8 Sábado, 29 de Maio de 2010.CapaComissões Populares de BairroO rastilho da purga«Sobre os números adiantados pelas autoridades do país, garanto que existe um erro muito por defeito. Mesmo porque eu tinhamais de 200 amigos e conhecidos, noventa por cento dos quais não vejo há 33 anos!»SA – Fale um pouco sobre asantigas Comissões Populares deBairro que também estiveram nocentro das divergências.Manino – Não são antigas, porquese aquelas não tives<strong>sem</strong> sidocriadas, as actuais não existiriam.A CPB do Sambizanga foi criadaem Maio de 1974, na casa da D.Juliana Paim, minha mãe, onde euainda vivia, e não foi nada difícilconvencê-la a aderir ao projecto.Aliás, naquela altura a «velha» sótinha 48 anos. Da direcção da CPBdo Sambizanga nasceu a ideia danecessidade de um órgão coordenadorde todas as CPB’s a nívelde Luanda. Quando as condiçõesestavam totalmente criadas paraa concretização desse desiderato…apareceram os outros «cabeças desérie» a reivindicar o protagonismoda ideia e a liderança do projecto.É aí que a unidade no seio dasCPB entrou em rota de colisão. Eessa rota de colisão terá funcionadocomo um vírus óptimo para aprodução «laboratorial» do «Fraccionismo».Depois, a dis<strong>sem</strong>inaçãodesse vírus era o passo que se impunha.SA – Manino, você integrou aequipa do programa radiofónico«Kudibanguela». Qual terá sidoo papel desse programa, no contextodo levantamento do «27 deMaio», e quais os objectivos?Manino – O Kudibanguela, apartir do momento em que deixoude servir os interesses do MPLA,foi extinto. O Presidente Neto, quehavia «assinado por baixo» quandoa ideia de criação do programalhe foi apresentada, não teve dedecretar a sua extinção: convidoua equipa para um jantar, no decursodo qual anunciou que, a partirdaquele dia… não mais kudibanguela.Ele disse para nós, nesse jantar,cito: «…camaradas, convém aoMPLA que o Kudibanguela nãomais vá para o ar…»Nós, individualmente, éramos(somos) cidadãos comuns, a vivere acompanhar a situação do país.Daí que o papel e participação decada um foi, em consciência, a títuloindividual. Agora, também éverdade que existia cumplicidadedo «Kudibanguela» (e quando digoKudibanguela, posso já dizer dosseus elementos) com o projecto idealizadopor Nito Alves. Logo, haviaalinhamento.O meu papel consubstancia-senaquilo que acabo de descrever.Quer saber o quê, se participei?Não fui morto, mas fiquei privadode liberdade durante 850 dias. Fuipreso no dia 01 de Junho de 1977.Fui voluntariamente entregarmequando deixei de suportar amoléstia e assédio de que era alvoa minha família. Minha esposahavia dado à luz o nosso segundofilho no dia 1 de Maio. De partofresco e eu metido em politiquices,com pouco tempo para a assistir,ela hospedou-se em casa da mãe.A nossa casa, por ocasião do 27de Maio, ficou abandonada, sendopalco de visitas constantes dossenhores da DISA, no intuito deme prenderem. A situação estavabastante insuportável para mim.Sem notícias da família, no meuesconderijo, meditava na formade pôr cobro a tal situação. Fui aomeu local de serviço, onde os colegasme receberam <strong>sem</strong> qualqueranimosidade. Aí, um deles pegouno telefone e passados dez minutos(não mais) apareceu uma «combi»a apanhar-me, para levar-me aolargo Farinha Leitão, à presençado Dr. Rui Monteiro, então directordo D.O.R. e de quem eu dependiana altura.Encaminhado ao Ministério daDefesa, onde ninguém me dissenada, duas horas volvidas apareceuum oficial de alta patente e comvoz de comando na instituição, amandar evacuar todo o «lixo» queali se encontrava, para as instalaçõesda DISA. Aí, por volta das23h00/23h30 apareceu um «chefe»que tomou a decisão de nos evacuar(eu e mais oito ou dez «altamenteperigosos») para a cadeia deS. Paulo, onde permaneci durantedez meses e meio (grande parte dosquais em cela dividida com mercenários),altura em que alguémse lembrou de entrar de cela emcela, para perguntar quem aindanão havia prestado declarações.Em 7 Fevereiro de 1979, fui evacuado(com mais cerca de setentacorreligionários) para o campo derecuperação e produção do Tari,na Quibala, onde permaneci até aodia 29 de Setembro do mesmo ano,data em que me foi passada umaguia de soltura. Foram só 850 dias,não mais.SA – Quem eram os integrantesdo «Kudibanguela»?Manino – Da equipa do Kudibanguelafaziam parte: ManuelNeto (MBala), coordenador e naaltura DG da RNA; Adelino Santos(Betinho); Costa BenjamimNGalangandja; Emanuel Costa(Manino); Rui Malaquias (Ngila);Colosso; Evaristo Rocha; RicardinaRocha (Didina). Na RádioNacional fomos assessorados nasonoplastia pelo Fernando Neves,o Artur Arriscado e o Óscar Gourgel,que em momento algum foramtidos como membros da equipa.Do Kudibanguela mesmo restamosquatro para contar a história.SA – No meio disto tudo, é possívelconhecermos as razõesdo «milagre» que estiveram nabase da sua sobrevivência?Manino – Isso foi, de facto, umaperipécia. Foi uma cadeia de episódiose situações, todos eles encaixando-see formando um elo queculminou nesse «milagre». É claroque milagres só têm um autor. Econhecer toda essa cadeia hoje, eagora, não. Acho que quem operoutal milagre me dará forças paraacabar de escrever o livro ondenarro tudo isso ao pormenor.SA – Por que razão, em sua opinião,terá fracassado o levantamento?Manino – Em minha opinião, eeu já disse atrás, a razão da forçasobrepôs-se à força da razão. Apenasisso. Vejamos o que se passouem Portugal, no dia 25 de Abril de1974. Ali, o exército estava debilitado,enfraquecido, desmoralizado,combalido, e pela incapacidadede encontrar e ditar soluções emtorno das «fissuras» que um poucopor toda a instituição iam aparecendo,as decisões que antes eramsó e exclusivamente tomadas e assumidaspelos senhores da guerra,começaram a ser partilhadas comos jovens revolucionários capitãesmilicianos.Por ocasião do 25 de Abril de1974, eu estava incorporado noexército português, com patentede furriel miliciano. E o que mefoi dado testemunhar é que todosaqueles sargentos, capitães,majores, coronéis, etc. do quadropermanente do exército, ao tomaremconhecimento da situação emPortugal, como que entraram emparafuso. De repente viram-se órfãosnas suas missões e objectivos
Sábado, 29 de Maio de 2010. 9Capae quase que se subalternizavama nós, graduados autóctones, todaviacom patentes inferiores àsdeles. Cada um disputava a nossasimpatia, a nossa atenção, enfim,perante nós, como que se «queimavam»entre eles, apontando estesargento ou aquele capitão comopertencendo à PIDE. Nós testemunhamostudo isso! Aqui, não: aquiestava tudo sob controlo. O país emestado de guerra, logo, um exércitoem constante prontidão combativae, sobretudo, uma retaguarda super-segura,apoiada por «exércitosamigos». É só isso... mais o perdão,que não haveria.SA – A Fundação 27 de Maioassegura que a DISA massacroumais de 80 mil almas, enquantoas autoridades do país reportaram<strong>sem</strong>pre a eliminação físicade «apenas» 200 fraccionistas.Para si, qual poderá ter sido a dimensãodessa chacina?Manino – Não assumo que, provavelmente,haverá erros por excesso,por parte da Fundação. Agora,sobre os números adiantados pelasautoridades do país, garanto queexiste um erro muito por defeito.Bastante crasso. Mesmo porque eutinha mais de 200 amigos e conhecidos,noventa por cento dos quaisnão vejo há 33 anos!SA – Perdeu muitos amigos,pode mencionar alguns nomes?Manino – Perdi «apenas» amaior parte dos meus melhoresamigos. Mbala, Betinho, RuiMalaquias, Agostinho, Estêvão eCondinho Paka, Beto Mwanza,Anelídio Escórcio, Júlio Ndambi,Germano Pais, Kiferro, EliseuBondeka, Palhaço, Adelino, MangurraII, Ginguma, Tick Tack,Gaspar da Conceição, Mulay,Cândido Silva, Paulito, Galiano,entre muitos outros.SA – Muitos sobreviventes têmestado a exigir salários, indemnizações,remunerações extraordinárias,etc.. Qual a sua posiçãoem relação a esta questão?Manino – A minha opinião é deque, se calhar, esses sobreviventes(nos quais logicamente me revejo)estão a pedir muito pouco. Para dizerque nada do que se está a pedirestá fora do alcance de quem tem odever e a obrigação de dar. Aliás,de devolver! 1. Repor a dignidadee o respeito; 2. lavar a imagem,integridade e ego; 3. co-liderar oprocesso de identificação de valascomuns; 4. dar sepultura condignaàquelas pessoas que foram vítimasde emoções exacerbadas, desígniosinconfessos, excessos de zeloe vinganças pessoais; 5. proceder aindemnizações por perdas e danos;6. reconduzir as pessoas aos postosde trabalho que antes ocupavam…Em resumo, são reivindicaçõesque, uma vez cumpridas, entra-sena posse de garantia segura para apacificação de espíritos e da outravertente da reconciliação e unidade,que tarda a acontecer.SA – Onde trabalhava na altura?Manino – Na altura funcionavano Departamento de OrientaçãoRevolucionária (DOR), umórgão do MPLA que substituiu oentão Ministério da Informaçãoe era liderado pelo Dr. ManuelRui Monteiro. Eu estava colocadono CIAM, como técnico deRelações Públicas.SA – Estará o Manino a escreveras suas memórias sobre o27 de Maio, já o fez ou estará acogitar, ainda, fazê-lo? Quandopensa lançá-lo?Manino – Estou, aliás, já fiz referênciaa isso. E, pelo que sei, nãosou dos poucos. Todavia, pensoque deveríamos ser muitos mais«Não foi a plantarcouves que algunsbons cidadãos conseguiramacumularos biliões de dólaresque ostentam nassuas contas bancárias»a escrever. Quanto mais não seja,para tentarmos tornar virtual umfenómeno que, quer queiramosquer não, é parte de nós e há-deviver connosco durante gerações.Essa «criança» já foi concebida hácerca de quatro anos, mas, pelosvistos, não tem pressas de vir aomundo. Verdade se diga, nem opróprio progenitor tem pressa, porquepretende que ela não seja umnado-morto. E também pelo factode estar a tentar escrever três obra<strong>sem</strong> simultâneo. Não sei se tudo vaidar certo. Mas tendo a certeza deque a «criança» vai mesmo nascer.SA – Pode avançar-nos o título?Manino – Embora digam sermau agouro dar-se nome a umacriança antes de ela nascer, o meurebento já tem nome: «850 dias: entrefiguras e figurões». Com essa estaturaaparecerão os personagensdessa obra: os primeiros, elevadosao expoente máximo; os outros, reduzidosà ínfima espécie.SA – A quantos fuzilamentosassistiu, pelo menos nas cadeia<strong>sem</strong> que esteve preso?Manino – A nenhum. Não tenhomemória de ter registado umepisódio que, tenho a certeza, iriamarcar-me para o resto da vida.SA – Está filiado em algum partido,ou política …«nunca mais»?Manino – O senhor jornalistairá encontrar resquícios de umvírus que se chama política noADN de qualquer ser humano.Eu não sou excepção. Sou político,faço política e estou filiado.Acho que política não é bemcomo o futebol. Na política nãose penduram chuteiras. Antes,morre-se com elas nos pés.SA – Onde trabalha, é bem remunerado,vive dignamente coma sua família?Manino – Estou neste momentoa trabalhar com uma pessoa muitoamiga. Concebemos um projecto,para o qual estabelecemos cronogramaspara resultados, que pretendemosescrupulosamente cumprir,sendo que as remuneraçõesvão dependendo desses mesmosresultados. Vivo dignamente coma minha família, se esse conceitotiver a ver com respeito recíproco,amizade, cumplicidade e demaisatributos que contribuem para aestabilidade e harmonia num lar.Nesse aspecto, posso garantir quesou feliz.SA – O que terá perdido com o27 de Maio?Manino – Pergunte-me antes oque não terei perdido. Não perdi avida e a família, e a Deus dou graçaspor isso: a vida, por ser o dommaior que Ele nos concedeu; a família,<strong>sem</strong> a qual, pelo facto de já atermos tido constituído na altura,a vida não teria sentido para nós.Perdi os melhores amigos. Foi-meusurpada a minha casa, com todosos bens que ela comportava: electrodomésticos,móveis e utensílios,bens pessoais (retiraram fotografiasde amigos íntimos, dos meusálbuns de casamento e outros).Perdi uma viatura pessoal (quecheguei a ver a circular em mãos deenergúmenos, em várias ocasiões,após sair da cadeia) e outra que mehavia sido atribuída por inerênciade funções. Perdi o emprego. O quefaltava perder mais? Quando mefoi restituída a liberdade, só merestou começar do zero. Mas, mesmoaí, encontrei muitos e muitosentraves.SA – Após a sua libertação, deualgum passo no sentido de reaveros seus bens?Manino – Mas é claro e doutromodo não poderia ser. Comecei porabordar, junto do DOR, a questãodos salários relativos a 28 meses decativeiro <strong>sem</strong> julgamento e <strong>sem</strong> culpaformada. Fiz uma exposição areivindicar o meu apartamento edemais bens, dirigida ao então ComissárioProvincial de Luanda e hojedeputado, o mais velho Wanhenga-Xitu. Acho que o kota não chegou ater acesso a essa exposição, porqueestávamos a viver a moda das «camaradassecretárias», ou então…terá entendido que o momento nãoera propício para reivindicações. ■Sugestão de Manino«Intolerânciasobre excessos»SA – Acredita na «Tolerância Zero»?Manino – Dou o benefício da dúvida. Mas estou mais tentado aacreditar em algo que definiria como «Intolerância sobre excessos».É como que determinar balizas, estabelecer limites sobre o uso (<strong>sem</strong>abusos) da cousa pública. Entende? Acho que «Tolerância Zero» émuito extremo e as<strong>sem</strong>elha-se um pouco a… «dar um passo maiorque a perna».SA – O combate à corrupção era um dos vossos desideratos em1977. Acha que esse mal social vingou no nosso País? Roubos abancos, promiscuidade entre público e privado, Sonangol…Manino – O que o senhor acha? Que foi a plantar couves que algunsbons cidadãos conseguiram acumular os biliões de dólares queostentam nas suas contas bancárias? Em 1986, se a memória não mefalha, foi criado o estado-maior contra a corrupção. Seria suposto queo estatuto reitor desse órgão observasse já nessa altura, como normae conduta, o recurso à promiscuidade, mormente com relação àquelescidadãos sobre os quais pudes<strong>sem</strong> eventualmente recair suspeitasde enriquecimento ilícito. Que, transparência, honestidade, lisura ebons costumes deveriam ser desideratos «sine-qua-non» nos curriculumvitae de cidadãos propostos para exercer cargos públicos. Masisso não funcionou assim, nem o chefe desse estado-maior estava nadisposição de «exorcizar os espíritos» de ninguém. Para dizer que essacriança que, em 1986, se chamou «estado-maior contra a corrupção»faleceu de morte prematura e nesta sua 2ª encarnação adoptou onome de «tolerância zero». O resto é a história que já todos nós conhecemos:Vira o disco e toca o mesmo…SA - Qual é o seu sonho?EC - O meu sonho é o mesmo de todo o angolano que se preze. Voucontinuando a sonhar com justiça social, com uma distribuição dariqueza nacional que, não tendo necessariamente de ser equitativa,ao menos, que seja menos desequilibrada. Vou continuando a sonharque os meus filhos e os filhos dos outros angolanos como eu possamparticipar de concursos públicos em pé de igualdade e transparênciacom os filhos dos angolanos que não são como nós. Vou continuandoa sonhar com melhores condições de saúde e saneamento básico, comescolas apetrechadas de carteiras e outras condições mínimas para asnossas crianças. Sobretudo, vou continuando a sonhar que um dia,estes nossos dirigentes cairão em si e farão por merecer e ser dignosdeste povo generoso que eles estão a governar. Que um dia, cada ministro,cada embaixador, cada deputado deste País, possa ostentarcom orgulho e dignidade a divisa: «este povo de ama, porque eu souum fiel depositário e porta-voz dos seus anseios e ideais». Este é o meusonho. ■
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