascimento naacad<strong>em</strong>ia (no balão) e não no cotidiano (no solo). A Teologia Prática é implantada naUniversidade de Berlim por Friedrich Schleiermacher <strong>em</strong> 1810 e, desde então, passa aser um tormento para teólogos e teólogas, por causa da dificuldade de encontrar seulugar específico como ciência teológica ou como práxis refletida e, assim, tornar-secapaz de intermediar a teologia e a Igreja, a teoria e a prática.2 CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo:Brasiliense, 1986. p. 123.3 HOCH, Lothar C. O Lugar da Teologia Prática como disciplina teológica. In: SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (Org.). Teologia Prática no Contexto da América Latina. São Leopoldo:Sinodal: ASTE, 1998. p. 24-25.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 103


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Essa dificuldade pode ser constatada na diversidade das características,ênfases e funções atribuídas à Teologia Prática ao longo de sua história. A TeologiaPrática já chegou a ser definida como uma teoria técnica que serve como metodologiapara aplicar a teologia à realidade; como reflexão teológica sobre a ação da Igreja;como a teorização de t<strong>em</strong>as relevantes para a caminhada eclesial, para citar algunsex<strong>em</strong>plos 4 . Além disso, com o surgimento da Teologia da Libertação na AméricaLatina nos anos de 1960 e 1970, a Teologia Prática perdeu seu papel efetivo. Issoocorreu devido ao peso que a Teologia da Libertação atribuiu à teologia comovivência da fé, sendo esta interpretada a partir da realidade e para a realidade 5 .Segundo Lothar Hoch, a tarefa específica da Teologia Prática é “l<strong>em</strong>brar asd<strong>em</strong>ais disciplinas [teológicas] da vocação prática de toda a teologia” 6 . Essa tarefaespecífica se desdobra numa dupla função: 1) “ser um posto avançado de escuta daspreocupações e angústias que atormentam as pessoas e a sociedade na atualidade” 7 ,a partir de uma inter-relação com as ciências sociais, e 2) garantir que a teologia setorne de fato uma vivência da fé, ou seja, “a Teologia Prática julga se a prática daIgreja é coerente com os postulados e com o discurso teológico que ela <strong>em</strong>ite” 8 . Oautor ainda ressalta que o diálogo entre a teologia e a realidade t<strong>em</strong> que acontecerdentro de uma determinada ótica teológica, a fim de que a teologia não perca suafunção teologal, e considera a teologia prática a “advogada do mundo junto àIgreja” 9 .Nessa mesma direção, a partir de uma abordag<strong>em</strong> histórica, ChristophSchneider-Harpprecht constata que a Teologia Prática possui os seguintes probl<strong>em</strong>asa ser<strong>em</strong> superados: a) a sua compreensão como ciência técnica, b) a diferenciaçãoentre clero e laicato, i.e., entre os que sab<strong>em</strong> e estudaram e os que não-sab<strong>em</strong>; c) a4 Cf. HOCH, 1998, p. 26-29.5 Cf. HOCH, 1998, p. 29-31.6 HOCH, 1998, p. 31.7 HOCH, 1998, p. 31.8 HOCH, 1998, p. 32.9 HOCH, 1998, p. 32.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 104


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408dominação da teologia sobre as ciências sociais no diálogo interdisciplinar e d) ovínculo da Teologia Prática à Igreja 10 . O autor enfatiza que “a Teologia Prática [...] éfeita pelos m<strong>em</strong>bros de comunidades cristãs que quer<strong>em</strong> participar do discursoteológico com o auxílio de pessoas especialmente formadas” 11 e que os métodos daTeologia Prática são “a hermenêutica e a dialética, quer dizer, interpretação, análisecrítica e planejamento de atos de linguag<strong>em</strong> que visam mudanças sociais [...] seuobjetivo é a libertação dos sujeitos, baseada na fé cristã, numa sociedade livre ejusta” 12 .Como se torna perceptível, a teologia sentiu a necessidade de retornar aocotidiano, já que foi enclausurada nos mosteiros e nas universidades. Porém, essatentativa resume-se no surgimento de novos métodos e de novas teorizações queconsistiram na teologia dita como Teologia Prática. Além disso, os próprios objetivosdessa Teologia Prática centralizam-se na vivência eclesial, a práxis é a partir e para acomunidade cristã. Percebe-se também que a Teologia Prática ainda não se relacionade forma cooperativa com as outras ciências: ora ela se confunde com elas, ora ela asconsidera simples instrumentos de análise da realidade. É necessário, pois, buscar oespecífico da teologia, para que ela não se confunda com as outras ciências.Por fim, é perigoso fragmentar a teologia <strong>em</strong> áreas específicas, pois aTeologia Prática precisa se alicerçar na teologia bíblica e na teologia histórica; casocontrário, ela estaria apenas voltada para a vivência hoje, esquecendo-se de suacaminhada. A história do cientificismo t<strong>em</strong> mostrado que a especialização fecha osolhos para a transdisciplinariedade. É justamente essa fragmentação do saber quetorna a especialidade mais importante e mais valorizada que a totalidade. Conformeexpressa Rub<strong>em</strong> Alves, “[...] pense no senso comum como as pessoas comuns. E a10 Cf. SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph. Aspectos históricos e concepções cont<strong>em</strong>porâneas daTeologia Prática. In: SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (Org.). Teologia Prática no Contexto daAmérica Latina. São Leopoldo: Sinodal: ASTE, 1998, p. 42-43.11 SCHNEIDER-HARPPRECHT, 1998, p. 57.12 SCHNEIDER-HARPPRECHT, 1998, p. 59.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 105


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408ciência? Tome essa pessoa comum e hipertrofie um de seus órgãos, atrofiando osoutros” <strong>13</strong> .Pois b<strong>em</strong>, se a teologia contínua (i.e., a teologia que acontece nos meandros davida e é feita pelo sujeito ordinário, o qual elabora respostas para suas questõesexistenciais a partir dos símbolos, dos espaços e das relações que ele estabelece com omeio no qual ele está interagindo e no qual ele está transitando) fosse compreendidaa partir da Teologia Prática, ainda assim permaneceriam as dicotomias, pois a teologiacontínua ultrapassa as fronteiras eclesiais e se distancia significativamente delas.Outro probl<strong>em</strong>a a ser considerado ainda é que o responsável incumbido de analisar arealidade e a “aplicar” a teologia é o próprio teólogo. É ele que verá, julgará e agirá(para aludir ao método da teologia latino-americana). Isso significa que a construçãodo saber teológico permanece presa aos clérigos e aos doutos. Ele não sai do círculovicioso. Parece que os tripulantes do balão de ar quente passaram tanto t<strong>em</strong>po noscéus que esqueceram que vieram da terra, até porque, com o t<strong>em</strong>po, a posição lá nasalturas vai se tornando cômoda, e assim se torna difícil descer. Trocando por miúdos,a teologia também encontra dificuldades e desafios <strong>em</strong> seu relacionamento com omundo extracristão. A crise não parece ser só da teologia <strong>em</strong> relação à prática, masdá própria teologia enquanto ciência; da teologia enquanto religião. Essa crise éproveniente da nova conjuntura da pós-modernidade, do neoliberalismo, o que, naverdade, é a quebra do modelo Estado – Igreja. Modelo esse que, num primeiromomento, oportunizou a supr<strong>em</strong>acia da Igreja sobre o Estado e, num segundomomento, do Estado sobre a Igreja. Atualmente, há o enfraquecimento dasinstituições e grandes desconfianças das verdades absolutas. Logo, é urgenterepensar a teologia <strong>em</strong> uma nova situação política:Esse desenvolvimento da teologia acadêmica até é historicamentecompreensível, mas t<strong>em</strong> um valor limitado quando se trata da causateológica. Ela só foi possível no corpus Christianum europeu, nessa<strong>13</strong> ALVES, Rub<strong>em</strong>. Filosofia da Ciência: Introdução ao jogo e a suas regras. 10. ed. São Paulo: Loyola,2005A. p. 14. (Leituras Filosóficas)Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 1<strong>06</strong>


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408peculiar e singular unidade de igreja e Estado, fé e cultura no SacrumImperium. No mundo extracristão e pós-cristão, faltam as condiçõesexteriores para essa união. 142. Tentações: a manutenção das dicotomiasQuando se discute o trânsito entre a teologia acadêmica e a teologia da vidaordinária, é possível perceber certas tendências que buscam superar as distânciasentre a teoria e a prática, entre a sala e a cozinha, entre o científico ou eclesial e opopular. Teólogos procuram superar as dicotomias. Nos discursos teológicos, noentanto, é possível identificar o lugar da onde se fala, mesmo que isso não estejaexplícito. Conseqüent<strong>em</strong>ente, é possível avistar as possíveis apologias implícitasnesses discursos. Duas tendências serão descritas a seguir, a saber, a teologização docotidiano e a cotidianização da teologia. Todavia, há ainda outras tendências quebuscam explicar a realidade como a separação radical entre a teologia e a sociedade;a fragmentação conseqüente da secularização. A exposição dessas tendências nãovisa torná-las modelos para enquadrar outras idéias ou análises, mas simconstatações de como a dicotomia atrapalha no fazer teológico e de como o saberteológico é uma barreira que separa e classifica “leigos” e “doutos”.2.1 A teologização do cotidiano: sob o risco da absolutizaçãoA primeira tendência do teólogo que se preocupa <strong>em</strong> conciliar a realidade e ateologia, a vida ordinária e a teologia científica ou mesmo a teologia eclesial é afirmarque tudo é teologizável. A partida acontece da pr<strong>em</strong>issa de que a teologia t<strong>em</strong> comoobjeto material o próprio Deus. No entanto, para os teólogos, Deus não é um simplesaspecto da realidade que possa ser esmiuçado e analisado, mas a totalidade da14 MOLTMANN, Jürgen. Experiências de reflexão teológica: Caminhos e formas da teologia cristã. SãoLeopoldo: UNISINOS, 2004, p. 22. (Theologia Publica, 5) Grifos do autor.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 107


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408realidade que transcende a própria realidade, ou melhor, nas palavras de Tomás deAquino, a “Realidade que determina todas as realidades” 15 . Logo, “[...] como Deus éo ‘Determinante de tudo’, então, qualquer coisa pode ser objeto de consideração doteólogo” 16 . Isso significa que o teólogo t<strong>em</strong> diante de si dois objetos, a saber, Deus (oobjeto principal) e todo o “resto” (o objeto conseqüencial) 17 , os quais serão estudadosa partir de uma perspectiva própria da teologia: a fé.A fé t<strong>em</strong> a primazia sobre toda a teologia, ela é o objeto (formal, i.e., aperspectiva pela qual ela construirá seu saber) e o princípio da própria teologia. Naverdade, o exercício da teologia deve-se a necessidade da pessoa de fé <strong>em</strong> verificar aaplicabilidade ou a sustância de sua crença (fides quærens intellectum), é a fé buscandoentendimento. “Por conseguinte, não é tanto o teólogo que se ocupa com a fé; é antesa fé que ocupa o teólogo” 18 . A teologia surge, então, como o discurso racional da fésobre si mesma. “Teologia é fides in statu scientiæ (a fé <strong>em</strong> estado de ciência)” 19 .A fé im-plica dentro de si a teologia; e a teologia ex-plica, como quepara fora, a fé recolhida <strong>em</strong> si mesma. Na fé encontramos umateologia implícita. As razões teológicas se relacionam com a fé não aomodo da “substituição” ou da “diminuição”, mas ao modo da“adição”. Elas se acrescentam orgânica e formalmente à convicção dafé. A teologia é a fé crescendo na inteligência”. 20Portanto, a teologia estuda Deus e sua ação e o mundo através do prisma dafé, i.e., a partir da “revelação de Deus”. Se a teologia perde a perspectiva da fé, eladeixa de ser teologia e sua interpretação pode se tornar uma interpretaçãoantropológica, ou psicológica, ou sociológica, ou filosófica. De qualquer forma, “seDeus é o objeto principal da teologia e se tudo t<strong>em</strong> alguma relação com Deus, então15 BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 43.16 BOFF, 1998, p. 43.17 Cf. BOFF, 1998, p. 44.18 BOFF, 1998, p. 27.19 BOFF, 1998, p. 31.20 BOFF, 1998, p. 32.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 108


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408tudo é teologizável. Não há coisa sobre a qual não se possa fazer teologia” 21 . Oprobl<strong>em</strong>a surge quando se pensa teologia dentro da dicotomia senso comum –ciência, submetendo toda a vida aos parâmetros científicos.A partir da Escolástica, a teologia assumiu a forma científica, a fim decompilar seu conteúdo e, nesse processo, descobrir a “verdade atrás dos fatos”.Desde o Iluminismo, a teologia t<strong>em</strong> forçado seu reconhecimento na família dasdisciplinas científicas, <strong>em</strong> especial, na família das ciências humanas e, desde então,ela t<strong>em</strong> caído na tentação de fechar-se <strong>em</strong> si mesma e a desconsiderar as “pessoascomuns” como sujeitos epist<strong>em</strong>ológicos da teologia e a vida ordinária como seu locusvivendi. Essa tentação da teologia está refletida na posição dos teólogos de fazer<strong>em</strong> deseu discurso o discurso de Deus, conforme ilustra Rub<strong>em</strong> Alves:Qual a tentação do teólogo?Qual o seu desejo mais profundo?Sua maior tentação: ver face a face, conhecer...Seu desejo mais profundo: dizer Deus no seu discurso, enunciarcoisas que o comum dos mortais não vê e n<strong>em</strong> conhece... Falar averdade sobre o sagrado, conhecer o Absoluto. Não foi por issomesmo que ele ousou batizar sua fala como teologia? Logos, discurso,conhecimento, ciência do divino...[...] E de fato eu ousaria dizer que omais alto desejo é justamente aquilo que é proibido: o teólogo não t<strong>em</strong> apermissão para dizer a verdade. [...] Dizer a verdade sobre Deus não seráum vôo por d<strong>em</strong>ais alto para nós que mal conseguimos saltar? 22Essa tentação da teologia somada à ausência de barreiras na delimitação deseu campo de análise (por causa da pr<strong>em</strong>issa de que tudo é teologizável) acarreta norisco de se absolutizar o conhecimento teológico produzido na acad<strong>em</strong>ia e legitimá-locomo verdadeiro, <strong>em</strong> detrimento do conhecimento teológico ordinário. A teologiateria a verdade sobre todas as coisas, pois ela conhece Deus melhor que ninguém.“Na prática, o pensamento teológico oficial tende a ignorar as questões menores do21 BOFF, 1998, p. 46.22 ALVES, Rub<strong>em</strong>. Variações sobre a vida e a morte ou o feitiço erótico-herético da teologia. São Paulo:Loyola, 2005B. p. 70. Grifos do autor.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 109


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408cotidiano das comunidades que se apresentam como concretização, absurda ou não,da mensag<strong>em</strong> cristã” 23 .Nesse aspecto, é interessante observar a insistência de Brak<strong>em</strong>eier nacoincidência entre fides qua e fides quæ, i.é, a fé crida e a fé professada. Segundo oautor, de um lado, “essa coincidência é vital”. Todavia, de outro lado, “não sepermite às pessoas o arbítrio na fé. Redundaria <strong>em</strong> heresia, <strong>em</strong> fé falsa” e, maisadiante, “a dogmática não pode produzir a fé. Isto é função do evangelho e dapregação. Mas ela coloca parâmetros para a ‘fides qua’ [i.e., para a fé que é crida]” 24 .Mesmo que seja importante a existência de uma “fé comum” para o convívio eclesial,essa fé comum não pode subjugar a fé experienciada nos meandros da vidaordinária. Sendo assim, não se pode reprimir a experiência religiosa individual oumesmo suprimi-la mediante a fé professada.O segredo da teologia não está <strong>em</strong> suas elaborações mirabolantes, mas nob<strong>em</strong> que faz ao corpo 25 . Por isso, a teologia enquanto ciência precisa ser consideradauma ciência sui generis, pois ela não parte de um dado, mas sim de uma experiência.A teologia surge na dinâmica da fé, entre a fé e a vida ordinária, <strong>em</strong> sua busca porcompreensão daquilo que ela experimenta. A teologia que surge da busca porcompreensão pode e deve estar à procura da verdade, mas ciente de que a verdadealcançada nunca será completa por si mesma, mas s<strong>em</strong>pre uma aproximação. Porisso, Lutero vai defender que a teologia acontece no cavoucar vitalício da Bíblia, sob ahermenêutica da oração, da meditação e da tentação, sendo que todas as três23 BOBSIN, Oneide. Reflexões sobre a comunidade religiosa no contexto da urbanização. Um estudode caso. In: BOBSIN, Oneide (Org.). Desafios Urbanos à Igreja: Estudos de Casos. São Leopoldo:Sinodal, 1995. p. 52.24 BRAKEMEIER, Gottfried. Introdução à Dogmática: Subsídios. Polígrafo. São Leopoldo, EscolaSuperior de Teologia, 2. S<strong>em</strong>estre de 2002. Material didático oferecido aos estudantes da cadeira deIntrodução à Dogmática do Curso de Bacharelado <strong>em</strong> Teologia na Escola Superior de Teologia. p.4.25 Cf. ALVES, Rub<strong>em</strong>. Da Esperança. Campinas: Papirus, 1987. p.10ss.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 110


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408hermenêuticas acontec<strong>em</strong> no confronto com as situações da vida ordinária 26 .“Teologia, que merece este nome, é vivência nos altos e baixos da existência. Épreciso encarnar a confiança e obediência a Deus na vida concreta, no corpo e nassuas necessidades do jeito como o fizeram João Batista, o próprio Jesus e osapóstolos” 27 .Portanto, é perigoso defender a verdade de uma teologia científica <strong>em</strong>confronto com uma teologia ordinária, pois significa defender uma fé deescrivaninha diante de uma fé que acontece nas ambigüidades da vida cotidiana.Absolutizar a teologia e elevá-la a um patamar acima da realidade, para depoisaplicá-la a esta, é despotismo. Naturalmente, é frutífero um intercâmbio entre aciência e a sapiência, mas a teologia não pode se esquecer que a ciência é só uma dasformas de se fazer teologia, nada mais, nada menos.Ora, n<strong>em</strong> todo discurso sobre Deus – teologia – t<strong>em</strong> a forma daciência. Há teologias especificamente sapienciais e não-científicas,como acontece na Patrística. Exist<strong>em</strong> também “teologias pastorais” e“teologias populares”, e essas não têm e n<strong>em</strong> pretend<strong>em</strong> ter formacientífica [...]. E só com a Escolástica que a teologia assumiu essaforma. Por isso deve-se distinguir a teologia científica das teologiasnão-científicas, mas que não são menos teologias que as primeiras.[...]Mesmo que seja qualificada de sabedoria, fica s<strong>em</strong>pre a pergunta seessa sabedoria, para além de seus conteúdos de saber experiencial,vital, global e supraconceitual, não pode assumir também a forma daciência, como queria S. Tomás e como parece ser tendencialmente aprática hoje quando se fala de “epist<strong>em</strong>ologia teológica”. 282.2 A cotidianização da teologia: sob o risco da relativizaçãoA segunda tendência do teólogo e da teóloga que se preocupa <strong>em</strong> conciliar arealidade e a teologia é relativizar totalmente a teologia acadêmica, a científica ou a26 Cf. BAESKE, Albrecht. Como se Estuda e vive teologia conforme Lutero. In: HOCH, Lothar (Ed.).Formação Teológica <strong>em</strong> Terra Brasileira. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 74-87.27 BAESKE, 1986, p. 75.28 BOFF, 1998, p. 89.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 111


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408eclesial, na tentativa de fazer uma apologia do cotidiano como o locus originário e oúnico locus vivendi legítimo da teologia. Essa tendência surge da crítica à religiãocomo a racionalização e a institucionalização de uma experiência religiosa jásedimentada e esquecida. Essa crítica des<strong>em</strong>boca <strong>em</strong> uma solução aparente para adistância entre a teologia e a realidade. Conseqüent<strong>em</strong>ente, o cotidiano é“endeusado” e considerado sob o prisma de uma certa homogeneidade, s<strong>em</strong>enxergar as desigualdades existentes nas relações sociais. Nessa tentativa devaloração do cotidiano, Ivone Gebara destaca as vivências corporais e existenciaiscomo o berço das crenças:Creio que é nestas experiências corporais, existenciais de nossocotidiano que nasceram nossas crenças e depois se organizaram <strong>em</strong>forma de religiões. É da atração sexual, do nascimento, da morte, dapartilha, do cuidado que se organizaram as mais primitivas crençasreligiosas. As religiões oficializadas passaram <strong>em</strong> seguida a gerenciara criatividade popular e ao gerenciá-la, controlá-la. Assim asintuições existenciais mais profundas apropriadas por uma elitetornaram-se doutrina, conhecimento de alguns iniciados, conceitos eteorias religiosas impostos aos chamados leigos e afirmados comovontade de Deus. 29Essa gerência da criatividade e esse controle das crenças através daelaboração de doutrinas e teorias religiosas – quase imutáveis – estão associados àtransformação de fatos sociais <strong>em</strong> fatos dados e ao peso valorativo dado a este. Ora,sabe-se que o ser humano é carente de uma programação biológica que possaestruturar a sua vida e garantir a sua sobrevivência tal como acontece com osanimais. Por causa dessa “falha biológica”, o ser humano é obrigado a inventar suaprópria programação, e isso acontece <strong>em</strong> sociedade e através da linguag<strong>em</strong>. “Alinguag<strong>em</strong> é a m<strong>em</strong>ória coletiva da sociedade. É ela que provê as categorias fundamentaispara que certo grupo social interprete o mundo” 30 . Ao preservar e ao socializar as29 GEBARA, Ivone. As Epist<strong>em</strong>ologias teológicas e suas conseqüências. São Leopoldo, Escola Superior deTeologia, 18 ago. 20<strong>06</strong>. Palestra ministrada aos participantes do II Congresso Latino-Americano deGênero e Religião. p. 3.30 ALVES, Rub<strong>em</strong>. O Suspiro dos Oprimidos. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2003. p. 15. Grifos do autor.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 112


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408experiências b<strong>em</strong> sucedidas, a linguag<strong>em</strong> não se revela como uma cópia darealidade, mas antes a organização da realidade de acordo com as necessidadeshumanas 31 . Isso significa que o ser humano não vê o mundo que o cerca e os objetosao seu redor como fatos objetivos, mas sim como fatos valorativos, i. é, eles seconstitu<strong>em</strong> a partir da relação que o ser humano estabelece com eles 32 .A partir do momento <strong>em</strong> que o ser humano atribui valores aos fatos, eleautomaticamente acaba hierarquizando os fatos de acordo com o grau valorativoatribuído a eles. A valoração é um ato tão comum ao ser humano que, por vezes,acaba transformando a linha divisória valorativa que ele criou entre o cotidiano e opolítico e os valores atribuídos a essas esferas <strong>em</strong> algo natural 33 . Aconteceu, pois, quea epist<strong>em</strong>ologia ordinária foi suprimida pela epist<strong>em</strong>ologia científica nessaestruturação valorativa.Rub<strong>em</strong> Alves defende que a essência da religião é uma relação e não umsimples objeto. Ele afirma que o grande equívoco está <strong>em</strong> transformar fatos sociais<strong>em</strong> fatos dados, <strong>em</strong> confundir a realidade humana – que é, na verdade, umaconstrução social estruturada a partir de um sist<strong>em</strong>a interpretativo e valorativo 34 –com a realidade natural. “Do ponto de vista de sua orig<strong>em</strong>, o mundo que se nosapresenta hoje como reificado, como um conjunto de fatos sociais que pod<strong>em</strong> seranalisados como se foss<strong>em</strong> coisas, surgiu como ‘externalização de significaçõessubjetivas’, como uma ‘objetivação do Espírito’” 35 .31 Cf. ALVES, 2003, p. 18ss.32 Cf. ALVES, 2003, p. 27.33 Cf. CARDOSO, Nancy Pereira. Profecia e Cotidiano. 1992. Dissertação (Mestrado) – Programa dePós-Graduação <strong>em</strong> Ciências da Religião, Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo doCampo, 1992. p. 123ss.34 Cf. HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. p. 5: “O valor,portanto, é uma categoria ontológico-social; como tal, é algo objetivo; mas não t<strong>em</strong> objetividade natural(apenas pressupostos ou condições naturais) e sim objetividade social. É independente dasavaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante derelações e situações sociais”. Grifo da autora.35 ALVES, 1975, p. <strong>13</strong>.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 1<strong>13</strong>


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408No âmbito religioso, isso significa uma consideração maior à teologia pronta,produzida, científica, <strong>em</strong> detrimento a uma teologia que acontece nos meandros davida humana. Há, pois, <strong>em</strong> contraposição, teólogos que afirmam que o cotidiano épermanent<strong>em</strong>ente determinante para o fazer teológico e que é lá que se encontram asverdadeiras raízes da teologia. Segundo eles, o cotidiano precisa ser ressaltadoquando se pensa <strong>em</strong> teologia, porque é lá que a vida acontece, é lá que Deus age e élá que a fé adquire sua força e seu anseio maior por compreensão.Diante dessa ênfase <strong>em</strong> favor do cotidiano, a teologia está propensa a cair noRomantismo ou <strong>em</strong> um idealismo. “Os Românticos esperam que a afirmação da almapopular, do sentimento popular, da imaginação, simplicidade e pureza popularesquebre o racionalismo e o utilitarismo da Ilustração, considerada por eles causa dadecadência e do caos social” 36 . Se, de um lado, o perigo está no racionalismoexacerbado, no outro, o perigo está no subjetivismo e na idealização do popular,expresso na dualidade que Marilena Chauí aponta entre “Povo-povinho”, i.e., entreos intelectuais/burguesia: o Povo como generalidade política de um lado; e ospobres: o povo como particularidade social de outro lado.O povo romântico – sensível, simples, iletrado, comunitário,instintivo, <strong>em</strong>otivo, irracional, puro, natural, enraizado na tradição –nasce de motivos estéticos, intelectuais e políticos. Esteticamente, é aresposta do Romantismo ao Classicismo, a revolta da Natureza contraa “arte”. Intelectualmente, é a resposta dos sentimentos contra oracionalismo Ilustrado, a revolta da tradição contra o progresso dasLuzes, do sobrenatural e do maravilhoso contra o “desencantamentodo mundo”. Politicamente, é a reação contra o império napoleônico, aafirmação da identidade nacional contra o invasor estrangeiro: acultura popular ou o popular na cultura torna-se alicerce dosnacionalismos <strong>em</strong>ergentes. 37É no Romantismo que se originam as imagens de que a Cultura Popular éprimitiva, comunitária e pura. Logo, seria na vida ordinária que a teologia seria pura,36 CHAUÍ, 1986, p. 17.37 CHAUÍ, 1986, p. 19.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 114


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408comunitária e não “contaminada” pelos esforços humanos de apreender Deus com arazão. Nesse sentido, o saber teológico é apenas concebido na experiência humana,<strong>em</strong> suas relações e <strong>em</strong> suas carências e necessidades. Nesse aspecto, não há “leigos”,pois o critério de aquisição de conteúdos históricos, dogmáticos, não é determinanteassim como o critério das relações e da vivência da fé, pois, essa vivência de féproduz saber teológico:[...] se nos voltarmos às experiências cotidianas, na sua diversidade ecomplexidade, poder<strong>em</strong>os resgatar não mais uma teologia ou umaciência divina, mas uma sabedoria de vida, uma ética, uma poéticaimplicadas <strong>em</strong> nossas próprias histórias pessoais e coletivas. E, nessalinha, poderíamos perguntar se estas foram, por ex<strong>em</strong>plo, asexperiências que encontramos na vida de Jesus. Difícil responder deforma categórica. Entretanto, nas entrelinhas dos escritos evangélicoscreio que há algo dessa dimensão. O encontro com os leprosos, osdoentes [...] o pão partilhado revelam a importância de certasexperiências ordinárias de vida como lugares reveladores do melhor denossa humanidade. Há algo da compaixão humana que se mostra comouma espécie de atração particular do ser humano pelo ser humanofrágil e necessitado ou do ser humano simplesmente amado. [...] Sãoações, são paixões que nos levam a sair de nosso egoísmo habitual enos incitam a buscar a dignidade da vida para além de nós mesmos.Por isso, se pode afirmar que o lugar de nossas crenças maisprofundas t<strong>em</strong> a ver com os lugares de nosso cotidiano, lugar ondesimplesmente existimos, onde nos admiramos, nos apaixonamos, nosajudamos, nos lamentamos e esperamos. 38O perigo do Romantismo pode, pois, ser encontrado no discurso ingênuo deteólogos que exaltam de tal maneira o cotidiano, que se esquec<strong>em</strong> que a teologiacontínua também acontece na acad<strong>em</strong>ia. Ao enfatizar o cotidiano se busca a essência,a verdade, e se esquece que há interesses e manipulações inerentes à cultura. Exist<strong>em</strong>hábitos e tradições do cotidiano que são extr<strong>em</strong>amente impositivos e condicionantes.Exist<strong>em</strong> relações assimétricas de poder, de exploração, de opressão e as construçõesepist<strong>em</strong>ológicas ordinárias pod<strong>em</strong> legitimar atitudes autoritárias e dehierarquização. O Romantismo do cotidiano observa o contexto a partir doimediatismo e do utilitarismo e afirma possíveis assimetrias como naturais. Desse38 GEBARA, 18 ago. 20<strong>06</strong>, p. 4. Grifos da autora.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 115


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408modo, a teologia passa a ser instrumento, meio para se conseguir alcançar o objetivorequisitado. O probl<strong>em</strong>a do saber cotidiano é que ele vê tudo – inclusive oextraordinário – a partir da ótica da utilidade. A fé precisa servir para algo, como estáexpresso nas palavras de Ivone Gebara: “Mas, o que é mesmo a fé pura s<strong>em</strong>entendimento e s<strong>em</strong> utilidade?” 39 .Além disso, o cotidiano é antropocêntrico, ainda mais quando a teologia éconfundida com outras ciências humanas, como por ex<strong>em</strong>plo, assistência social,gerontologia, política, psicologia, entre outras. Nessas circunstâncias, a teologia sofreuma redução s<strong>em</strong>ântica, i.e., os seus conteúdos se restring<strong>em</strong> ao que edifica asnecessidades e atividades humanas.O processo de secularização também fragmenta a compreensão da teologiacontínua. As experiências com Deus e a sua reflexão se tornam propriedade doindivíduo. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar milhões de teologias pelo mundo asquais não visam conduzir a uma coletividade. Não se pode esquecer da pluralidade,mas ela também não pode ser <strong>em</strong>pecilho para a comunhão, para o relacionamentocom outras pessoas. Logo, a reflexão acadêmica – desde que não tenha a pretensão deser genérica, absoluta, única – poderia ser um importante instrumento de profeciapara a teologia contínua. Se no cotidiano são legitimadas ações de exploração e deopressão, por ex<strong>em</strong>plo, a reflexão teológica pode provocar uma desestabilização naideologia predominante, incitando a indagação por parte dos sujeitos populares.“Não pod<strong>em</strong>os nos submeter acriticamente ao cotidiano, como também não dev<strong>em</strong>osfugir para os encantos da teoria que simplifica, de modo geral, a realidade” 40 .39 GEBARA, 18 ago. 20<strong>06</strong>, p. 4.40 BOBSIN, 1995, p. 53.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 116


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 64082.3 AmbigüidadeExist<strong>em</strong> inúmeros probl<strong>em</strong>as quando se pensa a relação entre a teologia e arealidade dicotomicamente. Em primeiro lugar, pode ocorrer uma absolutização dosaber acadêmico, <strong>em</strong> detrimento do saber popular; o que significa, no âmbito dateologia, o monopólio da palavra de Deus por parte dos intelectuais da religião. Emsegundo lugar, pode ocorrer uma relativização do saber acadêmico e a elevação dosaber popular, devido a sua relação próxima com a subjetividade e a experiência; oque significa, no âmbito da teologia, a fragmentação e uma possíveldescontextualização de um saber <strong>em</strong> prol do imediatismo e do utilitarismo e amanutenção de ideologias opressoras na sociedade. A teologia se torna acrítica. Emterceiro lugar, também pode acontecer uma divisão total de espaços: as coisas domundo e as coisas de Deus, acarretando <strong>em</strong> indiferença e falta de inter-relação dosmundos. Assim, o probl<strong>em</strong>a principal ao se relacionar a teologia e a realidade épensá-las dicotomicamente, ao invés de imaginá-las como acontecimentosconcomitantes e de igual valor. Isso acontece por causa da tendência humana <strong>em</strong>considerar a cultura como um dado e não como um posto, uma criação humana. Nessesentido, é importante ressaltar que[...] seres e objetos culturais nunca são dados, são postos por práticassociais e históricas determinadas, por formas da sociabilidade, darelação intersubjetiva, grupal, de classe, da relação com o visível e oinvisível, com o t<strong>em</strong>po e o espaço, com o possível e o impossível, como necessário e o contingente. Para que algo seja isto ou aquilo e isto eaquilo é preciso que seja assim posto ou constituído pelas práticassociais. 41A realidade da vida ordinária, os seres e os objetos culturais e até mesmo aprópria teologia são polissêmicos e seus sentidos estão sujeitos ao campo de práticasque os compõ<strong>em</strong> e onde eles se inser<strong>em</strong> 42 . Isso significa que não é possívelcompreendê-los mantendo as dicotomias. “O dualismo conceitual [...] ‘não parece41 CHAUÍ, 1986, p. 122. Grifo da autora.42 Cf. CHAUÍ, 1986, p. 123.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 117


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408repousar <strong>em</strong> definições precisas, e sim originar-se <strong>em</strong> juízos de valor [...]’” 43 . Taldualismo conceitual também é <strong>em</strong>pregado à teologia quando essa for compreendidadistintamente entre a religião popular e a oficial. No entanto, “a dúvida [...] seestende, na verdade, a toda utilização de conceitos dicotômicos <strong>em</strong> sociologia queparece originar-se de um raciocínio sist<strong>em</strong>ático e teórico, tendo como ponto departida concepções ideológicas de b<strong>em</strong> e de mal e não uma consulta direta àrealidade estudada [...]” 44 . Nesse raciocínio teórico, o sujeito epistêmico nunca éneutro e suas concepções “[...] <strong>em</strong> lugar de ser<strong>em</strong> apropriadas à análise da realidadesocial, a deformam [a realidade] no sentido que convém melhor à ideologia dopesquisador” 45 . Para escapar desse círculo vicioso de compreender as realidadesdicotomicamente, é necessário pensá-las ambiguamente:Ambigüidade não é falha, defeito, carência de um sentido que seriarigoroso se fosse unívoco. Ambigüidade é a forma de existência dosobjetos da percepção e da cultura, percepção e cultura sendo, elastambém, ambíguas, constituídas não de el<strong>em</strong>entos ou de partesseparáveis, mas de dimensões simultâneas que, como dizia aindaMerleau-Ponty, somente serão alcançadas por uma racionalidadealargada, para além do intelectualismo e do <strong>em</strong>pirismo. 46Pensar na ambigüidade como característica essencial da teologia e docotidiano e da relação entre ambas significa reconhecer que a experiência humana édinâmica e que a teologia acontece nessa dinamicidade ordinária. Pensardinamicidade é afirmar que a teologia não é algo estanque, fixo, mas algo que fluinos meandros de toda a história e de toda a realidade presente. A teologia não ésólida, mas líquida como a água que escorre por entre os dedos das mãos, quando setenta apanhá-la. Ela penetra diferentes tipos de solos. Alguns solos ela torna férteis,43 CHAUÍ, 1986, p. 123.44 CHAUÍ, 1986, p. 123.45 CHAUÍ, 1986, p. 123.46 CHAUÍ, 1986, p. 123.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 118


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408outros permanec<strong>em</strong> áridos, tal como Moltmann expressa “[...] considero um ermo apre<strong>em</strong>inência de uma teologia puramente acadêmica” 47 .O cotidiano é o locus originário e é o locus vivendi da teologia. É na vidacotidiana que o sofrimento acontece e é na vida cotidiana que a esperança <strong>em</strong>erge. Éna vida ordinária que os símbolos – os objetos primários da teologia – são evocados,surgindo como chaves mágicas que fornec<strong>em</strong> o horizonte para o qual o ser humanodirige seu caminhar. Os símbolos abr<strong>em</strong> as “dimensões e estruturas da nossa almaque correspond<strong>em</strong> às dimensões e às estruturas da realidade. Um grande drama nãonos dá apenas uma nova intuição no mundo dos seres humanos, mas também revelaprofundezas ocultas do nosso próprio ser” 48 .Enfim, a teologia está intrinsecamente relacionada à subjetividade e aexperiência humana, que, por sua vez, buscam uma objetividade numa relaçãoosmótica crescente e infindável. No entanto, isso não faz do teólogo um“colecionador de ortodoxias” 49 . O teólogo é um pastor de esperanças e as esperançassurg<strong>em</strong> lá onde a vida acontece 50 . Não obstante, além de sapiencial, a teologia podepossuir também uma forma científica 51 . Essa forma é imprescindível para a teologiamanter sua criticidade <strong>em</strong> relação ao mundo. “A aprendizag<strong>em</strong> da ciência é umprocesso de desenvolvimento progressivo do senso comum” 52 . Apesar disso, a teologiaciência– a teologia adquirida – não pode e não deve suprimir a teologia-sapiência – ateologia contínua – e a relação entre ambas não deve ser vista dicotomicamente. Acotidianização da teologia e a teologização do cotidiano acontec<strong>em</strong> mediante umolhar deturpado sobre a relação ambígua que há entre a teologia e o cotidiano. É nas47 MOLTMANN, 2004, p. 19.48 TILLICH, Paul. Dinâmica da Fé. 6. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 31.49 ALVES, 2005B, p. 89.50 Cf. ALVES, 2005B, p. 141-155.51 Cf. BOFF, 1998, p. 97: “A teologia é ciência na medida <strong>em</strong> que realiza a tríplice caracterizaçãoformal de toda ciência, que é a de ser crítica, sist<strong>em</strong>ática e auto-amplificativa”.52 ALVES, 2005A, p. 12.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 119


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408ambivalências e nas ambigüidades que a teologia no cotidiano e o cotidiano nateologia precisam ser reconhecidos e percebidos.Considerações FinaisFalar <strong>em</strong> teologia é encarar e perceber desafios. Um desafio percebido pelotrabalho é superar a fragmentação e as dicotomias da construção dos diferentessaberes teológicos. Esse desafio vai de encontro à supervalorização daintelectualidade, o que é um risco, quando o autor participa deste grupo de“especialistas”. Entr<strong>em</strong>entes, o objetivo almejado é justamente enxergar aquilo que aacad<strong>em</strong>ia cegou: que “[...] a teologia ocorre onde pessoas chegam ao conhecimentode Deus e ‘perceb<strong>em</strong>’ a presença de Deus com todos os seus sentidos na práxis desua vida, de sua felicidade e de seus sofrimentos” 53 . A teologia não é um dado, mas ésaber que se constrói nos meandros da vida que flui entre a acad<strong>em</strong>ia e o cotidianonuma relação osmótica crescente e infindável. Ela é um peixe que só se reproduzquando nada contra o curso do rio. Entr<strong>em</strong>entes, perguntas permanec<strong>em</strong>: Que tipode teologia é vinculado fora dos muros eclesiásticos? Como as pessoas “nãoteólogas”são os sujeitos da construção do saber teológico? Qual é, de fato, a funçãodo teólogo no mundo extra-eclesiástico?53 MOLTMANN, 2004, p. 11.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 120


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Resenha da Tese de Joana Bahia: "O tiro da bruxa":identidade, magia e religião entre camponeses pomeranos doEstado do Espírito SantoPor Rogério Sávio Link *Resenha de:BAHIA, Joana. “O tiro da bruxa”: identidade, magia e religião entre camponeses pomeranosdo Estado do Espírito Santo. [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional,2000.Estrutura da obraA obra proposta para esta ficha de leitura é uma tese de doutorado <strong>em</strong>antropologia, cujo objeto de pesquisa está ancorado nos descendentes dos imigrantespomeranos que resid<strong>em</strong> atualmente no Estado do Espírito Santo, maisespecificamente, na cidade de Santa Maria de Jetibá.Joana Bahia trabalha vários aspectos da cultura pomerana, a fim de mapear omundo que a envolve. Segundo suas palavras, são trabalhados os seguintes aspectos:“A relação entre o uso de várias línguas e a religiosidade luterana; o cotidianocamponês; a importância do el<strong>em</strong>ento mágico e do fantástico nas históriascamponesas, nos ritos de passag<strong>em</strong> e nas acusações de bruxaria” (Resumo). Ouainda: “O trabalho aqui apresentado parte de uma probl<strong>em</strong>ática que articulafundamentalmente a noção de ethos (Redfield, 1965), é, <strong>em</strong> primeiro lugar, um estudo* O autor morou toda sua infância <strong>em</strong> Espigão do Oeste/RO. Graduou-se na Escola Superior deTeologia, <strong>em</strong> São Leopoldo e, atualmente, faz doutorado, com bolsa CAPES, <strong>em</strong> história da igreja,no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação. Sua pesquisa concentra-se na história da igreja naAmazônia.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 121


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408sobre as expressões da cultura camponesa de orig<strong>em</strong> pomerana no contexto dasrelações que esta possui com a sociedade mais ampla. Não se trata apenas de umestudo sobre pomeranos, mas de uma análise construída a partir dos camponeses deorig<strong>em</strong> pomerana. Isto significa que t<strong>em</strong> como fio condutor o modo como estescamponeses representam a sua cultura e a importância desta na elaboração de umaidentidade social e étnica” (p. 14).A obra está dividida <strong>em</strong> três partes. Na primeira, a autora escreve sobre ocotidiano camponês da colônia: o trabalho na land e no comércio; a língua e a religiãocomo fatores importantes na construção da identidade étnica e social dos pomeranos.Na segunda, ela trabalha com os ritos de passagens, enfocando o nascimento, ocasamento e a morte. Já na terceira e última, ela discorre sobre bruxaria e benzedura.Resumo da obraA questão central da tese versa a respeito da relação entre identidade social eétnica e suas formulações culturais no contexto pomerano, ou seja, o relacionamentoentre a identidade ética pomerana e a sociedade envolvente, principalmente a partirdos conflitos que se estabelec<strong>em</strong>, mas também através das expressões culturais.A primeira parte da tese está dividida <strong>em</strong> dois capítulos: Cotidiano: otrabalho na land e no comércio; e Língua e religião: sua importância na construção daidentidade étnica e social dos pomeranos.Joana Bahia inicia o seu trabalho descrevendo o significado da palavra land.Segundo ela, essa palavra “designa a unidade familiar como unidade de produção econsumo, juntamente com a propriedade, os animais, objetos e valores queconstitu<strong>em</strong> seu modo de vida” (p. 26). Passa a descrever todo o universo da vidacamponesa, principalmente o da produção e o da comercialização na Ceasa deDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 122


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Vitória. Os principais produtos são café, legumes, verduras, aves e, <strong>em</strong> menor escala,a suinocultura e a pecuária leiteira.No seu cotidiano, os homens estão envolvidos com o mercado e as mulherescom a casa. Os homens estão mais liberados para lidar com a sociedade nacional e asmulheres são responsáveis pela manutenção da cultura. Bahia diz que “o el<strong>em</strong>entoque permite a manutenção da germanidade e também do modo de vida camponês éa mulher” (p. 49). Assim, o casamento de um hom<strong>em</strong> pomerano com uma brasileira émais tolerado, ao passo que o casamento de uma mulher pomerana com umbrasileiro sofre muitas críticas, pois ameaça a reprodução da condição camponesa eétnica.O mercado é o lugar da sociabilidade masculina e de inúmeras trocas queultrapassam a esfera econômica. A honra, as relações de parentesco e asreciprocidades (trocas) são el<strong>em</strong>entos que se faz<strong>em</strong> presentes. É ali que, muitas vezes,se resolv<strong>em</strong> conflitos. A socialização das mulheres, por sua vez, acontece no âmbitoda religião, das festas e da comercialização de produtos caseiros. É nos cultos queocorr<strong>em</strong> encontros com vizinhos e parentes. Tanto antes quanto depois dos cultos,homens e mulheres trocam conversas. Nas festas, as mulheres preparam as comidas.A produção caseira, seja dentro de casa ou no terreiro, pertence à mulher, cabendo aela a sua comercialização.Quanto à questão da herança, a distribuição obedece a uma lógica própria domundo camponês, entrando <strong>em</strong> conflito com o sist<strong>em</strong>a jurídico brasileiro. Ela t<strong>em</strong>“como objetivo evitar a excessiva fragmentação das pequenas propriedades” (p. 52).Em primeiro lugar, uma mulher não recebe herança. Recebe um dote que lhe ajudaráa iniciar a sua própria land. Geralmente esse dote é composto por alguns animais einstrumentos domésticos. A alternativa pensada é que o esposo tenha uma herança.Em segundo lugar, quanto aos homens, somente o caçula recebe a herança. Os outrosDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 123


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408pod<strong>em</strong> ficar trabalhando para o irmão ou um estranho, pod<strong>em</strong> tornar-se arrendatárioou meeiro, ou pod<strong>em</strong> migrar para as cidades ou novas fronteiras (p. 59).Em decorrência direta desta prática de herança, surge a maioria dos conflitosque envolv<strong>em</strong> os pomeranos. Para tentar amenizar o conflito <strong>em</strong> torno da herança,exist<strong>em</strong> algumas estratégias, como por ex<strong>em</strong>plo, o estudo. Quando um filho opta porestudar, é entendido que este desistirá de sua parte na herança. Segundo Bahia, “avocação religiosa é uma das estratégias para reduzir o número de herdeiros. Aindenização se constitui na ajuda no custeio dos estudos religiosos” (p. 69).“O grupo investigado se expressa, cotidianamente, <strong>em</strong> três línguas:português, al<strong>em</strong>ão e pomerano, cada uma delas acionada <strong>em</strong> diferentes situaçõessociais” (p. 75). O português é mais usado no comércio e na escola. O pomerano éusado tanto na cidade quanto no campo, sendo mais usado na zona rural, ou seja,“na intimidade da família, dos amigos, nas situações-limite de conflito social (lutapelos recursos e acesso à terra entre parentes e vizinhos), como nas acusações debruxaria e, principalmente, nas práticas mágicas (tais como benzeções) qued<strong>em</strong>arcam os ritos de passag<strong>em</strong> como o nascimento, o casamento e a morte dosm<strong>em</strong>bros da comunidade” (p. 77). O al<strong>em</strong>ão, por sua vez, é mais utilizado nos cultose também nas práticas mágicas, muitas vezes combinado com o pomerano. Bahiachega à conclusão de que “a língua pomerana e a língua al<strong>em</strong>ã são fundamentais natransmissão da tradição oral e na elaboração da identidade étnica e social. Ambaspossu<strong>em</strong> modos distintos de ser<strong>em</strong> usadas no cotidiano do grupo e peso significativonos aspectos mágicos dos rituais que marcam os ciclos vitais do grupo e no processode acusação de bruxaria” (p. 86).Bahia constata a existência de diferença no uso das línguas entre os gêneros eas gerações. Segundo ela, as mulheres são bilíngües, falando o al<strong>em</strong>ão e o pomerano,línguas que são manejadas no seu cotidiano. Já os homens são trilíngües, pois falamtambém o português, língua necessária para o comércio. Quanto às gerações, diz queDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 124


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408“os descendentes das primeiras gerações dominam com mais freqüência a línguaal<strong>em</strong>ã do que os pomeranos das últimas gerações” (p. 85).Outra coisa de destaque é a importância da igreja luterana e da figura dopastor, especialmente na construção da identidade étnica. “A IECLB e a IgrejaMissouri são citadas pelos pomeranos como sendo as ‘suas igrejas’” (p. 92). “Ospomeranos ao migrar<strong>em</strong> <strong>em</strong> busca de terras e melhores oportunidades para areprodução de sua condição camponesa afirmam o seguinte: ‘Ir<strong>em</strong>os para aondetiver a nossa igreja’” (p. 92). As igrejas e os pastores, através de sua pregação, damanutenção da língua al<strong>em</strong>ã, das festas comunais, do dia da Reforma, reinventam aidéia de unidade nacional do Estado Al<strong>em</strong>ão (p. 96). Nas palavras de Bahia, “caberessaltar a importância da IECLB no ensino da língua al<strong>em</strong>ã e na reinvenção dasfestas comunais e dos símbolos da cultura nacional al<strong>em</strong>ã a fim de identificar de queforma estes el<strong>em</strong>entos são percebidos e reinterpretados pelo grupo” (p. 18).A representatividade das igrejas luteranas é muito expressiva na região.Somam 17.342 m<strong>em</strong>bros de um total de 25.718 habitantes (p. 93). Dente as duas, aIECLB t<strong>em</strong> maior expressão no âmbito público, ultrapassado a esfera da colônia esendo conhecida além dos limites geográficos (p. 92).Na segunda parte da tese, a autora analisa <strong>em</strong> três capítulos os ritos depassag<strong>em</strong> do nascimento, casamento e morte e as superstições e benzeções que osenvolve. Para tanto, trabalha com o material obtido <strong>em</strong> entrevistas e na observaçãoparticipante, b<strong>em</strong> como com o material fotográfico. Nessa parte a autora opta porfazer uma descrição densa (Geertz).“O nascimento é um momento muito especial para as pomeranas, poissignifica para a mulher, mas também para o hom<strong>em</strong>, a aquisição de um novo statusdiante da comunidade. É no casamento e principalmente no nascimento dos filhosque a mulher adquire seu lugar de adulta na sociedade, com direitos eresponsabilidades que divide com o marido, e dá continuidade ao modo de vidaDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 125


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408camponês, através da educação dos filhos” (p. 109). “Uma casa com filhos, e depreferência com muitos filhos, significa a valorização destes como mão-de-obra” (p.109). A fecundidade, portanto, é fator indispensável para a sustentabilidade do modode vida camponês. Assim, “os atos de benzer a terra, o pasto, os animais e as criançasgarant<strong>em</strong> a reprodução e a fertilidade de todos os el<strong>em</strong>entos que compõ<strong>em</strong> acolônia” (p. 111). No imaginário pomerano, os macacos são seres que pronunciam afertilidade das mulheres e da terra.O nascimento de uma criança, desde a gravidez, requer cuidados mágicosespeciais que lhe garanta saúde e inserção no meio social. “A morte de uma criançat<strong>em</strong> peso negativo no status de uma mulher” (112). “O período entre o nascimento deuma criança e seu batismo é marcado por uma série de perigos, mau-olhados edoenças [...]. O ato de batizar põe fim a esta fase de transição e inclui a criança naestrutura social” (p. 124).“O significado da confirmação para os herdeiros é a possibilidade decasamento, a liberdade para o namoro e a iniciação na fase adulta” (p. 72). Aconfirmação é um momento muito importante na vida de um pomerano, pois marcaa passag<strong>em</strong> para a vida adulta. Desde aquele momento, ele pode participar da SantaCeia, juntamente com toda a comunidade. Com a confirmação, o adolescente ganhaalgumas liberdades como freqüentar bailes e lhe é permitido namorar. SegundoBahia, a roupa que é usada no dia da confirmação evoca a indumentária docasamento (p. <strong>13</strong>4).O namoro é visto pela comunidade como uma forma de preparação para ocasamento. Socialmente, há um controle na quantidade de namoros, quer dizer, não épermitido trocar muitas vezes de parceiro. “Namorar é para se casar” (p. 146). Aaprovação do namoro pelos pais é condicionada às habilidades técnicas paratrabalhar com a terra e para a lida na casa, b<strong>em</strong> como se prefere parceiros quereceberão herança. Outra coisa fundamental é a fecundidade. Por isso, existe oDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 126


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408costume das famílias viabilizar<strong>em</strong> a relação sexual antes do casamento. Geralmente anoiva já se casa grávida.Quanto ao casamento, Bahia percebe a existência de uma rede familiar esocial que condiciona o futuro pretendente. “O comportamento e as qualidades derapazes e moças são alvo de comentários na comunidade. Quando uma moça seinteressa por um determinado rapaz, a comunidade (pais, vizinhos, amigos) comentasobre as qualidades dele e as possibilidades de este ser ou não um tipo ideal com queela possa se casar. Quando o rapaz é desconhecido, a família busca maioresinformações com os vizinhos e aciona a rede de parentesco existente <strong>em</strong> outroslugares a fim de se obter<strong>em</strong> informações sobre seu caráter e comportamento” (p.159). A família quer saber se o rapaz é trabalhador, se t<strong>em</strong> herança, se é de boafamília (blut = sangue). Segundo a autora, o casamento ideal é com um igual. Casarpara baixo ou para cima é prejudicial. Qu<strong>em</strong> casa para baixo vai perder e qu<strong>em</strong> casapara cima vai ficar s<strong>em</strong>pre por baixo. Um casamento interétnico e um casamento comuma pessoa de outra religião são considerados para baixo. Quando um casal decideficar junto s<strong>em</strong> a aprovação, geralmente acontece o rapto da noiva, coisa quesegundo a autora, é comum. O casamento mais indesejado é o de viúvos, pois ele criaconflitos na divisão da herança, reduz a possibilidade de parceiros para os filhosmais jovens e torna-se alvo das fofocas da comunidade.Os preparativos do casamento começam com um ano de antecedência. O rito<strong>em</strong> si “dura cerca de três dias, mas os el<strong>em</strong>entos envolvidos na sua realizaçãorequer<strong>em</strong> meses de antecedência para ser<strong>em</strong> providenciados” (p. 173). O casamento éentregue nas mãos de um preparador que contrata uma equipe de cozinheiras etocador de concertina. Além desses, os parentes e vizinhos se mobilizam para ajudar.Esses não cobram, trabalham na idéia de reciprocidade. “A idéia de comunhão <strong>em</strong>utirão está presente na hora de celebrar o casamento” (p. 173). Cada pessoa quetrabalha na festa ganha fitas coloridas conforme sua atribuição. “Os copeiros usamfitas de tamanho maior na cor vermelha. A equipe da cozinha usava fitas de cor azulDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 127


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408clara. As test<strong>em</strong>unhas, os padrinhos no caso, e os parentes, tais como os pais, osirmãos e os avós, usam respectivamente fitas verdes e brancas” (p. 181). Os tocadoresde concertina usam fitas coloridas e os convidados somente ganham fitas na hora dadança dos noivos.O casamento é uma ruptura e transformação. Marca “o fim dos bailes, dot<strong>em</strong>po de namoro, a separação da casa paterna, a separação dos amigos solteiros e oencontro com parentes que há muito não são vistos” (p. 183). Essa passag<strong>em</strong> éregistrada pela fotografia que fixa o momento.Um mês antes do casamento o Hochtijdsbirar (o convidador), um rapaz(geralmente é o irmão solteiro do noivo ou da noiva) todo enfeitado percorre aregião, fazendo o convite para o casamento. O convidador leva uma garrafa decachaça que oferece para a família convidada depois de ter feito o convite. Aceitar abebida e dar uma gorjeta para o convidador indica que se está aceitando o convite.Na Quaresma, no mês de Agosto e nos doze dias que compreend<strong>em</strong> o dia denatal até o dia de Reis (6 de janeiro), não há casamento, pois são considerados diasperigosos, visto que são “datas-limites <strong>em</strong> que nenhum grande negócio ou atitudedeve ser tomada” (p. 186). Julho é o mês de maior número de casamentos, devido aoacúmulo de recursos provenientes da colheita. Em set<strong>em</strong>bro, retoma-se a freqüênciados casamentos.No primeiro dia que dá início aos três dias de festa do casamento, realiza-seo Quebra-Louças. Nesse dia, o prato principal é uma sopa de miúdos de galinhachamada hinapoudan. Essa sopa significa boa sorte para o novo casal.Depois da janta, acontece o ritual do Quebra-Louças. As mulheres que vãorealizar o ritual vest<strong>em</strong> avental e colocam pratos nos bolsos. Posicionam-se no centrodo terreiro e começam a rezar e atirar os pratos no chão. Logo após, “todos ospresentes dançam <strong>em</strong> cima dos cacos. Enquanto os noivos tentam varrê-los paraDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 128


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408dentro do terreiro, os convidados têm a tarefa de impedi-los, <strong>em</strong>purrando os cacospara fora do salão” (p. 204).No dia do casamento, “há uma atividade contínua até a hora <strong>em</strong> que osnoivos sa<strong>em</strong> para a Igreja. A equipe da cozinha e alguns parentes permanec<strong>em</strong> nacasa para garantir o andamento das atividades relacionadas à alimentação. O correcorreé geral. Os copeiros, os parentes e vizinhos, todos quer<strong>em</strong> entrar nos caminhõese fazer parte do cortejo que seguirá pelas estradas até à Igreja, onde será realizada acerimônia” (p. 209). Após o casamento, há um jantar e depois baile. “É na primeirahora do baile que se t<strong>em</strong> início a longa ‘dança da noiva’” (p. 214). Os noivos dançamcom todos os convidados, iniciando por seus parentes.Sobre a morte e o morrer, os pomeranos possu<strong>em</strong> uma gama de narrativasfantásticas, povoadas de seres mágicos, como o gavião-cova (hakaloch) que prediz amorte ao cantar perto da casa, assombrações, conversas com os mortos, noções depureza e perigo nos ritos mortuários. Elas são socialmente construídas e “expressamas representações coletivas acerca da vida e da morte” (p. 223).A seguir, Joana Bahia busca analisar o que acontece quando uma pessoa,animal ou objeto fica doente ou morre. Segundo Bahia, “homens, animais e objetosusados no cotidiano da land pod<strong>em</strong> ficar doentes” (p. 223). Em contrapartida, quasetudo pode ser benzido. Muitos casos são tratados por qualquer um com formulas desimpatia, pois são de domínio público. A benzedura, por sua vez, requer alguémespecializado. Ela é praticada, na maioria das vezes, por mulheres. O conhecimento étransmitido pelas mães e avós às mulheres da família. Para ser uma benzedeira, énecessário possuir aptidão para o aprendizado mágico, mas também ter dotesmorais, tais como virtude e honra. Ao contrário da simpatia, para a benzedura, oaspecto do segredo é fundamental, como parte da técnica <strong>em</strong>pregada pelabenzedeira. “As benzedeiras são <strong>em</strong> sua maioria líderes religiosas que, além departicipar<strong>em</strong> ativamente dos eventos da igreja, muitas vezes possu<strong>em</strong> um papelDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 129


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408expressivo na hierarquia do t<strong>em</strong>plo local” (p. 227). Muitas curam apenas casosconsiderados mais simples. Os casos mais complicados, como de bruxaria, porex<strong>em</strong>plo, são levados àquelas que se situam fora da comunidade.Bahia constata a existência de fortes conflitos entre pastores e a prática dasbenzeções, também chamados rezadores. “A visão dos pastores sobre as superstiçõespomeranas se estend<strong>em</strong> também sobre os enterros e a forma como estes representama concepção de morte. A condenação aos costumes do grupo transparece quando osmesmos relatam as minúcias das ações e palavras realizadas no decorrer desteperíodo” (p. 240).A morte é uma ruptura na unidade social. Para restabelecer a ord<strong>em</strong> nomundo dos vivos, são necessários ritos funerários que marcam e delimitam apassag<strong>em</strong>. “Da mesma forma que t<strong>em</strong>os o convidador para o rito de casamento,t<strong>em</strong>os também o Gräwnisbirar, parente (hom<strong>em</strong>) da família do morto que anuncia amorte de casa <strong>em</strong> casa e convida a todos para participar<strong>em</strong> do sepultamento” (p.242). O convite é feito do portão, não se entra na casa, n<strong>em</strong> cumprimenta ninguém,pois o convidador representa a extensão da imag<strong>em</strong> do morto. Na casa, os relógiossão parados, os espelhos cobertos. Uma das mulheres mais idosas lava o morto. Umajov<strong>em</strong> não poderia lavar, pois perpetuaria a marca da morte. Além do morto, a casa etodos os objetos são purificados com água. Ao final, a água é jogada b<strong>em</strong> longe detudo e de todos, pois oferece perigo.A sepultura é aberta no dia seguinte. “Os sinos bat<strong>em</strong> três vezes no decorrerdo rito. A primeira vez quando se inicia a escavação, a segunda no meio do trabalhoe a última quando está tudo pronto” (p. 252). Uma vez iniciado o féretro, não se podeparar, pois onde se parar é consenso de que daquela redondeza sairá a próximapessoa a falecer. “Também não se pode seguir atrás do morto, especialmente ascrianças e as mulheres grávidas que segu<strong>em</strong> por um outro caminho” (p. 247).Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>13</strong>0


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Em seu estudo sobre o imaginário dos pomeranos, Bahia faz a relação entre amorte e o sofrimento com a terra prometida de Canaã. Segundo ela, “a metáforabíblica da Canaã [...] é evocada na imag<strong>em</strong> construída do imigrante que busca aliberdade e a terra” (p. 255). Existe uma relação gradativa, do sofrimento à salvação eredenção. Ela levanta a existência do provérbio “Aos primeiros, a morte. Aossegundos, a miséria. Aos terceiros, o pão.” como forma dessa representação. Diz queessa imag<strong>em</strong> foi paulatinamente sendo construída pelo ethos do trabalhadorcamponês, desde a primeira geração (p. 255).“Batizar um filho ou confirmá-lo pod<strong>em</strong> ser tarefas de um leigo, mas casar <strong>em</strong>orrer cabe ao pastor executá-las” (p. 258), pois é tarefa do pastor decifrar o caminhopara a terra prometida. “Neste sentido, a presença do pastor e da igreja no rito d<strong>em</strong>orte é um el<strong>em</strong>ento fundamental” (p. 260).A terceira parte da tese está dividida <strong>em</strong> dois capítulos. No primeiro, Joanaanalisa as acusações de bruxaria e as cartas sagradas de proteção. No segundo,retoma a questão central da tese que trata da relação entre identidade social e étnica esua formulação pelo grupo estudado a partir da análise das suas expressõesculturais, no caso estudando as práticas mágicas, retomando todos os el<strong>em</strong>entosexpostos nos capítulos anteriores a fim de apresentá-los de forma sucinta eorganizada.“Há uma relação estreita entre bruxaria e benzedura, pois esta última é oofício da benzedeira que procura desfazer o mal causado por aquele que fezbruxaria” (p. 272). Além disso, a feitiçaria é uma magia instrumental, enquanto abruxaria operacional, s<strong>em</strong> a ajuda de nenhum instrumento. Assim, o mau-olhado éum dos principais meios da bruxaria. “Além das crianças e d<strong>em</strong>ais m<strong>em</strong>bros dogrupo doméstico, o mau-olhado pode afetar animais e plantas – principalmente alavoura – que pod<strong>em</strong> ficar doentes e morrer<strong>em</strong>” (p. 274).Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>13</strong>1


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Na concepção dos pomeranos, há dois caminhos: um que leva à perdição eoutro que leva à salvação. O primeiro é o mais fácil e mais largo, no qual o jogo, abebedeira, a prostituição e d<strong>em</strong>ais pecados constitu<strong>em</strong> uma tentação e conseqüênciadesse caminho. O segundo é o mais estreito, por isso, mais difícil. Ele é o caminho dapobreza e do sacrifício (p. 282). A palavra bíblica e a lei são tida como umacompromisso necessário para qu<strong>em</strong> anda pelo caminho mais estreito.As acusações de bruxaria, constata Bahia, são de ord<strong>em</strong> moral. “Quando ascoisas vão mal na comunidade, quando há falhas na colheita, as chuvas não vêm e aspessoas morr<strong>em</strong> antes do seu t<strong>em</strong>po, a razão é que a ord<strong>em</strong> moral foi violada pelosinteresses individuais. Quando as mulheres recorr<strong>em</strong> na justiça comum para obter<strong>em</strong>ganhos de terra, significa uma ruptura com a ord<strong>em</strong> moral, com o valor ‘autoridadedo pai’, base de toda a land” (p. 283). “É no momento da redistribuição da herança edos recursos da land que ocorr<strong>em</strong> os conflitos internos à ord<strong>em</strong>, especialmente entreos pares concorrentes, mas não igualitários: herdeiros (homens primogênito [sic.]) enão-herdeiros (os homens não primogênitos [sic.] e as mulheres)” (p. 283). Essesconflitos quebram a ord<strong>em</strong> e as relações. Em conseqüência, cada lado fica naexpectativa de que o outro lhe vá causar mal. Assim, “é no interior da própria land eda família que t<strong>em</strong>os os bruxos” (p. 283).Para esses casos de bruxaria, os pomeranos prefer<strong>em</strong> buscar ajuda fora dacomunidade, entre os brasileiros. Existe uma compreensão de que a magia de fora émais potente. Além disso, uma pessoa de fora não está envolvida diretamente noconflito. “Diz Bahia que, “para resolver o mal que aflige o <strong>em</strong>bruxado é necessáriobuscar forças mágicas naquilo que é especial, localizado na liminaridade das relaçõessociais, e que melhor interpreta a diferença. O estrangeiro, por não estar situadonesta comunidade étnica, evita atingir as relações de trocas simbólicas mais próximasda Land, ou seja, aquelas realizadas entre parentes e vizinhos” (p. 288).Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>13</strong>2


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408“Além das palavras mágicas que classificam o outro e marcam o universodas diferenças sociais, t<strong>em</strong>os também a importância dos objetos como proteçãocontra o mal” (p. 288). Nesse sentido, as cartas mágicas (himmelsbrief, carta do céu eschultzbrief, carta de proteção), as fotografias, os livros de orações, a Bíblia e oshinários são objetos mágicos que proteg<strong>em</strong> a unidade doméstica. “As l<strong>em</strong>branças dosritos de passag<strong>em</strong> são reavivadas pelas fotos dos mortos e pela força do sentido daspalavras das cartas” (p. 295). Os pomeranos guardam fotografias de todos os ritos depassag<strong>em</strong>. Assim, a foto do morto pode ser encontrada com uma família enlutada.Ela delimita esse momento, ajudando a impedir que o defunto regresse. Para afamília que possui uma carta, ela t<strong>em</strong> valor de ícone que protege contra todo o mal.Caso uma pessoa use a carta no bolso, ela estará protegida, seja contra feitiçarias ouarmas de fogo. Quanto aos t<strong>em</strong>as das cartas, Bahia diz que todos “estão enraizadosno mundo real e expressam questões tais como: proteção e preservação da identidadecasa/família para afastá-la do mundo do mal, do d<strong>em</strong>ônio e da morte; para nãocobiçar riquezas, não ferir o outro com a língua; partilhar os frutos do trabalho compobres e vizinhos; as mães dev<strong>em</strong> ter filhos sadios e alegres; honrar pai e mãe(autoridade paterna) e, principalmente, não trabalhar aos domingos e n<strong>em</strong> até tardeno sábado. Além desses itens t<strong>em</strong>os o uso de termos que expressam símbolosdiacríticos sagrados na cultura al<strong>em</strong>ã tais como sangue, espírito, palavra e ethos dotrabalho, que enfatizam a imag<strong>em</strong> do imigrante <strong>em</strong>preendedor e de orig<strong>em</strong>camponesa” (p. 302).ConclusãoEm primeiro lugar, a pesquisa de campo merece destaque nessa tese. Aautora, além de fazer entrevistas, fez uso da observação participante. Coisa que lheauxiliou a entender e a descrever os diferentes ritos que envolv<strong>em</strong> o mundopomerano. Em segundo lugar, na conclusão, e <strong>em</strong> consonância com o nosso objeto depesquisa, pretend<strong>em</strong>os retomar apenas aspectos que possam nos auxiliar a entenderDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>13</strong>3


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408os modelos e as estratégias de sobrevivência, b<strong>em</strong> como o estabelecimento deconflitos e resoluções que os migrantes pomeranos enfrentaram <strong>em</strong> Rondônia.Joana Bahia descreve o mundo pomerano como sendo essencialment<strong>em</strong>ágico, religioso e étnico. Os rituais de benzedura, as cartas mágicas, as simpatias eos rituais que envolv<strong>em</strong> os ritos de passag<strong>em</strong> são forças construídas socialmente quenos ajudam a entender o imaginário pomerano. É com base nessa cosmovisão que osconflitos e resoluções se estabelec<strong>em</strong>.Segundo Bahia, “a manutenção do dialeto, dos costumes matrimoniais, daspráticas mágicas que acompanham os ritos de passag<strong>em</strong>, a reinvenção das festascomunais, a continuidade de el<strong>em</strong>entos da narrativa mágica e fantástica das históriasorais campesinas de orig<strong>em</strong> pomerana são el<strong>em</strong>entos evocados no momento <strong>em</strong> qued<strong>em</strong>arcam as diferenças identitárias existentes entre os pomeranos e os outrosimigrantes de orig<strong>em</strong> al<strong>em</strong>ã” (p. 2). Nos interessa comparar aqui <strong>em</strong> que medidaesses el<strong>em</strong>entos são reproduzidos, reinventados, adaptados ou deixados de lado <strong>em</strong>Rondônia. Em que medida os migrantes se integram na sociedade rondoniense e <strong>em</strong>que medida eles reproduz<strong>em</strong> seu ethos cultural.A igreja luterana constitui-se numa das maiores fontes identitárias dospomeranos. Ela ajuda a criar o imaginário e a sustentá-lo. A igreja faz parte daidentidade étnica e social deles. S<strong>em</strong> ela, eles deixam de ser pomeranos. A migração,nesse sentido, é condicionada à existência das condições necessárias para areprodução do modo de vida camponês pomerano, que envolve, entre outras coisas,a possibilidade de aquisição de terras e a existência de sua igreja.Por falar <strong>em</strong> migração, ela é um el<strong>em</strong>ento constante no meio pomerano. Areprodução do modo de vida camponês requer, fundamentalmente, terra. Como adivisão da herança privilegia o caçula e como a quantidade de terra que forma umaland é insuficiente para ser dividida entre todos os filhos, geralmente os mais velhossa<strong>em</strong> para novas fronteiras. No caso da migração para Rondônia, Bahia diz que já é aDisponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>13</strong>4


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408quarta geração. Nas suas palavras: “A quarta geração marca a saída dos pomeranospara a criação de colônias <strong>em</strong> outros Estados, tais como Rondônia (Espigão doOeste), Mato Grosso, Pará, Goiás e Paraná, a partir da década de 70” (p. 54).O imaginário pomerano, desde o inicio da imigração, forjou uma metáforamuito expressiva, qual seja, a idéia de que se está caminhando <strong>em</strong> direção à terraprometida, a idéia da Canaã, da “terra que <strong>em</strong>ana leite e mel”. Para chegar a essaterra, o caminho é muito difícil; pobreza e sofrimento o marcam. Esse imaginárioajuda nos momentos de maiores dificuldades, pois diz que, ao final, virá a salvação.Bahia l<strong>em</strong>bra o forte <strong>em</strong>bate que existiu entre pastores formados e pastoresleigos no início da imigração. Essa disputa ainda está presente no imagináriopomerano, pois dificilmente aceitam que um leigo execute um ofício (p. 94). Isso étrabalho essencialmente do pastor. Nenhum m<strong>em</strong>bro se sente preparado paraassumir essa tarefa. Em Rondônia, alguns leigos assumiram, na falta de pastor,alguns ofícios. Entr<strong>em</strong>entes, pode ser percebido o conflito que isso gerou entre osm<strong>em</strong>bros da comunidade e na própria pessoa que oficiava. Esse conflito tornou-se<strong>em</strong>pecilho para o trabalho de formação de lideranças leigas. A valorização dosacerdócio geral s<strong>em</strong>pre foi muito questionada entre os próprios m<strong>em</strong>bros.Um outro fator de destaque é a reciprocidade entre os pomeranos. Nessesentido, “o mutirão entre os pomeranos do Espírito Santo é uma prática comum” (p.33). “Esta prática é relatada como parte constitutiva na esfera do trabalho pelospomeranos nos primórdios da imigração. O trabalho do mutirão s<strong>em</strong>pre foi<strong>em</strong>pregado nos seguintes casos: limpar cafezais e colher café (homens e mulheres),abertura de estradas na base da enxada (homens) a fim de melhorar o escoamento daprodução até a cidade de Vitória, construir casas (para o futuro casal) por ocasião dospreparativos do casamento, <strong>em</strong> caso de doenças na família e para foiçar o terreno(homens usam a foice e as mulheres limpam o terreno)” (p. 34). Em Rondônia, v<strong>em</strong>osessa mesma prática ser reproduzida com sucesso.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>13</strong>5


<strong>Revista</strong> Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do <strong>Protestantismo</strong> (NEPP) da Escola Superior de TeologiaVolume <strong>13</strong>, mai.-ago. de 2007 – ISSN 1678 6408Como citar esta revistaComo citar esta revista:<strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong>. São Leopoldo, v. <strong>13</strong>, mai.-ago. 2007. ISSN 1678 6408 Disponível <strong>em</strong>: Acesso <strong>em</strong>: 30/05/2008Como citar um artigo desta revista:(Ex<strong>em</strong>plo)OLIVEIRA, Kathlen Luana de. História como Contextualidade e Apatia Teológica. <strong>Protestantismo</strong> <strong>em</strong><strong>Revista</strong>. São Leopoldo, v. <strong>13</strong>, mai.-ago. 2007, p. 51-72. ISSN 1678 6408. Disponível <strong>em</strong>: Acesso <strong>em</strong>: 30/05/2008.Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp <strong>13</strong>6

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