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Relatório Azul 2011 - Assembléia Legislativa

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Comissão de Cidadania e Direitos Humanos


Mesa Diretora da AL/RS <strong>2011</strong>-05-06Presidente: Dep. Adão Villaverde (PT)1º Vice-presidente: Dep. José Sperotto (PTB)2º Vice-presidente: Dep. Frederico Antunes (PP)3ª Secretária: Dep. Zilá Breitenbach (PSDB)4º Secretário: Dep. Catarina Paladini (PSB)Comissão de Cidadania eDireitos HumanosPresidente: Dep. Miki Breier (PSB)Vice-presidente: Dep. Álvaro Boessio (PMDB)Titulares:Dep. Miriam Marroni (PT)Dep. Edegar Pretto (PT)Dep. Jeferson Fernandes (PT)Dep. Ana Affonso (PT)Dep. Alexandre Postal (PMDB)Suplentes:Dep. Alexandre Lindenmeyer (PT)Dep. Marisa Formolo (PT)Dep. Nelsinho Metalúrgico (PT)Dep. Giovani Feltes (PMDB)Dep. Marco Alba (PMDB)Dep. Gerson Burmann (PDT)Dep. Marlon Santos (PDT)Dep. Adolfo Brito (PP)Dep. Marcelo Moraes (PTB)Dep. Zilá Breitenbach (PSDB)Dep. Luciano Azevedo (PPS)Dep. Mano Changes (PP)Dep. Aloísio Classmann (PTB)Dep. Pedro Pereira (PSDB)Dep. Catarina Paladini (PSB)Dep. Paulo Odone (PPS)


Sumário


17 • DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL AO DIREITOÀ CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA .................................. 331Anelise Silene de Souza MeloLuciane Barcellos de Almeida18 • O NEOLIBERALISMO E A POLÍTICA DESAÚDE NO BRASIL ................................................................................... 341Caroline Pereira Santos19 • PROSTITUIÇÃO FEMININA EDIREITOS HUMANOS NO RS .................................................................. 351Ana Paula Dhein Griebeler20 • NOVOS DESAFIOS PARA OS DIREITOS HUMANOSDAS/OS SEM-TERRA E SEM TETO NO RIO GRANDE DO SULA PARTIR DE <strong>2011</strong> .................................................................................... 367Jacques Távora Alfonsin21 • RESQUÍCIOS DA DITADURAO CASO DO SOLDADO DE SANTA MARIA ....................................... 379Deputado Estadual Jeferson Fernandes22 • A LEI MARIA DA PENHA EA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER .................................................... 389Rubia Abs da Cruz23 • A LUTA POR MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA ...................... 397Suzana Lisboa24 • ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO .............................................. 407Sônia Mascaro Nascimento25 • A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICOSÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA ........................................................... 413Barbara E. NeubarthPARTE V - A COMISSÃORELATÓRIO DAS ATIVIDADES DA CCDH EM <strong>2011</strong> .......................... 429ANEXO - COMISSÃO DA VERDADE .................................................... 437


Artigos


INTRODUÇÃODeputado Estadual Miki Breier 1Se un diritto fondamentale è rivendicato da taluni, allora esso èrivendicato per tutti. È sulla base di questa solidarietà, conseguenteall’universalità e all’indivisibilità dei diritti fondamentali, che se sviluppanol’ amor proprio, cioè il senso della propria identità di personae di cittadine, insieme, il reconoscimento degli altri como uguali. 2Reconhecer o outro como igual, independentemente da nacionalidade, sexo,cor de pele, situação social, econômica e cultural, sempre foi a marca da defesa dosdireitos humanos. A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos sempre foi e éum locus especial para isso. Lugar onde, como diz Ferrajoli, se um direito fundamentalé reivindicado por uma pessoa, este mesmo direito deverá ser estendido paratodos. Nunca uma sociedade como a nossa conheceu tantos ataques aos direitoshumanos, mas é esta mesma sociedade que tem todas as condições para revertero quadro, como afirma Hannah ARENDT. O respeito aos direitos humanos e ocuidado com eles só é possível na sociedade. Portanto, a possibilidade de termosuma sociedade mais solidária e fraterna depende de cada um; porém este “cadaum” precisa ver o “outro” como um “outro-eu”.Nessa sociedade atual, os processos de inclusão e exclusão acentuam-se. Anecessidade de uma democracia é ainda mais evidente, pois democracia significaredução das grandes desigualdades que marcaram o século anterior e continuamINTRODUÇÃO1 Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da AL-RS, Mestre em Filosofiapela PUC-RS.2 FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Teoria del diritto e della democracia. Teoria della democrazia.v. 2. Editori Laterza: Roma- Bari, 2007. p. 64 “Se um direito fundamental é reivindicadopara alguns, então esse é reivindicado para todos. E, com base nesta solidariedade, conseguinte auniversalidade e a indivisibilidade dos direitos fundamentais, que se desenvolvem através do amorpróprio, isto é o sentido da própria identidade dos cidadãos, junto ao reconhecimento dos outroscomo iguais”. Tradução livre.11


INTRODUÇÃOa marcar esse novo século. Como diz Avelãs Neto 3 , observamos a civilização dasdesigualdades, que poderá ser transformada somente através da sociedade mundialque respeite os pressupostos básicos da democracia.Temos, ao mesmo tempo, enormes possibilidades e limitações dadas pela pobreza,não distribuição da renda e das riquezas, enorme riqueza energética e baixautilização das energias ecologicamente corretas. Assim como em todo o mundo,crescem significativamente as taxas de urbanização – fruto de um processo perversode desenvolvimento. Em outros termos: vivemos em um continente com grandepotencial de desenvolvimento sustentável, mas nossas práticas apontam muitomais para modelos econômicos de exclusão social ou de uma inclusão parcial feita,muitas vezes, de políticas assistencialistas. A efetivação dos Direitos Humanospassa pela reversão deste quadro. Mais do que isso, falar hoje em direitos humanossignifica retornar aos pressupostos da não-violência (tão defendidos por Ghandi)e a vida como valor universal. Ora, se temos estes pressupostos como metas, nãopodemos mais aceitar a velha e infundada ideia de que os direitos humanos sódefendem bandidos. O entendimento e a importância da luta pelos direitos humanospassa também pelo entendimento das novas fronteiras dos direitos humanos.Estas fronteiras não foram superadas pela sociedade globalizada, mas sabemos quepodemos também globalizar a solidariedade, este é o desafio do nosso tempo, somenteatravés dos direitos humanos conseguiremos construir um outro mundo.O caminho para a consolidação de uma sociedade mais fraterna e solidáriajá vem sendo construído, ainda que de forma paradoxal. Embora o Rio Grandedo Sul tenha sido o primeiro estado a criar uma lei sobre Reforma Psiquiátrica,ainda temos hospitais psiquiátricos funcionando. Mais que isso, temos outros locaisque continuam reproduzindo a mesma lógica manicomial, a lógica da exclusão.As ilustrações deste relatório foram todas elaboradas e gentilmente socializadaspelos participantes da Oficina de Criatividade do Hospital PsiquiátricoSão Pedro. A beleza destas obras é ao mesmo tempo essência e ciência, história erevelação, sofrimento e desintegração, é criação, é memória! Publicar estas imagensé permitir que estes outros-eus exerçam o seu direito de falar de si, ainda queatravés de cores e linhas.O ano de <strong>2011</strong> foi marcado por inúmeros fatos que direta ou indiretamenteprovocaram os deputados da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos para123 AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo, Capitalismo e Democracia. Coimbra:2003, p. 53–55.


intervirem nos diferentes “rincões ou pagos” gaúchos em situações nas quais osdireitos humanos possam ter sido ofendidos, agredidos ou arranhados.Os deputados da CCDH fizeram grandes esforços para acompanharem asdiferentes discussões relevantes que pautaram os debates nas diferentes comunidadesdo estado do RS e, nestas participações, os pressupostos dos Direitos Humanossempre estiveram presentes.Em sua essência, podemos destacar que a edição deste ano dá continuidadea um debate que começou a tomar corpo com a Revolução Francesa e foi seconsolidando ao longo da História tendo sempre no horizonte a consolidação ematerialização dos direitos essenciais das pessoas dando um grande passo, em1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e vem se concretizandogradativamente com diferentes atitudes que buscam não só a satisfação dosinteresses e ou necessidades, mas a materialização de propostas que objetivam aspolíticas públicas voltadas aos Direitos Humanos nas esferas nacional, estaduale municipal.Na edição deste ano, pretendemos descrever os fundamentos dos DireitosHumanos através de diferentes artigos; também analisaremos situações nas quaisocorrem violação explícita ou velada a estes direitos e, por fim, explicitaremos partedo trabalho dos deputados da CCDH materializado nos seminários, audiênciaspúblicas, fóruns e debates de diferentes origens.Para organizarmos estes textos nos reunimos na comissão e organizamos um“boneco” da obra com prováveis textos e a partir disto convidamos os autores eas autoras que militam em diferentes segmentos ou movimentos sociais para quepartilhassem conosco as suas ideias e experiências sobre os diferentes temas. Cadacolaborador teve presente, desde o início, um tema para organizar suas reflexões:a questão da memória dos Direitos Humanos.Depois de definida a linha ou diretriz deste Relatório <strong>Azul</strong> passamos a dialogarcom os autores e autoras para que elaborassem os textos e compartilhassemsuas experiências com a comunidade gaúcha e brasileira. Estes e estas passarama relatar seus textos a partir de consultas ou apoios bibliográficos, documentais,questionários e entrevistas feitas com as pessoas dos diferentes campos da sociedade.Alguns destes arranhões estão relatados neste relatório, os quais vão desde odireito à terra até o direito à saúde. Porém, neste ano, o foco do Relatório <strong>Azul</strong> éa questão da memória dos direitos humanos. Este relatório anual já faz parte datradição da Assembleia <strong>Legislativa</strong> e, em muitas situações, é esperado por acadêmicos,líderes dos diferentes movimentos sociais, militantes vinculados às diferentesINTRODUÇÃO13


INTRODUÇÃO14entidades ou instituições (civis, militares e religiosas), membros dos três poderese, acima de tudo, pelas pessoas que são vítimas de agressões aos seus direitos emquaisquer locais, contextos ou cenários.O Relatório <strong>Azul</strong> da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH)é uma publicação anual que procura oferecer um panorama das violações e garantiasdos Direitos Humanos no RS, os inúmeros acontecimentos jubilares quecelebramos recentemente como os 20 anos da Constituição (2008), os 20 anosdo ECA (2010), os 20 anos do MERCOSUL (<strong>2011</strong>), os 30 da Encruzilhada Natalino(2008), os 30 da Lei de Anistia (2009) e os 50 anos da Legalidade (<strong>2011</strong>)entre outros destacados acontecimentos da nossa história recente, nos convidama pensar no significado desses acontecimentos na luta pelos direitos humanos nonosso Estado e, por isso, propomos que este número do Relatório <strong>Azul</strong> seja dedicadoao tema da Memória. A Memória, enquanto constitutiva da identidadehumana e social de um povo, é uma luta em si mesma sem a qual todas as outraslutas não passarão de meros eventos conjunturais.Dentro do horizonte de exigir uma imediata instauração de uma Comissãoda Verdade que abra os arquivos da Ditadura e coloque luz sobre os mais obscurosacontecimentos do passado recente, a exemplo das melhores democracias domundo, é que consideramos prioritário abordar o tema da memória.Os textos refletindo questões relativas à memória têm o objetivo de mostrara necessidade que temos de entender o nosso passado para projetar o futuro,pois a construção de uma sociedade mais fraterna passa necessariamente peloreconhecimento dos eventos que marcaram o respeito e o desrespeito aos direitoshumanos. Este ponto ocupará a primeira parte do nosso relatório. Sim, NOS-SO RELATÓRIO; reforço a ideia deste documento como algo de construção eapropriação coletiva.Na segunda parte do Relatório <strong>Azul</strong>, mais uma vez, apresentamos questõesextremamente complexas e paradoxais, pois toda a produção legislativa em tornoda proteção dos direitos humanos ainda não foi capaz de resolver problemas históricosda construção da sociedade brasileira, nossos indígenas (parece que não ostratamos como “nossos”) ainda estão vivendo à margem dos bens desta sociedade,mas não somente eles, muitas outras situações contraditórias se apresentam, quevão desde o sistema da educação até o sistema da religião, que precisam ser constantementerevisitados e rediscutidos, este é um direito humano fundamental.Mais do que isso, precisamos afirmar que o custo para a efetivação dos direitoshumanos sempre é muito alto, mas não efetivá-los custa ainda mais, este preço


pagamos até hoje em vários setores, como o da distribuição da terra no Brasil.Somos um país continental, não nos falta terra; por que então ainda não efetivamosuma verdadeira distribuição das terras? Mais, por que continuamos comum alto indicador de concentração da renda? Este tema não passou despercebidopela comissão organizadora deste relatório, aparece de modo mais enfático na quartaparte do relatório, quando tratamos do modelo de sociedade atual, no qual apolítica econômica internacional continua tentando definir o tipo de sociedade,ou melhor, no qual o capital avança a ritmo acelerado, assim como o desrespeitoaos direitos dos trabalhadores também aumenta.Esperamos que este relatório possa contribuir para a consolidação de umasociedade na qual não tenhamos mais excluídos, uma sociedade onde o outro ÉUM OUTRO-EU.INTRODUÇÃO15


Cangaceiros – acrílico s/madeira – 41 X 32,5 cmLeonardo Fagundes da Rocha – Oficina de Criatividade/ HPSP


1 ANOS DE CHUMBO: O QUE FAZER PARAQUE TUDO SEJA APENAS HISTÓRIAMarcos Rolim 4Resumo:A aprovação pelo Congresso Nacional da “Comissão da Verdade” coloca o Brasil diante doextraordinário desafio de conhecer um passado ainda recente de violações aos direitos humanosque têm sido encobertas por aqueles que foram responsáveis pela tortura, assassinatoe desaparição forçada e por todos os demais que, por covardia ou oportunismo político, têmsido cúmplices da mentira. No processo de apuração do que ocorreu, entretanto, será precisodesmontar armadilhas que foram se cristalizando no senso comum – como a “teoria dos doisdemônios” – além de se apartar claramente de todos os crimes praticados, independentementedas suas motivações político-ideológicas.Palavras-chave:Comissão da Verdade, tortura, vergonha, negacionismo, proporcionalidade.Logo ao início do Governo da Presidenta Dilma, o escolhido para o cargode Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República,General José Elito Siqueira, afirmou, quando de sua posse, que a existência dedesaparecidos políticos não deveria ser motivo para vergonha. Segundo o General,os desaparecidos constituem, tão-somente, um “fato histórico”. O sentido daafirmação é inequívoco e demonstra que prevalece nas Forças Armadas o sentidodo “dever cumprido” no que se refere ao combate à “subversão”.Ter vergonha é uma importante capacidade para o agir moral. O sentimentocomporta um tipo especialmente útil de medo, o medo de “decair perante os olhosda pessoa respeitada”, como o assinalou Piaget. Se não me envergonho, é tambémporque identifico no olhar do outro a aprovação ou a indiferença diante de minha1 - ANOS DE CHUMBO: O QUE FAZER PARA QUE TUDO SEJA APENAS HISTÓRIA - Marcos Rolim4 Jornalista, doutorando em sociologia pela UFRGS, professor da Cátedra de Direitos Humanosdo IPA.17


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSconduta 5 . A ausência de vergonha nas FFAA a respeito do papel desempenhadopelo Estado nos chamados “anos de chumbo” diz, portanto, algo sobre o olharda sociedade brasileira. Fosse outro este olhar, a própria formação oferecida nacaserna teria há muito se apartado da moldura ideológica típica da “guerra fria”.O fato é que estamos diante de uma história mergulhada na opacidade.Lembrando Faulkner, penso que nosso passado, blindado oficialmente pela conveniênciapolítica e pela covardia, ainda sequer é passado. Tudo aquilo que há detriste e revoltante nesta história, entretanto, precisará ser revirado escrupulosamentese desejarmos que os fatos não sejam mais sombras e digam respeito, finalmente,ao que nunca mais será.O “fato histórico” ao qual se referiu o eminente servidor poderia ser resumidoassim: em determinado período da história recente do Brasil, particularmente apóso Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, e ao longo de toda a década de70, aqueles que haviam chegado ao Poder através de um golpe militar em 1964decidiram lançar mão de estratégias de repressão ilegal (fora da lei do próprio regimede exceção) contra as organizações da esquerda que existiam à margem dos estreitoslimites de atuação política tolerados pela ditadura. Tais estratégias envolveram:a) a prisão dos suspeitos de atividades “subversivas” e das pessoas que os aparatosrepressivos imaginassem ter informações úteis à luta contra a “subversão”; b) amontagem – com o apoio clandestino de empresários financiadores – de estruturasespeciais de “contra-insurgência” como os DOI-CODIs, onde os presos seriam“interrogados” sob tortura e c) a decisão de construir versões fantasiosas de morteem “tiroteios” e “suicídios” ou de, simplesmente, sumir com os cadáveres daquelesque não resistissem às torturas ou que fossem deliberadamente assassinados.Todas as organizações da esquerda foram atingidas por esta estratégia, inclusiveaquelas – como o PCB – que nunca aderiram à luta armada. Ao contráriodo que ocorreu na Argentina e no Chile, entretanto, a repressão clandestina organizadapelo Estado no Brasil foi seletiva, sendo o “foco” definido pelo objetivode destruir as estruturas militantes da esquerda. Estas, como se sabe, possuíamefetivos pequenos ou mesmo minúsculos.Os defensores da ditadura sempre sustentaram aquelas estratégias com baseem dois artifícios: o “negacionismo” e o “argumento da proporcionalidade”. Pelo185 É claro que nem toda reprovação pública equivale à vergonha. É preciso que, nesta reprovação,o sujeito também se reprove. Por esta razão a definição de Spinoza parece mais acertada quandoassinala: “a vergonha é a tristeza que acompanha a ideia de alguma ação que imaginamos censuradapelos outros e que o é por nós mesmos”.


primeiro, se procurou sustentar que a tortura, os estupros e os assassinatos depresos políticos não existiram, sendo as denúncias uma “invenção” da esquerda.Com o passar dos anos, diante das evidências que amparavam as denúncias, onegacionismo recuou para a versão dos “casos isolados”, apresentando as violações,então, como “excessos” que teriam sido praticados por “pessoas despreparadas”.O segundo artifício afirma que a repressão foi uma resposta ao “terrorismo” e aosobjetivos de implantar no Brasil uma “ditadura comunista”. Haveria, então, nos“excessos” uma resposta correspondente aos abusos praticados pelos opositoresdo regime e as suas pretensões revolucionárias. Grande parte da mídia nacionalassume, ainda hoje, esta versão que aparece, por exemplo, na ideia de “excessosde ambos os lados”.O “argumento da proporcionalidade” – uma versão da “teoria do menor dosmales”, ou “dos dois demônios” (the lesser of two evils theory) – é uma mentira queganhou “pernas” por incorporar pelo menos duas verdades que a esquerda brasileiranão tem disposição de reconhecer: a) o fato de que as organizações de esquerdaque optaram pela luta armada não tinham compromisso com a democracia e b)o fato de que determinadas ações armadas promovidas pela esquerda caracterizaramcrimes de caráter repulsivo como, por exemplo, os assassinatos do CapitãoCharles Rodney Chandler e do Tenente Alberto Mendes Júnior. Chandler foimorto a tiros, quando retirava seu carro da garagem, em frente ao seu filho de 4anos e de sua esposa. Foi escolhido para ser “justiçado” (esta era a expressão coma qual se procurava oferecer legitimidade à execução) por se tratar de um oficialamericano que havia servido no Vietnam (!). O Tenente Alberto foi capturadono Vale do Ribeira por um destacamento guerrilheiro sendo, depois, executado acoronhadas 6 . Nenhuma destas situações traduziram “luta armada” contra o regime;mas crimes marcados pela absoluta desconsideração com o outro que apenasas ideologias, as religiões e as psicopatologias podem produzir.Para aceitar a ideia da “proporcionalidade”, entretanto, seria preciso, primeiro,sepultar a milenar tradição jurídica que assegura o direito de resistência àsautocracias, desde o tiranicídio medieval até os ensinamentos de São Tomas deAquino para quem a violação do direito natural por parte dos governantes poderiajustificar a resistência da população pela força. Esta tradição que procurou asseguraraos indivíduos a liberdade diante dos usurpadores adentrou a modernidade com a1 - ANOS DE CHUMBO: O QUE FAZER PARA QUE TUDO SEJA APENAS HISTÓRIA - Marcos Rolim6 Ambas as ações foram realizadas pela “Vanguarda Popular Revolucionária” (VPR), cujo dirigentemais conhecido foi o ex-capitão do Exército Brasileiro, Carlos Lamarca.19


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS20Declarações das revoluções americana e francesa. Atualmente, várias constituiçõesmodernas tratam explicitamente do direito à resistência. A Constituição alemãde 1949, por exemplo, afirma: “todos os alemães terão direito de se insurgir contraquem tentar subverter essa ordem, quando não lhes restar outro recurso”. Na mesmalinha, a Constituição portuguesa de 1982 sustenta: “todos têm o direito de resistira qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pelaforça qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”Não há proporcionalidade, então, entre golpistas e resistentes e cogitar delasignifica já desprezar a democracia e o direito. Os que resistiram à ditadura noBrasil – com ou sem armas – estavam em seu pleno direito. Mais: exerceramobrigação cidadã. Com efeito, não se perdoa uma Nação que permite que suasinstituições democráticas sejam violadas sem resistência. A ideologia dos resistentesou seus sonhos revolucionários – por mais equívocos que fossem – não impugnamo direito à resistência, nem os golpistas estão legitimados a falar em nome da “democracia”que aviltaram. Por isso, o “argumento” de que os grupos de esquerdapretendiam implantar o comunismo no Brasil é tão verdadeiro quanto ridículo.Por acaso devemos condicionar o apoio aos que lutam contra as ditaduras nospaíses árabes à apresentação de um atestado ideológico? Devemos solicitar dosdissidentes cubanos o compromisso com a democracia para valorizar sua lutacontra o regime totalitário de partido único?No mais, é preciso lembrar que os militantes da esquerda que se envolveramna luta armada são conhecidos, possuem nome e endereço. Os que não forammortos passaram anos na prisão; muitos enfrentaram a tortura, outros tantos foramobrigados ao exílio. Os agentes públicos – membros das Forças Armadas edas polícias – que praticaram os crimes de tortura, que estupraram prisioneiras eque assassinaram pessoas que estavam sob a guarda do Estado permanecem, pelocontrário, nas sombras. Nenhum foi sequer processado e muitos foram promovidos.O projeto de lei que deu origem à Anistia foi elaborado pela ditadura paraassegurar a impunidade de seus crimes. Mais de três décadas depois, seria inútilpretender punir os que, naquele tempo, nos mostraram que matar está longe deser o pior que se pode fazer a uma pessoa. Isto, entretanto, é totalmente distintode esquecer. Afinal, como o disse Hannah Arendt, “há crimes que não se podepunir, nem perdoar”.A ideia de criar no Brasil uma “Comissão Nacional da Verdade”, propostarecentemente aprovada pelo Congresso Nacional, pretende investigar e descreveros atos de violação aos direitos humanos, inclusive a autoria de tortura, mortes,


desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres. Não há uma só linha na leique fale em punir os responsáveis por tais atos. Assim, o desafio é o de conhecera autoria, a natureza e a extensão das violações, especialmente no período onde ademocracia foi suprimida por um ato de força. Se a tarefa for cumprida a contentoe se o atual governo estiver mesmo comprometido com a verdade, teremos, aoencerramento dos trabalhos da Comissão, um País informado sobre tudo. Haverá,então, motivos de sobra para vergonha. Bem-vinda vergonha que irá nos redimire nos proteger das barbaridades emboscadas no futuro.1 - ANOS DE CHUMBO: O QUE FAZER PARA QUE TUDO SEJA APENAS HISTÓRIA - Marcos Rolim21


A bailarina – série Meninas – acrílico s/madeira – 65 X 46,5cmMaria Teresinha A. Motta – Oficina de Criatividade/ HPSP


2 A LINGUAGEM DOS DIREITOSMarco Antonio Oliveira de Azevedo 7Apresentado inicialmente na IV Conferência Estadual dos Direitos Humanos,RS, 2009. 8 Reformulado em 07/06/<strong>2011</strong>.2.1 Norberto Bobbio disse uma vez que o “problema fundamental em relação aosdireitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Tratasede um problema não filosófico, mas político” 9 . Quero discordar disso e por trêsrazões. Primeiro, não é verdade que o tema dos direitos humanos conte hoje emdia com uma fundamentação sólida; segundo, a falta de uma fundamentaçãosólida está intimamente ligada a problemas de clareza semântica sobre o quese entende em geral por “direitos”; e, terceiro, a falta dessa clareza prejudica osativistas, pois torna o discurso dos direitos um instrumento de retórica facilmentemanipulável pelos detentores do poder e pelos próprios governantes.Em que pese isso, a tese de Bobbio tem a simpatia de muitos ativistas dosDireitos Humanos (DHs). De fato, a busca por fundamentações parece permitira reintrodução da dúvida quanto à própria existência ou necessidade dos DHs.Como hoje em dia já há um largo consenso em torno da importância dos DHs,a busca por fundamentos poderia pôr em risco esse consenso.2 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedo7 Professor na Unisinos.8 Agradeço aos organizadores da IV Conferência Estadual dos Direitos Humanos, que ocorreunos dias 12 e 13 de setembro de 2009, no Auditório Dante Barone da Assembleia <strong>Legislativa</strong> doEstado do Rio Grande do Sul, o convite para ministrar a conferência de abertura, em especial aoentão Secretário de Justiça e Desenvolvimento Social, Fernando Luis Schüler.9 Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992, p. 24. Suspeito que estaseja a obra mais lida pelos que se interessam pelo tema dos direitos humanos no Brasil. Ele fazparte de praticamente todas as bibliografias das disciplinas que versam sobre o assunto nos cursosde graduação em Direito e Filosofia.23


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSMas há filósofos que insistem, todavia, na falta de clareza na linguagem dosdireitos, e que há por vezes excesso retórico no discurso dos ativistas. Como soufilósofo, devo reconhecer que concordo com esse diagnóstico. Por isso vou assumirque é preciso tornar mais clara a linguagem dos DHs para que sua defesa egarantias sejam mais efetivas. Não vou inicialmente argumentar em favor disso,pois para tanto eu precisaria fornecer evidências em favor de que uma clarificaçãona linguagem dos direitos humanos aumenta a efetividade de seu reconhecimentopolítico e de suas garantias. Pretendo apenas mostrar a plausibilidade dessa tese,a saber, de que se a linguagem dos direitos fosse mais clara, esses direitos seriammais facilmente reconhecidos e protegidos.Talvez a tese contrária possa ser expressa do seguinte modo: o que entendemospor “direitos humanos” é apenas e essencialmente uma construção histórica. Paraos defensores dessa visão, clarificar significaria “cristalizar”, retirar dessa realidadesocial sua historicidade. Pretendo, no entanto, fornecer alguns argumentos contraessa visão. Com efeito, defenderei que o historicismo comum às visões próximasou influenciadas pela concepção de Bobbio (e de outros), sendo vago, acaba poresvaziar a potência e a efetividade do discurso em defesa dos direitos.Bobbio, por certo, não está sozinho. Pensadores influentes em nosso meio,como Peres Luño, por exemplo, seguem uma linha semelhante à de Bobbio. PeresLuño, ao criticar o “idealismo” dos jusnaturalistas, abraça a visão historicista e positivistaa la Bobbio, remetendo o discurso dos DHs ao estatuto de mero “discursopolítico”, esvaziando seu conteúdo em noções vagas e imprecisas. Isso explica suaênfase aos chamados “Direitos Fundamentais” (DFs), os únicos que positivistastradicionais consideram politicamente efetivos, já que são os únicos que gozam de“força de lei”, de força, com efeito, coercitiva. Nessa visão, os DHs são apenas umdiscurso de efeito retórico; porém, é apenas com a transformação desses pretensosdireitos em direitos reais, os DFs, que entramos na esfera propriamente jurídica(até então, estávamos apenas nos domínios da mera reivindicação política). Veja--se, a propósito, a seguinte passagem de Peres Luño:24Ainda que seja plenamente legítimo e correto denunciar comoexemplos de violação dos direitos humanos os crimes da Alemanhanazista, o Apartheid da África do Sul, ou a negação das liberdadespolíticas e sindicais que têm [ou que tinham] lugar no Chile dePinochet e na Polônia de Jaruzelski, carece de sentido fazê-lo apelandoaos direitos fundamentais, já que nenhum desses sistemas


políticos reconhecia ou reconhece em seu ordenamento jurídicopositivo tais direitos. 10Para Peres Luño, a “legitimidade” de denúncia como essas não é “jurídica”,já que só há legitimidade jurídica no âmbito do que é assumido como DireitoPositivo nos marcos territoriais de cada nação. E nisso há uma grande diferençacom a visão jusnaturalista, para a qual a denúncia já era jurídica, ainda que amaior parte dos jusnaturalistas ainda sintam-se bem aparados por um discutível“Direito Natural”.O historicismo é nesse aspecto um adversário do jusnaturalismo. Mas o discursojusnaturalismo parece representar uma defesa mais autêntica dos DHs quea versão positivista dos historicistas. Porém, os historicistas não são adversários dadiscurso em defesa dos DHs; mas para recompor o “historicismo” como aliadoda luta pelos DHs, seus protagonistas precisaram mostrar como a lei, o domíniojurídico, incorporou esses direitos a seu próprio domínio, efetivando-os no planointernacional. Isso exigiu dos historicistas pensar a história dos direitos como umprocesso evolutivo. Assim, a denúncia de violação dos DHs somente torna-sejurídica no momento em que já se consolidou um domínio público internacionalde Direito, mesmo que esse domínio ainda não tenha se efetivado de modouniversal. Um domínio público não efetivo, porém real, mas que disputa a adesãodos agentes políticos nacionais. Essa consolidação do Direito Internacional serianão propriamente a “vitória”, isto é, a “conquista” de uma nova esfera de direitos(já que ainda não há nenhum “soberano internacional” capaz de conceder essaconquista – Bobbio é um simpatizante de Thomas Hobbes), mas, mais do queisso, também a afirmação histórica (ou evolutiva) de um novo sistema de Direito.Essa recomposição do historicismo no bojo de uma nova visão histórica evolucionistadifere da visão “historicista” – simplificada – ao menos em um aspecto.Na visão historicista, a história dos direitos é a história de certos eventos, entendidoscomo conquistas localizadas no tempo e no espaço. A história da luta pelos direitosdescreve os antecedentes desses eventos. Os eventos são, com efeito, as conquistashistoricamente datadas. Nessa visão, os direitos somente surgem quando deixamde ser pretensões para se tornarem realidades históricas concretas. Ainda nessa visão,a realidade jurídica é vista essencialmente como uma realidade composta porsoberanos e súditos, ou por comandantes e comandados. Um direito só se torna2 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedo10 Peres Luño, Antonio Enrique. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1995, p. 47-8(o livro foi reedidato em <strong>2011</strong>, o que indica que o autor ainda o considera atual).25


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS26uma realidade jurídica quando algum soberano a institui por meio de um comando,uma ordem. Afinal, para essa teoria, o Direito, isto é, a Lei, é essencialmentecomando, ordem, imperativo – um proferimento, enfim, que expressa a vontadede um superior em poder e força sobre um séquito de comandados. Não é de sesurpreender, portanto, que, para os historicistas, pretensões políticas somente setornam “direitos” no momento em que se tornam reconhecidas em um sistemalegal por expressarem um ato de “vontade” de algum soberano (que não precisaser um monarca, já que pode ser também representado por algum corpo políticocom poderes legislativos ou “constituintes).Mas há algo de errado nisso. Pois os ativistas, quando denunciam violaçõesaos DHs mesmo nos países onde esses direitos ainda não foram reconhecidos, nãoestão com isso pretendendo apenas dar expressão a seus desejos políticos, ou apenasfazendo pedidos ou meras reivindicações aos governos. Eles tomam as violaçõescomo violações reais. Além disso, sua crítica não é apenas “moral”; isto é, ela nãoé apenas baseada em juízos meramente “subjetivos”. Parece claro que os ativistasnão defendem os DHs admitindo que antes de tais direitos existirem como conteúdosde tratados internacionais que tais “violações” ainda não existiam de fato, eque sua defesa representava, portanto, apenas um conjunto de queixas, críticas ourepúdios. Parece, assim, plausível supor que algo próximo da visão jusnaturalistaserve de pressuposto ao discurso político do ativismo. É possível que os ativistas,nessa incongruência, partam de convicções equívocas. Há filósofos que defendemque nossas convicção morais assentam-se sobre “erros fundamentais” – acreditaríamos,por exemplo, que os direitos fazem parte da realidade mesmo que isso sejafalso; mas vou deixar de lado esse problema “metafísico”. Pois antes de pensar seexistem ou não de fato direitos, e se eles podem ou não existir independentementeda lei (ou da vontade expressa de algum Soberano), é preciso compreender o queestamos dizendo quando os afirmamos. Parece-me, portanto, recomendável retornara reflexão sobre os fundamentos dos DHs, e o primeiro passo é dar clarezaao conteúdo de sua exigência. É preciso, portanto, clarear que tipo de discursocorresponde ao discurso dos ativistas desde o tempo em que os direitos humanosainda não eram objeto explícito de tratados internacionais reconhecidos.Como disse acima, os filósofos reconhecem que a linguagem dos DHs pecapor certa vagueza. E eles admitem que há um uso retórico que se vale dessa imprecisão.É o caso, entre outros, da visão dos direitos exposta pelo influente filósofoAmartya Kumar Sen. Adiante, pretendo referir-me rapidamente à proposta deSen. Mas antes é preciso clarear o que me parece ser a confusão principal.


2.2 Tenho sustentado já em vários artigos que o discurso dos DHs lida comduas visões ou noções diferentes, embora não antagônicas, sobre o que são essesdireitos. Entendo que há duas visões diferentes sobre o que são direitos (ou quetipo de direitos são os DHs): de um lado temos a visão de que direitos são “títulos”ou intitulamentos (em inglês, chamei-a de the entitlement conception of rights); e deoutro, temos a visão de que direitos são exigências (the claim conception of rights).A visão dos direitos como entitlements é certamente a visão mais difundidae, talvez, a mais primitiva, isto é, a que está na origem do próprio discurso emdefesa dos DHs. Ela está presente claramente no conteúdo das declarações e manifestos.Está presente nas Bill of Rights inglesa e norte-americana, na Declaraçãoda Independência dos Estados Unidos, na Declaração dos Direitos do Homem de1789, e, principalmente, na Declaração de 1948 e nas que se seguiram após. Essavisão aparece de forma evidente no escritos de Rousseau, e de forma mais explícitaainda no Manifesto dos iguais de Babeuf. Ela está claramente presente nos escritosde John Locke e no texto do The rights of man, de Thomas Paine (cuja visão, poroutro lado, se aproxima da visão dos direitos como exigências).Entitlement é uma palavra difícil de traduzir: com ela quer-se dizer, de umlado, simplesmente “direito”; mas, de outro, refere-se apenas a um certo tipo dedireito. Entre os anglo-saxônicos, entitlements são direitos a vantagens ou benefícios,assegurados pelo Estado (ou pelos Governos). Em uma das definições quepodem ser encontradas na Internet, entitlements são garantias de acesso a benefíciosem razão de certos direitos ou por acordo legais. Também se refere à crença, ouà alegação, de alguém de que é merecedor de certos benefícios ou recompensas.Geralmente, no entanto, fala-se em entitlements no tocante a certos benefíciossociais, proporcionados ou devidos pelo Estado.É dessa noção que vem também a noção de titularidade de um direito. Nãosou historiador do Direito, mas parece evidente que essa ideia guarda conexõeshistóricas, primeiro, com a concessão do domínio sobre terras (desde o DireitoRomano até o período medieval), depois com o reconhecimento dos direitosdos cidadãos burgueses à propriedade (isto é, direitos à propriedade estendidos aqualquer indivíduo livre capaz de adquiri-los por herança, transferência ou troca).A titularidade, aqui, representa uma relação jurídica entre dois termos: um portadordo direito (ou um indivíduo ou cidadão a ele intitulado) e algo (um bem,um benefício ou uma vantagem). Não é à toa que diga respeito originalmente aotópico do chamado Direito das Coisas (ou dos Direitos Reais), área conhecida do2 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedo27


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSDireito Privado. É provavelmente por analogia ao Direito das Coisas do DireitoPrivado que os direitos em geral passaram a ser entendidos como entitlements.Contudo, DHs entendidos como entitlements diferem dos entitlements garantidospor lei (os entitlements em sentido jurídico). Na visão de Bobbio e PeresLuño é bastante claro: DHs são apenas aspirações a direito legais; assim, DHsentendidos como entitlements são demandas políticas para que certos bens, benefíciosou vantagens sejam legalmente assegurados. A preocupação, com efeito,dirige-se fundamentalmente ao chamado Direito Público. De certo modo, issoimplica uma ampliação do emprego de uma noção, cuja origem está no direitoprivado, para a esfera mais ampla do direito público.De fato, na tradição jusnaturalista moderna, os DHs passaram a ser vistoscomo uma parcela essencial do conjunto dos direitos civis. Compreendidos comoentitlements, os DHs são tomados como demandas (legitimadas pela razão natural)por bens entendidos como bens essenciais ou básicos (tal como sustenta, porexemplo, o filósofo John Finnis). Segundo essa visão, o que a razão natural comanda(seja ela expressão da vontade divina – tal como era pensada pelos filósofosda tradição medieval e do início da era moderna, ou expressão de uma vontadehumana generalizada, porém, purificada de toda e qualquer paixão corpórea,tal como foi defendido por filósofos como Immanuel Kant) é que todos os sereshumanos, sendo dotados de necessidades básicas iguais, estejam igualmente intituladosaos meios capazes de proporcioná-las. Tais necessidades (condições parao sucesso de qualquer projeto pessoal – em outro contexto, o que Rawls chamoude “bens primários”) são atribuíveis (intituláveis) a cada ser humano, dada umaordem normativa natural (ou racional).O que importa é assinalar a seguinte estrutura lógica: DHs (como entitlements)são relações (naturais ou morais) entre alguém, digamos, ‘X’, e um bem,digamos, ‘φ’. Este bem tem, por certo, características notáveis. Numa versão,trata-se de algo que é necessário para o sucesso de qualquer aspiração ou planode vida individual; em outras versões, são bens necessários para que um agentepossa alcançar qualquer plano de vida comum compatível com todos os planosde vida dos demais. São os “bens primários” de Rawls (eles incluem, por certo,bens essenciais como saúde, vida, bem-estar, etc.).Há várias estratégias teóricas para fundamentar tais “relações jurídicas” entendidascomo entitlements. As mais conhecidas são as contratualistas 11 , desde as modernas2811 Marcelo de Araújo é um bom defensor de uma visão contratualista dos direitos humanos


(de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, entre outros), até as contemporâneas (comoa Teoria da Justiça de John Rawls 12 ). Em geral, essas estratégias buscam inicialmentefundamentar esses entitlements como gerais, universais, racionalmente obrigatórios.Depois, tomando-os como premissas ou como princípios gerais, seus defensorespartem para a derivação de direitos específicos. Nessa visão, enfim, os DHs seriamenunciados gerais sobre tais entitlements. Como são enunciados universais, valem paratoda e qualquer situação, bem como para todo e qualquer arranjo político ou país.2.3 Há uma outra visão corrente sobre o que são direitos, e que também se achapresente no conteúdo dos manifestos e em documentos históricos, sem falar emtextos e opúsculos, como o The rights of men, de Thomas Paine. Trata-se da visãode que direitos são claims.Segundo essa visão, direitos são claims (ou claim-rights), isto é, exigências. 13Exigências pressupõem dois indivíduos e alguma coisa, o conteúdo da exigência(exigências, portanto, pressupõem aquele que exige e aquele de ou a quem se exigealguma. Portanto, somente faz sentido falar em uma exigência se alguém exigealgo de outrem; isto é, ninguém exige algo e ponto. Direitos como exigências sãosempre dirigidas a alguma outra pessoa).Há uma semelhança entre “exigir” e “comandar”: ambos são imperativose em ambos os casos relacionam-se dois indivíduos ou pessoas e alguma coisaou ação. Com efeito, só há comando de alguém sobre outrem acerca de algumacoisa. Analogamente, só há exigência de alguém sobre outrem também acerca dealguma coisa. Por outro lado, comandos são ordens emitidas por autoridades;exigências, ao contrário, não pressupõem autoridade naquele que exige. Crianças,por exemplo, não emitem comandos sobre adultos, embora possam fazer-lhesexigências (ainda que precisem ser para tanto representadas). Um subalterno nãocomanda seu comandante, embora possa fazer-lhe exigências. Talvez exigências2 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedoem nosso meio (veja: Araújo, Marcelo de. A fundamentação contratualista dos direitos humanos.In: Lunardi, Giovani & Secco, Márcio (Orgs). Fundamentação filosófica dos direitos humanos.Florianópolis: Editora UFSC, 2010, p. 123-142).12 Rawls, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.13 Feinberg, Joel. Filosofia social. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. Feinberg foi quem primeiramenteidentificou que a teoria dos direitos como exigências (claims) difere semanticamente da linguagempresente nos manifestos (onde figuraria um sentido de direito em um “sentido de manifesto” – aright in a “manifesto” sense).29


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS30sejam a contraparte de relações desiguais, já que exigências são sempre em favor“do elo mais fraco”.Um dos equívocos da tradição conhecida como Direito como Comando foio de subsumir a ideia de lei ao modelo dos comandos. E uma das consequênciasdessa visão foi a de conceber direitos jurídicos como permissões ou privilégiosconcedidos por um Soberano a um ou a um conjunto indeterminado de súditos.Segundo essa tradição, ter um direito equivale a ter um privilégio, uma licença,uma concessão ou permissão para agir ou deixar de agir de certo modo. Não ter taisprivilégios equivale a estar submetido a alguma obrigação. Com efeito, a liberdadeacaba nessa visão equivalendo ao espaço de ação concedido no qual o indivíduonão se acha submetido a qualquer ordem ou mandamento. Os defensores dessasvisão concluíram, com efeito, que quanto menos ordens ou comandos houver,maior será o espaço de liberdade disponível aos cidadãos. Essa é a visão da liberdadepolítica como mera liberdade negativa. 14Mas direitos não são meros privilégios, nem são o contrário de comandos.Direitos não são essencialmente meras licenças ou “liberdades” concedidas paraalém da esfera das obrigações civis. Direitos são primária e essencialmente exigênciassobre alguém, inclusive sobre aquele dotado do privilégio de emitir comandos. Seucorrelato são deveres: se alguém tem algum direito sobre outrem a alguma coisa,este tem, por equivalência, o dever de agir ou de fazer com que isso seja o caso.Para todo direito como exigência, portanto, há sempre três termos: o portadordo direito, digamos, ‘X’; o portador do dever correlato, digamos ‘Y’; e algo, ‘p’, aação ou o estado de coisas exigido.Judith Jarvis Thomson expressou essa ideia por meio da seguinte fórmulabásica: C x,yp. Isto é: X tem um direito sobre Y de que p seja o caso. Ou simplesmente:X exige (ou está em posição de exigir) algo, p, de Y. 15 A ideia, de fato,14 Isaiah Berlin introduziu a distinção entre liberdade “negativa” e “positiva” num ensaioantológico intitulado “Dois conceitos de liberdade” (ver: Berlin, Isaiah. Estudos sobre a humanidade.São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 226-72). A mais importante crítica à visão de Berliné a representada por Philip Pettit (Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford:Clarendon Press, 1997), desenvolvida com elementos de história por Quentin Skinner em seuLiberty before liberalism (Cambridge: Cambridge Press, 1998) e, mais recentemente em seu Hobbese a liberdade republicana (São Paulo: Unesp, 2010).15 A teoria de Thomson está brilhantemente exposta no livro The realm of rights (Oxford Press,1990) e em vários de seus outros escritos (infelizmente não traduzidos – o único artigo de Thomsontraduzido para o português é o magnífico “A defense of abortion”, de 1972; mas nele Thomsonainda não empregava a terminologia hohfeldiana).


tem origem nos trabalhos de Wesley Newcomb Hohfeld (1879-1918), juristanorte-americano que, em 1913, publicou dois artigos na Yale Review of Law,defendendo que o termo ‘direito’ era empregado de modo vago e impreciso pelosjuristas de sua época. 16 Hohfeld sustentou que há oito tipos diferentes de relaçõesjurídicas cobertas genericamente pela palavra ‘direito’. Dentre essas relações estáo que chamou de ‘direito em sentido estrito’ ou ‘claim-right’. 17Licenças, permissões ou privilégios não são direitos em termos estritos, masapenas “direitos” em sentido lato. Ter uma permissão ou privilégio de fazer algumacoisa equivale a não estar sob a obrigação de não fazer ou deixar de fazer essamesma coisa. Dizemos que alguém tem a permissão de fumar, por exemplo, se elenão está obrigado a não fumar. Mas isso não implica qualquer direito em sentidoestrito. Isto é, do fato de alguém não estar sob a obrigação, no caso, de não fumarnão se segue que ele possa exigir qualquer coisa de quem quer que seja. Assim,se for verdade que ele tem o direito, por exemplo, a não ser impedido de fumar,isso significa algo diferente, no caso, que ele tem o direito em sentido estrito denão ser impedido de fumar – e isso equivale a estar em posição de exigir não serimpedido de fazer isso. Assim, ter o direito de fumar (como uma mera permissão)difere substancialmente de ter o direito – como liberdade – de não sofrer interferênciaem seu ato de fumar onde essa conduta for permitida.Note-se que, nessa visão, todo direito em sentido estrito é que é correlatoa um dever. Exigir algo de outrem é alegar que este se encontra sob um deverperante o primeiro, o portador do direito ou da exigência. A versão mais fortedessa tese afirma igualmente a correlatividade lógica entre direitos e deveres. Ouseja: se for verdadeira a alegação de que X tem um direito sobre Y de que p seja ocaso, então a alegação de que Y está submetido a um dever com respeito a X deque p é necessariamente verdadeira (ou seja, ela simplesmente não pode ser falsa).Tratam-se, afinal, de afirmações equivalentes.Penso que não há dúvidas de que a visão dos direitos como exigências expressa2 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedo16 Os artigos antológicos de Hohfeld foram originalmente publicados na Yale Law Journal, em1913 (Volume 23, p. 16-59) e 1917, reunidos após em um volume pela Yale University Press, em1919 (o facsimile pode ser obtido junto ao site: ).Os artigos foram adiante republicados em várias coleções; seguramente, trata-sedo mais importante trabalho existente em semântica jurídica.17 Mais detalhes podem ser encontrados em: “Rights as entitlements and rights as claims”(Veritas 55,1, 2010: 164-172) e em “Uma teoria moral baseada em direitos” (In: Schuler &Barcelos. Fronteiras: arte e pensamento na época do multiculturalismo. Porto Alegre: Sulina,2006, p. 91-118).31


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOScom mais clareza a visão de que direitos são exigências reais e não meras aspirações aentitlements. Isso é muito pouco claro, infelizmente, na dogmática jurídica brasileira,já que direitos subjetivos são usualmente definidos de outra forma. Nossos juristasusualmente entendem direitos como meras facultas agendi, uma visão difundidapelos juristas alemães Georg Jellinek e Windscheid, bem como Rudolf Jhering.Miguel Reale, entre outros, assinalou as dificuldades dessas visões, embora tenha-semantido dentro dos limites semânticos da mesma visão geral. 18 Para a maioria dosjuristas brasileiros, direitos são faculdades de agir legalmente autorizadas e garantidas.Como consequência, direitos quando reivindicados são vistos como meras aspiraçõespor direitos concretos (entendidos como entitlements), sendo estes vistos comoconcessões promulgadas por alguma autoridade política. A conquista dos direitospassa a ser vista como a arte de dobrar a vontade de algum Soberano – geralmentepersuadido a fazer tais concessões em virtude de alguma força ou pressão externa.As Declarações, por seu lado, são ambíguas quanto a essas visões. O mesmo sepode dizer dos filósofos morais, que ora empregam a linguagem dos direitos comotítulos, ora como exigências. Alguns filósofos, como Finnis, procuraram tornarcompatíveis essas duas linguagens. Na visão de Finnis, todo direito entendido primariamentecomo uma relação entre um indivíduo e um bem essencial deve, porém,ser especificado em um conjunto de direitos “hohfeldianos”. Isso porque sendo umbritânico, Finnis reconhece que a linguagem das exigências é a linguagem por meioda qual se expressam (ao menos parcialmente) grande parte dos direitos legais. 19Penso, no entanto, que a força da linguagem dos DHs está na possibilidadede, por meio dela, ou por meio de seu uso, dar expressão a exigências concretase reais, sobre as pessoas, em geral, mas especialmente sobre os governantes e ospoderosos. Assim, o que usualmente entendemos como um direito no sentido deum entitlement deveria ser melhor descrito apenas como o nome, o conjunto, oucomo a designação de uma classe determinada de direitos hohfeldianos. Exemplostípicos são os direitos à vida e à propriedade. Ter direito à vida é ter, além da meraausência do dever de não viver (algo trivial) – o que equivale ao fato de que ninguémpode exigir de nós que não vivamos – a exigência sobre os demais de quenão ameacem, lesem ou tirem nossa vida.Hohfeld dizia, aliás, que tais direitos são exigidos in rem, o que pode nos levar3218 Reale, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002 (especialmente capítulosXVIII a XX).19 Veja especialmente o capítulo oitavo do livro Lei natural e direitos naturais de John Finnis(São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2007).


a pensar que se tratam de direitos a certas coisas (no caso, nossa vida), mas que concretamentetais direitos in rem tornam-se exigências in personam (isto é, exigênciasdirigidas de forma específica sobre alguém). A razão disso é que direitos são sempreviolados por alguma pessoa (física ou jurídica) em particular. Direitos são exigíveisin rem, mas não faz sentido dizer que eles sejam infringidos que possam ser violadosin rem, pois infrações e violações a direitos são sempre atribuídos a algum indivíduoou conjunto particular de indivíduos. Ter o direito à vida, nesse sentido, não é tero direito a ter a vida boa que se deseja ter. É ter o direito a que nossa vida não sejaeliminada ou lesada por outrem. Enunciado de forma geral, in rem, essa exigênciadirige-se indiscriminadamente a uma comunidade de pessoas (no caso, a toda equalquer pessoa). Disso segue-se o dever correlato de não matar e de não causarmales à vida de alguém. No caso do direito à propriedade, ter direito à propriedadeé ter, além da ausência do dever de não usar certo objeto, estar na posição de exigirin rem que outros, por exemplo, não o usem. Mas, além disso, para que se possa falarcorretamente de propriedade e não apenas de mera posse, o direito à propriedadecompreende, além de exigências e permissões in rem, poderes. Hohfeld chamava depoder à capacidade jurídica de alterar as permissões, direitos e poderes de outros.Assim, se certo objeto é minha propriedade, tenho o poder de ceder permissões,transferir exigências (gerando direitos de uso), e mesmo de transferir poderes (que éo que ocorre quando doamos ou vendemos algo). Um “direito” que combina maisde um “direito” em sentido elementar (isto é, além de alguma exigência, tambémpermissões, poderes e imunidades) poderia ser chamado de direito composto.É possível que os DHs não sejam apenas exigências, mas sejam direitoscompostos. Uma boa parte dos DHs compreende, além de exigências, tambémpoderes. Contudo, uma de suas características essenciais é o que, na terminologiade Hohfeld, chamamos de imunidade, isto é, a condição de não estar submetidoao poder de outrem. É bastante plausível, portanto, que os direitos que admitimoscomo DHs sejam direitos compostos que incluam imunidades, isto é, compreendamdireitos que não possam ser alterados ou retirados de alguém, nem mesmopor poderes máximos (como os poderes constituintes).Penso, não obstante, que uma das características principais dos DHs, entendidoscomo compreendendo essencialmente exigências, é que tais direitos comportamexigências especiais que não podem ser alteradas (logo, acompanhadaspor imunidades), sendo que algumas compreendem, além de imunidades, poderes(como é o caso dos direitos à vida, à liberdade, à propriedade e ao trabalho). Comoesses direitos podem ser alterados ou simplesmente jurídica ou politicamente ne-2 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedo33


positivos, notadamente os chamados “direitos fundamentais”. É o que se achaexplícito na seguinte visão de Bentham:Razões para desejar que houvesse tais coisas como direitos não sãodireitos; uma razão para querer que certa coisa fosse estabelecidanão é esse direito. Querer não é suprir; a fome não é pão. (...)Direitos naturais é simplesmente um disparate: direitos naturais eimprescritíveis, disparate retórico, um disparate sobre pernas de pau.Mas há um aspecto da crítica de Bentham que deveria mover nossa atenção.Em sua tentativa de definir o que significa ter um direito (a fim de refutar a tese deque poderia haver direitos por natureza), Benhtam assinala que “todos os direitossurgem a expensas de liberdade (...). [Não há, portanto, nenhum] direito sem umaobrigação correspondente”. Daí o dilema: caso os defensores dos DHs ignoremisso e forcem os governos a restringir a liberdade alheia em defesa dos “direitosde todos”, a consequência óbvia será a anarquia. Não obstante, mesmo Benthamreconhece que é preciso qualificar os direitos civis, especificando as restriçõeslegais necessárias para assegurar seus portadores contra sua invasão ou violação.Penso que a crítica de Bentham é válida caso restrinjamos nosso entendimentodo que são os DHs apenas à visão dos direitos como entitlements, ou, sepreferirmos, da visão dos direitos como títulos ou merecimentos naturais. Defato, é difícil entender o que poderia constituir tal titularidade natural, isto é,um direito cuja posse ou intitulamento nos é seja dada por natureza. Positivistasposteriores a Bentham, como Bobbio, na medida em que pretendiam proteger afunção retórica da linguagem dos direitos, alocaram os enunciados das declaraçõespara os domínios do discurso político, e não do discurso jurídico. Falar emdireitos compartilhados em comum por natureza passa a ser algo válido apenas emtermos puramente retóricos, como uma forma influente e potente de reivindicardos governos a concessão de certos direitos reais (ou como diz Peres Luño, datransformação desses “princípios” em direitos fundamentais). Por outro lado, notocante à esfera internacional, esses mesmos autores defendem o reconhecimentoda legitimidade jurídica do Direito Internacional. É o que sustenta Bobbio. Poisé somente com a efetividade do Direito Internacional que o discurso dos DHs,antes interpretado como mera retórica, estaria, agora, protegido em sua funçãopolítica, permitindo que múltiplas reivindicações sociais, historicamente consideradas,possam valer-se dessa linguagem eficiente.Bobbio defende essa visão de forma explícita:2 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedo35


Proclamar o direito dos indivíduos, não importa em que partedo mundo se encontrem (os direitos do homem são por si mesmouniversais), de viver num mundo não poluído não significamais do que expressar a aspiração a obter uma futura legislaçãoque imponha limites ao uso de substâncias poluentes. Mas umacoisa é proclamar um direito, outra é desfrutá-lo efetivamente. Alinguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande funçãoprática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dosmovimentos que demandam para si e para os outros a satisfação denovos carecimentos materiais e morais; mas ela se torna enganadorae obscurecedora ao ocultar a diferença entre o direito reivindicadoe o direito reconhecido e protegido. 21PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS36É preciso, no entanto, voltar a destacar que essa não é a melhor interpretaçãoque penso deveríamos fazer do discurso político real dos direitos, em especial, dosDHs. Os ativistas, ao pronunciá-los, pretendem estar fazendo exigências reais e nãomeras reivindicações. Eles não estão apenas enunciando princípios gerais, em meioa formulações pretensamente vagas, que expressariam, portanto, apenas aspiraçõespolíticas cuja aceitação legal dependerá fundamentalmente da aceitação por algumgovernante, pressionado por certa “correlação de forças”. Ao contrário, o que osativistas expressam com seu discurso são exigências, frequentemente em nome deoutros, de pessoas ou indivíduos tomados como portadores de direitos que foramviolados pelos portadores de certos deveres correlatos, amparadas no que pensam(corretamente, assim julgo) serem seus direitos reais, efetivos. Penso que todo ativista,ao pronunciar um direito, ao defendê-lo em circunstâncias reais, tem em vista nãoapenas a vaga visão dos direitos como títulos, mas também a mais precisa visão dosDHs como exigências. E o que fundamenta a atitude de exigi-los, eventualmentecontrariando o que se alega ser a lei em certo país, é que tais direitos são válidos,independente do que a legislação nacional estabelece ou deixa de estabelecer.É o que se entende na linguagem hohfeldiana, de um lado, por imunidade,e de outro, por poder. No caso do direito à vida, por exemplo, isso implica dizerque somos dotados do poder de alterar restrições à conduta de outros (isto é,impedimentos, proibições ou deveres correlatos a nós), isso no que diz respeito ànossa própria vida, e que esse poder não nos pode ser retirado. No caso dos DHs,muitas dessas normas precisam ser válidas independentes da lei. Afinal, se os legisladoresde certo país pudessem alterá-las (ou mesmo negá-las por completo),21 Bobbio, Op. Cit. p. 29.


a consequência seria a óbvia anulação da personalidade do portador do direito,condição essencial para qualquer sistema constitucional ou normativo legítimo(é o que alguns chamam de “dignidade humana”). É por isso que ofensas gravesaos DHs autorizam inclusive a desobediência civil. E esta é uma noção clássica.Um positivista que procurasse descaracterizá-la não teria qualquer argumentopara justificar a liberdade de não se submeter a leis flagrantemente injustas. Poisessa liberdade é um direito que independe do que qualquer lei nacional estipula.É uma condição básica para a liberdade civil e para a sociabilidade política.Os DHs, portanto, representam um padrão de exigências comuns ou geraisque justificam ou podem justificar até mesmo a desobediência civil. Se um paísdesrespeitar os DHs em sua própria legislação, a desobediência deixa de ser umaexigência negativa sobre os cidadãos (ver, a propósito, o que disse Kant sobre isso,no famoso opúsculo “A paz perpétua”). Em outras palavras, segue-se nesses casosa permissão para desobedecer. Isto é, segue-se não apenas que os indivíduos têmrazões políticas para desobedecer, pois eles têm a permissão, frente ao Direito Internacional,de não se sujeitas a tais restrições. Os que nesse caso desobedecem alei ou as autoridades de seu país tornam-se não somente sujeitos da admiração públicainternacional; eles se tornam também portadores do direito a serem apoiadosapoio e de obterem inclusive solidariedade política das autoridades internacionaisque juraram proteger tais direitos.A linguagem dos DHs como exigências (e como poderes e imunidades),dirigidas especialmente verticalmente aos governos (embora não apenas e tãosomente a esses), supre as deficiências da abordagem simplificada dos direitoscomo meros natural entitlements. Essa linguagem torna o discurso em defesa dosDHs uma defesa bem mais precisa. Portanto, no tocante a sua correta defesa, épreciso clarear, quando se trata de defender certo direito humano frente a possíveisviolações, de qual exigência se trata, e qual o dever correlato específico que seencontra insatisfeito ou formalmente descumprido. Assim, os enunciados geraiscontidos nas Declarações, independentemente de serem ou não tomados comoentitlements, devem ser também clareados e compreendidos como formulaçõesgenéricas que comportam exigências in rem, mas que podem e devem ser especificadas,nas circunstâncias concretas, como exigências dirigidas in personam.Um exemplo disso é o exemplo do chamado “Direito à saúde”. Na Declaraçãode 1948, o tema “saúde” encontra-se no corpo do artigo 25, onde se dizque: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a suafamília saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados2 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedo37


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS38médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego,doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meiosde subsistência fora de seu controle”. Interpretado apenas como um natural entitlement,esse artigo poderia estar apenas afirmando que todos as pessoas (ou todosos seres humanos) estão naturalmente intitulados a um padrão de vida mínimoou básico capaz de proporcionar, entre outras coisa, saúde e cuidados médicos (oque corretamente poderia ser tomado como uma afirmação simplesmente falsa,já que não expressa nenhum fato). Mas falar aqui de um “padrão de vida” capazou suficiente para que se possa assegurar certos bens não pode ser falar de algo aque somos “naturalmente” intitulados. É falar da garantia social e política de umpadrão de vida suficiente para que ninguém deixe de ter acesso livre a certa tipode atenção e assistência à sua saúde.Parece-me claro que essa é uma atribuição dirigida aos governos e não àspessoas em geral ou aos entes privados – daí porque se trate de uma exigênciavertical, e não horizontal. Cabe aos governos garantir que ninguém esteja aquémdesse padrão de vida necessário ou suficiente para dar, a si e aos seus, condições deproteção e assistência a sua saúde. Não faria sentido, obviamente, dizer das pessoasque elas têm direito a serem pessoas saudáveis, a poderem “livremente” usufruirdesse bem, quiçá sem a interferência prejudicial dos demais. O que se pretendecom esse enunciado é efetivamente responsabilizar os governos pela garantia dessepadrão a todas as pessoas e a todas as famílias. Também não é correto evadir-se daexigência sob a alegação de que o direito à saúde também se dirige aos cidadãos(afinal, todos teríamos responsabilidades compartilhadas). Isso é incorreto, poiso direito humano à saúde não é um direito “horizontal”; ele é, como a maiorparte dos DHs, um direito “vertical” – o portador do dever correlato não é cadacidadão, e sim os governantes de cada país signatário.Isso não significa que daí decorra que toda pessoa tenha direito a que osgovernos lhe proporcionem todos os recursos considerados necessários para mantersua saúde, e sim que ninguém poderá estar aquém de certo padrão capaz deassegurar esses recursos. Optar por um sistema público de saúde como o nosso,que distribui direitos amplos e largamente extensivos à assistência médica, porexemplo, é, penso, um problema de política doméstica, isto é, um problema depolítica pública nesse país em particular. Daí porque não faça sentido dizer quetodos os direitos sociais sejam direitos humanos. Em consequência, há váriosarranjos capazes de garantir o que a Declaração de 1948 exige dos governos. Apropósito, a Declaração de 1948 não diz que os DHs correspondem a todos os


direitos que alguém poderia ter ou poderia exigir de seus concidadãos, ou de seusgovernos. Além dos DHs, há muitos outros direitos que podem ser concedidosou implementados. Os DHs correspondem a uma parte (embora, importante)da esfera dos direitos que temos e que podemos ter – trata-se da a esfera daquelesdireitos que não podemos deixar de ter. De todo modo, é importante que nenhumdos demais direitos civis contrariem esses direitos.Um último comentário. A linguagem dos direitos como exigências tem umagrande vantagem sobre a vagueza da linguagem dos direitos como “títulos” justamentepor não deixar o portador do direito à mercê da liberalidade do eventual portadordo dever. Na linguagem dos direitos como títulos, na medida em que o enunciadojurídico que atribui direitos a alguém independe dos possíveis enunciados que atribuemdeveres a outras pessoas, sejam eles entes privados ou governos (isto é, de queé possível afirmar-se que alguém tenha certo direito mesmo quando é impossívelindicar o portador do dever correlato), se interpretarmos os enunciados jurídicosque atribuem direitos apenas como formulações genéricas, segue-se a usual ideiade que os deveres dos governantes são não passam de “obrigações imperfeitas” (aexplicação para o fato de não ser eventualmente possível indicar o dever específico eseu portador consistiria nisto: o direito é simplesmente imperfeito). Ora, isso permiteaos portadores de deveres a vantagem de poder interpretar à revelia qual o conteúdodo dever que satisfaz ou pode satisfazer o direito em questão. Na medida em quedireitos servem justamente para proteger o elo mais fraco do elo mais forte, isso resultaem desvantagens para a defesa dos direitos. Mas essa fragilidade não ocorre seos DHs forem interpretados como exigências; pois, para cada exigência há sempreum dever determinado, do qual seu portador não pode esquivar-se.O filósofo Amartya Sen, em sua defesa dos DHs como direitos (entitlements)a capacidades (capabilities) prefere, no entanto, interpretar os DHs como exigências“imperfeitas”. 22 Mas não faz sentido falar em exigências imperfeitas, a menos quetais exigências sejam “imperfeitas” apenas na medida em que seu conteúdo não é“objetivo” (isto é, um “estado de coisas”), e sim “subjetivo” (isto é, “uma ação”).Ou seja, o que se exige não é que “certo estado de coisas seja o caso” e sim quecerto conjunto de ações e políticas ocorra ou venha a ocorrer. 232 - A LINGUAGEM DOS DIREITOS - Marco Antonio O. de Azevedo22 Sen, Amartya K. Elements of a theory of human rights. Philosophy & Public Affairs 32 (4),2004: 315-56.23 Pessoalmente prefiro dizer que “direitos imperfeitos não são de fato direitos”. Talvez taisdireitos sejam na verdade princípios gerais, ideias gerais que nos permitem identificar direitos. Masnesse caso não faz sentido falar em “princípios” ou em “deveres imperfeitos” (pois a diferença entre39


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS40Suspeito que a distinção entre responsabilidade subjetiva e objetiva talvezsirva aqui para elucidar essa distinção. No caso de “entitlements to capabilities”, oque temos são exigências sobre governos a que certas políticas ou ações ocorram,e não a que certos estados de coisas sejam o caso. Mas do fato de que existamexigências sobre alguém a que certa ação ou decisão (talvez genérica e vaga) sejatomada não se segue que não há algo “objetivo” que representa o conteúdo dodireito. A existência de direitos de um tipo (entitlements imperfeitos) não implicaque não existam ou não possam existir no domínio jurídico exigências perfeitas.Podemos ter direitos a que o governo implemente políticas sociais na área da saúdepública (gerando obrigações correlatas “imperfeitas” de ações ou políticas públicas),e podemos ter direito, ao mesmo tempo, a que certo estado de coisas ocorra(por exemplo, que certo medicamento seja fornecido a certa pessoa caso certascondições sejam o caso). Pois se os direitos sociais fossem sempre meras obrigaçõesimperfeitas, o portador do direito estaria sempre à mercê da “boa vontade”(isto é, da interpretação benevolente) do portador do dever correlato (no caso,do governante ou das autoridades). Portadores de direitos não podem ser refénsingênuos da vontade ou dos interesses eventuais do portador do dever correlato.Essa é, penso, a principal razão porque é preciso tornar mais clara a linguagemdos direitos humanos.princípios e direitos estaria justamente nisso; assim, um princípio “perfeito” não deveria ser chamadode princípio, e sim de direito). Direitos à saúde não são, portanto, princípios, e sim direitos; ochamado “princípio da dignidade humana” por outro lado é um princípio, e não um direito (tratasede uma ideia geral a que associamos uma série de direitos). Princípios de direito vinculam-se adireitos; princípios de política, no entanto, vinculam-se a políticas e ações governamentais. Note-seque há uma diferença grande entre ter direito a que uma ação determinada ocorra (ou que certoestado de coisas ocorra) e ter direito a que uma política seja desenvolvida. Há uma grande diferençaentre o direito a que o governo implemente políticas de combate à fome, por exemplo, e o direito anão sofrer de fome. Os dois direitos podem estar relacionados (talvez o segundo possa ser satisfeitopor meio da satisfação do primeiro, por exemplo); mas eles não são simplesmente equivalentes. Éplenamente concebível que as pessoas possam não ter o direito a sofrer de fome e que os cidadãostenham o direito a que os governos implementem políticas de combate à fome. Se o direito a nãopassar fome for um DH, então passar fome será sempre uma infração a um DH individual, mesmoque o governo esteja fazendo tudo o que estiver a seu alcança para garantir o direito dos cidadãosa que existam políticas de combate à fome. Essa é certamente uma vantagem da linguagem dasexigências: para cada direito há sempre um dever e um portador desse dever correlato.


Homem só - gouache s/MDF – 46 X 34cmLeonardo Fagundes da Rocha – Oficina de Criatividade/ HPSP


3 A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NOBRASIL: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NATRANSIÇÃO INACABADAJosé Carlos Moreira da Silva Filho 24Resumo:A transição política brasileira relativa à sua última ditadura abarca sentidos e processoscontrastantes de anistia. Na segunda metade da década de 70, a anistia apresentou-se comouma bandeira de luta que mobilizou importantes setores da sociedade civil, mas tambémrepresentou, a partir da edição da Lei N 6683/1979, a implementação de uma política deesquecimento, responsável pela impunidade dos agentes públicos a serviço da ditadura quepraticaram crimes de lesa-humanidade, bem como pela desarticulação em torno das grandespautas políticas de repúdio ao autoritarismo. A Constituição de 1988 demarcou um processode anistia distinto, concretizado na Lei N 10.559/2002, e que evoca a implementaçãode políticas de memória. A atuação da Comissão de Anistia, em especial, tem articulado otema da anistia à temática da justiça de transição, instaurando processos de reparação, derealização do Direito à Memória e à Verdade e de questionamento da impunidade para oscrimes de lesa-humanidade praticados na ditadura civil-militar, chocando-se de frente como entendimento manifestado em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimentode Preceito Fundamental N 153.Palavras-Chave:Anistia, Comissão de Anistia, justiça de transição, ditadura civil-militar.3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho24 Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR; Mestreem Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Bacharelem Direito pela Universidade de Brasília – UnB; Professor da Faculdade de Direito da PontifíciaUniversidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (Programa de Pós-graduação em CiênciasCriminais – Mestrado e Doutorado – e Graduação em Direito); Conselheiro da Comissão de Anistiado Ministério da Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização doDireito e Justiça de Transição – IDEJUST.43


3.1 INTRODUÇÃOPARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS44A anistia no Brasil, especialmente quando considerada em relação à ditaduracivil-militar ocorrida de 1964 a 1985, é um tema cercado de ambiguidades, contradiçõese mal-entendidos. Ora vista como uma conquista fruto da movimentaçãopopular, ora tida como uma imposição dos militares e dos setores sociaisque apoiavam a ditadura, de um lado é o marco da redemocratização brasileira,de outro é o entrave que estimula a impunidade e a continuidade da prática decrimes por agentes estatais, ora promove a reparação e o reconhecimento, oradá continuidade à estigmatização dos grupos resistentes ao regime autoritário.Aponta igualmente para políticas de esquecimento e para políticas de memória.Nos últimos anos o tema da anistia esteve firmemente presente na pautapolítica nacional, suscitando acirrados debates nas arenas jurídica, política e midiática.Boa parte das discussões, contudo, perderam-se em meio aos desvãos eà complexidade inerente ao tema, alimentando a confusão ainda presente paragrande parte da população quando o assunto é anistia. A verdade é que o Brasilvem experimentando desde os últimos anos da ditadura civil-militar diferentesprocessos de anistia e diferentes entendimentos sobre o seu significado.O propósito deste texto é o de auxiliar no necessário esclarecimento do tema,destacando os capítulos principais dessa longa e inacabada história da anistia e datransição política brasileira.3.2 A LUTA PELA ANISTIA EM 1979Em primeiro lugar, é importante que se diga que a anistia sempre foi umademanda presente ao longo do período ditatorial, mas foi especialmente na segundametade da década de 70 que a bandeira pela anistia aos que eram perseguidospolíticos pelo Estado brasileiro foi deflagrada de modo amplo por diferentes erepresentativos setores da sociedade brasileira.No ano de 1975 é desencadeada a campanha pela Anistia, com o lançamentodo Manifesto da Mulher Brasileira pelo Movimento Feminino pela Anistia (MFPA).Este movimento começa forte em São Paulo, conduzido por D. Terezinha Zerbini,e, de São Paulo, espalha-se por todo o país. Era o ano internacional da mulher efoi principalmente pelo protagonismo das mulheres, esposas de maridos desapa-


ecidos, presos ou foragidos, irmãs, amigas, militantes, que se deu início a umadas mais belas movimentações políticas da sociedade civil brasileira.No Rio Grande do Sul constituiu-se o segundo núcleo do MFPA, sob a liderançada socióloga Lícia Peres 25 , que se desdobrou em atividades de conscientizaçãosocial, galvanizando setores organizados como a igreja, os estudantes, os políticose a população de um modo geral 26 . Em 1978, criam-se os Comitês Brasileiros deAnistia, que tiveram atuação decisiva na mobilização da opinião pública em prolda libertação dos presos políticos e do retorno dos exilados. No Rio Grande doSul, o CBA foi presidido por Raquel Cunha e atuou em conjunto com o MFPA.Ficaram célebres as vitoriosas campanhas desenvolvidas pela libertação de FlávioKoutzii, Flávia Schilling e Flávio Tavares 27 .É preciso entender que no contexto de mobilização nacional pela anistia opróprio regime militar dividia-se entre uma linha dura e uma linha favorável aoabrandamento do autoritarismo tendo em vista uma passagem controlada à democraciaformal. Portanto, havia um importante flanco a ser explorado entre ospróprios apoiadores da ditadura. A mobilização dos movimentos e comitês pelaanistia foi decisiva para fortalecer os setores da ditadura favoráveis à abertura,ainda que “lenta e gradual”.O trabalho político corajosamente desenvolvido pelos movimentos e comitêspela anistia espalhados por todo o Brasil, além de darem um belo exemplo deengajamento e mobilização popular, já preparando o terreno para a campanhadas Diretas, conseguiu minar os setores mais radicais da ditadura e garantir um25 Como a própria Lícia Peres conta, foi instada por Dilma Roussef a organizar um núcleo femininode luta pela anistia no Rio Grande do Sul (PERES, Lícia. Movimento feminino pela anistiano Rio Grande do Sul. In: PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, VanessaAlbertinence; FERNANDES, Ananda Simões (Orgs.). A ditadura de segurança nacional noRio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Porto Alegre: CORAG, 2009. v.4. p. 103).26 Um episódio que ilustra bem a forte atividade desse núcleo ocorreu durante o velório do ex--Presidente João Goulart em São Borja. Mila Cauduro, a vice-presidente no núcleo gaúcho colocoua faixa da Anistia sobre o caixão de Jango. A foto tirada percorreu o mundo todo. Na missa de 30dias da sua morte, a igreja da Matriz em Porto Alegre estava lotada, com grande aglomeração depessoas em torno da escadaria. Mila gritou a palavra “Anistia”, que contagiou a multidão e acaboupor provocar uma repressão imediata e brutal por parte da polícia de choque (Ibidem, p.110).27 Especificamente sobre esta campanha e amplamente sobre a movimentação popular em prolda anistia na segunda metade da década de 70 ver o aprofundado e detalhado estudo de CarlaRodeghero, Gabriel Dienstmann e Tatiana Trindade: RODEGHERO, Carla Simone; DIENST-MANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: história de uma lutainconclusa. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, <strong>2011</strong>.3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho45


ambiente político propício ao máximo de liberdade possível naquele contexto.Este “máximo” foi aquele demarcado pela aprovação da Lei de Anistia em agostode 1979.3.3 A ANISTIA DE 1979 COMO EXERCÍCIO DEESQUECIMENTO: QUE ACORDO FOI ESSE?PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS46A Lei 6683/79 foi, portanto, fruto de uma batalha política que instantaneamentebeneficiou milhares de pessoas, permitindo o retorno dos exilados e aprogressiva libertação dos presos políticos. Também representou a quase irreversibilidadedo processo de abertura democrática no país. Paradoxalmente, e apesar detudo isto, a Lei de Anistia foi também o passaporte dos agentes da ditadura parauma transição na qual nenhum dos seus crimes viria a ser investigado e punido.A anistia fez parte de um projeto cuidadosamente delineado por estrategistas doregime, comandados pelo arquiteto intelectual da ditadura, o General Golberydo Couto e Silva. Fazia parte desse plano o esfacelamento das forças políticas deoposição, que àquela altura, apesar de todos os esforços dos governos militares emsentido contrário, haviam se agrupado em torno do MDB.Também figurava no roteiro manter um forte silêncio sobre os fatos não esclarecidosao longo de décadas de repressão estatal, como a localização dos corposdos desaparecidos políticos, questão até hoje não solucionada. Nenhuma políticaconsistente de reparação às vítimas da ditadura foi implementada naquele momento,o que só viria a acontecer mais de 20 anos depois. Nenhuma espécie deexpurgo administrativo e judicial foi feito. Os juízes e promotores que forneceramtodo o apoio jurídico necessário à judicialização da repressão, fazendo vistasgrossas às insistentes denúncias de tortura e tentando legitimar juridicamente oque era indefensável, continuaram em seus cargos.Os agentes policiais e os militares que tomaram parte na prática de crimescontra a humanidade também se mantiveram incólumes em suas funções públicase os que não faleceram continuam até hoje recebendo pensão ou aposentadoriafornecida pelo Estado. O negacionismo quanto aos crimes de tortura e a outrasgraves e sistemáticas violações de direitos humanos, ou então o discurso de queera justificável o injustificável em nome do combate ao comunismo internacional,ganhou razoável espaço, até o presente, na sociedade brasileira, no âmbito


midiático e na cultura institucional dos órgãos de segurança pública brasileiros,em especial as forças armadas.Na prática, portanto, a anistia de 1979 funcionou muito mais como umapolítica de esquecimento do que de memória 28 , embora tenha sido importantepara o momento político da transição brasileira. É sintomático que, no ano de2009, quando a Lei fez o aniversário de 30 anos, os meios de comunicação tenhamsilenciado a respeito e, com exceção de alguns eventos pontuais, a datatenha passado em branco.Uma vez feitas as ressalvas sobre o significado de conquista que a anistiade 1979 assumiu, sobre o intenso envolvimento popular e sobre a importânciaem se apoiar os setores da ditadura que planejavam o seu próprio fim, ainda quetranquilo e seguro, é preciso repudiar fortemente a ideia de que o período deabertura “lenta e gradual”, comandado pelo ditador Ernesto Geisel representouum manso ou “suave” abrandamento do regime ditatorial. Do mesmo modo, éimperioso mostrar que não houve, de fato, nenhum acordo real em torno da Leide Anistia de 1979, e, por fim, era do interesse do próprio regime ditatorial promovera anistia naquele contexto 29 .É bem verdade que no ano de 1974 iniciou-se um processo que iria evidenciarde modo crescente a insatisfação social com a continuidade do regime de força.Nas eleições ocorridas neste ano a vitória do MDB, o partido de oposição controlada,foi expressiva, o que se deu, entre outros fatores, pelo forte envolvimentodo clandestino Partido Comunista Brasileiro. Naquele momento quase todas asorganizações que opuseram resistência armada ao regime ditatorial haviam sidomassacradas 30 .28 Ver contraponto mais detalhado entre a Anistia de 1979 e a Anistia constitucional de 1988regulamentada na Lei 10.559/2002, na qual se demarca o papel de esquecimento da primeira e deresgate da memória da segunda, em: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memóriae a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização doDireito à Memória e à Verdade. In: PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; FERNAN-DES, Amanda Simões; LOPEZ, Vanessa Albertinence (Orgs.). O Fim da Ditadura e o Processode Redemocratização. Porto Alegre: CORAG, 2009. p. 47-92. (A Ditadura de Segurança Nacionalno Rio Grande do Sul.1964-História e Memória-1985, v.4).29 Neste ponto do artigo, sirvo-me dos apontamentos já externados em: SILVA FILHO, JoséCarlos Moreira da. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a InacabadaTransição Democrática Brasileira. Disponível em: http://idejust.files.wordpress.com/2010/07/zk--adpf-153.pdf. Acessado em 02/10/<strong>2011</strong>.30 Esclarece Jacob Gorender que quando “o general Ernesto Geisel tomou posse da Presidênciada República em março de 1974, a guerrilha urbana se extinguira e a guerrilha do Araguaia ago-3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho47


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSAlém da vitória eleitoral, no ano de 1975, como já relatado, é desencadeadaa campanha pela Anistia, com o lançamento do Manifesto da Mulher Brasileirapelo Movimento Feminino pela Anistia. Surge também com vigor a mobilizaçãosindical capitaneada pelos operários e metalúrgicos do ABCD paulista. A UniãoNacional dos Estudantes e as Uniões Estaduais dos Estudantes são recriadas. E,em 1978, criam-se os Comitês Brasileiros de Anistia, que tiveram atuação decisivana mobilização da opinião pública em prol da libertação dos presos políticos e doretorno dos exilados.A esta altura a resistência armada havia sido brutalmente eliminada. A repressãopassou então a mirar preferencialmente nos setores de resistência não armados,especialmente o Partido Comunista Brasileiro e o que havia sobrado do PCdoBapós a Guerrilha do Araguaia, desarticulando completamente sua alta direção,prendendo e assassinando seus membros. O episódio mais emblemático dessaperseguição ficou conhecido como o “massacre da Lapa”, ocorrido em dezembrode 1976, na cidade de São Paulo. Agentes do Exército assassinaram três dirigentesdo Partido: João Baptista Franco Drummond, Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. Outrosseis militantes foram presos, cinco deles torturados sistematicamente durantesemanas 31 . Ao longo do ano de 1975, em todo o país, o então Ministro da Justiça,Armando Falcão deflagrou uma verdadeira caça aos comunistas. Dez dirigentesdo PCB que caíram nessa ofensiva, inclusive, integram a lista de desaparecidospolíticos brasileiros, como é o caso de David Capistrano da Costa.De 1977 a 1981, registra Heloísa Greco, aconteceram cerca de 100 atentadospor todo o país, sem que tenha havido qualquer apuração de responsabilidades 32 .Os episódios que ficaram mais conhecidos foram a bomba que vitimou a secretáriada OAB, Lyda Monteiro da Silva, em agosto de 1980 e a bomba no Riocentro,em abril de 1981. Durante o governo ditatorial de João Batista Figueiredo bancasde jornal eram incendiadas para impedir a circulação das publicações de esquerda,e enquanto isto o então presidente recebia a visita do genocida Jorge Videla, um48nizava” (GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas àluta armada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 232).31 Para mais detalhes sobre o episódio ver: POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Massacre naLapa: como o Exército liquidou o Comitê Central do PCdoB – São Paulo, 1976. 3. ed. São Paulo:Fundação Perseu Abramo, 2006.32 GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões fundacionais da luta pela Anistia. 2009. 456f. [Tesede Doutorado] – Curso de Pós-Graduação das Faculdades de Filosofia e Ciências Humanas daUniversidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2003. p.53.


dos ditadores da cruenta ditadura civil-militar argentina, hoje condenado à prisãoperpétua. Ambos cordialmente afirmavam em Brasília, em comunicado conjunto,que: “Onde havia caos, hoje há ordem” 33 .O terrorismo de Estado também continuava ativo nos assassinatos do jornalistaVladimir Herzog e Manoel Fiel Filho nas dependências do DOI; CODI em SãoPaulo. Denúncias de torturas de operários e militantes tornam-se conhecidas 34 . Nofinal de 1978 acontece em Porto Alegre o célebre sequestro dos uruguaios LilianCeliberti e Universindo Dias 35 , no contexto da Operação Condor 36 .A tentativa de realizar o III Encontro Nacional de Estudantes em Belo Horizonte,em junho de 1977 e a sua realização clandestina na PUC-SP são violentamentereprimidas em uma operação comandada pelo Secretário de SegurançaAntonio Erasmo Dias.Vê-se, portanto, que o ambiente estava longe de ser “suave” ou propensoa acordos nos quais pudesse haver um mínimo de igualdade e proporção entreas partes. Como já assinalado, as eleições de 1974 manifestaram uma expressivavitória do MDB 37 . Isto trouxe um grande enigma à ditadura Geisel, que pode serresumido na singela pergunta: como ganhar as próximas eleições 38 ? A “solução”encontrada foi fazer uso dos poderes ilimitados concedidos pelo AI-5. Em janeiro33 MARCELO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. Rio de Janeiro: Agir, 2009. p.175.34 GORENDER, op. cit., p.233.35 Ver o minucioso relato de Luiz Cláudio Cunha, o jornalista responsável pela denúncia dosequestro: CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: O sequestro dos uruguaios – uma reportagemdos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2008.36 Em outro artigo, se faz referência sucinta à Operação Condor: “Os governos ditatoriaislatino-americanos nesse período possuíam polícias políticas e uma verdadeira rede de informaçõese operações conjuntas destinadas a prender e eliminar qualquer um que fosse suspeito de ser integranteda resistência ao regime de exceção. A conhecida Operação Condor, idealizada pelo CoronelManuel Contreras, chefe da DINA (a polícia política de Pinochet), estendeu seus tentáculos portodo o continente, prendendo, matando e sequestrando pessoas à revelia das fronteiras e dos sistemasjurídicos” (SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O anjo da história e a memória das vítimas:o caso da ditadura militar no Brasil. In: RUIZ, Castor Bartolomé (org.). Justiça e memória: poruma crítica ética da violência. São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p.124-125).37 Segundo Skidmore, ao criar uma atmosfera menos rigorosa para a atuação da imprensa,Geisel contribuiu para o aumento da tendência de mobilização da opinião pública contra o regimeditatorial. “Geisel estava ajudando a sociedade civil a despertar novamente, mas não estavapreparado para ouvir o que a voz da sociedade tinha para dizer” (SKIDMORE, Thomas. Brasil:de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Tradução de Mario Salviano Silva. 8. ed. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1988. p.369).38 Como explica Skidmore, o grande temor de Geisel eram as eleições para governadores em3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho49


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSde 1976, Geisel utilizou o AI-5 para cassar os mandatos de dois deputados estaduaispaulistas acusados de terem recebido apoio de comunistas. Em seguida, foi avez de três deputados federais, e entre eles o deputado Lysâneas Maciel do MDB.Mas nada disto se compara ao que ocorreu em 01 de abril de 1977. O ditadorGeisel simplesmente impôs uma Emenda Constitucional através do AI-5pela qual o Congresso é fechado. O pretexto que utilizou para isto foi a oposiçãodo MDB a um projeto de reforma judiciária patrocinado pelo governo. O MDBalegava que não fazia o menor sentido a reforma sem a revogação do AI-5 e daLei de Segurança Nacional 39 . Assim, fazendo uso do AI-5, Geisel baixou o queficou conhecido como o “pacote de Abril”.O pacote consistiu em uma série de reformas constitucionais no campoeleitoral com o indisfarçado objetivo de tornar a ARENA, partido de suporteda ditadura militar, imbatível nas próximas eleições, a saber: passa a ser exigidaapenas a maioria simples; todos os governadores e um terço dos senadores seriamescolhidos indiretamente, nas eleições de 1978, por colégios eleitorais estaduaisque incluíam os vereadores, o que bastava para assegurar com folga a vitória daArena nestes colegiados; os deputados federais teriam o seu número demarcadocom base na população e não no total dos eleitores registrados, o que na práticaaumentava o número de parlamentares relacionados às regiões do país nas quaiso apoio à ditadura era maior.Como “cereja do bolo” o pacote incluiu também a criação de um sistema dejustiça interno às Polícias Militares, antes vinculadas à esfera civil dos governosestaduais. Com isto, a atuação dessas polícias ficou imune ao controle jurisdicionalcivil. Por fim, acresça-se a tudo isto a existência, desde 1976, da chamada LeiFalcão, que restringia o acesso ao rádio e a televisão dos candidatos. Permitia-seapenas a imagem sem som do candidato 40 .Após esta súbita e autoritária mudança das regras do jogo, Geisel “reabre” oCongresso no dia 15 de abril. Contudo, já em maio do mesmo ano, a censura éestendida a todas as publicações importadas, e em junho o mandato do líder do501978, que seriam, em princípio, diretas e que provavelmente seriam ganhas de modo maciço peloMDB (Ibidem., p. 372-373).39 Ibidem., p.373.40 Esta lei foi solicitada pelo governo ditatorial ao Congresso de 1976. A estratégia do MDB,naquele momento, era parecer ponderado aos olhos da ditadura para que assim as eleições de1978 ocorressem conforme o previsto, na relativa convicção de uma vitória nas urnas populares(Ibidem., p.370-374).


MDB na Câmara, Alencar Furtado, é cassado e o deputado é privado por dez anosdos seus direitos políticos 41 . Como conclui Heloísa Greco em sua análise, “o efeitoprincipal destas iniciativas é a garantia de fluidez na tramitação dos decretos-leise das emendas constitucionais, o que permitiria ao governo prescindir da ediçãode novos atos institucionais” 42 .Após essas salvaguardas é que em outubro de 1978 a Emenda Constitucional11 declara extintos os Atos Institucionais. Por outro lado, o estado de sítioé incorporado à Constituição e, da tranquilidade de um Congresso manietadoe desfigurado, no qual nunca passaria qualquer projeto contrário à vontade dogoverno ditatorial, surge a nova Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgadaem 17 de dezembro de 1978.Compensando a desaparição dos Atos Institucionais, a nova LSN, entre outrasproezas, atribui poderes quase ilimitados ao Ministro da Justiça para censurar todoe qualquer material que seja considerado ofensivo à segurança nacional (art.50);responsabilização criminal de jovens de 16 anos (art.4); a instituição da figura da“comunicação reservada ao juiz”, pela qual se permite a continuidade da incomunicabilidadee das prisões clandestinas (art.53); criminalização de qualquer tipode vínculo com instituições estrangeiras consideradas ameaçadoras à segurançanacional (art.12); proibição de divulgar fato ou notícia que possa, de algum modo,“indispor ou tentar indispor o povo com as autoridades constituídas” (art.14) 43 .Observa Heloísa Greco que este esquema todo “proporciona ao generalGeisel dispositivos legais, burocráticos e militares de tal ordem, que ele passa a sequalificar como aquele que logrou a maior concentração de poderes entre todosos generais-presidentes do período da ditadura militar” 44 .Nunca é demais destacar que a máquina de moer dissidentes políticos continuavaem funcionamento, bem estruturada, e a Doutrina de Segurança Nacional(DSN) continuava a conduzir os destinos políticos predominantes do país. Bastadizer que todo esse processo de distensão, como já se registrou acima, fazia partede um plano engendrado pelo cérebro da DSN: Golbery do Couto e Silva. AAnistia, inclusive, fazia parte desse planejamento, assim como a abertura ao pluripartidarismo.A intenção era manter intactos os princípios e diretivas da DSN3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho41 Ibidem, p.374.42 GRECO, op. cit., pág.59.43 Ibidem., p.60-61.44 Ibidem., p.61-6251


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSem um ambiente político razoavelmente “democrático”. O pluripartidarismo,ademais, poderia servir para desarticular o MDB, partido que havia ameaçado ahegemonia da ARENA nas eleições de 1974 45 .Por todo o exposto, pode-se notar claramente que o ambiente no qual sedeu a proposição e a votação da lei de Anistia em 1979 estava longe de ser mansoe propenso a um “suave compromisso” 46 . A violência continuava em ação, asprisões arbitrárias e clandestinas, a tortura, as cassações políticas e a censura. Asregras do jogo legislativo haviam sido mudadas bruscamente, de maneira ilegítimae manipulada para que os resultados das votações que interessavam à ditadurafossem sempre ao seu favor, como aconteceu visivelmente na votação da lei deAnistia em 1979.Ao se examinar todo o processo de votação e promulgação da lei de Anistiaé que se pode ter noção mais cabal da inexistência de um acordo que mereça estenome. Apesar de toda a mobilização social em prol da Anistia, o governo Figueiredoagiu, desde o início como se não existisse nenhum outro interlocutor alémdos setores ligados à própria ditadura. Quando o ditador Figueiredo encaminhapara o Congresso o Projeto de Lei da Anistia (PL 14/1979) em 27 de junho de1979, realiza concomitantemente uma grande cerimônia transmitida em cadeianacional, e na qual inclusive chora. Tudo parece ser uma concessão magnânimado governo, ou como batizou o Ministro Celso de Mello em seu voto na ADPF153 uma “medida excepcional fundada na indulgência soberana do Estado”, ouainda, como registrou o Ministro Marco Aurélio no mesmo julgamento, “umato de amor”.Toda essa “generosidade”, porém, não impediu que fosse bloqueada a participaçãode qualquer outro ator institucional, inclusive dos próprios parlamentaresda ARENA, na elaboração do projeto 47 . Tamanho desprendimento, igualmente,não logrou incluir na Anistia aqueles que foram condenados por terem participa-5245 SKIDMORE, op. cit., p.427.46 Como afirmou Eros Grau em seu voto na ADPF 153 julgada no STF.47 GRECO, op. cit., p.231-232. O projeto foi elaborado pelo Ministro-Chefe da Casa Civil,Golbery do Couto e Silva, pelo líder da Arena e Ex-Presidente do Senado, Petrônio Portella, peloChefe do SNI, Octávio Aguiar de Medeiros, pelo Chefe do Gabinete Militar, Danilo Venturinie pelo Secretário Particular do Presidente, Heitor Ferreira (MEZAROBBA, Glenda. Um acertode contas com o futuro: a Anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro. São Paulo:Associação Editorial Humanitas; FAPESP, 2006. p.38).


do diretamente da resistência armada 48 49 e também esteve presente no veto finaldo presidente à expressão “e outros dispositivos legais” que constava no caput doArt.1º da Lei, mantendo apenas a Anistia para os punidos com fundamento emAtos Institucionais e Complementares. Isto afastou da Anistia, por exemplo, todosos professores demitidos e os alunos expulsos pelo Decreto Lei 477/69.Por fim, a “generosidade” foi tão vasta que se encarregou de inserir na leiuma definição ambígua e obscura da expressão “crimes conexos”, ou no dizer dealguns dos julgadores do STF na ADPF 153, uma “interpretação autêntica” dopróprio caput do art.1º feita no § 1º do mesmo artigo. Foi uma forma engenhosade garantir a impunidade dos criminosos de Estado sem ao mesmo tempo admitirque os mandantes e os agentes do governo ditatorial tenham cometido tortura,assassinato, desaparecimento e outras vilanias flagrantemente ilegais até para osimulacro de legalidade da ditadura. A interpretação esdrúxula, sacramentadapelo Supremo Tribunal Federal foi “enfiada goela abaixo” da sociedade brasileira,dos juízes, parlamentares e juristas de um modo geral, em uma época que, comoo próprio Sepúlveda Pertence reconhece, em parecer que produziu naquele ano,qualquer possibilidade de excluir expressamente os torturadores da Anistia erainegociável pelo governo. Não há outra palavra para descrever tal medida senãoa palavra “auto-Anistia”.O projeto de lei, assim delineado, foi enviado para o Congresso, onde foiformada uma Comissão Mista para a sua análise. Apesar da surpreendente presidênciada Comissão Mista exercida por Teotônio Vilela, com visitas aos presídiose declarações favoráveis aos presos políticos, a Comissão já havia sido montadacom uma folgada maioria da ARENA sobre o MDB: 13 contra 9, sendo que umdestes 9 só votava em caso de necessidade de desempate, visto que era o presidenteda Comissão Mista. Durante o período em que a Comissão funcionou todas as48 Embora muitos tivessem sido indultados no final daquele mesmo ano e outros tivessem asua pena reduzida pelo Superior Tribunal Militar, o fato é que ficaram de fora da Anistia, o que naprática significou que muitos saíram da cadeia em liberdade condicional, tendo que se apresentarperiodicamente às autoridades constituídas e não podendo se ausentar inclusive do próprio estadono qual se encontravam.49 Curioso é que a justificativa apresentada para excluir os condenados da Anistia é que os “terroristas”teriam se envolvido em ações que não seriam simplesmente contra o regime, mas sim “contraa humanidade” (Ibidem., p.39). Na verdade, a definição consagrada no direito internacional para“crimes contra a humanidade” não abriga atos de resistência diante da tirania, mas sim atos que sedão em meio a uma política de sistemática eliminação de parcela da população civil, que no casoda ditadura civil-militar brasileira era deflagrada pelo regime contra todos os que coubessem noscontornos frouxos da categoria “subversivo”.3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho53


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS54tentativas de polemizar e discutir, empreendidas pelos membros filiados ao MDB,foram sucessivamente ignoradas pela maioria arenista, o que se evidenciou por fimno substitutivo do relator Ernani Satyro (sem dúvida, uma verdadeira sátira aosprocessos verdadeiramente democráticos), da ARENA: uma reprodução fiel doprojeto enviado pelo governo, com a exceção de ter ampliado o prazo da Anistiade 28 de dezembro de 1978 para 27 de junho de 1979 50 .A esta altura é importante lembrar que o verdadeiro protagonismo na bandeirada Anistia ampla, geral e irrestrita esteve com os movimentos populares pelaAnistia. Contudo, suas reivindicações não podiam ter outro canal senão a oposiçãoconsentida naquele momento, ou seja o MDB. Este, por sua vez, revelava-semuitas vezes um verdadeiro campo minado, já que muitos dos seus parlamentareshaviam sido cassados e outros apresentavam uma posição moderada, insuficientepara dar vazão a todas as questões desejadas pelos movimentos de Anistia brasileiros51 . A questão da Anistia transformou-se realmente em um fato de conhecimentomassivo da população quando ela foi abraçada por autoridades como TeotônioVilela e por instituições admitidas pelo governo como a OAB, a ABI, e a CNBB.Antes da Comissão Mista ter aprovado o substitutivo de Satyro, formou-seuma Frente Parlamentar pela Anistia, apoiada tanto pelos CBA’s como pelos presospolíticos, no sentido de elaborar um substitutivo do MDB para confrontar oprojeto do governo 52 . Naquele momento, as chances, por mais improváveis quefossem, estavam em se formar uma forte coesão em torno desse substitutivo. Surgiuentão a Emenda n.7 de 9 de agosto de 1979, assinada por Ulisses Guimarães50 GRECO, op. cit., p.236-239. Esclarece ainda a historiadora Heloísa Greco que “o substitutivodo relator incorpora in totum não só o espírito mas a própria letra do projeto do governo cujoprincípio se mantém incólume, acolhendo parcialmente apenas emendas inócuas de redação, 67 deum total de 305. O resultado de todas as votações é o infalível 13 a 8, sempre a favor da ARENA,garantindo a rejeição de todas as emendas que poderiam afetar ou mesmo tangenciar o dispostono projeto de lei enviado ao Congresso Nacional pelo presidente da República” (grifos da autora).51 Por exemplo, nas manifestações parlamentares por ocasião da discussão da Lei de Anistia em1979, muitos deputados do MDB utilizaram a palavra “terrorista” para se referir a quem se envolveuna resistência armada, e passaram a defender a anistia recíproca. Nenhuma das duas atitudes expressavao pensamento que estruturou a atuação dos CBA’s, muito pelo contrário (RODEGHERO,DIENSTMANN e TRINDADE, op. cit., p.160-162). De todo modo, a defesa da anistia recíprocaneste contexto cerca-se de maior complexidade, na medida em que havia diferentes concepções deanistia em duelo. Para maior detalhamento desta questão, ver: RODEGHERO, DIENSTMANNe TRINDADE, op. cit. e RODEGHERO, Carla Simone. A anistia entre a memória e o esquecimento.In: História Unisinos, São Leopoldo, vol.13, n.2, p.131-139, maio-ago 2009.52 GRECO, op. cit., p.241.


(presidente do partido), Freitas Nobre (líder da minoria na Câmara) e Paulo Brossard(líder da minoria no Senado). Dalmo Dallari e José Paulo Sepúlveda Pertenceparticiparam ativamente da sua redação. Entre os pontos altos do substitutivo doMDB estavam: a Anistia para todos os perseguidos políticos, inclusive para oscondenados por participação na resistência armada; a rejeição explícita da Anistiarecíproca, ainda que não mencionasse a apuração e a responsabilização peloscrimes de lesa-humanidade; a matrícula de estudantes punidos e a instauração deinquérito para apurar os desaparecimentos políticos.O substitutivo foi assumido como fruto da decisão unânime do MDB tantono Senado como na Câmara. Todavia, como já se registrou, prevaleceu o placarestático de 13 a 8, pelo substitutivo de Satyro. Para fazer frente a esta situação, aestratégia imaginada pelos movimentos pela Anistia era que o MDB, na ocasiãodas votações no Congresso, rejeitasse o projeto do governo e trabalhasse em umprojeto substitutivo próprio que incorporasse as demandas dos movimentos.Contudo, muitos parlamentares do MDB entenderam que a batalha havia sidoperdida na Comissão Mista e que o melhor que tinham a fazer agora era apoiar oprojeto do governo que, bem ou mal, trazia vários benefícios, ainda que parciais.No dia da votação da lei, dia 22 de agosto de 1979, cerca de 800 soldados àpaisana estavam desde a madrugada ocupando quase a totalidade dos lugares nasgalerias. Os militantes pela Anistia, contudo, não esmoreceram e, finalmente, porvolta das 14h, depois de muito protesto e gritaria, conseguiram que os soldadossaíssem das galerias. A segurança reforçada no ambiente coibia a todo o instanteas manifestações dos militantes, apreendendo faixas e cartazes. Na véspera, umabomba havia explodido na rampa do Congresso durante uma manifestação emprol da Anistia ampla, geral e irrestrita. A ordem do Planalto era bem clara: osubstitutivo de Satyro deveria ser votado na mesma forma que ele chegou aoCongresso Nacional, caso contrário Figueiredo vetaria toda a lei 53 .Apesar de todo o cenário até aqui apresentado, o empenho dos movimentospela Anistia surtiu um efeito importante: a aprovação do projeto do governo foimuito menos fácil do que se imaginava. Alguns parlamentares arenistas, inclusive,demonstravam claramente a intenção de rejeitar o substitutivo de Satyro. ExplicaGreco, citando fontes da imprensa da época, que tais parlamentares foram “chamadosà responsabilidade” pelo líder do partido na Câmara, o deputado NelsonMarchesan, que inclusive lançou mão de um recurso regimental pelo qual os3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho53 Ibidem, p.254.55


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSdeputados que desrespeitassem as diretrizes partidárias poderiam perder o seumandato 54 .Após a votação, colheu-se o seguinte resultado: em votação preliminar, osubstitutivo do MDB é derrotado por 209 votos a favor contra 194 desfavoráveis 55(entre estes os votos de 12 arenistas dissidentes); a aprovação do substitutivo deSatyro ocorre em bloco, pela votação dos líderes dos dois partidos, ou seja, nãofoi nominal. Porém, houve a discordância silenciosa de 12 dos 26 senadores e adeclaração de voto contrário de 29 dos 189 deputados do MDB. Tais manifestaçõesnão puderam ser formalizadas, pois, repita-se, a votação foi em bloco, semvotação nominal.Este foi, portanto, o “acordo” no qual a sociedade “falou altissonante” 56 .Não havia possibilidade de qualquer tipo de barganha ou jogo de influências queconseguisse afastar a intenção do governo de se auto-anistiar ou de restringir aAnistia aos perseguidos políticos. Caso ocorresse a improvável conversão de umnúmero maior de deputados arenistas, das duas uma: ou o senado biônico reverteriao resultado ou o ditador Figueiredo simplesmente vetaria o resultado na suatotalidade. Afinal, que acordo foi este?3.4 A ANISTIA A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988:O SURGIMENTO DE UMA ANISTIA PELA MEMÓRIAA Emenda N° 26 de 1985, aprovada já no governo Sarney, teve como missãocentral a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, mas trouxe tambémuma série de disposições relacionadas à anistia, buscando ampliar a abrangênciada anistia de 1979, incorporando estudantes, dirigentes sindicais, servidores eempregados civis.Manteve, porém, o seu caráter ambíguo ao reproduzir no texto a referência5654 Ibidem, p.255.55 A Arena, graças ao pacote de abril de 1977, possuía a maioria numérica no Congresso. Eram231 deputados da Arena contra 189 do MDB. Eram 41 senadores arenistas contra 26 emedebistas.Tal maioria era ainda fortalecida pelo recurso aos 22 senadores biônicos. Ou seja, qualquer “deslize”contrário aos interesses do governo ditatorial seria “sanado” no Senado. É de se mencionar tambémque havia um outro substitutivo, votado na sequência, que previa a anistia aos condenados naluta armada, mas mantinha a anistia aos agentes da ditadura. Era o substitutivo Djalma Marinho,derrotado por 206 votos contrários e 201 votos favoráveis.56 Como registrou a Ministra Carmem Lúcia em seu voto da ADPF 153.


da anistia aos “crimes conexos”, o que na prática significava manter a impunidadepara os agentes públicos que cometeram crimes contra a humanidade.Registre-se aqui a preferência pelo termo “ambígua” para caracterizar a anistiaaos ditadores e seus sequazes e não “bilateral”, pois, para utilizar corretamente esteúltimo termo, haveria que se pressupor a existência de dois lados, como ocorreem uma guerra entre dois exércitos inimigos. O que se teve durante as ditadurascivis-militares latino-americanas, que se alastraram com o beneplácito estadunidensedurante a segunda metade do século passado, foi a perseguição desigual ebrutal de cidadãos nacionais pelo seu próprio Estado 57 , justamente aquele quetinha o dever maior de protegê-los. Um crime incestuoso portanto, agravado pelofato de que se estabeleceu a partir da tomada golpista do poder, com a destituiçãode um presidente eleito pelo voto popular e com a flagrante violação maciça daConstituição democrática de 1946 e dos direitos fundamentais que lhe davamsustentáculo.Com a chegada da Constituição de 1988 as grandes pautas políticas nacionaisde repúdio ao autoritarismo e de efetivo fortalecimento dos valores democráticoscederam espaço às demandas setorizadas dos emergentes e renovados movimentossociais. É como se houvesse um campo de força barrando a discussão políticae jurídica sobre as contas não pagas da ditadura e seus efeitos devastadores. Osmovimentos populares, outrora unidos em torno de pautas políticas comuns,fragmentaram-se e passaram a se concentrar em seus objetivos específicos.Apesar desse silenciamento contextual sobre a ditadura, que ainda fumegavaem suas cinzas, é digno de nota o fato de que a nova base fundamental doordenamento jurídico brasileiro, em nenhuma das suas centenas de disposiçõesnormativas, repetiu a referência aos “crimes conexos”. Por outro lado, no Artigo8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o constituinte firmou, comclareza inequívoca, que a anistia era devida aos que “foram atingidos, em decorrênciade motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionaisou complementares”. Aqui finalmente é expurgado do cenário jurídico brasileiro omonstrengo esquizofrênico da anistia ambígua, ao menos no texto constitucional.Todavia, a inatividade das autoridades institucionais e dos movimentossociais, com exceção do corajoso e persistente esforço dos amigos e familiares de3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho57 Para uma análise introdutória sobre a vertente criminológica que se debruça sobre os Crimesdo Estado articulando-a com os marcos teóricos da justiça de transição, ver: SILVA FILHO, JoséCarlos Moreira da. Crimes do Estado e Justiça de Transição. Sistema Penal & Violência, v. 2, p.22-35, 2010.57


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSmortos e desaparecidos políticos, contribuiu para manter viva, isolada, segura eesquecida esta criatura aberrante, que foi vividamente ressuscitada pelo SupremoTribunal Federal em 2010, transformado neste episódio de guardião da Constituiçãoem seu principal violador. Agiu em relação à Constituição assim como oEstado ditatorial agiu em relação aos seus cidadãos, violando aqueles a quem tinhao dever de proteger, forçando a anômala convivência da anistia aos criminosos delesa-humanidade com a Constituição de 1988 e seus princípios e valores fundamentais,para os quais a tortura é, além de abominável, imprescritível.Além de excluir da sua apreciação a anistia aos crimes da ditadura, o Artigo8º do ADCT lançou as bases de uma verdadeira política de reparação aos ex--perseguidos políticos. Porém, como era de se esperar naquele ambiente aindamutilado politicamente, contaminado pelo esquecimento forçado e seguidode perto pelo autoritarismo, a lei regulamentadora dessa política de reparaçãosinalizada pelo texto constitucional só viria à luz mais de 20 anos depois, maisprecisamente em 2001.Neste ano, os anistiandos brasileiros, organizados em Associações representativas,finalmente conseguiram se articular o suficiente para pressionar o governoFernando Henrique Cardoso a regulamentar o Art.8° do ADCT via Medida Provisória,a MP N° 2.151 de 2001, com a participação do então Ministro da JustiçaJosé Gregori. Registre-se que o mesmo governo já tinha o mérito da instauraçãoda Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e do reconhecimento oficialda prática do desaparecimento forçado por parte do Estado brasileiro na Lei N°9.140 de 1995, o que também foi o resultado da decisiva mobilização dos amigose familiares de mortos e desaparecidos políticos 58 .Posteriormente, a MP N° 2.151/2001 foi convertida na Lei N° 10.559/2002,que instituiu a Comissão de Anistia 59 . A nova lei de anistia, além de prever direitoscomo a declaração de anistiado político, a reparação econômica, a contagem dotempo e a continuação de curso superior interrompido ou reconhecimento de diplomaobtido no exterior, institui a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério5858 Importante também mencionar os esforços de diversas Comissões especiais formadas nos diferentesEstados da Federação com o intuito de fornecer reparações civis aos que sofreram sevíciase maus tratos nas mãos dos agentes da ditadura. No Rio Grande do Sul a Comissão especial foiinstituída em 1997, durante o Governo Britto através da Lei N º 11.042/97.59 Nesta altura sirvo-me de alguns apontamentos já registrados em: SILVA FILHO, Dever dememória e a construção da história viva, p. 82-84.


da Justiça, e que fica responsável pela apreciação e julgamento dos requerimentosde anistia 60 .Observando a atuação da Comissão de Anistia, desde a sua criação, e, especialmente,durante o segundo mandato do Presidente Lula, a condução do Ministérioda Justiça por Tarso Genro e a presidência da Comissão por Paulo AbrãoPires Junior, percebe-se uma radical mudança na concepção da anistia como políticade esquecimento. Em primeiro lugar, ao exigir a verificação e comprovaçãoda perseguição política sofrida 61 , a lei de anistia acaba suscitando a apresentaçãode documentos e narrativas que trazem de volta do esquecimento os fatos quehaviam sido desprezados pela anistia de 1979. Passa a ser condição para a anistiaa comprovação e detalhamento das violências sofridas pelos perseguidos políticos.Nas sessões de julgamento da Comissão de Anistia, os requerentes queestão presentes são convidados a se manifestarem, proporcionando em muitoscasos importantes testemunhos, que são devidamente registrados. Os autos dosprocessos contêm uma narrativa muito diferente daquela que está registrada nosarquivos oficiais. Os processos da Comissão de Anistia fornecem a versão daquelesque foram perseguidos políticos pela ditadura militar, contrastando com a visão,normalmente pejorativa que sobre eles recai a partir dos documentos produzidospelos órgãos de informação do período.Durante a gestão de Tarso Genro no Ministério da Justiça e de Paulo AbrãoPires Junior como Presidente da Comissão de Anistia, a Comissão passou a implementarpolíticas de memória. Umas das mais expressivas e que vem alcançandogrande repercussão nacional são as Caravanas da Anistia. Nelas, a Comissão sedesaloja das instalações do Palácio da Justiça em Brasília e percorre os diferentesEstados brasileiros para julgar requerimentos de anistia emblemáticos nos locais60 A Comissão é composta hoje por 24 conselheiros e conselheiras escolhidos e nomeados peloMinistro da Justiça, e liderados pelo Presidente da Comissão de Anistia, também escolhido peloMinistro. Dos membros da Comissão um necessariamente representa o Ministério da Defesa eoutro representa os anistiandos. Os membros da Comissão possuem, quase todos, formação jurídica,e, de um modo geral, atuam na área dos direitos humanos. Os conselheiros não recebempagamento pelo seu trabalho, considerado, de acordo com a lei, de relevante interesse público. Oconselho funciona como um tribunal administrativo, mas a responsabilidade final da decisão é doMinistro da Justiça, completando-se o processo de anistia apenas após a assinatura e publicaçãoda Portaria Ministerial.61 Em seu art. 2º, a Lei 10.559/2002 prevê ao todo 17 situações de perseguição por motivaçãoexclusivamente política que justificam o reconhecimento da condição de anistiado político e osdireitos dela decorrentes. Aqui estão prisões, perda de emprego, ser compelido ao exílio, ser atingidopor atos institucionais, entre outras situações.3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho59


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSonde as perseguições aconteceram, realizando os julgamentos em ambientes educativoscomo Universidades e espaços públicos e comunitários.Durante esses julgamentos, todos os procedimentos, inclusive os debates eas divergências entre os Conselheiros e as Conselheiras, são realizados às claras,diante de todos os presentes e contando sempre com o testemunho emocionadode muitos anistiandos e anistiandas. Esses testemunhos expressam de modo cristalinoas características do testemunho como ligação entre memória e história. Aexperiência das Caravanas da Anistia permite que se vivencie algo insubstituível:testemunhar o testemunho. A narrativa do sofrimento é quase impossível, mas,como disse Adorno, é a condição de toda verdade 62 . É a possibilidade de recolocarno plano simbólico a violência negada e repetitiva.No Rio Grande do Sul houve, até o presente, cinco Caravanas da Anistia,a saber: a 6ª Caravana, ocorrida em Caxias do Sul nos dias 16 e 17 de julho de2008, em meio ao 29º Encontro Nacional de Estudantes de Direito (com requerimentosde ex-integrantes dos Grupos dos Onze); a 13ª Caravana, ocorrida emSão Leopoldo na UNISINOS no dia 15 de outubro de 2008 (com apreciação desete requerimentos de ex-perseguidos políticos, entre eles um professor da casa eimportante autor das Ciências Sociais, o Professor Solon Viola); a 14ª Caravana,ocorrida em Porto Alegre na Assembleia <strong>Legislativa</strong> do Estado (com entrega daPortaria de anistia de Leonel Brizola ao então presidente do PDT e a apreciaçãodos requerimentos de Suzana e Luis Eurico Lisboa e Raul Pont); a 15ª Caravana,ocorrida em Charqueadas no Assentamento do Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra no dia 17 de outubro de 2008; e a 50ª Caravana, ocorrida nodia 26 de agosto de <strong>2011</strong> na Faculdade de Direito da UFRGS (quando se celebrouos 50 anos da Campanha da Legalidade e se realizou a anistia de WremyrScliar entre outros).3.5 A COMISSÃO DE ANISTIA E AS CRÍTICAS AOS VALORESDAS REPARAÇÕESDesde a sua criação a Comissão de Anistia sempre sofreu ataques da imprensaquestionando os valores pagos a título de reparação. O problema não é o questio-6062 ADORNO, Theodor W. Dialectica negativa. Tradução de Alfredo Brotons Muñoz. Madrid:Akal, 2005. p.28.


namento em si, visto que é obviamente saudável que se debata democraticamenteos critérios adotados para aferir os valores reparatórios, mas sim o modo desrespeitosoe mal informado pelo qual, em muitas ocasiões tal questionamento é feito.Utiliza-se aqui como exemplo a cobertura dada pela mídia ao lançamentodo Projeto Caravanas da Anistia, ocorrida na sede da Associação Brasileira deImprensa no Rio de Janeiro. As notícias que se espalharam em jornais como OGlobo, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo concentraram-se basicamenteem críticas às reparações recebidas por Ziraldo e Jaguar, e mereceram apenas umapalavra: “vergonhosas”. Foi, aliás, este o adjetivo escolhido pelo Ministro TarsoGenro, quando, em resposta à matéria publicada pelo jornal “O Globo” (que emsua primeira página anunciava que a comissão voltava a dar, naquela data, a “bolsa--ditadura”) disse esperar o dia em que a sociedade brasileira atingirá um grau tãoalto de democracia que seus jornais terão “vergonha de falar de ‘bolsa-ditadura’”.O julgamento dos pedidos de reparação do Ziraldo e do Jaguar aconteceu nodia 04 de abril de 2008 e marcou, além do lançamento do Projeto Caravanas daAnistia, a comemoração dos 100 anos da ABI. Curiosamente, a própria imprensanão deu a importância que a ocasião merecia. Mal foi mencionado, por exemplo,nos jornais e na televisão, que a cerimônia também homenageou os jornalistasDavi Capistrano, com a presença de sua viúva, Maria Augusta Capistrano, de 89anos, e Vladimir Herzog; que o filho de Vladimir, Ivo Herzog, recebeu a placa deMaurício Azedo, presidente da ABI, em reconhecimento ao papel de seu pai naconstrução da democracia. Disse ele: “A história de Vlado não pertence apenasà minha família, mas ao Brasil. O que aconteceu com ele foi uma vergonha. Oreconhecimento do Estado ajuda a não se cometer mais os mesmos erros”.Ora, se a imprensa não consegue enaltecer a sua própria memória e o heroísmodaqueles jornalistas que resistiram ao violento e inconstitucional golpemilitar, entre os quais estão Ziraldo e Jaguar, é por que, de certo, como disse oZiraldo, muitos deles “tomavam cafezinho com o Golbery” enquanto ele “xingavao Figueiredo e fazia charges contra todo mundo”.A indenização que ambos receberam é fruto de um direito de status constitucionalgarantido pela Lei N° 10.559/2002, a lei que regula a Anistia políticano Brasil, e que, por sua vez, se apoia no art.8º do ADCT. A Lei prevê que quemperdeu seu emprego ou atividade laboral por ter sido perseguido politicamentepelo regime ditatorial faz jus a uma prestação mensal, permanente e continuadano valor do salário que hoje teria se não houvesse sido demitido ou perdido suaatividade laboral. O valor dessa prestação deve levar em conta os planos de carreira3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho61


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSe as progressões e promoções previstas para cada tipo de profissão (funcionáriospúblicos, militares, professores, jornalistas, profissionais liberais, etc).Importa saber que tanto Ziraldo quanto Jaguar tiveram fechados pelos agentesda opressão jornais e revistas que fundaram e nos quais trabalharam. O valor fixadopara ambos, com base na atividade laboral que perderam, foi de R$ 4.375,88por mês, valor ao qual farão jus mensalmente até o fim da vida. Não é, portanto,um salário exorbitante ou acima da média do que recebem muitos profissionaisde classe média no Brasil. O alto valor alardeado pela grande mídia (em torno deR$ 1 milhão) diz respeito ao retroativo. De acordo com o art. 6º, parágrafo 6º daLei N° 10.559/2002, o anistiado tem o direito de receber o retroativo equivalenteaos cinco anos anteriores à data de entrada do pedido de anistia, até o limite dodia da promulgação da Constituição Federal de 1988. Esse direito é bem menordo que, por exemplo, alguém que é reintegrado ao serviço público por decisãojudicial, pois, neste caso, o reintegrado faz jus ao valor de todos os salários quenão recebeu desde a data em que foi exonerado. Acrescente-se, ainda, que somentequando a prestação mensal, permanente e continuada for até o valor de R$2.000,00 é que o valor do retroativo será recebido em uma única parcela, quandoo valor ultrapassa tal soma, o retroativo é pago em parcelas diferidas por 9 anos.Outro aspecto que é sempre bom lembrar é o fato de que, para a grandemaioria dos perseguidos políticos pela ditadura militar, a anistia de 1979 nadarepresentou em termos de indenização ou reparação econômica. Os valores dosretroativos hoje são altos porque o Estado demorou mais de 20 anos para pagara sua dívida com esses brasileiros e brasileiras, ou seja, mais tempo do que durouo próprio golpe militar. O que eles hoje recebem de indenização representa, namaioria dos casos, o salário que não ganharam esse tempo todo.O Estado ainda está em mora com muitos perseguidos políticos 63 , sendoque muitos deles morreram sem ver a sua anistia reconhecida, sem ter recebido asua indenização e, o que é pior, sem a sua reabilitação moral diante da sociedadebrasileira, que só um instituto como a anistia política pode dar. Em respeito à lutade todas essas pessoas e a toda sociedade brasileira, não se pode admitir expressõesofensivas, maldosas e injustas como “bolsa-ditadura”.É bem verdade que ocorreram algumas indenizações com valor muito alto.O caso mais conhecido é o do Carlos Heitor Cony (R$ 23.000,00 mensais). Mas6263 Até Julho de <strong>2011</strong> a Comissão recebeu 69.682 requerimentos de anistia, dos quais 58.885 jáforam julgados. Deste total, foram indeferidos cerca de 35% dos requerimentos.


casos como este são isolados. A média dos valores das prestações mensais (quandoé o caso de prestação mensal e não de prestação única) é de R$ 3.750,00. É precisotambém saber que, dos cerca requerimentos já julgados pela Comissão de Anistia,cerca de 40% foram indeferidos. O fato é que se critica muito conhecendo pouco,e, o que é pior, se engrossa o caldo da autoritária opinião pública brasileirano sentido de que a luta política contra a ditadura não teve valor, que bons eramos anos de chumbo, que os problemas da sociedade devem ser resolvidos comviolência e não com democracia, que a opinião e a expressão do pensamento nãopodem ser livres, que uma pessoa pode ser presa e espancada simplesmente por terum livro de Karl Marx em casa, e que os que resistiram à ditadura não passaramde terroristas e marginais.Estabelecer um procedimento público mediante o qual o Estado reconheçaque errou ao perseguir, torturar, matar e seviciar brasileiros e brasileiras que estavamsob sua custódia, e estabelecer uma indenização para aqueles que foram alvo darepressão estatal, muitos dos quais com vidas destruídas e dilaceradas, é o mínimoque um país que se pretenda uma democracia deve prover, já que não acusou ejulgou aqueles que torturaram e mataram sob o manto do Estado. Trata-se de umprincípio elementar do Direito: quem causou o dano deve repará-lo. E quando oEstado, via legislativo, assume a causação deste dano e indeniza o lesado (em umvalor infinitamente menor ao que efetivamente muitos perderam, e com relaçãoa prejuízos de ordem física e moral incalculáveis), sem a necessidade do processojudicial, é sinal de um pacto democrático, de resgate da memória, de reconciliaçãocom os erros do passado, e que está firmado na Constituição de 1988.Por outro lado, nenhum dos agentes públicos que cometeram as atrocidadesinenarráveis que a Comissão de Anistia lê, ouve e constata em seus requerimentose sessões de julgamento, perdeu o seu emprego por isto, continuando a receberseus salários e, depois, a sua aposentadoria. Certamente se fosse calculado o valordas pensões militares pagas a todos os militares que se envolveram diretamentena prática de crimes contra a humanidade, seja ordenando, executando ou seomitindo, o valor superaria de longe o que o Estado brasileiro vem pagando aosex-perseguidos políticos. Mas isto a imprensa não questiona.O evento da anistia é vital para uma frágil democracia como a brasileira, mastudo o que os jornais e a televisão (com raras e honrosas exceções) conseguemexternar é a sua preocupação em torno dos valores. É realmente algo a se lamentare que revela o quanto o Brasil está distante de uma sólida e verdadeira democra-3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho63


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS64cia, visto que não valoriza suas próprias conquistas e as pessoas que resistiram aoregime de força e intolerância.Por outro lado, é também importante saber que a Lei de Anistia de 2002,embora tenha sido, juntamente com a Lei que instituiu a Comissão de Mortos eDesaparecidos Políticos em 1995, o caminho pelo qual foi possível trazer à tonaa discussão sobre as dívidas em aberto da ditadura, também tem as suas imperfeiçõese incoerências, visto que representa o resultado de um embate político deforças no qual prevaleceu a pressão dos funcionários públicos, dos empregados dainiciativa privada com carteira assinada e os profissionais liberais que conseguiremcomprovar o exercício da sua atividade à época da perseguição. Para estes, comojá se disse, a indenização prevista (desde que se comprove que a perda do empregoou da atividade laboral se deu por motivação exclusivamente política) é umaprestação mensal, permanente e continuada no valor do salário que aquele profissionalestaria recebendo hoje caso não houvesse sido demitido (com as promoçõese progressões do cargo, inclusive), recebendo, ainda, o retroativo equivalente a 5anos antes da formulação do pedido de indenização, tendo como limite a datade 05 de outubro de 1988.Por outro lado, quem não conseguiu comprovar perda de vínculo laboralpor motivação política (porque não era empregado ou funcionário público – estudante,por exemplo), mas foi preso, torturado, monitorado, etc., tem o direitoa receber uma indenização em prestação única equivalente a 30 salários mínimospor ano ou fração de ano de perseguição política, até o limite de R$100.000,00.Constata-se com isto que a Lei de Anistia simplesmente reproduz o modelo desigualjá existente na sociedade brasileira, no qual um agricultor, um jornaleiro,um servente, etc ganha muito menos do que um alto funcionário público, umjornalista, um advogado, etc.Um estudante, por exemplo, pode ter oferecido intensa resistência e mobilizaçãopolítica contra a ditadura e receber no máximo R$100.000,00, enquantoum funcionário público ou um bancário, pode não ter tido qualquer mobilizaçãomais expressiva (sendo demitido, por exemplo, porque o seu irmão era filiado aoPCdoB) e receber um valor muitíssimo maior.Apesar disto, importa lembrar que tais critérios foram definidos em lei,discutida democraticamente e em acordo com as instituições públicas e a Constituição,não são fruto do que a Comissão e seus Conselheiros e Conselheirasacham o mais adequado. A Lei de Anistia de 2002 foi bem mais além do que ade 1979, mas ainda padece de insuficiências e incoerências. Foi aquela possível de


se alcançar no momento político em que surgiu. E se ela por um lado perpetuainjustiças e desigualdades estruturais do modelo econômico capitalista no qualestamos mergulhados, ela permite, como já se disse, que o Estado brasileiro reconheçapublicamente que errou ao perseguir, matar e torturar pessoas que deveriaproteger, e por cujos direitos deveria zelar. Permite que o Estado formalize publicamenteo pedido de desculpas pela perseguição promovida, com declaração queconsta no texto dos votos e que é feita presencialmente sempre que o anistiadoestá presente à sessão de julgamento.A história dos perseguidos políticos da ditadura civil-militar brasileira estásendo contada agora, nos processos de todos eles. A história oficial já se conheceem parte, embora com lacunas atrozes que se devem ao caráter ainda autoritáriodas forças armadas, que se negam a divulgar os seus arquivos e a informar alocalização dos restos mortais dos desaparecidos políticos. Muitos fatos só estãoagora vindo à tona. Se não houvesse a lei da anistia o debate estaria submerso, ese estaria ainda mais distante de uma autêntica democracia.3.6 A COMISSÃO DE ANISTIA E O DEBATE SOBRE ARESPONSABILIZAÇÃO PENAL DOS AGENTES DA DITADURAO processo de transição política brasileiro, ainda em curso, teve a peculiaridadede ser capitaneado, ainda que tardiamente, pelos processos de reparação,um dos pilares do conceito de justiça de transição 64 . As Comissões de reparaçãobrasileiras, em especial a Comissão de Anistia, acabaram por inserir em suas atividadesa presença de outros dois pilares do conceito (o quarto e último pilar éa Reforma das Instituições Democráticas, ainda pendente de um enfrentamentomais direto): a Justiça e o Direito à Memória e à Verdade 65 .A Justiça diz respeito à responsabilização de caráter penal aos agentes públi-3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho64 Justiça de Transição é um termo de origem recente, mas que pretende indicar aspectos quepassaram a ser cruciais a partir das grandes guerras mundiais deflagradas no Século XX: o Direitoà Verdade e à Memória, a Reparação, a Justiça e o Fortalecimento das Instituições Democráticas.O foco preferencial da Justiça de Transição recai sobre sociedades políticas que emergiram de umregime de força para um regime democrático.65 Também consultar: ABRÃO, Paulo; TORELLY, M. D.; ALVARENGA, R. V.; BELLATO,S. A. Justiça de Transição no Brasil: o papel da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. In:Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça, nº 1, p.12-21,jan/jun, 2009.65


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOScos que cometeram crimes de lesa-humanidade. Foi somente após quase trintaanos da edição da Lei de Anistia de 1979 que finalmente o tema do julgamentodos agentes repressores da ditadura brasileira por violações aos direitos humanos epor cometimento de crimes contra a humanidade conseguiu sair do círculo maisrestrito dos familiares e amigos das vítimas do regime de exceção e dos gruposmilitantes, alcançando de modo insistente as páginas dos principais jornais dopaís e a esfera pública institucional.Há um episódio que demarcou claramente esta mudança de cenário 66 . Nodia 31 de julho de 2008 a Comissão de Anistia organizou uma audiência públicano prédio sede do Ministério da Justiça em Brasília para discutir as possibilidadesjurídicas de julgamento dos torturadores que atuavam em prol do governoditatorial. A reação da imprensa foi imediata e incessante, e, apesar da tentativainicial de desqualificar o debate, pautou o tema com elevada frequência em jornais,revistas e outros meios de massa. Artigos a favor e contra a possibilidade dojulgamento eram publicados e não paravam de surgir nas páginas dos principaisjornais do país. Até então este parecia um assunto proibido.O então Presidente do Conselho Federal da OAB, Cezar Britto, compareceuà audiência e meses depois, sob a influência da discussão, mobilizou o Conselhoe propôs, com a assinatura de Fábio Konder Comparato, a Arguição de Descumprimentode Preceito Fundamental nº 153 no STF.Nesta ação a Ordem dos Advogados do Brasil pretendeu que o Supremo TribunalFederal firmasse uma interpretação restritiva ao Art. 1º, §1º da Lei 6683/79,portanto não se trata de propor a “revisão” ou “anulação” da Lei de Anistia como sealardeou indevidamente na mídia brasileira, mas sim a sua interpretação adequada.A interpretação prevalecente até hoje é a de que ao utilizar a expressão “crimespolíticos ou conexos com estes” a lei anistiou não apenas os perseguidos políticos,mas também os agentes públicos que tenham cometido crimes de lesa-humanidadena perpetração dessas perseguições. O intuito da OAB era o de provocar o STF a6666 Importante também mencionar a corajosa e importante sentença do juiz Gustavo SantiniTeodoro, de outubro de 2008, que, embora só tenha efeitos declarativos, foi a primeira manifestaçãojudicial que reconheceu explicitamente um ex-agente público brasileiro como torturador: oCoronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontado em dezenas de relatos de ex-perseguidos comotorturador e que foi comandante da temida Operação Bandeirante em São Paulo na década de70. É muito pouco para um Poder Judiciário que se pretende democrático e garantidor de direitosfundamentais. O Poder Judiciário, dos três poderes da República, é o mais avesso à discussãotransicional, especialmente quando o tema é a responsabilização dos agentes da ditadura, comose verá mais adiante.


dizer que a Anistia não deve ser estendida para estes casos. A ação foi interpostaem outubro de 2008 e julgada nos dias 28 e 29 de abril de 2010, com o resultadode sete votos a dois pelo indeferimento da ação.Em outro artigo já se teve a oportunidade de comentar longamente estadecisão 67 . Resumindo brevemente, foi uma péssima decisão, seja pelo resultado,seja, principalmente, pelos seus fundamentos. Destaca-se aqui alguns dos maiscríticos: incorreu-se fartamente na já comentada falácia do acordo; perverteu-seo lema da anistia (anistia ampla, geral e irrestrita) afirmando-se que o sentido daamplitude, defendido pelos movimentos sociais pela anistia, abarcava tambémos torturadores (quando na verdade se voltava aos que estavam presos por envolvimentona resistência armada, e que no fim não foram anistiados pela Lei de1979); comparou-se a anistia brasileira com a sul-africana, esquecendo-se que nestaera condição para a anistia o reconhecimento da autoria da violência praticada;decantou-se candidamente a cordialidade do povo brasileiro como explicação paraa nossa anistia “ampla”, classificada pelo Ministro Marco Aurélio Mello como “umato de amor”; buscou-se vincular, limitar e amordaçar a soberania do legisladorconstituinte ao que estatuía em termos de anistia a Emenda N° 26/1985, comose a Constituição de 1988 não fosse soberana neste assunto e estivesse materialmentelimitada; muito embora não se possa encontrar nenhum caso de conexãona doutrina penal que acolha a ideia de que os crimes praticados pelos agentes daditadura contra os perseguidos políticos eram conexos aos atos destes consideradoscomo criminosos pela Lei de Segurança Nacional, afirmou-se que se tratava deum novo tipo de conexão penal, criado ali mesmo pela Lei de Anistia de 1979;e, por fim, que durante a ditadura vivíamos uma República, ou seja, que se pode67 SILVA FILHO, O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a InacabadaTransição Democrática Brasileira. Registre-se ainda alguns episódios contextuais importantes: oMinistro Relator negou pedido de audiência pública formulado pela OAB em 2010; o processofoi posto subitamente em pauta, coincidentemente ou não, com um mês de antecedência em relaçãoà audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos, a propósito do Caso Araguaia,no qual o Brasil figurava pela primeira vez no banco dos réus por crimes cometidos pela ditadura;foi notória a influência e o desejo do então Presidente Lula pelo indeferimento da ação, o que foirepresentado simbolicamente por um jantar oferecido a todos os magistrados do STF no Palácio doPlanalto no primeiro dia de julgamento da ADPF 153; e, o Ministro Marco Aurélio Mello, mesesantes do julgamento da ADPF 153 concedeu entrevista em cadeia nacional na qual afirmou quea ditadura foi um “mal necessário”, e que “foi melhor não esperar para ver” o que iria acontecer. Aentrevista foi dada ao repórter Kennedy Alencar no programa “É notícia” da Rede TV! E foi ao arno dia 22 de fevereiro de 2010. O seu vídeo está disponível em: http://mais.uol.com.br/view/e0qbgxid79uv/ditadura-foi-um-mal-necessario-diz-Ministro-do-stf-04029C3768D8C14326?types=A.Acesso em 02 de outubro de <strong>2011</strong>.3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho67


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS68considerar Direito um conjunto esdrúxulo de Atos Institucionais e Leis draconianasinfensos a qualquer controle jurisdicional que pervertiam a existência e ainterpretação de qualquer outra norma jurídica no sistema.Os maiores absurdos da decisão do STF na ADPF 153, porém, podem sercolhidos no campo do Direito Internacional, especialmente na rotunda ignorânciae desprezo que os Ministros e Ministras da corte dedicaram ao Direito Internacionaldos Direitos Humanos 68 : ignorou-se completamente o conceito de “crimescontra a humanidade”, pedra angular da nova ordem internacional que emergiuapós a Segunda Guerra Mundial 69 ; ignorou-se completamente a jurisprudênciada Corte Interamericana de Direitos Humanos, que veda a auto-anistia; projetou--se uma noção fraca e estapafúrdia do costume internacional ao não considerá-locomo fonte do Direito Penal Internacional; desprezou-se a ratificação e a forteatuação da delegação brasileira no Acordo de Londres de 1945; desconheceu-seaté mesmo as Convenções de Genebra e a vedação que estas trazem de que, nocaso de conflitos internos, os Estados-Parte não podem matar pessoas indefesas,muito menos torturá-las; não se cogitou que a imprescritibilidade dos crimescontra a humanidade é da sua própria natureza, visto que os governos autoritáriose suas forças de sustentação nunca investigam seus próprios crimes e atravancamao máximo sua posterior investigação na transição política; despercebeu-se que68 Sobre este ponto, ver especialmente o artigo de Deisy Ventura: VENTURA, Deisy. A interpretaçãojudicial da Lei de Anistia brasileira e o Direito Internacional. In: PAYNE, Leigh A.;ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.). A anistia na era da responsabilização – oBrasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça; Oxford: OxfordUniversity, <strong>2011</strong>. p.308-343.69 O crime contra a humanidade foi inicialmente definido, no Acordo de Londres de 1945 emseu artigo 6º, como “o assassínio, extermínio, sujeição à escravatura, deportação ou qualquer outroato desumano cometido contra quaisquer populações civis, ou as perseguições por motivos políticos,raciais ou religiosos, quando esses atos ou perseguições forem cometidos na sequência de um crimecontra a paz ou de um crime de guerra, ou em ligação com estes crimes” (GARAPON, Antoine.Crimes que não se podem punir nem perdoar – para uma justiça internacional. Tradução de PedroHenriques. Lisboa: Piaget, 2004. p.24-25). A partir daí o conceito de crime contra a humanidadeobteve um franco desenvolvimento nos Estatutos e nas decisões dos Tribunais Penais Internacionais,passando a figurar como uma categoria cada vez mais autônoma em relação à guerra. É possível,sucintamente, identificar a constância de três elementos que o caracterizam: a) o caráter inumanoe hediondo do ato criminoso; b) a enunciação não taxativa da enumeração destes atos; e c) o fatode que sejam praticados em meio a uma política de perseguição geral e sistemática a uma parcelada população civil (INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE – ICTJ.Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de lesa-humanidade, a imprescritibilidade de algunsdelitos e a proibição de anistias. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1,p.352-394, jan.-jun. 2009. p.356-357).


a imprescritibilidade destes crimes já estava, na época da ditadura, reconhecida eassegurada em Resoluções da Assembleia da ONU e no costume internacional; eexilou-se a constatação óbvia de que uma junta militar ditadora nunca iria ratificarum tratado internacional de prevenção à tortura.Mais vergonhosa ainda ficou a decisão do STF quando em Novembro de2010 o Brasil foi condenado no Caso Gomes Lund e registrou-se com todas asletras, e por unanimidade, queAs disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação esanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis coma Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podemseguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos dopresente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis,e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito deoutros casos de graves violações de direitos humanos consagrados naConvenção Americana ocorridos no Brasil 70 .A Corte Interamericana de Direitos Humanos anotou que a Suprema Cortebrasileira em sua decisão na ADPF 153 não realizou o controle de convencionalidadeao qual estaria obrigada, já que é um dos poderes do Estado brasileiro,o mesmo Estado que se vinculou voluntariamente à Convenção Americana e àjurisdição da Corte. Logo, fazendo referência explícita à interpretação chanceladapelo STF à Lei de Anistia, assim declarou a sentença da Corte Interamericana emsua fundamentação:No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controlede convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que,pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou avalidade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigaçõesinternacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional,particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da ConvençãoAmericana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento.O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir asobrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde aum princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacionaldos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional,segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho70 Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos Caso nº 11.552 – Julia Gomes Lunde outros vs Brasil. 24 de novembro de 2010. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.doc Acesso em 02/10/<strong>2011</strong>. p.114.69


internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou estaCorte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre oDireito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões deordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigaçõesconvencionais dos Estados Parte vinculam todos seus poderes e órgãos,os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionaise seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno 71 .Assim, conclui a sentença:O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária,a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los,determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamenteas sanções e consequências que a lei preveja 72 .PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSNo momento em que se escreve este artigo, pairam nas mãos do MinistroLuis Fux, substituto do aposentado Ministro Eros Grau, os Embargos Declaratóriospropostos pelo Conselho Federal da OAB nos quais se pede que o Supremose manifeste explicitamente sobre a compatibilidade de sua decisão na ADPF 153com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia.Em outras palavras, a decisão do STF na ADPF 153 ainda não está finalizada eainda não transitou em julgado. Caso, o STF teime em persistir no erro da suadecisão e nem o executivo nem o legislativo tomem atitudes que superem este entendimento,o Brasil estará claramente violando suas obrigações internacionais, epassará, como disse Fabio Konder Comparato, a ser um “fora-da-lei” internacional.3.7 A COMISSÃO DE ANISTIA E O DIREITO À MEMÓRIAE À VERDADETratando agora das ações da Comissão de Anistia no plano do Direito àMemória e à Verdade é preciso mais uma vez lembrar que os seus arquivos registrama narrativa daqueles que sofreram a perseguição empreendida pelo Estado,afinal, é condição para a concessão da reparação econômica que sejam conhecidose comprovados os fatos relacionados à perseguição política. E este processo7071 Ibidem p. 66.72 Ibidem p. 115.


de conhecimento dá-se a partir da iniciativa peticionária dos anistiandos, não sedá por ofício. Porém, almejando a comprovação dos fatos alegados na inicial doRequerimento de Anistia, a Comissão pode, mediante diligências aos órgãos públicos,reforçar o conjunto probatório juntado pelo requerente aos autos.Cada processo que chega ao seu deferimento traz um conjunto riquíssimode documentos, dentre os quais se destacam as narrativas fornecidas pelos ex--perseguidos políticos. Tais narrativas são ainda reforçadas pelos testemunhospresenciais que muitos dos requerentes fazem na ocasião dos seus julgamentos,todos devidamente gravados. Ora, se é verdade que o campo historiográfico járenunciou acertadamente à ideia de uma história ou narrativa oficial, tambémé verdade que dentre todas as narrativas existentes sobre violências e tragédias, anarrativa das vítimas ganha precedência, não só por uma questão moral que nãopode ser contornada, mas também pelo fato de que a vítima dessas violênciastem a capacidade de reconstituir o fio da história, estabelecendo a ponte que oseu testemunho fornece entre aquilo que é inenarrável ou inominável e a própriarealidade 73 .Ao abrir o espaço público para essas narrativas a Comissão contribui fortementepara recolocar politicamente no cenário público aqueles que foramexpulsos da comunidade política, violados, agredidos e desumanizados. Muitomais relevante do que prover uma reparação econômica, portanto, é realizar umareparação moral 74 , calcada na esfera do reconhecimento 75 , seja do papel políticode resistência e do padecimento de violações atrozes, seja do caráter abominável73 Este paradoxo do testemunho foi mais explorado em: SILVA FILHO, José Carlos Moreirada. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso d a ditadura militar no Brasil. In: RUIZ,Castor Bartolomé (org.). Justiça e memória: por uma crítica ética da violência. São Leopoldo:UNISINOS, 2009. p.121-157.74 Destacando o aspecto da reparação moral relacionada ao trabalho da Comissão de Anistiabrasileira ver: ABRAO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão dareparação. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRAO, Paulo; MacDowell, Cecília; TORELLY,Marcelo D. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro – Estudos sobreBrasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Brasília:Ministério da Justiça, 2010. p.26-59.75 A anistia como reconhecimento é trabalhada com profundidade teórica em: BAGGIO, Roberta.Justiça de Transição como reconhecimento: limites e possibilidades do processo brasileiro.In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRAO, Paulo; MacDowell, Cecília; TORELLY, MarceloD. (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro – Estudos sobre Brasil,Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Brasília: Ministérioda Justiça, 2010. p.260-285.3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho71


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS72dos atos praticados pelos agentes públicos, e do caráter ilegítimo de um governoditatorial que adota como política generalizada a prática de crimes internacionais.Não bastasse tal fato, inerente à própria razão de ser da Comissão de Anistia,e as políticas de memória já comentadas acima, foi ela quem, principalmentedesde 2007, quando assume sua presidência Paulo Abrão Pires Junior, trouxepara o espaço público e também acadêmico 76 do país a discussão sobre o tema daJustiça de Transição. Foi no bojo desta temática que se colocou intensamente noespaço público e midiático brasileiro questões como a punição aos torturadores, areparação moral às vítimas e a Comissão da Verdade, encampada posteriormenteno III Plano Nacional de Direitos Humanos, organizado e construído sob a supervisãoda Secretaria Especial de Direitos Humanos.Na prática, tanto a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos quanto aComissão de Anistia têm cumprido boa parte das funções de uma Comissão daVerdade, daí porque será decisivo para o bom funcionamento da Comissão daVerdade que seja aproveitado o acúmulo de informações e a experiência de ambas,promovendo um trabalho conjunto e coeso.76 A composição da Comissão de Anistia, especialmente a partir de 2007, contou com pessoas,tanto no Conselho como na equipe administrativa, fortemente vinculadas ao universoacadêmico. Um dos objetivos declarados do então Ministro da Justiça Tarso Genro era o deexplorar as dimensões educativas da Comissão de Anistia. Para isto, nada mais coerente do quedesignar um professor universitário e pesquisador como presidente da Comissão. As atividadesda Comissão nesse campo contribuíram fortemente para trazer um tema até então ignoradopara o debate e a pesquisa na área do Direito e para dar um novo impulso a um tema não tãopriorizado no campo das Ciências Sociais. Dentre as iniciativas mais importantes no campo doincentivo à pesquisa acadêmica estão: a) a criação de uma Revista científica chamada 1“RevistaAnistia Política e Justiça de Transição”, com todos os números disponíveis digitalmente nosite da Comissão de Anistia; b) a criação de uma rede nacional e internacional de estudantes,professores e pesquisadores das mais diversas áreas que se encontram duas vezes por ano paraapresentarem trabalhos e discutirem os temas em comum, chamada de Grupo de Estudosem Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST (maiores informaçõesver http://idejust.wordpress.com/); c) a realização de Seminários e Simpósios por todo o Brasile em importantes parcerias internacionais (Universidad Pablo de Olavide na Espanha,Universidade de Coimbra, University of Oxford, entre outras); d) o lançamento dos editais“Marcas da Memória”, que apoiam financeiramente projetos culturais no Brasil de resgate damemória política; e) a construção do Memorial da Anistia Política na Universidade Federal deMinas Gerais, que guardará e organizará para a pesquisa os arquivos da Comissão de Anistia.


3.8 CONSIDERAÇÕES FINAISÉ nitidamente abissal a distância que separa a Anistia de 1979 e a Anistiainstaurada com a Constituição de 1988 e regulamentada com a Lei N° 10.559de 2002. É verdade que ambas surgiram da mobilização dos grupos sociais maisorganizados em torno da temática, contudo, enquanto a primeira marcou umapolítica de esquecimento, a segunda abriu espaço para uma verdadeira explosãode políticas de memória.A anistia no Brasil segue ainda refém da ambiguidade e da própria divisãosocial ainda presente quando o assunto é ditadura, mas em sua fase mais recenteo irregular e tortuoso caminho da anistia conseguiu pautar um amplo debate públicosobre a transição brasileira, estimulando as iniciativas sociais, institucionaise acadêmicas em torno da questão. Ainda é difícil saber se todo esse resgate será osuficiente para que realmente se possa avançar rumo à implementação mais amplade mecanismos transicionais e ao amadurecimento da democracia brasileira, noqual se possa mudar o sinal da cultura de violência e autoritarismo que ainda impregnafortemente os setores civis e as instituições públicas no Brasil, em especialas que lidam com a segurança, como as forças policiais e o poder judiciário. Tantoa transição política brasileira como a anistia seguem como tarefas inconclusas.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASABRAO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensãoda reparação. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRAO, Paulo; MacDowell,Cecília; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.). Repressão e Memória Política no ContextoIbero-Brasileiro – Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Perue Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Brasília: Ministério da Justiça,2010. p.26-59.ABRÃO, Paulo; TORELLY, M. D.; ALVARENGA, R. V.; BELLATO, S. A.Justiça de Transição no Brasil: o papel da Comissão de Anistia do Ministério daJustiça. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministérioda Justiça, nº 1, p.12-21, jan/jun, 2009.ADORNO, Theodor W. Dialectica negativa. Tradução de Alfredo Brotons Muñoz.Madrid: Akal, 2005.BAGGIO, Roberta. Justiça de Transição como reconhecimento: limites e possi-3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho73


ilidades do processo brasileiro. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRAO,Paulo; MacDowell, Cecília; TORELLY, Marcelo D. (Orgs.). Repressão e MemóriaPolítica no Contexto Ibero-Brasileiro – Estudos sobre Brasil, Guatemala,Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; Brasília:Ministério da Justiça, 2010. p.260-285.CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: O sequestro dos uruguaios – umareportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2008.GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar – parauma justiça internacional. Tradução de Pedro Henriques. Lisboa: Piaget, 2004.GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusõesperdidas à luta armada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões fundacionais da luta pela Anistia. 2009.456f. [Tese de Doutorado] – Curso de Pós-Graduação das Faculdades de Filosofiae Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte.2003.PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS74INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE – ICTJ.Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de lesa-humanidade, a imprescritibilidadede alguns delitos e a proibição de anistias. In: Revista Anistia Política eJustiça de Transição, Brasília, n.1, p.352-394, jan.-jun. 2009.MARCELO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. Rio de Janeiro: Agir,2009.MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a Anistia e suasconsequências: um estudo do caso brasileiro. São Paulo: Associação EditorialHumanitas; FAPESP, 2006.PERES, Lícia. Movimento feminino pela anistia no Rio Grande do Sul. In: PA-DRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa Albertinence;FERNANDES, Ananda Simões (Orgs.). A ditadura de segurança nacional noRio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Porto Alegre: CORAG,2009. v.4.POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Massacre na Lapa: como o Exército liquidouo Comitê Central do PCdoB – São Paulo, 1976. 3. ed. São Paulo: FundaçãoPerseu Abramo, 2006.RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana.Anistia ampla, geral e irrestrita: história de uma luta inconclusa. SantaCruz do Sul: EDUNISC, <strong>2011</strong>.


RODEGHERO, DIENSTMANN e TRINDADE, op. cit. e RODEGHERO,Carla Simone. A anistia entre a memória e o esquecimento. In: História Unisinos,São Leopoldo, vol.13, n.2, p.131-139, maio-ago 2009.SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes do Estado e Justiça de Transição.Sistema Penal & Violência, v. 2, p. 22-35, 2010.SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O Julgamento da ADPF 153 pelo SupremoTribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. Disponívelem: http://idejust.files.wordpress.com/2010/07/zk-adpf-153.pdf. Acessado em02/10/<strong>2011</strong>.SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção dahistória viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização doDireito à Memória e à Verdade. In: PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, VâniaM.; FERNANDES, Amanda Simões; LOPEZ, Vanessa Albertinence (Orgs.). OFim da Ditadura e o Processo de Redemocratização. Porto Alegre: CORAG,2009. p. 47-92. (A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul.1964--História e Memória-1985, v.4).SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O anjo da história e a memória das vítimas:o caso da ditadura militar no Brasil. In: RUIZ, Castor Bartolomé (org.).Justiça e memória: por uma crítica ética da violência. São Leopoldo: UNISINOS,2009. p.121-157.SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Tradução deMario Salviano Silva. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.VENTURA, Deisy. A interpretação judicial da Lei de Anistia brasileira e o DireitoInternacional. In: PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, MarceloD. (Orgs.). A anistia na era da responsabilização – o Brasil em perspectivainternacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça; Oxford: Oxford University,<strong>2011</strong>. p.308-343.3 - A AMBIGUIDADE DA ANISTIA NO BRASIL - José Carlos M. da Silva Filho75


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4 A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOSHUMANOS NO RIO GRANDE DO SUL:HERANÇAS FEMININAS 77Mariluci Cardoso de Vargas 78A história dos Direitos Humanos mostra que os direitos são afinal maisbem defendidos pelos sentimentos, convicções e ações de multidões deindivíduos, que exigem respostas, correspondentes ao seu senso íntimode afronta. (HUNT, Lynn. 2007, 215-6)A Anistia não foi uma concessão, ou um ato de boa vontade. Representoua conquista de uma luta que se transformou em causa nacional, ondeas mulheres estiveram na vanguarda. (PERES, Lícia. 2010, 114.)Resumo:O artigo apresenta parte da resistência à ditadura que se configurou em meados da década de1970 pela Anistia política e pelos Direitos Humanos. O Movimento Feminino pela Anistiado Rio Grande do Sul foi analisado em sua trajetória e entendido como um articulador dasociedade civil em tempos ditatoriais. Caracterizado como um movimento social a trajetóriado grupo de mulheres, que foi pioneiro na luta pública pela anistia, revela que a Lei da Anistiaaprovada em 1979 é resultado de um embate e logo não pode ser vista como uma simplesconcessão. O MFPA-RS passou por transformações em suas ações e na própria exigência daanistia: nos primeiros anos (1975, 1976, 1977) o movimento se apresentava pela “pacificaçãoda família brasileira”, momento em que as ações se resumiam em conseguir adesões entre osrepresentantes de uma política formal; a segunda fase do MFPA-RS (1978-1979) foi marcadapelos anos mais efervescentes de luta na qual a presença das mulheres do MFPA-RS dividiuespaço com outros protagonistas nos Congressos, Reuniões e Encontros Nacionais pela Anis-4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas77 Agradeço ao Historiador Dr. Solon Eduardo Annes Viola pelas sugestões e pelo apoio para adivulgação desta pesquisa. Este artigo é originário da minha dissertação de Mestrado defendida em2010, cujo título é Deslocamentos, vínculos afetivos e políticos, conquistas e transformaçõesdas mulheres opositoras à ditadura civil-militar: a trajetória do movimento feminino pelaanistia no Rio Grande do Sul (1975-1979). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programade Pós-Graduação em História, São Leopoldo, RS, 2010.78 Professora de História e Pesquisadora. Licenciada em História pela UFPel, Mestre em Históriana área de Estudos Históricos Latino-Americanos pela UNISINOS.77


tia, em que radicalizaram com os Comitês Brasileiros pela Anistia a demanda para “Anistiaampla, geral e irrestrita”.Palavras-Chave:Direitos humanos, anistia, movimento, justiça, sociedade civil.4.1 INTRODUÇÃOPARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSA semana do mês de setembro de <strong>2011</strong> que traria a primavera foi esperadapelos gaúchos rio-grandenses que, saturados com o intenso inverno, contavamcom a chegada da estação conhecida por colorir as paisagens com o florescimentoda natureza o que acaba por refletir certa alegria e disposição à sociedade. Na esperapelo encerramento de uma era cinzenta em troca por sol irradiante vivem osfamiliares de mortos e desaparecidos políticos e as vítimas diretas ou indiretas dosque travaram uma batalha nos anos ditatoriais do Brasil contra o autoritarismo eo terrorismo de Estado. A aprovação da criação da Comissão Nacional da Verdade79 pela Câmara Federal em 21 de setembro antecipou a chegada da primavera,trazendo esperanças para o alcance da verdade, da memória e da justiça, muitoembora o projeto elaborado pelo executivo não possua um caráter jurisdicional 80 .O embate entre a sociedade civil e o Estado não se caracteriza como novidade, eno que diz respeito ao esclarecimento das perseguições, torturas e mortes seguidasde desaparecimento esta relação se torna ainda mais tensa. Desde o golpe civilmilitar de 1º de abril de 1964 muitos grupos se organizaram para reivindicaro reconhecimento e a punição dos agentes do Estado que violaram os DireitosHumanos e que se beneficiaram com uma auto anistia sem ao menos terem sidojulgados, e desconsiderando a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade.Desse modo muitos torturadores desfrutaram sua vida em liberdade a partirda interpretação forjada da Lei de Anistia 6.683, sancionada em 28 de agosto de1979 pelo último ditador militar no poder João Batista Figueiredo.7879 O Projeto de Lei 7376/2010 tem como finalidade “examinar e esclarecer as graves violações dedireitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias [1946-1988], a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promovera reconciliação nacional.” (PL 7376/10, disponível na íntegra em , acesso em 23/09/<strong>2011</strong>)80 A Comissão de familiares de mortos e desaparecidos divulgou um documento no qualcriticam os limites do projeto da Comissão Nacional da Verdade (Disponível em ,acesso em 25/09/<strong>2011</strong>)


Para entendermos como se deu o embate entre o Estado e a sociedade civilno período ditatorial destaco o papel das mulheres nesse enfrentamento para quea sociedade brasileira, a princípio, se pacificasse com uma anistia política 81 , objetivandocom isso amenizar as heranças negativas daqueles duros anos políticos. Paraisso precisamos voltar ao ano de 1975 quando uma advogada paulista chamadaTherezinha Zerbini 82 iniciou com um grupo pequeno o Movimento Femininopela Anistia (MFPA), inspirado em na Campanha Feminina pela Pacificação daFamília Brasileira (ZERBINI, Anistia, Fundação Perseu Abramo – Mulheres emguarda). Este movimento se espalhou pelo Brasil, chegando ao Rio Grande do Sulmeses depois deste ter se estruturado em São Paulo, e fortalecendo a luta a nívelnacional que alcançou mais oito estados.Para entendermos as ações do MFPA-RS dividimos a sua trajetória em doisperíodos. Os primeiros anos (1975-1976-1977) dizem respeito a formação doMovimento Feminino Pela Anistia no RS e o que chamei de conquista da políticaformal. Nesses três anos o grupo se estruturou em Porto Alegre dando início a buscapor apoiadores, mobilizou ações políticas e estabeleceu relações com os espaçosformais da política. Os três primeiros anos de atividade das mulheres foram deintenso trabalho e marcados por acontecimentos inesperados, como a morte doPresidente golpeado João Goulart que se encontrava no exílio; e as cassações dosVereadores do MDB, Glênio Peres e Marcos Klassmann, apoiadores importantedo grupo pela anistia. Os anos de 1975 até o final de 1977 estão classificados81 Ainda que a anistia seja assunto silenciado na historiografia brasileira é fato que os estudos dessatemática tenham passado por uma ascensão, sobretudo nos últimos dez anos, os estudos realizadosapontam, na maioria das vezes, os Movimentos Femininos pela Anistia de forma tangencial, vistoque os trabalhos analisam o processo de luta pela Anistia no Brasil a partir de documentos elaboradospelos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA’s). Todavia esta historiografia tende a reconhecerque as mulheres do MFPA foram protagonistas e pioneiras, além de terem proporcionado um fértilterreno para os tantos movimentos que se articulariam posteriormente pelas liberdades democráticas.82 Foi durante os meses de outono do ano de 1975 na cidade de São Paulo que pouco menosde uma dúzia de mulheres começou a se reunir para compartilharem suas angústias em relação àsituação política vivenciada no país. A idealizadora Therezinha Godoy Zerbini, criada de formatradicional numa família de fazendeiros de café, era graduada em Direito e tinha quarenta e noveanos de idade quando decidiu disseminar a questão da anistia pelo Brasil. Casada com o generallegalista Euryale Zerbini, que fora cassado na primeira leva pós-1964, respeitava a disciplina militar,mas nunca admitiu injustiças. Após onze anos do golpe militar Therezinha, acompanhada pela filhaEugênia Cristina e outras conhecidas, “lança as bases do primeiro movimento nacional pela anistiapós-1964” (LEITE, 2009, p.113). Foi na mesa de refeições da casa dos Zerbini que Therezinha, afilha Eugênia, Lilá Galvão Figueiredo, Madre Cristina Sodré Dória, Margarida Neves Fernandes,Virgínia Lemos de Vasconcelos, Yara Peres Santestevan e Ana Lobo6 se uniram para formular oMovimento Feminino pela Anistia.4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas79


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOScomo a primeira fase do MFPA-RS que teve como bandeira a “pacificação dafamília brasileira”.A segunda fase do MFPA-RS (1978-1979) pode ser caracterizado como umafase mais popular, que ultrapassou os espaços ditos formais da política. Foi ummomento de efervescência da luta pela anistia na qual a base de apoio se ampliou,sobretudo após a fundação do Comitê Unitário pela Anistia em Porto Alegre e daseção do Comitê Brasileiro pela Anistia no RS. A demanda pela anistia passou aser uma demanda plural dos movimentos sociais que começaram a se rearticular,promovendo uma popularização da medida, e assim contribuiu para a formaçãode uma cultura política antiautoritária, impulsionando a retomada dos espaçosinformais da política pela sociedade civil. Episódios como os Encontros, Reuniõese Congressos Nacionais pela Anistia, as articulações dos movimentos pelaanistia e pelos Direitos Humanos, a campanha pelo retorno dos gaúchos presosnos países vizinhos Flávia Schilling e Flávio Tavares no Uruguai e Flávio Koutziina Argentina, o sequestro dos uruguaios em Porto Alegre, o alcance da Lei deAnistia e o retorno de brasileiros e brasileiras foram situações vivenciadas pelasintegrantes do MFPA-RS. Nesta segunda fase de atividades o MFPA-RS esteverodeado de movimentos pelas liberdades democráticas que lutaram pelo slogan“Anistia ampla geral e irrestrita.”4.2 AÇÕES DO MOVIMENTO FEMININO PELA ANISTIA ATÉ ASUA PROMULGAÇÃOO projeto distensionista do período Geisel deve ser interpretado como umaestratégia do governo para segurar a sua legitimidade após os anos mais duros doditador-militar Emílio Médici. Qualquer movimentação por parte dos civis eradifícil de ser articulada em função do Estado de Terror e Medo que se instauroucom tantas arbitrariedades repressivas. Durante os quatro anos em que o MFPAatuou no Brasil (de 1975 a 1979), mesmo com a possibilidade de abertura parauma liberalização calcado no discurso de afrouxamento do regime, trinta foramos casos de morte, dentre os quais treze os desaparecidos, dos quais um argentino,e mais os casos não esclarecidos de nove 83 pessoas (BRASIL, 2007). Esses acon-8083 Dados contabilizados a partir do relatório organizado em 2007 pela Comissão Especial sobreMortos e Desaparecidos Políticos.


tecimentos somados ao desconforto e a preocupação com tantas pessoas presas eexiladas provocou em algumas mulheres a necessidade de estabelecer outro tipo derelação com o Estado. Essa organização da sociedade civil, por sua vez inovou naforma de se colocar como oposição, de maneira defensiva, e modificou a relaçãocom o meio institucional em busca do exercício de cidadania plena.O Movimento Feminino pela Anistia será analisado como um MovimentoSocial de resistência ao regime ditatorial. No entanto, essa oposição não segue umalinearidade na sua trajetória, de forma que não está em um embate constante como Estado, pelo contrário, se utiliza de brechas sinalizadas por este para negociar,ou como entendido por Scherer-Warren (1993, p.49-50):A ideia é de que têm surgido “novos movimentos sociais” quealmejam atuar no sentido de estabelecer um novo equilíbrio deforças entre Estado (aqui entendido como o campo da políticainstitucional: do governo, dos partidos e dos aparelhos burocráticosde dominação) e sociedade civil (campo da organização social quese realiza a partir das classes sociais ou de todas as outras espéciesde agrupamentos sociais fora do Estado enquanto aparelho), bemcomo no interior da própria sociedade civil nas relações de forçaentre dominantes e dominados, entre subordinantes e subordinados.Os indícios dessa relação não dicotômica são verificados nos próprios Anaisda Assembleia <strong>Legislativa</strong> do Estado do Rio Grande do Sul e dos Anais da CâmaraMunicipal de Porto Alegre onde encontramos apoiadores que têm clara ligaçãocom as mulheres do MFPA e que transmitem as ações do movimento social paraos canais institucionais.As ações do Movimento Feminino pela Anistia foram realizadas no sentidode transformar a própria prática da resistência utilizada até os primeiros anos dogoverno Geisel. A resistência à ditadura civil-militar foi dividida por Viola emduas fases: a primeira teve sua estruturação baseada em “ações clandestinas (algumasarmadas); a segunda, mediante a defesa dos direitos humanos, em buscada redemocratização.” (2008, p.17). As mulheres que lançaram o movimento tinhamem comum a necessidade de transformar a anistia em uma demanda plurala ser incluída na agenda política do governo Geisel. A compreensão a respeitodas relações da sociedade civil com o Estado acompanha a dialética proposta porMoreira Alves (2005) em que coloca Estado e Oposição em constante tensão, oque surpreendentemente não significa um conflito dicotômico, mas uma relação4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas81


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS82não resolvida que está em permanente redefinição e rearticulação. A sociedadepolítico-militar (Dreifuss,1989 apud Viola, 2008) sobretudo ao longo da abertura,não pôde se dar ao luxo de governar de acordo com os projetos que eramdeterminados de forma linear, simultaneamente a oposição não pode traçar umaresistência que seguisse uma linha de ascensão sem recuos ou limitações.Sendo assim, traçar a forma política desse embate, que não se quer inteiramenteautônomo e dicotômico, significa, muitas vezes, entender as razões pelasquais os representantes daquele Estado se colocaram na obrigação de recuar poralgumas situações em que a sociedade civil os impediu de avançar ao seu modo,e que, por outro lado e ao mesmo tempo, tinham poder suficiente para regularos passos tomados pela oposição. Não obstante, a sociedade civil alcançou algunsaspectos essenciais para a formação dos novos movimentos sociais, tais como:práticas políticas que os forçaram a reinventar suas identidades e representaçõescoletivas; o trabalho de construção de uma memória social que pôde fazer frenteà memória militar 84 ; e por fim a possibilidade de investirem numa cultura políticaantiautoritária que deu um passo importante para a virada da ordem políticavigente ao longo do sistema tradicional brasileiro.A Sociedade Civil gramsciana está inserida na teoria do Estado ampliadoque é constituída pela sociedade civil e pela sociedade política. De modo simplificadopodemos dizer que a primeira é entendida especificamente como asorganizações sociais que se preocupam com a politização da sociedade e têm porresponsabilidade disseminar uma ideologia. São exemplos notáveis as escolas, asigrejas, os partidos políticos, os sindicatos, e até mesmo os meios de comunicação.A segunda se define pelo exercício de coerção, moldados nos aparelhos estatais,onde se configuram os governos.Para Alfred Stepan “a sociedade civil tornou-se a celebridade política” demuitas transições latino-americanas recentes do regime autoritário (STEPAN,84 A disputa entre a memória social e a memória militar sugerida por nós não quer dizer queas versões, as experiências narradas estejam tão polarizadas a ponto de se dividirem, no caso doperíodo analisado, entre a resistência que estaria associada a constituição de uma memória social,e os militares que estaria associados a memória oficial. Para Alberti (2005) uma das grandesriquezas proporcionadas pela História Oral é a sua capacidade de ampliar as possibilidadesde interpretação do passado e, desse modo, “reconhecer a existência de múltiplas histórias,memórias e identidades em uma sociedade” (p.158). Sendo assim devemos estar cientes que“há uma multiplicidade de memórias em disputa” (p.167) e, por fim, reconhecermos que háuma diversidade, uma multiplicidade de memórias e que, “a melhor alternativa para evitarmosa polaridade simplificadora entre ‘memória oficial’ e ‘memória dominada’ é realizarmos umaanálise mais rica dos testemunhos obtidos em nossa pesquisa. (p.168)”


1988:5 apud ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.38). O conceito foibem apropriado pelos investigadores nas décadas de 1970, sobretudo o de matrizgramsciana, já que o modelo revolucionário baseado no marxismo-leninismoenfrentava uma profunda crise. Assim, houve uma receptividade positiva sobre adiscussão da hegemonia política e da inclusão da cultura nesse horizonte 85 .Numa conjuntura de repressão e de coerção dos espaços institucionaisdas ditaduras, somente a revitalização dos movimentos sociais permitiu formarespaços alternativos de discussão política, num exercício de dinamização da sociedadecivil. Para Dagnino “o fortalecimento da sociedade civil foi consideradofundamental para a construção da democracia.” (2000, p.69). Muito embora arelação que permeia a sociedade civil dentro da lógica estatal pareça dicotômica,Nogueira relativiza o embate:A sociedade civil gramsciana não se sustenta fora do campo doEstado e muito menos em oposição dicotômica ao Estado. (...)ela [sociedade civil] se articula dialeticamente no Estado e com oEstado, seja este entendido como “expressão jurídica de uma comunidadepoliticamente organizada”, como “condensação políticadas lutas de classe” ou como aparato de governo e intervenção.(2003, p.222-223)Para Viola (2008, p.49), inspirado em Dreifuss (1989), o conceito gramscianode sociedade política não parece suficiente para enfatizar a militarizaçãoque se configurou no específico período da ditadura civil-militar. Para explicar omodelo militar-autoritário a frente do poder governamental, deve-se acrescentara noção de sociedade política o “adjetivo” militar. O historiador ainda argumentaque a ruptura primeiramente entre a sociedade político-militar e a sociedadecivil, e posteriormente, entre a sociedade político-militar e a sociedade política,proporcionou uma mudança qualitativa em relação aos princípios dos direitoshumanos, objeto do seu estudo.A partir desses entendimentos sobre a sociedade civil e colocando-a comoconstituinte dos “novos” movimentos sociais, julgamos necessário definir o queentendemos por esse conceito. Em primeiro, ressaltamos que dentre a diversidadeteórica que envolve a discussão dos movimentos sociais está presente o lugar queestes se colocam em relação à autonomia e a institucionalização. Assim como de-4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas85 Ver a discussão sobre o pensamento político brasileiro na década de 1970 em Chauí e Nogueira(2007).83


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSsejamos relativizar a dicotomia que sofrem as noções de sociedade civil e sociedadepolítica, e como estas se colocam em relação ao Estado, que se constitui pelaspróprias esferas, desejamos o mesmo em relação ao problema referido acima quepolemiza o comportamento dos movimentos sociais.Nesse sentido se torna válido explicitar a forma como o Movimento Femininopela Anistia no Rio Grande do Sul passou de uma organização de mulheres embusca da “pacificação da família brasileira” para um movimento que se assemelhacom diversas associações, entidades, organizações que com demandas tangenciaisespecíficas deram o caráter de movimento ao MFPA-RS. A necessidade daanistia política transbordou diante das demandas específicas dos estudantes, quereprimidos, queriam a revogação da Lei 477; dos familiares de exilados, presos ebanidos que lutavam pelo retorno da normalidade para os seus entes queridos; eassim de maneira sucessiva as demandas formadoras das organizações construíramo Movimento Feminino pela Anistia que somado a outras entidades do gêneroderam corpo ao processo de luta por essa medida.A hipótese deste trabalho gira em torno da possibilidade que o movimentofeminino pela anistia, no decorrer de sua luta, teve de contribuir não só para aaprovação da Lei de Anistia, razão de ser do movimento, mas também para a formaçãode uma cultura política antiautoritária, especialmente por meio da sua práticapública de enfrentamento enquanto oposição, conseguindo ampliar e manter vivaesta reivindicação tanto em nível estadual, como nacional. É importante destacarmosque a literatura que se constituiu acerca da temática da Lei de Anistia de1979 considera que o processo de luta referente à Lei 6.683 não está concluído 86 .A primeira ação a qual se dedicaram as mulheres do MFPA foi redigir umdocumento intitulado como Manifesto da Mulher Brasileira no qual além de sereconhecerem como cidadãs, expuseram seus anseios e realizaram o chamamentoàs mulheres brasileiras:Nós, mulheres brasileiras, assumimos nossas responsabilidades decidadãs no quadro político nacional.Através da história, provamos o espírito solidário da Mulher fortalecendoaspirações de amor e justiça.8486 Atualmente estão ancoradas no processo de luta da Lei de Anistia de 1979 pesquisadoras quefazem avançar a leitura historiográfica acerca da continuidade da luta por uma anistia que preze porjustiça e que haja o conhecimento e o julgamento dos militares-torturadores que trabalharam parao Estado contra os princípios dos Direitos Humanos. Ver sobre essa discussão em Greco (2003),Mezarobba (2003), Rodeghero (2009).


Eis porque, nós nos antepomos aos destinos da nação, que sócumprirá a sua finalidade de Paz, se for concedida a ANISTIAAMPLA E GERAL a todos aqueles que forem atingidos pelosatos de exceção.Conclamamos todas as Mulheres, no sentido de se unirem a estemovimento, procurando o apoio de todos quantos se identifiquemcom a ideia da necessidade da ANISTIA, tendo em vista um dosobjetivos nacionais: A UNIÃO DA NAÇÃO!As palavras deste Manifesto percorreram os demais estados brasileiros, servindocomo “espinha dorsal” do Movimento e se apresentava como o cartão devisita oficial da campanha já que foi elaborado por algumas familiares de pessoasenquadradas na Lei de Segurança Nacional. De 1975 a 1979 o MFPA se estruturouem núcleos espalhados por nove estados, além do pioneiro de São Paulo. Apóso segundo núcleo se formar mais oito estados aderiram ao Manifesto da MulherBrasileira pela Anistia, tendo como protagonistas familiares de presos, exilados,desaparecidos políticos.A ideia da Anistia Ampla e Geral que o grupo almejava apenas se modificouapós 1978 diante da forte adesão por parte dos novos movimentos sociais daconcepção de Anistia Ampla, Geral e Irrestrita elaborada pelo Comitê Brasileiropela Anistia. O objetivo maior do grupo, ou o projeto inicial deste movimentofoi calcado na demanda de Anistia do MFPA que visava alcançar a paz da naçãobrasileira, que só se alcançaria com a união da família nacional, a partir do retornodos familiares atingidos pelos atos de exceção.A paz era parte dos três princípios básicos levantados pela Organização dasNações Unidas para consolidar o Ano Internacional da Mulher, 1975, na conquistada Igualdade, Desenvolvimento e Paz. No ideário de Therezinha Zerbini o MFPAiria trabalhar com o princípio de paz, visando a Anistia como promovedora de“pacificação, a concórdia e a reconciliação da Nação consigo mesma” (ZERBINI,1979, p.05). Além da preocupação em promover a paz, o MFPA serviria de apoioà política de distensão do governo Geisel, e tinha como horizonte de expectativatransformar-se em um movimento pelos Direitos Humanos.Em Porto Alegre a tarde do dia 20 de junho de 1975 foi de encontro paraalgumas mulheres. A promotora da reunião: Lícia Peres; o local cedido: a sede daAssociação Rio-grandense de Imprensa (ARI) localizada no centro da capital; omotivo: “que se organizasse, no Rio Grande do Sul, um movimento, visando aanistia ampla, numa extensão do movimento criado em São Paulo pela advogada4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas85


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSTherezinha Zerbini, que pretendera assim dar maior relevo ao Ano Internacional daMulher” (MFPA-RS, 1975, Ata nº01, grifo nosso). A socióloga Lícia apresentou àssuas convidadas o Manifesto da Mulher Brasileira, explicando que este documentoserviria como cartão de visitas para coletar o maior número de assinaturas possívela fim de ser encaminhado em agosto próximo ao ditador-militar. Desde o inícioda reunião, a escritora Mila Cauduro foi convidada por Lícia para secretariar e,na condição também de participante registrava os acontecimentos. As demais senhorasrealizaram uma votação para a diretoria que deveria assumir o comando domovimento que deveria cumprir o mandato por dois anos e que este se dividiriade maneira hierarquizada: Presidente 87 : Lícia Peres; Vice-Presidente: Mila Cauduro;Secretária: Lygia de Azeredo Costa; Tesoureira: Francisca Brizola. Finalizadaa votação a presidente de antemão convidou a senhora Angelina Guaragna paraassumir como Assistente de Direção, ampliando o número de integrantes oficiais.Neste encontro foram elaboradas as primeiras ações que deveriam ser executadaspelas mulheres, relacionando-as com a própria caracterização do Movimento:“feminino, cristão, apartidário”. Alguns protagonistas políticos importantesforam procurados pelo MFPA na intenção de torná-los apoiadores da causa daanistia. No dia seguinte da primeira reunião que contou com as assinaturas de dezmulheres 88 as mesmas se encaminharam aos possíveis apoiadores do Manifesto.O Manifesto da Mulher Brasileira chegou às mãos de Lícia talvez em razãoda sua participação no IEPES, pois em 1975 Therezinha designou Dilma Rousseff,atual Presidente da República, para procurar alguém no Rio Grande do Sulque pudesse organizar o núcleo do Movimento Feminino pela Anistia no Estadogaúcho. Em meados da década de 1970, a mineira Dilma procurava reconstruirsua vida pessoal, profissional e política em Porto Alegre, cidade de origem doentão marido, o advogado trabalhista Carlos Araújo. Dos anos 1960 até o iníciode 1970, a jovem acumulara em sua bagagem grande ganho intelectual e práticoem termos políticos até a prisão política duramente vivenciada durante os anosMédici 89 . Não fosse o encontro na prisão 90 , que acabou por aproximá-la de The-8687 Lícia Peres ficou na presidência do MFPA-RS por mais de um ano, depois passou o cargo paraa vice-presidente Mila Cauduro que esteve à frente do Movimento até o final de 1979.88 As assinaturas da Ata nº1 são: Mila Cauduro, Lícia Peres, Francisca Brizola Rotta, Lygia deAzeredo Costa, Cláudia M. R. Berhensdorf, Laís T. Sica da Rocha, Rachel Vieira Fonseca, Jucly,Ruth Vargas, Cila do Valle. (MFPA-RS, 1975, Ata nº1)89 A jovem militante ficou presa de janeiro de 1970 ao final de 1973.90 Dilma e Therezinha se conheceram na Operação Bandeirantes (OBAN) enquanto estiveram


ezinha Zerbini, seria paradoxal a possibilidade de praticarem ações políticas emgrupo, em se tratando de duas mulheres com ideais políticos tão distintos. No RS oMFPA se estruturou durante o governo estadual de Sinval Guazzelli, que eleito em1974 indiretamente contou com o boicote do MDB (HEINZ et al, 2005, p.62).A pacificação nacional proposta pelo grupo de mulheres pressupunha reconciliação,perdão e esquecimento para o apaziguamento e a união da famíliabrasileira. O conceito de Anistia do MFPA-RS estava em consonância com o movimentonacional que qualificava-a como perdão para todos os que tiveram seusdireitos cassados por motivação ideológica. Na leitura das concepções de Anistiadesenvolvida pelos movimentos sociais e por protagonistas dessa luta Rodegheroressalta a importância em compreendermos o momento em que estas definiçõesconservadoras foram elaboradas e disseminadas.Não há como cobrar, por exemplo, que aqueles grupos de mulheresque alcançaram a bandeira da anistia em 1975 tivessem em seudiscurso uma radicalidade parecida com a que marcou o discursodos CBAs, em 1978 e 1979. De 1975 ao final de 1978, o AI-5ainda estava em vigor. (2009, p.138)4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de VargasNa medida em que o movimento foi ganhando apoio institucional e social,a partir das entidades que se somaram favoráveis à Anistia, às concepções foram seassociando, cada vez mais, a conquista das liberdades democráticas, radicalizandoo projeto de anistia e exigindo o fim das arbitrariedades. O Diretório Central dosEstudantes da Universidade Federal do RS (DCE-UFRGS) foi um dos gruposque mais tarde contribuiu para aprofundar a radicalidade nas ações políticas quemodificaram a concepção de anistia. Em vista das grandes perdas de estudantes eprofessores enquadrados na Lei de Segurança Nacional, o DCE da UFRGS manifestouo seu “irrestrito apoio ao movimento das mulheres brasileiras por anistiaampla e total a todos os atingidos pelas leis de exceção” (HOJE, 26/06/1975).Este apoio foi bastante significativo para o grupo de mulheres que eram lideradas,sobretudo por senhoras, pois a mobilização estudantil embalada por umajuventude que estava limitada nos seus espaços de atuação conseguiu dar maiormovimentação às manifestações pela anistia, as quais cresceriam a partir de 1978.As listas de assinaturas em prol da anistia alcançaram o interior e não apenasos espaços formais da política como a Assembleia <strong>Legislativa</strong> e a Câmara Munipresas;Dilma passou pelo DOPS, OBAN e Presídio Tiradentes.87


cipal, mas foi disseminada por grupos de mulheres que percorreram os espaçosinformais. O somatório de mais de seis mil adesões foi fruto de um trabalho coletivode cerca de trinta mulheres 91 que em um mês coletaram apoios em “bairros evilas, fábricas e faculdades em busca de assinaturas de mulheres de todas as classessociais” (ZERO HORA, 24/06/1975). O número de assinaturas não era definitivovisto que a marca do RS ultrapassou a metade da coleta nacional que foi de dozea dezesseis mil. A marca do trabalho gaúcho foi exaltado pela presidente Therezinhano jornal Anistia da época, mostrado pela Exposição Virtual da FundaçãoPerseu Abramo – Anistia 30 anos – por verdade e justiça, como é reproduzido:PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSO núcleo do Rio Grande do Sul foi um núcleo que vicejou comuma força, que permitiu que só eles contribuíssem com oito milassinaturas, para o nosso manifesto. Da primeira parte do trabalhoentre abril e junho de 1975 nós conseguimos doze mil assinaturase oito mil vieram do RS. (ZERBINI, Anistia, Fundação PerseuAbramo – Mulheres em guarda. Disponível em: )É importante perceber que mesmo que o MFPA-RS tenha ampliado osespaços da política, e tenha cumprido ações fora das instituições formais, haviauma tensão entre agir autonomamente ou dentro dos espaços reconhecidos. Aíse confundem velhas práticas políticas dentro de uma conjuntura de formação denovos sujeitos sociais, os quais clamavam por liberdades e tentavam se utilizar deinstrumentos de mobilização que se diferenciem dos já conhecidos. As característicasapontadas por Sader (1988) para definir os novos sujeitos dos movimentossociais da década de 1970 estariam na capacidade de reelaborar práticas políticasnum cotidiano que passasse a explorar outros espaços, que não os já existentes emque estivessem passíveis de serem cooptados.A exploração de outros espaços foi a marca da segunda fase do MFPA (1978-1979) que é caracterizada por um fortalecimento das bases, pois um maior númerode pessoas passou a retomar o engajamento político de resistência, o que possibilitoua ampliação de luta pública. Nesse sentido, considera-se também a criaçãodo Comitê Brasileiro pela Anistia, que contou com homens e mulheres em seus8891 Não há como saber o número certo de mulheres engajadas no MFPA-RS. A lista defiliações apontam 45 nomes, mas a ex-presidente Lícia contesta este número dizendo que notrabalho efetivo as mulheres engajadas ultrapassava 100 pessoas, as mulheres do interior doEstado também deram apoio ao Manifesto.


quadros e se dedicaram ao trabalho de popularização da demanda de anistia, assimcomo radicalizaram as concepções de Anistia que se desejava. Segundo Arantes,em relação às concepções de anistia, “inicialmente pensada como perdão e esquecimento(...) nos anos de 1976 e 1977, novos acontecimentos contribuírampara a organização de uma proposta política mais ampla de repúdio à ditadura.”(ARANTES, 2009, p. 84-5)Os estudos que deram ênfase a segunda etapa da ditadura consideram, emmaioria, que a virada para a redemocratização se deu com a luta pela anistia,sobretudo a partir da formação dos CBAs e dos Encontros e Congressos pelaAnistia, que passaram a reunir grande número de entidades em prol desta medida.De acordo com Araújo a campanha pela anistia foi “a principal luta da frentedemocrática que enfrentou o regime durante a década de 1970” (ARAÚJO,2007, p.347), a autora remontou o painel de lutas pelas liberdades democráticasdestacando o quão ativo foram alguns atores plurais no desenlace do processo deabertura, em destaque: MDB, Movimento Estudantil, Igreja Católica (principalmenteatravés das CEBs), Imprensa Alternativa, Associação de Moradores, Associaçãode Profissionais Liberais e, por fim, os Movimentos de Minorias Políticas.A conquista da Anistia foi a concretização da união e mobilização de uma partede todos estes segmentos sociais, de forma a construir um saldo positivo para oretorno democrático.Para Moreira Alves os movimentos populares fazem parte de uma resistênciaque lança “oficialmente o período de ‘abertura’” (MOREIRA ALVES, 2005,p.273), visto que provocaram uma relação de informalidade entre a oposição e oEstado. Até então as ações da Igreja pelos Direitos Humanos, a utilização dos espaçoslegítimos para pressionar o governo militar pelo MDB, bem como as açõesda OAB na luta para o funcionamento do sistema judiciário, fizeram com que oEstado de Segurança Nacional desencadeasse seu projeto com certo conforto. Apartir da mobilização dos movimentos populares, e dos movimentos pela anistiase aliarem a estes, o desfecho da ditadura pareceu ter sofrido certo desequilíbrio,fato que os obrigou a negociar com os setores de elite da oposição 92 .4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas92 Para Moreira Alves “os setores de elite da oposição (a CNBB, a OAB, a ABI e os gruposorganizados no MDB) desempenharam papel decisivo em ambos os governos, de Geisel e deFigueiredo. Eles ampliaram o espaço político, enfrentando o Estado a partir de suas posições deautoridade na sociedade civil e questionando a legitimidade que o Estado de Segurança Nacionaltentava assumir. (...) As atividades de política formal ampliaram a margem de manobra para todosos grupos de oposição. A revogação do Ato Institucional nº5 abriu novas possibilidades legais para89


O epicentro da oposição à ditadura no Brasil se fortaleceu com os novosmovimentos sociais, os quais adotaram o slogan “anistia ampla, geral e irrestrita”popularizando assim a demanda que inicialmente parecia atingir apenas osfamiliares e amigos dos que sofreram com os atos repressivos. Neste momentoa anistia passou a ser uma exigência de todos e todas as brasileiras, e como DelPorto já havia nos mostrado a anistia foi também uma conquista societal (DELPORTO, 2002, p.14, grifo da autora), controlada por militares, mas basicamenteconquistada pela sociedade civil, pois:PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSSe a lei da anistia não foi uma medida ideal e, mesmo assim, foirepresentada como um marco importante para a luta travada pelasociedade civil contra o regime militar, acreditamos ser corretoafirmar também que um dos significados de o discursos sobre aanistia ir além da luta contra o arbítrio institucional, estava tambémno fato de ser interpretado enquanto parte dos processos deconstituição da esfera da sociedade civil e do espaço público dopaís. Nesta perspectiva, se a leitura dos discursos dos “Movimentosde Anistia” nos direciona apenas a uma das interpretaçõespossíveis do processo, apresenta, ao mesmo tempo, subsídios quedemonstram que o envolvimento com a luta pela anistia não giravaapenas em torno da obtenção desta medida mas também seconstruía com base na elaboração de novos elementos e lutas pordireitos, articulando-se a outras lutas de movimentos específicosque ampliavam o debate sobre o processo de “abertura” políticoinstitucional. (DEL PORTO, 2002, p.14)De acordo com a análise da trajetória do MFPA-RS parece ser plausívelapontarmos que este movimento fez parte do processo de formação de umacultura política democrática no estado do Rio Grande do Sul e no Brasil. Asmodificações pelas quais passaram fez com este transformasse igualmente os seuslimites, a ponto de transitar junto aos movimentos que pregavam por uma maiorradicalidade em suas ações, práticas impensadas pelas integrantes do MFPA-RSquando formaram o grupo em 1975, momento no qual o horizonte repressor semostrava muito próximo.Del Porto (2002) ainda apontou alguns marcos político-institucionais quelevaram a oposição a se mobilizar e exigirem seus direitos transformando a liberalizaçãoem processo de redemocratização: 1º) o significado das vitórias do MDB90a organização das bases, e o movimento popular viria a desempenhar papel decisivo no processopolítico.” (2005, p.273-74).


nas eleições legislativas de 1974; 2) 0 “marco da virada”: se deu com o assassinatode Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI, São Paulo, em 24 deoutubro de 1975; essa morte demonstrou as contradições internas do discursoe projeto de “abertura” da ditadura militar; 3) se o regime tinha ganho a guerradas armas, ele não tinha ainda vencido a “guerra psicológica” que seria conduzidapelos militantes dos direitos humanos. Estes pontos levantados por Del Porto sãoessenciais para entendermos a construção do movimento da anistia como um movimentode massa, o que acabou ocorrendo especialmente em 1979. No entanto,a supervalorização da luta a partir de 1978, ou da formação dos CBA’s, transferenovamente as mulheres para o lugar do esquecimento, “substituindo” o trabalhodo MFPA pelo movimento que se amplia, de antemão, pela presença masculina.Com a revogação do AI-5 a partir de janeiro de 1979 a atmosfera já pareciaser mais leve, mas como “em ditadura nada se parece com flores” foram registradosquatro assassinatos por repressão. Não casualmente os homens 93 vitimados estavamenvolvidos com manifestações pela anistia, movimentos populares e greves.O ano das esperanças no aprofundamento da abertura pelo futuro ditador-militarJoão Batista Figueiredo, o ano da Lei de Anistia de Agosto, foi um ano de muitascampanhas, reuniões, congressos, discussões, negociações, assembleias, resoluções,encaminhamentos, encontros... Encontros não apenas entre militantes pelos DireitosHumanos, entre partidários ao retorno democrático, também daqueles quepuderam permanecer no Brasil e lutar de maneira branda e legal pela possibilidadede alcançar o Estado de Direito. O saldo do ano de 1979 após a Lei de Anistiae da reforma política que permitiu o restabelecimento do pluripartidarismo foipositivo e importante para as construções que viriam a seguir, até o ano de 1989,quando seria eleito diretamente o primeiro presidente civil após 25 anos de imposiçãogovernamental. Nas palavras de Forget “a abertura instiga a capacidadede mobilização de diferentes setores (...) mas nenhuma reivindicação recebe apoio4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas93 De acordo com Brasil (2007) Adauto Freire da Cruz morreu em maio de 1979 após ter sidoabordado e espancado por um grupo de policiais militares em uma viagem que seguia para o Rio deJaneiro, em que levava material – panfletos – em defesa da Anistia; Orocílio Martins Gonçalves foimorto por policiais militares em Belo Horizonte em julho de 1979 durante uma passeata grevistade operários da construção civil; Benedito Gonçalves participava de um piquete grevista da CompanhiaSiderúrgica Paim em Divinópolis (MG) quando sofreu traumatismo craniano provocadapor uma agressão de um policial militar em agosto. Cerca de mil trabalhadores acompanharam seuenterro; Santo Dias também operário metalúrgico morreu em outubro, na zona sul de São Paulo,quando liderava um piquete de greve.91


popular comparável à campanha em prol da anistia, cuja ampla adesão das massasera mesmo inesperada.” (FORGET, 1994, p.133)Após a criação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos em março de1979 em Porto Alegre o MFPA-RS também se mostrou apoiador da propostade criação de uma Comissão Permanente de Direitos Humanos na Assembleia<strong>Legislativa</strong> do RS, que recentemente foi lembrado por Enid Backes:PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS92Tu vês pouca gente lembra, mas a Assembleia <strong>Legislativa</strong> aqui doRS foi a primeira Assembleia do país que criou a Comissão deDireitos Humanos (...) então teve coisas assim que em termos dememória, às vezes a gente não se dá conta que a Assembleia doRS foi a primeira Assembleia do Estado que eu lembre que criouuma Comissão de Direitos Humanos. E aqui (...) um movimentomuito forte em termos da questão da anistia que não dá paraignorar é o Movimento de Justiça e de Direitos Humanos, com oJair Krischke, que foi fortíssimo, importantíssimo então teve umpapel que de maneira nenhuma tu podes ignorar, são figuras quese entrelaçam, mas que tem sua característica, sua identidade, e oMovimento de Justiça e de Direitos Humanos foi muito atuante.(BACKES, 2009)A memória de Enid confirma de fato o momento da criação da Comissãode Cidadania e Direitos Humanos pela Assembleia <strong>Legislativa</strong> em junho de 1980,menos de um ano após a sanção da Lei de Anistia. Esta Comissão certamenteresultou dos anos de arbítrio e limitação da cidadania e por outro lado de tantasdenúncias de violações dos Direitos Humanos e do desejo de investigação porparlamentares que apoiaram a causa da anistia e o grupo do MFPA-RS. Por diversosmomentos a luta das mulheres foi citada por parlamentares engajados emsetores mais a esquerda do Movimento Democrático Brasileiro, e alguns deles atépermitiram que o grupo utilizasse, em determinadas ocasiões, o próprio espaçofísico da Assembleia para palestras e reuniões.Apesar das conquistas do MFPA-RS, da aprovação da anistia (mesmo queparcial), da retomada dos mandatos dos vereadores – Glênio Peres e Marcos Klassmann– que tanto contribuíram na campanha pela anistia, do retorno de LeonelBrizola que ficou anos exilado com a família (e que tinha vínculos pessoais comquatro das seis mulheres do Comitê Central do MFPA-RS), a luta por uma anistiaampla, geral e irrestrita continuou pelo Brasil afora, chegando a realizar encontros


nacionais em 1979 94 . Para Del Porto (2009) a lei de anistia foi encarada comouma vitória para os movimentos, uma vez que o seu significado foi:Um avanço para a superação do autoritarismo institucional, permitindoo retorno dos cassados, exilados, foragidos e clandestinosque puderam reassumir suas verdadeiras identidades e recompor asforças políticas oposicionistas ao reocuparem seu lugar ao lado daslutas do povo brasileiro. Por isso, a anistia foi recebida pelos ativistase movimentos como uma vitória. (DEL PORTO, 2009, p.66)Importante salientar também que a regulamentação da Lei de Anistia, peloDecreto nº 84.143 de 31 de outubro não significou a reparação histórica dos quesofreram com os longos anos de exceção. Para Greco (2003), os efeitos e o saldopolítico da luta pela anistia ainda são negativos, uma vez que o processo continuaem andamento e que a Lei parcial trouxe no seu cerne a representação de anistiacomo amnésia, reciprocidade, e desta forma não resolveu a questão dos mortos edesaparecidos e não disseminou a tortura enquanto instituição.4.3 HERANÇAS FEMININAS E A CONTINUIDADE DA LUTAAs mesmas dirigentes que formaram o MFPA-RS seguiram o rumo da aberturapartidária permitindo que estas se dispersassem para lutas de ordem específicasdentro dos seus respectivos partidos, ou mesmo fora deles. A luta pela anistiacontinuou especialmente para os movimentos pelos Direitos Humanos e pelosfamiliares dos mortos e desaparecidos políticos, que não aceitaram a Lei 6.683 comouma conquista, mas como um passo para outras reparações e seguiram lutandopara que o Estado reconhecesse seus excessos e assumisse suas responsabilidades.Dois problemas pontuais devem ser considerados: a exigência da aberturados arquivos repressivos, e o apontamento de agentes do estado que se utilizaramdo regime ditatorial para cometer excessos. Sabe-se por relatos dos sobreviventes,que a violência instituída pelos militares ultrapassou qualquer possibilidade desemelhança com crimes por motivação política, e aí não se deve interpretá-los4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas94 Em novembro de 1979 ocorreu em Salvador o II Congresso Nacional de Anistia, cuja palavrade ordem era: “A luta continua”; em dezembro de 1979, no Rio de Janeiro, a Reunião da ComissãoExecutiva Nacional Provisória; em dezembro de 1979 também ocorreu o II Encontro dos Núcleosdo Movimento Feminino pela Anistia.93


como crimes conexos aos políticos, parte da Lei que lhes deu a não esclarecidareciprocidade. Os crimes, estes sim muito claros, cometidos por agentes do estadocontra militantes políticos ou mesmo suspeito de militância, caracterizam-se porcrimes contra a humanidade, portanto sem possibilidade de serem anistiáveis, umavez que são imprescritíveis. Os assassinatos e execuções, os espancamentos e astorturas de toda ordem, os inúmeros casos de estupro e as sevícias acompanhadaspelo prazer de pessoas sádicas que não foram reconhecidas como ameaças à sociedadee devidamente punidas, são crimes comuns e não passíveis de interpretaçãodiferenciada porque foram cometidos por militares. Os responsáveis por estescrimes, como os quaisquer cometidos por civis em uma sociedade regida por leis,não devem ser desconhecidos ou isentados.De acordo com os organizadores do livro relatório: Direito a Memória e aVerdade (2007), a luta da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidospolíticos iniciou ainda na década de 1970:PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOSA legítima pressão exercida por militantes dos Direitos Humanos,ex-presos políticos, exilados, cassados e familiares de mortose desaparecidos a favor da Anistia e do direito à verdade adquiriuvigor em meados da década de 1970, até resultar na conquistada Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como Leida Anistia. Tiveram papel marcante nessa jornada o MovimentoFeminino pela Anistia e o Comitê Brasileiro pela Anistia, comvárias unidades estaduais, impulsionados por lideranças comoTherezinha Zerbini, Mila Cauduro, Luiz Eduardo Greenhalgh,Eny Raymundo Moreira, Madre Cristina Sodré Dória, IramayaBenjamin, Helena Greco, Lícia Peres, Teotônio Vilela, Paulo Fontelese muitos outros. (BRASIL, 2007, p.30)Embora o MFPA-RS tenha se dispersado após a anistia limitada, a memóriado movimento não se contentou em ficar no esquecimento e na amnésia, comoa Lei queria que tivesse acontecido com a história da resistência política daquelesanos. Se o movimento pela anistia fosse entendido por elas como uma buscapelo esquecimento, pelo bloqueio dos arbítrios militares, das torturas, das prisões,desaparecimentos, mortes injustas então estas também não trabalhariam contra adesmemória 95 , como colocado por Lícia Peres. Pelo contrário a própria fundadora9495 Ver o artigo escrito por Lícia Peres com este título em PERES, Lícia. Movimento Femininopela Anistia no Rio Grande do Sul. In: PADRÓS, Enrique (et al). Ditadura de Segu-


do MFPA-RS fez parte da Comissão de Luta Contra a Ditadura que tinha comolema a frase: “Para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça”.Conscientes de que as operações de conservação da memória nãosão espontâneas e nem naturais, os grupos que estiveram comooposição durante a ditadura permanecem com a tarefa de criareventos, rememorações, arquivos para que a memória da resistênciaseja conhecida e não caia no esquecimento. O dia 28 de agostodesde 1979, marca no calendário histórico no Brasil a sanção daLei de Anistia, que é emblemático para ensejar discussões sobre atransição política brasileira. Ao completar 21 anos da Lei 6.683/79no ano de 2000, no Memorial do RS foi realizada uma solenidadede comemoração pelo primeiro ano da criação da Comissão doAcervo de Luta Contra a Ditadura – formado em 2000, na gestãodo governador estadual Olívio Dutra. Na oportunidade criou--se um evento em que foram doados documentos que pudessemsubsidiar o conhecimento público da história da ditadura no RS.Na ocasião Mila Cauduro entregou documentos pessoais juntocom o advogado Omar Ferri à coordenadora do órgão, na época,a militante dos Direitos Humanos, Suzana Lisboa, que falousobre suas intenções em “construir um patrimônio da luta pelademocracia e de denúncia de violações da liberdade democrática edos direitos humanos cometidas durante a ditadura.” (CORREIODO POVO, 29/08/2000, p.06).Nas palavras da ex-presidente do MFPA-RS “o Memorial passa a ser o santuárioda história do RS.” (Idem). A criação de momentos, espaços, concretos ousimbólicos representam a fixação dos “lugares de memória”, e ainda contam comuma re(A)presentação do passado, e neste caso, de um passado que não desejamosser experimentado pelas novas gerações, no entanto este não deve ser omitido ouesquecido nem pelo presente e nem pelo futuro.Os vinte e um anos de ditadura civil-militar no Brasil deixaram muitas herançaspara a sociedade do final do século XX, e boa parte, senão por toda, doséculo XXI. Do lado do Estado estas heranças são incontáveis e catastróficas: portantas perdas consequentes da destruição de um projeto de reformas de base, quese reflete na desigualdade social, no sucateamento da educação, nas ilusões perdidasda reforma agrária; pelas perdas notáveis de pessoas que foram assassinadasou desaparecidas por agentes do Estado e dos que ficaram com sequelas, físicas4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargasrança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. 2ª ed. v. 4. Porto Alegre:Corag, 2010. P.101-118.95


PARTE I - FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS96ou psicológicas, como marcas da tortura; pelo desfecho da ditadura que se deumuito ao gosto dos militares e que não concluiu o processo de reparação históricapelas arbitrariedades, quando aprovou uma auto anistia e interpretou-a na suaface mais injusta: a que se relaciona com o esquecimento e amnésia da históriapolítica daqueles tempos.Nesse sentido, acreditamos que o legado da sociedade civil se apresentoude maneira positiva. Esta investigação possibilitou compreendermos que emboratenhamos questões, como as citadas acima, a resolver para que possamosaprofundar a democracia, é possível que as organizações da sociedade civil, queatuaram na segunda metade da ditadura, tenham contribuído sobremaneira paracombater a reprodução da cultura política autoritária vigente. Embora já sabido,reiteramos que estes movimentos, especialmente os que reivindicavam a anistia,foram essenciais para o processo de abertura política no Brasil.A Lei de Anistia foi a consequência de um processo de luta desencadeada pelasociedade civil, que iniciou este movimento de forma objetiva e organizada em1975, por meio dos Movimentos Femininos pela Anistia espalhados em núcleospelo Brasil e que, no ano da sucessão de Figueiredo, ganhou as ruas e os espaçosmais politizados e populares do país. É notório que o processo dialógico só foipossível pela transformação que se forjava em uma cultura política democráticaque fazia o processo de crítica da coerção, uma vez que a sociedade civil clamavapor liberdades a ponto de ser ouvida, e não mais ignorada, pelo poder militar.Assim, entre coerção e consenso foi estabelecida a necessidade de se desenvolveroutro tipo de relação entre o Estado e a sociedade civil.Embora o MFPA-RS tenha se dispersado, a luta pela anistia não se caracterizapor encerrada, alguns protagonistas da década de 1970 não estão mais vivospara testemunhar a tentativa do governo federal em forjar uma (re)elaboraçãoda memória oficial. A Comissão de Anistia, encampada pelo Ministério da Justiça,tem realizado um trabalho de reparação aos anistiados que, por terem sidoafastados do estudo ou do trabalho, de acordo com a legislação vigente, têm odireito de serem restituídos pelo Estado. Convém salientar que se por um lado osarquivos repressivos não são conhecidos pela sociedade (visto que a pressão porparte dos representantes das Forças Armadas, ou do Ministério da Defesa, é deenfrentamento em relação ao Ministério da Justiça, a Secretaria Especial de DireitosHumanos e aos presidenciáveis) por outro lado a Comissão de Anistia temproduzido uma significativa documentação investigativa e de testemunhas querevelam suas impressões em julgamentos públicos pelo país afora.


Por fim, acreditamos que o MFPA-RS superou as limitações característicasde qualquer movimento social, na medida em que com o passar do tempo aspráticas foram se modificando, e passando das mais tradicionais, que envolviao diálogo com as instituições desconsiderando o povo, para uma informalidadedas ações que consideravam também os grupos marginalizados e difíceis de teremacesso a negociação. Nota-se com isso que o discurso de buscar as liberdadesdemocráticas foi praticado por aqueles movimentos que se uniram independentede suas divergências ideológicas ou partidárias. Houve um amadurecimento políticonaquele momento por parte dos novos movimentos sociais que enxergarama oposição como um movimento unificador capaz de desbancar a ditadura quejá andava fragilizada.As mulheres deram origem a um movimento pioneiro de oposição legal elegítima à ditadura e contribuíram para a articulação da sociedade civil e, juntocom seus semelhantes, foram capazes de trabalhar para a formação de uma novaordem baseada numa cultura política democrática. As modificações pelas quaispassaram, sobretudo em relação ao papel das mulheres na política, fez com quesuas práticas culturais e sociais, transformassem os seus limites, e criassem umanova mirada para a transição política brasileira.PRIMÁRIASDocumentação referente ao acervo particular Lícia Peres e Mila Cauduro (ArquivoHistórico do Rio Grande do Sul)BACKES, Enid Diva Marx. Conversa-Entrevista. Porto Alegre, novembro de2008. Conduzida e arquivada por Mariluci Cardoso de Vargas.PERES, Lícia Margarida Macedo de Aguiar. Conversa-Entrevista. Porto Alegre,abril de 2009. Conduzida e arquivada por Mariluci Cardoso de Vargas, acompanhadapor Gabriel Dienstmann, a convite da entrevistadora.ZERBINE, T. 1979. Anistia: a semente da liberdade. São Paulo, Gráfica dasEscolas Profissionais Salesianas, 253 p.4 - A LUTA PELA ANISTIA E OS DIREITOS HUMANOS NO RS: HERANÇAS FEMININAS - Mariluci C. de Vargas97


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Olhares – acrílico s/MDF – 30,5 X 21,5cmNilda Arruda Gregoski – Oficina de Criatividade/ HPSP


5 O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA –POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA:UMA LEITURA CRÍTICA DOS ESTADOS DEEXCEÇÃO DO CONE SULCastor M. M. Bartolomé Ruiz 96Resumo:As ditaduras implantadas em toda latino-américa na segunda metade do século XX utilizaram--se do estado de exceção como figura jurídico-política para suspender os direitos fundamentaise poder obter um controle arbitrário da vida humana dos opositores. Para compreendermos alógica violenta que persiste enquistada nas instituições de nossos países e até no próprio Estado,nos propomos a fazer uma genealogia do que consideramos dois elementos basilares da violênciaem nossa realidade: o estado de exceção e a mimese. A violência tem um potência miméticaque impulsiona a sua auto reprodução. O esquecimento se torna um aliado imprescindívelda mimese, enquanto a memória dos atos violentos atua como antídoto de sua repetição. Amimese esquecida fica recalcada nas instituições, pronta para ressurgir como um fenômenonatural. A potência anamnética consegue desconstruir o potencial mimético da violência eneutralizar sua pretensa naturalidade nas instituições e no Estado.Palavras-Chave:Violência, verdade, memória, mimese, anamnese, justiça anamnética.5.2 INTRODUÇÃO A UM DILEMA5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé RuizHá uma linha de continuidade na violência vivida e sofrida numa sociedade.América Latina é um subcontinente geográfico habitado pela pluralidade. Adiversidade é o marco do Latino-Americano. A diferença é constitutiva das inúmerasculturas, valores e formas de ser e viver. Contudo, Latino América é muito96 Doutor em Filosofia. Professor pesquisador do programa de pós-graduação de filosofia daUnisinos. Coordenador da Cátedra Unesco de direitos humanos e violência, governo e governança,Unisinos.101


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSmais que o denominador comum de uma área geográfica, há traços comuns nasdiversidades latino-americanas. A realidade destes povos se conecta por linhas desimilaridades que perfazem um modo de ser concomitantemente diverso e afim.Podem se destacar muitos traços latino-americanos positivos. Contudo, neste texto,somos obrigados a destacar um traço sombrio e triste, trágico, que perpassa comolinha transversal a vida destes povos, referimo-nos à violência.A história moderna dos povos latino-americanos foi inaugurada como tragédiade uma conquista. Ao alvorecer do século XVI, quando a Europa exaltaos humanismos renascentistas e aconteciam os primeiros lampejos da ciência etecnologia modernas, os povos latino-americanos sentiram desembarcar em suasareias a barbárie da civilização. A conquista dos civilizados pautou-se pela barbáriedo extermínio massivo de povos e culturas. A seguir, a estratégia dos Estados modernoscolocou em andamento a mais demolidora maquinaria biopolítica jamaisconhecida: a escravidão massiva em escala comercial de afro-descendentes 97 . Forammais de três séculos em que se combinou a estratégia do Estado moderno, quejá defendia os direitos naturais de todos os homens, e os interesses do nascentemercado capitalista. Este, através das suas companhias das Índias, possibilitou oenriquecimento dos acionistas que apostaram no tráfico de escravos como o negóciomais lucrativo desses séculos. Milhões de afro-descendentes reduzidos a mera vidanua, foram comercializados como animais de trabalho em mercados e praças destecontinente. Este é o marco inaugural da política moderna que começou sendo (econtinua a ser) uma biopolítica, ou seja, um governo utilitarista da vida humana 98 .O genocídio indígena e a escravidão posicionaram tragicamente os limites aosque se direciona a biopolítica moderna, quando no paroxismo da mercantilizaçãoda vida humana se transforma em tanatopolítica. Esta, a tanatopolítica, estánas origens históricas de nossos povos. A perversa combinação da estratégia deEstado e interesses de mercado consolidou a violência bio/tanatopolítica como amarca de ferro e fogo na vida dos povos latino-americanos. A violência tornou--se o marco inaugural das nossas sociedades latino americanas. De lá para cá estasombra pérfida nunca nos abandonou.10297 Muitas das implicações políticas da escravidão na lógica biopolítica dos estados modernos estãoausentes nos principais autores que pesquisaram esta prática. Contudo, Michel Foucault mostraas vertentes racistas que confluem na constituição do Estado moderno como parte de sua lógicabiopolítica. Cf. Id. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martin Fontes, 2000.98 Sobre a genealogia da biopolítica moderna cf. FOUCAULT, Michel. Segurança, território epopulação. São Paulo: Martin Fontes, 2008.


O século XIX saudado como século das independências em todos os paíseslatino-americanos, pode também ser denunciado como o século das barbáriesnacionais em quase todos eles. Os diversos governos nacionais, que se consideravamilustrados, se lançaram a conquistar os territórios que as metrópoles aindanão tinham ocupado. Esta estratégia de Estado trouxe consigo a conclusão doextermínio de povos inteiros na Patagônia Argentina, no sul do Chile, no Brasil,Uruguai, entre outros. Os Estados independentes latino-americanos imitarammimeticamente as estratégias da barbárie colonialista. A mimese da violênciainoculou-se no âmago das instituições políticas e na raiz das estruturas sociais destesnovos povos ao ponto de suas elites perpetuarem no poder, fazendo da violênciauma técnica habitual de governo. Governar com violência e governar a violênciatornou-se uma constante nas práticas políticas dos Estados latino-americanos.Tal incorporação mimética da violência levou nossos povos a viverem e sofrerempermanentes golpes de Estado, ditaduras de toda índole e uma gama variada deautoritarismos legais e ilegais. Cada país tem sua própria história de violência,porém todos eles têm a violência como marca destacada de sua história.No Brasil, a República que se pretendia ilustrada e positivista (ou talvez porser tudo isso), deu sequência à violência estrutural dos regimes anteriores. Episódioscomo Cabanagem (1835-1840), Balaiada (1838-1841), Sabinada (1837-1838), Guerra dos Farrapos (1835-1845), Canudos (1896-1897), Contestado(1912-1916), revelam um ápice da violência estrutural imperante. Merece umcomentário especial a guerra contra o Paraguai (1864-1870). De forma irônicae sintoma de uma história de violência, a Guerra do Paraguai se constituiu noprimeiro episódio de “colaboração” internacional das nações do Cone Sul. Umaguerra de rapina para roubar descaradamente território de um país independente,Paraguai, uniu Brasil, Uruguai e Argentina, com apoio econômico e militar daInglaterra (nesse momento a superpotência dominante internacionalmente). Aguerra contra o Paraguai é um episódio a mais que dá sequência à barbárie fundantedas estruturas políticas de nossas sociedades latino-americanas. Não é umamaldição que nos persegue. Persiste a sequela da violência de Estado perpetuadade forma estratégica ao longo dos tempos como tática de governo dos povos.O mais recente episódio de violência Estatal foi vivido também de formageneralizada em toda América Latina nas ditaduras que, a partir da década de sessentado século XX, se espraiaram como sementes do mal na quase totalidade dospaíses. O Brasil registra a fatídica data de 1º de abril de 1964, na qual os militaresdestituíram o governo legítimo de João Goulart. Argentina, 28 de julho de 1966;5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz103


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS104Uruguai, 27 de junho de 1973; Chile, 11 setembro de 1973, data do assassinatode Allende pela ditadura de Pinochet; Bolívia, 21 de agosto de 1971; e, ainda,o Paraguai tinha seu ditador particular, Alfredo Stroessner, que se perpetuou nopoder de 1954 até 1989. Estas são as tristes datas que conectam o Cone Sul docontinente latino-americano em torno de uma estratégia política de violência deEstado.A tragédia comum da violência biopolítica dos povos do cone sul, se desenvolveude modo particular em cada país. Contudo, cabe-nos analisar algunstraços comuns a esta violência de Estado que nos permita captar os fios ocultos daviolência estrutural, a fim de podermos desenhar estratégias que possam neutralizá--la. Penetrando pela fina capa dos eventos históricos, nos propomos mergulhar naanálise de duas constantes da violência de Estado em Latino América e no ConeSul: o estado de exceção e o potencial mimético da violência. Sua compreensãopode-nos ajudar a desenhar estratégias políticas, culturais e até filosóficas eficientespara neutralizar a violência inerente a muitas de nossas instituições e culturas.No final apontaremos para uma análise do testemunho e da memória das vítimascomo potência neutralizante da violência.5.2 O ESTADO DE EXCEÇÃO E A CAPTURA BIOPOLÍTICA DAVIDA HUMANA5.2.1 Todas as ditaduras latino-americanas da segunda metade do século XX,em especial no Cone Sul, tiveram apoio internacional das agências de inteligênciae o exército dos EEUU. Além disso, seu denominador comum foi decretar oestado de exceção como meio político de controlar os opositores políticos. A exceçãosuspende os direitos fundamentais e torna a vida humana frágil e vulnerávelà vontade soberana dos ditadores. Na exceção, a lei se identifica com o arbítrioda vontade soberana e a vida humana fica totalmente exposta à arbitrariedade.No estado de exceção os direitos fundamentais são substituídos pelo arbítrio davontade soberana, a dos militares. Neste caso, a vida humana fica exposta ao controlebiopolítico. O estado de exceção é a técnica biopolítica mais eficiente paracontrolar a vida humana. Nele a violência se torna um método de governo e umatática a mais da eficiência biopolítica. Os sequestros, torturas, desaparecimentos,confinamentos, são meros recursos técnicos ao arbítrio da vontade soberana paraneutralizar os opositores do regime. Os estados de exceção foram um episódio


a mais na lógica violenta da biopolítica dominante em nosso continente. A truculênciadas ditaduras militares recentes configurou, mais uma vez, o traço daviolência como a marca da identidade latino-americana.A chamada operação Condor é um exemplo desta violência biopolítica deEstado em que a vida humana é reduzida a mero objeto a ser neutralizado. Elasoube, no ápice da racionalidade instrumental, utilizar-se da potência miméticaque assola nossas sociedades para articular uma rede internacional de tortura erepressão seletiva contra todos os opositores das ditaduras. A denominada operaçãoCondor teve a capacidade de criar em todo o Cone Sul, com apoio do EEUU,uma rede internacional de comando de inteligência de Estado para capturar, sequestrar,torturar e fazer desaparecer a milhares de opositores nos diversos países doCone Sul. Os governos militares do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile eBolívia, com participação ativa dos EEUU, criaram em 1970 a operação Condor.O nome do belo pássaro do Andes nada tem a ver com o significado que os mentoresdo nome da operação lhe atribuíram. Assim como o condor se alimenta decarniça, a rede internacional de repressão se propunha triturar a vida de milharesde opositores. Uma vez mais a captura da vida humana e sua redução a mera vidanua 99 é o anverso da vontade soberana. A operação Condor deu coesão estratégicaà técnica biopolítica comum das ditaduras do Cone Sul, o estado de exceção.Importa conhecer a lógica interna que articula filosófica e juridicamente oestado de exceção para também podermos compreender os procedimentos políticosque o implementaram. O conhecimento das entranhas da Górgona é pré--requisito necessário para neutralizar sua monstruosidade. A monstruosidade dabarbárie tem muitos rostos, seu olhar petrifica a vida que captura de forma violenta.Para podermos olhar de frente a barbárie temos que conhecer a lógica dos seusdispositivos. Um dos recursos modernos da Górgona é se utilizar do dispositivopolítico jurídico da exceção como técnica para impor os governos autoritários.As ditaduras se caracterizam pela ruptura da ordem constitucional comobjetivo de defender a ordem social. Ou seja, se violenta aquilo que se pretendedefender. O artifício jurídico e político que se utilizou para suspender a ordemconstitucional e impor a vontade dos militares como nova ordem foi o chamadoestado de exceção 100 .5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz99 O conceito de vida nua foi desenvolvido por Walter Benjamin para designar a vida humanadespojada do direito. Cf. Id. “Por uma crítica da violência”. Id. Documentos de cultura, documentosde barbárie. São Paulo: 1986, p. 174.100 Para uma mais ampla compreensão das implicações biopolíticas do estado de exceção, cf.105


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS5.2.2 O estado de exceção coloca-se no limite da ordem e do direito. Eledefine os limiares que (des)velam os fundamentos políticos da ordem e a legitimidadede qualquer direito 101 . As medidas excepcionais encontram-se numasituação paradoxal já que elas não podem ser apreendidas nem compreendidasplenamente no plano do direito por sua própria condição de excepcionalidade,caso contrário não seriam excepcionais. Por isso o estado de exceção criou-se comoforma legal daquilo que não pode ser legal. Tenta legitimar aquilo que não temlegitimidade jurídica, ou seja, a exceção, e como consequência a arbitrariedadede quem decide a exceção 102 .O estado de exceção é uma figura jurídica criada pelo Estado de direito. Nosregimes de soberania absoluta não era necessário o estado de exceção, pois a vontadesoberana governava como exceção permanente. Ela era a norma arbitrária daordem e do direito. Nesse caso a exceção era desnecessária porque era permanente.O Estado de direito foi instituído para abolir a arbitrariedade da vontade soberanae em seu lugar instituir a lei de forma isonômica. Porém o Estado de direito nãoconseguiu abolir plenamente a vontade soberana, senão que ela persiste ocultacomo potência do Estado para ser utilizada quando necessária.Na base da exceção encontra-se sempre uma vontade soberana que tem opoder de decretá-la, de forma mais ou menos arbitrária, suspendendo, total ouparcialmente, a ordem. A exceção revela o soberano. Ao decretar a exceção, o soberanosai das penumbras do direito e mostra-se como aquele que tem o poder desuspender o direito e impor uma ordem a partir de sua vontade soberana.A exceção não só revela a potência da vontade soberana oculta no Estadode direito, senão que existe em relação à vida humana 103 . A vontade soberana nãoexerce sua soberania sobre as coisas, as instituições, o território ou a riqueza, senãosobre a vida humana. A soberania só existe como vontade arbitrária que capturaa vida humana sob a norma de sua vontade. Sem a captura da vida humana, a106AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: 2004.101 Remetemos ao estudo clássico de SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis, RJ: Vozes,1992. em que desenvolve a tese de que o estado de exceção é a figura jurídico-política que colocaem funcionamento a vontade soberana. Ele defendia uma visão autoritária, absolutista do poder.102 Uma excelente compilação de trabalhos sobre o estado de exceção na ditadura de 64 podeser encontrado em TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir Org.). O que resta da ditadura. SãoPaulo: Boitempo, 2010.103 AGAMBEN, Giorgio. O homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG,2002, p. 79 ss


soberania se desmancha em seus fundamentos. Essa correlação faz da exceção odispositivo original graças ao qual o direito se refere à vida. O que torna a referênciado direito e a vida algo paradoxal, como a própria soberania, já que inclui a vidadentro de si (dentro da exceção) por meio da suspensão do direito. É uma inclusãoexcludente, ou uma exclusão inclusiva. Exclui do direito para incluir a vida naexceção 104 . A exceção opera como estrutura política paradoxal que captura a vidahumana ao mesmo tempo em que a abandona à condição de mero ser vivente.A figura do estado de exceção desvela a vontade soberana oculta nas penumbrasdo Estado de direito, pronta para ser invocada como técnica políticade governo da vida humana. Cada vez que a ordem social estiver ameaçada porqualquer pessoa ou grupo social, poderá ser invocada a figura da exceção parasuspender, total ou parcialmente, o direito sobre essas pessoas. A exceção retira odireito da vida e torna a vida humana pura vida nua, homo sacer. Nessa condição,a vida humana se torna frágil, vulnerável e facilmente controlável. O estado deexceção visa sempre o controle (bio)político da vida humana. Ele se torna umatécnica biopolítica e policial muito eficiente para controlar e governar os grupossociais perigosos. Nesta condição os Estados modernos não cessam de utilizar umae outra vez a exceção jurídica como uma técnica política e policial de governar aspopulações que eles consideram perigosas. Neste sentido que Agamben enunciaa tese de que o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como oparadigma de governo dominante da política contemporânea. Há uma tentaçãodos Estados em deslocar as medidas provisórias e excepcionais para técnicas degoverno. No entanto, se as medidas excepcionais se tornam mais habituais, a exceçãotende a ser normal, a tornar-se norma. O uso constante da exceção comoforma de controle das vidas “perigosas”, tornou-a uma técnica política de governoda vida humana amplamente utilizada pelos Estados modernos.A barbárie das ditaduras latino-americanas está conectada com o claro significadobiopolítico da estrutura original do estado de exceção em que o direito incluiem si o vivente por meio da suspensão do próprio direito. Os últimos governosmilitares de toda América Latina utilizaram-se do estado de exceção como figurajurídica para suspender a ordem, ou seja, os direitos e garantias constitucionais,com objetivo de defender essa mesma ordem. Todos os opositores dos regimes5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz104 Agamben, seguindo a Benjamin, mostra as raízes biopolíticas da exceção jurídica: “ela éuma estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão”.AGAMBEN, Giorgio. O homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG,2002, p. 35107


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS108foram imediatamente inscritos na forma da exceção e incluídos pela suspensãodos direitos, ficaram excluídos na forma de novos homo sacer.A vida humana é capturada dentro da ordem na medida em que está presaà figura da exceção. Ou seja, a vida humana existe dentro do direito sempre coma ameaça potencial de ser decretada vida nua 105 . A vontade soberana, que tem opoder de decretar a exceção, continua sendo constitutiva da ordem moderna,inclusive do Estado de direito. Tal prerrogativa coloca a vida humana, todas asvidas humanas, sobre a potencial ameaça da exceção. Isso quer dizer que, se porqualquer circunstância uma pessoa ou um grupo populacional representasse umaameaça, real ou suposta, para a ordem, eles poderão sofrer a suspensão parcialou total dos direitos para melhor controle de suas vidas. Nas ditaduras latino--americanas foi amplamente aplicada a exceção como técnica de controle dosopositores políticos cujas vidas eram declaradas perigosas. Em tal condição essasvidas caíam numa zona de indistinção jurídica em que, por ser um perigo para aordem, existiam sob regime de exceção. Eram vidas capturadas pela inclusão naexceção e excluídas dos direitos fundamentais para garantir as suas sobrevivências.A vida dos opositores que o regime decretava a exceção tornava-se uma vida nua,desprotegida pelo direito e capturada pela exceção 106 .A política da exceção jurídica foi e continua sendo amplamente utilizadacomo técnica biopolítica para controlar os grupos sociais perigosos para a ordem.A questão é quem tem o poder de decidir quem é perigoso e porque é perigoso.Quem detém o poder de decidir a periculosidade de uma vida para a ordem éa vontade soberana. Nesse caso, qualquer um pode ser perigoso para a decisãosoberana, por qualquer motivo por ela determinado. Assim sendo, todos os sereshumanos têm sobre si a possibilidade de que lhes seja decreta a exceção, e como talreduzidos à condição de homo sacer 107 . Esta potencial ameaça da vontade soberanase tornou realidade nos regimes autoritários das ditaduras latino-americanas, que105 Derrida dedicou uma obra para comentar criticamente o conceito de vida nua na relaçãoentre direito e vida humana proposta por Benjamin. Cf. DERRIDA, Jacques. Força de lei. SãoPaulo: Martin Fontes, 2007.106 Uma importante compilação de textos sobre a condição humana nos estados de exceçãopode ser encontrada em RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Direito à justiça, memória e reparação. Acondição humana nos estados de exceção. São Leopoldo: Casa Leiria, <strong>2011</strong>. A obra pode ser acessadadigitalmente em http://www.unisinos.br/catedra_direitos_humanos107 Merece destaque a tese VIII Sobre o conceito de história de Walter Benjamin quando afirma:“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral”.Id. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 226.


fizeram da exceção uma técnica biopolítica de controle férreo da vida humanados opositores.5.2.3 A vida nua, expulsa da ordem pela exceção da vontade soberana, estácondenada ao banimento. Ela é uma vida banida e como consequência uma vidabandida. A consequência da exceção sobre a vida é o banimento. A vida banida daordem se torna uma vida bandida. O bando, que também é uma figura jurídicado banimento, se transforma socialmente numa vida banida. Esta foi a condiçãoa que ficou reduzida a vida de milhares de opositores das ditaduras latino-americanas.Banidos da ordem pelo decreto da exceção se tornaram bandidos. Forambanidos e se transformaram em bandidos pelo arbítrio de uma vontade soberanaque tem o poder de decretar sua exclusão inclusiva dos direitos fundamentais,que os tornou pura vida nua.A terrível experiência das ditaduras latino-americanas mostra que a soberaniaexiste pelo poder que tem sobre a vida nua. Nelas toda vida humana incorporadana ordem política existe numa relação de inclusão excludente. Ela é incluída pelodireito, mas poderá ser excluída pela exceção decretada pela vontade soberana.Nenhuma vida humana está livre da exceção, exceto a vontade soberana, que jáé uma exceção soberana. Todas as vidas, em caso de emergência ou necessidade,estão vulneráveis ao estado de exceção. Nessa condição se manifesta a essênciaconstitutiva do direito e da ordem, o poder soberano e sua violência.5.3 O CAMPO, ESPAÇO DE CONTROLE BIOPOLÍTICO DAVIDA HUMANA5.3.1 A exceção tornou-se uma técnica de governo da vida humana. Poréma exceção ainda trouxe consigo a modalidade do campo como espaço geográficoou demográfico onde ela, a exceção, vigora como norma. O campo é o lócus emque a exceção se torna norma 108 . Nele se aplica em toda a plenitude o controlebiopolítico da vida humana. O campo é um espaço diferente da cadeia ou da prisão.Estes são espaços legais contemplados no direito penal e regulados por lei. Avida humana dentro da cadeia ou prisão está ainda sob o direito já que sobre ela5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz108 AGAMBEN, Giorgio. O homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG,2002, p. 173 ss109


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSvigora o direito penal que a condena, mas também a protege. No campo o direitoestá suspenso. O campo existe fora do direito. É o espaço da exceção. No campoo direito suspenso é substituído pela vontade soberana 109 . O campo é o espaçoonde a vontade soberana arbitra de forma plena. Nele o arbítrio do soberano é alei. O campo está fora do direito e dentro do arbítrio da vontade soberana. A vidahumana que cai no campo entra numa zona de exceção em que os direitos ficamsuspensos e sobre ele impera o arbítrio do soberano. A lei do campo é a vontadesoberana. Quem legisla no campo é a vontade arbitrária do soberano. As vidas daspessoas que caíram sob tal condição estão submetidas a todas as arbitrariedadespossíveis porque no campo a arbitrariedade é a lei e a exceção a norma.Os presos políticos que caíram sob a exceção das ditaduras latino-americanasvivenciaram na própria pele a virulência do campo. Suas vidas, desprovidas dequalquer direito, entraram num espaço da arbitrariedade total em que o carrascoassumia o papel de vontade soberana. Os torturadores agiam com soberania.Muitas delegacias de polícia e repartições do exército e da marinha se tornaram emautênticos campos de exceção. É um erro considerar que a tortura e os torturadoresforam fenômenos pontuais ou atos descontrolados de fanáticos dos regimes.Enquanto não considerarmos os campos de tortura e aniquilamento uma figuraessencial à violência biopolítica não conseguiremos neutralizar sua potência estrutural.O terrível da barbárie é que o uso sistemático da tortura obedece à lógicainterna da estrutura política da exceção. A exceção produz o campo como espaçoem que pode vigorar plenamente a vontade soberana. Os porões da tortura, osespaços do DOPS, as delegacias de polícia, os espaços militares delimitados paratal finalidade, foram todos eles criados dentro da lógica biopolítica do campo. Avida capturada sob a exceção não pode simplesmente ser condenada pelo direitopenal, ela tem que ser exposta ao controle pleno da vontade soberana. Isso só podeacontecer no campo. O campo é a consequência necessária da exceção.No campo a vida humana é capturada pela exceção jurídica na forma deuma exclusão inclusiva. Ela é excluída dos direitos fundamentais, mas está capturadapela vontade soberana que decretou a exceção e a tornou uma vida nua, vidaabandonada. O campo tem um estatuto jurídico paradoxal. Aparentemente é umterritório colocado fora do ordenamento jurídico normal, quando na realidade110109 Hannah Arendt analisou a importância dos campos como figura política dos regimes autoritários.“Os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem como laboratóriosonde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível”. Id. Origens do totalitarismo.São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 448


epresenta a exterioridade interna da ordem que o institui a partir da vontadesoberana. É uma exterioridade da ordem social, porque a ela não pertence, massua existência revela a oculta interioridade do Estado em que continua vigente avontade soberana como poder decisório sobre a vida humana e garantidora, emúltimo extremo, da ordem que criou 110 . O campo representa o paradigma dosautoritarismos. Nele a vida humana sofrerá a suspensão parcial ou total de seusdireitos, o que irremediavelmente a colocará numa forma de exceção em que alei é substituída pela vontade dos torturadores.A vida humana despojada dos direitos fundamentais cai num estado de exceçãoque a transforma em pura vida nua. O estado de exceção tornou-se a normapara a vida de milhares de pessoas durante as últimas décadas do século XX noCone Sul. Os porões da tortura são os espaços biopolíticos em que a exceção setorna a norma e a vontade arbitrária dos torturadores é a lei soberana. Estes sãoespaços de exceção onde a vida humana perde seus direitos e fica reduzida a meravida biológica. Os porões da tortura são os campos onde a exceção vigora comonorma e se utiliza como estratégia para controlar e dominar a vida dos opositores.O campo é o espaço onde a exceção se torna norma. Quando a exceção se torna anorma, a sociedade inteira se torna um imenso campo. Algo verificável no ConeSul em que as ditaduras transformaram as sociedades num imenso campo onde osopositores eram capturados de forma arbitrária e sequestrados brutalmente paraserem torturados barbaramente. O campo, como espaço de controle biopolíticodos opositores, tornou-se a figura política por excelência das ditaduras latino-americanas.O campo, a exceção e a tortura não foram ações pontuais de elementosexaltados. Elas são produto da racionalidade estratégica da violência biopolíticado Estado. O ponto básico dessa violência é transformar a vida humana em puravida natural para agir sobre ela com vontade soberana.5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz5.4 A MIMESE DA VIOLÊNCIA5.4.1 O segundo aspecto que nos propomos analisar criticamente diz respeitoaos mecanismos de naturalização da violência nas instituições e práticas de nossas110 AGAMBEN, Giorgio. O homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG,2002, p. 125 ss111


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSsociedades. Constatamos que a violência não é um fato pontual que desaparecesimplesmente ao cessar o ato violento. A violência não se apaga sincronicamenteao virar a página do tempo. A violência tem uma persistência diacrônica cujosefeitos perduram no tempo. A lógica do tempo linear não se aplica à violência,seu passado é presente. A violência continua a existir mesmo quando termina oato violento. Ela lateja como potência ativa nos sujeitos e sociedades que contaminou.A violência contém uma consistência tal que contamina as estruturas,instituições e pessoas que toca.Para entendermos criticamente a história de violência e barbárie que assolanosso continente, assim como para pensar estratégias que possam neutralizar aviolência de Estado, temos que analisar suas entranhas da Górgona, sua potênciamimética.A violência não desaparece, sem mais, quando se termina de violentar o outro.Ela tem uma vigência, qual eco contaminador, nas sequelas que deixa tantonas vítimas como nos violadores 111 . Esse caráter inconcluso de toda violência,costura uma linha de continuidade entre a violência do passado e nossa violênciapresente. Embora nos pareça imperceptível, essa linha alimenta muitas dascondutas violentas que atualmente nos apavoram. Ela está ativa nas práticas deviolência institucional de muitos corpos do Estado e também na violência socialque impregna nossas sociedades. A violência foi muito mais do que o mito fundadorde nossas sociedades latino-americanas, ela foi a barbárie legitimadora desuas instituições, que começou nas lógicas colonialistas e teve continuidade nosEstados autoritários.A violência do nosso presente está conectada com a violência histórica malresolvida. Uma sociedade violenta, com agentes violentos, com instituições violentas,com valores e hábitos sociais violentos, se quiser entender-se criticamente,tem que procurar sua gênese para além do imediatismo do seu presente. Há algode intangível na nossa história de violência que dificulta sua neutralização e seperpetua como sombra da nossa realidade.Os estados de exceção vividos nas últimas décadas do século XX no conjuntodos países do Cone Sul latino-americano, não devem ser lidos como merosepisódios pontuais da violência histórica. A simples análise política dos fatos,sendo importante, não possibilita uma compreensão plena de porque a violência112111 Sobre a potência mimética da violência remetemos à obra de GIRARD, Rene. A violênciae o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990.


continua sendo uma técnica de governo tão comum em nossos estados. A tortura,a repressão, a truculência dos aparatos do Estado ou de agentes do Estado,e ainda de milícias paramilitares, continuam assombrando a vida cotidiana denossos povos. Temos que reler a barbárie sofrida nas últimas ditaduras (e suacontinuidade no nosso presente) na sequência de uma violência endêmica queassola nossas sociedades. Ela está enquistada nas estruturas do Estado, nas lógicasinstitucionais, nas práticas políticas e até nos valores sociais e práticas cotidianasde muitos sujeitos. Nesse caso, e antes de pensarmos práticas políticas eficientespara neutralizar a violência, é pertinente nos perguntar como a violência consegueestabelecer uma linha de continuidade nas instituições, nas estruturas, noscomportamentos sociais e nos hábitos culturais? Talvez possamos encontrar umprincípio de resposta a esta questão se entendermos que a violência contém o quedenominaremos de potência mimética.5.4.2 A mimese pode ser definida como o impulso a repetir por imitaçãoa conduta externa. O que caracteriza a mimese é a reprodução imitativa do comportamentoexterno. A violência não é um ato asséptico que se anula na execuçãodo ato. Pelo contrário, ela possui um impulso próprio que tende a sua auto-reprodução,o que confere à violência uma potência mimética! 112 A mimese é umapulsão que tende a repetir aquilo que a origina ou ainda imitar aquilo com o qualse relaciona 113 . No caso da violência, a tendência mimética tende a reproduzir aviolência praticada ou sofrida como se fosse uma forma de ação e reação instintivado ser humano 114 . A violência, uma vez praticada ou até sofrida, desencadeia no112 Ainda que concordamos com Rene Girard a respeito da potência mimética da violência,discordamos do caráter naturalista e compulsório que lhe outorga. Cf. Id. A violência e o sagrado.São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990, p. 182 ss. Entendemos que todo desejo humano é, também,uma produção simbólica de sentido que possibilita sua reconstituição para além da mera mimese.Sobre este ponto cf. RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Por uma crítica ética da violência. São Leopoldo:Unisinos, 2009, p. 87-112.113 Walter Benjamin analisa a capacidade mimética do ser humano como uma característicaprópria de nossa aprendizagem. Daí a responsabilidade que temos ao propor ou impor determinadaspráticas que tenderão à imitação mimética dos outros. “A natureza engendra semelhanças: basta pensarna mímica. Mas é o homem que tem a capacidade suprema de produzir as semelhanças. Na verdade,talvez não haja nenhuma de suas funções superiores que não seja decisivamente co-determinada pelafaculdade mimética”. BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. In. Id. Obras escolhidasI. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 108.114 Destacamos a ênfase que Benjamin outorga à capacidade mimética do ser humano comopossibilidade de repetir as semelhanças, que no caso da violência implica numa reprodução de si5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz113


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSsujeito e na sociedade uma espécie de instinto violento que tende a reproduzi-lae até perpetuá-la. A potência mimética naturaliza a violência como um ato denormalidade. A normalização inerente à potência mimética torna a violência algonatural. A violência gera violência, desencadeia a violência como atitude normalde reação e hábito de conduta. O resultado dessa espiral é a normalização da violência.Nessa condição ela pode ser praticada como se fosse um comportamentonatural à escala social, institucional, e até ser exaltada como valor social.A mimese, por definição, produz um impulso que tende a imitar um comportamentocomo se fosse algo natural 115 . A mimese naturaliza o comportamento,neste caso violento, e o reproduz de forma inconsciente como algo normal. Amimese normaliza a violência tornando-a um componente normal da vida socialou uma tática natural para o governo institucional. A potência mimética produza violência e a reproduz de forma natural. A mimese naturaliza a violência,outorgando-a uma aparência de naturalidade, ocultando desse modo sua gênesehistórica. A naturalização da violência confere-lhe uma espécie de transcendentalidadecom uma aparência de fatalidade inevitável. Nos bastidores da presumidanaturalidade da violência age um dispositivo mimético. Nas tramas ocultas danormalização da violência opera a mimese como potência auto-reprodutora. Se aviolência fosse uma mera estratégia racional dos sujeitos ou das instituições, seriarelativamente fácil neutralizar seus efeitos incentivando novos discursos racionaiscontrários a ela. Os discursos formais contra a violência, assim como as declaraçõesinstitucionais, se desmancham no ar quando confrontadas com a potênciamimética de uma violência que se reproduz nos porões inacessíveis das estruturassociais e das consciências dos sujeitos. A mimese, ao naturalizar a violência,a legitima como uma estratégia inevitável de governo. Se quisermos neutralizaro potencial destrutivo de qualquer violência teremos que alcançar essa potênciamimética que a naturaliza ao ponto de normalizá-la no comportamento habituale na estratégia institucional.5.4.3 A potência mimética da violência opera sobre todos que a contatam.Ela os contamina de modo a torná-los naturalmente violentos. Todos os que deuma ou de outra forma são tocados pela violência tendem a reproduzi-la como114mesma: “O dom de ser semelhante, do qual dispomos, nada mais é que um fraco resíduo da violentacompulsão, a que estava sujeito o homem, de tornar-se semelhante e de agir segundo a lei da semelhança”.BENJAMIN, Walter. Op. Cit. P. 113115 GEBAUER, G.; WULF, C. Mimese na Cultura. São Paulo, Annablume, 2004.


meio normal de comportamento. O potencial mimético da violência tende a sereproduzir naqueles que a praticam, fazendo do ato violento uma forma naturalde agir, o que torna a estratégia da violência uma técnica normal de governo.A violência atinge em primeiro lugar as vítimas. A violência é perversa porquenega a alteridade humana. No sentido estrito não se comete violência contra ascoisas, mas só contra as pessoas. A violência existe como produtora de vítimas 116 .Há muitos atos agressivos que destroem coisas, mas só os atos violentos atingemo humano. A violência existe correlativamente à negação total ou parcial da alteridadehumana. Este é o primeiro e principal efeito de toda violência. O fato de aviolência existir como destruidora do humano a torna intrinsecamente perversa.Ela faz das vítimas seu efeito necessário. Sem vítimas não há violência, sem violêncianão há vítimas. Para além de todas as casuísticas que podemos pensar sobre ostipos de violência e as modalidades das vítimas, só há violência quando se produzuma negação da condição humana, uma vítima. Só existe a vítima porque um atoviolento negou nela, total ou parcialmente, sua alteridade humana. A potênciamimética da violência induz a sua prática como ato de normalidade, normalizandoa existência das vítimas como um subproduto inevitável das sociedades. A mimesenaturaliza as vítimas como efeitos colaterais de práticas estruturais, naturalizando--as qual paisagem cotidiana de nossas sociedades. A repetição mimética dos atosde violência, desde a tortura institucional até a violência familiar, a torna algocorriqueiro com o que parece teremos que nos acostumar como parte constitutivado nosso ser cultural ou social. Este é primeiro efeito da mimese.5.4.4 Outro efeito mais perverso da potência mimética da violência se manifestaquando inclusive algumas vítimas tendem a reproduzir nos outros a violênciaque eles sofreram, como algo natural. Por exemplo, muitas vítimas da violênciafamiliar tendem a reproduzir a violência vivida ou sofrida sendo eles verdugoscontra outras vítimas da sua própria família. Esta espiral perversa do mimetismoda violência está no âmago de muita violência familiar contra a mulher, criançase idosos que se reproduz com naturalidade sem que o violento tenha remorso dasua barbárie. O potencial mimético da violência induz o violento a cometê-la de5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz116 Uma das derivações políticas da potência mimética é a teoria do sacrifício necessário. Muitasdas perseguições, torturas e mortes de opositores se legitimam como parte do sacrifício necessáriopara salvar o corpo social de um perigo que o ameaça. Neste sentido, a teoria do bode expiatóriocontinua a ser utilizada como técnica política para justificar a repressão e até a morte de opositores.GIRARD, Rene. O bode expiatório. São Paulo: Paulos, 2004115


forma trivial. A mimese normaliza a violência como um comportamento naturaldas pessoas, de grupos sociais e até de sociedades inteiras.PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS5.4.5 Ainda há um terceiro efeito da violência, desta vez sobre aquele quea comete, o violento. O potencial mimético da violência afeta diretamente o violento.Ninguém sai imune da prática da violência. O violento não poderá praticara violência sem sentir seus efeitos perversos. A violência provoca no violento umaprogressiva desumanização de modo que a cada ato de violência se internaliza nelea barbárie como um ato normal. Isso já é um efeito do mimetismo. Ao internalizara violência como comportamento normal, o mimetismo provoca, no agressor, umaperda de sensibilidade sobre o outro. A mimese desumaniza o violento ao pontode apagar sua capacidade de reconhecer no outro um semelhante. A potência miméticada violência vai anulando a capacidade de reconhecer no rosto do outrouma alteridade humana. O violento, na medida em que pratica a violência comoum ato normal, se embrutece ao extremo de não reconhecer no olhar do outro orosto de um semelhante. A violência apaga no violento a capacidade de enxergarno olhar o do outro um lampejo de humanidade. Para o violento, o rosto do outronão passa de uma máscara vazia sem significado 117 . A mimese da violência apaganele uma parte da capacidade ética de reconhecer no outro um ser humano comoele. A repetição mimética da violência vai se tornando para ele um ato normal.Ele se normaliza como violento e normaliza a violência como método legítimo,natural e eficiente para conseguir os fins que pretende. Cada ato de violência oafunda num embrutecimento desumanizador sem limite definido.Todas as estratégias de barbárie requerem táticas de embrutecimento edesumanização dos violentos ou verdugos. A mimese é uma potência inerenteà violência que se presta eficazmente a esta tarefa. A reprodução mimética daviolência consegue que o violento veja na vítima um mero objeto negativo quedeve ser negado. Ao normalizar a violência, o violento apaga os rasgos humanosdo outro e reduz seu rosto a um conceito sem significado. Ele é um bandido,um subversivo, um marginal, um terrorista, um... ser sem significado. A mimeseapaga a significação do rosto humano 118 . Um rosto insignificante está exposto a116117 Neste ponto remetemos aos estudos de Emmanuel Levinas a respeito da violência comonegação da alteridade humana em que o rosto tem um significado além da mera face. O rosto éo símbolo através do qual reconhecemos a revelação da humanidade do outro e vemos nele umsemelhante diferente. Id. Totalidade e infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000.118 Para Levinas o rosto tem uma relação não violenta, desarma a violência: “O rosto recusa-se


uma violência natural. A insignificância do rosto torna o ser humano vulnerável atoda violência. Ainda poderia se dizer que a violência só é possível porque houveum trabalho prévio de apagamento da significância do rosto do outro. Quandoo violento se confronta com um rosto com significado para ele, a potência miméticada violência se dilui. A diminuição da potência mimética da violência éproporcional ao significado do rosto. Um rosto com pleno significado dissolve apossibilidade de qualquer violência. É muito difícil cometer violência quando sereconhece no outro alguém com um significado importante para mim. Para quea violência aconteça é necessário produzir o violento como um ser que repete aviolência de forma mimética. O violento é um produto, desumanizador, da própriamimese violenta que ele pratica. Ele, ao praticar a violência, se produz a si mesmocomo um ser embrutecido, capaz de cometer a barbárie de forma mimética semqualquer remorso. A potência mimética apaga nele a capacidade de indignar-secom o sofrimento do outro e ativa o dispositivo da normalização que legitima aviolação do outro como um ato natural para um fim desejado. Esta é uma lógicabiopolítica amplamente difundida nas sociedades modernas. O embrutecimentodo violento é uma condição necessária para que a violência possa se reproduzircomo um ato de normalidade institucional e pessoal.Neste ponto cabe lembrar que os torturadores têm que ser produzidos comotais. A terrível Escola das Américas tinha (e ainda tem) como objetivo primeiroproduzir o torturador como um ser insensível para o outro. As técnicas para insensibilizaro torturador são muitas e sofisticadas, cientes de que delas dependea eficiência futura da tortura. Todas estas técnicas de tortura foram amplamenteensinadas, durante as ditaduras, em muitos dos corpos de seguridade dos Estadosdo Cone Sul. Ainda na atualidade, por um efeito mimético não neutralizado, taistécnicas se transmitem de forma subterrânea, clandestina, entre agentes do Estado.Guantánamo é o símbolo contemporâneo dessa continuidade mimética nocontinente. A prática habitual da tortura como técnica de interrogatório contrasuspeitos, consentida e até legitimada em Guantánamo, não é um ato pontualirrelevante, senão a ponta do iceberg que reproduz mimeticamente uma prática deEstado. O fato dela se cometer num território ocupado fora dos EEUU, tambémnão é casual. Guantánamo é o paradigma do campo biopolítico que representa acontinuidade das torturas praticadas neste continente durante os últimos estados5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruizà posse, aos meus poderes. Na sua epifania, na expressão, o sensível ainda captável transmuda-se emresistência total à apreensão”. Id. op. cit. P. 176117


de exceção. Os torturadores de Guantánamo são discípulos daqueles que na Escoladas Américas ensinaram técnicas de tortura aos militares do Cone Sul e outrospaíses latino-americanos. Guantánamo é o paradigma da reprodução miméticado campo em que a vida humana se torna pura vida nua no estado de exceção.PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS5.4.6 A potência mimética não se detém na subjetividade humana, ela contaminatambém as instituições e estruturas sociais. A potência mimética tende acontaminar o conjunto das relações sociais tornando a violência um hábito cultural.Ela inocula-se nos âmbitos institucionais do Estado sob o manto de tática normalpara governar as vidas perigosas. A legitimação da violência no Estado contém umpotencial que a torna mais perigosa, já que o Estado detém o monopólio legal daviolência. A ele cabe o direito exclusivo de monopolizar toda a violência, comodispositivo para defender-se da violência dos outros 119 . A coexistência, no Estado,do monopólio legal da violência e a persistência de uma potência mimética,produz uma combinação sombria e ameaçadora para o conjunto da sociedade.A potência mimética permanece oculta nas instituições do Estado sob o véu donaturalismo, tendendo a consolidar o que podemos denominar de uma culturada violência. As instituições não estão isentas desta contaminação. Pelo contrário,na medida em que o mimetismo da violência se torna algo normal numa sociedade,as instituições tendem a serem naturalmente violentas. A violência tende aincorporar-se como parte natural de seu agir institucional.O potencial mimético da violência também se inocula nas práticas institucionaisao ponto de torná-las práticas normais de governo. Ao deter o monopóliolegal do uso da violência, o Estado se arbitra como uma forma de violência legalcuja única legitimidade é a de defender de outra qualquer violência que ameacea vida humana inocente. Mas quando a mimese da violência latente em muitasinstituições do Estado induz a praticar a violência como uma tática de governo, apotência letal dessa violência se multiplica ao extremo. A combinação de mimesee monopólio da violência, quando devidamente articulada, se torna uma temívelmáquina biopolítica de controle humano em grande escala. A barbárie em grandeescala das últimas ditaduras militares se explica, em grande parte, porque omimetismo da violência não foi desconstruído e continua contaminando muitas118119 Este seria um dispositivo imunitário que a biopolítica utiliza como mecanismo para sacrificarumas vidas, que considerar ameaçadoras, para preservar as vidas normais. Sobre a dimensãoda biopolítica cf. ESPOSITO, Roberto. Immunitas. Protección y negación de la vida. Madrid:Amorrurtu, 2005


das instituições públicas do Estado, notadamente as áreas de segurança, polícia edefesa. A prática da violência como método de governo biopolítico de populaçõesperigosas nunca deixou de ser praticada. Ainda pior, as práticas de violência, osmétodos de tortura, as táticas de repressão, entre outras, nunca deixaram de serensinadas nas escolas militares ou policiais, e sempre foram consideradas umapossível tática de governo. O imaginário social da violência necessária sobreviveuna reprodução mimética de uma prática não reconhecida. O potencial miméticoda violência também pode embrutecer as instituições sociais e o próprio Estadoquando interiorizam a violência como uma prática habitual de governo institucional.O embrutecimento produzido pelo mimetismo tira a capacidade crítica dospróprios atos, impede aos agressores e violentos perceberem que suas práticas sãoatos de violação da alteridade do outro. Eles as justificam como práticas normaise necessárias para resolução de conflitos. Este é o ponto cego a que conduz o mimetismoda violência e o ponto álgido da lógica biopolítica.5.5 MEMÓRIA E MIMESE DA VIOLÊNCIA5.5.1 Após a análise crítica sobre o mimetismo da violência e sua lógicabiopolítica, a questão que nos colocamos é como neutralizar o potencial miméticoda violência. O desafio que nos cabe é esboçar uma estratégia eficiente paratal finalidade. Se assim o fizermos, talvez poderíamos quebrar a espinha dorsal deuma violência histórica que vem assolando nossas sociedades desde suas origensmodernas.Entre as tentativas ensaiadas para neutralizar o potencial mimético da violência,destacamos duas práticas políticas que se mostraram ineficientes e aindacúmplices de tal mimese. Um caminho que se mostrou ineficiente para neutralizaro potencial mimético da violência foram os discursos formais e racionalistas. A mimeseda violência não se neutraliza através da confecção de instrumentos jurídicosformais de caráter procedimental 120 . Por mais que estes sejam importantes e aténecessários, são insuficientes para neutralizar o potencial mimético da violência.Por exemplo, as sequelas da violência que os séculos de escravidão provocaram nãose anularam através do ato formal da libertação dos escravos. Os decretos da nova5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz120 Compartilhamos com Reyes Mate que “o traço mais característico da justiça moderna – traçoque comparte com a justiça dos antigos – é a alergia ao passado.” MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz.São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005, p. 267.119


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSrepública no Brasil não apagaram as marcas da violência histórica e estrutural. Deigual modo, não foram as transições formais das últimas ditaduras que apagaram opotencial mimético da violência institucional no Estado. Muitas dessas transiçõesforam meras transações 121 negociadas pelos interesses dos militares para perpetuarsua influência no Estado e ainda comandar todo o processo de modo a não seremjulgados por seus atos de violência e manter o poder de agir com violência, se oconsiderarem pertinente. O caráter transacional, negociado pela força, de nossasdemocracias as torna muito vulneráveis à continuidade da potência miméticada violência nas suas instituições. A dificuldade de realizar uma autêntica justiçatransicional dos regimes autoritários encontra seu maior obstáculo no carátertransacional imposto pelos próprios militares. A transação histórica dos estadosde exceção para as novas democracias carregou consigo uma parte importantedo potencial mimético da violência institucional. A transação não permitiu fazeruma transição. Não houve um trânsito para a democracia senão que se negocioua continuidade de uma lógica autoritária enquistada ainda na violência institucionalque ameaça as frágeis democracias e se manifesta na truculência e torturapraticadas por muitos elementos do Estado. Não são os atos formais de governoque neutralizam o potencial mimético da violência, ainda que se reconheça suaimportância para articular o modelo institucional de qualquer sociedade. Não é oaumento de discursos racionalistas que dissolvem a potência mimética da violência.Há algo que permanece nas instituições quando as mudanças se restringema meras arquiteturas formais do direito.Também não é o incremento de códigos morais, que só conseguem normatizarainda mais a vida dos sujeitos sujeitando-os aos interesses institucionais, quepossibilita neutralizar a mimese da violência. Não devemos confundir a formalidadedo discurso com sua eficiência nas subjetividades e nas instituições. No caso daviolência o vácuo que existe entre ambos é grande ao ponto de tornar o discursoalgo vazio quando a violência entra em ação.5.5.2 A segunda prática política que consideramos ineficiente e ainda cúmpliceda violência é o esquecimento. A mimese da violência tem no esquecimentoum ponto neurálgico para a sua existência. O esquecimento é o grande aliado120121 Devo esta observação crítica entre transição e transação, como figura semântica e políticadas ditaduras latino americanas, a Jair Krischke, Coordenador do Movimento Justiça e DireitosHumanos, na sua conferência no XIII Corredor das Ideias do Cone Sul, realizado em 14/09/<strong>2011</strong>,na Unisinos, São Leopoldo-RS.


do potencial mimético da violência. A amnésia é condição necessária para a perpetuaçãoda violência. Amnésia e violência coexistem como aliados estratégicos.É comum propor o esquecimento da violência como o meio eficiente paraneutralizá-la e evitar sequelas posteriores. Porém é justamente o esquecimento quepossibilita a perpetuação da violência. A potência mimética da violência nuncapode ser esquecida senão que fica recalcada. O esquecimento não anula a violênciasenão que a recalca. O recalque é um dispositivo antropológico e político queoculta uma realidade como inexistente, embora ela continue ativa. O recalque daviolência a oculta possibilitando sua persistência na sombra. A violência recalcadapelo esquecimento se perpetua como potência ativa nas estruturas e nas práticassociais. O recalque provocado pelo ato formal de esquecimento comprime aviolência nas sombras do inconsciente humano ou nos porões das instituições,mas não a neutraliza. Pelo contrário, o recalque esconde a potência mimética daviolência com a aparência de esquecimento quando na verdade ela permanececomo potência ameaçadora que virá a se perpetuar em atitudes individuais ouem segmentos institucionais.O esquecimento não neutraliza a violência, pelo contrário, é seu cúmplicemais eficiente. O esquecimento é condição necessária para que a violência se perpetue.O esquecimento sempre opera como um mecanismo formal de silenciamentooficial dos atos de violência cometidos, mas não consegue neutralizar o potencialmimético de sua reprodução. Ao impetrar um ato formal de esquecimento, aviolência fica recalcada na interioridade dos hábitos individuais e institucionais,ainda que clandestinamente. A sombra do recalque dá uma aparência de superaçãoda violência quando na verdade ela permanece ativa como potência ameaçadorapronta para reaparecer em qualquer circunstância. O recalque é sempre clandestino,o que torna seus efeitos mais imprevisíveis.A violência da barbárie que fundou nossas sociedades não foi apagada pelapassagem do tempo. Ela nunca foi esquecida porque o esquecimento por si só nãoneutraliza a violência, pelo contrário a ativa como força oculta 122 . A violência seesconde sob a capa do esquecimento para agir mais intensamente pela potênciamimética nos porões das instituições e das práticas sociais. O tempo não apaga aviolência, a esconde. Ocultada sob a aparência do esquecimento, a violência con-5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz122 As teses de filosofia da história de Walter Benjamin insistem neste ponto, como a Tese II:“... O passado traz consigo um indicador secreto que o remete à redenção. Acaso não sentimos a lufadado mesmo ar que respiraram aqueles que nos precederam?” Id. Magia e técnica, arte e política. SãoPaulo: Brasiliense, 1996, p. 223.121


tagia as estruturas, instituições, práticas e valores de nossas sociedades. As contínuastentativas de esquecer a violência só contribuem para ocultar seu potencialauto-reprodutor. As políticas de esquecimento como determinadas formas deanistia, leis de ponto final, leis abolicionistas, novos contratos, novas repúblicas,pretendem passar páginas da história como se nada tivesse acontecido. Porém opassado não se anula, ele é constitutivo de nosso presente. Nenhuma sociedadeparte de um ponto zero da história, ela tem que aprender a carregar sua históriacomo parte de sua realidade. A temporalidade sincrônica que a noção modernade progresso propugna, desconhece que a história contém uma temporalidadediacrônica pela qual o passado nunca passou totalmente 123 . Os acontecimentosocorridos são parte constitutiva de nosso presente. O contrato social tende adesconhecer a injustiça histórica e pretende partir de um ponto zero de acordospolíticos para apagar a história passada.PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS5.5.3 A diacronia inerente ao acontecimento histórico se manifesta especialmenteativa nos eventos de violência. Para o ser humano e para as sociedades,o passado nunca passa totalmente. O tempo conecta o presente com o passadoatravés da experiência do acontecimento. O passado sempre forma parte de nossopresente. Somos, em parte, o passado que vivemos. O tempo não apaga osacontecimentos, pelo contrário os recompõe conectando as vivências do presentecom as experiências do passado 124 . Por isso a barbárie não pode ser apagada porcontratos, nem esquecida por atos institucionais. Não se nega de forma arbitráriaa influência do passado no nosso presente, nem se pode anular os efeitos diacrônicosque a barbárie provocou. O passado da violência assombra nosso presente,especialmente quando se pretende passar a página através de atos voluntaristas eracionalistas de esquecimento. O esquecimento não anula a violência, pelo contrárioa esconde como potência oculta pronta para agir. A ocultação da violência peloesquecimento alimenta sua reprodução e a perpetua como ameaça permanente. Aviolência social e institucional do nosso presente não está descolada dos episódios122123 Neste ponto remetemos aos estudos de Benjamin, em especial suas Teses sobre filosofia dahistória. Na Tese V diz: “A verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado só se deixa fixar,como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento que é reconhecido”. Id. Magia e técnica,arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 224.124 Sobre a importância da temporalidade diacrônica para recompor a injustiça histórica recomendamosa leitura de: MATE, Reyes. Meia-noite na história. Comentários às teses de WalterBenjamin sobre o conceito de história. São Leopoldo: Unisinos, <strong>2011</strong>.


de violência histórica do passado. Todas as tentativas de esquecimento político daviolência histórica só contribuíram para reforçar sua permanência como práticanormalizada das instituições sociais e do comportamento cotidiano.Esquecimento e violência se atraem e se complementam historicamente.A violência naturalizada faz da barbárie uma forma natural de regulamentaras relações sociais e de resolver os conflitos. A violência normalizada reduplicaseus efeitos ao se constituir em meio legítimo e fim justo para solução de todosos conflitos sociais. Este é o objetivo original das instituições que sancionam aviolência como seu meio legítimo para conseguir determinados fins políticos. Oesquecimento da violência perpetua a barbárie sob a forma de tradição natural.Não poderemos entender muitos dos atuais episódios de violência estrutural queassolam nosso país, como é o caso das milícias armadas no Rio de Janeiro, dapersistência da tortura sistemática por parte de agentes da polícia, entre outras,se não as compreendermos como efeitos decorrentes de uma violência estruturalocultada nas instituições por dispositivos de esquecimento.A violência é narrada desde a perspectiva dos vencedores como uma violêncianatural da história para que avance de forma progressiva a sociedade. O progressose tornou uma categoria manipulada pelos vencedores da história para naturalizara violência como meio legítimo da composição das sociedades. As vítimas“meras florzinhas pisoteadas na beira da história”, segundo Hegel, são olhadascomo efeitos colaterais necessários e inevitáveis. Desta forma o esquecimento daviolência e das consequências trágicas que provoca para as vítimas, se tornou acondição necessária da perpetuação da violência. Porque a violência que se negapelo esquecimento tornará a repetir-se pela impunidade.5.6 MEMÓRIA E VIOLÊNCIA5.6.1 Esboçadas as duas falsas soluções (atos racionalistas formais e políticasde esquecimento) amplamente utilizadas para neutralizar a violência, cabe nosperguntar se ainda podemos ensaiar alguma proposta de solução para tamanhapotência destruidora. Podemos sustentar a tese de que se o esquecimento é a alavancamimética da violência, a memória atua como seu freio. A memória consegueneutralizar, em grande parte, a potência mimética que naturaliza a violência. Cabeperguntar, como a memória consegue dissolver a potência mimética da violência?A memória contém uma potência anamnética que se opõe de forma eficiente5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz123


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSà potência mimética da violência. A anamnese é a potência humana que conseguetrazer para a luz aquilo que o recalque tinha ocultado sob a aparência de esquecimento.O ser humano tem a possibilidade de reconstituir seu passado no presente,presentificar o passado ao ponto de torná-lo atual. Essa potência absolutamentesingular é a anamnese. A anamnese não é a mera possibilidade de reter lembranças,como os animais, senão a potência de trazer o passado para o presente. A anamneseresgata os acontecimentos passados e os atualiza. Ela consegue passar da meralembrança animal à reconstituição da memória. A memória é a possibilidade designificar o passado a partir de nosso presente. A anamnese nos permite construiro sentido de nossas lembranças. Ela nos dá o poder de significar o nosso passado,de fazê-lo presente pelo sentido que ele tem para nós hoje. Devido a essa potênciadiacrônica, a anamnese penetra nos porões inacessíveis da violência recalcada ea traz para a luz do presente expondo a sua brutalidade. A potência anamnéticadesmascara a pretensa naturalidade de potência mimética da violência. A anamneserecompõe o acontecimento do passado como uma realidade que toca nosso presente.A anamnese constrói as pontes significativas de uma história ocultada pelorecalque. Deste modo, a anamnese neutraliza a mimese da violência. A violênciasobrevive através da amnésia. Sua potência mimética se reproduz naturalmenteporque se ocultou amnesicamente. A potência mimética resgata as consequênciasperversas de toda violência sobre a vida das vítimas.A memória é produzida pela história da mesma forma que a história é produzidapela memória 125 . A memória produz a história porque quebra a compulsãoatemporal da inteligência biológica animal e introduz a temporalidade na experiênciahumana. Mas não é qualquer memória que neutraliza a potência miméticada violência. Os violentos (os vencedores em geral) também utilizam a memóriacomo recurso para legitimá-la. A memória dos violentos atua como mais umartifício ideológico para legitimar a violência. A memória que tem possibilidadede neutralizar a potência mimética da violência é a que decorre do testemunhodas vítimas. Aqueles que foram vítimas da violência têm uma experiência únicade sua barbárie. Seu testemunho revela a perversão inerente ao ato de violência.O testemunho da vítima atualiza anamneticamente o lado sombrio e terrível daviolência desarmando sua pretensa legitimidade. O testemunho e a testemunhada violência contêm uma potência anamnética singular que mostra a perversão124125 Sobre a relação entre memória e história, cf. RICOEUR, Paul. RICOEUR, Paul. A memóriaa história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.


da potência mimética da violência. Só a potência anamnética das vítimas contéma possibilidade de neutralizar a potência mimética da violência.5.6.2 A memória dos violentos tende a ocultar os efeitos da violência sobrea vida humana. A memória dos vitimários produz atos de legitimidade da violência.A potência anamnética das vítimas contém um olhar próprio sobre a históriaque revela o lado perverso da violência histórica. O desvelamento da perversãooculta na história desconstrói a pretensa naturalidade da violência mostrando asua intrínseca inumanidade. A potência anamnética das vítimas revela um ladooculto da história que parecia não existir e que permitia à violência perpetuar-secomo algo natural. O lado sombrio da violência, revelado pela memória das vítimas,traz consigo um novo imperativo histórico: a urgência ética de neutralizaros dispositivos naturalistas da violência.A potência anamnética das vítimas tem o poder de desarmar a potência miméticada violência porque, ao confrontá-la com as consequências da barbárie, aviolência fica deslegitimada. O rosto humilhado das vítimas é um operador éticoque atua como elemento neutralizante dos dispositivos de naturalização e legitimaçãoda violência. A memória das vítimas, a anamnese de sua violação, tem apotência de desconstruir a reprodução mimética da violência. Ao trazer para luza perversidade da violência, se inibe a sua reprodução mimética. O dispositivonaturalizador da violência, que a reproduz como algo normal, fica desconstruídoquando se rememoram as consequências da barbárie. A tendência em continuarutilizando a violência como um método normal de governo e de gestão políticafica profundamente questionada, desconstruída, quando confrontada com a memóriade suas consequências. Os atos de memória atualizam as barbáries históricascomo meio eficiente para evitar sua repetição. A violência esquecida tenderepetir-se como ato de normalidade.5.7 JUSTIÇA ANAMNÉTICA5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz5.7.1 Para concluir temos que esclarecer que a potência anamnética dasvítimas não advém do ressentimento nem da vingança, senão da justiça. Umajustiça que é muitas vezes abafada pelos acordos políticos, pelos atos contratuaisque pretendem passar a página na história apagando (ingenuamente) os aconteci-125


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSmentos vividos. A memória das vítimas introduz no debate uma nova perspectivade justiça que é a justiça anamnética 126 .A memória da violência não tem por objetivo o ressentimento. Se assim for,e poderá acontecer em casos particulares, tal memória não contribuirá para fazerjustiça às vítimas, senão para recalcar nelas a dor na forma de ressentimento insuperável.Há que diferenciar memória de ressentimento. A memorização da violêncianão é motivada por ressentimento senão por justiça. A justiça histórica só poderárealizar-se ao se fazer uma memória da injustiça cometida contra as vítimas 127 .O ressentimento é provocado pelo trauma. Sociedades traumatizadas pelaviolência podem cair na tentação de sobreviverem amedrontadas pelo ressentimento.O medo dos ressentidos não supera a violência, pelo contrário, a possibilita. Omedo é amplamente utilizado como tática biopolítica de controle social. Por isso,em alguns casos particulares das vítimas da violência, o esquecimento poderá ser orecurso final para superar o trauma. O paradoxal é que o trauma existe porque háuma violência recalcada no inconsciente pessoal ou social. Ela parece estar esquecida,mas existe recalcada. O recalque provoca a angústia do trauma. No trauma aviolência não está esquecida, sobrevive recalcada. Para superar o trauma há que sefazer memória do acontecimento. Só a memória, sempre dolorosa, poderá liberaras vítimas e as instituições do trauma da violência. Ao trazer para a luz a violênciaocultada pelo trauma, fica transparente a sua barbárie, o que representa o começode sua desconstrução. Os atos de esquecimento só serão eficazes para superar otrauma da violência quando forem consequências dos atos de memória. De igualmodo, os atos institucionais de anistia só serão legítimos e ainda eficientes paraneutralizar a potência mimética da violência, quando decorram de atos de memóriahistórica e de devidos processos de justiça.5.7.2 Em segundo lugar, é conveniente afirmar que a memória da violêncianão tem por objetivo a vingança. A memória que invocamos não tem por objetivo126126 Sobre a justiça anamnética cf. MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: NovaHarmonia, 2005127 Horhkeimer já desenvolveu a tese de que o crime é evidente a quem o comete e a quem osofre (vitimário e vítima), mas para que ele seja acessível às gerações futuras será necessário alguémque dele faça memória. Sem a memória o crime se apagará no esquecimento da história. AdmiteHorkheimer que só Deus poderá conservar as injustiças olvidadas e deste modo fazer justiça (divina)aos injustiçados da história. Ainda termina sua reflexão com uma grave questão: “Pode-se se admitiristo e não obstante levar uma vida sem Deus? Tal é a pergunta da filosofia”. Id. Apuntes. 1950-1969.Caracas: Monte Ávila, 1976, p. 16.


vingar-se dos violentos utilizando seus mesmos métodos. O objetivo da rememoraçãoda violência histórica é não cometer uma segunda injustiça contras asvítimas da violência 128 . O esquecimento perpetra uma segunda injustiça ao apagarda história a injustiça e a violência cometida. Ao esquecer a injustiça histórica seapaga da história os que sofreram a sua violência, as vítimas. O esquecimento éuma segunda violência. Uma violência simbólica que impede a justiça histórica.A justiça das vítimas só pode ser feita pela memória da injustiça sofrida 129 .Quando determinadas políticas de “transação” propõem o esquecimento da tortura,o olvido dos mortos e desaparecidos, a negação da política repressiva doEstado como parte dos acordos políticos, se comete uma dupla injustiça. Nega-sea brutalidade da injustiça perpetrada, neste caso pelo Estado, e ainda se pretendea morte histórica das vítimas condenando-as ao olvido. O olvido é uma segundamorte das vítimas. É como proclamar oficialmente que elas nunca existiram e quenão têm relevância para nossa realidade e nosso presente. Esquecer as vítimas e aviolência contra elas cometida supõe impetrar sua morte histórica. A morte históricadas vítimas, seu olvido, é uma segunda injustiça, uma injustiça histórica.Frente a isso, se contrapõe o testemunho e memória das vítimas como meios paraconstruir uma justiça histórica que por ser tal há de ser uma justiça anamnética.5.7.3 A memória das vítimas é condição necessária para a superação dostraumas pessoais e sociais vividos pela violência. Só a memória pode perdoar. Sóa memória pode anistiar. O olvido não pode perdoar porque não lembra. O esquecimentosimplesmente nega a realidade da violência. Só a potência anamnéticapoderá fazer justiça histórica às vítimas, e ainda desarmar a potência miméticada violência. Poderá se falar em anistia e perdão como resultado final da justiçaanamnética. Ainda tem que se diferenciar entre perdão e anistia. O perdão sempreserá direito das vítimas, o Estado poderá, como máximo, anistiar legalmente, masnão perdoar moralmente 130 . O perdão é uma prerrogativa ética das vítimas, que5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz128 Certamente não poderemos naturalizar a memória como uma faculdade intrinsecamenteboa. Há perigos na memória e há perversões da memória, mas isso não invalida sua absoluta pertinênciapara uma justiça histórica. Sobre os perigos da memória cf. TODOROV, Tzvetan. Losabusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000129 O paradoxal do esquecimento é que, como afirma Reyes Mate: “Sem memória não, pois,injustiça, mas tampouco justiça”. Id. Tratado de la injusticia. Barcelona: Trotta, <strong>2011</strong>, p.292130 Sobre as dificuldades e possibilidades políticas do perdão cf. o último capítulo, “o difícilperdão” de: RICOEUR, Paul. A memória a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.127


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSpode ter uma grande importância política, a depender dos contextos históricos 131 .Só quem sofreu o trauma da violência tem a possibilidade de perdoar como atomoral e político extremo. De igual modo as vítimas da violência também têmo direito de nunca perdoar. O perdão é uma dimensão ética (e teológica) compotencialidades políticas nos contextos de reconciliação. Mas são as vítimas quetêm a iniciativa e o direito do perdoar ou não 132 . O Estado poderá anistiar, ou nãolegalmente, mas não tem a prerrogativa do perdão. A efetivação do perdão pessoalou da anistia institucional só poderá acontecer através de um ato de memóriahistórica do acontecido. Só a rememoração possibilita a superação do trauma daviolência. Só a potência anamnética pode desconstruir o poder mimético da violência.A justiça anamnética exige o devido processo. Os torturadores hão de serjulgados, processados e condenados. Só depois do devido processo e da sentençaemitida é que se poderá falar na pertinência política da anistia e no direito moraldo perdão. Tanto o perdão como a anistia exigem justiça, e a justiça devida àsvítimas exige o direito à memória e verdade das violências cometidas.No processo de justiça ananmética, os atos de memória, os monumentos dememória, pessoal e coletiva, são quesitos imprescindíveis para neutralizar a violênciamimética que permanece recalcada nos porões das instituições e na sombrado inconsciente humano. A memória pessoal e institucional é pré-requisito dajustiça. Não pode haver justiça sem memória da injustiça. A memória da barbárieé necessária para que se inicie o devido processo de julgamento social e históricodo acontecido. Ao reclamar a instituição da comissão da verdade, a criação dememoriais da violência, o registro público em praças, ruas, monumentos dosnomes dos vitimados (e não dos ditadores e torturadores como ainda ocorre emnosso país), ao exigir o julgamento, ainda que de difícil execução no nosso país,dos responsáveis da barbárie, não se está querendo vingança, nem se está pretendendorevanche. Os objetivos da justiça anamnética são: neutralizar o potencialmimético da violência e fazer justiça histórica às vítimas. Pois o que se oculta peloesquecimento, voltará a repetir-se pela impunidade.128131 cf. ZAMORA, Jose A. (Org.). El perdón y su dimensión política. In. MADINA, Eduardo;MATE, Reyes (org). El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008,p. 57-80132 Destacamos a posição de Derrida de que o perdão é incondicional, radical no sentido semânticode que se perdoa o imperdoável ou não existe o perdão. “Por acaso não tem que manterque um perdão digno desse nome, se é que alguma vez se realiza, deve perdoar o imperdoável, e isso semnenhuma condição?”. cf. DERRIDA, Jacques. “El perdón”. In: In. MADINA, Eduardo; MATE,Reyes… (org) El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. P.123


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAGAMBEN, Giorgio. O homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:UFMG, 2002AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: 2004.ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2009,BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo:1986BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996DERRIDA, Jacques. Força de lei. São Paulo: Martin Fontes, 2007.ESPOSITO, Roberto. Immunitas. Protección y negación de la vida. Madrid: Amorrurtu,2005.FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martin Fontes,2008.FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martin Fontes, 2000.GEBAUER, G.; WULF, C. Mimese na Cultura. São Paulo, Annablume, 2004.GIRARD, Rene. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990.HORHKEIMER, Max. Apuntes. 1950-1969. Caracas: Monte Ávila, 1976.LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000.MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005,MATE, Reyes. Meia-noite na história. Comentários às teses de Walter Benjamin sobreo conceito de história. São Leopoldo: Unisinos, <strong>2011</strong>.MATE, Reyes. Tratado de la injusticia. Barcelona: Trotta, <strong>2011</strong>.RICOEUR, Paul. A memória a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Por uma crítica ética da violência. São Leopoldo:Unisinos, 2009.RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Direito à justiça, memória e reparação. A condiçãohumana nos estados de exceção. São Leopoldo: Casa Leiria, <strong>2011</strong>.SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.5 - O DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA - POR UMA JUSTIÇA ANAMNÉTICA - Castor M. M. Bartolomé Ruiz129


TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir Org.). O que resta da ditadura. São Paulo:Boitempo, 2010.TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000.ZAMORA, Jose A. (Org.). El perdón y su dimensión política. In. MADINA,Eduardo; MATE, Reyes (org). El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi.Barcelona: Anthropos, 2008PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS130


S/ título – acrílico/tela – 40 X 60cmSandro Magalhães Azambuja – Oficina de Criatividade/ HPSP


6 A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANOFernanda Frizzo Bragato 133Luciana Araújo de Paula 134Resumo:O tema da memória vem ganhando destaque, em nosso país, desde que nos últimos anos ressurgiucom força a discussão sobre a necessidade de se rever nosso passado ditatorial recente,como uma clara exigência de justiça. O presente artigo tem como objetivo reunir argumentosque possibilitem afirmar a memória como um direito humano. Para tanto, busca responderàs seguintes questões: Que significado tem a memória? Por que e como é possível reconhecerà memória a condição de direito humano? De que forma o Direito pode tutelar o direito àmemória?Palavras-chave:Memória, direitos humanos, justiça de transição.6.1 INTRODUÇÃO“Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Kan.A ponte não é sustentada por esta ou por aquela pedra – respondeMarco -, mas pela curva do arco que estas formam.Kublai permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.Polo responde:Sem pedras não existe arco” (Calvino, 2007, p. 96)6 - A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANO - Fernanda F. Bragato e Luciana A. de PaulaEsse pequeno diálogo transcrito acima, travado entre Marco Polo, o famosonavegador veneziano, e Kublai Khan, imperador que dominou grande parte133 Mestre e Doutora em Direito – Unisinos. Professora do PPG em Direito.134 Mestre e doutoranda em Ciência Política – Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine(IHEAL) – Sorbonne Nouvelle/Paris III133


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSda Ásia Oriental foi imaginado pelo escritor Italo Calvino em seu livro “As CidadesInvisíveis”. Nesse livro de relatos curtos, Calvino coloca, de um lado, umpoderoso imperador que não pode ver com os próprios olhos toda a extensão deseus domínios e, de outro lado, Marco Polo, grande aventureiro que se torna oseu telescópio, narrando-lhe as maravilhas de seu império. Assim, Polo descreve55 cidades por onde teria passado, agrupadas numa série de temas: “as cidades ea memória”, “as cidades e o desejo”, “as cidades e os símbolos”, “as cidades e osmortos”, entre outros. Como ressalta Calvino “a este imperador melancólico quecompreendeu que seu ilimitado poder conta pouco em um mundo que caminhaem direção à ruína, um viajeiro imaginário lhe fala de cidades impossíveis (…)”(Calvino, 2007, p. 14).Aproximando esse diálogo ao tema que trataremos nesse artigo, a respostade Polo a Khan de que “sem pedras não existe arco”, pode ser parafraseada pelaafirmação de que “sem memória não existe história” e, mais especificamente, deque “sem memória não existe justiça”. Afinal, como compreender as construçõese as ruínas da humanidade, sem levar em conta as “pedras” que as sustentaram ousem levar em conta as vítimas das barbáries que ficaram pelo caminho?Para ilustrar, Zaira, a cidade invisível dos “altos bastiões”, é uma cidade dememória. Marco Polo desde o início do relato expõe a dificuldade em descreverZaira: “poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada,de que tipo são os arcos de suas arcadas, de quais lâminas de zinco são recobertosos telhados; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feitadisso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do seupassado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpadorenforcado; o fio esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesamo percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada eo salto do adúltero que foge pela janela de madrugada; a inclinação do canal queescoa a água das chuvas e o passo de um gato que esgueira-se dele majestosamentee que se introduz nessa mesma janela; a linha de tiro da canhoneira que surgeinesperadamente atrás do cabo e a bomba que destrói o canal; os rasgos das redesde pesca e os três velhos, remendando as redes que, sentados no molhe, contampela centésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem ser o filhoilegítimo da rainha, abandonado de fraldas ali no molhe” (Calvino, 2007, p. 25).134


6.2 A DIMENSÃO HUMANA E COLETIVA DA MEMÓRIAA memória é um elemento constitutivo da própria ideia de justiça, ao menosem sua dimensão corretiva, se tomar em conta a definição aristotélica, quevislumbra duas espécies de justiça particular: corretiva (ou comutativa) e distributiva(Aristóteles, Ética a Nicômacos, Livro V, 1131 a). Interessa, neste momento,a primeira espécie. A justiça corretiva corresponde a uma igualdade aritmética.É aquela que se efetiva quando a lei trata as partes como iguais, perguntandosomente se uma das partes cometeu e a outra sofreu a injustiça e se uma infligiue a outra sofreu o dano. Neste caso, a justiça é o restabelecimento da igualdade,que se faz por meio da aplicação de uma sanção (penal ou civil), subtraindo doofensor o excesso do ganho e fazendo com que o igual equivalha ao meio termoentre a perda e ganho (Aristóteles, Ética a Nicômacos, Livro V, 1132a). A justiça,portanto, tem essa função retributiva que está na própria essência da atividaderestabelecedora da igualdade rompida por meio de um dano que um inflige aooutro. Nesse sentido, sem memória, não há justiça; fazer justiça implica rememorarum fato que já passou, mas que precisa ser corrigido.Quando Aristóteles fala que uma das dimensões da justiça é a atuação dojuiz na reparação de um mal, está implícito que este mal pode adquirir diversasfacetas: desde um simples dano (uma dívida inadimplida) até a mais atroz violência(tortura, morte, desaparecimento forçado, estupro). O que diferencia osdanos em geral daqueles que são produtos da violência é que estes não são, comoaponta Ruiz (2009, p. 43), uma simples transgressão da lei, mas a negação absolutado outro, a destruição, parcial ou total, da vida humana. A violência é umadas marcas fundamentais das relações humanas, razão pela qual se desenvolveramconcepções e instituições de justiça para frear a barbárie. Entretanto, desde oadvento da modernidade, mas, sobretudo, no século XX, o potencial devastadorda violência, produzida e controlada pelo Estado, tornou-se dramático, o quese evidencia no contingente enorme de vítimas que tem produzido. Referênciasconcretas abundam: genocídio dos povos indígenas das Américas, escravizaçãoe dizimação dos povos africanos, extermínio de albaneses, holocausto, torturase desaparecimentos forçados nas ditaduras latino-americanas, tráfico de pessoas,trabalho escravo e estupro de mulheres na Bósnia, genocídio em Ruanda, apenaspara citar alguns casos.No meio do caminho entre a violência e a justiça, encontra-se a memória,como condição de neutralização da primeira e de possibilidade para a segunda.6 - A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANO - Fernanda F. Bragato e Luciana A. de Paula135


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS136Apoiado em Nietzsche, Ruiz (2009) observa que o objetivo do surgimento históricoda memória foi o de trazer para o presente as consequências dos atos bárbaroscometidos pela violência no passado. Resistindo ao esquecimento, que naturalizaa violência, a memória resgata, para o presente, a dor das vítimas, não como algoabstrato que está no passado e pode ser perdoado, mas como o sofrimento e ainjustiça que persistem no presente. O que provocou o surgimento da memóriana história da humanidade foi a experiência da dor. A memória tem a funçãoprimordial de significar os atos de violência do passado como dor e sofrimentodo presente, como algo inadmissível de ser naturalizado pelo esquecimento, comouma rigorosa injustiça. Daí o esquecimento poder assumir a condição de um segundoato de injustiça que se soma ao primeiro: a violência.Para entender a dimensão da memória é preciso contrapô-la ao esquecimento.As pessoas têm o direito de superar o trauma, uma vez que eliminar a lembrançaé impossível. O que existe é a possibilidade de se dar outro sentido ao sofrimentovivido, de forma a tornar a lembrança um sentimento aliviado. A memória deveser entendida como instrumento que sinalize à sociedade que num passado recenteela estivera presa à dominação estatal. E é isso que a “cultura do esquecimento”,“cultura do medo”, ou ainda “cultura do esconder” pretendem fazer: manter oindivíduo preso ao discurso do poder, deixando-o submisso, apático e alheio àvida cotidiana. (Remigio, 2009, p. 196).O tempo que suspende a lógica cruel da história como sendo o motor doprogresso é o da memória como acontecimento político: as histórias de barbáriesencerradas no passado, quando irrompem no presente por meio dos relatos, sãoproblemáticas, problematizantes e, além disso, produtos da interpretação de experiênciasque dão o que pensar ao que até então era impensável, pois ausentesna construção histórica oficial dos discursos pré-estabelecidos. A construção dasverdades históricas que a memória traz à tona é produzida por esses processos interpretativosdos acontecimentos no presente, os quais abrem a história para fatosantes impensáveis e que, dessa maneira, podem inverter (ou suspender) o fluxocontínuo das repetições e dirigir o olhar, antes enclausurado pelo passado esquecido,para algo aberto, mutável e transformador da realidade (Badiou, 1999, p. 71-73).A memória, como acontecimento transformador, instaura uma justiça que,partindo dos processos de verdade, rompe a tentativa da violência (na figura doMal) em velar-se num “simulacro de verdade” para assim poder reproduzir-seeternamente (Badiou, 1999, p. 71-90).Nos contextos transicionais, a discussão da memória adquiriu relevo especial,


porque os períodos que antecederam as democracias (em alguns casos, sequer sealcançou a democracia ainda) constituíram experiências pródigas em violência ebarbárie. Desde os anos sessenta até metade dos anos oitenta, a maioria dos paísesna América Latina sofreu golpes militares e foi controlada por governos quepraticavam sistematicamente o sequestro, a tortura e o desaparecimento forçadode dissidentes políticos. Esses regimes de exceção impuseram constituições autoritárias,revogando direitos civis e políticos fundamentais. A partir de meadosdos anos oitenta, a maior parte dos países na América Latina esforçou-se em pôrfim aos regimes de exceção, promovendo reformas legais e políticas importantesem direção à democracia. Preocupados com a não-repetição desse quadro e coma condição das vítimas, essas sociedades têm, em maior ou menor grau, buscadoadotar medidas que neutralizem a violência no presente, por meio do exercícioda memória e da realização da justiça.Portanto, a Justiça Anamnética, que se articula com a memória, faz-se urgentee as políticas de memória que a precedem se mostram imprescindíveis, namedida em que possibilitam o rompimento dessa lógica histórica de sofrimentose barbáries.6.3 A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANOPode-se, em poucas linhas, dizer que a memória é um direito humano porquea sua ausência responde, em grande parte, pela perpetuação ou repetição dos atosde violência e de barbárie já vistos no passado e, portanto, pela multiplicação dasvítimas. Violências são as mais atrozes violações aos direitos humanos. Evidentementeque a violência não tem sua causa apenas no fato de que ela foi esquecida, seusperpetradores do passado ficaram impunes e as vítimas injustiçadas, o que significadizer que não foram suficientemente rememoradas. A violência é um fenômenocom muitas causas e não é apenas encorajada pela certeza da impunidade ou peloesquecimento, mas fundamentalmente pela absoluta desconsideração do outro.Os direitos humanos são uma construção histórica que funciona como uma“arma” contra todas as formas de barbárie. Ocorre que o discurso da memóriafoi velado no processo de positivação dos direitos humanos, pois como normatividades,os mesmos estabeleceram, desde suas primeiras declarações, um pontozero (assim como as teorias contratualistas) na história da civilização. Como se apartir daquele momento, as barbáries passadas fossem “apagadas” da história e a6 - A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANO - Fernanda F. Bragato e Luciana A. de Paula137


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS138humanidade pudesse viver livre dos fantasmas que produziu: as vítimas da barbáriee da violência. Sabe-se que essa lógica é absolutamente falaciosa e que a “culturado esquecimento” gera sobremaneira a “cultura da violência”.Quando se fala em esquecimento político, está-se referindo a uma políticado esquecimento que prevalece em detrimento de uma justiça ética e, portanto, aum componente descaracterizador do discurso progressista dos direitos humanos.A política da memória é a praxis daquela justiça que se pretende construir e queadvém de um dever de memória das vítimas passadas como condição necessáriapara uma política futura sem violência (Matte, 2005, p. 168-169). Assim, pode-sedesconstruir qualquer aparato ideológico que legitime, por meio de normatividades,formas de violência, sempre e quando esses direitos não se conformem aosimperativos éticos das vítimas como critérios de justiça.O exemplo brasileiro é paradigmático no entendimento dessa reflexão: em28 de agosto de 1979 o Congresso Nacional promulgou a Lei nº 6.683, chamadaLei de Anistia, concedendo indulto a todos que haviam cometido “crimes políticosou conexos com estes”, ou seja, os crimes de qualquer natureza relacionadoscom crimes políticos ou praticados por motivação política. Entretanto, a anistiabrasileira, após 15 anos de regime autoritário, mesmo tendo sido uma bandeira deluta dos diversos movimentos sociais que protestavam pela abertura política, foiuma medida unilateral dos militares que resolveram ceder às pressões da opiniãopública. Esse processo que muitos cientistas sociais denominaram como conservadoraceitava que os torturadores e os setores que deram sustentação à ditadurapermanecessem como fiadores da política do país até hoje, sem a devida puniçãopelas graves violações de direitos humanos cometidas.Essa tentativa de apagar o passado violento foi e continua sendo uma manobrapolítica para camuflar a violência presente, pois a recordação das desgraças atentacontra o próprio ser da política, desvelando os meios pelos quais o mesmo se assentoupara instaurar o poder. No caso brasileiro, restou claro, portanto, a formacomo o instituto da Anistia serviu como uma “faca de dois gumes” no contextode transição democrática pós-regimes de exceção. A interpretação dada à Lei deAnistia no contexto brasileiro foi “intencionalmente” equivocada, pois em vez dedar-se um caráter de “exercício da memória” para a mesma, o que se buscou foi,pelo contrário, um “exercício de esquecimento” que reforçava o apelo para umasociedade que desconhece seu passado histórico (Silva Filho, 2010).Pela perspectiva ética daqueles que não se submeteram a esta política deesquecimento, tão claramente enunciada na chamada Lei de Anistia, o impor-


tante não é simplesmente remontar às condições históricas daquele período, masentender como a questão da memória, do passado e do futuro, se coloca em umasociedade latino-americana, em especial na brasileira, onde as disputas sociais parecemsempre terminar em pactos que trazem como pressuposto o silêncio sobreo passado e uma total indiferença e desrespeito às vítimas.Por outro lado, essa política do esquecimento resta estabelecida justamentepela não reflexão sobre esses questionamentos e pela abstenção em se assumir responsabilidadeshistóricas frente às barbáries passadas e, consequentemente, frenteas que continuam presentes. No momento em que não se escutam os clamoresdas vítimas e seus testemunhos, devido ao fácil caminho de aceitação a essas políticasde esquecimento, como no caso da Lei da Anistia, se está sendo cúmplice,não da memória, mas dos atos de barbáries, em relação a quê a frase de MarkEdelman, desde o gueto de Varsóvia se confirma a cada dia: “indiferença e crimeé o mesmo” (Matte, 2008, p. 7).Dessa forma, tornar-se testemunha é um dever de cada indivíduo em respeitoàqueles que submergiram, pois a verdade que emana do relato da barbárie necessitada cumplicidade do outro, da alteridade para que se possa fazer justiça parae desde as vítimas. Os familiares dos “desaparecidos” da Guerrilha do Araguaiabuscam esse reconhecimento de justiça e memória há quase 30 anos, tentandotornar públicas as circunstâncias dos desaparecimentos forçados de seus entesqueridos e a localização dos seus restos mortais, sem que até o momento hajamdescoberto a verdade sobre o ocorrido.Enquanto a página cruel da história brasileira não for revelada, nosso Estado,denominado “Democrático de Direito” no “caput” do art. 1° da CF/88 seguirá,paradoxalmente, com fortes resquícios autoritários e policialescos e a grande parteda sociedade, submersa em uma cultura amnésica, continuará aceitando e considerandolegítimas as políticas violentas contra um “inimigo” forjado: no governoditatorial, eram os chamados “terroristas” subversivos da esquerda que podiamser mortos e torturados nos porões da ditadura; hoje em dia, são os jovens pobresdas periferias, rotulados de “traficantes”, que passam pelos mesmos suplícios nasdelegacias de polícia.Nessas condições, é um total contra-senso falar-se em “redemocratização” ou“transição democrática”, em um contexto onde imperam políticas de esquecimento,manipulações históricas e reproduções da violência. Dessa forma, é urgentea reflexão acerca da memória como constituição da própria condição humana e,não somente, na formação de uma identidade nacional. Assim, conclui-se que o6 - A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANO - Fernanda F. Bragato e Luciana A. de Paula139


direito à memória deve ser considerado um direito fundamental, essencial paraque a coletividade humana possa se reconhecer como ser político, participante deum processo, efetivamente democrático nas instituições de poder 135 .6.4 A TUTELA DO DIREITO À MEMÓRIAPARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS140Relacionar justiça e memória rompe com a lógica procedimental da justiçapositivista da modernidade, porque parte do testemunho e do olhar da vítima,privilegiando o rosto do outro como alteridade absoluta. Nesse ponto, é de extremaimportância a interpelação ética do filósofo Emanuel Levinas, que propõeuma nova imagem sobre o ser humano. Levinas (1998) aponta para uma novaexperiência da ética, a ética do reconhecimento da alteridade absoluta do outrocomo vítima que se introduz na história da humanidade. A concepção fundamentaldesse novo humanismo de Levinas, conhecida como humanismo do outrohomem, é a solidariedade e a infinita responsabilidade ética que se correlacionacom a experiência humana. Para que o fortalecimento dos direitos humanos sejaefetivo e cúmplice da memória é necessário não perder nunca de vista que “recordarpara que a história não se repita não é o mesmo que recordar para se fazer135 Para corroborar com essa afirmação, recentemente foi realizada uma importante pesquisapor duas cientistas políticas estadunidenses Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, com o propósitode “provide empirical data on the use of transitional justice mechanisms around the world andto use those data to test the claims about the negative impacto of human rights trials. (...) Our researchshows that holding human rights trials has not undermined democracy or led to na increase in humanrights violations or conflict in Latin America.” (SIKKINK; WALLING, 2007, p.428). A pesquisacomprova, por meio de um critério que mede o nível de desrespeito aos Direitos Humanos (Politicalterror Scale – PTS – é uma escala quantitativa de 1 a 5), que nos países onde houveramjulgamentos e, inclusive, a instauração de Comissões de Verdade durante os regimes autoritários,a PTS diminuiu sensivelmente em relação ao período anterior a realização desses julgamentos:“we compared the average PTS score for the five years preceding the first trial to the average PTS scorefor the ten years after the first Trial. Of the 14 countries that held human rights trials for at least twoyears, 11 improved their human rights situation after trials, and in 3 countries (Haiti, Mexico andVenezuela) the human rights situation worsened (...) It is very likely that much of this improvement isdue to transition to democracy rather than to trials. This is difficult to teste, because there are only twotransicional countries – Brazil and Guyana – that did not hold trials. If we look at Brazil before andafter transition to democracy in 1985, we see that Brazil’s average score on the Political Terror Scale was3.2 in the five years before transition and worsened to an average of 4.1 for ten years after transition.Brazil experienced a greater decline in its human rights practices than any other transitional country inthe region. The Brazil case suggests that transition to democracy, in and of itself, does not guarantee animprovement in basic human rights.” (SIKKINK, WALLING, 2007, p.437).


justiça: no primeiro caso pensamos em nós mesmos e, no outro, nas vítimas”(Matte, 2005, p. 9).Como observa Brito (2009, p. 72), a política de memória pode ser definidade duas maneiras. De forma restrita, consiste nas políticas para a verdade e paraa justiça (memória oficial ou pública); vista mais amplamente, trata-se da formacomo a sociedade interpreta e apropria o passado, em uma tentativa de moldar oseu futuro (memória social). As “políticas de memória” sociais e culturais constituem,assim, parte integral do processo de construção das identidades coletivassociais e políticas, que definem o modo como diferentes grupos sociais veem apolítica e os objetivos que desejam alcançar no futuro. Desse modo, a memóriaadquire a condição de luta sobre o poder e sobre quem decide o futuro, já queaquilo que as sociedades lembram e esquecem determina suas opções futuras. Aautora observa, nesse sentido, que as memórias continuarão a ser retrabalhadas eseus significados renovados, independente de haver ou não justiça transicional. Defato, as memórias são constantemente revisadas para serem adaptadas às identidadesatuais. As sucessivas renovações da memória do Holocausto nos dão evidênciadisso. (Brito, 2009, p. 73). Então, por que justiça transicional?A resposta é simples: por uma questão de justiça ou porque a consideração damemória pelos mecanismos de justiça lida com uma questão que a memória socialnão consegue dar conta: a responsabilidade. Ao se fazer “justiça” às vítimas, pormeio da imposição de punições aos responsáveis pela violência e da compensaçãodo seu sofrimento com as medidas cabíveis, a justiça de transição transcende opróprio direito para irradiar efeitos para além dos autos do processo e da relaçãointerindividual, tornando-se substancialmente política.Muitos dos postulados da justiça que privilegia a memória como vetor dereconciliação social encontram-se presentes nos mecanismos da justiça de transição,que, ao se voltar para o passado, pretende reconstruir o futuro na dupladimensão que Reyes Matte aponta acima. De acordo com Van Zyl (2009, p.32), a justiça transicional pode ser definida como o conjunto de esforço para aconstrução da paz sustentável após um período de conflito, violência em massaou violação sistemática dos direitos humanos. Os objetivos da justiça transicionalcircunscrevem-se a processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimespassados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradorasde abuso e promover a reconciliação. Trata-se de um conjunto de estratégias formuladaspara enfrentar o passado assim como para olhar o futuro a fim de evitara repetição dos conflitos e das violações.6 - A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANO - Fernanda F. Bragato e Luciana A. de Paula141


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSAssim, todas essas medidas objetivadas pela justiça de transição encontramseu fundamento também na necessidade de se evitar novas catástrofes impostaspor regimes autoritários ou totalitários que se utilizam do terror do Estado paraalcançar seus objetivos, mediante o cometimento de graves violações aos direitoshumanos (Santos; Brega Filho, 2009, p. 155).Nesse sentido, as principais abordagens da justiça transicional podem serdefinidas da seguinte forma, conforme o Relatório do Centro Internacional paraa Justiça de Transição (ICTJ, 2004/2005, p. 1):• Julgamento dos responsáveis pelos abusos em matéria de direitos humanosnos planos nacional e internacional;• Determinação do caráter e da magnitude total dos abusos do passado pormeio de iniciativas que busquem a verdade, tais como “comissões da verdade”nacionais e internacionais;• Reparações compensatórias, restauradoras, reabilitadoras e simbólicas àsvítimas do regime político anterior;• Reformas institucionais que incluam, por exemplo, a “depuração administrativa”,isto é, “o processo de exclusão de pessoas de cargos públicos sobreas quais se tem conhecimento da prática de abusos em matéria de direitoshumanos ou participação em práticas de corrupção”;• Promoção de reconciliação em comunidades divididas, o que inclui trabalharcom as vítimas em mecanismos de justiça tradicional e facilitar areconstrução social;• Construção de monumentos e museus para preservar a memória sobre opassado;• Consideração da questão de gênero com o objetivo de melhorar a justiça paraas mulheres que foram vítimas de violações dos direitos humanos.142A incorporação da memória, pelos mecanismos rotineiros da justiça, é fundamentalnos contextos de transição. Mas para isso, a própria “rotina” da justiça,que segue operando nos moldes do positivismo jurídico, precisa ser ressignificadapela memória, que aponta para um compromisso político. A apuração das responsabilidades,função primordial do Estado Democrático de Direito, deve sero vetor para a transformação social e para a prevenção da repetição da violência


no presente e no futuro. Sem que os setores da sociedade mais envolvidos com osmecanismos da justiça de transição assumam esses compromissos, menos possibilidadede efetivação ela terá.6.5 CONSIDERAÇÕES FINAISPara concluir, voltemos à Zaira, cidade da memória e dos “altos bastiões”,onde na “onda de recordações que reflui, a cidade se embebe como uma esponjae se dilata. Uma das descrições de Zaira tal como é hoje deveria conter todo opassado de Zaira. Porém a cidade não conta seu passado, ela o contém como aslinhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãosdas escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmentoriscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras” (Calvino, 2007, p. 25-26). Da mesma forma, a memória se inscreve na história da humanidade comoum desdobramento infinito, culto paradoxal do presente, combate, esboço e artede um instante pleno. Nesse espaço de tempo há desconstrução e reconstrução,montagem de tempos heterogêneos e processo por intermédio do qual se produzo conhecimento e as “re-presentificações que interrogam os indícios e traços queficaram no passado” (Catroga, 2001, p. 45).Walter Benjamin descreve em sua “teoria da alegoria” essa tensão permanenteentre duas forças que coexistem no tema da memória: eternidade e transitoriedade.A alegoria que se forma nesse modelo dialético, o qual recusa a ideia de continuidade,produzindo a descontinuidade da história e seu caráter inacabado “ressaltaa impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de perseverar na temporalidadee na historicidade para construir significações transitórias” (Gagnebin,1999, p. 38). Essas significações transitórias, porém, marcantes são as políticasda memória tuteladas pela justiça de transição que tratamos e as quais interferemno tempo presente como verdadeiros acontecimentos. As políticas da memóriase apresentam portanto como forças críticas de ruptura com o status quo: abrema história por meio de possibilidades, anteriormente fechadas pelo tempo vazioe linear do esquecimento.6 - A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANO - Fernanda F. Bragato e Luciana A. de Paula143


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.BADIOU, Alain. Compêndio de Matapolítica. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo, Brasiliense,1984.BRITO. Alexandra Barahona de. Justiça transicional e a política da memória:uma visão global. Revista Anistia Política e Justiça de Transição – Ministério daJustiça, Brasília, N. 1, jan./jun. 2009. p. 56-83. Disponível em: Acesso em: 20 setembro <strong>2011</strong>.CALVINO, Italo. Las ciudades invisibles. Madrid, Siruela, 2007.CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra, Quarteto,2001.PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS144GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo,Perspectiva, 1999.INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE. Annual Report2004/2005. P. 1. Disponível em http://ictj.org/sites/default/files/ICTJ_AnnualReport_2004-5.pdf.Acesso em 21set<strong>2011</strong>LEVINAS, Emanuel. Humanismo del otro hombre. 2. ed. Madrid: Caparrós,1998.MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005._______. Justicia de las víctimas: terrorismo, memória, reconciliación. Barcelona:Anthropos, 2008.REMÍGIO, Rodrigo Ferraz de Castro. Democracia e anistia política: rompendocom a cultura do silêncio, possibilitando uma justiça de transição. Revista AnistiaPolítica e Justiça de Transição – Ministério da Justiça, Brasília, N. 1, jan./jun. 2009.p. 178-202. Disponível em: Acesso em: 20 setembro <strong>2011</strong>.RUIZ. Castor M. Bartolomé. Os paradoxos da memória na crítica da violência.In: RUIZ. Castor M. Bartolomé (Org.). Direito à justiça, memória e reparação. Acondição humana nos estados de exceção. 1 ed. São Leopoldo: Casa Leiria, 2010.SIKKINK, Kathryn. WALLING, Carrie Booth. The impact of human rights


trials in Latin America. In Journal of Peace Research, Los Angeles, London, NewDelhi, Singapore, vol.44, n.4, 2007.SANTOS, Roberto Lima; BREGA FILHO, Vladimir. Os reflexos da “judicialização”da repressão política no Brasil no seu engajamento com os postulados dajustiça de transição. Revista Anistia Política e Justiça de Transição – Ministério daJustiça, Brasília, N. 1, jan./jun. 2009. p. 152-177. Disponível em: Acesso em: 20 setembro <strong>2011</strong>.SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção dahistória viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização doDireito à Memória e a Verdade. In: Caderno IHU Ideias, São Leopoldo, UNI-SINOS, 2010. p.11VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito.Revista Anistia Política e Justiça de Transição – Ministério da Justiça, Brasília, N.1, jan./jun. 2009. p. 32-55. Disponível em: Acesso em: 20setembro <strong>2011</strong>.6 - A MEMÓRIA COMO DIREITO HUMANO - Fernanda F. Bragato e Luciana A. de Paula145


Baiana - acrílico s/MDF – 41,5 X 27cmNilda Arruda Gregoski – Oficina de Criatividade/ HPSP


7 NILCE AZEVEDO CARDOSO:RELEMBRAR É PRECISOPensei não aguentar ver tanto sofrimento…A recuperação foi lenta…Confio na justiça que lhe será feita.Zilda Azevedo Cardoso 138Solon Eduardo Annes Viola 136Thiago Vieira Pires 137Quando convidamos Nilce Azevedo Cardoso para participar do Relatório<strong>Azul</strong> de <strong>2011</strong>, imaginamos que o melhor caminho seria ouvir seu depoimento ecomentá-lo, em razão do que Nilce já havia escrito para a edição do Relatório <strong>Azul</strong>de 1997. Pensamos em um roteiro com cinco temas: a sua vida pessoal antes damilitância, a militância estudantil e clandestina, a experiência pessoal do horrorvivido nas prisões políticas da ditadura militar-civil, a lenta recuperação para vidae a permanente esperança de justiça como forma de constituir uma democraciasem disfarces.Em um fim de tarde gelado de agosto, no aconchegante consultório de paredesclaras, mesa organizada e estante repleta de livros de psicologia, psicanálise,educação e outras áreas do saber humano. Nilce nos esperava sorridente, embora7 - NILCE AZEVEDO CARDOSO: RELEMBRAR É PRECISO - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires136 Doutor em História pela Unisinos, Professor do Programa de Pós-Graduação em CiênciasSociais da Unisinos, membro da rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e Coordenadordo Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Responsável pela condução daentrevista e redação do texto.137 Graduando em Ciências Sociais pela Unisinos. Bolsista de Iniciação Científica – UNIBIC.Responsável pela condução da entrevista, captação de imagem e áudio, transcrição e redação do texto.138 Fragmentos de carta escrita pela mãe de Nilce e acrescida ao texto produzido por esta paraa edição do Relatório <strong>Azul</strong> de 1997.147


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSum pouco aflita. Iríamos reabrir feridas nunca de todo cicatrizadas, nela, em nóse nas gerações que vieram depois. O roteiro da entrevista já havia sido enviadoalguns dias antes. Nilce sabia quais eram os pontos que pretendíamos abordar eo que eles representavam em sua memória.Ficou explícito que avançaríamos até o limite do suportável, para ela e paranós. Pararíamos sempre que a dor superasse a emoção e tentaríamos de novo atéonde fosse humanamente possível tentar. Enfrentaríamos a dor, motivados peladimensão da memória refeita, da verdade a ser buscada e da justiça a ser exigida.Por certo, deixaríamos lacunas. Algumas delas, entretanto, não nos incomodamporque, afinal, a história é uma construção permanente movida pela condiçãohumana de aprender, fazendo e refazendo os caminhos da vida 139 .Contudo, com a transcrição da entrevista percebemos que não seria necessáriocomentá-la. O depoimento de Nilce é preciso, claro, transparente, fala porsi. Ao longo do texto, incluímos algumas notas de rodapé 140 para explicar algumtermo próprio da época, alguma expressão característica, um nome historicamenteimportante ou importante para a vida da entrevistada. Este foi nosso papel.Convidamos os leitores a viver o texto, a emocionar-se, a compreenderquantos e quantas, como Nilce, escreveram suas histórias entremeadas com ahistória do período, carregando consigo a construção da nossa tênue democracia.Revisando o texto percebemos ter em mãos mais que um depoimento. De fato,temos aqui um documento que saúda a vida, reescreve a história e rompe com apolítica do esquecimento.7.1 A ENTREVISTADe Ribeirão para a USP e o movimentoSV: Nós começamos hoje uma entrevista com a Nilce Azevedo Cardoso, quetem uma experiência de vida fantástica que o Brasil precisa conhecer... Já conhece148139 Outras lacunas, as ainda sustentadas por quem oprimiu e disseminou o terror de Estado nopaís – e ainda o faz, escondido pelo anonimato dos arquivos fechados e das paredes – esperamos quesejam mostradas à sociedade o quanto antes, a fim de que a história seja mais que uma só versão.140 Sempre que necessário recorrer a fontes que não o conhecimento acumulado pelos responsáveispela entrevista, boa parte das informações constantes nas notas do texto foram obtidas daWikipédia, enciclopédia virtual que, embora permita eventuais imprecisões em seus verbetes, segueuma ideia de construção e compartilhamento de saber de forma democrática, tal qual a ideia desociedade por que Nilce e outros(as) militantes lutaram entre 1964 e 1985 no Brasil.


em parte, mas precisa conhecer mais. Vamos perguntar, está bom? A gente precisaque você se identifique, conte como você chega ao movimento social, como vocêchega à Ação Popular, o que lhe levou a essas coisas maravilhosas da vida?NC: Eu acho muito interessante ter recebido esse convite, porque eu façomuita questão, parece que a minha militância atual está engajada nessa questãoda memória, não só da memória, como da verdade e da justiça. Acho que nessemomento político brasileiro a gente está necessitando recuperar a memória parafazer política e mudar essa realidade. Eu faço muita questão de estar à disposiçãopara esse momento. Não é simples, antes eu falava chorando, agora já consigonão chorar. Então, agora fica melhor.Eu sou Nilce Azevedo Cardoso tenho 66 anos, dois filhos maravilhosos, Semíramise Paulo, que são casados, e tenho quatro netas – três e meia (risos) – umaestá na barriga ainda. Maravilhosas! E estão atualmente dando um novo sentidopara a minha vida.Sou oriunda do interior de São Paulo, nasci em Orlândia e em seguida, comdois anos, fui morar em Ribeirão Preto. Meu pai e a minha mãe eram professores.Eu sou filha de educadores, vivi educação desde que nasci! Eu ia com o meupai nas escolas do interior quando ele passou de professor para inspetor, depoisdelegado de ensino, então a gente visitava as fazendas, aquelas fazendas pequenas.Lembro assim, de ir com ele, e ele desenvolvendo os saberes da matemática, astabuadas…, razão porque eu acabei fazendo o curso de Física na universidade.Eles, os meus pais, eram de valores muito firmes. Falavam sempre de viver emuma sociedade justa, defendiam uma educação que fosse absolutamente sensívele crítica, queriam que as crianças aprendessem muito. Então a gente ia herdandodesde cedo os valores morais da vida familiar. Meu pai era fortemente contra acorrupção, os desmandos…, como se diz: “Hay gobierno yo soy contra” (risos).Ele foi vereador em Ribeirão Preto 141 . Depois apoiou a candidatura do Jânio àpresidência da República. A gente subia no Jeep dele e colocava umas vassourinhas.Desde muito cedo a gente queria muito lutar contra a corrupção, nem sabia oque era, mas achava uma festa grande entrar com aquelas vassourinhas. Esse é oclima de minha infância em Ribeirão Preto. Meu sonho era ser bailarina. Quandocheguei à idade do vestibular, tive que optar: ou eu ia para a faculdade, ou ia7 - NILCE AZEVEDO CARDOSO: RELEMBRAR É PRECISO - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires141 O pai de Nilce, Álvaro Cardoso, teve mandato de vereador pelo antigo PSD em RibeirãoPreto, de 1º de janeiro de 1952 a 31 de dezembro de 1955.149


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS150ser bailarina, porque não dava para conciliar as duas coisas, não tinha dinheiropara tanto. Optei por fazer vestibular para o curso de Física. Fiz Física na USP 142 .Então, em 1964, passei no vestibular da USP. Entrei eu e meus sonhos, aindaadolescentes, e os tanques, só que eu prestei vestibular. Fiz até prova oral, comoera norma daquela época.Então, houve uma reviravolta que fez com que aquela guria, que veio dointerior, que tinha sonhos, muitos sonhos de menina, tinha sido bailarina, tinhasido também rainha na juventude, compreendesse que a vida estava mudandomuito rapidamente. Uma das minhas primeiras experiências em 1964 foi a imediatacassação do Professor Mário Schenberg 143 . Ele foi um dos primeiros cassadose eu fiquei furiosa, pois ele era um dos principais cientistas brasileiros. Nãoconseguia admitir que um professor sumisse e ninguém falasse nada, ninguémexplicava onde ele estava. Tinha sido meu professor, e como professor era umafigura. E assim foi, sumia um, depois sumia outro. Então, começou aquele climana faculdade que a gente tinha que dar conta de entender. Rapidamente dentrode mim foram ocorrendo transformações. Eu tinha 17 anos e tentava entender oque estava acontecendo no Brasil e no mundo todo, porque era uma transformaçãomundial que estava acontecendo. Revolução sexual, liberdade para todos, eraproibido proibir. Então, de repente, começavam a tolher as liberdades. A liberdadeé parte da vida do ser humano.142 Tendo cursado Física, Nilce recebeu certificação em Física e Matemática, como previa alegislação do período.143 Considerado um dos pioneiros da Física moderna no Brasil, Schenberg foi contemporâneode Albert Einstein, com quem desenvolveu diversos trabalhos. Em paralelo com sua atuação acadêmica,Schenberg sempre participou ativamente da discussão dos problemas político-econômicos doBrasil. Iniciou em São Paulo a campanha O Petróleo é Nosso. Foi eleito deputado estadual em 1946pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e posteriormente cassado e preso por motivos políticos.Em 1962, foi novamente eleito deputado estadual pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), masteve seu diploma impedido, após ser acusado de pertencer ao Partido Comunista. Em 1964, foipreso novamente pela ditadura militar, permanecendo foragido por cinco meses. Seu mandadode prisão somente foi revogado devido à pressão da comunidade científica internacional. Com adeclaração do AI-5, em 1969, foi aposentado compulsoriamente e proibido de entrar no campusuniversitário. Essa situação somente foi revertida após a abertura política. Disponível em: . Acesso em 23 set. <strong>2011</strong>.


7.2 PORQUE NAS ÉPOCAS ESCURASSE ESCREVE COM TINTA INVISÍVEL? 144De Ribeirão Preto fui morar no Centro Residencial da USP, o CRUSP 145 . Fuimorar num lugar que era um centro de efervescência política. Era um local ondetodos se reuniam para conversar, jogar, para fazer concursos de tudo quando eracoisa, para fazer bailes, dançar, para namorar e, lógico, para conversas políticas.Então, era uma vida intensa e tudo acontecia ao mesmo tempo. Não se deixavade ser militante para ir dançar, para ser rainha da festa. E por que não? Eu já viviaem um tipo de vida quase clandestina 146 . Não havia contradição entre uma ideiae outra. Foi neste universo que encontrei e conheci um pessoal que era da JUC –Juventude Universitária Católica 147 . Nós tínhamos um grupo ecumênico que seperguntava qual o lugar dos católicos na sociedade. Usávamos um método: o ver,julgar e agir para fazer escolhas e assumir compromissos. Fomos conhecer algumasdas favelas de São Paulo para aprender a forma de viver do povo. E aí fazíamosum trabalho muito bonito, muito consequente, de conscientização. Embora nãocompreendesse a política brasileira, ia a todas as assembleias do movimento dosestudantes. Estas foram minhas primeiras aprendizagens.144 Título recolhido do Livro das Perguntas, de Pablo Neruda (Porto Alegre: L&PM Pocket,2004, p. 31).145 O CRUSP foi construído para alojar os atletas dos Jogos Pan-Americanos de 1963, queocorreram em São Paulo. No período da ditadura militar, além de um conjunto residencial paraestudantes, o conjunto abrigou além dos alunos da Universidade de São Paulo, hippies, músicos,atores e perseguidos políticos. O CRUSP se tornou um centro que agrupava jovens que se opunhamao regime militar, havendo grande mobilização política e cultural. Na madrugada de 17 de dezembrode 1968, quatro dias após o AI-5 ter sido decretado, foi invadido pelos militares em uma operaçãode guerra, onde muitos estudantes foram presos. Depois dessa invasão, muitas outras se seguiram.146 A clandestinidade foi uma condição imposta aos militantes das organizações opositoras aoregime militar em razão das restrições políticas impostas ao país pela ditadura e seus decorrentesAtos Institucionais. Foi a forma encontrada para resistir à repressão das polícias políticas.147 A Juventude Universitária Católica (JUC) foi uma associação civil católica reconhecidapela hierarquia eclesiástica em 1950 como setor especializado da Ação Católica Brasileira(ACB). […] Constituiu-se num importante movimento no seio das universidades, fornecendodiversos líderes para a jovem União Nacional dos Estudantes (UNE). […] A crescente influênciado marxismo na América Latina fez com que […] houvesse uma crise com a hierarquiada Igreja. Muitos de seus membros ajudaram a fundar a Ação Popular, em 1962. Engajadosna política universitária e em movimentos de cultura e educação popular, os militantes daJUC […] passaram a ser perseguidos após o golpe militar de março de 1964. Disponível em:. Acessoem: 23 set. <strong>2011</strong>.7 - NILCE AZEVEDO CARDOSO: RELEMBRAR É PRECISO - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires151


Eram poucas as mulheres que participavam, como eram poucas as que estudavamno curso de Física naquela época. Discutíamos a cassação dos professores,como foi o caso do Mário Schenberg. Tive outros professores dos quais guardoaprendizagens, como o Sala 148 e o professor Goldemberg 149 , que não chegarama ser perseguidos. Discutíamos possíveis caminhos de resistência, as diferentesformas de pensar, as correntes de militância dos Partidos Comunistas e da AçãoPopular 150 , ainda muito próxima da JUC, que estava articulada – desde 62 –, fazendoas suas ações de trabalho, de conscientização, escrevendo o seu manifesto.Então, passo a fazer parte da Ação Popular quando a ditadura se radicaliza comos Atos Institucionais 151 .PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS152SV: E já na clandestinidade?NC: Não, ainda não! Eu morava no CRUSP, não tinha porque estar clandestina.Participava das passeatas, levava as bolinhas de gude – coitados dos cavalos–, mas em todo o caso, como é que a gente ia conseguir fugir da repressão se nãotivesse as bolinhas de gude? Muito nós fugimos da Praça da Sé porque a repressãolançava as bombas [de gás lacrimogêneo] – e hoje nós estamos vendo, é tudo igual.A gente se protegia com o lenço molhado, aquela história toda. Eu gostei mesmodo movimento estudantil da época em que eu participava e da minha época de148 Oscar Sala foi professor emérito do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.149 José Goldemberg foi professor, físico e político brasileiro, membro da Academia Brasileira deCiências. Foi reitor da Universidade de São Paulo (1986-1990) e presidente da Sociedade Brasileirade Física (1975-1979). No governo federal, foi secretário da Ciência e Tecnologia (1990-1991),ministro da Educação (1991-1992) e secretário do Meio Ambiente (março a julho de 1992), duranteo governo de Fernando Collor de Mello. Desde 2002 é secretário do Meio Ambiente do Governodo Estado de São Paulo. Disponível em: .Acesso em 23 set. <strong>2011</strong>.150 A Ação Popular (AP) foi um movimento político nascido em junho de 1962 a partir deum congresso em Belo Horizonte, resultado da atuação dos militantes estudantis da JuventudeUniversitária Católica (JUC) e de outras agremiações da Ação Católica. A Ação Popular integravaa juventude estudantil e operária de vários estados brasileiros espalhadas em bases municipais, e noinício dos anos 60, ganhou expressividade política dentro da UNE (União Nacional dos Estudantes).151 Os Atos Institucionais foram decretos emitidos durante a ditadura militar. Serviram comomecanismos de legitimação e legalização das ações políticas ditatoriais dos militares, estabelecendopara eles próprios diversos poderes extra-constitucionais, como, por exemplo, o fechamento docongresso nacional, a suspensão do habeas-corpus, decretar estado de sítio, etc. Os Atos Institucionaiseram um mecanismo para burlar a Constituição Brasileira de 1946, esta, que se considerada,tornaria inexecutável o regime militar.


faculdade. Porque realmente a gente vivia com muita intensidade. Acho que estaintensidade é que vai nos dar muita força para muita coisa depois.SV: Então você entra para a Ação Popular…NC: Entrei na Ação Popular e passei a fazer parte de uma célula 152 – nãosabia o que era uma célula, mas era parecido com as outras organizações que combatiamo governo militar. Tive contato com a direção nacional, e fui convidadapara fazer parte do setor de serviços. Era um trabalho absolutamente invisível 153 .Passei a fazer a conexão com a direção nacional, estudar, montar infraestruturapara a ação política, pensar a vida interna da organização. Esta seria a tarefa. Euestava ali para o que desse ou viesse. Não sabia bem o que aquilo significava, muitomenos o que significava ser invisível.Daí em diante minha vida mudou, foi outra vida. Eu já havia concluído aslicenciaturas de Física e Matemática e tinha sido convidada para dar aula no Colégiode Aplicação da USP – estava dando aula como professora de Física – quando oCRUSP foi invadido e todos que lá estavam foram presos. Quando da invasão, eunão morava mais no lá, mas meu nome poderia estar na lista de ex-moradores. ODOPS 154 roubou todos os documentos que encontrou, entre eles a lista de todosque moravam no CRUSP – porque morar no CRUSP já era considerado um atosubversivo pela repressão. Então, precisei ir para a clandestinidade.Meus primeiros passos começaram com estudos que incluem desde literatura– li os Subterrâneos da Liberdade 155 –, passando pelos pensadores clássicos, atéchegar aos socialistas. Tudo muito difícil, mas que eu tentava entender. Imagina,a minha cabeça era de uma de menina do interior, ainda ligada a religião e estu-152 Célula era a expressão utilizada durante a ditadura militar para denominar um grupo demilitantes adeptos do movimento político de resistência ao regime que pertenciam a um organismomaior, muitas vezes a vertentes partidárias como, por exemplo, PCB (Partido ComunistaBrasileiro) ou PCdoB (Partido Comunista do Brasil), ou vertentes ideológicas, como o Castrismo(em referência ao modelo Cubano), o Maoísmo (em referência ao modelo Chinês), o Marxismo/Leninismo (em referência a um período do modelo Soviético) etc.153 A invisibilidade era associada à clandestinidade. Nela, os militantes passavam a compor avida orgânica do grupo ao qual dedicavam seu tempo e suas ações. Exigia uma intensa disciplinapessoal e, normalmente, o rompimento com a vida não militante.154 O DOPS – Departamento de Ordem Política e Social – foi um dos principais órgãos derepressão da ditadura militar.155 “Os Subterrâneos da Liberdade” é um romance escrito no início da década de 1950 peloescritor baiano Jorge Amado (1912-2001). A obra é dividida em três partes: “Os ásperos tempos”,“Agonia da noite” e “A luz no túnel”.7 - NILCE AZEVEDO CARDOSO: RELEMBRAR É PRECISO - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires153


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS154dante de Física! De repente, estou lendo sobre materialismo histórico, dialéticae mudando minhas categorias de análise através das leituras e da discussão comos companheiros. Era uma relação entre pessoas. Não é só através do texto queas pessoas e os pensamentos se modificam, mas na relação entre as pessoas. Oque aconteceu é que passei a aprender sobre segurança, sobre como agir, comochegar em um ponto 156 , como colocar em prática as normas de segurança. Umadas pessoas com quem apreendi era uma mulher e então a gente pôde conversarentre mulheres 157 .Neste momento vem o AI-5 158 , que gera uma reviravolta. Era urgentíssimo setomar novas medidas de segurança pessoal e de segurança da organização. Porquea partir daí todo mundo tinha que tomar uma decisão de vida. Então, novas possibilidadesde trabalho apareceram. Nisto, a AP tinha decidido que seus militantesdeveriam se integrar na produção. Tanto no campo como na cidade. Esta decisãotinha duplo objetivo: de aprendermos com os operários e de participarmos de suaslutas, assim como estar junto com os setores sociais que, pensávamos, dirigiriao processo de lutas contra a ditadura. Então, a gente tinha que aprender. E foi aépoca de maior aprendizagem da minha vida.Bom, com o biótipo de quem nunca tinha pegado em uma vassoura, decidiir para a fábrica. Então, saio do Colégio de Aplicação e me preparo. Nessa época,eu conheço o meu primeiro marido, o Antônio Ramos Gomes. Casamo-nos naIgreja do Butantã. Fizemos uma festinha de casamento, nos despedimos de todossem muita explicação e fomos para o ABC 159 , morar e trabalhar. Trabalhei na Rodhiacomo operária, vivendo vida de operária. Vivi em um bairro onde vi muita156 Ponto era a forma como era chamado qualquer local de encontro dos militantes.157 Aqui, Nilce se refere à Maria José Jaime, primeira esposa de Jair Ferreira de Sá, ambos dirigentesda Ação Popular.158 O AI-5 é considerado o mais duro dos Atos Institucionais. Promulgado em 13 de dezembrode 1968 ficou conhecido como o golpe dentro do golpe. Conferia ao Governo Federal poderes ditatoriais– autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciaçãojudicial, a decretar o recesso do Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, suspenderdireitos políticos (o que incluía: liberdade vigiada, proibição de frequentar determinados lugares,domicílio determinado etc), decretar estado de sítio, decretar o confisco de bens, suspensão dohabeas-corpus etc.159 Região localizada na área metropolitana de São Paulo, caracterizada por uma das maioresconcentrações de indústrias do país. É formada pelos municípios de Santo André, São Bernardodo Campo e São Caetano do Sul, vindo da inicial do nome de cada um dos santos homenageadosa sigla ABC.


pobreza. Agora, quando eu vejo aqueles lugares da África, lembro perfeitamentedo lugar em que morei naquela época de operária.Então, aprendi muito. Logo que eu entrei na fábrica, fiz o teste [de seleção] –que a gente sabia que tinha que errar algumas coisas – e em seguida fui admitida.Eu sempre consegui emprego com facilidade nas fábricas.Precisava me adaptar, daí que me emprestaram roupas, me fizeram tingir ecortar o cabelo. Um cabelinho bem curto – como homem assim – sem pinturanenhuma. Aí quando eu chego lá com as meninas, as operárias, eu conto “a nossahistória de vida”, que eu era recém-casada, que estávamos chegando do interior,aquela historinha. E aí foi ótimo! Porque as operárias me disseram, na hora determinar o turno de trabalho: “Tu não vai ir ver o teu marido desse jeito, não é?Não, não! Vou ensinar a te pintar!”. (risos) E então usavam batonzinho, maquiageme diziam: “Olha, você poderia, no teu primeiro salário, comprar umas roupinhasassim, um pouco mais… Para ficar mais bonitinha, pois você vai se encontrarcom o seu marido”. (risos) Eu achei ótimo! (risos) Mas foi muito bom! Tive umarelação ótima com essas meninas. Porque elas me ensinaram tudo. Como é quemarcava o ponto, como é que ficava ali, como é que ia ao banheiro… tudo! Eu nãoconhecia o jeito de pensar, de viver, de conviver com as coisas daquele cotidiano.Lá, cada dia morria um bebê. Nunca tinha visto morrer bebê na minha vida! Aíelas enterravam e no outro dia estavam trabalhando. A sensibilidade das operáriasmudou meus valores, deu flexibilidade para enxergar o mundo, compreender avida, encarar a morte. A morte ali fazia parte do cotidiano.7.3 A VINDA PARA O SUL E O HORRORFoi nesse momento que ocorreu uma nova mudança. A repressão políticadesarticulara as organizações e a AP precisava ser reconstruída no Rio Grande doSul. Vários trabalhos tinham que ser reconstruídos, pois muitos companheirostinham sido presos. Então, pediram para virmos para cá. Quem vinha mesmo erameu marido e eu vim por ser sua mulher. Fiquei furiosa! Era uma situação típica daépoca e valia o mesmo para a militância clandestina. E eu vim, de arrasto, mas vim.Quando cheguei, fui de novo para a fábrica. Precisávamos ganhar nossasvidas. Eu era operária, então fui trabalhar, receber salário, me sustentar. Então,além do trabalho profissional, tinha a ação política para ser feita. Precisava fazer7 - NILCE AZEVEDO CARDOSO: RELEMBRAR É PRECISO - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires155


panfletagem e pichações. A vida era intensa, mas não havia cansaço. Eu acho queos jovens não cansam quando se movimentam por razões sociais.As condições de trabalho na fábrica eram horríveis. Tensão o tempo todo.Os riscos de acidentes de trabalho e de mutilação eram constantes. Aquela tensãoque as trabalhadoras viviam… não gosto nem de lembrar o horror que eu tinha deestar ali. Um dia machuquei um dedo e fiquei três meses de licença, mas semprefazendo o trabalho de militante. Recuperada minha saúde deixei a fábrica e volteia trabalhar dando aula de matemática na Escola Cecília Meireles, que ficava naRua Venâncio Aires [em Porto Alegre]. Tinham ocorrido muitas prisões em SãoPaulo e foi nesta situação que fui presa.Foi em um ponto que tinha sido entregue 160 para a polícia por um estudanteque tinha caído 161 , e ainda não tinha dado tempo de trocar. Foi assim que eu fuipresa. Além de mim, acho que umas três pessoas mais, pois a polícia política aindaficou cobrindo esse ponto durante um tempo. Fui presa no dia 11 de Abril de 1972.PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSSV: Em uma época que uma parte grande da Ação Popular estava sendopresa também.NC: Tinha muita gente da Ação Popular sendo presa no sul. A maior quedano sul ocorreu em 1972. Bom, aí foram caindo um por um. E aí caiu todo mundo,menos os operários, nenhum deles foi preso, pois só eu sabia como encontrá-los.SV: Como foi a experiência da prisão?NC: A primeira sensação é a mudança da noção de tempo. O tempo nãomais é aquele do relógio. A hora que eles nos enfiam o capuz na cabeça o tempose vai. Já no carro, no caminho do DOPS, o Pedro Seelig 162 começou a me soquear.Minha reação foi exigir ser solta. “Eu não sei quem vocês são, me larga”. Jána entrada do DOPS me colocaram o capuz, então minha reação foi ficar dura.Estaqueei! Então diziam: “Bah, a moça está com tanto medo que não pode nem156160 Entregar era o mesmo que “delatar”, “revelar”. Frequentemente, alguém pego pelas forçasde repressão, era torturado para “entregar” os companheiros de resistência ao regime ou os pontosem que estes se reuniam.161 Cair era o termo equivalente a “ser preso(a)”.162 Pedro Carlos Seelig era chefe regional do DOPS e conhecido torturador. Seu nome apareceem diversos depoimentos de pessoas que sofreram torturas executadas ou comandadas por ele. Éconsiderado por muitos torturados como o mais “frio, eficiente e covarde” torturador que já seteve notícia no Rio Grande do Sul.


andar”. Imagine o medo. Claro que eu estava com medo! As pernas endureceram.Para me mover os policiais iam me dando pontapés e empurrões.TP: Onde era o ponto onde a senhora foi presa?NC: Era lá na Oscar Pereira, sabe a Oscar Pereira? Subindo o cemitério, depoisvira. Oscar Pereira e tem um número, depois a gente pode até ver.TP: E o DOPS para onde a senhora foi levada era onde?NC: Ali na Avenida João Pessoa, onde é a Secretaria de Segurança Públicaainda hoje. Só que a gente entrava por trás. João Pessoa com a Avenida Ipiranga 163 .Entrávamos e botavam o capuz. Fiquei paralisada e logo um policial me deu umempurrão: “Anda! Põe um pé na frente do outro”. E naturalmente com um bompontapé nas costas todo mundo sai do lugar. Fui levada direto para a câmara detortura. A gente entrava numa sala, em outra, depois outra. Era uma sala fechada.E aí imediatamente os policiais fizeram tudo que as pessoas agora andam teorizando.Quer dizer, vão logo tentar destituí-la do seu eu, da sua dignidade, da suacondição humana. Procuravam reduzir a condição humana a nada. Reduzir a umnada corporal, a um nada psíquico.Os policiais tinham todo o seu comportamento organizado. Organizado, passopor passo, como em uma cartilha sendo executada para destituir o ser humano desua dignidade. Então, eles foram fazendo tudo isso. A primeira coisa que fizeramfoi me colocar no meio daquele mundaréu de homens – não sei de onde saiu tantagente – e me mandaram tirar a roupa. Como não tirei, me arrancaram as roupas.Fiquei nua na frente daquele povo, era um horror. Até hoje quando eu sonho– e eu continuo sonhando até hoje – sinto o horror de estar ali nua na frente detodas aquelas caras horrorosas, ouvindo os xingamentos e as ofensas. Xingamentosde nomes que eu nunca nem tinha ouvido falar: “Sua isso, sua aquilo, sua aquilo,sua aquilo… Comunista filha disso, filha daquilo”. Fiquei ouvindo. Então,tiraram o capuz – e eu fiquei vendo as caras deles ainda por cima –, seguraramos meus cabelos e começaram a me soquear. E era soco para tudo quanto é lado.Meu corpo, da cabeça aos pés, recebeu socos e pontapés. Até hoje não sei comoum ser humano aguenta aquilo tudo. Não aguenta! Eles foram educados para isto,alguns tinham convicção de que aqueles comunistas eram muito importantes eprecisavam ser destruídos.7 - NILCE AZEVEDO CARDOSO: RELEMBRAR É PRECISO - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires163 As avenidas Oscar Pereira, João Pessoa e Ipiranga são conhecidos logradouros de Porto Alegre.157


Então, na cabeça deles, tinha uns que só batiam para poder realmente atingiro corpo. Entre estes, tinha uns que babavam, como se sentissem prazer em maltratar.Mas acho que não era a maioria. Porque eles saíam dali para almoçar, paraas suas casas. A filha do Seelig diz que o pai dela nunca faria uma coisa dessas. Euacredito que a filha (não sei se ele tem algum filho ou filha) do [Nilo] Hervelha 164também deve falar a mesma coisa. E observe: foi ele que me quebrou. O cara tinhaum soco que até hoje eu sinto a mão dele ainda me quebrando.Faz poucos dias fui fazer uma ressonância magnética e o profissional perguntou:“Por que é que você está fazendo isso?”. Respondi que as razões vinham demuitos anos atrás! (risos) E agora estou querendo ver até onde o soco me atingiue como ficou ao longo desses anos. Mas estou precisando fazer isso agora porquenaquela época ele me soqueou até quebrar. Até quebrar literalmente. Porque foina hora que ele quebrou o meu esterno 165 .PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS158164 Nilo Hervelha também era um conhecido torturador, atividade na qual adquiriu currículoparecido com Pedro Seelig (Ver nota 27), com quem trabalhava no DOPS.165 O esterno é um osso chato, localizado na parte anterior do tórax, [que] serve para sustentaçãodas costelas e da clavícula, formando a caixa torácica onde ficam protegidos os pulmões,coração e os grandes vasos (aorta, veia cava, artérias e veias pulmonares). Disponível em:


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8 O MOVIMENTO DE JUSTIÇAE DIREITOS HUMANOS:DAS LUTAS DEMOCRÁTICAS ACONSTRUÇÃO DO PRESENTESolon Eduardo Annes Viola 166Thiago Vieira Pires 167Resumo:Partindo do resgate dos anos de ditadura militar que assolaram o Brasil e a América Latinae pensando os Direitos humanos no Brasil como construção histórica que se inicia com maiorênfase na resistência civil ao golpe militar. Este texto aborda a história do Movimento deJustiça e Direitos Humanos (MJDH). O Movimento surge justamente nessa conjuntura derepressão que o Brasil vivia, onde um grupo de pessoas movidas pela solidariedade aos perseguidospolíticos passou a atuar de forma espontânea, tendo o humanismo solidário como elode aproximação. As informações contidas no presente texto provem do arquivo do MJDH ede entrevistas com suas lideranças históricas. O texto está dividido em três partes interligadase complementares. A primeira trata da origem do movimento e de suas lutas, a segundaparte trata do envolvimento com a redemocratização e a reorganização da sociedade civil ea terceira parte trata dos limites da democracia no Brasil.Palavras-Chave:Movimento, justiça, Direitos Humanos, luta e fraternidade.8 - O MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires166 Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, professordo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais da Universidade do vale do Rio dos Sinos– Unisinos, Membro do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos e da redeBrasileira de Direitos Humanos.167 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.Bolsista de Iniciação Científica UNIBIC161


8.1 INTRODUÇÃO“... sem nenhum pecado sem pavoro medo em minha vida nasceu muito depoisdescobri que minha armaé o que a memória guardados tempos da Panair”“Conversando num bar”Milton Nascimento e Fernando BrantPARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSA questão dos direitos humanos é recente na história brasileira e talvez poressa razão ainda provoque tantos estranhamentos, tantas confusões e desconfortos.Destacamos dois deles por razões específicas deste texto: o primeiro nossa formaçãosócio-histórica; o segundo uma ação planejada de preconceito e intolerânciasobre o tema.O primeiro estranhamento diz respeito ao sistema colonial que nos legou umasociedade feita mais de privilégios do que de leis. Privilégios positivos de algunse negativos para a maioria. Para poucos o uso da posse de terras e de gentes, paramuitos as negativas mais primárias da dignidade da condição humana.Entre estas negativas algumas são muito intensas, entre elas, as que permitiama um humano submeter outros humanos ao tronco, à chibata e ao pau-de-arara,como mostram os quadros de Debret 168 .O segundo estranhamento diz respeito à intensa, programada e planejadacampanha de identificar os movimentos em defesa dos direitos humanos comoações orientadas para proteção dos fora-da-lei, subversivos, bandidos, ou maisrecentemente, terroristas. Campanha que ganhou destaque ao longo da segundametade do século passado, mas que, ainda agora, pode ser encontrada em programasde rádio e televisão de forte apelo popular e fraco compromisso com aqualidade da informação transmitida.Aqui precisamos recuperar a memória e dar a mão à palmatória 169 . Esta162168 Jean-Baptiste Debret pintor e desenhista francês que fez parte de uma Missão CulturalFrancesa vinda ao Brasil a convite do Império para fundar a Academia de artes e ofícios, mais tardeconhecida como Academia Imperial de Belas Artes, na qual lecionou. Suas obras retratavam cenasdo cotidiano brasileiro do século XIX. Artista de seu tempo suas obras preservaram para a humanidadeas condições de vida e os suplícios impostos aos trabalhadores escravos.169 Palmatória, instrumento de castigo físico que consistia em um pedaço de madeira planae medianamente grossa que os professores da primeira metade do século passado usavam para


campanha, de certo modo exitosa, de difamação – com seus preconceitos embutidos– foi empreendida pelos meios de comunicação atendendo a demanda deuma “versão oficial”, por parte dos governos militares, às revelações feitas pelosmovimentos em defesa dos direitos humanos que denunciavam os crimes contra ahumanidade cometidos contra aqueles que ousavam opor-se ao terror do Estado.Foi no contexto de repressão, que os princípios dos direitos humanos criaramraízes na sociedade brasileira em razão de suas ações em defesa da vida dosperseguidos políticos, de suas críticas à tortura e a busca dos corpos desaparecidosPode-se argumentar que o Brasil era signatário dos documentos internacionais emdefesa dos direitos humanos e mesmo da Declaração Universal da Organizaçãodas nações Unidas (ONU) de 1948. Mas a própria Declaração Universal nãoera ainda conhecida pela população. Mesmo nas escolas não se mencionavamos direitos dos educandos e até mesmo temas correlatos, como a cidadania, porexemplo, não constavam no currículo escolar. Ao contrário, os castigos e as puniçõesestavam sempre à espreita e eram tolerados sob a justificativa de que “é depequenino que se torce o pepino”.A Declaração Universal representou um alerta e um sonho. Alertava para ohorror de Auschewitz, e os extermínios que lá ocorreram, e anunciava a possibilidadede outro tipo de organização social respaldado pelos princípios de liberdade,igualdade e fraternidade. Organização social que precisaria ser construída nasrelações humanas através de um amplo processo educativo capaz de criar umacultura na qual a barbárie dos campos de concentração nunca mais fosse possível.Na América Latina as ditaduras militares ignoraram a Declaração Universal,e seus crimes contra a humanidade se fizeram escutar desde as cadeias, dos seuscampos clandestinos de prisioneiros e dos seus porões. Foi destes lugares queecoaram os lancinantes gritos das torturas que foram ouvidos por aqueles queviriam a ser os defensores dos direitos humanos. Foi em defesa da vida e contra oterror do Estado que alguns poucos – ousados, às vezes enlouquecidos, e sempreameaçados – militantes passaram a construir uma cultura social fundamentadana defesa dos direitos humanos, na garantia da integridade física dos perseguidospolíticos e na defesa das liberdades individuais e coletivas da população.Suas ações – nascidas da indignação contra a violência do Estado e as restriçõesà liberdade – buscavam formas jurídicas para burlar aquilo que então se8 - O MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Piresbater nas mãos de alunos inquietos. Era usada nas diferentes redes escolares como humilhação econtrole disciplinar.163


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS164chamava de lei, e que, em verdade, se substanciavam em atos institucionais 170 . Paraalém das ações no campo legal existiam as ações diretas de denúncia das torturase dos crimes contra a humanidade. Foi a coragem e a dignidade pessoal destesmilitantes – que não temiam colocar a própria vida em risco – que enraizou osdireitos humanos na cultura contemporânea brasileira.Reprimidos e eliminados os movimentos sociais e destruídas as organizaçõesda sociedade civil, o espaço político que restou foi o da indignação militante,muitas vezes espontânea, outras tantas sob a proteção catacúmbica 171 de setoresdas Igrejas cristãs e de seus resguardos diplomáticos. Dom Paulo Arns 172 criou aComissão de Justiça e Paz de São Paulo reunindo pessoas tanto da elite, comoda intelectualidade acadêmica, como estudantes e trabalhadores, cujo compromissoera o de procurar informações, encontrar formas de defesa jurídica dosditos subversivos e de denunciar as arbitrariedades e as torturas executadas pelosorganismos de repressão.No Rio Grande do Sul este papel foi desempenhado pelo Movimento de Justiçae Direitos Humanos (MJDH) que aproximou humanistas de diferentes filiaçõesideológicas e que já se reuniam antes mesmo de se construir como movimento.Este texto trata especialmente da história do MJDH 173 e de suas ações e estádividido em três partes interligadas e complementares. A primeira trata da origemdo movimento e de suas lutas em defesa dos perseguidos políticos da ditadura, a170 Os Atos Institucionais foram decretos emitidos durante a ditadura militar. Serviram comomecanismos de legitimação e legalização das ações políticas ditatoriais dos militares, estabelecendopara eles próprios diversos poderes extra-constitucionais, como, por exemplo, o fechamento docongresso nacional, a suspensão do habeas-corpus, decretar estado de sítio, etc. Os Atos Institucionaiseram um mecanismo para burlar a Constituição Brasileira de 1946, esta, que se considerada,tornaria inexecutável o regime militar.171 Referência feita aos primeiros cristãos que, durante o domínio romano na Palestina, reuniam--se nas catacumbas para fugir as perseguições a que eram submetidos pelo império.172 Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal-arcebispo de São Paulo, desempenhou papel fundamentalna defesa dos direitos humanos e na denúncia das arbitrariedades do Estado durante a ditaduramilitar brasileira. Ligado aos setores progressistas da Igreja Católica, criou a Comissão de Justiça ePaz, comissão que teve papel de destaque na defesa dos perseguidos pelo regime militar. Em 1975foi um dos celebrantes do ato ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog, morto pelosórgãos da repressão.173 As informações que constam no texto foram recolhidas nos arquivos do MJDH. As citações,ao longo do texto, foram retiradas de entrevistas concedidas aos autores por três militantes históricosdo Movimento e que por mais de uma vez exerceram a presidência do mesmo: Jair Krischke,Osmar Ferri e Sérgio Bittencourt. Por esta razão o texto não contém referências bibliográficas.


segunda parte trata do envolvimento com a redemocratização e a reorganizaçãoda sociedade civil e a terceira parte trata dos limites da democratização brasileira.8.2 A FRATERNIDADE COMO ORIGEMO golpe de estado de 1964 pôs fim ao breve e tímido ensaio de democraciavivido pelo Brasil por quase duas décadas, período no qual ocorreram tentativasde quebra da normalidade democrática – as mais significativas ocorreram em duassituações tensas: A primeira no ano de 1954, levando o então presidente GetúlioVargas ao suicídio e a manifestações de protesto por parte da sociedade civil dasgrandes cidades. Os funerais do presidente morto foram acompanhados pelapopulação silenciosa e atenta; A segunda ocorreu em 1961, quando da renúnciade Jânio Quadros. Essa situação visava impedir a posse do vice-presidente JoãoGoulart. A defesa da ordem política foi organizada desde o Rio Grande do Sul apartir da resistência organizada pelo então governador Leonel Brizola com apoioda sociedade civil e de alguns setores das forças armadas.O movimento golpista vitorioso em 1964, não manteria suas promessas deredemocratização imediata 174 . O rompimento da ordem constitucional retirava alegitimidade ética do novo regime, que só poderia se sustentar no poder atravésda coerção política. Rompida a ordem constitucional e suprimidas as liberdadesindividuais e coletivas, foram eliminados os direitos políticos e civis. A partir dissoforam traçados os caminhos para uma retomada das políticas de concentraçãode renda com a eliminação das conquistas sociais e econômicas que a populaçãohavia conseguido com muita dificuldade ao longo do breve período democráticoque antecedeu o golpe militar.Logo após o golpe, o Rio Grande do Sul passou a ser tratado pelos estrategistasdos organismos de repressão como um lugar de vigilância prioritária, namedida em que era considerado como um possível foco de resistência em razãode seu passado recente, haja vista o episódio da legalidade em 1961, de suas organizaçõespolíticas e de sua extensa área de fronteira. A coerção política não sócassou mandatos políticos de diferentes partidos, como impôs o exílio a muitasdas lideranças do período desestruturando as organizações da sociedade civil.8 - O MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires174 Recorde-se que o golpe foi dado em nome do combate à corrupção política e contra a subversãocomunista que estaria prestes a tomar o poder. Os ideólogos do regime instalado prometiamdevolver o poder aos civis tão logo estas duas ameaças estivessem sanadas.165


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSFoi nesta conjuntura de repressão que um grupo de pessoas movidas pelasolidariedade aos perseguidos políticos passou a atuar de forma espontânea e precariamenteorganizada. O que os movia era a solidariedade aos perseguido peloregime e o repúdio as perseguições políticas. O humanismo solidário era o eloque aproximava os componentes do grupo. Acima de diferenças ideológicas, asações de retirar do território brasileiro os perseguidos políticos congregou católicos,protestantes, ateus, agnósticos, comunistas, socialistas (KRISCHKE, 2003).Vindos da classe média, reuniam-se eventualmente para definir estratégias eencontrar condições para suas ações: eram professores, desembargadores, advogados,profissionais liberais, religiosos ligados as Igrejas cristãs, imbuídos da necessidadede retirar do Brasil os perseguidos pelo novo regime que se instaurará no país. Orisco pessoal e os compromissos políticos fortaleceram o grupo, que por sua vezconseguiu criar pequenas estruturas de apoio e estabelecer uma articulação típicade um novo tipo de movimento social, cujas ações se baseiam em compromissose princípios éticos que vão além do próprio movimento, avançando com o protagonismode seus militantes.O crescimento do grupo e sua ramificação social possibilitaram o surgimentodo Movimento de Justiça e Direitos Humanos com forte influência social antesmesmo de se institucionalizar. Para Bittencourt (2003) o movimento construiuum forte patrimônio social em razão de suas ações com os exilados políticos tantobrasileiros como latino-americanos. Foi durante a ditadura que ele adquiriu credibilidadee o capital político que possui.A segunda metade dos anos 1960 acompanhou o surgimento de movimentossociais em defesa da democracia e dos sonhos de uma sociedade mais livre eequânime. Os trabalhadores, as classes médias e os estudantes se reorganizarame passaram a ocupar as ruas das grandes cidades, denunciando as violências e arbitrariedadese exigindo o fim da ditadura. A resposta dada pelo regime foi maisrepressão, instaurada com a ajuda de um novo instrumento de coerção, o AtoInstitucional nº 5 175 . Entre seus artigos estavam: a censura aos meios de comuni-166175 O AI-5 é considerado o mais duro dos Atos Institucionais. Promulgado em 13 de dezembrode 1968 ficou conhecido como o golpe dentro do golpe. Conferia ao Governo Federal poderes ditatoriais– autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciaçãojudicial, a decretar o recesso do Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, suspenderdireitos políticos (que incluía: liberdade vigiada, proibição de frequentar determinados lugares,domicílio determinado, etc), decretar estado de sítio, decretar o confisco de bens, suspensão dohabeas-corpus, etc.


cação e o fim do hábeas corpus medida que autorizava e protegia a tortura dospresos políticos como método de investigação e de promoção do medo.8.3 A ORGANIZAÇÃO COMO LIBERDADECom o AI-5 os espaços de participação foram suprimidos, a repressão políticase radicalizou com a tortura institucionalizada, a censura ocupou a mídia ecastrou as atividades culturais. O silêncio da sociedade equivalia ao silêncio dascerimônias fúnebres, não realizadas, das lágrimas não derramadas, dos corpos dosdesaparecidos. Também para o MJDH após o AI-5, as coisas ficaram mais difíceis,mas continuamos fazendo nosso trabalho e, curiosamente, apesar dos riscos, mais emais companheiros passavam a participar (KRISCHKE, 2003).Ao longo da década de 1970, e sempre sobre as justificativas da Doutrinanorte-americana de Segurança Nacional, a América Latina foi transformada em umterritório de ditaduras. Os governos constitucionais foram derrubados por golpesmilitares e o terror do Estado se instituiu de um ponto a outro do continente. Parao MJDH não se tratava mais de tirar brasileiros para o exílio, se tratava, também,de apoiar e dar guarida a exilados de quase todos os países latino-americanos. Nestaconjuntura ampliamos nossos contatos com as Igrejas cristãs e com organismos como aACNUR 176 e a Anistia Internacional” (KRISCHKE, 2003). Os riscos destas açõesse tornavam mais intensos na medida em que o MJDH não possuía registro legal.O Movimento de Justiça e Direitos Humanos – MJDH – passou a ter umaorganização mais formal partir de março de 1979, mas seu estatuto só foi registradoem cartório em de 1980. O registro veio após o fim do AI-5 em um período quea ditadura mudava seus métodos de controle e já estava em andamento à aberturapolítica, fato que possibilitou ao Movimento conseguir seu registro legal 177 .8 - O MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires176 ACNUR é a sigla em português para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os RefugiadosPolíticos. O Movimento mantinha relações com outras organizações latino-americanascomo: a Federação dos Familiares dos Detidos e Desaparecidos na América Latina, Comision Paze Justicia do Uruguai e a Convencion Nacional de Trabajadores do Uruguai e as Madres da Plazade Mayo na Argentina.177 Segundo Krischke, “[...] Aguardamos o fim do AI-5 (31/12/1978) para formalizar a existênciado MJDH, o que foi feito a partir da realização de um Seminário de Justiça e Direitos Humanosque, ao encerrar seus trabalhos em 36 de março de 1979, propôs aos participantes a fundação doMJDH submetendo à aprovação um Estatuto e elegendo o primeiro Conselho Diretivo. O registrosomente foi solicitado nos primeiros dias de abril de 1979, sendo negado. Assim, ajuizamos uma167


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSSuperado o período pré-legalização o Movimento, sem abandonar a defesada vida dos perseguidos políticos e a denúncia das prisões arbitrárias e da torturacontra os presos políticos, acrescentou novos temas a sua área de ação. Os maisimportantes foram as estratégias de participação nas liberdades civis e políticas ea reorganização da sociedade civil.Reunidos em março de 1979 os militantes do MJDH assim definiram osseus propósitos 178O Movimento de Justiça e Direitos Humanos nasceu das reflexões de umgrupo que se reunia para estudo e debate de seu compromisso cristão. Ao deparar--se com situações concretas de violação dos direitos humanos, decidiu esse grupoorganizar-se para a ação. Eram refugiados políticos, cheios de angustia e aflição,que procuravam socorro; eram pessoas da periferia da cidade de Porto Alegre,com familiares presos “para averiguação”; eram queixas de arbitrariedades policiais,incluindo a tortura, notadamente contra os pobres. (MJDH, 1980, p. 5).Para se preparar para a nova conjuntura e seus desafios o MJDH organizou,em conjunto com a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, seminários para debatertemas como: à reorganização dos movimentos sociais, a relação entre democraciae justiça social, o compromisso com os direitos sociais e econômicos para todos.O Seminário elaborou os estatutos da entidade definindo como princípiosfundamentais (MJDH, 1980):Atuar na promoção e defesa da pessoa humana, especialmente no que concerneaos ideais de Justiça e Paz;Encaminhar aos poderes e órgãos do Estado e às autoridades religiosas asrecomendações convenientes para a consecução de seus objetivos;Denunciar o que nega a Justiça e os direitos humanos, especialmente a exploraçãodo homem pelo homem, do homem pelo Estado, e o sistema econômico;Participar politicamente no esforço comum de libertação integral do homem;Promover a criação de núcleos de direitos humanos ou equivalentes.Entre os princípios básicos estavam: constituir-se como uma organização168ação junto a vara de Registros Públicos que, por sentença, manda o Cartório do Registro Especiallavrar o respectivo ato, o que ocorre efetivamente no dia 11 de agosto de 1980.178 A primeira diretoria eleita no seminário estava assim constituída: Presidente Jair Krischke;Secretário, Bruno Inácio Fischer; Tesoureiro, Omar Ferri; Diretores, Jacques Távora Alfonsin, JoséMariano Beck, Ricardo Balestreri, Cecília Maria Pinto Pires, Quirino Signori, Jandir João Zanotelli,Bertholdo Webber; Assessores da Diretoria: Celso Luis Franco Geiger e Pe. Albano Trinks.(MJDH, 1980).


capaz de reunir pessoas comprometidas com as questões dos direitos humanossem discriminação religiosa, ideológica e de classe. Assim o MJDH possibilitavaespaços de ação aos que “queiram engajar-se na promoção integral do Homem[...] num trabalho que exige disponibilidade, renúncia e exposição a riscos” (MO-VIMENTO, 1980, p. 7).Embora ainda prioritariamente vinculado às lutas por direitos civis e políticoso Movimento começava a demonstrar preocupações com os direitos sociais eeconômicos, o terceiro dos princípios acima citados.As ditaduras militares da América latina confirmavam uma regra universal;os direitos civis e políticos são suprimidos para que as elites possam acumular capitalpara reinvestimentos de altas tavas de ganhos ou para aplicações financeirasinternacionais.No plano econômico e social, a política nacional dirige-se para o lucro e odesenvolvimento dependentes, tendo por consequência a manutenção dos privilégiosde minorias dominantes e atendendo mais aos interesses do capital nacionale estrangeiro do que aos do povo brasileiro (MJDH, 1980, p. 9).O MJDH no programa de ação de seu estatuto prevê um amplo campo depossibilidade que incluem: “trabalho no campo de conscientização de grupos epessoas no que tange aos seus direitos e deveres” (MOVIMENTO 1980, p. 7). Asações propostas 179 envolviam denúncia das arbitrariedades policiais como a torturae a repressão, tanto de militantes políticos de organizações clandestinas, como dapopulação dos bairros populares (o artigo segundo dos princípios).Além das denúncias, o MJDH passou a auxiliar a organização da sociedadecivil através de uma série de iniciativas envolvendo entidades como comunidadesde base, clubes, associação de moradores especialmente nas áreas empobrecidasdas periferias urbanas. As ações junto às associações de moradores ocorreram nosbairros da Grande Porto Alegre.O combate à ditadura foi transformado, também, num amplo esforço decriação de novas instituições em defesa dos direitos humanos (o item 5 dos princípios),como o Movimento Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (primeironome do Movimento Nacional de Direitos Humanos), servindo de base para areorganização de diferentes setores das classes dominadas.Assim MJDH auxiliava a população a se organizar, a criar associações para8 - O MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires179 O manifesto extraído do seminário de fundação afirma: “Consideramos o que está ao nossoalcance fazer na conjuntura atual, em prol da justiça e dos direitos humanos, mediante atuação queé parte integrante da evangelização [...]. (MOVIMENTO..., 1980, p. 9).169


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSenfrentar questões específicas e imediatas da vida cotidiana na medida em que asociedade organizada poderia criar uma cultura democrática (KRISCHKE, 2003).Na reorganização da sociedade civil o MJDH contribuiu com a reorganizaçãodas associações de moradores nos municípios da Grande Porto Alegre e, apartir delas, das associações municipais. A ação dos militantes do MJDH apoiouo surgimento de uma série de lutas pela moradia e pela melhora das condições devida nos aglomerados urbanos de baixa renda cuja população em 1980 chegavaa mais de 170.000 pessoas.O Movimento participou também da reorganização do movimento sindicaldo Rio Grande do Sul, especialmente através de cursos e de infra-estrutura para asações que lentamente eram retomadas, como por exemplo, com o Sindicato dosBancários, o Centro de Professores do Estado e aos Sindicatos Metalúrgicos daGrande Porto Alegre (MJDH, 1979, 1980, 1981). Participamos na reorganizaçãode sindicatos. Interferimos na luta pela libertação quando as lideranças do sindicatodos bancários foram presas em 1979 180 quando agimos no sentido de libertá-los(KRISCHKE, 2003).O Movimento atuou ainda em conjunto com a Comissão Pastoral da Terra(CPT), apoiando a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST). As primeiras reuniões do MST ocorreram na sede do Movimento. O JornalSem Terra era impresso em nosso mimeógrafo. Prestávamos assistência jurídica,campanhas de solidariedade e intermediávamos as relações do MST com o Estado(KRISCHKE, 2003).No interior do Movimento reuniram-se os primeiros núcleos ecologistas doRio Grande do Sul, especialmente a partir de 1983, com as denúncias de crimeambiental de uma fábrica de celulose localizada no município de Guaíba, a qualchegou a ser fechada em razão disso.A ação do Movimento abrangeu, também, à seccional da Ordem dos Advogadosdo Brasil, contribuindo para a criação da primeira Comissão de DireitosHumanos da Ordem 181 .170180 As prisões de 1979 representam um recrudescimento das ações repressivas e ocorrem concomitantementeas prisões das lideranças sindicais de São Paulo. Entre os presos do Rio Grandedo Sul encontrava-se o líder sindical Olívio Dutra.181 Segundo Krischke (2003), A primeira presidente foi a Rejane Brasil Felipe, uma das fundadorasdo MJDH. O segundo presidente foi o Luis Goulart Filho, o terceiro o Túlio de Rose, todos militantes.Por um longo período quem presidia a Comissão de Direitos Humanos da OAB era alguém dos quadrosdo MJDH


O Justino 182 me convidou para compor, como militante do MJDH e advogadoque defendia Lílian e Universindo 183 , a criar uma Comissão de Direitos Humanos naOAB regional e nacional (FERRI, 2003).Além de contribuir com os movimentos sociais e de instituições de classemédia o MJDH esteve presente na reorganização do próprio Estado como ocorreucom a Comissão Permanente de Direitos Humanos da Assembleia <strong>Legislativa</strong> doEstado do Rio Grande do Sul, cujo primeiro presidente, o deputado Antenor Ferrarie o secretário da Comissão, Augustino Veit, eram, respectivamente, militantee secretário do MJDH 184 . O Movimento não só subsidiava, mas fazia aquele trabalhodiário de convencimento dos parlamentares, porque só isso resolve para conseguir osvotos e obter aprovação das propostas (KRISCHKE, 2003).A militância diária para a conquista de “votos e a aprovação das propostas”fez parte da criação de uma cultura democrática no Parlamento e na sociedadepolítica do Rio Grande do Sul. A Comissão Permanente de Direitos Humanostransformou-se em modelo para o surgimento de comissões equivalentes em múltiplasCâmaras de Vereadores e em Assembleias <strong>Legislativa</strong>s de outros Estados e,por fim, no Congresso Nacional.Nesta fase de sua história as ações do MJDH objetivavam a criação de umacultura de participação política da sociedade: O MJDH sempre foi uma entidadeque formulou políticas, fez leituras políticas e propostas, para a articulação dos diversossegmentos da sociedade, se mantendo sempre independente (BITTENCOURT, 2003).Para seus militantes, a dimensão política dos confrontos contra a ditaduraultrapassava as fronteiras entre países e a solidariedade humanista transformou-seem prática constante na defesa dos perseguidos políticos do Cone Sul da AméricaLatina. O estabelecimento dessas prioridades levou o MJDH a atuar em conjunto,entre outros, com a Comissão Pontifícia de Justiça e Paz de São Paulo e coma Comissão Pontifícia Brasileira de Justiça e Paz, com o Alto Comissariado para8 - O MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires182 Justino Vasconcelos era, na ocasião, presidente da seccional gaúcha da OAB.183 Cidadãos Uruguaios sequestrados pela comunidade de informações e entregues à polícia políticauruguaia num caso que resultou em processo impetrado pelo advogado Omar Ferri e numa série dedenúncias envolvendo policiais do DOPS/RS, da Polícia Federal e de setores do poder judiciário.184 Os militantes do MJDH apoiaram jurídica e politicamente a Assembleia. Além de AntenorFerrari, um dos fundadores, o deputado Américo Copetti também participava do Movimentocomo o Secretário do MJDH.171


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSos Refugiados da Organização das Nações Unidas (ACNUR), com a Anistia Internacional185 e com a representação diplomática de diferentes países europeus.As ações de apoio aos exilados mudaram de direção. Ao contrário das décadasde 1960 e 1970, quando eram majoritariamente os brasileiros que precisavamabandonar o país, a partir da década de 1970 e ao longo da década de 1980 – comos frequentes golpes militares aos quais a América Latina sofreu, embora os brasileiroscontinuassem a ir para o exílio -, fazia-se prioritariamente o caminho inverso.Nesse período um de golpes de Estado um pesadelo percorreu o continentelatino-americano. Buscavam exílio no Brasil dissidentes políticos da Argentina,do Uruguai, do Paraguai, do Chile, ingressando no Brasil em busca de acolhidaou de auxílio, para alcançar outras paragens, outros espaços para refazer o sonhointerrompido ou, simplesmente, manterem-se vivos. No período que se estendeuda década de 1960 a 1980 o MJDH calcula ter auxiliado mais de 2000 refugiadose seus familiares a fugir das perseguições políticas das ditaduras de seus países.Para além da solidariedade internacional, o MJDH participou intensamentedas lutas que marcaram o processo de abertura política no Brasil desde o momentoem que se tornou possível o debate sobre o fim da censura e as primeiras discussõessobre o modelo de anistia que estava sendo proposto. A aspiração da sociedadeera de uma Anistia ampla, geral e irrestrita. A resposta militar foi um decreto queincluiu entre os anistiados, os agentes dos setores de repressão política que, emnome da ditadura, haviam torturado e assassinado. O regime militar mostravaque a transição para a democracia seria um processo lento e que protegeria aquelesque, em defesa do governo, haviam cometido crimes hediondos, como a torturae o assassinato de opositores. A posição do Movimento foi expressa em manifestoenviado à Comissão de Anistia do Congresso Nacional em julho de 1979:O Movimento de Justiça e Direitos Humanos [...] não poderia de deixar demanifestar sua discordância com as restrições e limitações impostas pelo Projetode Anistia que não corresponde aos ideais de paz, compreensão e união fraternado povo brasileiro. [...] De outra parte são abrangidos pela anistia os que, usandotambém de violência, até agora injustificadamente impunes, como prepostos dopoder, mataram e torturaram... (KRISCHKE, 1982, p. 537).A partir da pressão do movimento social, a anistia votada não foi amplanem plena, mas também não foi uma simples permissão do Governo militar em172185 Segundo Krischke (2003) “[...] como a Anistia Internacional não funcionava no Brasil naqueleperíodo, nossos vínculos eram feitos diretamente com a sede da entidade em Londres [...]”.


enefício dos seus. A anistia marcou a liberalização do regime e forneceu as basesda movimentação nacional que permitiu um novo patamar de lutas em favor daredemocratização. O projeto de anistia proposto pelo Executivo mesmo alteradopelo Legislativo não atendeu as reivindicações da sociedade civil, de modo quemesmo aproximando o país dos modelos da democracia formal ainda permaneceinconclusa, preservando heranças que até agora não conseguimos superar. Taiscomo: A responsabilização e punição aos crimes de tortura – que a constituiçãocondena como crime hediondo; A abertura dos arquivos da ditadura; A formaçãode uma Comissão da Verdade, com a participação da sociedade civil e ampladivulgação; A devolução, ou informação da localização, dos corpos dos desaparecidospara seus familiares.O manifesto de fundação, referindo-se à luta contra a ditadura, afirma que,[...] embora já conquistadas pela sociedade civil as garantias institucionaismais gravemente feridas durante esse período, constituíssem em imperativo nacionala plena democratização do país exige anistia sem adjetivos, participaçãopopular genuína através de eleições diretas em todos os graus, e ampla liberdadede opinião e associação (MOVIMENTO, 1980, p. 10).O movimento pela Anistia representou a primeira participação pública doMovimento em conjunto com outras instituições da sociedade civil e da sociedadepolítica. A partir desse momento o MJDH passou a incorporar as grandes lutasnacionais pela redemocratização do país, fazendo parte da campanha nacional pelarevogação da Lei de Segurança Nacional (Relatórios anuais, 1982, 5 e 1983, 3), epela campanha das eleições diretas, na qual “foi integrante do Comitê Unitário (...),tendo participado de reuniões, debates, atos públicos e do grande comício realizadoem Porto Alegre no dia 13 de abril de 1984” (MOVIMENTO, 1984, p. 4).A incorporação aos movimentos de ação política em favor da redemocratizaçãoabrangeu, também, a campanha pela constituinte com a participação noMovimento Gaúcho pró-constituinte soberana 186 através da coleta de assinaturasde apoio a emendas populares 187 , todas relacionadas a temas referentes a questõessociais e econômicas – e à defesa dos direitos civis e políticos. Alem da coleta de8 - O MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. Pires186 O relatório de 1985 (p. 3) salienta: “Cerca de 50 entidades reúnem-se quinzenalmente paradiscutir propostas a serem incluídas na nova carta constitucional...”187 O movimento organizou bancas de coleta de assinatura em lugares públicos. A atividadetinha um caráter educativo e, ao mesmo tempo, colhia assinaturas. Foram milhares em diferentesemendas populares.173


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSassinaturas, os militantes do MJDH participaram de debates, conferências e semináriosregionais e municipais ao longo dos anos de 1985, 1986, 1987 e 1988.A participação do MJDH nas campanhas das Diretas Já e da constituintesoberana ocorreu em uma política de frente com outras entidades, contandocom a participação de parte da sociedade política, especialmente com setoresdo MDB na campanha pela anistia, e com os demais partidos de oposição nosmovimentos pela eleição direta e em defesa da constituinte soberana. Tal formade ação retomava, em nível regional, as mesmas estratégias desenvolvidas pelosdemais movimentos em defesa dos direitos humanos organizados em quase todosos estados da federação.Além das ações feitas em nível regional e nacional, o MJDH participou dediferentes frentes de luta contra os modelos autoritários da América Latina oraauxiliando refugiados políticos de diferentes países, ora abrigando em suas dependênciasos comitês de solidariedade aos povos do Uruguai, da Argentina, doParaguai, do Chile e da Nicarágua ou, ainda, compondo comissões internacionaisem lutas pelo fim da tortura, das prisões e do exílio por razões políticas.Foi neste período que o Movimento incorporou-se à luta pela anistia doUruguai e a manifestações contra as ditaduras da Argentina, Paraguai e Chile. Apartir do ano de 1984 o movimento passou a fazer parte de uma organização internacional“MISION DE BUENA VOLUNTAD LATINOAMERICANA” 188 ,que tinha como objetivos “a liberdade de todos os presos políticos na AméricaLatina, a não extradição por razões políticas e a plena vigência dos Direitos Humanos”(MJDH, 1984, p. 2). Nos anos seguintes, as ações estenderam-se ao Chilee a países da América Central.O Movimento transformou-se em sede e coordenação dos comitês de solidariedadeaos povos do Chile, do Uruguai (o Comitê dos Uruguaios de PortoAlegre) e da América Central, bem como, dos movimentos pela anistia dos presospolíticos do Uruguai e do Paraguai. As ações de solidariedade internacionalincluíam manifestações públicas, coleta de assinaturas e moções de protestos queeram encaminhadas a consulados, embaixadas e a sedes de governos dos paísesque viviam sob ditadura 189 .174188 A Mísion de Buena Voluntad Latinoamericana contava com militantes de entidades do Brasil,da Bolívia, do Peru, do Equador, da Colômbia, do Panamá, do Chile, do Uruguai, da Venezuela,do Haiti, do México e da Argentina. Suas atividades incluíam: visita a presídios, denúncias detortura e reunião com autoridades locais. (MJDH, 1984, p. 3).189 Essas ações eram feitas em conjunto com entidades internacionais, “organismos das Nações


8.4 A CONSTRUÇÃO DO PRESENTEPara o MJDH as lutas pelos direitos humanos não se esgotaram com o fimdos regimes militares da América Latina. A longa transição para a democracia plenanão se completou, não só em razão do legado histórico vindo do colonialismo eda escravidão que formaram uma sociedade desigual e uma cultura política autoritária,mas também pela dificuldade ideológica de recuperar a memória nacional,reconstituir a verdade e restabelecer a justiça.As conquistas de direitos civis e políticos, obtidos ao longo das lutas sociaisdas décadas de 1970 e 1980 representaram avanços na vida nacional, mas nãoconseguiram implementar a democracia social. Ferri (2003) destaca que a próprialiberdade individual está ameaçada pela desigualdade: de que adianta ter liberdadede locomoção se não tenho recursos para me locomover; ter liberdade de informação, sea imprensa está nas mãos do monopólio; como ter direito à igualdade se as condiçõesmateriais de uma parte da população são de pobreza e miséria. Como é possível terdemocracia se a sociedade vive com medo?Para os militantes do MJDH o princípio da igualdade é fundamental para arealização plena da democracia. Sem a igualdade, o princípio da liberdade estarásempre ameaçado pela corrupção e pela violência. O princípio da fraternidade nãopode se realizar na medida em que a desigualdade cria diferenças insuperáveis. Nocaso da sociedade brasileira, e de sua história colonial-escravista, a desigualdade seconstitui não só na disparidade da distribuição de renda, mas na criação de umacultura de discriminação e de desrespeito ao diferente. Uma cultura que aindaagora atribui a condição de miséria à escolha do miserável, a pobreza a incompetênciado pobre, a discriminação ao desejo do discriminado, o triunfo do racismoa aceitação passiva do escravo.Segundo Krischke (2003), a democracia está vinculada ao cotidiano, ao respeitomútuo. Trata-se de uma forma coletiva de governar a sociedade, uma cultura departicipação que pressupõem a igualdade social e de possibilidade entre os cidadãos.O conceito de democracia de Krischke não se limita ao sistema político ou a uma8 - O MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - Solon Eduardo A. Viola e Thiago V. PiresUnidas como o Alto Comissariado das Nações Unidas Para os Refugiados Políticos (ACNUR),a Anistia Internacional, ou movimentos sociais como a Federação dos Familiares dos Detidos eDesaparecidos na América Latina (Relatório, 1985, p. 2 e 3), Comision Paz e Justicia do Uruguai,as Madres da Plaza de Mayo na Argentina, e a Convencion Nacional de Trabajadores do Uruguai.(MJDH, 1984, p. 5; 1985, p. 3).175


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSforma de governo. Constitui-se como um sistema de valores capaz de respaldar umacultura de fraternidade na qual os cidadãos sejam protagonistas e beneficiários.Assim, as sociedades precisam construir os caminhos para a construção dademocracia. Em liberdade e de forma equânime, com regras de convivência quegarantam os direitos de todos. Para Bitterncourt (2003) não bastam normas civilizadas,torna-se indispensável superar os preconceitos originados da escravidão, eproduzir justiça social o que só pode ser feito com distribuição igualitária de oportunidadese de riqueza.Ou, ainda, trata-se para os militantes do MJDH de sermos capazes construirmosuma soberania republicana na qual a vontade geral seja inalienável eindivisível e as decisões políticas emanadas da maioria orientem os destinos dopaís. Não só na determinação do presente, mas na recuperação do passado e naconstrução do futuro de modo que a cidadania seja a expressão da vontade geral enão esteja limitada aos grupos que mantêm em suas mãos o controle do mercado.Foi para superar uma cultura de privilégios e preconceitos que os movimentossociais assumiram os princípios dos direitos humanos como pressupostos para asuperação dos privilégios e ditaduras. Foi por não suportar mais a desigualdade,a descriminação, as torturas, as mortes e os desaparecimentos, e para constituir oreino da liberdade e dos anseios de igualdade, que as sociedades se organizaramem movimentos e ocuparam espaços políticos e culturais, reconstituindo, geraçãoapós geração, a própria história. Portanto, reconstituindo a própria memória edeixando de esconder seu passado.176


S/ título – acrílico/tela – 40 X 30cmMaria Aparecida S. Osório – Oficina de Criatividade/ HPSP


9 DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA EDIREITOS HUMANOS:POR UMA MEMÓRIA POLÍTICA INCLUSIVAE HUMANIZADASandra Regina Martini Vial 190Dailor dos Santos 191Resumo:O presente artigo tem a pretensão de fazer uma reflexão acerca da necessidade de um novo olharjurídico para a memória, com a finalidade de congregar visões aparentemente antagônicas.Para a máxima efetividade da memória, no viés jurídico, é condição de possibilidade umaanálise transdisciplinar. Levando em consideração o mosaico da memória podemos atingiro seu formato definitivo e mostrar, em toda a sua extensão, o desenho que buscou construircom a junção de seus fragmentos mnemônicos a partir da otimização da ideia de DireitosHumanos. Esses são ameaçados pela própria humanidade, entretanto, sem ela também nãoencontrariam vigor. É por isso que apostar no Direito Fraterno revela-se um caminho viávelpara que sejam superados os impasses que o Brasil enfrenta nas suas tentativas de (re)construçãoda memória política. Precisamos buscar uma reconciliação pensada conjuntamente enão de modo hierarquizado. A rememoração de todos os abusos, a partir dessa perspectiva,fortalece a Democracia, incute uma nova consciência acerca dos Direitos Humanos e confrontao dogmatismo fechado e excludente do Direito.Palavras-Chave:Direito fraterno, memória, direitos humanos, democracia.9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos190 Doutora em Direito, Evoluzione dei Sistemi Giuridici e Nuovi Diritti, Università DegliStudi di Lecce e pós-doutora em Direito, Università degli studi di Roma Tre. É professora daUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, da Fundação do Ministério Público, da Scuola DottoraleInternazionale Tullio Ascarelli e professora visitante da Università Degli Studi di Salerno. Diretorada Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul de 2007 – 2010, membro do Conselho Superiorda Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).191 Dailor dos Santos, Mestre em Direito Público pela Unisinos, Especialista em Direito doEstado pela UFRGS, Professor de Hermenêutica Constitucional e Direitos Humanos no Curso deEspecialização em Direito Constitucional da URCAMP – campus de Alegrete. Analista Judiciárioda Justiça Federal.179


9.1 LINHAS INTRODUTÓRIAS: O CAMINHO PARADOXAL DAMEMÓRIA POLÍTICA NO BRASIL.PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS180No Brasil, a memória, em suas vestes políticas, pode ser admitida comoresistência. O legado do regime ditatorial militar, que tomou o poder em terrabrasileira entre 1964 e 1985, trouxe consigo os números imprecisos da violênciae dos excessos de poder impingidos aos opositores do autoritarismo: assassinatos,torturas, desaparecimentos forçados, sequestros, estupros, perseguições políticas,cassação de direitos e menosprezo por qualquer Direito Humano. Sem consultaà memória e ignorando a necessidade de encarar a barbárie cometida em solobrasileiro, a Lei da Anistia de 1979 implantou o desejo da reconciliação nacionala qualquer custo. Tudo deveria ser esquecido, inclusive os abusos inexplicáveisdaqueles que, alargando as ranhuras de um precário poder, pautaram na violênciaa atuação do Estado.A memória política no Brasil a duras penas firma-se como um direito. Maisdo que confrontar as violências do tempo presente, ainda exige – porque essasviolências permanecem inconclusas – o esclarecimento da barbárie que o regimeditatorial militar presenteou à democracia inaugurada em 1988. Desde então aevolução legislativa, apoiada na contínua atividade de grupos sociais devotadosao resgate das mazelas autoritárias, confronta a anistia desenhada em 1979. Nessecaminho, a memória jamais deixou de ocupar espaço central, como resposta àsvítimas e a seus familiares; ao revés, em 2009 foi anunciada pelo Estado brasileiro,em seu Programa Nacional de Direitos Humanos, como um direito humanoda cidadania e dever estatal, devendo ser efetivada como direito para promover areconciliação nacional e fortalecer a democracia. Embora com considerável atraso,já que a ditadura militar findou em 1985, esse anseio humanitário deu ensejo, em26.10.<strong>2011</strong>, à aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei da Câmara nº88 de <strong>2011</strong>, que criou a Comissão Nacional da Verdade, destinada a examinar e aesclarecer as violações a Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988 (períodofixado no art. 8º do ADCT).Apesar dessa vontade política, ainda se confrontam no Brasil os defensores eos críticos do Direito à Memória, alicerçados na dicotomia esquerda versus direita.A precária construção maniqueísta da memória política (e não há ingênuos nestejogo) contenta-se em vincular a memória a uma escolha entre os “simpatizantesda ditadura” ou os “esquerdistas antidemocráticos”, que se autointitulam, respectivamente,os “defensores da ordem, da nação e da democracia” ou, no caso


dos últimos, os reais “idealizadores da nova democracia” pela resistência opostaao regime autoritário. O debate, portanto, resume-se no Brasil a uma falível einsatisfatória apreensão ideológica da realidade, como se conceitos opositivospudessem abarcar a complexidade do entorno social 192 .Desse modo, juntamente com os contínuos esforços na busca da (re)construçãode sua memória política, convive o Brasil com apreensões dicotômicas,estagnantes do próprio fenômeno mnemônico. Claro contrassenso que explica,em parte, tanto a demora brasileira para aprovar uma Comissão da Verdade 193(contrariamente a todos os países da América Latina que experimentaram regimesde exceção) como a rejeição, por diversos atores sociais (inclusive pelo STF),à retomada do passado e à reconstrução dos relatos das vítimas. Esse paradoxoconduz, ao mesmo tempo, a um questionamento acerca do papel do Direito naconstrução da memória: apesar do advento da Constituição de 1988, os discur-192 Sobre as apropriações ideológicas da rememoração em face das violências praticadas peladitadura militar brasileira, basta relembrar o debate, insuficiente já em sua origem, travado por doismembros do Poder Judiciário brasileiro, amplamente exposto pela mídia: enquanto para FernandoMottola “os ‘heróis resistentes’ [aqueles que se opuseram às práticas ditatoriais] que hoje ditam as regrasdecretaram que a ilicitude desses atos depende da ideologia em nome da qual foram praticados. E épor isso que, bem recentemente, Cesare Battisti, um assassino ‘de esquerda’, recebeu o status de asilado,enquanto Manuel Cordero Piacentini, um assassino ‘de direita’, foi devolvido à prisão” (MOTTOLA,2010), para Christiano Enger Aires é preciso dar fim “à impunidade histórica dispensada àquelesque, sob o manto da autoridade do Estado, violaram direitos fundamentais dos opositores ao regime deexceção instaurado pelo golpe de 1964” (AIRES, 2010).193 Mesmo a criação da Comissão Nacional da Verdade incitou fortes debates – marcadamentedicotômicos – quanto aos valores aparentemente conflitantes (“Tanto a direção de O Globoquanto o prefeito de Curitiba dormiriam mais tranquilos com a criação da Comissão da Mentira.Ela se encarregaria, por exemplo, de enterrar as versões de que as principais empresas de comunicaçãodo país apoiaram o golpe militar que derrubou o governo constitucional de João Goulart e, depois, sebeneficiaram economicamente com o gesto. E quem disse que houve tortura no Brasil? Os militaresestavam defendendo a democracia contra terroristas, lembrou o prefeito tucano, já afinado com o espíritoda Comissão da Mentira” – WEISSHEIMER, 2010); acerca da pertinência de sua aprovaçãono atual estágio da democracia brasileira (“... como pode ser inadiável um assunto que por mais de30 anos tem sido ocultado por acordos necessários e emergenciais. Será que depois de mais de 25 anosde democracia a sociedade brasileira não tem vida política qualificada o suficiente para discutir comoquer abordar sua história e suas consequências para o presente? Por que tanta pressa? O que torna aComissão da Verdade uma votação inadiável neste momento?” – TELES, <strong>2011</strong>) e inclusive quanto àefetividade de sua atuação e ao modo como foi concebida (“Mas qual será mesmo a finalidade daComissão Nacional da Verdade, se contar com apenas sete membros, alguns dos quais poderão ser atémilitares; se não dispuser de autonomia financeira; se tiver de investigar quatro décadas em apenas doisanos; se for sujeita ao sigilo; e, finalmente, se não puder remeter suas conclusões ao Ministério Público eà Justiça, para que os autores dos crimes e atrocidades cometidos pela Ditadura Militar sejam julgadose processados na forma da lei?” – POMAR, <strong>2011</strong>).9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos181


sos jurídicos e a racionalidade do Direito foram capazes de revelar à sociedade aimportância dos Direitos Humanos e a pertinência do resgate da memória paraa preservação da própria Democracia?Não se trata de defender o Direito à Memória – perspectiva já consolidada– e tampouco de questionar a configuração da memória como um direito, o queviria de encontro à construção histórica dos Direitos Humanos desde o final daSegunda Guerra. O intuito é pontual: compreender, a partir do reconhecimentoda precariedade das tradicionais categorizações jurídicas, e diante das dificuldadesdo Brasil em modular as exigências políticas da memória, a necessidade de umnovo olhar jurídico para a memória, destinado a congregar visões aparentementeantagônicas. Afinal, que Direito, no Brasil, pode dar abrigo à memória? Devemser encarados, portanto, os riscos e as exigências da apropriação jurídica da memóriaque, embora seja seletiva, não pode ser excludente (sob pena de patrocinaras mesmas violências que almeja coibir).PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS1829.2 A DIFÍCIL EQUAÇÃO DA MEMÓRIA: A (IM)POSSIBILIDADE DO ESQUECIMENTO E DO PERDÃO.A memória se manifesta com a sonoridade estridente de um alarme, o avisodefinitivo para o tempo presente de que o passado legou, sob a fábula do progresso,vítimas, cadáveres insepultos e exclusão. Os escombros de outrora e as cores gritantesda barbárie ainda persistem e aguardam o necessário inventário. O direitoà memória responde a esse novo apelo ético, à rememoração dos que restaramceifados do curso de suas vidas e mesmo daqueles que sequer foram devolvidos,já mortos, às suas famílias, aos seus próximos. Não se trata de um alerta destinadoao futuro, mas ao tempo presente: é o instante do agora, como diria Walter Benjaminem suas teses Sobre o conceito de história (BENJAMIN, 2008), o momentomessiânico da redenção. As vítimas são irrecuperáveis, mas os seus sofrimentospulsam e as suas trajetórias inconclusas exigem respostas.Delineia-se, assim, o direito à memória, que não pode se contentar comuma mera categorização jurídica – sob pena de adentrar no amorfo recinto dasdicotomias, das linearidades, das classificações excludentes e dos anúncios de umprogresso perene, que tão bem caracterizam o Direito em suas linhas clássicas –,mas, pela própria dinâmica de sua gênese, transdisciplinar e transcultural, deveobjetivar a proteção de todos os indivíduos, no tempo presente, diante das in-


vestidas violentas dos atos autoritários. O direito à memória não corresponde aum vazio apelo ao passado, mas à constatação de que as vítimas que este gerouainda falam ao tempo presente. O Direito, contudo, permite que a memória pavimenteo seu caminho para se traduzir como uma escolha jurídica ou, ao revés,compreende a memória segundo os seus próprios filtros, nem sempre claros e nomais das vezes excludentes? O que o Direito pode, e está preparado, para dizersobre o mosaico da memória?A memória que ignora a história dos vencidos está fadada a reprisar o caminhojá descrito pelos vencedores. Novamente linear e excludente, essa compreensãohistórica aproxima-se de modo íntimo da dogmática positivista do Direito, quecontempla o tempo em camadas, umas sobrepostas às outras, num derivativoinfinito de causa e consequência, em que o código amigo versus inimigo constituiuma escolha viável. Trata-se, apenas, da história do progresso, tão bem concatenadacom categorizações e conceitos repressivos e excludentes do Direito, umdireito dogmático e não um direito humanizado. Daí porque uma nova história– no anúncio irrestrito da memória como o seu componente renovador – faz-seimprescindível. Junto a essa nova história, e para que o direito à memória igualmentese concretize, parece necessária, portanto, uma atualizada abordagem dopróprio Direito, capaz de permitir uma aproximação com a dinâmica da memória,plural, política, subterrânea, transdisciplinar e transcultural e, em virtude disso,romper com compartimentações positivistas, restritivas e alheias às diferenças queconfiguram o habitus social.Para a máxima efetividade da memória em suas vestes jurídicas importaum Direito igualmente inclusivo e transdisciplinar, alheio aos arranjos do poderque pretendem hierarquizá-lo (novamente sob a fantasia do progresso), atento àsdiferenças, alicerçado no próprio pacto da convivência, despido de dogmas e verdades,preocupado em incluir e, principalmente, fundado na ideia de humanidade(VIAL, 2006). Ao Direito, para que assuma a memória em toda a sua extensão,faz-se necessário, portanto, que seja fraterno:9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos SantosÉ, nesta perspectiva, em conjunto com as mais diversas áreas doconhecimento, que o direito moderno deve ser estudado, aplicadoe refletido, e não apenas, como tradicionalmente vem ocorrendo, apartir da ótica dogmática e formalista. Estudar o direito a partir deuma visão transdisciplinar implica em construir um novo referencialpara a própria ciência do direito, o qual deve se fundamentar em183


outras áreas de estudos que estão intrinsecamente ligadas “com” e“nos” fenômenos sociojurídicos. (VIAL, 2006, p. 129)O mosaico da memória somente pode atingir o seu formato definitivo emostrar em toda a sua extensão o desenho que buscou construir com a junção deseus fragmentos mnemônicos a partir da otimização da ideia de Direitos Humanos.Para tanto é imprescindível a assunção de uma responsabilidade compartilhadapelo instante do tempo presente:PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS184O direito fraterno coloca, pois, em evidência toda a determinaçãohistórica do direito fechado na angústia dos confins estataise coincide com o espaço de reflexão ligado ao tema dos DireitosHumanos, com uma consciência a mais: a de que a humanidade ésimplesmente o lugar “comum”, somente em cujo interior pode-sepensar o reconhecimento e a tutela. Em outras palavras: os DireitosHumanos são aqueles direitos que somente podem ser ameaçadospela própria humanidade, mas que não podem encontrar vigor,também aqui, senão graças à própria humanidade.[...]A humanidade, então, despojada do seu conteúdo metafísico, nosencontra descobertos diante das nossas responsabilidades na searados Direitos Humanos: o direito fraterno pode ser a forma mediantea qual pode crescer um processo de auto-responsabilização,desde que o reconhecimento do compartilhamento se libere darivalidade destrutiva típica do modelo dos “irmãos inimigos”.(RESTA, 2004, p. 13-14)De fato, a rememoração em sua face jurídica – a de um direito à memória– não pode menosprezar a sua índole política (inerente à própria memória). Daíporque ela exige, em sua ratificação jurídica, um compromisso conjugado, em queo pacto pela retomada dos escombros do passado não se dá para que hostilidadessejam neutralizadas (modo como o Direito ainda hoje estabelece os seus códigose como, infelizmente, parece ter sido concebida no Brasil a Comissão da Verdade),mas para que a própria comunitas manifeste-se como a “face trasmutada da amizadepolítica” (RESTA, 2004, p. 35), típico semblante do direito fraterno, portanto.A consecução dos Direitos Humanos – entre os quais se insere o destinado àmemória – deve se preocupar com as responsabilidades por todos assumidas, como passado que revigora os prenúncios do tempo presente, e não com insatisfatóriasremissões a uma figura central e hierarquizada, o Estado soberano, supostamente


o único responsável pelo enfrentamento das violências que o momento do agoraenfrenta. Logo, já não interessa o binômio amigo e inimigo; antes dessa oposiçãoanuncia-se a comunitas como um valor congregador e conciliador que, previamentea qualquer pronunciamento judicial ou compreensão legislativa, permite o enfrentamentomediado dos traumas e dos conflitos sociais que o passado trouxe parao agora, sem nunca perder de mira a aposta inclusiva e aberta à repaginação dopróprio cosmopolitismo (RESTA, 2004), espaço último da memória humanizada.O anúncio do direito à memória, além de refundar o próprio entendimentoda rememoração, implica um novo olhar sobre a dinâmica do Direito: os seusfundamentos, se é que existem ou podem persistir, devem ser repensados. Afinal,pela ideia de fraternidade é a comunidade quem delimita o seu próprio pacto e,com ele, delineia o que lhe é urgente e importante. É entre essas escolhas políticas,por meio desse compromisso fraterno – entre escolhas políticas conjuntas e compromissospartilhados, portanto –, que o direito à memória pode ser conjugadoem todos os seus tempos e modos verbais. Fora disso, linearidades insatisfatórias odefinirão e os medos dos abusos da memória (TODOROV, 2000), eventualmenteexcludente, hierarquizada, perfeccionista, anunciadora de pretensas verdades edespreocupada com o tempo presente, tornam-se receios fundados.Não se trata, em absoluto, de apontar, a partir disso, uma resposta definitivae intransigente para a problemática da memória. A intenção é justamente oposta:possibilitar novas análises que superem o modo deficitário como o Direito brasileiroainda contempla, em sua ideia de hierarquização, as relações entre memória,esquecimento e perdão. A persistência do direito à memória em face de anistiaspolíticas e a compreensão de uma justiça transicional constituem derivativosimediatos desse problema, que somente a ótica de um novo Direito, despido dasamarras positivistas e distante do progresso sonhado pelos vencedores, pode enfrentar.Para a memória política, a sobrevivência da lembrança não se dá apenas noreencontro dos vestígios ou na preservação dos rastros, mas como apelo ético queas vítimas transportam para o tempo presente. É a violência o que está em jogo.A memória, neste nível ético-político, na confrontação com as barbáries impingidasao Outro – e também aos próximos – não é apenas “obrigada” (RICOEUR,2007, p. 99), mas necessária à dívida que nos solicita e ao inventário que o tempopresente invariavelmente busca refazer: sob o pretexto de um progresso (na históriajá contada e insuficiente) ou segundo as narrativas revigoradas dos vencidos(em uma história que se anuncia redentora e possível, inclusive como base ética).O desafio enfrentado por Ricoeur (2007), ao tentar compreender as interco-9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos185


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSnexões entre a memória, a história e o esquecimento, surpreendentemente passouao largo do apelo ético desenvolvido por Benjamin em suas teses sobre o conceito dehistória (2008), dedicadas a encarar esse problema, ainda que para tanto tenhamassentado a necessidade de repensar a posição dicotômica dos vencidos e dos vencedorese rechaçado a ideia de um inevitável progresso como percurso inerente ànarrativa histórica.Em sua incursão pelos desafios da memória, ele se limita a utilizar as contribuiçõesbenjaminianas já ao final do caminho, não por acaso sob o sugestivotítulo de História infeliz?, numa isolada remissão à tese IX 194 . Além disso, afirmaequivocadamente que a junção dos fragmentos – dos vencidos, portanto – seriapossível apenas “se o futuro pudesse salvar do esquecimento a história dos vencidos”(RICOEUR, 2007, p. 506). Na verdade, a proposta benjaminiana se dá comoalerta ao tempo presente (LÖWY, 2005), em clara oposição a um imaginado tempodo progresso. Logo, não se anuncia o futuro como o momento da redenção ou afoz do progresso; este, ao contrário, apresenta-se como o dever de cada instante,traduzindo-se no momento do agora.A proposital exclusão de Walter Benjamin do debate proposto por Ricoeur(2007) surpreende, mas é compreensível: para o pensador francês, o apelo éticoda rememoração, aquela exigida pelas vítimas como anseio da própria justiça(com todos os riscos da sua equiparação com a verdade), caracterizaria um deverde memória, compreendido apenas nos rígidos limites entre os usos e abusos tantoda memória como do esquecimento:A questão colocada pelo dever de memória excede assim os limitesde uma simples fenomenologia da memória. Ela excede até os recursosde inteligibilidade de uma epistemologia do conhecimentohistórico. Finalmente, enquanto imperativo de justiça, o dever dememória se inscreve numa problemática moral que a presente obraapenas resvala. Uma segunda evocação parcial do dever de memóriaserá proposta no âmbito de uma meditação sobre o esquecimento,186194 Tese IX de Walter Benjamin (BENJAMIN, 2008, p. 226): “Há um quadro de Klee quese chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encarafixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da históriadeve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos,ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína e as dispersa a nossospés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestadesopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essatempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoadode ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.


em relação com um eventual direito ao esquecimento. Seremosentão confrontados com a delicada articulação entre o discursoda memória e do esquecimento e o da culpabilidade e do perdão(RICOEUR, 2007, p. 104).Depreende-se, assim, que a conjugação da memória e da história (e os correlatosvínculos com o perdão e o esquecimento) é tratada à margem dos problemaséticos que suscita. Embora estes percalços não sejam desprezados – poisRicoeur (2007) está ciente de que a condição histórica de afirmação da memóriaconsolidou-se após os horrores da Segunda Guerra – não são tomados como umpossível fundamento para a ilustração do mosaico da memória. Não há, assim,uma preocupação clara em situar a dinâmica da memória a partir da violênciaque é tanto a sua origem como o seu palco de combate.Esse alerta é de fundamental importância para uma filtragem crítica das concepçõesque Paul Ricoeur tece a respeito dos abusos da memória e do esquecimento,expressos em três frentes: (a) uma memória impedida, em que os esquecimentosocorrem pela impossibilidade de ter acesso ao passado e, consequentemente, derealizar o trabalho de luto; (b) uma memória manipulada, em que o esquecimentoé fruto da seletividade, no mais das vezes ideológica, do passado a ser narrado notempo presente e, finalmente, (c) um esquecimento comandado (não seria sinônimode uma memória proibida?), em que o acesso ao passado não é permitido combase em um dever de esquecimento imposto por anistias políticas, supostamentenecessárias ao apaziguamento social.Ainda que a retomada integral do passado seja, de fato, algo impossível (aseletividade da própria memória a impede), não será essa contingência do esquecimentoque impossibilitará o resgate das reminiscências que parecem adormecidas,mas para cujo despertar basta a rememoração. Em outras palavras: mesmo osesquecimentos persistem como memória. Pulsam calados na escuridão da noite,aguardando a claridade da manhã para que sejam vistos. Tão logo visualizados,já não serão esquecimentos, mas lembranças desprezadas que agora vêm à tona,trazendo consigo a inquietante dúvida: Como foi possível esquecer, ainda quemomentaneamente?Assim, como acertadamente aponta Todorov (2000), a memória não se opõeao esquecimento. Ambos fazem parte da mesma dinâmica. A seleção mnemônica,todavia, ao menos quando é tomada em seu recorte político, não pode se furtarao apelo ético que a reclama. É a partir disso, apenas, que a imposição de anistias9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos187


– principalmente quando partem de um centro difusor ilegítimo (quando é o própriopoder autoritário, e não o povo, por meio de suas assembleias representativas,que as institui – RICOEUR, 2007) – revela-se deficitária ao plano da memória:Ninguna institución superior, dentro del Estado, debería poderdecir: usted no tiene derecho a buscar por sí mismo la verdad delos hechos, aquellos que no acepten la versión oficial del passadoserán castigados. Es algo sustancial a la propria definición de lavida en democracia: los individuos y los grupos tienen el derechode saber, y por tanto de conocer y dar a conocer su propia historia;no corresponde al poder central prohibírselo e permitirselo.(TODOROV, 2000, p. 16-17).PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSNa dinâmica da memória, portanto, os esquecimentos se dão justamente apartir do que foi obstado à memória. Mesmo assim, a memória, em toda a suaplenitude, e contrariamente ao influxo do abuso do esquecimento admitido porquaisquer anistias, preserva-se latente, apenas aguardando o instante para vir àtona como escolha política.Não se pode ignorar, ainda, que o risco do esquecimento diz tanto quantoo temor do excesso da memória. Se uma das faces dos abusos da memória residena autorreplicação indefinida das vítimas em busca de vantagens no jogo político(o estado de eterna vítima impossibilitando, por sua própria natureza, qualquerreparação pontual e ensejando um privilégio permanente na disputa dos interessespolíticos: um típico “estatuto da vítima” – TODOROV, 2000, p. 54), umdos semblantes dos abusos do esquecimento, por sua vez, é justamente ignorar a“prioridade moral que cabe às vítimas” (RICOEUR, 2007, p. 102) como dívidatransmitida pelo passado.Nessa paradoxal construção sem formas geométricas definidas – contrariamenteao que deseja o direito em sua clássica vertente positivista –, a memóriasurge como a luta diante do esquecimento. Este, por sua vez, emerge como amemória simplesmente proibida, velada ou – e isso é de singular importância nahistória política brasileira – anistiada. Compreende-se, então, o aviso de Mate(2005, p. 124):188A memória surge do hiato entre incompreensibilidade e conhecimentoe é a categoria adequada que serve ao caráter inaugural,originário do acontecimento. Se Auschwitz é o que dá o que pen-


sar, o é devido à presença constante em nosso presente de um atopassado que está presente para a razão graças à memória.Anistias, portanto, não impõem o esquecimento: julgam o passado comouma realidade já decorrida, ou que não deva ser retomada justamente em prol doacordo político arranjado para a paz social, mas não têm a força necessária parafazer do “não lembrar” a mesma exigência ética que desperta o “dever de memória”em face dos trajetos inconclusos, do progresso imposto e das vítimas das violências.Embora almejem o “fazer esquecer”, o que as anistias impostas efetivamenteconseguem reside no “adiar a memória”; o passado que obstam permanece latentee as suas violências exigem – ainda que subterraneamente (POLLACK, 1989) – oimprescindível trabalho de luto, no alerta que todos os projetos vedados anunciamao tempo presente. Enquanto a memória não opera às claras, é a violência quetrabalha na autorrepetição (certa de que a impunidade, no anúncio do esquecimento,será o seu escudo):O passado não intervém transformadoramente no presente graçasa sua própria perfeição, mas para sua não-realização e para suaartificiosidade que comungam com as exigências que nascem deum presente irreconciliado. As exigências não cumpridas do passadoabrem os olhos para as atuais e reclamam seu cumprimento.(ZAMORA, 2008, p. 224)Se a memória e o esquecimento transitam no mesmo caminho, porém emsentidos opostos (a memória trazendo à tona justamente o que não pode ser esquecidoe o esquecimento apenas adiando a inevitabilidade da memória) o queentão é possível dizer sobre a conjugação dessa realidade com a ideia de um perdão,o horizonte compartilhado tanto pela memória como pelo esquecimento?Uma advertência inicial pode dar a tônica do problema a ser enfrentado: “Oque oculta a política amnésica não é tanto um passado vergonhoso quanto a violênciasobre a qual está fundada a política atual, e que esta exerce para mantê-la”(MATE, 2005, p. 164). Diante disso, que perdão é possível construir (concederou aceitar) quando as violências geradas persistem, inacabadas ou repetidas? Maisdo que isso: a anistia teria a potencialidade, já que o esquecimento que propôsnão modificou a expectativa da memória, de instaurar o perdão?O perdão, em sua própria concepção, surge como uma resposta possível àculpa, atribuível a alguém em virtude de suas faltas: o perdão, mormente em casos9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos189


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSextremos como os de crimes contra a humanidade, pressupõe a possibilidade dapunição. Aliás, é justamente em virtude dessa concepção, de crimes extremamentegraves, que encontra justificativa a ideia de um crime imprescritível, imune, emtese, ao próprio perdão (RICOEUR, 2007).De fato, ao inocente – àquele que não pode ser culpado – o perdão nadadiz. Como, entretanto, alçar o perdão ao faltoso? Para tanto faz-se necessário oimplemento de alguma condição ou o perdão, por si só e na sua intrínseca natureza,deve apenas ser concedido? Se o “milagre da memória” (RICOEUR, 2007,p. 508) possibilita flexibilizar a rota do esquecimento justamente pela evocação doreconhecimento e atribuição de identidade a uma dada situação, a certas pessoasou a alguns eventos (o que foi aparentemente esquecido não deixa de ser memória;é sobre o instante do esquecimento que se debruçam as reminiscências queagora vêm à tona), o instante do perdão também permite, e mesmo exige, que serememore e que a memória então obtida, focalizando a violência ocorrida, nãogere punição; não porque o agressor não possa ser punido, ao contrário, ele deveser punido, mas porque a vítima aceita a superação do trauma experimentadomediante a remissão do seu ofensor.Os paradoxos são claros e insuperáveis: o esquecimento só conhece a si mesmoquando se torna memória, a memória só irradia a sua urgência ao tempo presentequando se depara com os esquecimentos que a ameaçam e o perdão pressupõe aatividade da memória quando almeja o apaziguamento social e a superação dostraumas violentos.Nesse sentido, merece realce a necessidade, que o senso comum geralmenteinvoca, de que o perdão seja concedido após um pedido do agressor à vítima, emuma dinâmica de construção conjunta da própria memória (porque ela, ao cabo,é política) 195 . De fato, o perdão concedido – seja um dom seja a resposta a umasúplica – não suprime a evidência, que mesmo Ricoeur (2007) admitiu, de queapenas ocorre diante de outrem: somente um Outro pode perdoar, vedando-se,com isso, um imaginado e inexistente autoperdão, que suprime já em sua origem190195 A respeito dos dilemas que suscita o perdão em sua vertente política, Hannah Arendt eJacques Derrida dão a tônica do problema: enquanto Arendt situa a experiência do perdão comoum ato compartilhado, destinado a impedir a continuidade do que até então parecia irreversível,revelando-se, assim, como uma (re)ação política imersa numa ideia de alteridade, Derrida rejeita aassociação do perdão à reconciliação, insistindo que ele, para ser considerado como tal, não poderiase sujeitar a qualquer condição e tampouco poderia ser institucionalizado. A respeito do tema e dacompreensão de Arend e Derrida: OLIVEIRA, 2009.


qualquer resquício de alteridade e, mais do que isso, admite uma retrospectivaexcludente do passado que o fundamenta.Além disso, contudo, como será possível perdoar sem que se estabeleça umadialética pactual entre a vítima e o seu agressor? 196 No caso das violências de umgoverno, como aceitar que o perdão seja pura e simplesmente dado pelos cidadãosao Estado quando este se nega a participar da construção conjunta da memória ouinsiste na sua proibição? Como é possível que alguém reclame o perdão sem que,ao mesmo tempo, revele a própria face para que, aos olhos das vítimas, tambémpossa ser visto como o Outro a compor o mesmo habitus?O amor aos inimigos, dom de quem perdoa, não exigiria – senão o pedidode perdão – ao menos o manifesto interesse, exercido conjuntamente, em retomaras mazelas da memória e discriminar cada um dos escombros deixados para trás?Essa dialética, no pacto que aproxima e inclui, exige, sim, o pedido de perdão,inclusive para que o qualificativo inimigo seja superado pela ideia da igualdadeno espaço público. Trata-se do necessário reconhecimento, esperado e vindodaquele que fez uso da violência, dos abusos que praticou e dos males que a suaopção permitiu. A vítima e o algoz, então, encontram-se: já não há mais gradesou amarras a separá-los e somente assim, nessa igualdade de discursos, o perdãosolicitado, pela admissão da violência e diante da certeza de que a falta ensejaalguma responsabilização, poderá ser atingido.O fato de a vítima negar-se a dar o seu perdão e mesmo a aceitar o pedido dedesculpas de seu agressor não alterará a dinâmica da memória. Aliás, exceto diantede uma previsão normativa específica e para determinadas espécies de crimes (oque não inclui crimes contra a humanidade), nem mesmo o perdão concedidotem a capacidade de obstar a responsabilização jurídica cabível. Trata-se do alertade Agamben (2008): assumir uma culpa e receber o perdão no plano moral nãoimpede a responsabilização jurídica, mormente a indenizatória, como a experiênciasul-africana demonstra, pelas violências praticadas.O que o pedido de perdão traz consigo é a indevassável tentativa de que9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos196 O exemplo utilizado por Ricoeur (2007, p. 491-492) é pontual: a comissão “Verdade eReconciliação” na África do Sul, destinada a superar os traumas do apartheid vivido naquele país.Ainda que o equacionamento da dinâmica memória – perdão – esquecimento não tenha sido atingidode modo satisfatório (os acusados utilizaram a possibilidade do pedido de perdão para imunizarem--se diante de eventuais persecuções judiciais), o fato é que foi concedida uma “chance histórica auma formação pública e de luto a serviço da paz pública”. Essa compreensão é corroborada porColvin (2008, p. 147): “exigía así mismo que quienes solicitaban la amnistía hicieran una ‘completarevelación de todos los hechos relevantes relacionados con [estos] actos’”.191


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS192alguma conciliação seja possível. A memória, para tanto, é de fundamental importânciae o exercício do direito à memória apresenta-se como a face mais agudapara o enfrentamento dessa problemática. Será pela rememoração que o passadoressurgirá no tempo presente, suas violências serão retomadas e continuamenteesclarecidas. Perdoar pressupõe justamente isso: o exercício da memória, para queos traumas, embora inesquecíveis, possam ser aplacados.A dinâmica do perdão, manifestação última da própria memória, constituium dos passos possíveis para uma relação entre iguais, dissociada da excludentecompreensão de amigos e inimigos: uma exigência do direito fraterno, portanto(RESTA, 2004), que rompe com estruturas hierárquicas e, na tentativa do apaziguamento,pela superação de violências derivadas de abusos do poder, a todosrecoloca, inclusive o Estado, no mesmo plano pactual. Para tanto, o recurso àmemória, em sua manifestação jurídica, é insubstituível.O somatório desse percurso aponta que a anistia igualmente peca quando dizque o perdão é o seu derivativo. Nem perdão, nem esquecimento; o adiamentodas memórias é a única possibilidade que as anistias conseguem modular (não foidiferente com a anistia construída em solo brasileiro em 1979, faceta que a própriapolítica percebeu em seus posteriores desdobramentos legislativos). Afinal de contas,A hipótese de um perdão exercido de si para si mesmo é duplamenteproblemática; de um lado, a dualidade dos papéis de agressore de vítima resiste a uma inteira interiorização: somente outropode perdoar, a vítima; de outro lado, e essa ressalva é decisiva, adiferença de altura entre o perdão e a confissão da falta não é maisreconhecida numa relação cuja estrutura vertical é projetada numacorrelação horizontal (RICOEUR, 2007, p. 485-486).O perdão, portanto, traduz-se na disposição de superar o irreparável. Tudojá foi rememorado, a memória foi exercitada, os escombros foram catalogados,as vítimas foram contadas e os algozes conhecidos. O inventário foi feito, independentementeda proibição de anistias ou de outros abusos do esquecimento;o passado aqui está, disposto em fragmentos à nossa frente. A violência, é certo,persiste e os trajetos inconclusos aguardam uma resposta e a responsabilização jurídicadaqueles que os geraram. É precisamente aqui que se pode falar em perdão.Quando alguma voz, ainda que vacilante, solicitá-lo, colocando-se, finalmente,em pé de igualdade com aqueles que outrora subjugou e calou, que seja ouvida(e ouvir não é perdoar, tampouco esquecer), em prol, agora sim, da reconciliação


social sonhada, permitindo que a comunitas faça da inclusão, pela memória, umade suas categorias fundantes.Concebendo-se o perdão como o horizonte último da rememoração, parecenão haver dúvidas de que mesmo ele exige o exercício do direito à memória. Docontrário, o esquecimento poderá ser imposto e o ciclo estará fechado: os esquecimentosimpedirão a memória, que não exercitada coibirá o perdão. A memóriaé o juramento às vítimas da história de que os seus planos de vida merecem recuperação.Embora irrealizáveis neste momento, eles nos endividam e para semprenos apelam.9.3 A INSUFICIÊNCIA DO DIREITO BRASILEIRO PARACOMPREENDER A DINÂMICA DA MEMÓRIA: A DECISÃO(EQUIVOCADA) DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.A Corte Constitucional brasileira, ao examinar a adequação constitucionalda Lei da Anistia de 1979, teve a oportunidade de expor o seu entendimentoacerca do processo de construção da memória política no país. Com isso, por viareflexa, indicaria se a clássica dogmática jurídica estava preparada, ou não, paracompreender esse tema, imprescindível à afirmação dos Direitos Humanos. Tratou--se do primeiro debate jurídico levado ao STF destinado a elucidar a conformaçãoda Lei da Anistia construída pelos militares em 1979 ao texto da Constituiçãobrasileira de 1988, restauradora de princípios democráticos e delineadora de umrol considerável de direitos e garantias fundamentais 197 .197 Essa é a razão pela qual – diante da proposta deste estudo em examinar as dificuldades doDireito brasileiro na compreensão da memória política e em face da proposta de uma memóriaconstruída no Brasil a partir dos substratos de um Direito Fraterno – não são examinados, aqui,os efeitos do julgamento a que se submeteu o Brasil junto à Corte Interamericana de DireitosHumanos, no emblemático caso Gomes Lund y otros vs. Brasil. De fato, independentemente dacondenação imposta ao Brasil, a necessidade da outorga de tão delicado tema a uma instituiçãojudicial autônoma da própria Organização dos Estados Americanos – OEA demonstra, por si só,as sensíveis dificuldades do Brasil em enfrentar, política e juridicamente, a temática da memória.Os discursos insistem na afirmação de dicotomias, buscam apropriar-se da verdade e confundemesquecimento com perdão. Enquanto isso, a memória das vítimas permanece insatisfeita e se umabuso pode ser detectado neste momento trata-se, apenas, do abuso do esquecimento comandado,refletido na falta de uma consciência de que a recuperação da memória importa à construção dosDireitos Humanos. A respeito da condenação do Brasil – justamente por desrespeitar o direito àmemória e, com isso, violar direitos humanos – veja-se a sentença proferida pela CIDH, disponívelem: . Acesso em 30 out. <strong>2011</strong>.9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos193


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS194Por meio do ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental–ADPF nº 153, ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB,outorgou-se ao Supremo Tribunal Federal (STF) o exame da compatibilidadedo texto da Lei da Anistia com a Constituição Federal de 1988, vale dizer, se oesquecimento desenhado em 1979 resistiria a uma análise pautada pelo ideáriodemocratizante da Constituição de 1988.Alegou a OAB que a Lei da Anistia de 1979, ao considerar conexos a crimespolíticos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticosou praticados por motivação política” (BRASIL, 1979), acabou por equiparar osperseguidos políticos aos violadores de Direitos Humanos. Com isso, nada maisfez do que ignorar as violências legadas pela ditadura militar e, consequentemente,não poderia ser recepcionada pela Constituição de 1988 que, em sua intrínsecaconstrução, pautou-se pelo respeito à dignidade humana como um de seus princípiosfundamentais (BRASIL, 1988). Buscou-se, assim, a punição dos agentespolíticos que exorbitaram de suas funções e praticaram, além de crimes políticos,crimes comuns (entre outros, torturas, estupros, desaparecimentos forçados, sequestrose homicídios).A fim de que a análise almejada não se transforme numa exaustiva retomadados votos de cada um dos ministros do STF, basta focalizar o posicionamento doministro Eros Grau, relator do acórdão (BRASIL, 2010). O seu entendimentoguiou – à exceção dos votos dos ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto– a posição dos outros seis julgadores presentes à sessão 198 . Conhecendo-se a pos-198 Um breve esboço do posicionamento dos ministros da Corte Constitucional no julgamentoda ADPF nº 153 (CANAL OFICIAL DO STF, 2010): Os votos divergentes dos ministros RicardoLewandowski e Ayres Britto entenderam que a anistia conjeturada em 1979 não possibilitaria,ao contrário do que admite o seu texto, a equiparação entre crimes políticos e crimes comuns.Enquanto Lewandowski visualizou a necessidade de analisar, a cada caso, os supostos abusos para,somente a partir disso, determinar a aplicabilidade, ou não, da Lei da Anistia, Britto entendeuque a anistia não teria o condão de acobertar crimes hediondos, como a tortura. Todos os demaisministros filiaram-se, com sutis alterações, às linhas gerais desenhadas pelo ministro Eros Grau. Oministro Celso de Mello assentou que o Congresso Nacional tinha, à época, absoluta legitimidade,diante daquela realidade social, para veicular na Lei da Anistia crimes comuns, conexos àqueles denatureza política. No entendimento do ministro Gilmar Mendes, a anistia caracterizou-se comoum compromisso constitucional que possibilitou a instauração da própria ordem democrática de1988; logo, não poderia, agora, ser rechaçada. Para o ministro Marco Aurélio, a anistia deveria sercompreendida como um ato de perdão, construído na busca de um convívio pacífico. A anistia,assim, cumprira a sua função primordial. Segundo a ministra Cármen Lúcia, a lei de 1979 poderiaser considerada como um verdadeiro armistício, que ao final das contas permitiu a transiçãodemocrática e a participação popular na vida política do país. Isso justificaria a sua manutenção.A ministra Ellen Gracie, por sua vez, entendeu que a anistia trouxe consigo a ideia de superação


tura do relator do acórdão restará conhecido o entendimento da própria CorteConstitucional sobre a correlação entre memória e anistia e no que isso repercutena afirmação e defesa de um direito à memória.O entendimento do ministro Eros Grau (BRASIL, 2010, p. 45) assenta-se,fundamentalmente, na ideia de que a Lei da Anistia de 1979 caracteriza-se comouma “lei-medida”, ou seja, um instrumento normativo que guia a atividade do intérpreteao momento histórico em que o texto foi produzido. Essa remissão absolutaao passado, àquele instante que agora pode ser retomado, indicaria os caminhospercorridos para a anistia celebrada e, assim, possibilitaria ao hermeneuta retirardo texto a norma então concebida. Nessa operação, a realidade atual não emprestariaqualquer significado para que o momento pretérito restasse compreendido.A força da “lei-medida” residiria, portanto, na sua mítica capacidade de congelaro tempo e permitir ao julgador transportar-se ao mágico instante em que ela foipactuada e, justamente daí, colher todos os seus significados.Essa ideia subjacente no voto de Eros Grau (BRASIL, 2010, p. 16) permitiu--lhe percorrer um caminho aparentemente insuspeito: se a interpretação de umadeterminada situação invariavelmente aponta para o “enunciado semântico dotexto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto”, omesmo não se dá apenas com a “lei-medida”, não por acaso a definição atribuídaà anistia, que prescreve determinada conduta e mesmo certas proibições para umdado tempo e sob certas condições (é esse tempo e são essas condições que exigemo deslocamento do intérprete até o momento passado). Por isso insiste Eros Grau(BRASIL, 2010, p. 50) na ideia de que a anistia de 1979 é, na verdade, uma “lei--medida” e “não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Háde ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada”.Daí se compreende a sucessiva enumeração que Eros Grau faz das anistiasque precederam a Lei de 1979: era preciso situá-las em seu próprio tempo e demonstrarque seria impossível entendê-las ou modular os seus efeitos em face desupostos abusos a Direitos Humanos. Trata-se de desqualificar – “como deveríamoshoje interpretar esses textos? Tomando-se a realidade político-social do nosso9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santosdo passado violento: tratou-se de um perdão das ofensas passadas para a reconciliação social. Oespírito da Lei da Anistia de 1979 deveria, portanto, ser preservado. Por fim, o ministro Cezar Pelusoafirmou que a interpretação da anistia deveria considerar a generosidade que ela buscou trazerao cenário político, tratando-se de um acordo orquestrado por quem tinha legitimidade políticapara, naquele momento, celebrá-lo. Ao final, referiu que o Brasil, com a Lei de 1979, optou pelocaminho da concórdia, escolha que não poderia, agora, ser ignorada.195


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS196tempo, nos dias de hoje, ou aquelas no bojo das quais cada qual dessas anistiasfoi concedida?” (BRASIL, 2010, p. 48) – uma interpretação ditada pelo tempopresente, como se a história estivesse cristalizada em algum momento do passadoe a ela fosse necessário recorrer para que as anistias encontrassem sentido. Masse é assim – e se a anistia não pode ser compreendida a partir do que dela diz otempo presente – o que é ela além de um convite ao esquecimento?Paradoxalmente, Eros Grau, ainda que contemple a realidade fictícia de uma“lei-medida”, como se algum instrumento normativo pudesse estagnar o tempoe proibir interpretações pautadas no momento presente, admite ao final de seuvoto que “é necessário não esquecermos, para que nunca mais as coisas voltema ser como foram no passado” (BRASIL, 2010, p. 73). Contudo, o que faz aanistia – como exaustivamente alertou Ricoeur (2007) – além de conceber umesquecimento comandado, diverso de um imaginado perdão e, portanto, alheioà ideia de uma reconciliação?Nada poderia ser mais contraditório e menos ético. O passado se apresentaneste momento, no instante do presente. É agora, como exaustivamente referiuBenjamin (2008), que os escombros da barbárie nos solicitam. Diante da impossibilidadetemporal dessa escolha, uma vez que o intérprete situa-se, ele próprio,no instante do agora, o passado jamais é interpretado pelo que ele foi, mas, aocontrário, pelo olhar que o presente lhe confere. Trata-se de uma releitura necessariamenterevigorada e contínua das reminiscências, que nunca permanecemparalisadas no tempo, como se após cada uma delas a história recomeçasse. Essaaspiração, aliás, é típica do desejo cientificista da história e positivista do direito,para quem os eventos correspondem a um amontoado de acontecimentos quenarram, de modo isento e distante, o passado agora relembrado.Segue Eros Grau (BRASIL, 2010) afirmando que a tentativa de reversão dosentido da Lei da Anistia implica a desqualificação dos fatos históricos a partirdos quais ela foi pensada. Ainda que isso seja admissível, não é igualmente verossímilque as notícias de torturas, desaparecimentos forçados, exílios impostos,assassinatos e sequestros somente vieram à tona, em toda a sua extensão, após1979? Não foi justamente depois da Lei da Anistia de 1979 que se soube, comalgum respaldo probatório, que as violências do regime ditatorial eram “realidadehistórica” antes mesmo de 1979 (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 2009)?Ignorar isso igualmente desqualifica fatos históricos para eleger supostas verdades.Afirma Eros Grau (BRASIL, 2010, p. 43): “há momentos históricos em queo caráter de um povo se manifesta com plena nitidez. Talvez o nosso, cordial, se


desnude na sucessão das frequentes anistias concedidas entre nós”. A imaginadacordialidade do povo brasileiro, cuja comprovação antropológica ninguém jamaisdelimitou, justificaria, assim o esquecimento sugerido pela anistia 199 . Emboraconstruída em pleno regime militar, a anistia, graças a essa cordialidade, trariaconsigo um perdão por todos sonhado. As violências seriam esquecidas e a Lei de1979 deveria, por isso, persistir, mesmo após o advento da Constituição de 1988,inclusive porque esta, sem a Lei da Anistia, não faria parte da realidade.Finalmente, para julgar improcedente a ação ajuizada pela OAB, perguntaEros Grau (BRASIL, 2010, p. 58) sobre a legitimidade do acordo que representoua Lei da Anistia de 1979: “[...] diz-se que o acordo que resultou na anistia foiencetado pela elite política. Mas quem haveria de compor esse acordo em nomedos subversivos?” A resposta mais apropriada talvez já tivesse sido dada, mas nãolida pelo STF, por Ricoeur (2007, p. 462): a dinâmica da anistia pressupõe queseja “confiada à nação soberana em suas assembleias representativas [...] O direitorégio, a não ser por uma exceção (o direito de graça), é transferido ao povo”.No Brasil, por mais que se tente argumentar em sentido diverso, a eleiçãoda democracia como valor norteador do próprio Estado somente foi retomada apartir de 1988, com a nova Constituição da República. Antes disso, havia apenastentativas, remendos dos famigerados Atos Institucionais da ditadura, merosresquícios de participação política, sempre fiscalizada pelos militares, em um paístraumatizado pelas armas. A construção histórica admitida pelo Supremo TribunalFederal – mesmo problema do Direito no Brasil – repousa numa crençaintransigente na ideia de progresso: a anistia teria sido um caminho conjeturadopelas forças em disputa política, um acordo plantado para a paz social, enfim,uma espécie de mal necessário para que o futuro democratizante restasse alcançado.Essa é a razão que justificou o levantamento histórico das sucessivas anistiaspactuadas em terra brasileira.Todavia, o STF esqueceu, em seu esforço descritivo, de referir que a anis-9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos199 A vinculação do “homem cordial” ao ideário do povo brasileiro foi trabalhada, sob outraperspectiva, por Buarque de Holanda (1995), a fim de elucidar, apenas, a dificuldade cultural dopovo brasileiro para dar espaço às práticas democráticas. Trata-se de uma denúncia ao modo deconstrução da própria sociedade brasileira e não, como ingenuamente admitiu a Corte Constitucional(ou teria sido proposital?), de uma construção antropológica que indica um povo que tolera,perdoa, aceita e anda de braços dados com os seus inimigos em direção a um novo tempo. A própriaremissão do STF às dezenas de anistias construídas em solo brasileiro em sua história política deveriaservir como o alerta definitivo de que os esquecimentos comandados não conseguiram construir oprogresso desejado pela história e não conduziram a um efetivo perdão.197


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS198tia – que não é um instituto exclusivamente brasileiro – encontra a sua origemem Atenas (403 a.C.), em um decreto que proibiu, pelo juramento nominativodos cidadãos, qualquer lembrança dos conflitos que restabeleceram a democraciaapós o governo tirânico apoiado por Esparta, a denominada Oligarquia dos Trinta(RICOEUR, 2007).Ignorou o STF, portanto, sob a censurável tentativa de reescrever a história,que a compreensão da anistia está umbilicalmente ligada à ideia de um esquecimento,imposto porque necessário. A história do progresso, então, a mesma quesempre pautou o desprezo dos vencidos, sedimentou a atividade da Corte Suprema.As custas disso – as vítimas, a barbárie, a violência, os caminhos inconclusos– deveriam ser sopesadas diante desse ganho, desse horizonte de perspectivasanunciado pela anistia. Pouco importa, assim, que a anistia seja caracterizada pelasua objetividade ou bilateralidade, como quis Eros Grau, pois a tentativa é sempreamnética: modular um esquecimento comandado (RICOEUR, 2007), em queo acesso ao passado é necessariamente proibido por força de um “compromisso”imposto (no caso brasileiro, por mais que o significado político da anistia sejadefendido, a sua construção se deu a partir do que aceitaram os militares, queainda exerciam, sob a proteção das armas, o governo brasileiro, inexistindo umareal e livre participação da sociedade civil, o que se deu apenas a partir de 1988).A compreensão do STF não apenas menosprezou a dinâmica inerente àconstrução amnética da anistia (esquecimento por natureza) como igualmenteobstou o recurso à memória como derivativo para o perdão, que a Lei da Anistiajulgou construir. O perdão imaginado – na impossibilidade de seu próprio anúncio– não se deu pelo reconhecimento de um Outro, mas se constituiu em um autoperdão,prática despida de legitimidade. Admitir essa possibilidade caracteriza-secomo um entendimento pragmático que ignora a dinâmica da rememoração e aconsolidação da memória como apelo ético. Talvez a grande conquista do STFtenha sido, apenas, alocar a prática da memória como vetor político necessário afuturas modificações legislativas, perspectiva já em curso no Brasil. Isso, contudo,não eximiria o Poder Judiciário, tão pródigo em suas discricionariedades, demodular a memória segundo os filtros do Direito e compreender a rememoraçãona totalidade de sua dinâmica.Ainda que a apreensão do passado restasse admitida e fosse possível retrocederà realidade que cercou a Lei da Anistia de 1979, como desejou o STF aoanunciar que a Lei da Anistia de 1979 precedeu à Convenção das Nações Unidasde 1984 contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, seria impossível


menosprezar que já naquele momento – aliás, desde 1948 – o Brasil submetia-sena ordem internacional, ainda que sob o enfoque meramente programático 200 ,às diretrizes da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (BRASIL,2010), que, entre outras disposições, proibia distinções políticas (artigo II), garantiaa preservação da liberdade, da vida e da segurança pessoal (artigo III), vedavaa prática de torturas, tratamentos ou castigos cruéis, desumanos e degradantes(artigo V), obstava prisões, detenções ou exílios arbitrários (artigo IX) e asseguravao acesso de qualquer pessoa a um julgamento justo e público (artigo X). Nadadisso, durante o período ditatorial de 1964 a 1985, foi observado pelo regimemilitar em face dos dissidentes políticos. Até hoje – mas o tempo presente parecenão importar ao STF – vítimas permanecem insepultas e os episódios que dão oformato à memória insistem em ser sonegados sob a paixão dedicada ao progressotrazido pela paz social que a anistia almejou construir.É possível dizer, então, que o STF ignorou por completo a dinâmica damemória. Com isso, evidenciou o seu atrelamento a uma realidade jurídica jásolidificada, mas insatisfatória: aquela em que bastam as hierarquizações, em quea comunitas submete-se e não participa, na qual a dicotomia amigo – inimigopersiste como a infalível realidade, onde as hostilidades devem ser neutralizadaspoliticamente e para quem a humanidade ainda é vista como uma promessa vaziae não como um código seletivo do próprio direito. Trata-se da prova irrefutávelde que a memória, para ser construída em solo jurídico, ainda necessita de umanteparo que lhe escapa ao controle: a afirmação de um direito comprometidocom a inclusão e com a diferença, com os novos relatos e com as violências dopassado; um direito fraterno, rejeitado pelo ministro Eros Grau e desconhecidopelo Supremo Tribunal Federal.9.4 A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: RESPOSTA AO APELOÉTICO DA MEMÓRIA9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos SantosEsse compromisso com a memória, inclusive diante do fato de que ela é opróprio alerta ao tempo presente (BENJAMIN, 2008; TODOROV, 2000), ganhaespecial significado quando os regimes autoritários são depostos, circunstância200 Sobre as diversas compreensões a respeito tanto do alcance como do valor jurídico daDeclaração de 1948, que o presente estudo compreende como uma carta designativa, com forçaobrigatória, dos próprios Direitos Humanos, veja-se PIOVESAN, 2007.199


PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSque, juntamente com a contabilização das violências e a enumeração das vítimas,exige a (re)construção do rule of law, ou seja, do domínio da lei como resposta aovácuo de legitimidade, de poder e de autoridade deixado pelo governo ditatorial(ONU, 2004). É sob essa perspectiva que se desenvolve a ideia contemporâneade justiça de transição, que não possui um prazo previamente determinado paraque seja concebida ou para que ganhe a sua máxima eficácia.As práticas transicionais admitem em sua gênese uma estruturação transformativa:confrontam a barbárie do passado, investigam os abusos a DireitosHumanos, almejam punir os algozes, valorizam a prática da memória e buscam areparação dos lesados sempre tendo como estratégia a preservação dos direitos dasvítimas e como meta a consolidação das transformações políticas democratizantes(BICKFORD, 2004). São quatro os pilares em que se assenta a justiça de transição:(a) investigar e punir os violadores de Direitos Humanos; (b) revelar às vítimas,aos seus familiares e à sociedade, a partir de fatos confiáveis, a verdade referenteaos eventos violentos; (c) oferecer às vítimas reparação adequada e, finalmente,(d) impedir que aqueles que violaram Direitos Humanos exerçam cargos públicosou que mantenham alguma posição pública de autoridade (MÉNDEZ, 1997).A importância das práticas transicionais repousa na própria superação do legadode violências. A partir da análise comparada da Political Terror Scale – PTS 201 ,Sikkink e Walling (2007) diagnosticaram que nos países Latino-americanos quejulgaram as violências praticadas durante as suas ditaduras houve posterior diminuiçãono percentual de ofensas a Direitos Humanos. Nos Estados que iniciaramhá mais tempo os julgamentos e naqueles em que, além dos julgamentos foraminstauradas Comissões da Verdade, foi ainda mais perceptível a diminuição deatentados a Direitos Humanos. Verifica-se, então, uma relação diretamente proporcionalentre as práticas transicionais – que, por sua própria natureza, envolvema recuperação da memória – e a proteção dos Direitos Humanos.Paradoxalmente, é a situação brasileira quem comprova, em definitivo, o200201 A Escala de Terror Político trata-se de uma medição dos níveis de violência e terror políticosque um Estado experimenta em um ano em particular. A escala divide-se em cinco níveis, que podemser assim resumidos: 1 – ofensas a Direitos Humanos e à Cidadania são extremamente raras;2 – perseguições políticas e abusos são raros, mas alguns indivíduos são atingidos; 3 – execuções,assassinatos e brutalidades por força de perseguição política ocorrem; 4 – violações a direitos civise políticos atingem elevado número da população, sendo comum a tortura e os desaparecimentose 5 – regime de terror, em que os governantes não conhecem qualquer limite na prática de abusosa quaisquer direitos civis e políticos. Os dados para a composição da escala são obtidos junto àAnistia Internacional e ao Relatório Anual de Direitos Humanos do governo dos Estados Unidos(PTS, 2010).


argumento. Ao optar pela anistia, em 1979, o Brasil abriu mão da investigaçãoe dos julgamentos de todos aqueles que, durante o período ditatorial, violaramDireitos Humanos. Ao mesmo tempo, ignorou a necessidade de reparação dasvítimas e não se preocupou com a possibilidade de os algozes da ditadura aindaocuparem cargos públicos ou exercerem alguma relação de autoridade.Não bastasse isso, o Brasil menosprezou o direito à memória que socorriatanto às vítimas como aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos. Tudose passou como se um novo tempo pudesse ser construído sem qualquer passado.Essa realidade, embora não tenha se concretizado, foi contrariada de modo efetivoapenas com a Lei dos Desaparecidos de 1995, vaticinando a Lei da Anistia de1979 a um trajeto inconcluso.Entre 1979 e 1995 o Brasil – ao supervalorizar a sua tentativa amnética,em um claro esquecimento comandado (RICOEUR, 2007) – construiu o seupróprio vácuo de memória. Nada pôde esquecer, mas igualmente nada conseguiuperdoar. As consequências dessa opção são matemáticas e atingem a própria noçãode democracia: segundo os levantamentos de Sikkink e Walling (2007), antes datransição democrática, a Escala de Terror Político (PTS) no Brasil atingia 3.2; após,aumentou para 4.1. Apenas a título de comparação, a Argentina e o Chile, queantes dos julgamentos das ofensas a Direitos Humanos tinham a PTS estimadaem 4, observaram a redução da mesma, após os julgamentos que efetuaram edurante a transição, para 2.3 e 2.8, respectivamente.Não há dúvida, portanto, de que a justiça de transição – cujas práticas envolvema recuperação da memória das vítimas e das violências que caracterizaramos períodos autoritários – permite o fortalecimento das instituições democráticasjustamente pelo respeito aos Direitos Humanos, o que não é garantido apenaspela transição democrática (SIKKINK; WALLING, 2007).O direito à memória amplia o seu significado – como garantia às vítimas eaos próximos de que a violência sofrida será rememorada, em satisfação aos sofrimentosimpostos no alerta inabalável ao tempo presente – justamente quandopráticas transicionais miram o horizonte democrático, em que a barbárie autoritáriadeve ser aplacada e superada. Como adverte Méndez, em entrevista a Mezarobba(1997), ainda que cada país e cada sociedade possam encontrar o próprio caminhopara implementar os mecanismos transicionais, decidindo o momento e os procedimentosque devem levar a efeito, há princípios mínimos a serem observados,tendo em conta a sensibilidade inerente às vítimas.Disso derivam algumas implicações intercorrentes: a memória das vítimas9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos201


apresenta-se à justiça de transição como o pressuposto necessário à almejada reconciliação;o alerta das violências do passado constitui outro fundamento para aspráticas transicionais, a fim de que no tempo do agora – em que cada explosão dasreminiscências ilumina o espaço vazio dos aparentes esquecimentos – nenhumaviolência autoritária volte a ser praticada e, finalmente, os relatos e testemunhosda violência, característicos da construção da memória e necessários à Justiça deTransição, são a única possibilidade para que a democracia concretize de modoefetivo a prática de Direitos Humanos, sonegados pelos governos ditatoriais.Haveria, contudo, uma última dúvida: toda a rememoração findaria no espaçopúblico da justiça transicional? A resposta é “sim” e “não”: sim, se o direito persistircom os seus atuais códigos, fechado à diversidade e à pluralidade, renitente emconstruir as suas exclusivas impressões do humano e obstinado a levar adiante, naconstrução de suas normas, a mesma história dos vencedores que tantas violênciasgerou; não, se alguma aposta, por menor que seja (que a justiça de transição trazem seu código genético), for feita na humanidade, num direito compartilhadoentre iguais e jurado em conjunto (RESTA, 2004).PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS2029.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A MEMÓRIA POLÍTICAALICERÇADA EM UM DIREITO FRATERNOA aposta da justiça de transição repousa na tentativa de conjugação dosinteresses até então conflitantes, perspectiva insuperável para que a memóriaseja construída juridicamente. Não é por outra razão que as práticas transicionais– peculiaridade que os procedimentos usuais do direito ainda menosprezam– continuamente demandam a ampliação de seu próprio horizonte, admitindoinclusive a ideia de um novo palco para a manifestação da cidadania: o denominado“ativismo jurídico transnacional” (SANTOS, 2007, p. 30), uma espécie deativismo que escapa às clássicas noções de soberania e territorialidade, focado emações legais e procedimentais destinadas a alterar políticas de estado, redefinirnormas – inclusive internacionais – de Direitos Humanos e obstar quaisquer espéciesde abusos, a partir de petições dirigidas a órgãos ou cortes internacionais.Ilustrativo dessa atualizada dinâmica é o caso Gomes Lund y otros vs. Brasiljunto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em que cidadãos brasileirose ONGs nacionais conseguiram, fora da esfera de soberania nacional e mediante aadequada compreensão da Lei da Anistia de 1979, a promoção da memória como


valor inerente à consolidação da democracia brasileira e necessário à consecuçãodos Direitos Humanos. Esse ativismo aponta para a interpenetração das esferaspública e privada: não importa, apenas, a satisfação de demandas individuais; épreciso criar precedentes que despertem impactos nos setores políticos, jurídicose sociais dos Estados violadores de Direitos Humanos (SANTOS, 2007).Há, na conjugação dessa nova cidadania, o desejo de uma construção conjuntae ampliada dos próprios Direitos Humanos, prerrogativa que não se limitaao espaço nacional. Nesse espaço aberto, nacional e transnacional, admitido pelajustiça transicional, o direito à memória ganha a sua máxima amplitude. Seriaperigoso admitir, porém, que o único reduto da memória é o que lhe concede omomento da transição, sob pena de que o direito à memória seja compreendidoapenas quando a humanidade está diante da superação de práticas autoritáriase não como um alerta contínuo ao tempo presente que continuamente se refaz.O que a justiça de transição revela, em última análise, é uma peculiar disposiçãode inovar, tanto diante das ordens autoritárias pretéritas como em face donovo arcabouço democrático que se desenha. O que a justiça de transição propõeé, paradoxalmente, o que o direito em seu dogmatismo clássico recusa: a reconciliaçãopensada conjuntamente. É por isso que às práticas transicionais interessam asvítimas e a rememoração dos sofrimentos; é por isso que ao direito é tão custosoe dolorido abrir mão de sua racionalidade e encarar o passado como o alerta desuas próprias e excludentes mazelas.Diria Resta (2004, p. 17) que “[...] é bem possível que o direito colonizetoda a vida, e que o juiz acabe acreditando que deva ser o julgador das virtudes e,portanto, seu único detentor legítimo”. É porque o direito à memória importa àprópria conquista dos Direitos Humanos que esse alerta deve ser levado a sério.Ou as vítimas do passado importam e a construção do instante do agora passa aser conjunta, ou o direito à memória poderá se deparar, graças à insuficiência decompreensões jurídicas, com a sua própria ineficácia.Para tanto, a aposta em um Direito Fraterno – forjado conjuntamente pelacomunitas, inclusivo em seus anseios e humanitário em sua base – revela-se umcaminho viável para que sejam superados os impasses que o Brasil enfrenta emsuas tentativas de (re)construção da memória política. Recompreender o papel doDireito brasileiro e repaginar a sua dinâmica caracteriza um processo indispensávelpara a retomada consciente – e não dicotômica – do direito à memória e, por viareflexa, dos próprios Direitos Humanos.Faz-se inadiável buscar – mediante o resgate completo de todas as violências9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos203


exercidas em nome do poder ou praticadas para alcançar o poder – uma reconciliaçãopensada conjuntamente e não de modo hierarquizado (afinal, como alertaTodorov – 2000, p.57, “es un hecho que Barbie torturaba a los miembros de la Resistencia,pero éstos hacían otro tanto cuando se apoderaban de un oficial de la Gestapo”).Assim, todas as vítimas fazem jus à memória. A rememoração de todos os abusos,a partir dessa perspectiva, fortalece a Democracia, incute uma nova consciênciaacerca dos Direitos Humanos e confronta o dogmatismo fechado e excludentedo Direito. As práticas transicionais, que partem justamente da recuperação damemória, convidam o Direito a instaurar uma autocrítica e, consequentemente,repensar a racionalidade de seus procedimentos.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (HomoSacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS204ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. 37. ed. Prefácio deDom Paulo Evaristo Arns. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie – escritosescolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986.______, Walter. Obras escolhidas II: Rua de mão única. 5. ed. São Paulo: Brasiliense,2000.______, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literaturae história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.BICKFORD, Louis. Transitional Justice. In: HORVITZ, Leslie Alan; CATHER-WOOD, Christopher (Org.). Macmillan Encyclopedia of Genocide and CrimesAgainst Humanity, USA, 2004. v. 3, p. 1.045-1.047.BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências.Disponível em: . Acesso em: 30 out. <strong>2011</strong>.______. Constituição Federal de 1988. Disponível em: . Acesso em: 30 out. <strong>2011</strong>.______. STF – Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de PreceitoFundamental nº 153. Argte.: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do


Brasil – OAB. Argdos.: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator:Min. Eros Grau. Brasília, 24 de abril de 2010. Voto de Eros Grau disponível em:. Acesso em: 30 out. <strong>2011</strong>.______, Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010. Altera o Anexo do Decreto n o7.037, de 21 de dezembro de 2009, que aprova o Programa Nacional de DireitosHumanos - PNDH-3. Disponível em: . Acesso em: 30 out. <strong>2011</strong>.______. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Disponível em:.Acesso em: 30 out. <strong>2011</strong>.CANAL OFICIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Votos dosMinistros do STF no julgamento da ADPF nº 153. Disponível em: . Acesso em 30 out. <strong>2011</strong>.COLVIN, Cristopher J. Visión general del programa de reparaciones en Sudáfrica.In: DÍAZ, Catalina (Ed.). Reparaciones para las víctimas de la violencia política.Bogotá: Centro Internacional para la Justicia Transicional, 2008. p. 139-197.HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia dasLetras: 1995.LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobreo conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.MÉNDEZ, Juan E. Accountability for past abuses. Human Rights Quarterly, v.19, n. 2, p. 255-282, may 1997.OLIVEIRA, Antônio Leal de. O perdão e a reconciliação com o passado emHannah Arendt e Jacques Derrida. Revista Anistia Política e Justiça de Transição –Ministério da Justiça, Brasília, n. 1, p.203-227, 2009.ONU. The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies –Report of the Secretary-General, 23 Aug. 2004. Disponível em: .Acesso em: 30 out. <strong>2011</strong>.PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.9 - DIREITO (FRATERNO) À MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS - Sandra Regina M. Vial e Dailor dos Santos205


POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Riode Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Comissão da Meia Verdade, ou a volta da “conciliaçãonacional” de Tancredo. Grupo Tortura Nunca Mais, 03 out. <strong>2011</strong>. Disponívelem: .Acesso em 30 out. <strong>2011</strong>.PTS. About the Political Terror Scale. Disponível em: .Acesso em 30 out. <strong>2011</strong>.RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004.RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.SANTOS, Cecília MacDowell. Transnational legal activism and the State: reflectionson cases against Brazil in the Inter-American Commission on Human Rights.SUR – International Journal on Human Rights, São Paulo, n. 7, p. 28-59,2007.PARTE II - MEMÓRIA DOS DIREITOS HUMANOSSIKKINK, Kathryn. WALLING, Carrie Booth. The Impact Of Human RightsTrials in Latin América. Journal of Peace Research, Los Angeles, London, NewDelhi, Singapore, vol. 44, n. 4, p. 427-44, 2007.TELES, Edson. Quanta Verdade o Brasil Suporta? Carta Maior, 16 set. <strong>2011</strong>. Disponívelem: . Acesso em 30 out. <strong>2011</strong>.TODOROV, Tzevetan. Los abusos de la memória. Barcelona: Paidós, 2000.VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita. RIPE:Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 1, n. 46, p. 119-134, jul./dez. 2006.WEISSHEIMER, Marco Aurélio. Por uma comissão da mentira! RSUrgente, 10jan. 2010. Disponível em: . Acesso em 30 out. <strong>2011</strong>.ZAMORA, José Antonio. Th. W. Adorno: pensar contra a barbárie. São Leopoldo:Nova Harmonia, 2008.206


A cabana - acrílico/tela – 35 X 27cmNilda Arruda Gregoski – Oficina de Criatividade/ HPSP


10 SEM TRABALHO E SEM DIREITOS:A MODERNIDADE GAÚCHA10.1 INTRODUÇÃOPaulo Peixoto de Albuquerque 202Gilson Luiz dos Anjos 203Valter Morigi 204A razão de ser deste artigo está diretamente relacionada ao fato de vivermostempos de aumento significativo dos processos de exclusão, que resultam não sóda ampliação do fenômeno do desemprego, mas na dificuldade de se entendercomo se constrói sujeitos de direito.Nesse sentido, articular as categorias sociológicas – Trabalho e Direitos Humanos– oferece uma perspectiva analítica que serve para examinar o mundo dotrabalho a partir da reestruturação produtiva promovida nos anos 90, com maiorênfase na última década, e também na ótica dos Direitos Humanos, fator determinantepara compreender um fenômeno antigo: o não reconhecimento de queo trabalhador é um sujeito de direitos – e que o atributo ser trabalhador ou teremprego –não é indicador de inclusão social ou de não apartação social.O fenômeno do não reconhecimento, tal como se apresenta, não é inédito,a novidade deriva, agora, da moderna roupagem que, ao conjugar mudança tec-10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. Morigi202 Professor e pesquisador do Núcleo Trabalho, Movimentos Sociais e Educação e do Núcleode Estudos e Ação em Direitos Humanos da Faculdade de Educação da Universidade Federal doRio Grande do Sul203 Professor, pesquisador do Núcleo de Estudos e Ação em Direitos Humanos da Faculdadede Educação e mestrando Educação no PPG de Educação da Universidade Federal do Rio Grandedo Sul, integrante do movimento negro – RS204 Professor, pesquisador e doutorando em Educação no PPG/FACED/UFRGS, integrantedo Núcleo Trabalho, Movimentos Sociais e Educação da Faculdade de Educação da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.209


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS210nológica, reestruturação produtiva e globalização da economia, favorece e enfatizaos trabalhos de curto prazo, a flexibilidade funcional que impede às pessoas construíremrelações estáveis, coerentes e essenciais para a percepção de seus direitos.O segmento produtivo e o tipo de trabalho são os espaços sociais por excelênciaem que se evidencia a forma de organização e cooperação proposta poruma dada sociedade. Sua descrição é importante porque permite identificar osfatores, os mecanismos e os elementos que pautam no cotidiano o modo comoos trabalhadores dão conta do produzir a vida e em que condições eles trabalham.Permite visualizar o modo como as tarefas são executadas e suas implicações navida e nos direitos do trabalhador, mesmo porque entendemos que a experiênciade trabalho não é individual, mas socialmente construída.Para tanto, adotamos um artifício de análise: tomamos aquilo que é consideradofamiliar e tornamo-lo estranho, fazendo com que se preste atenção à formacomo os dados (informações) descrevem a realidade de diferentes processosprodutivos no RS.Por trás das informações e dos números, buscamos refletir sobre como seapresenta o fazer a riqueza de uma região ou de um povo, porque acreditamos queo trabalho tem de ser visto em suas ações (aquilo que fazemos) e em seus efeitos(o que ele nos faz): nós fazemos o trabalho e o trabalho nos faz.10.2 PROLEGÔMENOS...Vivemos tempos paradoxais: ao mesmo tempo em que se redescobre a terracomo patrimônio coletivo, com seus recursos humanos, energéticos e ecológicos,entendido a partir de uma perspectiva de ecossistema, fundado em códigos internacionaisque reconhecem que todos os seres humanos têm os mesmo direitos,estes são relativizados em função da criação de meta mercados.Meta mercados que se organizam e funcionam em dois níveis: no primeiroocorre o controle dos recursos naturais e humanos, que favorece a arquipelizaçãode regiões e/ou países em polos de desenvolvimento e, no segundo, multiplicaprocessos de exclusão social.A última década demonstra que se universalizaram os processos de concentraçãode renda, ampliando, de um lado, o contingente de populações empobrecidasnas áreas que se constituíram historicamente sob a hegemonia de um determinadomodelo econômico.


O RS nesse início do século XXI vem aumentando sua participaçãono mercado internacional com destaque para as vendas externasde tabaco, carnes (de frango, suína e bovina), couros preparados,polímeros, farelo e óleo de soja, óleos de petróleo, além de produtosda indústria metal-mecânica (tratores, carrocerias, partes de veículos,reboques e semirreboques, bem como outras máquinas paraa colheita ou debulha de produtos agrícolas). (Carta ConjunturaFEE – Ano 20 nº 9, <strong>2011</strong>)O surpreendente é que, nesse processo de integração econômica internacional,o discurso do direito não é compreendido como produto de uma ordem social,pelo contrário, a exclusão e a pobreza tornaram-se um componente estrutural daatual fase de desenvolvimento do modelo capitalista.A ordem social dominante, em função de um modelo de produzir a riquezae a vida, tem um modo de ocupar o espaço material e organizar as relações sociaisde produção amplia os espaços de exclusão, encontrando uma resistência que reafirmaa emergência dos conflitos como instrumento de/em defesa da vida e pelapreservação da dignidade social.Esta lógica de violência é tanta, que se vive o dia-a-dia como se não fossepossível viver de outra forma. Temos tão interiorizada essa ordem estabelecida,que reagir contra esse estado de coisas parece ilusão.As consequências são claras: os novos modelos de dominação indicam queo progresso constante tem uma lógica perversa na qual a concentração cada vezmaior de benefícios na mão de poucos e a ampliação dos contingentes empobrecidosé necessária para a sua sustentação.Exclusão e miséria social colocam em risco a própria cidadania, pois direitossociais pactuados anteriormente (Declaração Universal dos Direitos Humanos– 1948 – Artigo I – Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espíritode fraternidade) se tornam cada vez mais difusos, assim como os limites e asfronteiras daquilo que entendemos por uma sociedade de direitos ou res-pública.10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. MorigiEntendemos que pensar Trabalho e Direitos Humanos passa necessariamentepela necessidade de:Descolonizar o pensamento da economia.211


Pensar Trabalho e Direitos Humanos nos remete re-pensar que o mercadonão é a única forma de organização social e a introduzir a noção substantiva dodireito a ter direitos, indicando que é possível através do reconhecimento do sujeitoe na participação dos atores sociais a organização de outro tipo de sociedade.Desmistificar o raciocínio econômicoA recusa da manipulação lógica fundada na explicação do fazer humanofundado apenas no raciocínio econômico; que o agir humano está estruturado emtorno da busca racional do interesse próprio, cujo objetivo final é o lucro máximoe que está é a única e aceitável proposição da ação do homem;PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS212Assim sendo, refletir sobre o futuro do presente, que é a proposta desteRelatório, tem sentido porque está no trabalho e no trabalhador a possibilidadede uma sociedade pensar práticas sociais, culturais e políticas qualitativamentediferentes.Por isso torna-se necessário não se deixar seduzir pela noção que as relaçõessociais existentes nos diferentes espaços sociais só podem ser explicadas apenaspor um tipo de lógica: a econômica.As mutações em curso da economia, no trabalho, na vida das pessoas, parecemindicar que a crise é inerente ao sistema capitalista. Se nos debruçarmos sobre osúltimos 25 anos, vamos encontrar várias crises vividas pelo capitalismo mundialem maior ou menor grau, que afetaram o sistema como um todo. Qualquer crisenão é passageira, ao contrário, faz parte dos novos tempos. Novos tempos que insinuamuma estranha combinação, que mistura dois estados de espírito: a sensaçãode partida para um mundo novo, e uma sensação de que o velho já não existe, eque as pessoas estão confrontadas com uma situação completamente nova, queexige respostas novas, diferenciadas. Isso não é inteiramente falso, mas tambémnão é inteiramente correto.Não é correto, porque existe uma considerável continuidade no modo decaracterizar o trabalho e, mesmo com os avanços da tecnologia, o modo de perceberos direitos dos trabalhadores reduz tudo a aspectos puramente técnicos,relativizando a questão ética do reconhecimento como direito necessário a mediaçãoe a sociabilidade.


10.3 O CENÁRIO DO TRABALHOA nova configuração da economia, marcada fundamentalmente pelas transformaçõestecnológicas da informática e da microeletrônica, concorre para que ocontexto social se caracterize por uma crescente e cada vez maior interdependêncianas relações mundiais. Interdependência que, associada à valorização excessivado liberalismo – entendido como hegemonia do mercado livre – configura, nãosó em nosso Estado ou país, uma profunda crise social representada por índicescrescentes de desemprego, miséria, desigualdades e exclusão social.Quadro 1Taxa de desemprego, por tipo, na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA)(<strong>2011</strong>) %Períodos evariaçõesTotalAbertoTaxas de desempregoOcultoTotal Precário DesalentoJaneiro 7,3 5,9 1,4 1,0 (1)Fevereiro 7,3 6,1 1,2 (1) (1)Março 7,4 6,3 1,1 (1) (1)Abril 7,4 6,4 (1) (1) (1)Maio 7,7 6,7 (1) (1) (1)Junho 7,8 6,7 1,1 (1) (1)Julho 8,0 6,7 1,3 (1) (1)Fundação de Economia e Estatística /RS (FEE)Quadro 2Taxa de desemprego, por tipo, no Brasil* e no Rio Grande do Sul – fev-jul./1110 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. MorigiTAXA DE DESEMPREGO (%)Total Aberto OcultoMeses RS Brasil RS Brasil RS BrasilFev./11 7,3 10,5 6,1 7,7 1,2 2,8Mar./11 7,4 11,2 6,3 8,3 1,1 2,8213


Abr./11 7,4 11,1 6,4 8,4 (1)- 2,8Maio /11 7,7 10,9 6,7 8,3 (1)- 2,6Jun./11 7,8 11,0 6,7 8,3 1,1 2,6Jul./11 8,0 - 6,7 - 1,3 -FONTE: PED-RMPA – Convênio FEE, FGTAS, PMPA, SEADE, DIEESEe apoio MTE/FAT.* NOTA: Brasil corresponde ao total das Regiões Metropolitanasde Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e SãoPaulo e o Distrito Federal. Rio Grande do Sul corresponde apenasà Região Metropolitana de Porto Alegre.PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS214Os dados evidenciam que as taxas de desemprego vêm aumentando e flutuama partir da economia internacional, aliadas aos processos de vulnerabilidadedas economias regionais ou locais que minam as condições de seguridade social,instaurando uma forma de atuar do Estado em que a questão social passa a serelemento tangencial e secundário nas propostas e projetos de políticas públicasesperadas pela sociedade.Não se pode ignorar que a intensa pressão por mudanças no Direito doTrabalho desejadas, principalmente pelas empresas exportadoras ou de ponta,incidem sobre os processos de trabalho nas indústrias não são fato isolado, poisaté a recente produção legislativa no Brasil, tende a minimizar antigos pressupostoslegais a ponto de ter na desregulamentação e na flexibilização das relaçõesde emprego o fator diferencial para ampliar a capacidade competitiva do país noranking das economias mundiais.Esse cenário concorre para uma configuração social fragmentada e imensamentediversificada, seja pela emergência de grupos de demandas de múltiplosinteresses que se apresentam, ora nas novas formas de organização do processoprodutivo, ora nas novas formas da ação política: favorecendo o não reconhecimentoda dignidade do trabalhador, especialmente nas práticas sociais do cotidiano.O não reconhecimento do trabalhador enquanto sujeito de direitos nos remetea condição de exclusão que cria o sentido de ser das instituições de luta pelosdireitos humanos. O homem é necessariamente reconhecido e é necessariamentereconhecente. Pois todo convívio humano pressupõe uma espécie de afirmaçãomútua elementar, visto que um só pode existir na presença do outro.O reconhecimento que o trabalhador é um sujeito de direitos nos remete


a ter presente o modo como os indivíduos e grupos ou organizações dão contadas situações problemas (o presente) e das decisões (escolhas a serem feitas aqui eagora), visto que o futuro é uma escolha intencional.Nesse sentido, ter presente como se organiza o processo produtivo permiteperceber se este trabalhador é um sujeito de direitos ou não.Os dados que seguem dão uma ideia de como se estrutura o emprego no RS.Quadro 3Emprego por indústrias escolhidas, com projeções, 1990/2010Indústria Emprego (1.000) Taxa crescimento anual1990 2002 2010 1990/2002 2002/2010Manufatura 21. 040 18.040 17.523 -1,2 -0,2Finanças, 4.975 6.571 7.969 2,2 1,5Serviços 508 1649 2581 9,5 3,5Computação 271 831 1626 9,0 5,3Governo Federal 2773 2969 2815 0,5 -0,4Governo estaduale local 13 174 15 683 19 206 1,4 1,6Quadro 4*Estimativas de Ocupados, segundo Setores de AtividadeRegiões Metropolitanas e Distrito Federal (1)Julho/2010-Julho/<strong>2011</strong>Setores deatividadeEstimativas(em mil pessoas)Jul-10 Jun-11 Jul- 11Dados extraídos da RAIS – 1990/2010VariaçõesAbsoluta (emmil pessoas) Relativa em (%)Jul-11/Jun-11Jul-11/Jul-10Jul-11/Jun-11Jul-11/Jul-10Total 19.277 19.729 19.796 67 519 0,3 2,7Indústria 2.990 2.941 2.977 36 -13 1,2 -0,4Comércio 3.124 3.257 3.297 40 173 1,2 5,510 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. Morigi215


Serviços 10.331 10.628 10.601 -27 270 -0,3 2,6ConstruçãoCivil (2) 1.265 1.321 1.327 6 62 0,5 4,9Outros (3) 1567 1582 1594 12 27 0,8 1,7Fonte: Convênio Seade – Dieese, MTE/FAT e convênios regionais.* Nota: Mudanças nas estimativas da PIA, de junho de <strong>2011</strong>, daPED – Região Metropolitana de Fortaleza alteraram as estimativaspara este mesmo mês para o conjunto das regiões metropolitanas.(1) Corresponde ao total das regiões metropolitanas de Belo Horizonte,Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo e oDistrito Federal.(2) Inclui obras de infraestrutura, novas edificações e reformas ereparação de edificações.(3) Incluem serviços domésticos e outros ramos de atividade.PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSA leitura dos dados indica que são as áreas de gestão do Estado que sinalizamum movimento de promoção do trabalho e que o desenvolvimento propostopelos setores privados marca e se caracteriza pelo crescimento sem o aumento dospostos de trabalho.Percebe-se que os indicadores são mais expressivos no setor da construçãocivil/comércio (trabalhador pouco especializado), dinâmica bem diferenciada nosetor secundário (segmento metal-mecânico/siderurgia), onde a perda de posiçõesna estrutura produtiva gaúcha mais se evidencia.A causa pode estar na introdução maciça de processos automatizados de trabalhoou nas formas enxutas de organização de gerenciamento ou, ainda, na perdade postos de trabalho para indústrias mais competitivas neste ou em outros países.Se legalmente os direitos do trabalhador são os direitos de todos e devemser protegidos pelo Estado, na prática isso não acontece. De muitas maneiras,perduram situações que referendam desigualdades, principalmente se o recortefor de gênero e faixa etária.Os dados que seguem insinuam que, se as relações de trabalho são complexas,são ainda mais desafiantes quando se correlacionam gênero e faixa etária.216Quadro 5Taxas de inatividade e desemprego segundo gênero e idade (Em %)


Homens Mulheres TotalRegião Taxa de Taxa de Taxa de Taxa de Taxa de Taxa deMetropolitana Inatividade Desemprego Inatividade DesempregoInatividadeDesemprego10 a 17 74,1 20,0 83,7 24,1 78,9 21,618 a 30 11,1 10,7 37,5 15,3 24,9 12,731 a 45 4,2 4,5 33,3 7,1 19,6 5,646 a 60 17,5 3,8 53,3 3,7 36,6 3,8> 60 62,8 3,4 87,6 2,6 77,5 3,1Total 28,0 7,8 52,9 10,8 41,3 9,1Fonte: http://www.ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/viewFile/192/126Pesq. Plan. Econ., Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 87-112, abr. 1999Por isso, pensar direitos humanos nos remete ao contexto das lutas sociais,dos movimentos de mulheres, jovens e desempregados, pois não basta falar emdireitos humanos, escrever sobre eles e até fazer leis em seu favor: é preciso contextualizare situar de que realidade está se falando.10.4 REALIDADE FRAGMENTADA: O DESCASO GAÚCHOOs dados, as estatísticas provocam uma enorme riqueza de interpretações desenso comum. E o senso comum é comum não porque seja banal ou mero e exteriorao conhecimento, mas porque é conhecimento compartilhado que não necessitacoerência, ou melhor dizendo, não é necessário que haja o pré-estabelecimentode referência ética ou valorativa.No Rio Grande do Sul, assim como em outros Estados, os movimentos sociaise sindicais têm clamado ao longo dos anos por melhores condições de sobrevivênciae trabalho. Encontramos informações cotidianas de conflitos em favelas e foradelas, por outro lado, vimos acidentes de trabalho resultantes da falta de condiçõese controle de segurança nestas atividades econômicas, agravadas pela fragmentaçãoe descaso por parte dos administradores bem como dos agentes governamentais.O significado produzido nem sempre tem o crédito de abalar as convicçõese a ordem dos fatos. Mas quando se percebe que, na realidade compartilhada,existem fatos relevantes, capazes de promover diferentes e necessários olhares,10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. Morigi217


precisamos identificar nestas descontinuidades que nosso modo de ver o mundose apresenta subvertida e não definidora de limites.10.4.1 O trabalho escravoPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS218No Rio Grande do Sul, o trabalho escravo, tal como está definido pela Convenção29 (1930) da OIT – Organização Internacional do Trabalho – não existe.Mas o pior cego não é aquele que não vê. Além de não ver, ele vê o que nãoexiste. Pior, além de não saber, está crente que sabe.Se o trabalho escravo é compreendido como sendo o tipo de trabalho classificadocomo forçado, obrigatório ou como sendo todo trabalho e/ou serviço exigidode uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecidoespontaneamente, então precisamos rever o conceito.O trabalho escravo é uma destas situações existentes que nos coloca frentea um fenômeno complexo que, por isso mesmo, põe em cheque a autoconfiançadaqueles que usam apenas um tipo de categoria (econômica) para explicá-lo.A realidade do mundo do trabalho no território gaúcho, tanto no meio ruralquanto no meio urbano, mostra que as relações de trabalho vêm, nos últimosanos e em diversos municípios do estado, dizendo o contrário sobre o trabalhoescravo, conforme se pode observar nas informações que seguem.Quadro 6Ocorrência de trabalho escravo contemporâneo no Rio Grande do SulAnos Municípios Trabalhadores Libertados1997 Ametista do Sul 1702002 Vacaria -2003 Esteio 142005 São Francisco de Paula 352007 Cacequi 302008 Bagé 232008 Quaraí 072008 São Gabriel 042008 São Marinho da Serra 01


2008 Cacequi 042009 Lagoa Vermelha 442009 Vacaria 60Total 392Fonte: (VILELA; CUNHA, 1999; LICKS, 2002; CORREIO DO POVO, 2007; MPT, 2008).É como se existisse uma mágica do poder que tende a atrofiar a vigilânciacrítica dos indivíduos, desviando as atenções do que realmente deve ser discutido– seu direito a ser digno -, sacralizando processos de subordinação e exclusãosocial que achamos cada vez mais normais.O futuro não está na frente, mas no presente, numa espécie de imanênciaque nos leva a buscar entender e a agir sobre o tempo e em favor de um tempopor vir, pois é impossível compreender essas noções e inflexões de passado, presentee futuro diferenciado, se não nos situarmos à fase inicial da vida, tratandoespecificamente em relação à infância.14.4.2 O trabalho infantilNo Rio Grande do Sul, 24.857 crianças e adolescentes entre cinco (5) edezessete (17) anos trabalham no serviço doméstico, de um total superior a 500mil em todo Brasil, segundo o IBGE. No entanto, este número tende a ser maior,visto que, na maioria das vezes, são levadas em consideração apenas as criançasque trabalham na casa de terceiros, esquecendo-se daquelas que assumem o papelde dona-de-casa do próprio lar. A lista de tarefas é grande e inclui desde cuidar debebês até limpar, lavar e cozinhar.Para quem não sabe, o trabalho doméstico é proibido para menores de 16anos pelas leis trabalhistas e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).Apesar de muita gente ainda achar que, para as meninas, trabalhar em casa é comobrincar de casinha, a realidade é bem distinta.A Fundação Abrinq (pelos direitos da criança e do adolescente) afirma queo desempenho escolar e o desenvolvimento emocional são prejudicados, e poucasterão chances de se qualificar no futuro. Entre as consequências está a agressividade,a dificuldade de aprendizagem e de convivência em grupo, a hiperatividade,o déficit de atenção, entre outros.10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. Morigi219


É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente.(Art.18 – ECA)A realidade atual é dura. Não se pode simplesmente condenar os pais quedeixam seus filhos cuidando da casa, visto que eles precisam trabalhar fora parasustentar a família. No entanto, por ser uma prática oculta, que ocorre dentrodos lares, é de se imaginar que só vemos a ponta do iceberg.A. L. S, de 14 anos, já nem sabe há quanto tempo cuida da própriacasa. Ela mora com a irmã, o irmão e uma sobrinha na Vila SantoAntônio, zona Norte de Porto Alegre, pois seus pais faleceram hámuitos anos. Ela sempre teve problemas emocionais e pedagógicos.Dos oito aos 11 anos, cursou a classe especial de seu colégio,já que tinha dificuldades para se alfabetizar, e fez duas vezes a 1ªsérie, com 12 e 13 anos. Agora, crescida, com idade para ajudarem casa, restaram os serviços domésticos. 205PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSUma realidade econômica transformada por mudanças tecnológicas, pelapersistência de desordens econômicas (crise dos países desenvolvidos) e pelo aumentodos perigos ecológicos (os desastres do Japão) concorre para que a ideia demudança seja entendida apenas como o resultado de processos de modernizaçãofundados na tecnologia.É por isso que não podemos nos contentar em analisar os fenômenos daexclusão social ou da não dignidade das pessoas a partir da forma dualista quemarcou o pensar a vida e o social. Este dualismo – ser ou não ser trabalhador/ter emprego – foi implodido pela complexidade das sociedades contemporânease o advento das novas formas de pensar mais abrangentes implicam em pensaroutra ética social baseada na universalidade dos direitos humanos, inclusive paraas crianças.Se partirmos do pressuposto de que as decisões políticas não são a simplesaplicação de análises econômicas ou sociológicas, mas se apoiam em uma perspectivaética, torna-se fundamental compreender as atuais urgências da sociedadegaúcha, assim como entender como e porque as respostas da sociedade industrialnão dão conta dos conflitos, da exclusão social.220205 Extraído de matéria do site http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI122089--EI1659,00-Trabalho+infantil+nao+e+brinquedo+nao.html, acessado em 20-090<strong>2011</strong>.


Quadro 7Taxas de inatividade e desemprego segundo gênero e posição na família (Em %)Posição naFamíliaHomens Mulheres TotalTaxa de Taxa de Taxa de Taxa de Taxa deInatividade Desemprego Inatividade Desemprego InatividadeTaxa deDesempregoChefe 13,4 4,0 41,2 8,4 20,8 4,9Cônjuge 19,2 6,7 50,9 8,4 50,5 8,4Filho 48,5 15,9 62,4 17,8 55,0 16,6Outros 33,8 13,9 54,8 9,7 47,0 11,7Total 28,0 7,8 52,9 10,8 41,3 9,1Fonte: http://www.ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/viewFile/192/126Pesq. Plan. Econ., Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 87-112, abr. 1999As análises do mundo do trabalho não podem ser reduzidas a explicaçõesda crise ou da mudança que remetem unicamente a considerações de ordem econômica;a busca de elementos explicativos precisa ser a sua matriz lógica na éticae nos direitos humanos.10.5 O TRABALHO ADULTOO social não se define hoje pela conservação da ordem, mas sim de umduplo e ambíguo movimento, que é, por um lado, da abertura, da mudança,da circulação mais rápida e intensa de bens e serviços e, por outro, se caracterizapela demanda de segurança e de proteções sociais. Tal fato pode ser percebidoquando se tem presente o trabalho adulto, analisado na sequência em dois espaçosdo mundo do trabalho, sendo um reconhecidamente clássico em se identificarcomo trabalhador – indústrias – e outro – escola- em que há resistências em sereconhecer como trabalhadores.10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. Morigi10.5.1 Indústrias da alimentaçãoO estado de precariedade social em que se insere o trabalhador das indústriasda alimentação (setor avícola/frigoríficos) é tal que sua vulnerabilidade se221


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSexpressa em números extremamente vigorosos e podem ser visualizadas no avessodas informações oficiais. Até porque os registros que se encontra sobre a indústriaavícola/abatedouros de carne referem-se, via de regra, ao enorme sucesso obtidonos últimos anos e nunca aos efeitos colaterais deste aumento de produtividadena saúde do trabalhador.A relevância social e econômica das indústrias da alimentação para o Estadoé incontestável, já que dados apontam para o fato de que, crescente, a produçãonacional de carne de frango saltou de 5.976 toneladas, em 2000, para 9.348 miltoneladas, em 2005, quando alcançou um recorde histórico, com faturamento de20 bilhões de dólares. Nesse mesmo período, as exportações do produto (correspondentesa 30% do volume da produção nacional), aumentaram de 870 milhõesde dólares para mais de 3,5 bilhões de dólares, totalizando 2.761 mil toneladas.Foram gerados, ainda, cerca de 4 milhões de empregos diretos e indiretos. 206Neste cenário, a avicultura gaúcha ocupa o terceiro lugar no ranking brasileiroquanto ao mercado de frangos de corte, produzindo cerca de 650 mil toneladasde carne de frango. O setor no RS tem mais de 21 mil trabalhadores empregadoso que significa quase um terço dos empregados no setor agropecuário (RAIS/CAGED 2004/ Zero Hora, Campo e Lavoura 23.11.06, p.27).Há muito para se refletir sobre esses números. A indústria da alimentaçãosofreu diversas transformações, deixando de ser desenvolvida de forma tradicionalpara entrar numa fase altamente industrializada, onde o produtor deixa de tercontato direto com o mercado, apesar de precisar conhecer sua lógica operativa,seus agentes econômicos e transformações em curso.Estas transformações, diretamente ligadas às exigências de mercado, acarretammudanças que levam a novos métodos de manejo, novos equipamentos emedidas de biossegurança. É para ajustar-se a estas novas exigências, ter flexibilidadepara responder de forma ágil às demandas do mercado e conseguir vendermais rapidamente os produtos oferecidos, que a indústria tem se modernizado.As informações obtidas nas fontes oficiais e nos sites das empresas precisamser entendidas na sua dupla mensagem, isto é, ao mesmo tempo em que expressama importância do segmento para a economia também apontam para outrarealidade: a de que em média 20% dos empregados no setor têm problemas de222206 Fonte: http://www.brasildefato.com.br/v01/impresso/anteriores/160/nacional/materia.2006-03-29.2647754929


saúde. Percentual que só não é maior porque os acidentes e adoecimentos dotrabalho são sabidamente subnotificados.10.5.2 ProfessoresCerca de 45% dos professores do ensino privado gaúcho apresentam problemasde saúde física ou mental relacionados ao trabalho. A pesquisa, intituladaCondições de Trabalho e Saúde dos Trabalhadores do Ensino Privado no RS, noSindicato dos Professores do Ensino Privado (Sinpro/RS- 2009), revela que 49%dos docentes dizem fazer tratamento com medicamentos. A grande maioria dosprofessores (78%) apontou cansaço e esgotamento frequente nos últimos seis meses.O trabalho docente tem peculiaridades que não se balizam apenas pelosmomentos de cansaço e esgotamento; o assédio moral se evidencia na profissãode educador como um dos mais sérios e crescentes problemas relacionados aotrabalho. “É um dos fatores que causa sofrimento mental, emocional e desgastefísico no trabalho.” As principais fontes de assédio moral no trabalho docenteindicadas pelos professores são provenientes dos alunos (33%), chefes imediatos(31%), chefes superiores (31%), colegas professores (23%), pais de alunos (19%)e demais funcionários (10%).10.6 NOVAS CENAS NO MUNDO DO TRABALHOEsse cenário trabalhista nos indica que as dificuldades de constituição de sujeitossociais é uma realidade cada vez mais presente na sociedade gaúcha. Principalmenteporque na última década a questão do indivíduo sujeito de direitos nãopode mais ser entendida de forma fragmentada a partir do modelo institucional erepresentativo – que tem nos sindicatos ou associações políticas seu modelo maissignificativo – em que as demandas eram elaboradas e delineadas institucionalmentea partir de uma identidade que se dava pelo fato de o indivíduo estar ounão inserido no mundo do trabalho.Na verdade, as transformações do mundo do trabalho devem ser entendidascomo um conjunto de tendência –contraditórias – que podem, dependendo doseu recorte teórico /ideológico, atenuar ou aprofundar as desigualdades.As novas práticas produtivas estão alterando os conceitos de qualificação,10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. Morigi223


passando a exigir trabalhadores polivalentes que podem antecipar, identificar eresolver problemas, garantir qualidade e participar de equipes de trabalho.Entretanto, mesmo com a modificação dos critérios de qualificação para ainserção do trabalhador no processo produtivo, continuam a existir no Rio Grandedo Sul situações inadmissíveis (trabalho escravo, trabalho infantil e desrespeito àcondição física dos trabalhadores independente da área de atuação).A nova dinâmica produtiva tem um duplo e ambíguo movimento: obsolescênciados saberes profissionais tradicionais e esvaziamento do estatuto de trabalhoprofissional e deslocamento para os centros de formação escolar de uma dimensãodas mediações que antes se faziam no ambiente de trabalhoPara aumentar a qualidade produtiva e em reação à pressão do mercado,as empresas, aquelas que estão inseridas no mundo produtivo do capitalismocontemporâneo, estão optando por uma alternativa técnico/gerencial que se caracterizapor investir mais em equipamento do que em mão de obra. Com issorestam aqueles que estão fora da dinâmica do capital buscar, como estratégia desobrevivência, o setor informal ou os espaços da solidariedade.PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS22410.7 CONSIDERAÇÕES FINAISO predomínio da estratégia patronal, acima descrita, permite caracterizaras atuais mudanças do processo de formação que tem no mundo do trabalho seulugar privilegiado.No RS, os discursos de progresso, da melhoria da qualidade de vida e dotrabalho não conseguem esconder; pelo contrário, o cotidiano de trabalho, a naturezacontraditória do progresso e da civilização modernas são lugares-comunsque exprimem de forma truncada e irreconhecível realidades complexas e contestadasde uma sociedade histórica particular, constituída e reduzida a um modelode todas as coisas: a sociedade capitalista da era pós-fordista e pós-keynesiana.Esse modelo de sociedade carateriza-se pelo desmantelamento deliberado doEstado e pelo hipercrescimento do Estado Policial que anula e elimina a crítica porconsiderá-la motivo de quebra da ordem. Nele, o esvaziamento do movimentosindical e a concepção de empresa fundada apenas na ideia única do valor acionárioconcorrem para que as relações sociais no interior das organizações sejamdesenvolvidas a partir de uma racionalidade instrumental, cujo aspecto mais


significativo se evidencia na generalização dos salários precários e na insegurançasocial, transformada em motor privilegiado da atividade econômica.A natureza paradoxal da sociedade industrial moderna, de cujo progressoregressivo nos falavam Adorno e Horkheimer em 1945 207 , se apoia na universalidadede um modelo de produção que, ao ser colocado como centro das relaçõesde produção, tem na fábrica e nas relações de produção que dela decorrem alógica dominante.Todavia, esse desenvolvimento que emerge do imaginário do mundo dotrabalho, tendo a fábrica moderna e automatizada como espaço privilegiado paraque o progresso aconteça na vida das pessoas, é de um particularismo enganador.Com efeito, a palavra qualificação é enganadora: reúne sobre um único rótulodois níveis de compreensão, cuja gênese lógica e motivação são completamentediferentes.O primeiro aponta e situa sobre uma mesma escala de valores o conjuntadas ações que são mais significativas naquilo que diz respeito à construção do“mundo da vida” das pessoas; o segundo pulveriza a unidade do gênero humano.O primeiro converte toda diferença em inferioridade; o segundo afirma o caráterabsoluto e intransponível das diferenças.O primeiro classifica, o segundo separa. Para o primeiro não se pode serhomem, pois não existe entre o iraquianos, afegãos e/ou iranianos e o americanomedida humana comum. O primeiro declara que o mundo moderno e civilizadoé uno; o segundo que as diferenças são múltiplas e incomparáveis, evidenciandoo caráter relativo e transitório dos traços, que há pouco pensávamos estar entreos dados constitutivos (e eternos) da humanidade.É preciso ter presente que os matizes acima descritos podem ser ainda maisúteis se tivermos presente o “politicamente correto” das academias. As diferenças,o outro encontrado nas pesquisas, resultam de posições teóricas que (nem sempretêm por pressuposto a possibilidade de um curto-circuito conceitual, dada a suapretensão de verdade) desarmam o pensamento ao oferecer leituras de realidadeesquemáticas, quando não prescritivas.Nesse sentido, a naturalização dos esquemas do pensamento econômico,cuja dominação (neo, pós-liberal) se impõe a vinte anos graças a um modelo derelações sociais e de práticas culturais capitalistas, não tem nada a ver com pau-10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. Morigi207 T. W. Adorno, M. Horkheimer, La Dialectique de la raison, Paris: Gallimard, 1974, e T. W.Adorno. Minima Moralia, Paris: Payot, 1983, p.134.225


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS226perização do Estado nos países terceiro- mundistas ou com a mercantilização dosbens públicos (mais conhecida como processos de privatização), visto que a globalizaçãonão é percebida como uma nova fase do capitalismo, mas como umaretórica invocada por quem detém o poder para justificar sua submissão voluntáriaaos mercados financeiros.Nesse tipo de globalização, a desindustrialização, cujo processo acelera-seem algumas regiões do Rio Grande do Sul (Metade Sul, Vale do Rio dos Sinos),e o crescimento das desigualdades, assim como a contradição das políticas sociais,longe de concorrerem para o crescimento das trocas externas, como sempre se diz,resultam de decisões de política interna que favorecem a ampliação dos espaçosde exclusão social e de não-cidadania.Ao imporem ao resto do mundo categorias de percepção homólogas as suasestruturas sociais, as organizações capitalistas reformatam o mundo à sua imagem:a colonização mental operada por meio da difusão de verdadeiro-falsos conceitos(sucesso equivale a ter dinheiro em caixa) só pode conduzir a uma espécie de pensamentoúnico, no qual os adjetivos crise da modernidade ou obsolescência profissionalencobrem artificialmente, apenas no micro cosmos do mundo do trabalho, umregistro ostensivamente técnico, que mascara o não-reconhecimento das pessoasenquanto sujeitos políticos, múltiplos e diferenciados.Efetivamente, esse discurso perde sentido quando a crença no progresso sociale na razão especialmente econômica promove transformações nas sociedadesque, ao contrário do que apregoam, têm na exclusão social e nos componentespoliciais e penais o resultado último da desregulação dos fluxos financeiros, dadesorganização do mercado de trabalho, da redução das proteções sociais e dacelebração moralizadora da responsabilidade individual que passa a ter no voluntariadoa expressão mais significativa do desengajamento econômico do Estado eênfase em seus aspectos mais sentimentais.Hoje, em países como o Brasil, em função de todo um desmanche das condiçõesmateriais do pacto keynesiano – do Estado de bem-estar social -, vemosum processo de exclusão social que segue a seguinte dinâmica e que pode serpercebido na perspectiva macro social por intermédio de:• Precarização do trabalho• Guetização nas cidades• Zonas de não direito à cidadania cada vez maiores


• Atividades mafiosas• Violência contra criança, mulheres e idosos.• Miserabilidade dos espaços públicos• Esvaziamento simbólico de pressupostos éticosEstes aparecem como indicadores que destroem esperanças de mobilidadesocial proposta no pós Guerra pelo pacto keynesiano.Na perspectiva micro social, percebem-se nas relações de trabalho e no processoprodutivo mudanças tecnológicas que não somente impactam nas relaçõessociais de produção, mas apontam para um novo cenário, cuja ênfase está no fatalismoe no “não criticar”, que favorece o fortalecimento do pensamento único.Objetivamente, as relações sociais de produção ou processos de trabalho estámodelado pelas seguintes condições:• Precarização das condições de trabalho• Ritmos de produção que violentam os limites físicos• Deteriorização da saúde do trabalhador• Violência (de diferentes tipos)• Dor e mutilações psicológicas• Não reconhecimento dos direitos de cidadania• Invisibilização da transgressão das leis do trabalho• Demissões• Marginalização• Exclusão• Eliminação10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. MorigiEste fator concorre para que o referencial simbólico que dava significaçãoà sociedade moderna e industrial – valorização do indivíduo e de sua ação comofundamento da sua independência e de criatividade para construir-se como pessoa;o trabalho como razão de ser e inclusão na vida – tenha perdido seu poderde significação.227


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS228A ordem social que esses valores construíram apresenta-se hoje descolada aponto de produzir um modo de relações sociais sem relação alguma com aquelesvalores ou códigos.Uma ética fundada em valores foi substituída por uma ética de fatos – instrumentalde que poucos se apropriam e usam em proveito próprio.Pode-se dizer que a ética social, no sentido de um exercício coletivo de responsabilidadepara com o destino das pessoas, desapareceu completamente e sereduziu as ações de concentração sobre modo s e comportamentos aceitos comonormais em uma dinâmica social preestabelecida por alguns.As pesquisas identificaram no processo de trabalho um agir coletivo dos trabalhadores,centrado em atos de resistência que transcendem a simples situaçãode trabalho, porque são atos de resistência a práticas desumanizantes e, por isso,de caráter ético.Mesmo que se considere a ética simplesmente uma reflexão que visa aoestabelecimento de critérios abstratos, é preciso ter presente que esses critériospermitem escolhas concretas e necessárias para que as pessoas conduzam sua vidapara o bem comumPor que bem comum? Porque, por mais confuso que seja isto, a gente podedizer que partilha um destino comum de uma sociedade que não é compostapor andares ou por cidadãos de primeira, segunda, terceira ou quartas categorias.Neste sentido, os direitos humanos podem ser o principio da ação críticaemancipatória que introduz a ética no cotidiano, porque qualifica a questão dosfins, colocando em causa a direção dos atos individuais e sociais, suas incoerênciase sua integração numa comunidade ou coletivo social maior.Entretanto, a noção de direitos humanos não pode ser compreendida apenascomo instrumento normativo legal – do que deve ser -, mas como participaçãoem um poder ser. Sua questão principal é a participação crítica coerente e eficaz atodas as formas de criação coletiva, para instaurar a justiça e manter o pressupostodo desenvolvimento social. Não se trata de assumir posições teóricas abstratas,mas simplesmente reconhecer o valor epistemológico das práticas concretas, parasalvaguardar os espaços de esperança e autodeterminação das pessoas.Por quê? Porque atrás do fenômeno da miséria e da fome existem expressõeshumanas de vontade, que resistem às análises quantitativas e que instituem apelosà solidariedade simplesmente porque existe a dignidade das pessoas semelhantesno seu desejo de viver, trabalhar, amar e fazer trocas.Parece-nos que a reflexão sobre direitos humanos exige que a gente se sen-


sibilize para a necessidade de um estado de liberdade, para a manifestação dediferentes atores coletivos, a fim de procurar vias e caminhos para dar conta dodesafio de nossa época.Reinverter esse processo acelerado de exclusão social, em que carência e faltasão apenas um dos seus aspectos mais visíveis e que escondem um processo aindamaior de injustiça e desigualdade social no interior de uma sociedade, passa, então,a ser agenda prioritária daqueles que se pretendem sujeitos sociais.Pensar e discutir direitos humanos são indissociáveis de um projeto coletivo.Estamos dizendo que, se o trabalho faz parte e é pressuposto de um agir coletivo,então este agir, ao mesmo tempo em que reenvia a uma responsabilidade individual,remete-nos a ser também radicais na promoção de espaços sociais por meiodos quais as pessoas possam se apropriar do seu destino.Tomar seu destino é, para a maioria das pessoas, não uma questão de subversãoideológica, mas uma questão de sobrevivência, uma saída para reconstruiruma existência mais feliz, uma forma de resistência frente às lógicas de resignaçãoe destruição das alternativas aos grandes parâmetros de ordem internacional.Pensar direitos humanos nos coloca a questão primordial da auto-organizaçãodos grupos sociais para assegurar coletivamente a felicidade partilhada.O melhor código civil pode ser uma utopia, se ele não estiver preenchidopor uma mobilização social que seja capaz de renovar sem cessar as condições deresponsabilidade social que propõe.Não seremos uma sociedade equitativa se não mantivermos alerta a vontadecoletiva de discutir criticamente na cena política e social a razão de nosso destinocomo sociedade.Nesse sentido, direitos humanos podem expressar e aparecer para determinadosgrupos sociais como uma prática contraditória, porque estes queremgarantir a legitimidade da subversão da ordem estabelecida. Mas, ao contrário doque pensam esses segmentos ou grupos sociais preocupados com o normativo da“ordem” do “legal e moral”, esta é a possibilidade de garantir a emergência dasvontades populares.Direitos humanos é uma contradição aberta e permanente entre o instituintee o instituído, entre a inovação e a reprodução social; por isso devem ser entendidoscomo processo de vigilância contra a hegemonia nas relações sociais, quenão se esgote na cidadania representativa, implica na existência de pessoas quese interrogam sobre a possibilidade de existir um modo de ser e viver diferente.Enfim, direitos humanos não é uma concepção abstrata de democracia e de10 - SEM TRABALHO E SEM DIREITOS: A MODERNIDADE GAÚCHA - P. P. Albuquerque, G. L. Anjos e V. Morigi229


poder social que se circunscrevem às noções jurídico-normativas; direitos humanosnão são um ideal, mas uma luta, não são discursos, não é um código jurídico, masa indignação frente a uma sociedade que naturaliza a desigualdade e a violência.Os direitos humanos são princípios que devem assegurar às pessoas o direitode levar uma vida digna. Isto é: com acesso à liberdade, ao trabalho, à terra, àsaúde, à moradia, a educação, entre outras coisas. O povo tem poder legítimo deexigir do Estado o cumprimento dos direitos humanos.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASADORNO, T. W.; Horkheimir, M. La dialectique de la raison. Paris: Gallimard,1974ADORNO, T. W.; Mínima Moralia. Paris: Payot, 1983ECO, Umberto. Cinco escritos morales. Millan: Editorial Lúmen, 1972.PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSLIPOVETSKY, Gilles. L’ère du vide. Paris: Gallimard, 1983230


Os namorados - acrílico/tela – 40 X 60cmNilza Maria Machado Ferrão – Oficina de Criatividade/ HPSP


11 DESAFIOS DOS PROFESSORES DIANTEDA PÓS-MODERNIDADE: UMA VISÃOHISTÓRICALuis Carlos Trombetta 208Resumo:A realidade enfrentada pelos diferentes profissionais, nos últimos anos, faz com que muitostenham que interagir com situações inusitadas em suas atividades cotidianas. Esta premissaestá presente nos diferentes fazeres dos professores nas diversas salas de aula e laboratórios detodo o Brasil. No pós-modernismo, com a valorização demasiada do indivíduo, do mercadoe das diferentes tecnologias, a realidade existencial dos educadores é profundamente afetada.Muitos desafios interpelam os professores e estes, querendo exigir coerência, radicalidade evisão holística de seus discípulos, se confrontam com momentos singulares capazes de gerarcrises nestas relações e que, ao invés destas serem relações de cooperação, se convertem emsituações de conflitos deles com os educandos e seus valores. Este artigo é uma tentativa decompreender as transições intrínsecas do modernismo ao pós-modernismo, particularmenteno que se refere ao fenômeno educacional.Palavras-Chave:Educação, modernidade, pós-modernismo, indivíduo, mercado, tecnologia.11.1 INTRODUÇÃOFalar dos desafios dos professores na Pós-modernidade é uma tarefa um tantoquanto difícil para qualquer profissional da educação, pois supõe, num primeiromomento, uma compreensão da Modernidade, e, logo em seguida, exige a análise,interpretação e compreensão do ponto de vista de alguns autores sobre os traçoscaracterísticos da tão falada Pós-modernidade.Devemos começar a nossa reflexão com o processo que envolve o modo de11 - DESAFIOS DOS PROFESSORES DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE: UMA VISÃO HISTÓRICA - Luis Carlos Trombetta208 Mestre em Filosofia. Doutor em Educação pela UFRGS. Professor da Faccat e da UCS.Coordenador da CCDH-AL233


produção capitalista, pois é a partir deste que podemos compreender como é quealguns autores trabalham a queda dos modos de produção coletivista, feudal eescravista. Estes autores destacam que a burguesia chegou ao poder a partir daevolução natural do capitalismo, mas desconsideram a própria especificidade históricado capitalismo e as diversas contradições que este modo de produção possui.Segundo Wood, o que deve ser considerado como fundamental no processo deanálise do Modo de Produção Capitalismo é a propriedade privada dos meios deprodução. E é a partir deste processo que compreendemos a queda da nobrezae a ascensão da burguesia ao poder, pois esta última passou a ser a proprietáriados meios de produção a partir da Revolução Francesa ocorrida no século XVIII.11.2 TRAÇOS DA MODERNIDADEPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSÉ neste cenário que acompanhamos a ascensão e consolidação dos principaiselementos que constituem e caracterizam a Modernidade: o indivíduo, omercado e a tecnologia. A ideia de indivíduo é reforçada pela sociedade quandoesta passa a reconhecer os direitos do homem e do cidadão. Aqui o movimentoque afirmou categoricamente este valor foi a Revolução Francesa. Foi ela quemoriginou a Declaração dos Direitos dos Cidadãos (dos homens). Nestes direitos,temos incluídas as questões da educação, da expressão, da participação política,etc. O conjunto destes direitos se concretiza com a democracia. Podemos dizerque é a democracia que cristaliza e que coroa o indivíduo como um grande valorda Modernidade, pois a partir dela o homem liberta-se dos grilhões dos monarcase de suas instituições, liberta-se da tradição e das amarras da Igreja.O segundo elemento constitutivo da modernidade é o mercado. Este, segundoalguns autores, sempre existiu como uma força trans-histórica. É desta formaque Wood destaca a ideia destes autores:234Nessa concepção clássica de progresso, a evolução histórica dos“modos de subsistência” culminou no estágio atual, o mais alto,da “sociedade comercial”. [...] Ela tem um status universal, trans--histórico, não apenas no sentido de representar o destino finaldo progresso, mas também no sentido mais fundamental de queo movimento da história em si foi desde o início governado peloque poderia ser chamado de leis naturais da sociedade comercial:as leis da competição, da divisão do trabalho e da produtividade


crescente baseadas na inclinação natural dos seres humanos para“a troca, o comércio e o intercâmbio” (WOOD, 2003, p. 16).Esta ideia é corroborada por Adam Smith, que já no século XVIII falava da“mão invisível” do mercado como algo capaz de regular as relações econômicas,sociais e políticas. O mercado no capitalismo é o elemento fundamental e é a partirdele que compreendemos as relações sociais entre as classes e o que ocorre emtorno das mesmas. Podemos dizer que estamos diante de um fundamentalismode mercado onde o mesmo é apresentado como instância infalível. O mercado serevela como o mecanismo único e exclusivo para enfrentar os problemas específicosde uma economia moderna e ele é isso precisamente, como um mecanismoinconsciente, e realiza com eficiência o que o ser humano não tem condição derealizar por sua ação consciente. A condição de possibilidade da felicidade humanae de sua realização como ser livre é sua humilde submissão a esse mecanismoinconsciente capaz de produzi-lo como ser livre, o que exige do ser humano umainserção cada vez maior nas instituições mercantisO terceiro elemento da Modernidade é a dinâmica relacionada à tecnologiaou à dinâmica tecno-científica. Este elemento mostrou-se bastante arrojadoa partir da Revolução Industrial em suas diferentes fases. Hoje acompanhamosa intensificação disso com a clonagem, a biotecnologia, a conquista do espaço eisto nos transmite um sentimento de exacerbação sem limites desta lógica tecno--científica. Cada vez mais as grandes questões humanas são decididas seguindoos critérios científicos. Vivemos em uma sociedade controlada por uma razãoinstrumental, que busca prioritariamente o sucesso econômico e a acumulaçãode riquezas. Todas as dimensões da vida humana são abertas a um processo decientificização, o que transforma todas as questões humanas em questões técnicas,reduzindo a dimensão ética à esfera do arbítrio de cada indivíduo, de tal modoque uma das patologias fundamentais da sociedade contemporânea está na desproporçãoentre o enorme poder que o ser humano acumulou em suas mãos pelodesenvolvimento tecnológico e o atrofiamento da consciência ética no momentoem que ela se torna mais necessária.Podemos ver também, em escala crescente, a consolidação dos princípios damodernidade quando analisamos os direitos dos homens e dos cidadãos. Nesteitem, precisamos destacar o direito que os jovens, no Brasil, passaram a ter de votara partir dos 16 anos (até os 18 é opcional), as mulheres conquistaram o direito de11 - DESAFIOS DOS PROFESSORES DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE: UMA VISÃO HISTÓRICA - Luis Carlos Trombetta235


votar e ser votadas e outro exemplo bem recente de conquista de direitos novos éa união legal e reconhecida entre homossexuais, lésbicas, etc.Por fim, urge destacar o domínio do mercado em escala mundial e, aindacontra a nossa vontade, a inexistência de uma proposta alternativa e viável ao modeloque aí se apresenta. A globalização avança e se consolida a partir dos grandesblocos econômicos, como a ALCA, o NAFTA e a Comunidade Europeia e, juntocom ela, temos a consolidação do G8 e seus aparelhos econômicos como o FMIe o Banco Mundial. É preciso regular a globalização, mas como? Como fazer istose atualmente não temos uma alternativa objetiva, concreta e viável?A partir da caracterização da Modernidade baseada no tripé: indivíduo,mercado e tecnologia é que podemos estabelecer uma diferença bastante sutilentre pós-modernismo e pós-modernidade. Num primeiro momento as palavrasparecem iguais ou semelhantes, mas seu significado é bastante diferente. Para trabalharesta diferenciação nos apoiaremos na obra de Terry Eagleton “As Ilusões doPós-modernismo”. O autor trabalha a diferença da seguinte forma:PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSA palavra pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de culturacontemporânea, enquanto o termo pós-modernidade alude aum período histórico específico. Pós-modernidade é uma linha depensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão,identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipaçãouniversal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentosdefinitivos de explicação (EAGLETON, 1998, p. 7).É importante destacar que ao questionar as noções de verdade, razão, identidadee objetividade os pós-modernos acabam abandonando as grandes narrativase passam a ver o mundo como algo contingente, instável, diverso, imprevisível,como um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando certo graude ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, emrelação às idiossincrasias e a coerência de identidades.11.3 A ORIGEM DA PÓS-MODERNIDADE E AS SUASREPERCUSSÕES NA EDUCAÇÃO236A partir de uma visão dialética desta realidade, precisamos destacar que aorigem deste fenômeno conhecido como Pós-modernidade tem um contexto his-


tórico bem concreto. Eagleton, tendo presente a categoria de totalidade, destacacomo ocorreu esse processo:Essa maneira de ver [...] emerge da mudança histórica ocorridano Ocidente para uma nova forma de capitalismo – para o mundoefêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo eda indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finançase informação triunfam sobre a produção tradicional, e a políticaclássica de classes cede terreno a uma série difusa de “políticas deidentidade” (EAGLETON, 1998, p. 7).Ao considerar este contexto, temos que ter presente as enormes diferençasexistentes entre os países do norte que são os desenvolvidos e os países do sul que sãoos colonizados ou subdesenvolvidos. É dentro deste contexto que compreendemoso que Habermas quis dizer quando afirmou que o “mundo da vida é colonizadopelo mundo sistêmico”. As últimas décadas do século XX foram ilustrativas nestesentido, pois os valores do modo de vida dos americanos foram invadindo gradativamentetodas as partes do globo e o seu jeito de ser passou a ser “normal” nasdiferentes partes do mundo: todos tomando coca-cola, todos comendo fast-food,todos consumindo a música, os filmes e o jeito de ser dos americanos. Na obra dePerry Anderson vemos que o pós-modernismo é tomado como sendo máquinasde imagens e aí se inclui a TV, o computador, a internet e os shopping centers; estaparafernália não produz nada de novo, pois sua única função é a reprodução dascoisas. Desta forma, conseguimos perceber a maneira sutil, mas violenta de acabarcom os valores locais em nome de uma cultura universal e imperialista.No prefácio de sua obra, Terry Eagleton destaca que o “Pós-modernismo é umestilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma artesuperficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética epluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura “elitista” e a cultura “popular”,bem como entre a arte e a experiência cotidiana”. Por trás desta colocação, temos oocultamento dos aspectos ideológicos que esta nova tendência tenta esconder, poisfaz um grande esforço para abortar as grandes narrativas que são as que poderiamoferecer a chave para a compreensão do todo deste processo.Ellen M. Wood, no capítulo “Sociedade civil e política de identidade”, destacao seguinte:11 - DESAFIOS DOS PROFESSORES DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE: UMA VISÃO HISTÓRICA - Luis Carlos Trombettaa sociedade contemporânea se caracteriza por fragmentação cres-237


cente, diversificação de relações e experiências sociais, pluralidadede estilos de vida, multiplicação de identidades pessoais. Em outraspalavras, estamos vivendo num mundo “pós-moderno”, um mundoem que diversidade e diferença dissolveram todas as antigas certezase todas as antigas universalidades (WOOD, 2003, p. 220).Wood trabalha o conceito de “identidade” a partir da ideia deste novo pluralismo;este abrangeria quase tudo:O novo pluralismo aspira a uma comunidade democrática quereconheça todo tipo de diferença, de gênero, cultura, sexualidade,que incentive e celebre essas diferenças, mas sem permitir que elas setornem relações de dominação e opressão (WOOD, 2003, p. 221).PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS238Os pós-modernos, ao defenderem este novo pluralismo e a política da identidade,não se questionam sobre a possibilidade ou não de abolição de classe euma possível abolição ou humanização do Modo de Produção Capitalista, pois oCapitalismo submete todas as relações sociais às suas necessidades. É importanteter presente este cenário onde o Capitalismo consegue cooptar e reforçar as desigualdadese opressões e adaptá-las aos interesses da exploração de classe.Depois de trabalharmos a definição de Modernidade, Pós-modernidade ePós-modernismo, precisamos enfrentar o debate a que nos propomos no títulodeste trabalho: quais são os desafios dos professores na Pós-modernidade? Como é queos professores podem enfrentar este convívio frenético de ordem e desordem emque o indivíduo é fragilizado e, ao mesmo tempo, acompanha a ruína das antigasformas de coesão social: Estado, religião, partidos revolucionários, sindicatos,etc.? Como os professores serão capazes de compreender o Modo de ProduçãoCapitalista sem um conhecimento totalizador capaz de compreender o Capitalismoem suas múltiplas manifestações? Segundo Wood, é preciso compreendero capitalismo em sua unidade sistêmica e, a partir da sua historicidade, construirum olhar crítico capaz de possibilitar sua superação.Dermeval Saviani, educador brasileiro, considera o Pós-moderno como efeitode uma época de “fragmentação” e “superficialidade”, um período de “decadênciada cultura”, de “esvaziamento do trabalho pedagógico na escola”; destaca ele queseria mais um meio ardiloso de produção ideológica ‘pós-capitalista’ para encobrira percepção dos homens a respeito do desenvolvimento histórico. Esta colocação


associa-se à crítica de Wood acerca do fim das grandes narrativas à compreensãoda história.A colocação de Saviani é contundente, pois os educadores acompanham ocotidiano dos alunos em suas diversas atividades e constatam que as análises feitaspor eles sobre os aspectos sociais, políticos, culturais, religiosos, econômicose educacionais carecem de uma fundamentação crítica mais radical, no sentidode ir até a raiz ou às causas últimas dos fenômenos, rigorosa e de conjunto ouholística fazendo com que seus trabalhos sejam superficiais, fragmentados e semnenhuma condição de compreender os fenômenos analisados em suas múltiplasconexões e nestas os aspectos ideológicos presentes.O desafio dos professores diante do pós-modernismo começa na política e nodesenvolvimento desta preciosa ideia. Aquilo que deveria ser a arte de organizar avida pública e comum de todos enfrenta a atitude desinteressada, cética e despolitizada.Para os pós-modernos, não existe a ideia de revolução como passaportepara uma nova sociedade, para um novo homem e uma sociedade justa e semclasses. O ideal da esperança e da utopia possível defendida pelos frankfurtianosfica relegado a um plano muito distante.Na moral, temos uma realidade bastante complicada que os educadores precisamenfrentar e que diariamente são desafiados; diante da relativização dos valores,torna-se muito difícil termos critérios mínimos para distinguirmos o bom doruim, o justo do injusto, o correto do incorreto, etc.; temos um quase “vale-tudo”.Acompanhamos uma tendência à tolerância, o respeito às diferenças humanas,o pluralismo radical que não supõe nenhum “inimigo a derrotar”; existe umaatitude de neutralidade moral frente às inúmeras discussões que se encaminham.Um enorme desafio que os educadores enfrentam ou precisam enfrentar estárelacionado ao campo da educação. Assistimos um ensino bastante especializadono qual muitos estão fazendo ciência sem consciência como afirma Edgar Morin;homens que defendem o progresso a qualquer custo, sem preocupação com osefeitos colaterais da atividade científica. A partir do século XVII, acompanhamos adivinização da Ciência, do progresso e da razão em detrimento de um conhecimentomais filosófico, mais global e crítico. Existe entre adultos e jovens um sentimentode conforto ou conformismo diante das informações e não há a preocupação noprocessamento das mesmas a fim de transformá-las em conhecimento crítico.Na Filosofia, os pós-modernos são partidários da pluralidade de argumentos,com a proliferação de paradoxos e do paralogismo, ou seja, o raciocínio falso11 - DESAFIOS DOS PROFESSORES DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE: UMA VISÃO HISTÓRICA - Luis Carlos Trombetta239


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS240que contribui para a proliferação de muitos aspectos ideológicos da realidade quepovoam o imaginário social das pessoas como se fosse realidade.No campo epistemológico, temos outro grande desafio lançado aos professores,pois, como já enunciamos em nosso texto, os pós-modernos desconfiamdas “grandes narrativas” ou dos grandes sistemas teóricos.Um aspecto sutil, mas interessante, está relacionado à ação política pós-moderna,pois eles preferem atuar em ONGs por desconfiarem de partidos políticos,eleições e sindicatos, pois estes seriam meios possíveis de enfrentar a situação vigente.Este aspecto é bastante visível nos debates realizados em sala de aula e emartigos publicados na imprensa local, regional e nacional. As ações movidas paraprevenir o uso de drogas, as DST e AIDS e a participação em campanhas contraa fome e analfabetismo podem ser de inspiração pós-modernista. Neste processo,segundo Wood, o capitalismo e suas instituições resistem e são preservados.A sociedade pós-moderna anula a dimensão do privado, torna tudo público:cenas de sexo e permanente erotização da programação, ritos religiosos transmitidosao vivo, ritos satânicos com cobertura da mídia, transmissão ao vivo de atentadosterroristas, isso tudo parece ser um fato jornalístico que deve ser promovido avisibilizado em detrimento do segredo e da privacidade.O mal desta época pós-moderna é visível e trivial, ela é consequência dotrabalho compulsivo que causa estresse, perversão, depressão, obesidade e tédio.A perversão e o estresse são frutos da falta-de-lei, da falta-de-tempo e da falta--de-perspectiva de futuro num mundo em que tudo se desmoronou. Parece quevivemos diante de um niilismo absoluto e isto deve ser compreendido pelosprofessores e educadores. O grande desafio lançado aos educadores diante destecenário é organizar um discurso coerente e que mantenha a esperança e a utopiapossível entre as crianças, os jovens e os adultos. Se não efetivarmos esta proposta,o niilismo, o ceticismo e o cansaço espiritual inviabilizarão qualquer propostainovadora e que vise à justiça social e a humanização entre os homens.Superar a ânsia de prazer a qualquer preço, o “tudo vale” e o “tudo deveporque pode” é um imperativo aos educadores e educandos do século XXI; estaé uma condição sem a qual não teremos novos horizontes para nós professores epara nossos educandos. A modernidade prometia a felicidade através do progressoda ciência ou de uma revolução, já a pós-modernidade promete um nada que pretendeser o solo para tudo. Construir uma história crítica, consciente e autênticaé o grande desafio dos educandos e de seus orientadores neste cenário onde osvalores da pós-modernidade estão sendo impostos gradativamente.


Ao valorizarmos a cooperação e a ajuda mútua entre a comunidade estudantil,estaremos construindo a nossa cidadania e vencendo os grilhões ideológicosimpostos pelos defensores das escolas pós-modernistas.No prefácio do livro de Jean-Francois Lyotard “A Condição Pós-Moderna”temos uma colocação interessante sobre o cenário pós-moderno:O cenário pós-moderno é essencialmente cibernético, informáticoe informacional. “Nele expandem-se cada vez mais os estudose as pesquisas sobre a linguagem, com o objetivo de conhecer amecânica de sua produção e de estabelecer compatibilidades entrelinguagem e máquina informática” (LYOTARD, 2004, p.8).Também vemos no posfácio da obra de Lyotard que a condição pós-modernaé incrédula diante dos metarrelatos, é desencantada com os grandes discursos produzidosno século XIX que explicavam a condição histórica do homem ocidentalnos diversos aspectos de sua vida. O ponto de partida destes metarrelatos foi oideal libertário da Revolução Francesa e seu fundamento os princípios da razãoiluminista. Em Lyotard, temos uma questão importante: saber como, descartadasas metanarrativas do bom, do justo e do verdadeiro, será possível construirmos elegitimarmos uma nova ordem mundial?O questionamento pós-modernista contra as metanarrativas atingiu profundamentea educação, pois o campo educacional possui muitas metanarrativas.Estas também são usadas para a construção de teorias filosóficas, para análisessociológicas e para a elaboração dos currículos educacionais. A destruição dasgrandes narrativas acarreta a destruição do edifício teórico educacional. Nestecenário, ocorre o abandono, no campo educacional, da “grande pedagogia” e ainexistência de uma resposta concreta às questões educacionais e sociais.11.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS11 - DESAFIOS DOS PROFESSORES DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE: UMA VISÃO HISTÓRICA - Luis Carlos TrombettaÉ a partir deste contexto que precisamos compreender os desafios educacionaisdos professores e dos educadores, pois o pós-modernismo, ao tirar a autonomiado indivíduo, fez com que este não fosse mais capaz de pensar e decidir por si só,pois é pensado pelo próprio sistema. O sujeito é descentrado e sem uma identidadeprópria, mas vive imerso em identidades contraditórias, ambivalentes e emmobilidade. O olhar pós-moderno considera o sujeito uma ficção. Precisamos241


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSconhecer bem para melhor enfrentar esta visão fragmentada, incerta e relativizadadas coisas. Também, em nossas aulas, precisamos tratar adequadamente as questões:linguagem, discurso, minorias e gênero. Se tivermos presente estes elementos dapós-modernidade seremos capazes de compreender melhor se a verdade é ou nãoé relativa, se o sujeito é ou não é uma mera produção da linguagem e do discurso,se a moral necessita ou não ser relativizada, e, por fim, se o certo e o errado existemou são somente dependentes de nosso sistema de valores.Diante de tudo isto é necessário estudar, pensar e pesquisar muito paracompreender os reais e verdadeiros desafios pedagógicos impostos aos professorese à comunidade escolar pela pós-modernidade. É a partir disto que devemosassumir uma atitude crítica e responsável em favor de um projeto educacionalmais comprometido com a realidade dos povos da América Latina: colonizada,explorada, mas com a possibilidade de emancipação, com esperanças e, acima detudo, solidária entre si. Este desafio é também nosso e depende de nossa práxiscotidiana que deve ser libertadora.Este debate está presente em diferentes intervenções dos deputados que compõema Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia <strong>Legislativa</strong>e repercute no cotidiano dos profissionais que atuam na educação e, acima detudo, na vida da comunidade escolar. O grande desafio e até a grande esperança degrande parte da população gaúcha é ver uma política pedagógica coerente e capazde enfrentar estes dilemas e deixar os estudantes harmonizados consigo e com aprópria sociedade. O primeiro sinal pode ser dado aqui no RS se o governo doestado, em primeiro lugar, conseguir pagar o piso nacional ao magistério gaúcho e,acima de tudo, se for capaz de manter um bom plano de carreira a toda a categoria.Se estes aspectos não forem garantidos se concretiza cada vez mais a precarizaçãodas condições de trabalho, característica esta marcante na pós-modernidade.OBRAS CONSULTADASBAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida / Zygmunt Bauman; tradução,Plínio Dentzien. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2001.EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo / Terry Eagleton; traduçãoElisabeth Barbosa. – Rio de Janeiro: Jorge zahar Ed., 1998.242LYOTARD, Jean-Francois. A Condição Pós-Moderna. Jean-Francois Lyotard;


tradução: Ricardo Corrêa Barbosa; posfácio: Silviano Santiago – 8ª ed. – Rio deJaneiro: José Olympio, 2004.OLIVEIRA, M. A., Desafios éticos da globalização. São Paulo: Paulinas, 2001.SILVA, Thomas Tadeu (org). O sujeito da educação – estudos foucaultianos.Petrópolis, RJ, Vozes, 1994.SINGER, Peter. Um só mundo: a ética da globalização / Peter Singer: traduçãoAdail Ubirajara Sobral; revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla. – SãoPaulo: Martins Fontes, 2004.WAGNER, E. S.. Hannah Arendt § Karl Marx – o mundo do trabalho. SãoPaulo: AE Ateliê Editorial, 2000.WOOD, E. M.. Democracia contra capitalismo – a renovação do materialismohistórico / tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: BOITEMPOEditorial, 2003.11 - DESAFIOS DOS PROFESSORES DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE: UMA VISÃO HISTÓRICA - Luis Carlos Trombetta243


S/ título – lápis de cor/papel – 48,5 X 33,5cmMaria da Glória da Silva - Oficina de Criatividade/ HPSP


12 EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOSE SOCIEDADE: PERSPECTIVASCONTEMPORÂNEASJaime José Zitkoski 209Sérgio Trombetta 210Nilda Franchi 211Resumo:A proposta do texto é desenvolver algumas reflexões relacionadas à educação em e para osdireitos humanos. Partimos da idéia de que só haverá uma cultura de direitos humanos apartir de um projeto educacional direcionado para a vivência democrática e para o respeitoà pessoa humana em sua singularidade. Não haverá uma cultura de direitos humanos semuma educação em direitos humanos. Educar na perspectiva dos direitos humanos exige umaluta permanente contra todas as formas de violência que agridem a dignidade da pessoa.O projeto mais amplo, profundo que perpassa a educação em direitos humanos é a propostade uma sociedade justa, democrática, plural capaz de viver a diferença na igualdade ondecada pessoa é tratada sempre como valor absoluto. Uma educação em direitos humanos énecessariamente uma educação crítica que almeja a transformação das estruturas opressorase desumanas. Não basta aprender a conviver, a respeitar a alteridade; precisamos aprendera conviver com justiça dentro de instituições democráticas que sejam capazes de universalizaros direitos humanos criando assim condições materiais e culturais para a realização de todosos seres humanos em um mundo democrático e solidário.Palavras-Chave:Crise, diálogo, educação, consciência, esperança.12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. Franchi209 Professor na UFRGS.210 Professor na UNISINOS e na FACCAT.211 Doutoranda em Ciências Sociais na UNISINOS.245


12.1 SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS: DIAGNÓSTICO DACRISE E DESAFIOS A PARTIR DA EDUCAÇÃO“Prezados professores, Sou um sobrevivente de um campo de concentração.Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver: Câmarasde gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas pormédicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas.Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios euniversidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a educação. Meupedido é: ajude os seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforçosnunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler,escrever, fazer ciência só são importantes para fazer homens e mulheresmais humanos”.(mensagem de um prisioneiro do campo de concentração, na 2ªGuerra mundial)PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS246Partimos da ideia de que a educação deve ser um processo de formaçãointegral, que envolva em seu projeto maior, necessariamente, a temática dos DireitosHumanos. Isto é, toda educação deve ser educação em e para os direitoshumanos, ou não é educação, no seu sentido autêntico. Educar para os direitoshumanos é resistir às diferentes manifestações da barbárie, tão presentes nas sociedadescontemporâneas.Direitos Humanos são aqueles intrínsecos a cada ser humano, por si só, e cujoreconhecimento e garantia é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoahumana e sua realização como sujeito portador de dignidade. Segundo Douzinas(2009), os direitos humanos constroem seres humanos. Sou humano porque oOutro me reconhece como tal, o que, em termos institucionais, significa que soureconhecido como um detentor dos direitos humanos, aqueles fundamentais paraa vida humana e inerentes à própria natureza e à dignidade do homem. Se hávida, há direito. O primeiro e o mais importante deles é o direito à vida; todos osoutros decorrem dele (GENEVOIS, 2000).O comprometimento com a dignidade da pessoa e dos direitos humanos nãoé natural e nem espontâneo, por isso, a educação é indispensável para criar umacultura, uma ética universal de respeito à pessoa humana, alicerçada na democracia,no espírito de solidariedade, no respeito às diferenças e na justiça. Educarpara os direitos humanos é infundir e implementar a consciência de que a pessoaé o primeiro dos valores. Disso decorre o compromisso de respeito à dignidadedos seres humanos e aos valores fundamentais, que são de toda a humanidade.


Como os direitos humanos integram direitos e valores universais, nenhuma pessoapode ser excluída desse respeito, e toda exclusão social é negação do humano(DALLARI, 2000).Para pensarmos o tema da educação em direitos humanos, precisamos ter umpanorama sucinto do atual momento da civilização em seu estágio planetário ouna era da globalização. O século XX foi o mais violento da história; para algunsautores foi um tempo de massacres e guerras. Nos anais da história, ele merecerá,com justiça, o grande prêmio do horror. Procuraríamos em vão: nenhuma épocaviu tantos crimes se perpetrarem em escala planetária. Crimes em massa, organizadosracionalmente e a sangue-frio. Crimes originados por uma insondávelperversão do pensamento – perversão cujo símbolo será, para sempre, o nome deAuschwitz (DELACAMPAGNE, 1997).Este foi sem dúvida o século mais assassino de que temos registro, tantoem escala de frequência quanto de extensão. Visto que este século nos ensinou econtinua a ensinar que os seres humanos podem aprender a viver nas condiçõesmais brutalizadas e teoricamente intoleráveis, não é fácil apreender a extensão doregresso, por desgraça cada vez mais rápida, ao que nossos ancestrais do séculoXIX teriam chamado: padrões de barbárie. (HOBSBAWM, 1997).Analisando a história recente percebemos que nenhum século conheceumanifestações de barbárie tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto oséculo XX. Muitos autores constataram que a barbárie é engendrada no próprioseio da civilização e é parte integrante desta. De certo modo, o que chamamos demodernidade, ou mesmo o progresso, se confunde com a barbárie. O progressotécnico e industrial, com sua racionalidade burocrática, pôde ser portador de catástrofessem precedentes. Assim, há uma contradição em nossa civilização. O quechamamos progresso carrega a semente da barbárie. A racionalidade instrumentaltem forte tendência a se transformar em loucura assassina. O século que acaba determinar foi um dos mais brutais e sangrentos da história humana. O canto dasereia dos avanços tecnológicos e científicos não fez mais do que nos lembrar aprofundidade de uma barbárie que não parece disposta a nos abandonar tão cedo(GENTILE; ALENCAR, 2001).No texto de Bauman, Modernidade e Holocausto (1998), o autor faz umadensa e profunda análise da modernidade como sendo um fenômeno perpassadopela barbárie. O Holocausto nasceu e foi executado em nossa sociedade modernae racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimentocultural humano e, por essa razão, é um problema dessa civilização e cultura.12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. Franchi247


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS248Na ótica de Bauman, o Holocausto é o resultado do processo civilizador e seusefeitos. Este acontecimento terrível (um espinho na consciência da humanidade)contém informações cruciais sobre a sociedade, na qual somos membros. A civilização,hoje, inclui campos de extermínio. O Holocausto é mais um item numaampla gama de acontecimentos que abarca muitos casos semelhantes de conflito,preconceito, agressão ou violência; ele revela uma das possibilidades ocultas dasociedade moderna.Na verdade, o Holocausto revela a essência da modernidade; ele é um moradorlegítimo da casa da modernidade; com efeito, um morador que não poderiase sentir em casa e em nenhum outro lugar. Tanto a destruição como a barbáriesão aspectos inseparáveis do que chamamos: civilização. Foi o mundo racional dacivilização moderna que o tornou viável; foi o espírito da racionalidade instrumentale sua forma moderna e burocrática de institucionalização que tornaramesses tipos de soluções não apenas possíveis, mas eminentemente “razoáveis” – eaumentaram sua probabilidade de opção. Para Bauman, o regime nazista há muitodesapareceu, mas seu legado venenoso está longe de morto.Seguindo os passos de Bauman, Morin (2005) concebe a modernidade comoum tempo marcado pela violência. A era planetária se inaugura e se desenvolve na eatravés da violência, da destruição, da exploração feroz das Américas e da África. Éa idade de ferro (guerras, violências, barbárie), na qual nos encontramos. A ciêncianão é apenas elucidadora, é também cega sobre seu próprio devir e contém seusfrutos, como a árvore bíblica do conhecimento, ao mesmo tempo o bem e o mal.A técnica, juntamente com a civilização, trouxe uma nova barbárie, anônima emanipuladora. A palavra razão denota não somente a racionalidade crítica, mas,também, o delírio lógico da racionalização (dogmática, arrogante), cego aos seresconcretos e à complexidade do real. O que tomávamos por avanços da civilizaçãoforam, ao mesmo tempo, avanços da barbárie. Walter Benjamin viu claramenteque havia barbárie na origem das grandes civilizações. Freud viu claramente que acivilização, longe de anular a barbárie, recalcando-a em seus subterrâneos, preparanovas erupções dela. É preciso ver hoje que a civilização tecnocientífica, emborachamada civilizada, produz uma barbárie que lhe é própria. A barbárie não poupounossa época. Em vez de dar início às condições verdadeiramente humanas, mergulhamosna barbárie burocrática e anônima de uma racionalidade instrumental,que é incapaz de contemplar a singularidade de carne e osso de cada ser humano.Produzimos totalidades que destroem todas as singularidades.Nessa perspectiva, pensamos que a questão da educação em ou para os direitos


humanos é fundamental para resgatar a reflexão de Adorno em seu texto Educaçãoapós Auschwitz (1965), onde o autor explicita que o objetivo da educação é lutarcontra a barbárie; nossa civilização produz violência e barbárie. Para a educação,a exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas, isto é, qualquerdebate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frentea essa finalidade, pois ela é a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Ocentro de toda educação deveria ser: que Auschwitz não se repita. Entretanto,para que esse episódio não se repita é necessário desenvolver o espírito crítico, areflexão e a autonomia para um pensar alicerçado na sensibilidade e na ética. Énecessário que nos tornemos responsáveis uns pelos outros, superando as indiferençase a insensibilidade.Se as pessoas não tivessem sido profundamente indiferentes ao que acontececom todas as outras, exceto com que as que se mantêm vínculos estreitos e, possivelmente,por intermédio de alguns interesses concretos, Auschwitz não teriasido possível. As pessoas não o teriam aceitado.Enfim, pensar a educação em direitos humanos implica partir da situaçãoépica de um mundo onde, só no século XX, mais de duzentos milhões de pessoasforam massacradas em guerras, revoluções e conflitos políticos, religiosos e étnicos,sem levar em consideração as vítimas da violência diária de nossas cidades. Issosignifica dizer que a violência se tornou um fato comum em nossas vidas; mais doque isso, criou-se um contexto de violência generalizada, cotidiana e instrumentalizadaem nível local, nacional e internacional (OLIVEIRA, 2010). Igualmente,podemos dizer que estamos diante da globalização da violência, onde o arbítrioe o poder substituem o direito nas relações entre as pessoas e os povos, marcadospelo egoísmo individual e grupal crescente, pela criminalidade organizada, pelocomércio de armas, drogas e seres humanos, pelo terrorismo internacional e peladestruição do meio ambiente.12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. Franchi12.2 DA CRISE DAS UTOPIAS À ESPERANÇA NA EDUCAÇÃOPARA OS DIREITOS HUMANOSAlém da barbárie e da violência, herdamos do século XX, o niilismo, quehoje penetra todas as dimensões da cultura e, também, do vazio. Estamos cadavez mais indiferentes aos projetos coletivos; o futuro já não entusiasma ninguém;ninguém mais acredita nos amanhãs radiosos da revolução e do progresso; ne-249


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS250nhuma ideologia política é capaz de inflamar as multidões; presenciamos o declinodos grandes sistemas de sentido; apenas a esfera privada parece sair vitoriosadessa maré de apatia. Estamos diante do triunfo da cultura hedonista, centradana realização do eu, no individualismo ilimitado, na espontaneidade e no desfrute;no indivíduo voltado para si mesmo, marcado pelo esquecimento do outro epela indiferença nas relações dos ideais coletivos. Como nos assinala Lipovetsky(2005), a guerra está as nossas portas, vivemos sobre um barril de pólvora, bastaver o terrorismo internacional, os crimes, a insegurança das cidades, a violênciaracial nas ruas e escolas, os assaltos à mão armada. O estado natural de Hobbesencontra-se, assim, no fim da História: a burocracia, a proliferação das imagens,as ideologias terapêuticas, o culto ao consumismo, as transformações da família e aeducação permissiva engendraram uma estrutura da personalidade: o narcisismo,indo conjugado com as relações humanas cada vez mais bárbaras e conflituosas.Os indivíduos se tornaram mais sociáveis e cooperativos apenas aparentemente;por trás da tela do hedonismo e da solicitude, cada um explora cinicamente ossentimentos dos outros e satisfaz seus próprios interesses sem a menos preocupaçãocom as gerações futuras. O efeito de barbárie caracteriza toda forma de esterilidadehumana e de perda do sentido no campo da cultura, quer se trate de ética,de política, de arte, quer de educação (MATTÉI, 2002).Se quisermos construir um mundo pautado no respeito à dignidade da pessoahumana e nos direitos humanos, não há melhor maneira de materializar tal idealque educar para alcançá-lo. Uma cultura de respeito aos direitos humanos é umideal possível, mas para isso, é necessário direcionar esforços para criar em todos osespaços sociais de convivência uma cultura dos direitos humanos. Nossos esforçosdevem se convergir para a instauração de uma ética do cuidado com a vida, derespeito à pessoa humana em sua singularidade radical. Educar na perspectiva dosdireitos humanos é pensar a humanidade como uma comunidade alicerçada nasolidariedade, na democracia, na ética universal do ser humano. Por isso, realizardireitos humanos é um compromisso de vida. Mudar os padrões de reproduçãoda vida que, a rigor, colaboram para destruir a própria vida, é o desafio maiorpara quem pretende transformar direitos humanos em compromisso de vida.Neste contexto, a compreensão dos direitos humanos tem um conteúdo críticofundamental e cobra engajamento posicionado e consequente. Fazer educaçãoem direitos humanos, neste sentido, é contribuir para reposicionar eticamenteos sujeitos humanos concretos, muito além, por isso, de acumular conteúdosou mesmo estratégias de ação, por melhores que sejam (CARBONARI, 2009).


A Educação em Direitos Humanos é um instrumento que possibilita humanizar,sensibilizar e conscientizar as pessoas para a importância do respeito ao serhumano, a sua dignidade e aos seus princípios democráticos. É ela quem permitea formação de pessoas conscientes de seu papel na luta contra as desigualdades einjustiças. Esse processo tem seu fundamento no diálogo, que reconhece a igualdadeentre os seres humanos e respeita as diferenças existentes em uma sociedadepluralista. Quando falamos em igualdade não aludimos a uma padronização, masa uma igualdade que assume a promoção dos direitos básicos de todas as pessoas.O diálogo em torno dos direitos humanos é um momento ou espaço oportunopara se discutir questões de fundo do nosso viver em sociedade, especialmentese estas abordarem os temas sobre a ética, a justiça global, a cidadania, a paz e adignidade de toda pessoa humana. A Educação em Direitos Humanos é essencialmentea formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através dapromoção e de vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade e da paz(BENEVIDES, 2000).Sem o cultivo dos direitos humanos não é possível uma estrutura socialdemocrática. Sem democracia, não existem direitos humanos. Bobbio (1992)nos profere que, sem os direitos do homem reconhecidos e protegidos, não hádemocracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a soluçãopacífica dos conflitos. É o espírito da democracia que permite a luta para garantirdireitos e também para criar novos direitos que surgem na evolução do processohistórico. Compreender a democracia e os direitos humanos como uma construçãoque se faz ao longo da história, e que tem diante de si o futuro, pressupõe atribuirà educação um lugar indispensável de formação em e para os direitos humanos,na medida em que, através do ato educativo, pode-se, senão transformar a sociedade,construir a cultura indispensável para esta transformação (VIOLA, 2010).A efetivação de uma cultura dos direitos humanos só pode ocorrer em umcontexto democrático e de diálogo entre todas as pessoas. Para Reis (2010), democraciae direitos humanos articulam-se a partir da firme união entre a exigênciade universalidade e a igual liberdade dos cidadãos, cuja força emancipatória,em relação a toda forma de opressão social ou política, transparece nas garantiasinstitucionais oferecidas pelo Estado e pela ação conjunta do corpo de cidadãos.Entretanto, se ainda assim, o Estado democrático não é exatamente aquilo quedeveria ser, nem os direitos humanos são tão universais, nem estão protegidosquanto deveriam estar, tais fragilidades devem-se à estrutura interna, própria dademocracia e aos direitos humanos. Sua origem moderna lhe confere, por um lado,12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. Franchi251


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS252pretensão de universalidade normativa e, por outro, viabilidade circunstanciadaaos interesses e a ação dos próprios envolvidos.A dificuldade essencial em relação aos direitos humanos não é tanto suafundamentação filosófica, sua justificação teórica, mas, sim, o de protegê-los, degarantir o acesso às condições necessárias para uma vida digna. Trata-se, no fundo,de um problema essencialmente político. Uma coisa é falar sobre os direitoshumanos, direitos sempre novos e cada vez mais extensos; outra é garantir-lhesuma proteção efetiva. À medida que as pretensões aumentam, a sua satisfaçãotorna-se cada vez mais difícil.Além disso, os direitos humanos não dependem somente das leis, mas damobilização da sociedade e, também, de uma cultura a ele relacionada. Não estamosnegando a importância de suas leis, mas o essencial é despertar a sensibilidadepara uma cultura de luta sem fim pelos direitos humanos. Na análise de Bobbio(1992), estes são direitos históricos, que emergem gradualmente das lutas que ossujeitos travam por sua própria emancipação e pelas transformações das condiçõesde vida que essas lutas produzem. Por mais fundamentais que estes sejam,são sempre históricos e nascem de modo gradual, não todos de uma vez e nemde uma vez por todas. Eles têm sido ao longo da história, uma construção dosmúltiplos movimentos sociais, e não o resultado de um ordenamento jurídico ouo efeito de uma declaração (VIOLA, 2008).Além disso, podemos dizer que a efetivação de uma maior proteção aos direitoshumanos está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana. Aluta pelos direitos humanos é inseparável da ética e do progresso moral da humanidade.Pensar um projeto de educação em direitos humanos exige uma apostano progresso da consciência ética. Não podemos alcançar sucesso na proteção àdignidade da pessoa sem a formação de uma ética sensível à temática dos direitoshumanos. Educar é essencialmente formar o caráter, formar a pessoa ética. Nãopodemos formar deficientes cívicos, pessoas insensíveis, indiferentes aos apelosdo Outro. É impossível construir uma sociedade autenticamente democráticacontando apenas com indivíduos técnicos e socialmente capacitados, porque talsociedade precisa fundamentar-se em valores sobre os quais a razão instrumentalé cega: valores como autonomia e a solidariedade, que compõem de forma inevitávela consciência racional das instituições democráticas. Se buscarmos por umprocesso educativo onde seu modelo de pessoa só aspire seu próprio bem-estar,então é suficiente buscarmos por uma educação baseada na racionalidade instrumental,que é a que rege a aquisição de habilidades técnicas. Mas, se buscarmos


por uma formação de pessoas autônomas, com desejo de auto-realização, então énecessário buscarmos por uma educação moral, no mais amplo sentido da palavra“moral”(CORTINA, 2005).Precisamos de uma política institucional, mas o essencial é uma educaçãopara a cultura ética capaz de reconhecer em cada pessoa um sujeito portador dedireitos. A educação em direitos humanos objetiva formar a consciência do indivíduopara que ele seja sujeito de sua própria história; visa incutir o ideal de umasociedade justa e democrática, o espírito de tolerância, a fraternidade e, ao mesmotempo, a determinação de lutar pelos que não têm direitos (GENEVOIS, 2000).A Escola tem o compromisso de compreender o ser humano em sua singularidade,sem esquecer a sua pertença à humanidade. Somos únicos enquantopessoa, mas participamos de uma comunidade maior, que é a humanidade e,enquanto seu membro, cada indivíduo é merecedor de respeito. Por um lado, oambiente escolar é um espaço privilegiado para desenvolver os princípios humanosuniversais e, por outro, a necessidade de respeitarmos cada pessoa e garantir a elasseus direitos necessários para a efetivação de seu projeto de vida. Não há direitoshumanos sem o reconhecimento do Outro. Recuperar a consciência do Outro,em tempos em que o individualismo se tornou uma marca histórica, é tarefa suficientementedesafiadora para as práticas pedagógicas vigentes.Frente ao atual contexto, o nosso grande desafio é humanizar os espaçosescolares e produzir uma pedagogia revolucionária no campo dos direitos humanos,onde educar seja, prioritariamente, criar uma cultura embasada no homemrevestido de dignidade, direitos e responsabilidades; é possibilitar a reflexão, desenvolvero espírito crítico e incitar o reconhecimento e a aceitação do diferente. Osdireitos humanos são a possível utopia para o século XXI, a base para uma éticaplanetária e a criação de uma cultura sólida e responsável (GENEVOIS, 2000).De certo modo, podemos dizer que os direitos humanos jamais podemtriunfar; eles podem padecer e até mesmo ser temporariamente destruídos. Mas,sua vitória e sua justiça estarão sempre em um futuro aberto e um presente fugaz,porém premente. É nesse sentido que os direitos humanos representam nossoprincípio utópico: um princípio negativo que coloca a energia da liberdade a serviçoda nossa responsabilidade ética em relação ao outro (DOUZINAS, 2009).É importante frisar que os direitos humanos não estão dissociados dos direitossociais e econômicos. Neste sentido não se pode falar em democracia e direitoshumanos em sociedades marcadas pela miséria, pela negação dos mínimos dejustiça. Por isso, é que a educação em direitos humanos perpassa pela denúncia12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. Franchi253


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS254das estruturas geradoras de pobreza. E o que mobiliza seus ativistas é a utopia deoutro mundo possível: mundo de justiça; crítica ao capitalismo globalizado e aproposta de outro modelo de sociedade. Utopia de uma sociedade mais justa ede uma vida em condições mais dignas. Os direitos humanos são uma realidadedesejável, isto é, fins que merecem ser perseguidos, e que, apesar de sua desejabilidadenão foram todos eles (por toda a parte e em igual medida) reconhecidos(BOBBIO, 1992).O atual modelo econômico que aprofunda as desigualdades sociais é incompatívelcom a utopia que visa universalizar os direitos humanos. Se nosso sonho éa justiça e a igualdade de direitos de todas as pessoas e povos, não podemos manterum sistema de desigualdade como este que a economia capitalista sempre impôse sempre imporá. Neste sentido, a educação em direitos humanos é também umadenúncia de todas as injustiças, violências e exclusões por ele provocadas. Sem umamudança dos rumos da globalização com sua lógica de exclusão e desigualdade,os direitos humanos continuarão sendo letra morta para um número significativode pessoas. Nosso desafio maior na sociedade globalizada é a justiça para todos.Não basta pensar o respeito, as diferenças, o multiculturalismo, a diversidade. Éurgente pensar uma justiça global capaz de garantir as condições necessárias parauma vida decente. Aprender a conviver não basta; é preciso aprender a convivercom justiça e solidariedade. A cidadania política e a cidadania social são inseparáveis.O acesso aos bens materiais e às riquezas produzidas pela humanidade éuma exigência básica na luta pela universalização dos direitos humanos.A luta pelos direitos humanos pressupõe a busca pela justiça e por uma culturade solidariedade, onde caibam todas as pessoas e todas as culturas humanizadoras.No centro desse projeto se encontra a busca por justiça social, democracia, respeitoàs diferenças e a construção de uma nova cultura de direitos humanos. Educaçãoem direitos humanos é uma luta permanente contra a opressão e qualquer formade violação dos direitos humanos e, acima de tudo, para que os direitos humanossejam promovidos sempre mais, a fim de que o humano possa ser mais (MAGRI,2009). Por isso, os defensores dos direitos humanos muitas vezes são chamadosde comunistas, ou mesmo de estarem do lado dos bandidos. Esta ideia ou estavisão equivocada do tema é resultante do desconhecimento do projeto implícitona luta pelos direitos humanos, que tem como proposta a mudança do sistemavigente. O que une seus ativistas é o desejo, a utopia e o sonho de uma sociedadeinclusiva, sustentável, democrática, plural e justa.


12.3 UMA EDUCAÇÃO DIALÓGICA E CRÍTICA COMOALTERNATIVA NA FORMAÇÃO DA CULTURA DOS DIREITOSHUMANOSNosso intento, neste tópico, é relacionar os desafios concretos da atualidade,para avançarmos na efetivação de uma cultura da paz e do cultivo dos direitoshumanos com a exigência radical de um processo educativo que possa fazer jus atais provocações. Nesse sentido, pretendemos abordar algumas linhas centrais daProposta de Educação de Paulo Freire, enquanto uma alternativa coerente com osprincípios filosófico-pedagógicos da humanização da vida em sociedade.Paulo Freire concebeu a educação como um sinônimo de humanização. Portanto,segundo ele, a educação não acontecerá se cada ser humano envolvido nesseprocesso educativo, fundamentalmente social e coletivo, não atingir de fato umcrescimento de seu ser pessoa. Pois o ser humano é, basicamente, uma busca parao ser mais. Ou seja, o ser humano é um projeto de futuro, de novas realizações ede construção de sua existência.A educação, portanto, não é apenas acúmulo de conhecimento. Mas, sobretudo,modificação do ser humano para melhor. Além disso, a educação precisatraduzir-se em prática social e política. Ou seja, a educação deve contribuir comsua parcela em nossa luta para humanizar o mundo. Eis, então, nosso desafio aotrabalharmos por uma educação coerente com os objetivos da concretização dosDireitos Humanos para todos os cidadãos brasileiros.Nessa direção, a pedagogia freireana se caracteriza por ser uma propostametodológica coerente com seus princípios filosóficos e pedagógicos e que partedo diálogo crítico e problematizador, visando construir um novo caminho deformação humana e cultural. Segundo Freire, o ser humano se faz a si mesmo eao mundo através do diálogo, pois, é no encontro de duas ou mais pessoas quepodemos dizer ao mundo e construir novos saberes, partilhando o que já sabemos.Educação é assim concebida, como um processo de interação social e de troca desaberes que possibilitam a busca do ser mais. Assim, contamos com a possibilidadede transcendermos a nós mesmos.Mas, uma educação crítico-dialógica não é um processo simples e espontâneo.Ao contrário, requer uma postura metódica e sistemática em termos epistemológicose pedagógicos e, além disso, uma postura ético-política comprometida com ahumanização de nossa sociedade como um todo. Esse caminho metódico, ousado12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. Franchi255


e coerente de uma pedagogia da humanização é o que pretendemos desenvolver aseguir em seus diferentes fundamentos teóricos e exigências práticas.12.3.1 Educar o ser humano para ser maisPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS256Segundo Freire (1994) o ser humano está no mundo para realizar-se enquantopessoa, construindo sua existência na luta por liberdade, o que implica libertar-sede tudo o que o oprime. Esse é o sentido do viver, de nossa presença no mundo,que é também luta para humanizá-lo.Portanto, nós seres humanos somos seres inacabados que, conscientes denossa inconclusão, buscamos ser mais (FREIRE, 1993) e nos humanizar, mas, noentanto, durante essa busca nos deparamos com os condicionantes históricos quenos limitam. Eis, então, o lugar da educação voltada para a construção de umacultura em defesa dos Direitos Humanos, que tem como papel problematizar arealidade social, cultural e denuncial às práticas opressoras e injustas. A educaçãoprecisa oferecer referências, enquanto chaves de leituras, a todos os educandospara que estes passem a olhar criticamente o mundo em sua volta e a questionartudo aquilo que limita ou impede o acesso à vida digna de milhões de pessoasem nosso planeta.A partir dessa concepção freireana, apreendemos que tudo o que estamosvivendo atualmente, principalmente as crises da humanidade, somadas aos processosde desumanização das sociedades contemporâneas, acima aludidos, não seconstituem em um “destino dado”, ou em uma fatalidade da história. Ao contrário,a história se estrutura a partir de processos humanos, portanto, finitos e relativos,a partir dos quais nós os fazemos de determinadas maneiras. Mas, tudo o quevivemos e somos é um ponto de partida para nos refazermos, nos humanizarmos.Ou seja, através da história, nós seres humanos nos vocacionamos enquanto seresem busca e em luta histórica para construir uma sociedade mais justa, democráticae bela. Esse é o sentido de apostarmos na educação e de nos esforçarmos para acontinuidade da aventura humana no universo, que consiste, acima de tudo, naluta para ser mais.Nessa perspectiva, Freire afirma que uma pedagogia crítica e dialógica, pautadana educação da esperança e na luta pela humanização do mundo implica,fundamentalmente


entender os homens e as mulheres, a não ser mais do que simplesmentevivendo histórica, cultural e socialmente existindo, comoseres fazedores de seu caminho, que ao fazê-lo, se expõem ou seentregam ao caminho que estão fazendo e que assim os refaz também(FREIRE, 1994, p. 97).O ser humano, portanto, é um ser de transcendência, que jamais estarácompleto, totalmente pronto, ou satisfeito consigo mesmo. Pois, “o ser humano éum ser de relações, que transcende a si próprio por estar, constantemente, saindode si mesmo e exteriorizando-se nas relações que estabelece (ZITKOSKI, 2008,p. 232) com o mundo e com os outros. E, por estarmos nessa constante busca deser mais, de nos superarmos, é que nos encontramos sempre projetando o futuroa partir do lugar que nos situamos no presente.Essa nossa tendência natural que existencialmente tenciona ser e vir a ser,existência e devir, é o que constitui nosso inacabamento e que caracteriza nossaespécie como ser inconcluso, sempre em vias de superação de si próprio. Nossaespécie é a única que transforma a realidade que cerca seu mundo, adaptável eculturalmente humanizável. Esse horizonte de nossa existência, ao mesmo tempoem que nos enobrece e nos diferencia dos demais seres, por outro lado nosdesafia e torna nossa vida problemática. Isto porque nunca estaremos prontos etotalmente preparados para viver. E, por tais razões, precisamos da educação parapoder realizar nosso ser mais na mesma proporção que precisamos do ar para respirar.Conforme vamos nos preparando através da educação que recebemos é quevamos tendo mais ou menos capacidade para realizar nossa existência. Eis o grandedesafio da educação voltada para uma perspectiva crítico-humanizadora, quetem por objetivo contribuir para o processo de humanização de todas as pessoas.12.3.2 O diálogo problematizador da realidade e aconsciência crítica12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. FranchiNa perspectiva da educação voltada para a humanização conforme referenciamosem Freire, a postura dialógica e a coerência de uma metodologia crítico--problematizadora se tornam elementos fundamentais para garantir efetivamenteresultados positivos na mudança da cultura e das práticas sociais.Evidenciamos que Freire concebe que nos educamos uns aos outros através do257


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS258diálogo verdadeiro, que implica na troca de saberes e experiências e no compromissosolidário para com a humanidade do Outro. Assim, o conhecimento também nãoé produção individual, embora tenha alguns momentos de construção solitária,mas um processo intersubjetivo de trocas de diferentes saberes e interação, sempredesafiados pela prática coletiva. Pois, o sentido de construir conhecimento residena vida junto com os outros e não no interesse individual. É através da interaçãosocial que somos desafiados a transcender nossa ignorância e apreender um poucomais de “sabedoria”. Contudo, o diálogo crítico-problematizador não pode serentendido como uma conversa qualquer, ou algo espontâneo. Ao contrário, paraFreire (1993) ele requer algumas exigências radicais para que sejamos coerentescom o desafio da humanização.Uma primeira característica da postura dialógica, segundo Freire, é o pensarcerto. Ou seja, a coerência entre o dizer e o fazer; entre a teoria e a prática. Nãoé possível haver um diálogo se não houver o compromisso dos envolvidos nessaação dialógica em testemunhar sua forma de pensar e ver o mundo com a práticade intervenção no mesmo.Outra exigência é a esperança no ser humano. E a educação implica em confiarno futuro, ou em acreditar que todos os educandos irão aprender e a se desenvolverenquanto pessoas, pois ele é fundamentalmente vir a ser. Assim, também, é a lutapelos Direitos Humanos. Onde existir a desumanização estará ali a esperança deque os que mais sofrem todas as formas de agressão e violência contra sua dignidadepossam superar essa condição e desenvolverem-se como pessoas.O diálogo verdadeiro também exige o amor e a humildade, pois implicamna acolhida e no respeito ao Outro, em sua alteridade radical e, igualmente, naabertura e capacidade de escutar o que os outros têm a nos dizer. Sem a humildadenão há abertura para o diálogo e, assim, comumente as falas e tentativas deinteração se deterioram e inviabilizam o entendimento intersubjetivo.Igualmente, o diálogo requer o cultivo da visão crítica, pois tudo o que somose sabemos é relativo ao contexto e as coisas mudam exigindo, assim, novasleituras. Visão crítica é sinônima de dialética, de movimento que busca captaras transformações e ficar conectado às mudanças. Assim, para Freire, diálogo edialética são entendidos como palavras unívocas.Partindo das exigências acima e da metodologia do Tema Gerador, Freire(1993) fundamenta uma proposta de educação voltada para a formação daconsciência crítica: todo processo educativo, que visa transformar as condições dedesumanização e contribuir para que cada ser humano afirme sua autonomia,


precisa também trabalhar a superação dos níveis de consciência ingênua, buscandoatingir a leitura crítica de mundo.A tese freireana de que a leitura de mundo antecede a leitura da palavra traduzbem o desafio de problematizar a condição da existência humana, pois, sempreestamos situados em um determinado contexto sociocultural, que nos condicionae nos limita em termos de leitura da realidade; dando origem, assim, aos nossospré-conceitos, ou as leituras equivocadas de mundo. A educação humanizadoraprecisa problematizar essa conjuntura. É seu papel desenvolver um processo deconscientização, como denomina Freire (1980), visando superar os níveis da ingenuidade,das visões equivocadas e preconceituosas que fomos constituindo emnossa história e trajetória de vida.Entretanto, o processo de conscientização, ou de educação crítico-dialógica éum desafio continuado e que requer a inserção coletiva, para atingirmos o nívelda consciência crítica. Não diz respeito apenas às vontades individuais, pois, isoladamente,nos perdemos na ingenuidade, mas, coletivamente, há um trabalhoárduo e persistente, numa perspectiva mobilizadora de vontades contíguas. Nessaperspectiva, o termômetro do processo de conscientização é a esfera da política eda ética na vida em sociedade. Sobre esta temática, nos remetemos ao próximoponto de nossa reflexão.12.3.3 Implicações políticas e éticas da educaçãohumanizadoraPaulo Freire é reconhecido como um pensador que sempre defendeu a perspectivahistórica na construção de um projeto de sociedade protagonizado pelasclasses populares. Entretanto, tal projeto social é uma utopia a nos inspirar nofuturo, pois ainda estamos muito distante da concretização de uma democraciaradical, onde o poder seja distribuído de forma equitativa, onde o povo realmenteconsiga exercer a sua “vontade geral”, como defendia Rousseau.No atual contexto das sociedades contemporâneas, sob um mundo cada vezmais complexo e marcado pela interdependência político-econômica e cultura,a luta pela democracia real (não apenas de estado de direito) se tornou inadiávelpara nós que defendemos uma vida digna para todos. A democracia cognitiva,ou seja, o acesso a uma educação permanente de qualidade é essencial na luta poruma cultura de respeito aos direitos humanos. No atual contexto não é possível12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. Franchi259


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS260pensar a questão dos direitos humanos sem pressupor o direito a educação comoo fundamento de uma sociedade democrática e mais igualitária.A exigência de uma democracia radical requer, sobretudo, a superação efetivada democracia meramente formal que, na maioria dos países, apenas assegura seusdireitos por meio d e leis, sem garantir sua realização prática e efetiva à grandemaioria dos cidadãos. Nesse cenário, a luta política das classes populares, segundoFreire (1993), deve ser radicalmente solidária a todas as pessoas que sofrem com asvárias formas de opressão ou são vítimas das injustiças do status quo estabelecido.As diferentes lutas de resistência do povo (que denunciam essas injustiças que,na prática concreta, violam os Direitos Humanos) precisam se articular em ummovimento comum, convergente para a transformação da sociedade. É necessárioque o povo se eduque através do e no diálogo, para que seja capaz de unir os diferentespara lutar contra o antagônico. Essa é a estratégia política que precisamosatingir efetivamente no processo de uma educação crítica e conscientizadora dasclasses populares.Nessa direção, a substantividade democrática na práxis política de que nosassevera Freire (1994) requer a prática do diálogo, da busca do entendimento entrediferentes setores que comungam um projeto de sociedade humanizada, quetenha como princípio, acima de outros mecanismos ou estratégias da luta política,a transformação e humanização do mundo. Contudo, a defesa pelo diálogo naluta política não expressa que não haverá mais diferenças de interesse de classe,principalmente as de posição antagônica que, historicamente, foram estruturadase constituem o sistema político hegemônico. Há contextos em que o diálogonão é mais possível, então o enfrentamento político entre essas diferentes classessociais é inevitável. Mas, em outros contextos, o diálogo poderá ser a saída maisrecomendável. Entretanto, dialogar entre os diferentes implica, sobretudo, a convergênciaético-política em termos de luta por uma sociedade mais humanizada.O fundamento da política para Freire está na ética. Não há neutralidadeética em tudo o que implica a ação humana no mundo. Muito menos haveria nocampo da política que, por definição, é a arte de governar o bem comum, ou osinteresses de todos. Assim, segundo Freire, a busca da humanização do mundo,que faz da natureza humana uma constante busca do ser mais, revela em nós umanecessidade radicalmente ética. Pois, em tudo o que fizermos, ou deixarmos defazer, está implicada a dimensão ética de nosso ser no mundo, por que somos seresda intervenção, da prática e da transformação do mundo.O ser humano não só está no mundo, mas age sobre ele transformando-o,


produzindo, assim, cultura, civilização e fazendo história. Portanto, nos caracterizamosenquanto espécie como seres de escolhas, de decisão e, por isso mesmo, nostornamos uma presença que tem um modo especial de ser. Isto é, a constituiçãoda existência humana está diretamente relacionada com o fato de que, enquantopresença no mundo é um ser de intervenção, da prática que transforma, quetoma decisão, que rompe com o já feito, avalia, constata e, também, sonha comum mundo diferente do que existe. E, “é no domínio da decisão, da avaliação, daliberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõea responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é umdesvaler, jamais uma virtude.”(FREIRE, 1997, p.20).Portanto, a pedagogia freireana assume um compromisso radical com aconstrução de um projeto de sociedade humanista, libertador, dialógico, criativoe, acima de tudo, ético. O sentido último que Freire expressa em sua propostapedagógica é a humanização da vida em sociedade como um todo; que deve sermaterializada na dignidade da vida de todas as pessoas e para todos os povos(sem nenhuma fronteira), através da superação concreta das diferentes formas deopressão que atrofiam milhões de seres humanos, que são impedidos de realizarseus projetos de vida (ZITKOSKI, 2000).Assim, ratificando as principais teses de Freire, podemos dizer que a vidahumana só terá sentido a partir do momento em que optarmos pela busca incessanted a libertação de tudo aquilo que nos desumaniza e nos proíbe de ser maisdignos e livres em nosso ser historicamente situado no mundo. Só assim, a lutaem defesa dos Direitos Humanos, bem como a busca pela implantação prática deuma educação crítico-humanizadora, poderá ser concebida como um passo firmenesse processo de libertação.12.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. FranchiIniciamos este texto evidenciando que o processo de educação em direitoshumanos perpassa pelo processo de humanização e reconhecimento do ser enquantopessoa portadora de direitos e dignidade. Este reconhecimento se dá atravésde uma educação voltada à ética universal, à democracia real e ao respeito àsdiferenças sociopolíticas e culturais em cada contexto histórico. Entre os séculosXIX e XX, observamos que esses elementos, essenciais para garantir a existênciados direitos humanos dos povos e nações, foram esquecidos ou substituídos pelos261


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS262eventos de barbáries, massacres e guerras históricas. O amalgama da modernidade,acobertado pelo processo racional técnico e industrial, foi o fertilizante dasefervescências brutais como o Holocausto e demais conflitos que desencadearaminúmeras formas de violência e configurações preconceituosas e irracionais deuma civilização nomeada moderna. Diante disso, defendemos que a educaçãoem direitos humanos seja promotora de uma reflexão intensa sobre esses acontecimentos,através do desenvolvimento de um espírito crítico, alicerçado na ética,na responsabilidade com o Outro e no respeito às diferenças.Preconizamos, também, que a educação deva ser voltada para a emancipação,sendo assim, uma questão de direitos humanos. O vazio herdado do século XXpromove a indiferença social ao pensamento coletivo e suprime a ideologia do“nós”, que é a essência e que dá origem aos frutos produzidos pelas interrelaçõessociais. Vivemos num vácuo aparente de sentimentos, produzindo espaços estéreisde afetividade e solidariedade. Neste sentido, propomos que a educação em direitoshumanos contribua para uma reposição ética e consequente entre os povos,possibilitando o respeito e a igualdade ao ser humano. Para tanto, discorremos quea educação em direitos humanos parta de um processo dialógico e democrático,condições mínimas para a solução pacífica de conflitos e para a efetivação de umacultura em direitos humanos. Ponderamos que ela seja para além de suas leis eordenamentos jurídicos e que possa formar o caráter e a pessoa ética, que busquepor valores justos, tolerantes e fraternos, respeitando a alteridade do Outro, emsua singularidade.Apontamos que os direitos humanos não estão dissociados dos direitossocioeconômicos e culturais das sociedades, portanto não poderão efetivamenteocorrer diante de cenários marcados pela pobreza, miséria e injustiças. Esteselementos, frutos de um capitalismo exacerbado e perverso, são propulsores deinúmeras lutas sociais coletivas que denunciam e combatem suas várias formas deviolência humana. Para esses coletivos, a globalização, com sua lógica de exclusão,é um os principais entraves para reverter este quadro de injustiças, que proliferanas periferias do mundo e inibe a formação de uma sociedade inclusiva, sustentável,democrática, plural e justa. Contra essas limitações, segundo a concepçãofreireana, carecemos de uma educação humanizadora, que vá além do acúmulode conhecimento e que se traduza numa prática social e política permeada poruma proposta metodológica que parta do diálogo crítico e problematizador. Umdiálogo que se construa com base em novos saberes e produza possibilidades deuma pedagogia humanizadora e coerente com a luta pela libertação contra as


práticas opressoras. Um diálogo que promova uma pedagogia crítica, pautada naesperança e na superação do ser humano, ainda inacabado e, por isso, carente detroca de saberes e de experiências coletivas desafiadoras.Assim, temos que a educação em direitos humanos também pressupõe a existênciada esperança, que implica na possibilidade da conquista de dias melhorespara os seres humanos, através do fomento de uma consciência crítica e transformadoracontra as condições de desumanização. Nessa perspectiva, pressupomosque, no contexto das sociedades contemporâneas, a existência de um projetosocioeducacional protagonista é essencial para a efetivação de mudanças que noslevem a uma democracia cognitiva, fundamentada numa sociedade democrática,igualitária e humanizadora. Isto porque a opção por sermos seres transformadorese produtores de uma busca incessante pela libertação e implantação de uma práticacrítico-humanizadora é um importante passo nesse processo.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.BENEVIDES, Maria Victoria. Educação em Direitos Humanos: de que se trata?In: Seminário de Educação em Direitos Humanos. São Paulo, 2000.______. Direitos humanos: desafios para o século XXI. In: Educação em DireitosHumanos: Fundamentos teórico-metodológicos. Rosa Maria Godoy Silveira et al.(Org.). João Pessoa: Universitária, 2007. p. 335-350.BITTAR, Eduardo C. B. Educação e metodologia para os direitos humanos: culturademocrática, autonomia e ensino jurídico. In: Educação em Direitos Humanos:Fundamentos teórico-metodológicos. Rosa Maria Godoy Silveira et al. (Org.).João Pessoa: Universitária, 2007. p. 313-334.BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992.CARBONARI, Paulo César. Franz Hinkelammert. In: Eldon Henrique Mühl. Textosreferenciais para a educação em direitos humanos. Passo Fundo: IFIBE, 2009.CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. São Paulo:Loyola, 2005.12 - EDUCAÇÃO, DHs E SOCIEDADE: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS - J. Zitkoski, S. Trombetta e N. Franchi263


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Nossa Senhora da Conceição – acrílico/tela – 40 X 30cmNilda Arruda Gregoski – Oficina de Criatividade/ HPSP


13 O MUNDO DAS RELIGIÕES E APRÁTICA DOS DIREITOS HUMANOSJosé Ivo Follmann 212Inácio José Spohr 213Resumo:O artigo é uma breve reflexão sobre a relação entre as religiões e os direitos humanos. Aomesmo tempo em que são feitos alguns apontamentos que mostram a proximidade as propostasoriginárias das religiões e as propostas dos organismos e movimentos em prol dos direitoshumanos. Isto se manifesta de diferentes formas segundo os grandes agrupamentos ou vertentesreligiosos conhecidos na história. Destaca-se a forma como em cada vertente, a dimensãoética se manifesta e consequentemente, também, como os direitos humanos são apresentadose defendidos. Depois destes desdobramentos gerais, apontam-se três reflexões desafiadoras: ascontradições que sempre estiveram presentes; os fundamentalismos e a dificuldade de diálogo;os avanços e perspectivas do diálogo para o presente e o futuro.Palavras-Chave:Religião, tolerância, direitos humanos, desafio inter-religioso.13.1 INTRODUÇÃOA luta por Direitos Humanos está centrada em algo fundamental que é adignidade humana, inerente a todo ser humano. A dignidade humana não podeser aumentada ou diminuída por títulos nem por dinheiro, (ninguém se tornamais digno por ter ou não ter dinheiro, por se formar...). A dignidade humanaestá presente em todos e em todas de forma igual: não pode ser aumentada nemdiminuída. Pode, no entanto, ser respeitada ou desrespeitada. Quando se fala da13 - O MUNDO DAS RELIGIÕES E A PRÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS - José Ivo Follmann e Inácio José Spohr212 Padre jesuíta, Doutor em Sociologia, Professor do PPG de Ciências Sociais e Vice-reitorda Unisinos.213 Irmão jesuíta, Mestre em Ciências Sociais, Professor e Coordenador do GDIREC (ProgramaGestando o Diálogo Inter-religioso e Ecumenismo) na Unisinos.267


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSdefesa dos Direitos Humanos, significa que efetivamente a dignidade humana foidesrespeitada em alguma pessoa, grupo ou país. Requer de imediato, portanto,o empenho da sociedade para que indivíduos ou grupos consigam recompor orespeito à dignidade humana perdida.O momento histórico que vivemos hoje apresenta muitos desafios na áreados direitos humanos. Apresenta, sobretudo, o desfio de redescobrirmos o serhumano que somos, o desafio de termos como foco permanente a DIGNIDA-DE HUMANA.A luta por respeito aos direitos humanos questiona, de forma permanente,tanto a ordem jurídica dos países, as relações econômicas, a atuação dos partidospolíticos, os sistemas educacionais (entre muitos outros aspectos que dizemrespeito à conduta ética da sociedade), quanto as religiões. As condições sociais,políticas, econômicas e culturais que hoje temos, respeitam, sem exceções, a dignidadehumana de todos os seus cidadãos?As religiões, de algum modo, estão mesmo na origem do conceito “direitohumano”. A partir de suas inspirações originárias, a partir de sua história, a partirde sua postura ética e mesmo a partir de suas contradições e busca incessantepelo respeito ao próximo, as religiões vem contribuindo com uma vasta gama deenunciados e práticas que enaltecem a história da construção do que é bom, justoe correto, como veremos mais adiante.13.2 TRÊS GRANDES VERTENTES RELIGIOSAS ATRAVÉS DAHISTÓRIAA história da humanidade pode ser lida como uma história de construçãode grandes tradições religiosas. Vamos tentar, neste pequeno artigo, de uma formadidática, destacar três grandes “conjuntos religiosos” que entendemos seremimportantes para a nossa reflexão.13.2.1 Religiões animistas268As primeiras manifestações religiosas conhecidas na história humana podemser denominadas de religiões animistas. A ideia central do Animismo afirma queas forças naturais têm alma (do latim: ánima), ou seja, são animadas por entes


invisíveis e espirituais... Nessas religiões predominam as práticas conhecidas comoXamanismo. De acordo com a visão animista, a natureza é habitada por forçasespirituais (sobrenaturais). Um xamã é alguém que se reveste de poder extraordináriocapaz de canalizar as forças sobrenaturais presentes na natureza a serviçode interesses humanos, em vista da proteção, da harmonia pessoal, da saúde ecombate às adversidades naturais e sociais.As práticas xamânicas são conhecidas no mundo todo. No Brasil as práticasxamânicas e as crenças animistas aparecem, de forma intensa, na Pajelança dospovos nativos (Pajé: líder religioso), nas religiões de matriz africana (em suas múltiplasmanifestações como no Candomblé, no Batuque etc), na Umbanda, no SantoDaime e em muitas outras.As religiões animistas não possuem uma orientação comum central, mas sãocrenças e práticas munidas de profundo sentido de “religare”, isto é, de ligar denovo o mundo visível com o mundo invisível. Apesar do seu caráter vinculado ànatureza, são iluminadas, quase sempre, por uma grande complexidade teológica.Reconhece-se, normalmente, segundo cada contexto cultural, um Ser Supremo,como também existem múltiplas divindades e entidades intermediárias. Por exemplo,Olodumaré é o Ser Supremo na cultura yorubá, na África.13.2.2 Religiões védicasUm segundo grande conjunto de religiões são as religiões védicas. Elas têm suareferência histórica primeira em escritos que datam de 3.300 anos atrás, ou seja,1.300 anos antes da era cristã (ac). Trata-se dos Vedas (“Conhecimento”) escritos, noperíodo de 1.300 – 900ac, por sábios e videntes da Índia, de proveniência ariana.Estas escrituras (livros) portam filosofia humana e orientação espiritual profundasque hoje formam as bases do Sanatana Dharma (Ordem Eterna), religiãoque conhecemos por Hinduísmo. Muitos outros textos sagrados se seguiram,destacando-se, sobretudo, os Upanixades (instruções pessoais) e, especificamente,o Cântico do Excelso, o Bhagavad-Gita, 200ac, que é o “livro de cabeceira” e deorientação de todos os hinduístas.Similar à ideia da existência de um Ser Supremo nas religiões animistas, nasreligiões védicas, especialmente no Hinduísmo, é extraordinariamente marcanteconcepção do Absoluto (Brahma), presente em tudo, bem como as figuras deVishnu e Shiva (divindades que são expressões do Absoluto). Estas divindades13 - O MUNDO DAS RELIGIÕES E A PRÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS - José Ivo Follmann e Inácio José Spohr269


se manifestam de diferentes formas na humanidade, sobretudo através de figurasheroicas e sábias, como Krishna e Buda. No Hinduísmo, no entanto, a centralidadenão está na divindade, mas na prática pessoal. É a pessoa que, através doseu empenho e exercício pessoal, constrói seu espaço de liberdade, de felicidadee de eternidade. O Budismo vem a ser o exemplo mais radical dessa construçãopessoal: nasceu dentro do próprio Hinduísmo, como proposta diferenciada, semdivindade, tão somente baseada nas orientações de Buda (Siddhartha Gautama).Buda viveu de 563 até 483ac e suas orientações foram publicadas, em forma escrita,somente 400 anos depois de sua morte. Destas tradições herdamos um grandenúmero de ramificações religiosas, assim como o importante legado da práticasda “meditação oriental”, sempre mais difundidas no mundo de hoje.13.2.3. Religiões abraâmicasPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS270Um terceiro grande agrupamento de religiões, talvez o mais conhecidas emnosso meio, trata das religiões abraâmicas, que são o Judaísmo, o Cristianismo eo Islamismo. Nestas o centro da prática (de toda a vida) está na fé no Deus que serevela para a humanidade. O termo “abraâmica” diz respeito a Abraão. O Patriarcacom este nome pode ser situado na história mais ou menos há 3.900 anos, ou seja,1.900ac, mas os textos sagrados que registram e orientam estas tradições começarama ser escritos aproximadamente no ano 1.000ac. A Torá (1.000 – 200ac), o livrosagrado dos Judeus, corresponde praticamente ao Antigo Testamento da BíbliaSagrada dos Cristãos. Segundo a tradição judaica, Deus (Javé) faz a Aliança como seu povo. Na Bíblia Sagrada dos Cristãos, o Novo Testamento (50-100 depoisdo início da era cristã), comunica uma Nova Aliança de Deus com a humanidade,através da pessoa de Jesus Cristo. O Alcorão do Islamismo registra (a partir doano 600) a visão inspirada do Profeta Maomé (570-632), na qual a Torá judaicae a Bíblia cristã são respeitadas como escritura sagrada mais antiga. Fica clara aprofissão central da fé em Deus (Alá) e a importância de sua revelação através deseu Profeta Maomé.Hoje são incontáveis as ramificações religiosas que derivam de cada um dos“conjuntos religiosos” aqui referidos, como são também incontáveis as formas religiosasinstitucionalizadas que não se enquadram em nenhum desses “conjuntos”.Certamente, para sermos mais completos, deveríamos falar, também, das “religiões


da sabedoria” do extremo oriente (Xintoísmo, Confucionismo e Taoísmo), das “religiõesdo racionalismo moderno” (por exemplo, do Espiritismo) e de tantas outras.13.2.4 As religiões e a dimensão ética na sociedadeDesde os primórdios da humanidade, as religiões se ocupam das questõesda conduta moral. Em todas elas podemos encontrar importantes orientaçõeséticas sobre o que é bom e o que é mau, o que é justo e o que é injusto. Utilizamos,aqui, a palavra “ética” no sentido de conduta e comportamento moral. Amoralidade se dá na relação consigo mesmo, com os outros, com a sociedade ecom os bens da natureza (meio ambiente). Vejamos qual a orientação ética quecaracteriza essencialmente as religiões, segundo três grandes conjuntos: as religiõesanimistas, as religiões védicas e as religiões abraâmicas, presentes no mundo de hoje:13.3 ÉTICA E RELIGIÕES ANIMISTASO teólogo cristão Hans Küng, destacado no estudo sobre a contribuição dasreligiões para uma ética mundial, ao trazer o exemplo dos africanos, que têm raízesmais profundas no cultivo das religiões animistas, fala da contribuição que se podeesperar destes povos, sublinhando três aspectos: “o seu forte senso de comunidade esolidariedade”; “a alta apreciação dos seus valores e critérios tradicionais”; “a sua visãoholística do mundo e do homem, onde há lugar para jovens e velhos e onde a tradiçãoe o progresso andam de mãos dadas”. O que, talvez, mais fortemente se destaca nasreligiões animistas é a INTEGRAÇÃO COM A NATUREZA, mediada pelopoder dos Xamãs (líderes religiosos). Além disto, ocupa grande importância aTRADIÇÃO fundada no culto dos Ancestrais (Antepassados).Trata-se de religiões que são acompanhadas por práticas xamânicas. A históriahumana e a atualidade estão repletas de xamãs, que são orientadores pessoaise mediadores do sobrenatural presente na natureza. Eles fazem o bem ao corpo,mas, sobretudo, ajudam a cultivar a cabeça e o coração das pessoas no bem-viverpessoal, social e de integração com a natureza. Estes mesmos efeitos provenientesdo poder dos Xamãs podem também ser resultado do culto dos Ancestrais,fazendo com que a TRADIÇÃO seja o principal mote do comportamento ético.13 - O MUNDO DAS RELIGIÕES E A PRÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS - José Ivo Follmann e Inácio José Spohr271


13.3.1 Ética e Religiões VédicasPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS272Sanatana Dharma significa “ordem eterna” ou “ordem básica dada de antemão”.É o nome da religião que nós conhecemos como Hinduismo. Como o próprionome expressa a religião é a grande referência ética, envolvendo deveres queestão presentes em todas as dimensões da vida humana. Livros como o Damapadabudista e os Upanixades e a Bhagavad-Gita do Hinduísmo, estão repletos de boasorientações éticas. No Budismo, que é uma derivação diferenciada do Hinduísmo(Sanatana Dharma), aparece com mais clareza o envolvimento pró-ativo do viventeno cumprimento ético. Não se trata simplesmente de cumprir preceitos ordenadosde fora. É o próprio ser humano que se compromete, assumindo a sua orientaçãoética, em primeira pessoa. “Eu me comprometo a...”. As religiões védicas trazemdentro delas a orientação sobre a importância do esforço e empenho pessoal nabusca do aperfeiçoamento e do bem-viver. No Budismo, as questões centrais são osofrimento (dukkha), a consciência das causas da dukkha, a superação da dukkhae os caminhos para esta superação. O que mais fortemente se destaca nas religiõesvédicas talvez possa ser sugerido como a importância do CULTIVO PESSOAL.13.3.2 Ética e religiões abraâmicasO Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo são conhecidos como as religiõesabraâmicas (patriarca Abraão). Elas são, também, denominadas “religiões éticas”.São as religiões, que têm por base comum a revelação direta de Deus à humanidade,buscando restabelecer a justa ordem deturpada pela própria humanidade. Sãotrês grandes tradições religiosas que bebem nas mesmas fontes e, em seu conjunto,são verdadeiros mananciais éticos para a humanidade. A Torá judaica (Aliançacom o Povo Escolhido) e o Alcorão islâmico (Revelação através do Profeta Maomé)estão repletos de detalhes orientadores para a boa conduta humana em todos osdomínios da existência. Na Bíblia Sagrada dos cristãos, que é anterior ao Alcorãoislâmico, a revelação culmina na vida encarnada de Jesus Cristo, indo ao encontrodo ser humano nas situações concretas vividas por ele (Nova Aliança com ahumanidade). Para sintetizar, pode-se dizer que a mensagem central das religiõesabraâmicas está no Deus, que, por diferentes caminhos, se comunica revelandoo seu AMOR e esperando desta mesma humanidade a resposta adequada (no


plano individual e no coletivo). Fazer o BEM e erradicar o MAL para construirum mundo onde reine a FELICIDADE, é o que move Judeus, Cristãos e Muçulmanos,fiéis à REVELAÇÃO DIVINA, dentro do modo próprio como cadauma destas tradições a acolhe.13.4 RELIGIÕES E DIREITOS HUMANOSPara as religiões, como já foi dito anteriormente, o conceito de dignidadehumana deriva da confluência de princípios tais como a tolerância, o respeito e areta conduta. Não é outra a perspectiva dos antigos grandes líderes religiosos daÍndia (Buda), da China (Lao-Tsé e Confúcio) e do Oriente Próximo.Sabiamente os profetas judeus ponderaram que a ação benéfica deve ser antepostaao ritual e à oração descolada das condições da vida real. Para eles “a dignidadeé dada pelo modo de atuar frente aos semelhantes: por antepor a generosidade aoegoísmo, o respeito à vida em vez da violência, a honradez nos procedimentos eà proteção que o forte deve dar aos que são fracos em vez de abusos e opressão”.Mais. Os profetas judeus vinculam o exercício do poder (de todos os indivíduos egrupos sociais) a deveres fundados em princípios religiosos que inspiram uma éticaem base a “responsabilidade de todos os seres humanos pelos seus atos” diante deDeus. (Estas citações e seguintes são da lavra de Fernando Sorondo, “Os direitoshumanos através da história”, MJDH, Porto Alegre, 1991.)O Código de Hamurabi (1700ac) propõe algo similar. Defende a proteçãoaos mais fracos, quando afirma que “Hamurabi veio para fazer brilhar a justiça (...),para impedir ao poderoso fazer o mal aos débeis”. O mesmo ocorre na civilizaçãoegípcia que define o poder como serviço e não como domínio.Já para os gregos (Atenas, séc. 5ac), a “comunidade dos cidadãos supervisiona”as magistraturas do Estado (a polis) e as instituições são dirigidas pelo “demos”(povo). O limite do poder é dado pelo pleno direito que exercem os cidadãos aoparticiparem dos assuntos públicos. Para Cícero, “qualquer definição de homemé aplicável a todos; o que prova que não há dessemelhanças na espécie, porque,se existisse, não compreenderia todos os indivíduos na mesma definição” (DeLegibus, séc.1ac)O cristianismo (integrante do grupo das religiões abraâmicas) recolheu osprincípios pensados pelos gregos e judeus (também de outras culturas) para proclamara igualdade radical entre todos os homens e mulheres. Para o cristianismo,13 - O MUNDO DAS RELIGIÕES E A PRÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS - José Ivo Follmann e Inácio José Spohr273


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS274os seres humanos foram criados “À IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS”,o que propõe absoluta igualdade entre todos os humanos.A igualdade não se limita ao uso individual dos direitos. Supõe, antes, umdever: o amor ao próximo. Amor que é entendido como um dom, como um atode generosidade. Se alguém disser: “amo a Deus”, mas odeia seu irmão, é ummentiroso. Pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus que não vê, nãopoderá amar. E este mandamento Dele recebemos: aquele que ama a Deus, ametambém o seu irmão” (1 Jo 4,20-21).Também o Alcorão (Islamismo, religião abraâmica) se fundamenta na doutrinados Direitos Humanos na medida em que sustenta que o ser humano é um“vigário de Deus” na terra, ideia similar ao pensamento cristão que torna o “homemtemplo de Deus” (do apóstolo Paulo) e que o “homem foi feito à imageme semelhança de Deus” (do Gênesis). O Islã, entre outras orientações, condena aopressão bem como admite o direito de rebelar-se contra ela. Proclama a liberdadereligiosa, o direito à educação e a inviolabilidade da casa. Requer que a solidariedade(fraternidade) esteja ao alcance dos órfãos, dos pobres, dos viajantes, dosmendigos, dos homens fracos, das mulheres e das crianças. E como corolário detudo isto, ordena que a justiça deve estar acima de qualquer outra consideração(www.dhnet.org.br, islamismo).Outra fonte que anuncia valores que contemplam os “direitos humanos”vem das religiões védicas, precisamente do Budismo. Para os praticantes destareligião, o critério da valorização da pessoa humana, acima de qualquer outro aspecto,merece cuidadosa observância. Para o Budismo a prática da fraternidade seexpressa na supremacia conferida ao Direito e à Justiça; no ensino da fraternidadee da generosidade; no estabelecimento da equivalência de deveres e direitos entremarido e mulher; no reconhecimento de direitos do empregado; na tentativa deuma organização equânime do corpo social. Conforme René Grousset, o Budismobusca a “realização da natureza humana” e a “formulação de uma sociedade pacíficae perfeita”. Mais do que isto, tende a ser cuidadoso e inesgotável na práticada fraternidade, na pedagogia do Mestre e na importância dada à escuta. (www.dhnet.org.br, budismo).Nas religiões de matriz africana (religiões animistas) como a Umbanda e oCandomblé (Batuque no RS) se destaca, em termos de direito e dever, o respeitoà ancestralidade e a preservação do equilíbrio da natureza. Tudo o que existeestá sob a proteção de um ou mais Orixás. Sobretudo quando se trata de um ser


humano. Cabe ao praticante do credo religioso afro “fazer o bem – SEMPRE – esem olhar a quem”, (Mãe Dolores, São Leopoldo).Além da interligação do humano com o divino, as Religiões dos Orixás cumpremum importante papel social na vida de seus adeptos. Ao longo da história setransformaram em um importante lugar de liberdade e experiência cidadã. Masnão só em tempos idos. A maioria dos negros ainda hoje permanece na periferiada sociedade devido a um avassalador processo de marginalização e exclusão social.Devido a este contexto, os Terreiros das religiões de matriz africana continuam sendoum privilegiado lugar de integração social e formação cidadã. É nos Terreiros queeles se sentem acolhidos e respeitados. É neste espaço que eles encontram, comocidadãos de uma cultura própria, profundamente humana e religiosa, a energiavital, a experiência e a sabedoria (de Deus) de seus antepassados.Para os católicos vigora primordialmente o “chamado a construir a civilizaçãodo amor”. Trata-se, pois, da construção de uma sociedade civil e amorosa através(a) da prática do discernimento frente a situações complexas e diferenciadas, (b)da concepção de um desenvolvimento humano integral (“de todo o homem ede todos os homens”), e (c) mediante o anúncio de que Evangelho está indissoluvelmenteunido à promoção e defesa dos Direitos das pessoas e dos povos. Deacordo com o documento Christifideles Laici, uma política em favor da pessoa eda sociedade assume como critério-base a “busca do bem-comum”, como “bemde todos os homens e do homem todo”. No caso, o documento recomenda tantoa católicos como a toda a cidadania do universo, uma ação constante em favor dadefesa e promoção da justiça.13.5 CONTRADIÇÕES E O DESAFIO DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSONem sempre é fácil perceber na vida concreta das religiões e em seus praticanteso respeito à DIGNIDADE HUMANA, princípio e fundamento dos direitosde todos os seres humanos e povos, como apregoam, quase unânimes, os grandes“fundadores” (permita denomina-los desta forma). As religiões se, por um lado,mostram claras orientações que dignificam indivíduos e povos (e não faltam exemplos,como vimos acima), por outro lado, também são responsáveis (pelo menosem parte) por concepções e práticas erráticas que disseminaram dor e sofrimentoque subjugam povos e nações. Para tanto, basta recordar (aqui abordamos só dois13 - O MUNDO DAS RELIGIÕES E A PRÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS - José Ivo Follmann e Inácio José Spohr275


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS276exemplos de grande alcance e próximos de nós), o que aconteceu com os indígenasna América Latina e com os negros africanos escravizados por séculos em nossasterras. Tanto índios quanto negros, em todo esse período da nossa história, foramsubmetidos a condições extremas de indignidade humana sob as coroas católicas dePortugal e Espanha, sob o “estandarte da cruz”, como relatam documentos oficiaisde então. Ambos os países formaram reinados assumidamente cristãos e, portanto,(deveriam) ser conhecedores da orientação evangélica do Novo Testamento e dodecálogo (os Dez Mandamentos, fundado na lei do judaísmo), que iguala amor aDeus e amor ao próximo como princípios associados.Não obstante, os povos nativos da América Latina, de certo modo, tambémencontraram garantias de subsistência e dignidade neste mesmo cristianismo, sobretudoatravés de figuras emblemáticas como as de José de Anchieta e AntônioVieira no Brasil, e Bartolomé de Las Casas na América Central, dedicados à defesada vida e dos direitos dos índios. Aqui entre nós, no Rio Grande do Sul, todosconhecemos algo da saga dos jesuítas e dos Povos Guaranis na região das Missões(séculos XXVII e XXVIII). Um excepcional exemplo de organização social, culturale religiosa que respeitou profundamente a dignidade indígena. Mais recentemente,durante o período de governos militares (1964 a 1985) encontramos no Brasile Argentina (entre outros países) a formação de Comissões de Justiça e Paz, quese tornaram verdadeiras fortalezas de resistência às imposições antidemocráticase violação aos direitos da liberdade política. O trabalho da Comissão de Justiçae Paz de Buenos Aires rendeu a Perez Esquivel (evangélico) o Prêmio Nobel daPaz, em 1980.Porém, no cuidado com os negros a ação cristã não teve a mesma exuberânciae eficácia que teve entre os índios. Mesmo diante argumentos contrários à escravizaçãode africanos e afro-brasileiros em nosso país, o cristianismo permitiu que afalta da liberdade (inclusive religiosa) imperasse no espaço de suas próprias casas.Hoje o debate sobre respeito aos direitos humanos entre as religiões, comotambém no terreno exclusivo de cada uma delas, continua em aberto. Talvez, adiscussão sobre o que vem a ser um legítimo direito de um indivíduo, de umdeterminado grupo (mulheres, crianças, gays, lésbicas, índios, negros, trabalhadores,gestantes, idosos, indivíduos com necessidades especiais etc.), povos e nações(sobretudo quando se trata dos direitos de povos e nações pobres) encontrao mesmo vigor que no meio da sociedade civil e política. Assim como no meiopolítico, entre as religiões o conceito DIGNIDADE HUMANA é um conceitohistórico e, portanto, vulnerável. Se na área da sociedade civil organizada depende


principalmente da vontade política do povo (que transformam o conceito DIG-NIDADE em modelo de vida, em peça cultural e legal assumida no universo dogrupo e/ou país), entre as religiões o debate sobre o respeito e defesa dos direitosdepende fundamentalmente de sua visão de mundo e da perspectiva ética quederiva de sua doutrina. E esta ética vai mostrar se esta religião será mais ou menoshumanista, se vai ser capaz de contribuir mais ou menos na interação com asdemais denominações religiosas.De acordo com esta perspectiva, é possível afirmar que o conjunto das religiões,a sua grande diversidade, vem a ser a base fundamental para uma ética nahumanidade, tanto no passado como no tempo presente. O diálogo inter-religiosoé, certamente, um caminho importante para efetivação da paz social. Através dodiálogo inter-religioso as religiões que dele participam aprendem a alargar as suasconcepções, a reconhecer o bom e o justo em cada um dos credos, bem comoprendem a respeitar diferentes práticas religiosas e sociais que contemplam (ounão) o respeito à dignidade humana. Dessa maneira a função ética das religiõesmantém sua atualidade.Do mesmo modo como podemos perceber as riquezas e complementaridademútua nas orientações éticas em cada um dos grandes conjuntos religiosos(védicas, abraâmicas e animistas) aqui apontados, poderíamos ainda acrescentarcontribuições das “religiões da sabedoria do extremo oriente”, como, por exemplo,o Taoísmo. A sua concepção de integração complementar entre Yang (energias docéu) e Yin (energias da terra), opostos dinamizadores da vida, está na origem doque, hoje, em nossas concepções, elaboramos como oposição entre o bem e o mal.13.6 CONCLUSÃOEnfim, cabe reforçar a assertiva de que a conduta moral, a busca do caminhodo bem e as orientações práticas concernentes, desde os primórdios da humanidade,estão vivamente presentes nas preocupações de todas as expressões religiosas.O conhecimento dessas religiões e o diálogo entre elas são, com certeza, sementefecunda e terreno fértil para uma boa orientação ética em todas as dimensões davida humana.Não é por outra que Bartolomé de las Casas, ante a política de ocupaçãodas terras e destruição da cultura indígena pela colonização espanhola, afirma que“toda ofensa feita à liberdade dos homens é tirânica e violenta, injusta e perversa,13 - O MUNDO DAS RELIGIÕES E A PRÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS - José Ivo Follmann e Inácio José Spohr277


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS278e o direito natural considera-a nula e inexistente, porque faz passar os seres humanosdo estado de liberdade ao de servidão, o que forma – à exceção da morte– o maior de todos os danos”.A Declaração Universal dos Direitos do Homem e outros instrumentos jurídicos,tanto em nível internacional como a nível nacional, procuram criar umaconsciência geral da dignidade do homem e definir ao menos alguns dos direitosinalienáveis do homem, entre os quais o direito à vida, à liberdade e à busca dafelicidade.Embora as religiões estejam na raiz geradora da ideia do dever, e por extensãotambém a do direito, remonta à pré-história dos Direitos como hoje os conhecemos,as religiões hoje não descuram da contribuição proposta por organismosinternacionais e dos países. A propósito, a Gaudium et Spes (n.41) salienta que“a Igreja (católica) em consequência do Evangelho que lhe está confiado, proclamaos direitos humanos, e reconhece e aprecia muito o dinamismo com que nosnossos dias tais direitos são promovidos em toda a parte. Mas este movimentodeve estar impregnado pelo espírito do Evangelho, e deve ser dirigido contra todaa espécie de falsa autonomia”.Entretanto a guia-mestre do Direito Humano na perspectiva das religiõesnão descende tão somente da vontade política de um povo, da sua cultura. Antes,o direito brota, de fato, da raiz profunda da concepção religiosa, de Deus mesmo,da história da salvação do universo, da visão de mundo (do bom e do justo) quederiva do LIVRO SAGRADO (religiões védicas e abraâmicas) e/ou do mito fundantedo credo religioso (religiões animistas). Por isso, a visão do Direito, segundoa perspectiva de um credo religioso, sempre vem emoldurada com um “Logos” quelhe dá forma e cor característica: “No princípio era o Verbo, o Logos e o Verboeram Deus, diz João no começo do seu Evangelho (João, 1,1)/. “Quem não amanão conhece a Deus porque Deus é amor”, diz a primeira carta de João (1 João4,8). Essas duas verdades (o Verbo Logos e o Verbo Amor) são inseparáveis nanossa vida universitária cristã e devem marcar nossa permanente inspiração, assimcomo nossa tarefa, que deve incluir inseparavelmente a razão e o amor.” (Pe LuisUgalde sj, em palestra sobre identidade das Universidades de pertença católica ede inspiração cristã no Brasil, 2007.)Assim, “Logos Verbo” (razão, ética, direitos humanos...) e “Logos Amor”(com as premissas do Reino: fraternidade, solidariedade, compaixão...) são Direitosde todos os seres humanos, mas também Direitos de Deus.


Cacique Akuab - acrílico s/madeira – 38,5 X 40,5cmNilda Arruda Gregoski – Oficina de Criatividade/ HPSP


14 OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOSINDÍGENAS: OS POVOS GUARANI,KAINGANG E CHARRUA E A CONTÍNUALUTA PELA GARANTIA DE SEUS DIREITOSRoberto Antonio Liebgott 214Resumo:Os direitos humanos dos povos indígenas no Rio Grande do Sul estão em constante ameaça. Arealidade de violações de direitos dos povos Guarani, Kaingang e Charrua é histórica, apesardos avanços legislativos, que lhes asseguram direitos inscritos em leis, tratados e na ConstituiçãoFederal. Lamentavelmente Estado Brasileiro não está estruturado para responder as demandasque as diferenças de povos e culturas lhes impõem. O artigo sobre a realidade dos povos indígenasno Rio Grande do Sul visa demonstrar que há uma demanda grande a ser respondida no tocanteaos direitos a terra, a políticas públicas diferenciadas e ao respeito as culturas. Procuro fazer umabreve abordagem sobre as garantias constitucionais dos povos indígenas, bem como relato aspectosda história de cada um dos três povos que vivem em nosso Estado; apresento a situação fundiáriadas terras indígenas, com ênfase para o drama vivenciado por inúmeras comunidades Guaranique se encontram nas margens das estradas. E por fim, apresento as grandes demandas e algumaspropostas no sentido de ajudar na busca de soluções para os problemas expostos no artigo. Concluocom uma mensagem de esperança dizendo que a resistência indígena vem sendo gestada em articulaçãocom outros segmentos da sociedade e aponta para a humanidade, a possibilidade de umsistema de vida estruturado em experiências do “bem viver”. Este sistema vem sendo, ao longo dosséculos, tecido e propagado entre as culturas indígenas e pretende ser um projeto de vida concreto,capaz de revolucionar o modo de pensar e de interagir com a natureza e entre os seres humanos.Palavras-chave:Povos indígenas, guarani, Kaigang, Charrua, demarcação, terras e resistência.14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott14.1. INTRODUÇÃOPara discutir os direitos humanos dos povos indígenas é importante levar em214 Vice-Presidente do Cimi281


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSconta um conceito defendido por especialistas em matéria de direito e pelo que vemsendo debatido e refletido em fóruns, seminários e outros espaços que tratam dotema: “Direitos humanos são aqueles direitos inerentes à pessoa para assegurara sua integridade física, psíquica, social e cultural. São valores caracterizadoscomo constitutivos dos seres humanos”. Portanto, não são concessões de Estadosou de sociedades. Ao contrário, são conquistas que dizem respeito a todos e o poderpúblico tem o dever de nortear suas ações a partir de tais direitos.Há que se ter em conta, na análise deste tema, que a nossa ConstituiçãoFederal, especialmente o Capítulo VIII, artigos 231 e 232, fixa como garantiasessenciais dos povos indígenas os direitos à terra e à diferença. Portanto, no quetange ao conceito acima referido e naquilo que reza a nossa Lei Maior, pode-seconcluir que os povos indígenas receberam a atenção devida do legislador e oconsequente amparo aos direitos individuais e coletivos. Contudo, ao olhar parapovos indígenas, e, particularmente, para aqueles que habitam no Rio Grande doSul, se evidenciam as graves questões que os afetam. São dezenas de comunidadesque vivem em porções ínfimas de suas terras tradicionais ou acampadas nasmargens de rodovias à espera de providências do poder público. Conclui-seque, na prática, o Estado e seus governantes não levam em conta os direitos humanosinscritos em leis, normas e tratados internacionais.Nesta abordagem sobre os direitos humanos dos povos indígenas farei uma brevememória acerca das garantias estabelecidas pela Constituição Federal a estes povos. Nasequência apresento um relato histórico e contemporâneo sobre os três povos (Guarani,Kaingang e Charrua) que habitam tradicionalmente no Rio Grande do Sul, explicitandoque as violações aos seus direitos humanos são históricas. Também especificocomo estão estruturadas as políticas públicas para estes povos e, através de um quadrodemonstrativo, aponto os dados sobre a situação fundiária das terras no estado.Entre os temas abordados se consegue perceber algumas importantes conquistasquanto aos direitos inscritos nas leis e a sua aplicação prática no cotidiano.Saliento, no entanto, que estas se devem essencialmente à organização e mobilizaçãodos povos e às alianças firmadas com diferentes seguimentos sociais, populares,igrejas, instituições e entidades no Brasil e no exterior.14.2 OS DIREITOS CONSTITUCIONAIS282Com a promulgação da Constituição Federal no ano de 1988 se rompeu


com a perspectiva política estatal da incorporação indígena à comunhão nacional,assegurando com isso o direito à diferença e consolidando garantias individuais ecoletivas de todos os povos, base essencial de qualquer “direito humano”. A nossaConstituição passou a reconhecer os povos indígenas como portadores de organizaçõessociais próprias, com usos, costumes, crenças, tradições, línguas maternas eprocessos próprios de aprendizagem, os quais deveriam receber atenção respeitosada sociedade e a proteção do Estado brasileiro.O capítulo VIII, Dos Índios, é composto pelos artigos 231 e 232. Eles explicitambem o reconhecimento à identidade cultural própria e diferenciada dospovos indígenas (organização social, costumes, línguas, crenças e tradições), bemcomo os seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.De acordo com este artigo: São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aspor eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários aoseu bem-estar, e as necessárias à sua reprodução física cultural, segundo seus usos,costumes e tradições (art. 231, parágrafo 1º).A partir deste marco constitucional se entende definitivamente que o Estadodeve proteger as terras indígenas e demarcá-las sob duas formas de direitosterritoriais: o primeiro, por meio do reconhecimento de direitos originários eimprescritíveis à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturaisexistentes no solo, nos rios e lagos das terras de ocupação tradicional; e o segundoque, compete à União, o dever de demarcar as terras conforme os limites tradicionalmenteocupados, ou seja, de acordo com seus usos, costumes e tradições.Esse reconhecimento do direito originário sobre as terras representa, em síntese,a garantia de continuidade da existência dos povos indígenas. O Estado brasileirotorna-se obrigado a reconhecer o caráter pluriétnico de sua população e ao mesmotempo deve assegurar o direito à terra. De acordo com a Constituição Federal oconceito à posse indígena não se confunde com o conceito civil. Tanto é assim queo artigo 22, XIV afirma que compete à União “legislar sobre populações indígenas”.É necessário fazer referência também ao que estabelece o artigo 20, XI da Constituição.Nele fica estabelecido que as terras tradicionais indígenas são bens da União,portanto a propriedade não é indígena. Essa norma explicita que não é somente aocupação física da terra o objeto de proteção, mas assegura o direito à ocupação tradicional.Esta concepção mais adiante tomará corpo enfatizando que o uso tradicionalda terra visa assegurar o desenvolvimento de atividades religiosas, a proteção das áreassagradas, dos espaços culturais, tendo como referência o futuro do povo.14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott283


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSO direito à posse da terra, explicitado como direito originário e, portanto, quenão depende de titulação, constitui-se num direito que precede sobre os demaisdireitos (Art. 231, caput). Do mesmo modo, o parágrafo 2º deste artigo estabeleceque as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam à sua posse permanentee ao usufruto exclusivo das riquezas dos solos, rios e lagos. As terras sãopatrimônio da União. Os recursos hídricos nela existentes e as pesquisas de lavramineral somente podem ser desenvolvidas mediante autorização do CongressoNacional, ouvidas as comunidades afetadas, que terão participação assegurada nosresultados da lavra, na forma da lei. Vale ressaltar, no entanto, que a possibilidadede ocupação e exploração dos recursos naturais em caso de relevante interessepúblico da União depende de lei complementar. Em relação a ocupações de boafé, o mesmo artigo estabelece que a União indenizará as benfeitorias.As terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis e os direitos indígenassobre elas são imprescritíveis, destacando-se o fato de que os povos indígenas nãopodem ser removidos de suas terras a não ser em casos de catástrofe, epidemia,ou em casos de interesse da soberania do país, com o referendo do CongressoNacional, garantindo, em qualquer dos casos supracitados, o retorno imediatoda população indígena, tão logo cesse o risco.Já no artigo 232 afirma-se que “os índios, suas comunidades e organizaçõessão partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses,intervindo o Ministério Público Federal em todos os atos do processo”. Tal dispositivoconfigura-se em importante ferramenta de luta para os povos indígenas,uma vez que suas comunidades passam a ser consideradas entes com personalidadejurídica (não necessitando para isso de registros e estatutos específicos), dispensandoinclusive a intermediação (tutela) de órgãos indigenistas em ações ajuizadas.Faz-se necessário salientar que nas Disposições Transitórias (Artigo 67) foiestabelecido um prazo de cinco anos, a partir da promulgação da Constituição,para a demarcação de todas as terras indígenas. Esse prazo esgotou-se em 5 deoutubro de 1993 e os governos não cumpriram com esta determinação. Aindahoje, no Brasil, existem mais de 600 terras indígenas a serem demarcadas.14.3 OS POVOS GUARANI, KAINGANG E CHARRUA284Apresento, de forma sucinta, alguns elementos acerca das culturas e das realidadesdos povos Guarani, Kaingang e Charrua que habitam o Rio Grande do


Sul, suas formas de ver o mundo, de se relacionarem com a natureza e a luta pelademarcação e garantia de suas terras como sendo espaços sagrados para o futuro.14.3.1 O Povo GuaraniDe acordo com muitos relatos históricos, o povo Guarani chegou a ser constituídopor mais de quatro milhões de pessoas e ocupava especialmente a regiãode mata úmida dos rios da Bacia Platina, tendo chegado até a Bacia Amazônica.Também denominado Awá (termo que, em português, significa gente) é parte dogrande tronco linguístico Tupi e pertence à família Guarani. Hoje, a populaçãoGuarani é superior a 280 mil pessoas em toda a América do Sul.Os Guarani subdividem-se em grupos (parcialidades), assim definidos: Kaiowá(também referidos na literatura acadêmica como Kaiová, Kayová ou Paï-Tavyterã),Nhandeva (referidos ainda como Xiripá e Ava Katu Ete), os Mbyá e ainda Guaraios(Bolívia). As comunidades estão distribuídas em mais de 400 aldeias em quatropaíses da América do Sul. No Rio Grande do Sul são mais de duas mil pessoasvivendo em pequenas áreas de terra ou em acampamentos de beira de estradas.Por ser um povo extremamente religioso, se relaciona com a terra como sendoespaço sagrado onde se estabelecem as relações com o mundo religioso, mítico eonde se estabelecem relações familiares, comunitárias e se desenvolvem os valoresda reciprocidade. Em consequência disso, são avessos aos conflitos.Na terra, espaço físico e simbólico, os Guarani cultivam uma grande variedadede plantas medicinais, frutíferas e para o alimento diário. Suas aldeias sempreforam construídas em lugares cobertos de mata e com muitas nascentes de água.Os Guarani denominam esses lugares de tekoha. O tekoha é o lugar físico – terra,mato, campo, águas, animais, plantas, remédios etc. – onde se realiza o teko,o “modo de ser”, o jeito de viver Guarani. Esse lugar tem que permitir que serealizem os rituais, as relações sociais, as ligações recíprocas entre as famílias e asatividades produtivas. A terra necessita ter água e mata, recursos de grande importânciana vida, que asseguram as relações com o mundo espiritual dos Guarani.Indispensáveis são as áreas para plantio da roça familiar ou coletiva e a construçãode suas habitações e lugares para atividades religiosas. Muitas das terras reservadaspelo Estado aos Guarani são pequenas, insuficientes, e não atendem aos critériosculturais, étnicos, religiosos e de subsistência.Um aspecto importante da vida do povo Guarani diz respeito à palavra, que14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott285


PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSpara eles é um importante elemento de constituição da pessoa e de elaboração contínuade seu modo de viver. Estudiosos como Curt Nimuendajú e Bartomeu Meliàafirmam que os Guarani são “o povo da palavra”, e a prática de escutar e de falarconfigura sua organização social, política, religiosa. Graciela Chamorro afirma aindaque a espiritualidade Guarani é uma “experiência da palavra” ancorada em uma complexateologia que só se pode observar frente a um estudo profundo e prolongado.É pela palavra que a pessoa guarani vai sendo constituída, e essa produção seinicia antes mesmo do nascimento de um novo ser, ou de sua concepção propriamentedita. Para eles a vida se inicia quando um componente divino é enviado e secoloca a caminho, até chegar e fazer morada em um corpo Guarani. Essa porçãodivina é enviada em forma de palavra-alma e se torna pessoa à medida que vaisendo pronunciada, lida, inventada, através de palavras que são proferidas pelospais, pelos líderes religiosos, pela comunidade, em diferentes momentos cotidianose rituais. Observa-se, assim, que a palavra é um componente central no dia adia dos Guarani e ela se converte em conselhos e ensinamentos (dos pais para osfilhos, dos anciãos – karaí – para os jovens, e assim por diante).Na atualidade, os Guarani lutam para manter suas formas tradicionais devida, mesmo com a intensa fragmentação de seu território e, em muitos casos,com a condição de habitantes de acampamentos, em barrancos e beiras de estradas.Brighenti (2010) discute, na obra Estrangeiros na própria terra, a forma comoeste povo restabelece sua identidade e suas vinculações com o território, frente àspolíticas estabelecidas pelos Estados brasileiro, argentino e paraguaio, que os tratacomo estrangeiros e recusa-se em demarcar territórios condizentes com as expectativasdeste povo. A questão central que marca os conflitos atuais vividos pelosGuarani é a falta de espaços para viverem suas culturas e a necessidade crescentede estabelecerem diálogo com os Estados Nacionais que, na prática, não admitema especificidade de suas formas de ocupação territorial e seu direito de acesso eusufruto deste território. Tal questão coloca para o povo Guarani a necessidadede atualização de seus discursos religiosos, no sentido de incorporarem neles adimensão da luta política, conforme avalia o autor.14.3.2 O Povo Kaingang286O nome Kaingang foi introduzido no final do século XIX por TelêmacoBorba. Antes disso, eles recebiam várias denominações. Embora sejam conhecidos


pelo nome Kaingang, eles também se autodenominam Kanhgág. Falam a línguaKaingang, pertencente à família linguística Macro-Jê, e o português.Quanto à cultura dos Kaingang, Ricardo Cid Fernandes, na sua tese de doutorado“Política e Parentesco entre os Kaingang: uma análise etnológica”, aborda odualismo da organização social deste povo. Uma organização dualista é, de acordocom o autor, um tipo de classificação dos membros de uma sociedade em metadescomplementares. No caso dos Kaingang, as duas metades complementares sãodenominadas de Kamé e Kairu, sendo a metade Kamé composta pelas subdivisõesKamé e Wonhetky e a metade Kairu composta pelas subdivisões Kairu e Votor(FERNANDES, 2003). O dualismo Kaingang assenta-se na mitologia (descritapela primeira vez por Telêmaco Borba), que narra a história de dois irmãos Kamée Kairu que, após um grande dilúvio, saíram do interior da terra. A partir de então“Os irmãos mitológicos Kamé e Kairu não apenas criaram os seres da natureza,mas também as regras de conduta para os homens, definindo a fórmula de recrutamentoàs metades (patrilinearidade) e estabelecendo a forma como as metadesdeveriam se relacionar (exogamia)” (FERNANDES, 2003, p. 38).A população Kaingang no Rio Grande do Sul é de aproximadamente 30 milpessoas. Mas há dezenas de áreas e comunidades deste povo em São Paulo, Paraná,e Santa Catarina. Kimiye Tommasino (1998) afirma que os Kaingang formam umdos povos indígenas de maior contingente no Brasil. A pesquisadora avalia que osconflitos decorrentes da ocupação ocidental sobre as terras deste povo, engendraramtransformações profundas no modo de vida Kaingang, especialmente porquedestruiu as bases materiais de produção econômica, alterou os padrões tradicionaisde abastecimento e, consequentemente, toda a organização social Kaingang.Os Kaingang são tradicionalmente caçadores e coletores, mas a agricultura(em pequena escala) também era praticada no espaço entre a aldeia e as mataspertencentes a estes povos e nas encostas de morros – plantavam em especialmilho pururuca, abóbora, amendoim e feijão vara. Os acampamentos fixos dosKaingang eram, em geral, fixados na região de campos, e estes eram chamadas deemã (oujemã). Havia também acampamentos provisórios (wãre) nas florestas ebeiras de rio para se abrigarem nos meses em que caçavam ou pescavam (TOM-MASINO, 1998).A forma de ocupação do território se dava de modo contínuo pelos gruposfamiliares e foi mantida até que as terras foram sendo colonizadas e expropriadas.Vale ressaltar que até os anos de 1940 e 1950, os Kaingang praticaram esses deslocamentosno interior de seus vastos territórios, quando ainda dispunham dos re-14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott287


cursos florestais mais abundantes. Contudo, na atualidade a maioria deles vive emaldeamentos ou em periferias urbanas. Tommasino (2000) afirma que o processode atração e de “pacificação” dos Kaingang teve por base as promessas de bem-estare proteção, frente a um processo colonial em franca expansão. Além disso, eramoferecidos aos índios, para convencê-los a habitar somente os aldeamentos estabelecidosoficialmente, produtos que eles desconheciam: roupas, cobertores, miçangas,espelhos, instrumentos de ferro como machado, faca, serrote, objetos que os deixaramimpressionados. A pesquisadora afirma que durante mais de um século os Kaingangreceberam esses “presentes” e acreditaram que os chefes brancos fossem generosos,tal como preconiza o modelo de chefia indígena. “É importante enfatizar a eficáciadessa estratégia – a distribuição de presentes e promessa de proteção – porque nacultura Kaingang a generosidade é o valor mais elevado e era esta qualidade queconferia prestígio político aos caciques ou Pai-bang” (TOMMASINO, 1998, p. 68).Na atualidade, uma das alternativas econômicas para os Kaingang tem sidoa produção do artesanato para comercialização em feiras, em praças, e outros espaçosalternativos nas cidades em que habitam.PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS28814.3.3 O Povo CharruaAntes da colonização os Charrua eram milhares e habitavam a região pampeana,que compreendia parte do estado do Rio Grande do Sul e também da Argentina eUruguai. Após o contato com os exploradores espanhóis e portugueses (que chegaramao território Charrua através do Rio da Prata, em 1513), o que se sucedeu foi umgrande extermínio. Referindo-se aos Charrua e Minuano da antiga Banda Orientaldo Uruguai, Ítala Becker (1982, p. 93) escreve: “os colonizadores tornam-se cada vezmais donos dos animais e das terras, em pouco tempo, deixam os indígenas quase semnenhum espaço para continuarem sobrevivendo e tendo suas vidas independentes”.A mesma autora observa que, com relação à terra, entre os Charrua, parecianão haver uma delimitação individual e sim um usufruto coletivo do espaço ocupadopelo grupo. A tradição de uso coletivo dos recursos tornava desnecessária aapropriação e delimitação da terra por família ou núcleo familiar extenso. Assim,a prática da propriedade privada era totalmente estranha a este grupo, tal comoaos demais povos ameríndios.O povo Charrua foi particularmente vitimado pelas guerras e massacres, eos homens eram os alvos principais. Becker (1982) afirma, neste sentido, que em


períodos de massacres se via muito comumente mulheres e crianças de menos de12 anos poupadas do extermínio, espalharem-se entre vilas, povoados, estâncias efazendas. Talvez por isso, na atualidade, os Charrua sejam um grupo tão disperso,com famílias que vivem em distintas regiões do Sul do Brasil, Argentina e Uruguai.Vale ressaltar que os Charrua são citados em diferentes textos, particularmentenaqueles associados à imagem e às tradições gauchescas. Para exemplificar,destaca-se, da literatura mítica de Jorge Salis Goulart (1978, p. 55), a seguinteafirmação: “estes exímios cavaleiros, estes laçadores, boleadores, magníficos tropeirose lanceiros invencíveis, no campo de batalha, tinham a impetuosidade deum raio”. Descritos como fortes, impetuosos e livres, esses índios tornaram-sesímbolos de uma suposta raiz constituidora do povo gaúcho.Conforme Lopes Neto (citado por DUTRA, <strong>2011</strong>), a palavra charrua nalíngua Quíchua quer dizer “ribeirinho”. Contudo, assim como as tradições sãoreinventadas, também o significado ou o conceito dos nomes de povos são variáveise continuamente ressignificados. Neste sentido a Cacique da comunidadeCharrua de Porto Alegre Aquab, nos depoimentos e discursos proferidos em reuniõese audiências públicas faz questão de afirmar que a palavra Charrua querdizer “chá abençoado por Deus, o pai Tupã”. Ela também destaca que o povo seautodenomina Chonik, “os donos da terra”. Essa denominação correspondia auma das divisões internas dos Charrua tradicionais.A comunidade Charrua de Porto Alegre tem uma população de 40 pessoase ocupam nove hectares de uma terra cedida pela prefeitura, no bairro Lombado Pinheiro. Nesta área há fonte de água, algum resquício de mata e de árvoresfrutíferas. Ali procuram viver reorganizando o modo de ser e refazendo os rituaisdos ancestrais, como o Ketame (Dança da Lua), que celebra o nascimento dascrianças. A comunidade está desenvolvendo estudos para recuperar partes de suaestrutura linguística.As famílias Charrua, antes de receberem a pequena área de terra, viveramno Morro da Cruz, em Porto Alegre, e lá permaneceram por cerca de 40 anos.Andavam longas distâncias para conseguir água, e subsistiam dos empregos provisórios,reciclagem do lixo e venda de artesanato.Foram reconhecidos como descendentes do povo Charrua pela FundaçãoNacional do Índio (Funai) no ano de 2007 (apesar de não haver necessidadede reconhecimento oficial, bastando a auto-afirmarão étnica, conforme aConvenção 169 da OIT). Esse reconhecimento se deu em função de um intensoprocesso de mobilização da comunidade ao longo dos últimos anos.14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott289


14.4 AS TERRAS INDÍGENAS NO RIO GRANDE DO SUL E ASITUAÇÃO FUNDIÁRIAPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS290Como se viu acima, a colonização se impôs violentamente contra os povosindígenas e os expulsou de suas terras, sendo divididas e loteadas pelo Estado,pelas oligarquias e pelas empresas de colonização. Expulsos das terras passaram aandar de um local para outro, sempre nas proximidades das áreas reivindicadas,tendo em vista a garantia da vida. Neste processo, as terras foram degradadas pelacolonização. Pouco restou, no Sul do país, do que eram os territórios: áreas commatas, com animais para caçar, com rios e lagos. As terras, redutos sagrados, foramtransformadas em fonte de renda, em capital especulativo através do plantio degrãos (soja, milho, trigo), através da implantação de grandes latifúndios (criaçãode gado e de grandes granjas da monocultura) e para a expansão imobiliária. E,nas últimas décadas, áreas que não serviam para a agricultura e nem para a criaçãodo gado de corte e sobre as quais restavam recursos ambientais significativos ou,em muitos casos, em processo de extinção por causa da exploração indiscriminadada madeira, foram transformadas em reservas ou parques de preservação.É importante referir que há 500 anos viviam no Brasil mais de 900 povosdiferentes, com uma população de milhões de pessoas. Hoje são em torno de 240,com uma população, segundo o Censo do IBGE de 2010, de 817 mil pessoas.Do total de mais de 1.000 terras atualmente reivindicadas, em diferentes fases doprocedimento demarcatório (reconhecimento oficial), estes povos ocupam umpouco mais de 50% dos territórios reivindicados.Cabe aqui enfatizar que habitavam no espaço territorial do que é hoje o RioGrande do Sul pelo menos 23 povos diferentes. Havia uma população de centenasde milhares de pessoas, sendo que atualmente é de pouco mais de 36 milindígenas das etnias Guarani, Kaingang e Charrua.O relacionamento desses povos com a natureza e com a terra sempre foi deprofundo respeito. Diferente das práticas da sociedade eurocêntrica que invadiurapidamente as suas terras para consumir e destruir. Na concepção da maioriados povos, a terra é mãe e como tal precisa ser cuidada e protegida. Os Kaingang,por exemplo, cultuam a terra porque é dela que se faz toda a existência e sobre elaresidem todas as coisas inclusive as espirituais. No caso dos Guarani a vida é entendidacomo um contínuo caminhar e esse caminhar se desenvolve num extensoterritório, ocupado ancestralmente. As famílias transitam de uma aldeia à outra.Tradicionais ocupantes das terras litorâneas, os Guarani sentem-se impedi-


dos de habitar a região e muito menos extrair o seu sustento. Os Kaingang queresidem nos centros urbanos ou no seu entorno não conseguem coletar a taquarae o cipó para a confecção do artesanato e das cestarias, fonte de renda para a suasubsistência. Por essa razão circulam nestas áreas, acampando nas proximidades,movimentando-se sempre no entorno, ensaiando o regresso. Essa é a maneira deestabelecerem relações contínuas com seus lugares sagrados e com o mundo dosespíritos ancestrais.Nas últimas décadas os povos indígenas, através de suas lutas, vêm obtendoimportantes conquistas, no entanto, em sua grande maioria, as terras indígenasnão foram demarcadas e/ou regularizadas. Algumas terras que hoje estão com osprocedimentos demarcatórios concluídos ou em andamento situam-se no nortedo Estado e nelas vivem mais de 85% dos indígenas Kaingang, especialmente nasáreas de Nonoai, Serrinha, Vontouro, Guarita, Ventarra, Cacique Doble entre outras.Em contraste, a grande maioria das comunidades Guarani vive em pequenasáreas de terras ou acampamentos na beira das estradas no centro do estado, nolitoral e na região metropolitana de Porto Alegre.14.4.1 Tabela das terras e da população indígena no RioGrande do Sul 215A tabela a seguir, foi elaborada a partir de dados oficiais divulgados pelaFunai, bem como através de informações do Cepi/RS (Conselho Estadual dosPovos Indígenas), do CAPG (Conselho de Articulação do Povo Guarani do RioGrande do Sul) e a partir de dados organizados pelo Conselho Indigenista Missionário,Regional Sul.A tabela apresenta as terras demarcadas, aquelas que estão com os procedimentosdemarcatórios em curso e as terras sobre as quais o Governo Federalnão tomou nenhuma providência, bem como os números que dispomos sobre apopulação que ocupa tais áreas.14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott215 No quadro, quando aparece o ponto de interrogação significa que a Funai não iniciou oprocedimento demarcatório ou a área está em estudo, portanto sem a definição de limites e tamanhoem hectares.291


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoPOVO GUARANI: 43 terrasPalmares doIlha GrandeSul (Lagoa(Guarani Mbyá)dos Patos)? Reivindicam o direito à posse. 15Irapuá (GuaraniMbyá)Caçapavado Sul222Acampamento na BR 290.Relatório Circunstanciado foipublicado em 26/01/<strong>2011</strong> (Funai).Passou pela fase da contestação.Aguardando procedimentos.80PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSKa’amirindy/Água Grande(Guarani Mbyá)Ygua Porá/Pacheca(Guarani Mbyá)Camaquã 165,34Camaquã 1.852Jataity/Viamão /CantagaloPorto Alegre(Guarani Mbyá)Tekoá Porã/Coxilha da Cruz(Guarani Mbyá)Passo daEstância(Guarani Mbyá)Barra doRibeiroBarra doRibeiro286202?Área adquirida pelo governo doEstado do Rio Grande do Sul. Dec.Estadual 40.482 de 29/11/2000Aguardando pela criação do GTCriação do GT 1993.Declarada em 17/05/1996.Homologada em 01/08/2000.Registrada CRI 19/09/2000 e SPU15/01/2001 (Funai).Vivem em 47 hectares.GT de identificação em 1999.Portaria do RelatórioCircunstanciado 31/05/2000.DOU 02/06/2000.Portaria do MJ demarcação físicaem 27/11/2003 (Funai).Foi homologada, através doDecreto de 11/10/2007. DOU15/10/2007. Registrada CRI 11-out-07 (Funai).Funai tem que indenizar famíliasde não-indígenas.Vivem em 101 ha. Área adquiridapelo governo do Estado do RS.Aguardam desapropriação eindenização aos ocupantes nãoindígenas.Acampamento nas margens da BR116. Impactada pela duplicação daBR 116.456215913030292


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoNhundy/Estiva(Guarani Mbyá)Viamão 07Área sem documentação. Depropriedade da Prefeitura quecedeu para a ocupação emsubstituição ao acampamento daPimenta. Aguardando criação deGT.170Lami (GuaraniMbyá)Porãi/Capivari(Guarani Mbyá)Porto Alegre ?Capivari doSulAnheteguá/Lomba doPinheiroPorto Alegre 10(Guarani Mbyá)Granja Vargas Palmares do(Guarani Mbyá) SulGuabiroba/ BenjaminVotouro Constant do(Guarani Mbyá) SulMato Preto(Guarani Mbyá)Erebango/Erechim/GetulioVargas?43,327174.230Acampamento na margem darodovia no Bairro Lami-POA.Aguardando criação de GT.Acampamento RS 040.Aguardando criação do GT.-Área particular do projeto GuaraniPMG-Ong (extinta) área doadaaos Guarani. Aguardando criaçãodo GT.Criação do GT em 1993.Portaria do MJ em 13/08/1999.Homologada, através do decretono DOU 19/04/2001. RegistradaCRI em 11/10/02 (Funai).Aguardam ampliação da área.Homologada em 11/12/1998. Reg.CRI 04/02/1999. Reg. SPU em15/01/2001(Funai).Portaria para identificação edelimitação em 20/11/2009(Funai).O Relatório Circunstanciado foipublicado. Conclui-se a analise docontestatório.A comunidade aguarda a PortariaDeclaratória.4868451346014 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio LiebgottArroio Divisa Eldorado do(Guarani Mbyá) Sul/Arroiodos Ratos?Acampamento na BR 290.Impactada pela duplicação da BR290. Aguarda GT25293


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoPindó Mirim/Itapuã (GuaraniMbyá)Viamão ?Portaria GT em 31/07/2008,DOU em 01/08/2008. Vivem emuma área de 24 ha, cedida pelogoverno do Estado, localizadaao lado do Parque de Itapuã.Aguardam publicação doRelatório Circunstanciado juntocom Morro do Coco e Ponta daFormiga.50Nhu Poty/Passo Grande(Guarani Mbyá)Barra doRibeiro?Portaria de identificaçãoe delimitação do GT em17/08/2009. Acampamento BR116. Impactada pela duplicação.Aguardam conclusão dos estudose publicação do relatório juntocom Arroio do Conde e Petim.72PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSSalto Grandedo Jacuí(Guarani Mbyá)Ka’aguy Poty /Estrela Velha(Guarani Mbyá)Ko’eju/Inhacapetum(Guarani Mbyá)Varzinha(Guarani Mbyá)Salto doJacuíEstrelaVelhaSão Migueldas MissõesCaraá/Maquine235?236, 33796Declarada em 13/02/1996.Homologada em 11/12/1998.Registrada CRI em 21/01/199 eSPU em 20/11/2002 (Funai).-Área do Estado do rio Grande doSul (CEEE) cedida à comunidade.Impactada por barragem (DonaFrancisca do Rio Jacuí).Criação do GT em 2008.Aguardam conclusão dos estudose a publicação do Relatório.Área comprada pelo governo doEstado do Rio Grande do Sul.Portaria criação do GT em 1999.Declarada em 23/04/2001.Homologada em 10/02/2003.Registrada em CRI 03/07/2003e SPU em 16/09/2003 (Funai).Impactada pela duplicação da BR101.755013678294


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoBarra do Ouro(Guarani Mbyá)Maquiné /Riozinho /Caraá2.269Criação do GT em 1993.Portaria n 499 de 10/07/1998.Homologada, através de DecretoDOU 19/04/2001. Registrada CRI23/04/2002 e SPU 04/06/2002.Impactada pela duplicação da BR101.20Torres (GuaraniMbyá)Estrela do Mar/Interlagos(Guarani Mbyá)Arenal (GuaraniMbyá)Itapoty/Riozinho(Guarani Mbyá)Kapi Owy(Guarani Mbyá)Arasaty/Petim(Guarani Mbyá)Água Branca/Arroio Velhaco(Guarani Mbyá)Torres 94Osório 43Santa MariaRiozinho 24Pelotas ?Guaíba ?Tapes 230Área adquirida por conta dosimpactos sofridos pela duplicaçãoda BR 101. Aguarda GT.Área adquirida por conta dosimpactos sofridos pela duplicaçãoda BR 101. Aguarda GT.Acampamento na BR 392.Aguardam criação de GT.Vivem em 24 ha de área cedidapelo Banco do Estado do RioGrande do Sul. Impactada peladuplicação da BR 101.Impactada pela duplicação da BR116. Sem providenciasPortaria de identificaçãoe delimitação do GT em17/08/2009. Acampamento BR116. Impactada pela duplicação.Aguardam conclusão dos estudose publicação do relatório juntocom Arroio do Conde e PassoGrande.Portaria Declaratória em1997. Aguarda procedimentos.Solicitam que o processopara ocupação da TI ÁguasBrancas seja encaminhado. Áreaimpactada pela duplicação da BR116.70505040206014 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio LiebgottPonta daFormiga(Guarani Mbyá)Barra doRibeiro?Portaria GT em 31/07/2008,DOU em 01/08/2008. Aguardampublicação do RelatórioCircunstanciado junto com Morrodo Coco e Itapuã.295


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoMorro do Coco Viamão/(Guarani Mbyá) Porto AlegreArroio doEldorado doConde (GuaraniSulMbyá)??Portaria GT em 31/07/2008,DOU em 01/08/2008. Aguardampublicação do RelatórioCircunstanciado junto com Itapuãe Ponta da Formiga.Portaria de identificaçãoe delimitação do GT em17/08/2009. Acampamento BR116. Impactada pela duplicação.Aguardam conclusão dos estudose publicação do relatório juntocom Passo Grande e Petim.Mata SãoLourenço(Guarani Mbyá)EsquinaEzequiel(Guarani Mbyá)São Migueldas MissõesSão Migueldas Missões? Sem providencias? Sem providenciasPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS296Ita’y/Taim(Guarani Mbyá)MatoCastelhano(Guarani Mbyá)Ibicuí (GuaraniMbyá)Imbaa (GuaraniMbyá)Aguapé Sto Antonio(Guarani Mbyá) da PatrulhaCaaró (GuaraniMbyá)SãoJaguarazinhoFrancisco de(Guarani Mbyá)AssisRaia Pires(Guarani Mbyá)Gruta eEspraiado(Guarani Mbyá)Rio Grande ? Sem providenciasCamaquã ? Sem providenciasItaqui ? Sem providenciasUruguaiana ? Sem providencias? Sem providenciasCaiboaté ? Sem providencias? Sem providenciasTapes ? Sem providenciasMaquiné ? Sem providenciasPOVO KAINGANG: 32 terras


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoGuarita(Kaingang)e Guarani)Nonoai(Kaingang)TI Passo Feio(Guarani)Nonoai / Rioda Várzea(Kaingang)Nonoai(Kaingang)Nonoai / CapãoAlto (Kaingang)Nonoai /Quarta Seção(Kaingang)Nonoai /Taquaruçuzinho(Kaingang)Cacique Doble(Kaingang)Morro do Osso(Kaingang)Erval Seco/Redentora/TenentePortelaGramadodosLoureiros/Nonoai/Planalto/Rio dosÍndiosGramadodosLoureiros,LiberatoSalzano,Nonoai,Planalto,Trindade doSulNonoai / Riodos Índios23.40719.83016.41514,30Nonoai 1.196Planalto 249Nonoai 804CaciqueDoble/SãoJose doOuro4.426Porto Alegre ?Homologada em 04/04/1991.Registrada CRI em 17/05/1991 eSPU em 29/12/1994 (Funai).Declarada (Funai)Declarada 11/12/1998.Homologada em 10/02/2003.Registrada CRI em 07/07/2003 eSPU em 16/09/2003 (Funai)Parte da TI Nonoai, ainda nãodesintrusadaParte da TI Nonoai, ainda nãodesintrusadaParte da TI Nonoai, ainda nãodesintrusadaParte da TI Nonoai, ainda nãodesintrusadaHomologada em 27/03/1991.Registrada CRI em 05/06/1991 eSPU em 29/12/1994 (Funai).Acampamento às margens daTI situado no Parque MunicipalMorro do Osso. Criação do GTem 2010. Aguardando conclusãodos estudos e a publicação dorelatório.7.700Kaingang69Guarani4.6501.0672.35016914 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott297


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoLomba doPinheiroKaingang)Porto Alegre 10 Aguarda GT 200PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS298São Leopoldo(Kaingang)Lageado(Kaingang)Estrela(Kaingang)Farroupilha(Kaingang)Santa Maria(Kaingang)Borboleta(Kaingang)Cacique DobleII (Kaingang)Carreteiro(Kaingang)Inhacorá(Kaingang)Inhacorá II(Kaingang)Kaingang deIrai (Kaingang)Kaingangde Irai II(Kaingang)Ligeiro(Kaingang)SãoLeopoldo2,5Área adquirida pela Prefeitura em2008. Aguarda GT.Lageado ? Acampamento. Aguada GT 50Estrela ?Acampamento na BR 386. Áreaimpactada pela duplicação.Criação do GT em 2010.Aguardando conclusão dosestudos e a publicação dorelatório.Farroupilha ? Acampamento aguarda GT. 70Santa Maria ? Acampamento. Reivindicam área. 40Espumoso/ Salto doJacui.CaciqueDoble?Água Santa 603São Valériodo Sul 2.843São Valériodo SulIrai 279Reivindicam 30 mil ha.Impactados pela hidrelétrica doSalto do Jacui.150973001.022 Em estudo. 2.350Homologada 27/03/1991.Registrada CRI 16/05/1991 e SPUem 29/12/1994 (Funai).Homologada em 27/03/1991.Registrada CRI em13/05/1991 eSPU em 29/12/1994 (Funai).1.5328493.016 Em estudo. 849Declarada em 28/05/1992.Homologada em 04/10/1993.Registrada CRI em 22/03/1994 eSPU em 05/04/1994 (Funai)860Irai ? Em Estudo 860Charrua 4.566Homologada em 27/03/1991.Registrada CRI em 16/05/1991 eSPU em295/12/1994 (Funai).3.060


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoMonte Caseros(Kaingang)Rio dos Índios(Kaingang)Serrinha(Kaingang)Ventarra(Kaingang)Votouro(Kaingang)VotouroKandoia(Kaingang)MatoCastelhano(Kaingang)Passo Grandedo RioForquilhaNovo Xingu(Kaingang)Caseiros(Kaingang)Lageadodo Bugre(Kaingang)Moliterno /IbiraiarasVicenteDutraConstantina,EngenhoVelho,RondaAlta, TrêsPalmeiras1.112715Erebango 772BenjaminConstantdo Sul/FaxinalzinhoBenjaminConstantdo Sul/FaxinalzinhoMatoCastelhanoCaciqueDoble,SananduvaNovo XinguDeclarada 17/12/1996.Homologada em 11/12/1998.Registrada CRI em 17/05/1999 eSPU em 02/06/1999 (Funai).Delimitada em 07/04/2003 eDeclarada 23/12/2004 (Funai).50810211.952 Declarada 2.8503.3415.977Homologada Dec. s/n de 14/04/98(DOU – 15/04/98)Homologada em 30/08/2000.Registrada CRI em 07/11/2000 eSPU em 04/06/2002 (Funai).Identificada, Despacho n. 62 de07.12.09 (DOU – 08.12.09). É amesma do acampamento Kaidóia.9802.986171? Em estudo (Funai) 4501.916Caseiros ?Lageado doBugreDelimitada em 13/08/2008 eDeclarada 26/04/<strong>2011</strong> (Funai)Acampamento. Terra em estudo.Esse acampamento não existemais, o que há é a reivindicaçãode ampliação da área. O GT deidentificação e delimitação jáesteve a campo.? Acampamento. Terra em estudo.13614 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott299


Cimi Regional Sul - População Indígena no Estado do Rio Grande do Sulnº Terra e Povo Município Tamanho Situação PopulaçãoMorro Santana(Kaingang)Porto Alegre ?Ocupação da área em 2010.Desocuparam devido a umareintegração de posse feita pelaUFRGS contra a comunidade.Solicitam criação de GT.Canela(Kaingang)CanelaReivindicam GT. Sem providencias.Ligeiro II(Kaingang)Charrua 1.000 Sem providencias. -POVO CHARRUA: 01 terraLomba doPinheiro(Charrua)Porto Alegre 09Área adquirida pela Prefeitura em200840POVO XOKLENG: 01 terraPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS300XoklengSãoFrancisco? Reivindicam uma áreaTotal da População Indígena no Rio Grande do Sul: 36.488Apesar das garantias constitucionais e das incansáveis lutas dos povos indígenas,o Governo Federal se nega ao cumprimento de suas obrigações. Destacoalguns fatos conjunturais, políticos e econômicos que nos ajudam a entender ascausas deste descumprimento constitucional:a) O governo considera dispendioso fazer a retirada dos agricultores, empresáriose outros que se apropriaram das terras;b) O governo se sente pressionado por setores do poder público, por entidadesligadas ao meio ambiente ou por fazendeiros e agricultores que se opõem àdemarcação das terras;c) Os povos indígenas não são reconhecidos pelo governo como portadores edetentores de direitos, especialmente à diferença e à terra;d) Assim como os invasores das terras indígenas, o governo acredita que as regiõesSul, Sudeste, Nordeste não são lugares para a ocupação indígena. Nãoé à toa que propõem que estes povos sejam removidos para outras regiõesou tenham direitos compensados através de ações assistenciais paliativas.


A Funai, infelizmente, tem se constituído numa espécie de corpo estranhodentro da estrutura do Governo Federal. Ou seja, quando há vontade e interesseem agir para assegurar os direitos indígenas, os servidores sofrem pressões oriundasdo próprio governo, a fim de que não cumpram com suas obrigações e, quando hádeterminação em cumpri-las, sofrem pressões externas dos setores anti-indígenas.Neste contexto, a Funai apenas contribui para fomentar a discórdia entre índios ea população envolvente, entre índios e os latifundiários, entre índios e agricultores,entre índios e ambientalistas. Todos se voltam, neste momento histórico, contraos direitos dos povos indígenas e a consequência é a não demarcação das terras.14.5 AS GRANDES DEMANDAS DOS POVOS INDÍGENAS NORIO GRANDE DO SUL14.5.1 A demarcação das terras indígenasA demarcação de terras é, certamente, dentre os direitos, o que causa maiorimpacto, a questão mais crucial e polêmica e mostra toda a inércia do governo.São inúmeras as demandas para a demarcação de terras em todo o Estado. A Funainão consegue responder a estas necessidades, primeiro porque não constitui GT’ssuficientes para elaborar os estudos de identificação e delimitação de terras indígenase, quando os constitui, não lhes assegura as condições para que sejam concluídostais estudos. Mesmo quando estes estudos chegam ao fim e o relatório circunstanciadoé entregue, os processos administrativos tramitam numa morosidade eburocracia assustadoras, prejudicando as comunidades indígenas. Diante dessasituação, um procedimento que poderia ser concluído em nove meses pode chegara mais de dez anos sem qualquer relatório aprovado pelo presidente do órgão.Portanto, no que se refere às demarcações de terras indígenas, o que se exigeé que o governo:a) Demarque todas as terras indígenas para assegurar o seu usufruto exclusivopelas comunidades e povos que nelas habitam;b) Retire os ocupantes não indígenas das terras demarcadas ou em procedimentode demarcação, bem como efetue os pagamentos das indenizações pelasbenfeitorias de boa fé;14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott301


c) Busque soluções para indenizar os ocupantes de terras indígenas de boa fé,que as adquiriram e foram tituladas, fundamentalmente os pequenos agricultores;d) Constitua políticas públicas contemplando toda a população indígena,respeitando as suas diferenças, e, principalmente, atendendo a legislação, a ConstituiçãoFederal, especialmente os artigos 210, 215, 231 e 232 e o Decreto nº5.051/2004, que promulgou a Convenção 169 da Organização Internacional doTrabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais.14.5.2 Assistência em Saúde IndígenaPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOSResidem nesta política, graves e profundas omissões. O novo modelo prevêa estruturação do Subsistema de Atenção a Saúde Indígena, tendo por base osDistritos Sanitários – DSEI’s – e que a gestão do sistema aconteça através da SecretariaEspecial de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da Saúde.Lamentavelmente a política em execução está desconectada do modelo previstona Lei nº 9.836/1999 (Lei Arouca), que instituiu o Subsistema de Atençãoà Saúde Indígena, e pelo Decreto 6.878, de 18 de junho de 2009 que define seufuncionamento. As ações e serviços continuam sendo paliativas e têm um viéspuramente emergencial, ou seja, não atende as demandas relativas à prevençãodas doenças e muito menos leva em conta as diferenças, o modo de ser de cadacomunidade ou povo e a realidade em que estão inseridas as famílias. Este talvezseja o aspecto mais contraditório no âmbito da assistência uma vez que as comunidadesindígenas vivem, na sua grande maioria, em pequenas áreas de terra emque as condições ambientais e de saneamento básico são praticamente inexistentes.Há comunidades que não têm sequer água potável para beber.Portanto, o governo deve prever que a assistência em saúde seja executadapela Sesai tendo como base de suas ações o Distrito Sanitário Especial Indígena,com infra-estrutura, orçamento, servidores em saúde, agentes de saúde indígena.É necessário investir em formação técnica para os profissionais em saúde, bemcomo para o exercício do Controle Social através dos conselhos locais e distrital.14.5.3 Educação Escolar Indígena302Esta é outra, dentre as políticas, onde se evidenciam muitas contradições.


A gestão é de responsabilidade do Ministério da Educação (MEC), que repassarecursos e as atribuições pela educação escolar aos Estados, e estes podemtransferi-las aos municípios. O MEC definiu através do Decreto nº 6861, de 27de maio de 2009, uma política embasada no que eles denominam de TerritóriosEtnoeducacionais. Esta política, como costumeiramente ocorre nas relações entregovernantes e sujeitos de direito, não foi discutida com os povos indígenas. Há,portanto, a necessidade de o governo repensar o novo modelo e estruturar umaproposta que leve em conta as diferenças étnicas e culturais de cada povo e região.No estado do Rio Grande do Sul as comunidades indígenas não têm participadoefetivamente das discussões e das ações em torno da educação escolar.As escolas, quando administradas pelas prefeituras, seguem as políticas impostaspelo município e não respeitam as diferenças e quando administradas pelo estadotendem a assumir posturas de diálogo e de adequação do modelo tradicional deministrar aulas e gerir as escolas, a realidade indígena. No entanto, os professores,na sua maioria, não estão qualificados para as especificidades da educação escolarindígena.O governo deve investir na formação dos professores indígenas, discutir epropor, com a participação efetiva dos povos, um novo modelo de atenção emeducação. Enquanto isso não acontece deve respeitar as normas existentes ondehá a determinação de que a educação escolar indígena seja diferenciada e específicapara cada povo.14.5.4 Atividades ProdutivasEsta política é inteiramente desconectada das realidades indígenas. Não hádefinição e muito menos preocupação de se trabalhar com as demandas de auto--sustentabilidade dos povos indígenas levando em conta as diferenças étnicas, culturaise o modo de ser e de se relacionar com a terra e com o cultivo das plantas,sementes, frutas, ervas.A rigor, algumas atividades produtivas são desenvolvidas através de pequenosprojetos para o plantio de milho, soja e criação de animais como porco, galinha,gado e peixes. Na ausência de um órgão da federação que seja responsável pelaelaboração e execução de uma política neste campo, as ações são pulverizadas noMinistério do Desenvolvimento Agrário, na Funai, que tem realizado algumas14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott303


atividades, na Embrapa e nas secretarias estaduais e/ou em estruturas governamentaiscomo a Emater, no Rio Grande do Sul.Atualmente os problemas relativos à segurança alimentar são tratados emreuniões promovidas pelo Conselho de Segurança Alimentar (Consea) que, porsua vez, apresenta como alternativa a distribuição de cestas básicas. Ou seja, abusca de soluções para os problemas, que deveriam ser discutidas e buscadas apartir de políticas governamentais integradas, não ocorrem de maneira efetiva. Asquestões são debatidas por pessoas que atuam em secretarias de governo e mesmoassim quando provocadas por entidades indigenistas e pelos povos indígenas esuas organizações.No campo das atividades produtivas o governo deve definir, com a participaçãoindígena, uma política de segurança alimentar e de atividades autossustentáveis.Além disso, as terras precisam ser demarcadas, protegidas e recuperadas.14.6 CONSIDERAÇÕES FINAISPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS304Ao concluir esta abordagem, é importante enfatizar que a proteção dos direitoshumanos indígenas está firmada na nossa Constituição Federal, bem comonas convenções e normas internacionais.O juiz federal titular da 1ª Vara da Bauru (SP), Roberto Lemos dos SantosFilho, em artigo publicado no dia 19 de abril (Dia do Índio) de 2007, enfatiza ereafirma como aspecto fundamental que a Constituição de 1988 assegurou aosíndios o direito à diferença.A Constituição reconheceu a multietnicidade do país, rompeu erelativizou a postura universal predominante excludente das diferenças,imposta por regras fundadas em ideologia homogeneizante,criadoras do sujeito abstrato, individual e formalmente igual. Eminequívoco vigor no Brasil desde 19.04.2004, a Convenção 169da OIT impõe aos Estados signatários o dever de reconhecer que adiversidade étnico-cultural dos povos indígenas deve ser respeitadaem todas as suas dimensões. A Convenção 169 da OIT obriga osgovernos a assumirem a responsabilidade de desenvolver ação coordenadae sistemática com vistas a proteger os direitos desses povose a garantir o respeito pela sua integridade, e garantir o gozo plenodos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculosnem discriminação (...) O avanço do trato da questão indígena


pelo sistema normativo brasileiro é fato. Contudo, a eficácia dasgarantias postas ainda não é evidente. Com efeito, reiteradamenteocorrem situações onde o Judiciário não aplica devidamente osdireitos consagrados aos índios pelo sistema positivado, proferindodecisões amparadas em doutrina e jurisprudência fundadas naultrapassada visão integracionista, que via o índio como um serfadado ao desaparecimento, obrigado a se amoldar ao padrão dasociedade envolvente (SANTOS FILHO, 2007, p. 1-2).Esta reflexão proposta pelo magistrado aponta os caminhos a serem seguidospelo Estado brasileiro, ou seja, este deve respeitar e assegurar a aplicação dasnormas constitucionais e estabelecer políticas e mecanismos para que tais direitossejam devidamente implementados.O magistrado também aconselha o Poder Judiciário a rever seus conceitosquanto aos povos indígenas, com vistas a se relacionar com o Direito a partir dorespeito às diferenças, e entender o Brasil como um espaço onde coabitam diferentesculturas e que estas estão perfeitamente protegidas pela legislação.O Governo Federal, a quem o legislador incumbiu de promover e executaras políticas para os povos indígenas, deve se estruturar administrativa e financeiramentea fim de cumprir com as determinações legais e garantir que todos ospovos tenham, por parte do Estado brasileiro, o amparo, a proteção e o respeitoaos seus direitos humanos, especialmente quanto à demarcação e usufruto desuas terras, a promoção e execução de políticas públicas diferenciadas e o respeitoétnico e cultural.Apesar dos graves problemas, nos últimos 40 anos, os povos indígenas intensificaramsua participação na vida política, fortalecendo com isso, no seio dasociedade, o reconhecimento dos seus direitos. Nesse sentido foi fundamentalmenteimportante a consolidação do movimento indígena, articulado de Nortea Sul do Brasil. Esta mobilização tem sido uma resposta à política integracionistado Governo Federal e ao expansionismo desenvolvimentista, que avança para ointerior dos territórios e terras. Hoje há significativos avanços, no entanto caminhosdevem ser percorridos para que efetivamente sejam assegurados aos povosindígenas seus direitos humanos.A resistência indígena vem sendo gestada em articulação com outros segmentosda sociedade e aponta para a humanidade, a possibilidade de um sistemade vida estruturado em experiências do “bem viver”. Este sistema vem sendo, aolongo dos séculos, tecido e propagado entre as culturas indígenas e pretende ser14 - OS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS - Roberto Antonio Liebgott305


um projeto de vida concreto, capaz de revolucionar o modo de pensar e de interagircom a natureza e entre os seres humanos.No entanto o “bem viver” exige uma mudança radical, pois pretende colocaro homem, não como centro, mas como parte da natureza e implicado com tudoo que acontece com a terra, com os animais, com o meio ambiente. É uma mudançana forma de organizar a vida social, considerando que os interesses coletivosprevalecem sobre os interesses individuais.A base nas relações deve ser a solidariedade, pois a vida é vivida em rede, etodos têm necessidade uns dos outros. É uma mudança nas estruturas econômicas,reconhecendo que o desenvolvimento deve ser pensado para resguardar e potencializara vida e, assim, não cabem projetos de exploração abusiva dos recursosnaturais e nem aqueles que se baseiam na exploração do ser humano. É, por fim,uma mudança política, que visa à constituição de uma sociedade fundamentada najustiça, na partilha, no respeito às diferenças, sem manutenção das desigualdades.Caberá a todos uma reeducação, fundamentalmente daqueles que governamou governarão nosso país, nosso planeta. Os exemplos mostram que isso é possível.PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS306REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBECKER, Itala Irene B. Os índios Charrua e Minuano na antiga BandaOriental do Uruguai. Porto Alegre, PUCRS, 1982. (Dissertação de Mestrado).GOULART. Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. 3. ed. Porto Alegre,EST/Martins Livreiro., 1978.CHAMORRO, Graciela. Decir El cuerpo: Historia y etnografía del cuerpo enlos pueblos Guarani. Asunción. Editoria UFGD, 2009.BRIGHENTI, Clovis Antonio. Estrangeiros na própria terra: presença guaranie Estados Nacionais. Florianópolis/SC: EdUFSC/ Chapecó/SC: Argos, 2010.CIMI – Conselho Indigenista Missionário, Revista Mensageiro, n. 154, novembroe dezembro de 2005.CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1982.Comissão de Cidadania e Direitos Humanos/Assembleia <strong>Legislativa</strong> do RS. ColetivosGuarani no Rio Grande do Sul, territorialidade, interetnicidade, sobreposiçãoe direitos específicos. Porto Alegre: CDDH, 2010.


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S/ título – acrílico s/madeira – 44,5 X 31cmRomeu Figueiró da Fontoura Borba – Oficina de Criatividade/ HPSP


15 HUMANIDADES ÉTNICAS:“SOMOS IGUAIS, POIS RADICALMENTEDIFERENTES”Pedro Francisco da Silva Filho 216“Permanecer numa espécie de ingênua concepção sobre as coisase as gentes ou permitir-se assumir a estranheza frente ao diferente,ao diverso que, até então, sempre se pensou ser ou deverser igual? Permanecer no Lugar Comum, a partir de uma visãolinear, monótona, uniforme do real ou permitir-se o entendimentodinâmico, multifacetado, capaz de surpreender-se com onaturalmente diferente neste mesmo real? A igualdade pode serconfundida com uniformidade? Há liberdade na uniformidade?Há espaço ontológico de ser quando, justamente, não deixamos--ser o que essencialmente o outro é?” (Introdução ao Estatuto daIgualdade Racial – Cartilha PSB <strong>2011</strong>)Resumo:A auto percepção e a percepção que o humano tem do outro, etnicamente falando, será definidorapara que entenda a si mesmo, para que entenda a outrem e para ser entendido enquantoser humano. Sem o suporte de conhecimento sobre a diversidade étnica, não entenderemosa pluralidade de humanidades provedoras da existência humana. Este artigo versa sobre atemática das várias Humanidades Étnicas através de reflexão amparada na desconstruçãoda singularização e restrição dos conceitos. Objetiva provocar questionamento sobre umademanda chave, em nível de entendimento sobre etnia, qual seja: como se pode entender ashumanidades que surgem por causa das etnias? O artigo é proposição de metodologia paraanálise desta radical reflexão.15 - HUMANIDADES ÉTNICAS: “SOMOS IGUAIS, POIS RADICALMENTE DIFERENTES” - Pedro F. da Silva FilhoPalavras-chave:Etnia, humanidades étnicas, conceito de realidade, cosmovisão, pluralidade, ontologia.216 Chefe de Gabinete de Líder (Miki Breier), Professor de Filosofia, Música e Ensino Religioso,pós-graduado em ‘Filosofia, Ética e Política’, ‘Metodologia do Ensino’ e em ‘Supervisão eOrientação Escolar.’309


15.1 CONTEXTO E PROBLEMATIZAÇÃOPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS310A temática das Humanidades Étnicas, que tenho me debruçado, enquantopesquisa nos últimos tempos, será concebida, também neste artigo, como precedentee gênese necessária para qualquer historização sobre o Movimento daNegritude em nível local, regional, universal. Por exemplo: o Movimento Negro,historicamente existente no RS, se consolidou a partir de uma das visões negras demundo possíveis sobre o Humano. Optar refletir sobre esta (e não aquela) visão édar-se conta de que não há unanimidade e unicidade quanto às visões negras demundo que se possam ter sobre o Humano e, ainda, constatar que, consciente ounão, expressar visão unilateral sobre a Humanidade Negra acaba mais limitandoo próprio conceito de Negritude a partir de uma matriz de pensamento padronizadae preconcebida do que ampliando-o ou democratizando-o no que tangea sua compreensão.Permita-se pensar: qual a visão negra de mundo que foi produzida pelosnegros no Rio Grande do Sul? Que condições a geraram? Seria possível a “ex--escravos”, naturalizados à força neste estado, manter, gerir ou resgatar uma concepçãode mundo originalmente negra? Seria possível a autenticidade ancestralem seus pensamentos e atos? Seria necessária esta autenticidade a eles? Como seconstituiria, em nossos dias, e como se constituiu, ao longo da História de nossoestado, a Humanidade provinda da Negritude em nível conceitual e existencial?O que significa ser Ser Humano Negro? A partir de qual concepção se poderia delineareste conceito ao longo da História Rio Grandense e em nossos dias? Seriapossível, hoje, haver cultura verdadeiramente negra, seria possível vivenciá-la? Oque definiria algo como essencialmente Pensamento Negro em nossos dias? Quantoda influência da cultura não negra e, por vezes, opressora e negadora da matrizoriginal negra, se radicou/radica subliminarmente no pensamento negro hodierno?Seria possível, no Brasil ou no Rio Grande do Sul, uma cultura essencialmentenegra ainda hoje? Seria necessário que houvesse tal cultura? Seria possível, emnossos dias, em nosso país um purismo étnico? Seria necessário?Estas são algumas das inquietantes interrogações que, na minha compreensão,a História foi constituindo, em forma de provocação, ao sentimento e à razãoimpelindo-os a procurar respostas estruturantes ou, no mínimo, refletir, nãoapressadamente, sobre.Sem dúvida, tais questionamentos elucidam a complexidade posta sob aquestão mesma da essência da Negritude que merecerá oportunamente apro-


fundamento meticuloso. Este artigo, no entanto, centrará sua análise a partir daconvicção de que:a) a alteração da visão de mundo (cosmovisão) sobre o que chamamos real,pluralizando-a e instrumentalizando-a, é, sem dúvida, uma postura metodológica,que alarga a concepção sobre este mesmo real e que propicia aosseres humanos poder ser, enquanto indivíduos e etnias, a partir de si mesmose da materialização autêntica e intransferível de sua existência no mundo,excluindo-se, definitivamente, modelos padronizados e preconcebidos deser, fazer, conviver (já que a multiplicidade é característica do próprio real);b) que há outras Humanidades e outras formas legítimas de ser Ser Humanoe/ou de o humano ser;c) que há outros paradigmas ontológicos de humanidade.A visão sobre a realidade que se instaurou, em uma boa parte do mundochamado “capitalista”, potencializou a discriminação, o racismo, a intolerância, acompetitividade, o consumismo exacerbado, a hierarquização étnica; ressaltou aunilateralidade na análise e na constituição dos fatos e das coisas do mundo. Semdúvida, envoltos neste contexto, a maioria de nós temos dificuldade de pensarmose agirmos para além dos modelos estereotipados de o humano ser, em todos osníveis, oriundos dessa cultura.Na contramão desta lógica, este artigo quer fazer pensar sobre o diverso, sobrea multiplicidade de visões e sobre a constituição, tão humana quanto, de todasas visões, mesmo que forjadas sobre matrizes absolutamente diferentes e, muitasvezes, incompatíveis. Não há quadro de comparação entre as etnias diferentes anão ser por um exercício didático de ver ou tentar ver, naquilo que se mostra eque eu consigo abstrair, o todo outro; não há tábula, já escrita, onde devamos, aolê-la, nos inspirar e, de certa forma, reproduzi-la. Não há ou não deveria havernormatização, padronização, generalização de entendimento quando se trata,ontologicamente, de etnia, “pois cada um é cada qual”. Somos étnica e essencialmentedistintos. Entender a diferença – e não a igualdade, como constitutivoradical da relação étnica entre os seres humanos é pressuposto “sine qua non” parase entender a legítima individualidade no ser de cada etnia.15 - HUMANIDADES ÉTNICAS: “SOMOS IGUAIS, POIS RADICALMENTE DIFERENTES” - Pedro F. da Silva Filho311


15.2 HÁ OUTRAS HUMANIDADES E OUTRAS FORMASLEGÍTIMAS DE SER HUMANO E/OU DE O HUMANO SERPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS312A questão da negritude, numa abordagem que: possa fundamentar a possibilidadede se entender o real a partir de uma cosmovisão advinda das HumanidadesÉtnicas; da constatação de que a igualdade entre os seres, inclusive os humanos,se fundamenta na sapiência e no convencimento sobre sua radical e estruturantediferença que se evidencia no convencimento, ao menos metodológico, de queHumano, Humanidade são ou podem ser conceitos equívocos, múltiplos e atéabsurdos (enquanto não subservientes a uma mesma e determinada racionalidade)se coloca como central para o entendimento da pluralidade das humanidades.Os conceitos ligados à humanidade não são ou não deveriam ser unívocosou consensuais ou uniformizantes ou padronizáveis. Todos e todas, etnicamentediferentes, possuem a mesma dignidade justamente por serem absoluta, essenciale constitutivamente diferentes.Esta diferença não se denota apenas na evidente não similaridade ou simultaneidadeem nível de costumes, jeitos de ser, vontades pessoais ou culturais expressasna História. A diferença não é de pessoa para pessoa. A diferença estruturante daqual escrevo é de etnia para etnia.As etnias simplesmente são. Elas não evidenciam a sua essência ou, por outra,esta não se torna cognoscível, exclusivamente, a partir da correlação de umas comas outras. Elas são independentes no ser umas das outras. Este “em si”, imbricadoem cada etnia, deveria impedir que, a utilização de paradigmas lineares deVerdade/Moralidade/Conhecimento/Cosmovisão, reféns e subservientes a umacultura hegemônica específica, fossem utilizados para o entendimento das etniasexistentes. Contrário a isso, infelizmente, pode-se ver manifestado, de maneirapródiga, ao longo de toda a história do povo negro e de outros povos que, porum motivo ou outro, foram subjugados sócio-economicamente.O problema metodológico que se coloca, nesta perspectiva, é que “aqueleque observa e quer conhecer” alguma etnia terá, à sua frente, o enfrentamentocom a necessária desnudação étnica em dois níveis:1º nível – terá que superar ideias preconcebidas sobre si mesmo que o fazemser, pensar e agir desta e não daquela forma, pois tais formatações intelectuaise vivenciais, que lhe foram passadas e são um dado de sua hodierna existência,muito provavelmente, já se constituíram nele como que viciadas ou, no mínimo,condicionadas, no nível da cultura, justamente por formas de ser, pensar e agir


provindas da educação, da classe social, do gênero, do preconceito racial e de outroscondicionantes do humano. Tais condicionamentos dificultarão e, quem sabe,impedirão que ele possa conceber o outro ente étnico na sua verdade existencial.Neste nível de intelecção, “aquele que observa” a outra etnia teria que, quantomais possível, libertar-se dos preconceitos sub e super dimensionados que temsobre si e sobre a capacidade de sua intelecção.No 2º nível, à semelhança do 1º, “aquele que observa” deverá buscar a superaçãodas ideias inculcadas sobre o “todo outro” e da sua capacidade de intelecçãosobre o que é diferente dele. Estes dois níveis são similares e ocorrem concomitantementeno ser.Seria possível, apesar disso, entender o etnicamente diferente na singularidadeque ele é? Seria possível a mim, enquanto sujeito e como também um enteétnico, “des-velar-me” a ponto de ser compreendido por mim mesmo e por outros?E, ainda, seria necessário este entendimento?Quem sabe a atitude mais honesta frente a diversidade étnica não seja osilêncio?Quem sabe a atitude mais adequada frente a minha própria complexidadeétnica não seja o silêncio?Tal atitude pode, sob determinado viés, ser absolutamente científica, poisdeixar-ser o Real, não o limita, nem o enquadra... apenas... deixa-o ser... mostrar-se.O silêncio não é passivo ou indolente. Ele pode ser filosófico, pois admitee presume a admiração ao diverso, presume a surpresa, ver o outro como ele semostra. E, desse encantamento, pode advir a intelecção que ouve, auscuta antesde preconceituadamente definir-se sobre.Quanto às outras humanidades? Cabe-nos o silêncio.Pertencemos a mesma raça, pois humanos todos somos. Toda a conceituaçãoque pode advir dessa concepção de ser humano, fundamentará o princípiode igualdade, justamente por sermos essencialmente diferentes e pertencentes àsvárias Humanidades, ou seja, várias formas autênticas de sermos seres humanos.Somos feitos da “mesma coisa”; fragilizados pelas mesmas coisas; frutos denossas escolhas, experiências e decisões da mesma forma. Fadados à morte e aodesaparecimento enquanto indivíduo da mesma forma. Iguais, porém com exteriorizaçãoétnica de nossas humanidades visceralmente diferentes.É a diferença étnica essencial que fundamenta a existência e a necessidade deigualdades sociais, econômicas, etc.15 - HUMANIDADES ÉTNICAS: “SOMOS IGUAIS, POIS RADICALMENTE DIFERENTES” - Pedro F. da Silva Filho313


15.3 RELEVÂNCIA DA ETNIA ENQUANTO CONSTITUTIVA DOSERPARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS314O acento central desta reflexão (deste artigo) quer ser a constituição e relevânciada etnia, que se denota para além da questão de raça, na construção ontológicade cada um dos seres humanos, cada uma das espécies.A etnia confere a cada humano um caráter ontológico que o individualizaenquanto grupo sócio/econômico; sensório/existencial historicamente situado.O conceito de Humanidades Étnicas supõe que há formas diversas, todaslegítimas, de sermos seres humanos. No Ocidente, a Tradição judaico/cristã, comojá referido, aliada a europeização racionalista da visão de mundo no que tangeà formação de uma lógica que priorizasse o uno e não o múltiplo; a concepçãolinear de História; o gosto pelo consumismo; a instauração e naturalização dacompetição selvagem entre os tidos como civilizados; a necessidade da supervalorizaçãodo EU em detrimento do todo outro podem ter conduzido o humano a,praticamente, não conseguir analisar a realidade de forma plural – como de fatoela, segundo minha convicção, se apresenta.Definiu-se, garantiu-se a manutenção da extratificação cultural e social apartir da crença na definição UNA de ser humano.Aristóteles definiu-nos e definiu-se como “animal racional”; outras visõesfilosóficas percebem o humano como ser que pensa, ser que faz, ser que sabe quesabe, ser que sente, ser feito para morte, ser aí, ser em comunhão.Neste sentido, se poderia perguntar: de que humano estamos tratando? Aose falar ou escrever sobre o ser do humano, por vezes, parece que se está supondoque há um pressuposto, um parâmetro, um paradigma universal sobre este ser...e não há!Ser humano é um conceito difuso, quem sabe até mais equívoco do queunívoco. Isto ocorre pois a humanidade se dá. Ela é um dado do real. E o realprescinde da padronização racional sobre a etnia. A etnia se dá no mundo deformas variadas orientadas por lógicas internas e independentes umas das outras,por vezes, paradoxais até!. Ela, na verdade, se dá, se materializa nas Humanidades,formas de ser, intrinsecamente carregadas, constituídas de um conteúdo étnicoespecífico e misterioso.A necessidade de padronizar, proveniente e característica de uma ou outradas culturas que se esteriorizaram em nosso planeta, parece que só permite a uns


e outros ver e entender os paradigmas que foram como que impressos em seuhorizonte de análise; mas há inúmeros outros paradigmas existentes. Na verdade,há tantos quantos forem as etnias humanamente concretizadas.A etnia dá ao ser humano uma diferença de ser e no ser. O Humano quehabita numa e noutra etnia é diferente. Então não há uma definição conclusa deser humano. “O que é o ser humano?” Esta definição vai depender de que lugarétnico estamos analisando; que elementos, que pressupostos, que logicidade étnicao interlocutor se utiliza para conceituar.15.4 GUETIZAÇÃO DA NEGRITUDEAinda seria interessante de se refletir, neste pequeno ensaio, sobre uma dasconsequências práticas que, para dentro do próprio Movimento Negro, o víciode vislumbrar o mundo uniformemente causou. Ao denominar vício quero frisarque a visão unilateralmente esteriotipada sobre a Humanidade é característica demuitas experiências culturais, inclusive a do povo negro em muitos momentos.Chamarei a este movimento viciante de Guetização da Negritude.Guetização é quando o negro assume o espaço – concedido – para falarsobre negro e suas questões. Este ritual – permitido – faz com que se reforce ou,no mínimo, se apreenda a ideia de que é o negro, quase que exclusivamente, quedeve falar sobre negritude. Ele ocupa as tribunas, no tempo que lhe é devido –previamente estipulado – fala somente sobre as suas coisas e, depois, volta para oseu lugar. Mas, o que são as suas coisas? A estrutura político-social viciou-se dessaGuetização e o Movimento Negro, em muitos momentos, reproduz esta estrutura.Coisas de negro não são também as coisas da humanidade ou das Humanidades?Versar sobre todo o tempo e todo o espaço não deveria ser coisa de negro também?Guetização é o negro ocupar o espaço, a partir de normas preconcebidas,por um determinado tempo. A Guetização, assim como o “Branqueamento”, éeficaz e aprisionou a cabeça de negros e não negros no decorrer de nossa História.Pensemos: se o negro ocupa o espaço por um tempo e, depois, volta “ao seulugar”... o espaço ocupado, então, é de outrem – que lhe cedeu, por bondade oupor pressão... tanto faz! Mesmo com a tomada de espaços pelo negro por justapressão, se suporá e se ratificará, com a sua subsequente desocupação, que o espaço/tempotinha um dono – e que não era um espaço negro. O espaço ocupadopelo negro tem se dado nas intermitências, nas lacunas.15 - HUMANIDADES ÉTNICAS: “SOMOS IGUAIS, POIS RADICALMENTE DIFERENTES” - Pedro F. da Silva Filho315


O que se está querendo revelar aqui, é que o espaço do negro é o espaço dohumano e, por conseguinte, todo o espaço lhe pertence. E, por decorrência, todoo tempo/espaço pertencem às etnias em suas formas diferentes de exteriorizar oser do humano. Não há parâmetro universal. Há diferentes, essencialmente diferentesHumanidades.A atitude de tomar o espaço do dono, tem sentido numa relação escravocrata,mas não numa relação democrático-partidária por exemplo ou supondo-seuma sociedade que busca a igualdade entre os diferentes. Supor que há espaçoespecífico, predefinido para o negro é o que chamo de Guetização.A Guetização se percebe quando denotamos que só o Movimento Negrofala sobre o negro; quando o Movimento Negro só sabe falar de negro. Felizesdos masculinos/brancos “normais” que falam daquilo que “não são”: índios, deficientes,ciganos, mulheres... feliz do negro que fala sobre as coisas do humano...sobre economia, sobre mulheres, juventudes, cultura, sobre ecologia, sobre globalização...Virá o dia!PARTE III - SOCIEDADE DE DIREITOS HUMANOS31615.5 CONCLUSÃOO negro tem que ser ouvido, ter vez e influência, pois a negritude faz partede uma das humanidades que o ser humano é. A mulher tem que ser ouvida, poisa feminilidade faz parte de uma das humanidades que compõe o que o humano é.O cigano tem que ser ouvido, pois a sua lógica pertence a uma das humanidadesque o humano é.Compartimentados fomos tornados a ponto de não vermos o outro, tambémhumano, em mim. Vemos a realidade pelo prisma racial, étnico, de gênero, declasse, de língua por uma contingência a partir do tipo, do jeito de ser de nossaexistência... somos parte... Humanidades. Ser parte, no entanto, não significa quenão somos ou não devamos recuperar o todo em nós – pois a parte é também otodo; não é diferente ou estranha a ele. “Re-unirmo-nos” enquanto todo, quemsabe seja a verdadeira arte.Negro é Cosmovisão: é uma das chaves de leitura para interpretação do Reala partir de uma concepção da não existência de unicidade na percepção deste.Deixa-ser as Humanidades étnicas, ouvir-lhes a palavra “deixar dizer a sua palavra”é metodologia para compreender o real nas suas múltiplas facetas, por isso émister que se consiga desvelar uma racionalidade a partir da Etnia.


S/ título – acrílico/madeira – 35 X 34,5cmMauro Salvatti – Oficina de Criatividade/ HPSP


16 SITUAÇÃO CARCERÁRIA NO RIOGRANDE DO SULDeputado Estadual Jeferson FernandesResumo:O presente artigo relata a situação carcerária no estado do Rio Grande do Sul e, acima detudo, descreve inúmeras situações nas quais os direitos humanos estão sendo violados nas diferentescasas prisionais. Além de descrever estas situações lamentáveis, o autor aponta sugestõesclaras, objetivas e factíveis para termos novos horizontes no estado que já teve as melhoresqualidades de vida neste país. Este artigo retrata meses de trabalho de uma subcomissão quefez um belo trabalho dentro da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia<strong>Legislativa</strong> do RS.Palavras-Chave:Direitos humanos, gênero, presídios, violação, lei, ética, justiça.16.1 APRESENTAÇÃO DO PROBLEMAO surgimento da Subcomissão da Situação Carcerária do Rio Grande do Sulpara avaliar a atual situação prisional no Estado decorreu da preocupação dosdeputados participantes da Comissão de Direitos Humanos com os resultadosapontados pelo Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça.O Mutirão foi idealizado a partir da vigência da Resolução Conjunta nº01/2009 CNJ/CNMP e da Resolução nº 89/2009 do próprio CNJ. No Estado doRio Grande do Sul, o projeto foi instituído em 14/03/<strong>2011</strong> com solene aberturano Palácio da Justiça, estando presentes diversas autoridades.Tal mutirão relatou como é a superlotação das casas penitenciárias, os casosde corrupção, a organização do crime a partir das cadeias e outras situaçõespreocupantes. Apresentou também os bons exemplos de práticas de reeducaçãodos apenados.A subcomissão foi então criada objetivando traçar a situação carcerária do16 - SITUAÇÃO CARCERÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL - Deputado Estadual Jeferson Fernandes319


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSRio Grande do Sul e com isto contribuir na formulação de políticas públicas. Ésabido que a situação beira ao caos, já houve a interdição de importantes casasprisionais e não pode-se esperar por uma próxima. Necessita-se de olhar pela dignidadedos trabalhadores do sistema prisional, olhar para a dignidade dos apenadose familiares que sofrem a pena junto com o detento.Abordar a questão da segurança pública enfocando o sistema prisional doRio Grande do Sul é uma tarefa complexa. E para melhor compreensão, foramrealizadas reuniões com diversos órgãos e autoridades a fim de retratar o sistemaprisional do Estado do Rio Grande do Sul sob as mais diferentes óticas. Esmiuçaros fatos visando compreender esta “outra” sociedade que muitas vezes é regidapor leis próprias, e onde o não cumprimento destas pode ser fatal, é fundamentalpara a instituição de uma política de governo realmente eficaz.Apesar das dificuldades de se trabalhar com um tema tão complexo, à beirado caos, há uma forte motivação: a de exemplos vivos e atuantes, de pessoas querealmente se preocupam em garantir os direitos e garantias fundamentais de cadaindivíduo, esteja este privado de sua liberdade ou não, conforme dispõe nossaConstituição Brasileira, basilar de todo o ordenamento jurídico.Diante disso, o que instiga são as seguintes questões: Que exemplo a sociedadee o Estado estão dando aos presos se não respeitamos seus direitos fundamentaise lhes negamos acesso à justiça? O que se pode esperar de um ser humano – quenão perde essa condição a despeito de ter cometido crime, amontoado em masmorrasfétidas, submetidos à tortura, à toda sorte de humilhações e maus-tratos,transformado em refém do crime organizado?A fim de oferecer uma visão compartilhada dos problemas e das soluções,colaboram diversas entidades que de alguma forma estão ligadas aos direitos humanosno Estado do Rio Grande do Sul. São estas: Ministério Público do RioGrande do Sul, Defensoria Pública, Marcos Rolim, Sindicato dos Agentes Penitenciáriosdo Rio Grande do Sul. – AMAPERGS, José Aquino – Desembargador,Sidinei Brzuska – Juiz da Vara de Execuções Criminais, Lacir Ramos – Ex detento,ONG Guayí, Superintendência de Serviços Penitenciários – SUSEPE e foramrealizadas visitas técnicas à Penitenciária Estadual do Jacuí – PEJ e ao PresídioEstadual de Santa Rosa.No curso do presente trabalho verificou-se pontos importantes apontadospor diversas autoridades. A fim de demonstrar algumas perspectivas, destacam-se:320


16.2 REVISTA ÍNTIMAPonto pautado em praticamente todos os encontros foi a revista íntima realizadaprincipalmente em mulheres visitantes. Todas as autoridades foram unânimesem discordar dos atuais métodos adotados.Hodiernamente algumas penitenciárias do Estado ainda adotam métodosarcaicos e extremamente invasivos. Há casos de visitantes que devem se despir nafrente das funcionárias e após o despimento, as mulheres ainda são obrigadas a seacocarem em cima de um espelho para que as agentes penitenciárias verifiquemse não há objetos introduzidos na vagina.Outro método ainda adotado é o semelhante ao ginecológico onde a visitanteapós despida é revistada por uma funcionária, que com uma lanterna faz oprocedimento. Estes procedimentos são uma afronta ao Direito de Privacidade.É uma violência contra a mulher visitante e também para a agente que o realiza.Durante o trabalho descobriu-se que o Estado do Rio Grande do Sul já regulamentouas visitas no “Regulamento Geral para Ingresso de Visitas e Materiaisem Estabelecimentos Prisionais da Superintendência dos Serviços Penitenciários”.Segundo este documento as visitas não podem ser obrigadas a serem revistadas.Porém havendo recusa a visitante terá a suspensão temporária de visitaçãopor ocasião da revista, as visitantes deverão permanecer com suas roupas intimasalém de estar garantido que não haverá contato físico com a profissional responsávelpela revista.Apesar da normatização, verificou-se que muitos estabelecimentos prisionaisnão respeitam, ou pior, não conhecem o regramento.Concluiu-se então, que deve ser aplicado e amplamente divulgado o referidoregulamento em todas as penitenciárias do Estado do Rio Grande do Sul.Sugerindo-se também a fixação do Regramento no local de entrada das visitas detodas as penitenciárias gaúchas, não podendo ser toleradas orientações contráriasao Direito de Privacidade e ao estipulado pela SUSEPE.16 - SITUAÇÃO CARCERÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL - Deputado Estadual Jeferson Fernandes16.3 TRABALHO E EDUCAÇÃOOutro ponto também abordado por praticamente todos os convidados quecontribuíram para a elaboração do trabalho foi a ociosidade no interior das penitenciárias.321


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS322A falta de trabalho, de atividades recreativas, de estudos, de aprendizado técnicono cárcere, são causadores de uma estadia ociosa e sem futuras perspectivas.A Lei de Execuções Penais – LEP, prevê a remissão da pena em seu artigo126. Segundo a norma legal, a cada 03 (três) dias que o preso trabalhar terá 01(um) dia de pena remido e para cada 12 (doze) horas estudas haverá 01 (um) diade pena reduzido.Apesar do incentivo legal a realidade é outra. Falta trabalho, locais de estudoe atividades profissionalizantes. Estas atividades são fundamentais para garantir,que após a soltura, estes cidadãos não voltem à marginalidade.Por mais calamitosa que seja a situação, verificou-se no curso dos trabalhosque alguns importantes projetos estão sendo implementados. E acredita-se que asexperiências que vem em prol da melhoria da vida no cárcere sempre serão muitoexitosas e preparam para a vida fora dele.A parceria da SUSEPE com a Secretaria da Educação vem implementandoNúcleos de Educação de Jovens e Adultos, preferencialmente com educaçãoprofissional junto com o ensino regular. Também há um esforço para estabeleceruma política pedagógica orientada para os detentos e adequação dos presídiosantigos à prática educacional. A situação carcerária está sendo vista pela direçãoda SUSEPE como um problema transversal.Por isso, está realizando cursos de políticas restaurativas para os agentes penitenciários,construindo novos presídios com locais apropriados para trabalho epara o estudo, realizando concurso público para o ingresso de novos funcionários,buscando incansavelmente alternativas de ressocialização para os presos. Isso deixaà todos mais otimistas, mas nunca conformados e acomodados.16.4 INFRAESTRUTURAOutra problemática pautada foi a infraestrutura. Neste ponto também nãohá qualquer divergência entre os conhecedores do sistema carcerário. A infraestruturaé péssima.O primeiro problema é a falta de espaço físico. A população carcerária cresceprogressão geométrica enquanto o número de vagas aumenta em progressãoaritmética, a consequência deste binômio é que não existe espaço físico suficiente.A realidade é que a maioria das galerias encontram-se tão lotadas que os pre-


sos precisam realizar rodízio até na hora de dormir. As celas possuem 2 a 3 vezesmais presos do que comportam.Certamente a construção dos novos presídios anunciados minimizará o problema,mas não será a solução. Sanar o problema estrutural por completo necessitade pesados investimentos financeiros.16.4.1 FuncionáriosApontou-se também, com ênfase, a situação dos funcionários do sistemacarcerário. A situação destes é difícil, as condições de trabalho são precárias, osequipamentos utilizados são obsoletos, as viaturas estão sucateadas, os salários sãobaixos, as jornadas de trabalho extensas e o risco à vida é permanente. Além detodas essas obstruções, o trabalho destes profissionais carece de reconhecimento.Verificou-se que a massa carcerária cresce, porém não há aumento no númerode servidores, nos últimos 10 anos este permaneceu praticamente estável.Todos os entrevistados pela Subcomissão apontaram a necessidade de valorizaçãodo servidor que atua na linha de frente do sistema penitenciário do RioGrande do Sul. Significa qualificação permanente, atendimento psicológico, remuneraçãoadequada e boas condições de trabalho.16.4.2 Comissão de psicologia criminalPauta que carece destaque é o exame psicossocial realizado nos presos desdeo seu ingresso até sua soltura, ou pelo menos, que deveria ser realizado.O exame criminológico, previsto no art. 34 do Código Penal e 8º da Lei deExecuções Penais (Lei nº 7.210/84), é o procedimento ao qual o preso se submete,ou que não se submete (como ocorre na realidade), para que seja elaborado umdiagnóstico do preso.Importante ressaltar que a Lei nº 10.792/2003 alterou a Lei de ExecuçõesPenais e o Código de Processo Penal. A nova legislação tratou do exame criminológico,não o extirpando do ordenamento jurídico, porém retirando seu caráterobrigatório, sendo ainda possível sua realização a critério do magistrado.O exame criminológico é a pesquisa realizada por profissional habilitado,dos antecedentes pessoais, familiares, psíquicos, psicológicos do condenado, para16 - SITUAÇÃO CARCERÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL - Deputado Estadual Jeferson Fernandes323


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS324a obtenção de dados que possam revelar a sua personalidade e as condições sociaisassociadas à sua conduta criminosa. Este procedimento é imprescindível para aindividualização da pena.O acompanhamento ao preso, segundo os ouvidos, deveria ser realizadoem diferentes estágios. Primeiro, quando o preso ingressasse no estabelecimentoprisional e no decorrer do cumprimento da pena, afim de se avaliar seu quadroclínico. Também no final da pena, para se averiguar a possibilidade do preso serreinserido na sociedade. Porém, na realidade ocorre apenas uma entrevista, a qualse dá no final do cumprimento da pena, e não dura mais de uma hora.Após o exame era realizado um laudo, laudo este que subsidiava o Juiz daVara de Execuções Penais para o proferimento de suas decisões. Ou seja, os laudosproferidos desfavoravelmente eram verdadeiras sentenças.A mudança que impede a elaboração, pelos psicólogos, de documentos escritospara subsidiar a decisão judicial ocorreu no corrente ano, por intermédioda Resolução nº 12 do Conselho Federal de Psicologia. Um grande avanço, segundoo entendimento majoritário, já que não é competência dos profissionaisde psicologia a elaboração de sentenças – como ocorria na prática.Conclui-se enfatizando que são necessários encontros frequentes entre osapenados e os psicólogos, garantindo desta forma a individualização da pena e oadequado acompanhamento psicológico- tão importante para a ressocializaçãodos presos.16.5 MULHERESNo decorrer do trabalho da Subcomissão da Situação Carcerária uma situaçãodespertou especial atenção: a das mulheres presas, em suma pelas condiçõesprecárias e inadequadas nas quais as apenadas se encontram. Vale ressaltar queo Estado do Rio Grande do Sul tem apenas 03 (três) penitenciárias femininas.Situadas em Guaíba, Porto Alegre e Torres.As detentas que não estão nestes estabelecimentos encontram-se encarceradas,indevidamente, em prisões masculinas, havendo uma simples divisão de galeriasentre as dos homens e as das mulheres.As mulheres presas que se encontram em presídios masculinos são atendidaspor profissionais homens, não tem locais para permanecerem com suas crianças,


estão sujeitas à constantes violações pelos funcionários e pelos detentos, além denão contarem com uma infraestrutura adequada.Ora, a estrutura dos presídios masculinos não atende às necessidades femininas.Faltam locais para que as mães permaneçam com seus filhos, locais de amamentação,locais para consultas ginecológicas, entre outras coisas inerentes às mulheres.O mais doloroso para as apenadas é a distancia de seus filhos. As criançastambém sofrem muito com a reclusão das mães, uma verdadeira situação de abandono,permanecendo com familiares distantes, amigos, ou até mesmo recolhidasem instituições do estado.Até crianças menores de seis anos de idade, que segundo a Lei de ExecuçõesPenais, deveriam permanecer com suas mães para serem amamentadas são afastadaspor falta de estrutura dos estabelecimentos penais.Outro ponto referente ás mulheres que também carece destaque é o perfildas apenadas. Verificou-se, com base em dados estatísticos e também pelas conversasrealizadas, que elas estão na sua grande maioria presas por tráfico de drogas.Esse crime é o responsável por 89% das prisões na penitenciária feminina MadrePelentier.Porém, estas apenadas exercem papéis subalternos. Não são chefes nemmentoras. São mulheres que após o companheiro traficante ser preso assumemseu posto. São mulheres que tentam entrar com drogas nos presídios para “ajudar”seus parceiros. Enfim são funções secundárias. As que realmente ocupam funçõesde comando não chegam a equivaler 1% das mulheres encarceradas.Em virtude deste peculiar perfil das apenadas, os métodos de reabilitação,sejam de trabalhos ou de estudos, têm se mostrado bem sucedidos.Ressalta-se por fim que o perfil diagnosticado das detentas deve ser consideradopara implementação de mais políticas públicas voltadas às mesmas. Alémda latente necessidade de construção de presídios femininos.16 - SITUAÇÃO CARCERÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL - Deputado Estadual Jeferson Fernandes16.6 CONCLUSÃODepois de diferentes debates, oitivas, audiências e análises profundas constatou-sea ineficácia do atual modelo de aprisionamento, a falta de infraestrutura, anecessidade de investimentos, violação aos direitos humanos, baixas remunerações,categorias sem valorização, corrupção, etc.Inicialmente verificou-se que a perda da liberdade e a restrição do espaço325


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS326físico cria novas regras, entrando, então, em vigência a lei não escrita. Desde queingressam no sistema carcerário os presos tomam ciência das regras, eles sabemque devem respeitar as normas que regem a prisão, isso inclui o respeito incondicionadoaos comandos das facções.Constatou-se que internamente os detentos são hierarquicamente organizados.A organização é tanta que as galerias, também chamadas de “prefeitura”pelos presos, tem prefeito e até secretários. Porém a eleição dos mandantes é umamedida de força e não exatamente um procedimento democrático.Verificou-se, também, que os presos que ingressam no sistema prisionalsão tencionados, desde a chegada, à se vincularem à uma facção, caso ainda nãotenham uma. Para muitos, tornar-se membro de uma facção é uma questão desobrevivência.A facção protege os detentos que estão sob sua custódia, seja com ações internascomo segurança e fornecimento de insumos, seja por ações externas comoo atendimento aos seus familiares. Porém, a proteção oferecida pelas facções nãoé ação de caridade, a ajuda é cobrada com trabalho e lealdade eterna à facção.As facções são fortes e alguns pontos às fortalecem ainda mais. Por exemplo,o fato do Estado não fornecer os insumos necessários aos apenados. A prestaçãoda assistência material aos presos é feita pelas facções e pelos familiares, não peloEstado, são materiais de higiene, alimentação, vestuário...As drogas vendidas e usadas no interior dos presídios também carecemdestaque. Verificamos que, hoje em dia, a maioria dos presos que ingressam nosistema prisional é usuário de drogas, e os que não são acabam se tornando. Éuma maneira de tornar o cotidiano ocioso mais suportável.Com tantos usuários de drogas os estabelecimentos prisionais deveriam tertratamento para estes dependentes, porém não tem. Restando a reabilitação destesinfratores muito prejudicada.Outro ponto que observado é que a rotina dos presos é organizada. Há horáriopara acordar, tomar café, banho de sol e jantar. Porém, apesar das atividadesrotineiras os presos sofrem com a ociosidade.São delinquentes encarcerados em uma pequena e insalubre cela, muitossem trabalho, estudo ou qualquer outra atividade, durante intermináveis anos.Certamente mantendo suas mentes ocupadas com coisas boas, tornaria a cadeiamais segura e todos teriam uma maior possibilidade de reabilitação.Somente o isolamento, dissociado de outras medidas, não é capaz de recuperar.O sistema prisional, nos atuais moldes, é mero fator punitivo e que além


de não reabilitar, degenera. A realidade é que os detentos saem piores da cadeiado que entraram. saindo piores, estes cometerão novos delitos e novamente serãopresos e assim consecutivamente. É uma cadeia sem fim, daí a importância deenfrentar este sério problema de segurança pública.As visitas e as reuniões mostraram o que já era sabido, talvez não com adevida gravidade: a infraestrutura é péssima. A cela, xadrez ou ainda barraco émuito pequena para a quantidade de detentos, são homens e mulheres literalmenteamontoadas.A situação da parte hidráulica é pavorosa. Muitos vazamentos infiltram asparedes, o que torna ainda mais úmido o local. Particularmente no Estado doRio grande do Sul, a situação é ainda pior em virtude do nosso rigoroso inverno.Sendo comum os presos dormirem sob o chão de concreto em cima de colchõesde espuma fina que devido à umidade amanhecem encharcados.Ouviu-se, no curso da pesquisa, os funcionários que atuam na linha de frentedo sistema prisional: da SUSEPE e da Brigada Militar.Verificou-se que estes profissionais levam uma vida difícil, com baixos salários,jornadas intensas de trabalho, risco constante à vida, falta de reconhecimento,entre tantos outros problemas.Ouviu-se histórias de corrupção, que já parece intrínseca a neste meio. Muitosaceitam propinas, facilitam fugas, entradas de celulares, drogas. Certamente atosoriundos da convivência prolongada com a “malandragem”, a falta de um saláriodigno e as péssimas condições de trabalho. Claro, que no meio da corrupção hámuitos profissionais, que apesar das dificuldades inerentes ao trabalho, são honestose desempenham suas funções com maestria.Verificou-se a importância da religião na recuperação dos presos. A ajudadivina cria, além de um conforto espiritual, a esperança de uma nova vida paramuitos apenados.As visitas também merecem destaque. Constatou-se que a maioria dos visitantesé do sexo feminino, são mães, esposas, namoradas e filhas que, apesar deserem submetidas às revistas humilhantes, enfrentarem longas viagens e, sempreque possível, comparecem para dar alento ao parente preso.A visita ocorre, em média, duas vezes por semana, dependendo do estabelecimentoprisional. Poucos presos recebem regularmente visitas. A maioria dosfamiliares são pessoas pobres que moram longe dos presídios e os valores empregadosnas passagens de deslocamento desfalcam o orçamento. A consequênciadestas ausências é a revolta dos presos, o que torna a recuperação ainda mais difícil.16 - SITUAÇÃO CARCERÁRIA NO RIO GRANDE DO SUL - Deputado Estadual Jeferson Fernandes327


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS328Outro problema apontado, típico da cadeia moderna, é o uso indevido decelulares. Estes aparelhos telefônicos ajudam na organização criminosa dentro efora da cadeia, além de serem fonte de renda para alguns profissionais corruptos.O trabalho também verificou a inaplicabilidade da Lei de Execuções Penais.Diversos dispositivos são ignorados, e a Legislação ao invés de ser cumprida virouuma grande utopia.Ouviu-se reivindicação dos presos referentes a demora excessiva dos procedimentosdo Poder Judiciário. Verificou-se, que a reivindicação procede, masque não poderia ser diferente. A Vara de Execuções Penais de Porto Alegre, porexemplo, conta com apenas dois magistrados para atender mais de 4.000 presos.Para agilizar os processos a Subcomissão se mostrou favorável à instalaçãode uma Vara de Execuções Penais no interior do Presídio Central, situado emPorto Alegre. Certamente esta medida daria maior celeridade ao procedimento.Verificou-se que os presos não tem somente seus direitos violentados naprisão, a violação dos direitos humanos, em muitos casos, se iniciou na infância,na adolescência ou na juventude. O sistema carcerário é apenas reflexo, um feioreflexo dum passado de abandono da família e do Estado.Apesar da constatação de diversas falhas do sistema, findou-se o trabalho comuma esperança. Primeiro a esperança nas pessoas, acredita-se que o ser humano érecuperável. Segundo, a esperança de que o sistema está, aos poucos, mudando.São novas concepções, novos conceitos que estão sendo implementados e que embreve mostrarão seus frutos, bons frutos.Está na hora da sociedade, como um todo, analisar qual é a verdadeira finalidadeda prisão? Será uma vingança social, e apenas isso? Ou queremos realmente tratar?REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro,RJ, Revan, 2005.BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil.Brasília, DF, Senado, 1998.JUSTIÇA, Conselho Nacional de. Lei 7.210/84 Lei de Execuções Penais.


S/ título – gouache/papel – 42 X 60cmJorge Cruz Terra – Oficina de Criatividade/ HPSP


17 DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONALAO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR ECOMUNITÁRIAAnelise Silene de Souza Melo 217Luciane Barcellos de Almeida 218“Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educadono seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta,assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livreda presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.”Artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069de 13 de julho de 1990.Resumo:O presente artigo objetiva fazer um breve resgate de leis e garantias em relação ao acolhimentoinstitucional e a convivência familiar e comunitária. Coloca a importância da articulaçãoentre entidades e pessoas conectadas com a defesa dos direitos da criança e do adolescente,para a promoção da sua dignidade como pessoa em desenvolvimento. Além disso, aborda oacolhimento após o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, especificamente na Fundaçãode Proteção Especial do Rio Grande do Sul – FPERGS, comentando a forma atual deacolhimento institucional, a valorização da convivência familiar, a possibilidade de buscara família ampliada ou substituta e a necessidade da convivência comunitária como um referencialafetivo alternativo, valorizando os vínculos afetivos para o pleno desenvolvimentocognitivo, social e emocional na superação dos direitos violados.Palavras-Chave:Criança, adolescente, acolhimento institucional, convivência familiar e comunitária.17 - DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL AO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA - Melo e Almeida217 Graduação e Licenciatura em Ciências Sociais – UFRGS e Graduação em Pedagogia – UL-BRA. É Coordenadora de Apoio Estratégico da Fundação de Proteção Especial do Rio Grandedo Sul – FPERGS.218 Graduação em Pedagogia – UFPEL. Especialista em Educação. É Diretora Técnica da Fundaçãode Proteção Especial do Rio Grande do Sul – FPERGS.331


17.1 CONTEXTUALIZANDO O PROBLEMAPARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSDos direitos fundamentais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente– ECA, o direito à convivência familiar e comunitária tem se apresentado comoum grande desafio, onde a família, a comunidade, a sociedade em geral e o poderpúblico devem garantir com prioridade a efetivação deste direito. O programade acolhimento institucional deverá ser considerado a última alternativa comoproteção na situação de vulnerabilidade e risco social, tendo caráter excepcionale provisório conforme Art. 101 do ECA.Com relação ao acolhimento institucional, o ECA trouxe importantes mudançasreferentes ao atendimento, substituindo o Código de Menores, onde oatendimento era pautado pela assistência massificada, em grandes abrigos, distantesdos centros urbanos e das comunidades de origem, com número excessivo deabrigados, separados por faixa etária, sexo, problemas de saúde, separando irmãosconforme o perfil. As instituições totais eram edifícios enormes, com dormitóriosque alojavam um número exagerado de crianças, uniformizadas nas roupas e nasatitudes, e com comportamento infeliz. As crianças dos “depósitos” viviam umregime de segregação, gerando comportamentos considerados como vontade fraca,falta de iniciativa, passividade ou hábitos antissociais.Houve tempos em que a pobreza era motivo para que os pais deixassemseus filhos para a instituição cuidar, ou pelo contrário, que os filhos perdessem apossibilidade de conviver com seus pais, pois eram retirados deste convívio pelaausência de recursos financeiros da família. Mais uma vez o ECA está presentecomo uma lei importante para garantir o direito à convivência familiar e comunitária– Art. 23 – traz:A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivosuficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. ParágrafoÚnico – Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretaçãoda medida, a criança ou o adolescente será mantido emsua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluídaem programas oficiais de auxílio.332Observa-se que a relação afetiva que se estabelece com a criança é fundamentalpara a superação de dificuldades. As famílias deverão ser acompanhadaspara que tenham suporte para suplantar os obstáculos encontrados, pois o melhor


ambiente para o desenvolvimento da criança e/ou adolescente é no ambiente familiarsaudável. Gradativamente o desenvolvimento leva o sujeito à autonomia.A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reforça a garantiade auxílio para as famílias em seu art. 203 onde consta:A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentementede contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescênciae à velhice;II – o amparo às crianças e adolescentes carentes.Desta forma a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei Federal nº8.742, de 07 de dezembro de 1993, garante estes objetivos na assistência.A Emenda Constitucional nº 31 de 14 de dezembro de 2000, altera o Atodas Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, introduzindoartigos que criam o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, acrescidoo art. 79:É instituído, para vigorar até o ano de 2010, no âmbito do PoderExecutivo Federal, o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza,a ser regulado por lei complementar com o objetivo de viabilizara todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência, cujosrecursos serão aplicados em ações suplementares de nutrição,habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outrosprogramas de relevante interesse social voltados para melhoria daqualidade de vida.Ao encontro da preocupação com a erradicação da miséria e com o direitoda dignidade da população brasileira é publicado através do Decreto nº 7.492,de 02 de junho de <strong>2011</strong>, o Plano Brasil Sem Miséria do Governo Federal, quetem como diretrizes principais: a garantia dos direitos sociais; o acesso aos serviçospúblicos e a oportunidade de ocupação e renda; a articulação de ações quegarantam a renda, com ações voltadas para a melhoria das condições de vida dapopulação extremamente pobre. Todas estas diretrizes balizadas por uma atuaçãotransparente, democrática e integrada das três esferas governamentais.De acordo com as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento paraCrianças e Adolescentes, criada pela Resolução Conjunta nº 1, de 18 de junhode 2009, regulamentada da proposição prevista no Plano Nacional de Promoção,17 - DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL AO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA - Melo e Almeida333


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS334Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiare Comunitária, através do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS e doConselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, oAbrigo Institucional deve ter aspecto semelhante ao de uma residência, inseridona comunidade, que garanta a dignidade, oferecendo atendimento personalizadoe em pequenos grupos para o acolhimento provisório de crianças e adolescentesem medida protetiva de acolhimento, até o retorno ao convívio com a família deorigem, ou encaminhamento para família substituta.A Fundação de Proteção Especial do RS – FPERGS é uma instituição estadualque atende, enquanto ação complementar aos municípios, crianças e adolescentesem situação de vulnerabilidade e risco social, vítimas de abandono, abuso,violência, maus tratos, negligência e que são encaminhadas para o acolhimentoinstitucional sempre que seus direitos forem ameaçados ou violados. Criada pelaLei 11.800/02 e Decreto Estadual 41.651 em 28 de maio de 2002 veio substituiro atendimento realizado pela antiga FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estardo Menor). Segundo o ECA, em seu artigo 98,As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveissempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçadosou violados:I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;III – em razão de sua conduta.Após o reordenamento, a FPERGS adotou o que o ECA preconiza sobre oacolhimento institucional, como o desmembramento dos abrigos em casas (chamadasde abrigos residenciais – AR’s) possibilitando o atendimento individualizado,em pequenos grupos, abrangendo ambos os sexos, várias faixas etárias, incluindopessoas com deficiências leves ou que vivam com HIV/AIDS e priorizando a nãoseparação dos grupos de irmãos, propondo uma nova concepção de atendimento,quebrando os paradigmas vigentes à época. Os acolhidos participam dos programase serviços da rede de atendimento local ou regional, pois cabe à rede externaoferecer os atendimentos na área educativa, na saúde, na área social e cultural, napreparação para o trabalho, no lazer e esporte de acordo com o pressuposto daincompletude institucional.A proposta de acolhimento na FPERGS visa minimizar o choque da violênciasofrida pela criança e/ou adolescente, causada pelo abandono ou afastamento do


convívio familiar. Para tanto procura cumprir os pressupostos contidos no ECA,nas Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentese no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças eAdolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.A legislação trás um conjunto de regras que são necessárias para adequar asrelações entre o Estado e a sociedade. Em seu artigo 4º o Estatuto da Criança edo Adolescente refere à importância da interação familiar, social e pública noscuidados com a criança e o adolescente:Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em gerale do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivaçãodos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação,ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.Conforme a LOAS, Art. 13 compete aos Estados o atendimento em conjuntocom os Municípios, no campo das ações assistenciais em caráter de emergência,prestando serviços assistenciais onde se justifiquem uma rede regional de serviços,sem estar concentrada no âmbito do Estado.As crianças e adolescentes acolhidos na FPERGS ingressam por determinaçãodos Juizados da Infância e da Juventude, conforme a Lei 12.010 de 03 deagosto de 2009 que dispõe sobre adoção. Esta lei altera as Leis: nº 8.069 – ECA,Lei 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de10 de janeiro de 2002. Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho –CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outrasprovidências. Ingressam também, através da Justiça Instantânea, da Comarca dePorto Alegre.As especializações no atendimento são evitadas, mas quando necessárias sãoarticuladas com a rede de serviços e tem a preocupação de não se constituir emmotivo de discriminação ou segregação. Os ingressos são avaliados sempre priorizandoa proteção integral e a convivência familiar e comunitária.Atualmente a FPERGS acolhe em torno de 600 crianças, adolescentes eadultos. Aproximadamente 65% da população acolhida possuem problemas desaúde (crônicos ou transitórios) tais como: problemas físicos, clínicos, cognitivos,biopsicossociais. Devido aos problemas de saúde, muito dos acolhidos ingressamaté os 18 anos de idade, mas não têm previsão de desligamento, permanecendoacolhidos na fase adulta.17 - DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL AO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA - Melo e Almeida335


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS336A FPERGS possui uma equipe técnica orientada com relação à recepção dacriança e/ou adolescente na entidade, conforme consta nas Orientações Técnicasque norteiam o atendimento, em que a equipe profissional é acolhedora, capacitadae realiza o acolhimento de maneira afetuosa e segura para não representar umare-vitimização. Neste contexto o educador não deve ser o que julga, mas aqueleque ouve, vê, reconhece, respeita a realidade e entende a situação.O acolhimento institucional integrado à sociedade, com a educação associadaentre técnicos e educadores, possibilita oferecer um novo paradigma, umaalternativa e a partir desta concepção, proporcionar outro caminho para despertaro desejo da mudança e de práticas sociais que induzam a solidariedade.O maior índice de motivos de acolhimento na FPERGS é o convívio comdependente de drogas (substâncias químicas/álcool), seguido pelo abandono. ALei 12.010, de 2009 institui que o acolhimento institucional deve ser medidaexcepcional e temporária, não devendo se prolongar por mais de dois anos, devendohaver a revisão da situação a cada seis meses. Porém devido às dificuldades,muitos casos ultrapassam o prazo esperado e alguns acolhidos permanecem nainstituição por tempo indeterminado.É objetivo da Fundação, favorecer a reinserção das crianças e dos adolescentesacolhidos às famílias de origem ou encaminhamento para famílias substitutas,desenvolvendo uma ação interdisciplinar entre seus técnicos, a rede social deserviços e os órgãos competentes, procurando alternativas para diminuir o tempode permanência no sistema de acolhimento. Deve-se desenvolver um trabalho defortalecimento de vínculos e reintegração familiar, para que esta possa cumprircom suas responsabilidades.De acordo com o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direitode Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, busca-sepromover o resgate e o vínculo familiar dos acolhidos, a fim de garantir a dignidadehumana a estas pessoas e a possibilidade de pertencimento. Através da buscaativa, previsto nas Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Criançase Adolescentes, proposto para buscar famílias para crianças e adolescentes semcondições de retorno para a família de origem, que podem ser adotados, garantindoo direito de integração a uma nova família.Apesar de todas as alterações criadas para transformar o espaço do acolhimentoinstitucional o mais próximo possível da realidade familiar, estudos comprovamque nenhuma instituição é capaz de substituir a convivência familiar. Dentro destacomplexidade os técnicos da FPERGS atuam no sentido da reinserção do acolhido


junto a sua família de origem e/ou família ampliada, buscando a manutenção dosvínculos quando possível. O fortalecimento dos vínculos familiares possibilita opleno desenvolvimento afetivo, cognitivo e social.O programa de acolhimento institucional deve estar articulado com o Sistemade Garantia de Direitos, com a rede sócio-assistencial, com as demais políticaspúblicas e com a sociedade civil organizada, para manter um empenho permanenteno sentido de exaurir a possibilidade de reintegração familiar do acolhido. Apesarde todos os esforços e leis para proporcionar a convivência familiar, em muitoscasos estes são insuficientes para garantir este direito e muitas crianças que sãoacolhidas acabam passando toda sua infância e adolescência na instituição, sendodesligadas aos dezoito anos.Com a preocupação de possibilitar a convivência comunitária, para aquelesem que a convivência familiar se apresenta como uma realidade muito distante,a proximidade com a região de origem possibilita a preservação dos laços entreamigos, vizinhos, escola, a comunidade em geral. Além disso, é necessário promovera construção de vínculos significativos entre os acolhidos e a comunidade.As Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentesvaloriza Programas como o de Apadrinhamento Afetivo ou similar.O Programa de Apadrinhamento Afetivo é destinado para os acolhidoscom situação jurídica definida, considerados com possibilidades remotas deadoção, sem possibilidade de reintegração familiar, como: crianças maioresde seis anos, grupos de irmãos, crianças e adolescentes com deficiência. OPrograma visa proporcionar uma referência afetiva sólida fora da instituição.O Apadrinhamento Afetivo não está relacionado à questão financeira, pois aentidade continua responsável pelo acolhido, mas a construção e manutençãode vínculos afetivos individualizados e duradouros. Este vínculo afetivo seráessencial principalmente quando o adolescente completar 18 anos e for desligadoda instituição de acolhimento. Esta relação propicia o desenvolvimentoda autonomia, a vivência de experiências individualizadas e da socialização.Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente 1990, em seu artigo 92 asentidades de programas de acolhimento deverão observar os princípios abaixo:17 - DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL AO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA - Melo e AlmeidaI – preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegraçãofamiliar;II – integração em família substituta, quando esgotados os recursosde manutenção na família natural ou extensa;III – atendimento personalizado e em pequenos grupos;337


IV – desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;V – não desmembramento de grupos de irmãos;VI – evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidadesde crianças e adolescentes acolhidos;VII – participação na vida da comunidade local;VIII – preparação gradativa para o desligamento;IX – Participação de pessoas da comunidade no processo educativo.PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS338A partir deste estímulo e da relação que se estabelece, tanto afetiva comoentre sujeitos, quaisquer tipos de avanço desencadeiam novas aprendizagens, facilitandoa ampliação de um progresso global, que irá desenvolver as estruturascognitivas, afetivas, física, social e emocional.É muito difícil alterar o status quo e promover a mudança, enquanto nãohouver conscientização e a sensibilização para a importância da participação dossujeitos e seu comprometimento com o processo de transformação. Por isso éfundamental a articulação entre a instituição de acolhimento, a família, a rede deatendimento de proteção, o Juizado da Infância e Juventude – JIJ, o MinistérioPúblico, os Conselhos Tutelares – CT e demais entidades conectadas com a defesados direitos da criança e do adolescente.O papel da instituição de acolhimento é muito significativo. Podendo transmitirvalores e hábitos, desenvolvendo atitudes de colaboração para superação dedesafios, onde os benefícios são para todos, eliminando o medo e o sentimentode fracasso. Buscando desenvolver a solidariedade, inclusão, confiança e a participação.O abrigo institucional é um organismo vivo, dinâmico com subjetividadese relações sociais internas e externas com o objetivo de preparar as crianças e osadolescentes para a realidade do mundo.Entender de forma crítica o cotidiano da criança e do adolescente permitea ela a construção de uma consciência crítica, participativa e questionadora darealidade na qual vive. A criança forma conceitos, relaciona ideias, estabelece relaçõeslógicas. Para atuar com o acolhimento institucional é necessário conheceras crianças, suas características e seus direitos. Conhecer a metodologia própriapara atuar como mediador, bem como a legislação que possibilite a formação deum cidadão na atualidade e que respalde um verdadeiro trabalho pedagógico.Conforme Boaventura de Souza Santos “Temos o direito de sermos iguaissempre que a diferença nos inferioriza. Temos o direito de sermos diferentes sempreque a igualdade nos descaracteriza.”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASConstituição da República Federativa do Brasil, de 1988.Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, 1990.Lei 12.010 de 03 de agosto, de 2009.Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS. Lei º 8.742, 1993.Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para crianças e adolescentes.Resolução Conjunta nº 1, de 18 de junho de 2009.Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças eAdolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, de dezembro de 2006.Projeto Político Pedagógico – Fundação Proteção Especial do Rio Grande doSul – FPERGS, de <strong>2011</strong>.Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Resolução 130 do Conselho Nacionalda Assistência Social, de 2005.17 - DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL AO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA - Melo e Almeida339


S/ título – acrílico/tela – 40 X 60,5cmSandro Magalhães Azambuja – Oficina de Criatividade/ HPSP


18 O NEOLIBERALISMO E A POLÍTICA DESAÚDE NO BRASIL 219Caroline Pereira SantosResumo:Será apresentado neste artigo o sistema vigente – o Neoliberalismo; o que é e quais são osseus reflexos no mundo dos trabalhadores. E, posteriormente, discutir-se-á sobre a Políticade Saúde no Brasil: a sua história no país e os reflexos do Neoliberalismo nessa política paraentender seu contexto atual.A situação atual dos direitos sociais de cada cidadão no Brasil e no mundo não pode ser desvinculadado principal: o sistema de desenvolvimento econômico vigente. Contemporaneamente,vive-se um contexto marcado pela regressão e violação dos direitos humanos e civis. Todasas conquistas históricas dos trabalhadores estão deixando de existir em nome da apologia aomercado e da acumulação de capital.Palavras-Chave:Mercado, lucro, saúde, precarização, neoliberalismo.18.1 CONSIDERAÇÕES INICIAISO sistema capitalista neoliberal, a partir da década de 1980, vem recrudescendocada vez mais as expressões da questão social. Atualmente, o Estado teminteresses mais econômicos que sociais. As desigualdades sociais estão cada vez maisexacerbadas, e é difícil entender por que a população pactua com um sistema quequalifica as quatrocentas pessoas mais ricas do mundo dispõem de mais riquezapessoal que a metade mais pobre do planeta? (DOWBOR, 1999).18 - O NEOLIBERALISMO E A POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL - Caroline Pereira Santos219 Este artigo encontra-se na integra no Trabalho de Conclusão de Curso da autora, nomeado“A Família no acompanhamento das crianças usuárias dos serviços da saúde mental: na busca dagarantia dos direitos”, orientado pela Prof. Dra. Idilia Fernandes. Este foi apresentado em dezembrode 2010 na Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul(FSS/ PUCRS), local onde atualmente está disponível.341


Além do próprio giro de capital, há mais por trás de toda essa acumulaçãode riquezas. Vê-se, diversas vezes, na mídia, que é um forte instrumento de manipulaçãodo povo, discursos de governantes dando “desculpas” para cortar gastos,e o mais admirável é que os cortes de gastos são sempre feitos nas áreas da saúdee da educação. Ou ainda, estes cortes são feitos em qualquer outro serviço públicoo qual está garantido por lei à população, ou seja, “cortes de gastos no social”(IAMAMOTO, 2006).Diversos comerciais que anunciam bens de consumo mostrados pela mídiafazem com que os consumidores acreditem que não podem deixar de possuir,em nome da aparência. Em uma sociedade excludente como a sociedade capitalista,as pessoas deixam de ser valorizadas pelo que são e sim, pelo que possueme consomem. A isso chamou-se concomitantemente “fetiche” 220 e “reificação” 221 .Segundo Iamamoto (2006):PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS342O capital cria as condições históricas necessárias para a generalizaçãode sua lógica de mercantilização universal, submetendo aosseus domínios e objetivos de acumulação o conjunto das relaçõessociais: a economia, a política, a cultura (IAMAMOTO, 2006, p.2).Iamamoto (2006) se refere às relações sociais como meio de manipulaçãoe, consequentemente, o alcance da ideologia de acumulação de capital. Assim,mais uma vez percebe-se a forte influência da mídia sobre a população. Isso ocorreporque o sistema capitalista neoliberal e o seu modo de propagar a sua ideologiamascaram os reais malefícios a toda sociedade, com exceção dos grandes capitalistasda atualidade.220 Segundo Outhwaite e Bottomore (1996, p. 461-2) o fetiche é uma característica da sociedadecapitalista, identificada pela primeira vez por Marx. Em uma sociedade baseada na propriedadeprivada, na qual predominam as relações de mercado, (...) as relações sociais, estabelecidas em processoshistoricamente específicos de produção de coisas, desaparecem de vista e ressurgem, em vezdisso, com algo diferente, como relações entre indivíduos ahistóricos aquisitivos e as mercadoriasque eles buscam adquirir como consumidores. (...) Marx interpretou isso como uma inversão dosujeito em objeto, (...) personificando coisas e objetificando pessoas, como algo que necessariamenteapoia o capitalismo, em vez de criticá-lo. (OUTHWAITE e BOTTOMORE, 1996, p.461-2).221 Segundo Outhwaite e Bottomore (1996, p. 652-3) a reificação é, na tradição marxista, otermo usado criticamente para descrever um processo que é específico do capitalismo e que servepara manter as desigualdades de uma sociedade capitalista mediante a ocultação dos processosreais de exploração. (...) Para Marx, o processo de troca dos produtos do trabalho humano em ummercado de mercadorias faz com que as relações sociais entre pessoas se pareçam com uma relaçãoentre coisas. (OUTHWAITE e BOTTOMORE, 1996, p. 652-3).


Para atingir o superávit da acumulação de capital, explora-se o trabalhadorassalariado até este ficar impossibilitado de exercer qualquer função e, logo, édescartado por não servir mais (IAMAMOTO, 2006). Para cada vaga que surge,há um número grande de trabalhadores querendo preenchê-la. Existe então “umenorme exército de reserva de trabalhadores”, que esperam por uma oportunidade.A isso dá-se o nome de desemprego estrutural. Sabe-se que há uma grandequantidade de trabalhadores que exercem mais de uma função, os chamadostrabalhadores polivalentes, e estes junto com o avanço da tecnologia contribuempara o aumento do desemprego. Estes mecanismos de exploração e exclusão sãofundamentais e estão intrínsecos ao sistema capitalista. Deixar que esses mecanismosaconteçam na sociedade de forma oculta é fazer com que este sistemapermaneça estável e, consequentemente, aceito pela população (OUTHWAITEe BOTTOMORE, 1996).Trata-se da exploração e exclusão de milhares de trabalhadores. Isso tudo emnome da riqueza de poucos e exploração, pobreza e violação de direitos humanosde vários. A saúde das pessoas está ficando cada vez mais debilitada em função deelas estarem muito expostas a agentes químicos perigosíssimos, ao sol, à poluição,entre outros fatores. Os animais e as plantas encontram-se em uma situação semelhante,pois estes são, muitas vezes, explorados para produzirem bens de consumoe, por isso, as suas espécies correm o risco de serem extintas, tudo em nome dofetiche, consumismo e acumulação capitalista.Essa é uma situação caótica. Mas, por que isso acontece? Com o passar dosanos, o sistema capitalista neoliberal ficou mais forte e, aparentemente, mais estável,fazendo com que grandes instituições se submetessem a essa ordem. Comopor exemplo, o Estado, este que deve existir para garantir os direitos de seu povoe responder as necessidades da população, mas faz cortes de gastos na área social,como isso se explica? Toda vez que o governo resolve cortar gastos, são milharesde pessoas que sofrem, pois dependem dos serviços públicos para sobreviverem.A transformação é profunda, e agora, o social virou negócio (DOWBOR, 1999).Por exemplo, se alguém precisar ir a um bom dentista ou a um bom fisioterapeutaterá que pagar. A saúde pública, atualmente, está muito precária. É muitodifícil conseguir atendimento seja médico ou odontológico, por exemplo, e, quandoas pessoas conseguem, parece que estão recebendo um favor. Distorcidamente, osdireitos sociais transferiram-se para bens privados ou filantropia. Com os serviçoscada vez mais precarizados, as pessoas têm que recorrer, diversas vezes, ao meio18 - O NEOLIBERALISMO E A POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL - Caroline Pereira Santos343


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSprivado para serem atendidas com qualidade ou efetivar um direito garantido porlei, mesmo que seja pagando por ele (IAMAMOTO, 2006).O Estado, que deveria ser o grande mantenedor dos direitos de todos oscidadãos, está cada vez mais sendo contrário a isso, promovendo a sustentação ea manutenção da ordem capitalista dos bens privados para aqueles que podempagar. Assim, o Estado contribui para a perda da noção de direito social, garantiae efetivação dos mesmos; e de cidadão pleno de direitos que se transformam apenasem consumidores ou pobres. Este é o contexto atual que marca as PolíticasPúblicas, em destaque a política de saúde, na qual a mais prejudicada é a classetrabalhadora. Desde 1980, os problemas nessa área vêm aumentando devido aosistema econômico vigente e ao Estado.Quanto a Política de Saúde no Brasil, esta que foi uma construção coletivapara a democratização da mesma. No final da década de 1970, a Reforma SanitáriaBrasileira lutava por um conceito diferenciado de saúde – um que não fossepautado na doença e no isolacionismo -, ou seja, um conceito de saúde que nãofosse baseado apenas na doença física/ biológica e individualista. Lutava-se por umconceito que o processo saúde/adoecimento fosse ampliado e também coletivo,que envolvesse diversos fatores como: o não acesso a bens e serviços de qualidade,educação, cultura, lazer, esporte e etc. (VASCONCELOS, 2003).Também, no mesmo período histórico, a Reforma Sanitária lutou por melhorescondições de trabalho aos trabalhadores da saúde, pela participação (trabalhadorese usuários) nos espaços reivindicatórios, ou seja, a luta pela a garantiado controle social na saúde 222 . O acesso aos serviços com qualidade até os espaçosde lutas como Conselhos devem ser garantidos a todos: profissionais e usuários.Tratava-se da luta de saúde entendida como um conceito ampliado e como direitosocial a todos os cidadãos brasileiros.Atualmente, desde a Constituição Federal de 1988, a saúde é entendida como:Art. 3°. A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes,entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico,o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte,o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúdeda população expressam a organização social e econômica do País.344222 Com base em Correa (2006), a temática ganhou expressão no Brasil após o processo de democratizaçãona década de 1980 e com o surgimento da Constituição Federal de 1988. O controlesocial é a participação de toda a sociedade civil em relação às ações do Estado, no sentido desteestar atendendo cada vez mais as necessidades e interesses da maioria da população.


Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que,por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir àspessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental esocial. (BRASIL, 1988, p. 112).Nesse sentido, por esse conceito ampliado de saúde, que faz envolver outrasinstituições, principalmente o Estado, que a Reforma Sanitária tanto reivindicou.A Política de Saúde juntamente com a Assistência Social e a Previdência Socialconstituem o tripé da Seguridade Social, prevista na Constituição Federal de 1988.A saúde, na Seguridade Social, é vista como um direito de todo o cidadão, e osistema que vem a garantir esse direito social é a lei do Sistema Único de Saúde(BRASIL, 2005). Dentro desse sistema, tem-se todo um planejamento de execuçãodo direito à saúde, como os princípios (de destaque): a equidade, a integralidadee a universalidade, dentre outros que também vêm a garantir o direito à saúde. Etambém traz a importância da prática dos serviços de referência e contrarreferência223 nos atendimentos e etc.No que tange a lei, o acesso à saúde deve ser garantido a todo e qualquercidadão, contudo, os serviços ofertados não são de qualidade equivalente comaquilo que está no papel. Desde a onda neoliberal vinda para o Brasil na década de1980, ou seja, o desmantelamento e a mercantilização dos direitos sociais. No quediz respeito à Política de Saúde e as demais políticas públicas brasileiras carecemde investimento de recursos humanos, materiais e, principalmente, financeiro. Aprecarização dos serviços no SUS é facilmente vista devido aos inúmeros problemasenfrentados pelas pessoas para conseguirem atendimento, como as imensasfilas nos postos de saúde, a escassez de leitos hospitalares, de profissionais e demedicamentos e etc. Esses problemas podem ser relacionados diretamente com ocorte de gastos e a falta de responsabilidade do Estado para com o social.18 - O NEOLIBERALISMO E A POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL - Caroline Pereira Santos223 O SUS tem três níveis de complexidade de atenção à população: baixa (unidades básicasde saúde), média (ambulatórios especializados) e alta (serviços de internação). O usuário atendidona alta complexidade fora encaminhado ou pela unidade básica de saúde ou por ambulatóriosespecializados (referência) para o serviço de internação. Após, quando sua necessidade fora atendidae/ou estabilizada, o usuário é reencaminhado (contrarreferência) para um serviço de menorcomplexidade para dar continuidade ao tratamento. (Grifos nossos).345


18.2 OS PLANOS DE SAÚDE NESTE CONTEXTOPARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS346Nesse quadro caótico, surgem os Planos de Saúde (privados) a que somentetem acesso uma pequena parcela da população e, dessa maneira, isso acaba contribuindopara o sucateando do sistema público de saúde, pois o Estado deixa deresponsabilizar-se pela saúde pública. E aqueles que não conseguem ter acesso aum Plano privado de saúde? Continuam utilizando o sistema público de saúdeprecário. Assim, a existência da saúde privada contribui para a desmobilização dosmovimentos sociais reivindicatórios pelos os direitos sociais, ou seja, aqueles quenão se agradam do sistema público e têm condições financeiras buscam utilizar osserviços oferecidos pela saúde privada, que mostram-se, aparentemente, serviços“de qualidade”. E aqueles que não têm condições financeiras continuam a usar osistema público de saúde precário. A conclusão que se tem é de uma política desaúde pobre para pobres (VASCONCELOS, 2003).Parece que houve um retrocesso em relação às conquistas de todas as lutaspara a garantia e efetivação dos direitos sociais que, em outro momento histórico,os trabalhadores tanto reivindicaram. A saúde, a educação, o saneamento básico,o esporte, o lazer e a cultura dificilmente chegam ao acesso das populações maisvulneráveis socialmente. O que de população vulnerável financeiramente, torna-setambém vulnerável social, cultural e politicamente, agravando a situação socialbrasileira (VASCONCELOS, 2003).O Brasil é considerado um dos países de maior índice de desigualdades de todoo mundo (VASCONCELOS, 2003), o que vem a reforçar pela onda neoliberalque insiste em desresponsabilizar o Estado do seu compromisso com a sociedade.Os direitos sociais são constantemente ameaçados a serem privatizado, principalmente,a saúde e a educação. Em consequência dessa falta de compromisso doEstado, há uma constante regressão do entendimento da população sobre saúde.O governo que deveria por lei investir nas políticas públicas para que possam serprestados serviços de qualidade, não investe ou, os recursos destinados à área socialsão mal administrados. Em meio a essa situação ficam alguns questionamentos:O Estado brasileiro planeja e executa uma política de saúde ou de adoecimentofrente ao contexto neoliberal? Tratar de forma desigual os desiguais, ou seja, ofereceraos pobres uma política mais pobre ainda? Será mesmo essa a noção que sedeve ter? (VASCONCELOS, 2003). Ainda, em relação aos recursos humanos,atualmente, faltam muitos investimentos, principalmente, em capacitações paraatualizar os profissionais sobre o verdadeiro papel do SUS.


Com base no que já foi discutido anteriormente, parece que alguns dos direitosque são assegurados aos cidadãos fazem com que outros direitos sociais sejamviolados. Somos livres para o mercado de trabalho, mas, diversas vezes, somosobrigados a realizar inúmeras atividades que nos levam a adoecer por excesso detrabalho, exploração. Os direitos são garantidos por lei, pensando nas necessidadeshumanas, mas concretamente são efetivados de forma precária, não valorizando asparticularidades dos cidadãos da região e, até mesmo, as próprias necessidades quedeveriam ser atendidas. A noção de “tratar de forma desigual os desiguais” acabase transformando em uma catástrofe, pois, a visibilidade das demandas acontecede forma débil e conservadora. E a maneira que as demandas são atendidas é maisprecária em função do enxugamento do Estado.No entanto, mesmo em meio a tantos retrocessos, ainda houve várias conquistascom o SUS que merecem ser evidenciadas, como a lei da Reforma Psiquiátricaque, em âmbito nacional, o Rio Grande do Sul foi o Estado precursor,que veio a ocorrer em 1992. Após quase dez anos, com data em 2001, a Lei daReforma Psiquiátrica vigoraria no Brasil inteiro. A Saúde Mental Infanto-Juvenilganha destaque também como conquistas da população brasileira. Uma lei voltadaa um grupo da sociedade, mas não com o objetivo de excluir e segmentar, e sim,dar visibilidade às necessidades das crianças e adolescentes que, historicamente,não eram vistos como sujeitos de direitos.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 14724: informaçãoe documentação – trabalhos acadêmicos. Rio de Janeiro, 2005.BAPTISTA, Myrian Veras. Planejamento social: intencionalidade e instrumentação.São Paulo: Veras Editora, 2007.BRASIL. Constituição Federal de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.html Acesso em 12 de outubro de 2010 às 16horas._______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto daCriança e do Adolescente e dá outras providên cias. Brasília: Presidência da República,1990._______. Lei n° 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para18 - O NEOLIBERALISMO E A POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL - Caroline Pereira Santos347


a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamentodos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília: Presidência daRepública, 1990. In: Conselho Regional de Serviço Social (CRESS). Coletâneade leis. Revista e ampliada, 2005._______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamentode Ações Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma política de saúdemental infanto-juvenil / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde,Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília: Editora do Ministérioda Saúde, 2005.CORREA, Maria Valéria Costa. Controle social na saúde. In: MOTA, Ana Elizabete...[et al.], (orgs). Serviço Social e saúde: formação e trabalho profissional.São Paulo: Cortez, 2006.DOWBOR, Ladislau. A gestão social em busca de paradigmas. In: Gestão social– uma questão em debate. São Paulo: EDUC – IEE, 1999.PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSIAMAMOTO, Marilda. As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicasno Serviço Social contemporâneo. Trajetórias e desafios. In: MOTA, Ana Elizabete...[et al.], (orgs). Serviço Social e saúde: formação e trabalho profissional.São Paulo: Cortez, 2006.OUTHWAITE, W., BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento social doséculo XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1996.REIS, Carlos N. & DORNELLES, Aline. Exclusão social: velhos e novos pontos deuma agenda permanente. In: REIS, Carlos N. (org.) América Latina crescimentono comércio mundial e exclusão social. Porto Alegre: Editora Dacasa, 2001.SANTOS, Caroline Pereira. A família no acompanhamento das crianças usuáriasdos serviços da saúde mental: na busca da garantia dos direitos / CarolinePereira Santos; orientador: Idília Fernandes – 2010. 74f; Trabalho de Conclusãode Curso (em Serviço Social)– Pontifícia Universidade Católica do Rio Grandedo Sul, Rio Grande do Sul, 2010.VASCONCELOS, Ana Maria. A prática do Serviço Social: cotidiano, formaçãoe alternativas na área da saúde. São Paulo: Cortez, 2003.348


S/ título – gouache/papel – 31 X 46cmClaudina Pereira – Oficina de Criatividade/ HPSP


19 PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOSHUMANOS NO RS 224 Ana Paula Dhein Griebeler 225Resumo:A proposta do presente artigo é discutir o tema da prostituição feminina e sua relação coma questão dos Direitos Humanos no Rio Grande do Sul. Para tal, busca-se compreender alógica da desqualificação social sofrida pelas protagonistas dessa difícil realidade, ou seja, asprostitutas bem como a sua relação com os Direitos Humanos, enfocando com maior ênfase asestratégias de efetividade do direito à saúde no referido contexto. Além disso, este artigo almejacompreender a realidade de saúde que se constitui no cotidiano das prostitutas desta região,a partir da análise de seu contexto histórico e cultural construído pela sociedade brasileira, afim de identificar suas principais demandas de vulnerabilidade social, que deram origem àsestratégias de efetividade do direito à saúde, assim pensadas pela ação social.Palavras-Chave:Direitos Humanos, vulnerabilidade, respeito, saúde, políticas públicas, prostituição feminina.19.1 AS ORIGENS DO ESTIGMA DA PROSTITUIÇÃO FEMININAAs raízes históricas da sociedade brasileira que fundaram a diversidade culturaldo país fundaram também um arcabouço de conceitos morais próprios, nos quaisvingaram os preconceitos raciais e puritanos, condicionando historicamente a ideiada voluptuosidade perversa associada ao clima tropical e, assim, contribuindo parauma concepção social baseada na estigmatização de doenças graves como a sífilise suas vítimas até pouco tempo.19 - PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOS HUMANOS NO RS - Ana Paula Dhein Griebeler224 O presente artigo é fruto de estudos realizados durante o curso de Especialização em DireitoSanitário, da Escola de Saúde Pública do RS, que concluí em <strong>2011</strong>.225 Bacharel em Serviço Social (PUCRS), Especialista em Saúde Pública (UFRGS). Especialistaem Direito Sanitário (Escola de Saúde Pública do RS). Endereço digital: http://anadheingriebeler.blogspot.com/351


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS352Na Europa, a atenção da Medicina e da Ciência se voltaria ao estudo das causasda doença e de suas epidemias ao longo dos séculos XVIII e XIX (CARRARA,1996). Nesta época, surgiu um conceito, baseado em doutrinas cristãs e ideiasfilosóficas, chamado de degeneração, associava o biótipo humano a uma patologia(CARRARA, 1996). Assim, degeneração se definiria como um “conjunto dedesvios doentios do tipo normal da humanidade que, transmissíveis hereditariamente,evoluem progressivamente em direção à decadência” (CARRARA, 1996,p. 17). Segundo CARRARA (1996), a teoria foi amplamente estudada nas áreasda psiquiatria, da antropologia-criminal e da criminologia.No Brasil, este conceito chamou a atenção de cientistas, aplicando esta teoriaà análise de grupos sociais e de indivíduos. Por influência, ajudaria a formarperfis sociais distintos, tais como “o criminoso, o louco, o gênio, o homossexual,o judeu, o mulato, a prostituta, o libertino, o venéreo” (CARRARA, 1996, p.59).Segundo o autor, todos esses perfis estariam, de algum modo, ligados à ideia dedegeneração, atribuindo um valor simbólico, que, aos poucos, se revelaria perigosoà análise social. Não de modo diferente, esta relação, dirigida aos estudos sobre asífilis, iniciaria a partir do início do século XX.Percebida pelo sifilógrafo Silva Araújo, a sustentabilidade dos argumentosnesta relação considerava o caráter hereditário da doença e dos traços psicofisiológicosdegenerativos que possibilitariam gerar ao descendente. A interpretaçãoinfluenciou muitos especialistas brasileiros, porém, tal recurso contribuiu tambémnegativamente para o processo de formação da simbologia imoral atribuída àdoença e principalmente às suas vítimas. Desse modo, todos os sifilíticos estariamcondenados à crueldade do preconceito.O período em que ressurgia o processo de sifilização social no Brasil, meadosdo século XIX, trazia também a abolição da escravatura, a industrializaçãoe a imigração ao país. Em consequência, viria também a miséria, a prostituição,o desemprego e a urbanização das cidades, provocando a precarização da saúdepública através do crescimento populacional desordenado e as inevitáveis endemiase epidemias de muitas outras doenças graves como a febre amarela e o cólera(VAINFAS, 1986).Neste novo cenário, entre os sifilíticos estariam as prostitutas, os imigrantes,os militares, as mulheres domésticas, os negros alforriados, os negros escravos e osdescendentes desses grupos sociais (CARRARA, 1996). O principal grupo socialvitimado pela sífilis e apontado pela maioria de suas disseminações no país foi odas prostitutas. Precedentes de uma fama milenar e vulgarmente discriminatória,


as prostitutas estariam entre os principais agentes degenerativos da sociedade. Estigmatizadapela conduta de depravação, luxúria e pecado, a prostituição tornou-seuma espécie de ameaça à integridade moral e física do indivíduo.Na sociedade moderna brasileira, a partir de 1840, chamava a atenção ocrescimento da prostituição feminina no Rio de Janeiro. Esse fato teria explicaçãopela transição socioeconômica sofrida pelo país. O flagelo social da miséria e dodesemprego, gerados pelo crescimento acelerado da população nos grandes centrosurbanos, tornou inviável a vida digna à população de mulheres pauperizadas pelaprecária oferta de trabalho. Muitas delas imigrantes, ou, ainda, negras alforriadasde sua escravidão, encontraram na prostituição um meio melhor de sobrevivência.Mesmo muitas das negras, ainda escravas, eram obrigadas por seus senhores a seprostituírem, para tirar lucro de parte de seus recebimentos (VAINFAS, 1986).Com relação a essa situação, CARRARA observa que:Se, em alguns contextos nacionais, as prostitutas foram diretamenteculpabilizadas pela difusão das doenças venéreas, teriam sido, empaíses como os Estados Unidos, perseguidas pelas leis e encarceradasem prisões, de um modo geral, médicos e sifilógrafos brasileirostratavam de “compreender” o comércio secular entre homens e asprostitutas a partir de suas causas. Como dizia o brasileiro NevesArmond, as prostitutas eram as “vítimas algozes” por excelênciada sífilis, pois raramente escolhiam livremente entregar-se a seu“infame comércio”. Para Costa Ferraz, o problema da prostituiçãoe, consequentemente das doenças venéreas era fruto de uma criseque se caracterizava principalmente por seus aspectos sociais eeconômicos: marginalização da mulher, pobreza urbana crescente,ignorância das mulheres pobres. (CARRARA, 1996, p.159)À medida que aumentava a população de prostitutas na região, se fazia anecessidade de uma atitude médica diante da situação preocupante de epidemiasde sífilis e outras doenças venéreas que afligiam a população (CARRARA, 1996).Assim, em razão da relação da prostituição com a disseminação da sífilis, foi geradauma mobilização de médicos e autoridades policiais. Seria feita uma intervençãocom vistas ao controle da população prostituída, a fim de combater a intensa disseminaçãode doenças, através de uma estratégia de regulamentação da profissão.Sem poderes para erradicar uma profissão historicamente ativa, os militantes desenvolveramfortes apelos de argumentos morais com o propósito de, ao menos,minimizar a densa massa de prostituição que havia se formado naquele período.19 - PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOS HUMANOS NO RS - Ana Paula Dhein Griebeler353


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS354Para os médicos, a prostituição era por si só uma enfermidade, um desequilíbriosexual. Esta constatação influenciaria a atitude médica, considerando queeste “mal” havia tomado grandes proporções e escondia uma ameaça de efeitosdevastadores na população. Sobre este conceito, VAINFAS afirma que “a concepçãoda prostituição como uma ameaça revestida pela capa enganadora da belezae do amor é muito recorrente no discurso e se expressa, por exemplo, na imagemda prostituta construída pelo médico” (VAINFAS, 1986, p. 173). A intervençãodos médicos qualificava o meretrício como “um grande mal” à sociedade, alertandosobre o perigo moral e desonroso às famílias. Entretanto, tais argumentosforam ignorados tanto pela impressa quanto pela própria autoridade imperial,D. Pedro II. Segundo VAINFAS (1986), o imperador considerou a medida irrelevante,alegando que executar tais procedimentos seria reconhecer a legalidadedos serviços. Mesmo assim, os ferrenhos alarmes por medidas urgentes deram aosmédicos autoridade para estabelecer a criação de bordéis higienizados e a adoçãode medidas de controle legal do meretrício (VAINFAS, 1986).Contudo, a luta dos médicos para sanear a cidade dos agravantes que a prostituiçãoofereceria com o contágio descontrolado da sífilis obteve grandes avançospara o combate do “mal venéreo”. Porém, na afirmação de seus argumentos, teriamreafirmado a questão do estigma social sobre a doença. Esse efeito, segundoVAINFAS (1986), mostra que:Sem romper ou negar o ideário cristão, o discurso médico acabapor recriá-lo, transformando-o em instrumento eficaz na superaçãodos obstáculos que se interpunham entre o médico e os temassituados no terreno do quase proibido. (VAINFAS, 1986, p.173)Refletindo sobre este efeito, pode-se observar que o mesmo impacto de intervençãoque oferece uma reorganização no controle epidêmico, por outro lado,sem querer, acaba por refazer o discurso do preconceito antes predominante naconcepção médica. Não pelo intuito primário que objetivou o empenho, mas,sim, pelo poder de uma estigmatização social historicamente construída, que atribuídaà moral, de modo eficiente, consegue controlar de certa maneira o poder dedisseminação da doença. No entanto, a intervenção, faz regenerar o preconceitoque embasa a marginalização social e a inibição dos doentes.Assim, a disseminação tomaria também como alvo as mulheres domésticas,que supostamente, esposadas de militares ou mesmo de homens cuja conduta


sexual se daria de forma extraconjugal, nas casas de prostituição, ainda não regulamentadaspela lei. Essas mulheres, embora de vida honesta, seriam as próximasvítimas das doenças, além de seus filhos.Portanto, naquele momento histórico, a realidade epidêmica no país seagravara de modo que se manifestava silenciosa e desordenada entre os diferentesgrupos e relações sociais, cujo controle encontrado pelos médicos especialistas foia regulamentação legal das prostitutas e a higienização dos prostíbulos. Diantedeste fato, as razões da discriminação tem um fundamento histórico relevantepara a realidade destas profissionais hoje no Brasil.19.2 O ESTIGMA CONTEMPORÂNEOEm termos gerais, a prostituição, com a complexidade do seu papel na sociedade,velada por tabus, discriminações, violência e outras formas de exclusãosocial, entra em conflito com os fundamentos dos Direitos Humanos (SIMÕES,2010). Neste sentido, uma das principais vulnerabilidades sociais deste segmentoé destacada pela indefinição de uma legitimidade legislativa no país, apontada porum estudo do Ministério da Saúde (BRASIL, 2010), realizado pelo programa nacionalde DST/AIDS. A relevância deste fato é ponderada pela absoluta relaçãoentre a legalidade e o exercício da cidadania que é praticamente inexistente narealidade cotidiana destas profissionais. O Projeto de Lei n. 98/2003, apresentadopelo Deputado Federal Fernando Gabeira, que trata sobre o reconhecimento daprostituição como “serviço de natureza sexual”, nos revela este impasse de quaseuma década. No ano de 2002, a profissão foi reconhecida como tal pela ClassificaçãoBrasileira de Ocupações (CBO), porém, também como fonte de discussão,a questão dos Direitos Trabalhistas tem constituído descaminhos na consolidaçãode sua condição (RODRIGUES, 2009).Considerando o contexto histórico da visão de organização das sociedades,tradicionalmente tivemos uma cultura baseada na estratificação das classes sociais.Porém, segundo Luhmann (2009), a realidade de mundo globalizado hoje, sugereuma visão mais diferenciada sobre este e outros aspectos das sociedades modernas.De acordo com a sua teoria, o autor afirma que o conceito de estratificação social nãose adapta à necessidade de observação que necessitamos ter em relação ao modo deinclusão/exclusão do indivíduo. Segundo ele, o processo de modernização das sociedadesadota não mais uma “diferenciação estratificada”, mas sim, uma “diferenciação19 - PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOS HUMANOS NO RS - Ana Paula Dhein Griebeler355


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS356funcional”, ou seja, a concepção de visibilidade social do indivíduo está condicionadanão mais sua classe de origem, mas ao sistema funcional ao qual pertence. Isto ocorreporque a teoria de sistemas desenvolvida por Luhmann (2009) define a sociedadecomo um sistema social que interage com outros subsistemas, como os psíquicos(referente aos indivíduos) e outros tantos subsistemas que integram a dinâmica derelações entre indivíduos, grupos, redes e instituições de quaisquer naturezas. Sãoestes subsistemas funcionais interligados pela comunicação, em que as mensagense informações são elementos-chave da relação que define a visibilidade social dosindivíduos (LUHMANN, 2009). Esta dinâmica funcional entre segmentos de um“acoplamento estrutural” é responsável pela inclusão do indivíduo através da capacidadede comunicação codificada por cada subsistema. Portanto, a inclusão socialé relativamente proporcionada em mais ou menos subsistemas, de acordo com onível de interatividade operacional desenvolvida entre os segmentos estruturais.Em um primeiro momento, veremos que este processo não parece excludente,porém, segundo o autor, esta realidade é ilusiva ao considerar que a exclusão é umaconsequência direta da diferenciação funcional da sociedade. Dessa forma, não hágarantias em relação à inclusão. Neste aspecto, o individualismo revela-se uma característicainegável deste sistema. A dinâmica realmente condiciona o indivíduo a umasituação em que a sua autonomia torna-se vulnerável às suas escolhas na sociedade.Nesta perspectiva, o indivíduo é integralmente responsabilizado pela suacondição social, e, assim, submetido a um critério de inclusão/exclusão ou integração/desintegraçãode sistemas sem precedentes. Nesta questão, desenvolve-seum fenômeno social ambíguo, onde o indivíduo, designado a ser excluído de umdeterminado subsistema (e automaticamente tantos outros), sofre a perda da suavisibilidade social, como Mathis elucida:O indivíduo não é mais notado como pessoa, ele está sem papelsocial e em geral, sem os laços sociais das sociedades estratificadas(oikos, família) que foram desestruturadas logo no início do processode modernização. Despido de sua sociabilidade, ele é somentecorpo, e o corpo e suas necessidades básicas determinam o seucomportamento na sociedade, que se reduz a mera reproduçãodesse corpo (...) Reduzido ao corpo, a única maneira de regressarna sociedade, de inclusão nos sistemas funcionais, é o uso dessecorpo, seja na prostituição, seja como modelo, seja como vendedorde seus órgãos ou das suas crianças, seja como jogador de futebol.(MATHIS, 2008, p. 21)


Desse modo, o estudo sobre a vulnerabilidade social referente à prostituiçãofeminina no país vem ao encontro desta concepção atual, onde o indivíduoé responsabilizado por sua condição, e neste caso, pela sua vulnerabilidade. Poroutro lado, esta vulnerabilidade também faz parte de um contexto maior, considerávelem muitas sociedades como o Brasil: a vulnerabilidade feminina. Nestecaso, estudos do Ministério da Saúde (BRASIL, <strong>2011</strong>) têm feito consideraçõessobre a questão, revelando que as diferenças de gênero na população do Brasil.Outro aspecto de vulnerabilidade a ser destacado está relacionado ao acessodas prostitutas à saúde. O estigma do preconceito social, sexual, de gênero, assimcomo a violência física contra as prostitutas na sociedade, não torna estes ambientesinstitucionais imunes aos mesmos, demonstrando que o comportamento dosprofissionais destas instituições, assim como de outras, como de segurança pública edemais repartições estatais, contribuem de forma significativa para a fragmentação equalificação dos atendimentos, além da limitação de horários destes atendimentos,em que a prostituição encontra problemas também em função de seus serviços, osquais não tem qualquer direito de licença à saúde, garantido por lei (BRASIL, <strong>2011</strong>).Além disso, a vulnerabilidade encontra lugar em outras dimensões, como porexemplo, no próprio pensamento de execução institucional dos processos sociais.A questão da prostituição, assim como a drogadição e outras categorias de estigmasocial, é epidemiologicamente considerada pelo Ministério da Saúde, grupos derisco para a disseminação de doenças. No entanto, de forma contraditória, estaconsideração fragmentária referente a tais segmentos de estudo social, constitui--se uma questão que desafia a própria efetividade prática e política dos programasdesenvolvidos, uma vez subjugando a própria consideração pela tentativa de combatero preconceito, esta explicitada por uma de suas recomendações estratégicassobre a vulnerabilidade social. É uma questão complexa que sugere revisões.19.3 A LUTA POR RECONHECIMENTO E RESPEITO19 - PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOS HUMANOS NO RS - Ana Paula Dhein GriebelerA questão dos direitos encontra-se, assim imbricada à própria história domovimento de prostitutas no país, pois, ainda no final do século XIX, o decreto1.034A, de 1 de janeiro de 1892, dispôs que cabia ao Chefe de Polícia “ter sob suavigilância as mulheres de má vida”. No início do século XX, aos 5 de fevereiro de1902, o decreto 4.763 atribuiu aos delegados urbanos e suburbanos essa função357


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS358de manter a moral e os bons costumes “da forma que julgar mais conveniente aobem-estar da população e à moral pública”.De acordo com Cândido Motta (1897), a prostituição era um “fenômenosocial fatal e necessário”, como o crime, uma resultante de fatores antropológicos,físicos e sociais. Ele afirmava que “a sua necessidade explica-se pelo derivativo queoferece às excitações genéricas muito intensas, que sem ela não respeitariam, talvez,nem a infância, nem o lar doméstico” (MOTTA, 1897, p. 316). Eis a razão dese dever interditar o vício, pois, do contrário, dominaria a sociedade.No início do século XX, mais precisamente no ano de 1907, dado que a prostituiçãonão era matéria do Código Penal, os decretos 1.631 e 6.440 concediamaos Delegados de Polícia o poder de exercer as funções de representar o Estado noque dizia respeito a essa função. Desse modo, prostituição era assunto de polícia.De acordo com Motta, as autoridades acreditavam que se devia reprimir aprostituição de forma brutal pois a consideravam um grave crime que, como tal,merecia uma pena. Entretanto, ainda segundo o autor, esse sistema, além de ineficaz,encerra uma grande injustiça, visto que a repressão ao “delito” recaía unicamentesobre a mulher que se restituía e não sobre o homem que pagava por seusserviços. Conforme afirma Motta: “Demais se debaixo do ponto de vista social, éreconhecida a conveniência da prostituição, toda repressão seria um contra senso”(MORAES, 1897, p. 302).Tentando controlar o alastramento de doenças sexualmente transmissíveisem virtude das atividades do meretrício, em 1915, Alfredo Silveira, sugere asseguintes medidas a serem adotadas: a) Casamentos possíveis apenas medianteatestado médico negando a existência de qualquer doença venérea; b) Amas de leiteexaminadas por médico da saúde pública; c) Distribuição gratuita de remédios;d) Multar as prostitutas doentes que continuassem a exercer a “ignóbil profissão”;e) Isolar as mulheres contaminadas; f) Penas para os sifilíticos transmissores; g)Distribuição de folhetos sobre a profilaxia da doença; h) Conferências sobre asmoléstias; i) “Fixar a responsabilidade civil e criminal nos casos de contaminação”;j) “Punir severamente o lenocínio”; k) Educação sexual dos soldados e marinheiros(SILVEIRA, 1915, pp. 28-29).Saffioti (1994) comenta algo que nos faz refletir acerca dessa realidade queenvolve os policiais em relação à prostituição feminina: assim como os demais profissionaisbrasileiros, eles não costumam ter qualquer formação no domínio das relaçõesde gênero. A razão disso é que a “falocracia admite, conforme a força das pressões


sociais e/ou as recompensas eleitorais, políticas públicas de promoção da mulher.Tais políticas, todavia, são segmentarias e descontínuas”. (SAFFIOTI, 1994, p.176)De acordo com Evaristo de Moraes, “a prostituição com as características daque hoje conhecemos resultou do desenvolvimento urbano” (MORAES, 1925,p. X). Segundo Moraes, esse ramo de atividades “tende a destruir os elos e freiosfamiliares”, além disso, os baixos salários pagos às trabalhadoras mulheres tornavaa prostituição “um fenômeno econômico, como sendo o complemento dosalário insuficiente, ou a falta absoluta de salário”, razão pela qual cerca de 95%das mulheres prostituídas viessem das classes sociais mais humildes, como formade sobrevivência (MORAES, 1921, p. 158-160). Nesse sentido, também Waldirde Abreu concorda com Moraes afirmando que a “imensa maioria das meretrizesprovém das camadas mais pobres quer do campo, quer dos centros urbanos e dasprofissões mais modestas” (ABREU, 1968, p. 17).19.4 AS MOBILIZAÇÕES E OS ENCONTROS NACIONAISA primeira grande mobilização por direitos protagonizada por prostitutasda qual se tem notícia, no Brasil, ocorreu no ano de 1979 e foi em resposta a umforte esquema de repressão policial à prostituição no centro de São Paulo, queteve como consequência a morte de uma travesti e duas mulheres, uma das quaisestava grávida. Em virtude da gravidade da situação, prostitutas e travestis organizaramuma passeata com o objetivo de denunciar as arbitrariedades da polícia(SEXUALITY POLICY WATCH, 2010, p. 3).Em julho de 1987, Gabriela Silva Leite, considerada a principal liderança domovimento de mulheres prostitutas no Brasil, organizou, no Rio de Janeiro, o IEncontro Nacional de Prostitutas. Nesse encontro, o “grito de guerra” era: “Mulherda Vida, é preciso falar” (SEXUALITY POLICY WATCH, 2010). Comoconsequência desse encontro, constituiu-se a Rede Brasileira de Prostitutas, ou seja,uma associação nacional para tratar dos interesses das mulheres que exerciamprofissionalmente a prostituição, cuja missão é:19 - PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOS HUMANOS NO RS - Ana Paula Dhein GriebelerPromover a articulação política do movimento organizado das prostitutase o fortalecimento da identidade profissional da categoria,visando o pleno exercício da cidadania, a redução do estigma eda discriminação e a melhoria da qualidade de vida na sociedade.(REDE DE PROSTITUTAS, <strong>2011</strong>, p. 1)359


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS360Em 1992, Gabriela Silva Leite funda uma instituição chamada Davida: Prostituição,Direitos Civis e Saúde, cujo objetivo é coordenar a Rede Brasileira de Prostitutas,promover encontros locais, regionais e nacionais, assessorar a formação de associaçõeslocais e articular políticas públicas nas áreas de prostituição, cultura, cidadania,direitos humanos e saúde, incluindo ações de prevenção de doenças sexualmentetransmissíveis (DST) e HIV/AIDS (SEXUALITY POLICY WATCH, 2010).Desde então, diversas associações regionais foram sendo organizadas portodo o país. A razão para a existência dessas associações é lutar pela legalização eformalização das relações de trabalho na prostituição, o combate às múltiplas formasde violência que as profissionais do sexo sofrem, além do repúdio e combateao estigma que sobre elas recai.Em 2004, ocorreu, em Brasília, a Conferência Nacional de Direitos Humanos.Nessa ocasião, uma prostituta foi eleita delegada para representar a categoriano evento. Desde então, convencionado pela Rede Brasileira de Prostitutas que, acada Conferência Nacional de Direitos Humanos, uma nova delegada seria eleitacomo representante da categoria, demonstrando o ideal da Rede de Prostitutasem primar pela descentralização da representação e do poder (SEXUALITY PO-LICY WATCH, 2010).No ano de 2007, sob a coordenação do núcleo de pesquisa da associação de prostitutaschamada Davida, foi elaborado um projeto de pesquisa cujo tema seria “DireitosHumanos e Prostituição Feminina”. O projeto piloto teve execução na cidade do Riode Janeiro, no ano de 2008, sob o apoio do Fundo de População das Nações Unidas.Assim, na sede de Davida, realizou-se um conjunto entrevistas abertas e densascom profissionais do sexo que relataram as mais diversas experiências de violaçõesno contexto de suas histórias de vida e no exercício da prostituição. Disso resultouque se tivesse uma percepção mais clara do sistema de correlação de forças queage sobre o próprio exercício da prostituição. Em outras palavras, demonstrou osdiferentes contextos nos quais se exerce a prostituição, tais como: rua, termas ezona confinada (SEXUALITY POLICY WATCH, 2010).A Rede Brasileira de Prostitutas organizou, até o presente momento, quatrograndes encontros nacionais, que se deram nos seguintes anos: 1987, 1989, 1994e 2008. O local dos encontros foi a cidade do Rio de Janeiro. O primeiro encontro,em 1987, teve como objetivo reunir as lideranças do movimento das prostitutaspara discutirem a questão da violência em face de atos repressivos perpetradospor policiais. O segundo encontro, em 1989, a proposta era discutir a questão da


AIDS e orientar a tomada de posição do movimento de prostitutas em relaçãoàs políticas públicas de combate à epidemia. O terceiro encontro, e, 1994, alémdas questões de saúde pública e combate às doenças e epidemias, surgiu a questãodos dispositivos legais, relativos a direitos trabalhistas. Os temas de discussãogiraram em torno de lei, saúde e fantasias sexuais. No quarto encontro, em 2008,as tomadas de decisão do movimento em encontro anteriores foram reiteradas.Além disso, as prostitutas reafirmam os posicionamentos políticos que nortearamsuas ações, nas últimas duas décadas, chegando mesmo a redigir uma Carta dePrincípios (SEXUALITY POLICY WATCH, 2010).19.5 O DIREITO À SAUDE E A PROSTITUIÇÃO FEMININA NORSHoje, no Rio Grande do Sul, não há uma preocupação política e legal especificamentevoltada à saúde das mulheres em situação de prostituição. Apesar dascampanhas governamentais proporcionarem a disponibilidade de materiais sobrequestões de saúde pública, como as DST/AIDS e demais temas de saúde (fornecidosem estabelecimentos públicos de saúde do Governo do Estado do Rio GrandeSul, através da parceria com o Ministério da Saúde), a viabilidade deste padrão deinformação-alvo ao público em geral, permanece sem acrescentar iniciativas deelementos governamentais ao alcance de propostas mais concretas para o caso daprostituição feminina, em torno de sua vulnerabilidade social.A realidade cotidiana destas mulheres, que percorrem situações vulnerabilizantesde trabalho, vem a implicar em uma precariedade de sua cidadania e de seu plenoexercício de seus direitos sociais e individuais. Sobre este fato, de acordo com umapesquisa recente com as respectivas profissionais em Porto Alegre, as situações agravantesde sua condição social variam entre diversas questões. Um estudo realizadoem 2007 utilizou-se de um universo de 50 mulheres profissionais de locais privadosde prostituição na capital, das quais 100% relataram sofrer algum tipo de preconceito.Delas, 34% afirmaram sofrer o preconceito de sua condição social. Na mesmapesquisa, 76% das profissionais frequentaram o serviço de saúde pública oferecidona região, sendo que pelo menos 50% das mesmas relatou já ter pego alguma DSTao longo de sua vida. 6,4% afirmaram terem sido contaminadas pelo HIV e outras2,1% optaram pelo silêncio. Além disso, cada entrevistada afirmou conhecer, pelomenos, de 1 até 15 colegas profissionais portadoras do vírus HIV. Outro item de19 - PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOS HUMANOS NO RS - Ana Paula Dhein Griebeler361


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS362relevância para a pesquisa apontado foi o consumo de drogas. Todas as entrevistadasresponderam ter experimentado algum tipo de droga ao longo da vida, sendo que92% afirmaram terem consumido álcool e 50% cocaína inalada. A pesquisa aindaapontou que naqueles últimos 12 meses, o percentual do consumo de álcool entreas participantes manteve-se estável, enquanto que, o uso de tabaco, ocorreu em76% das entrevistadas, além de 34% das mesmas afirmarem ter utilizado maconhae/ou cocaína inalada neste mesmo período (BASSIL, 2007). Portanto, situaçõesque fazem desta profissão, uma realidade cotidiana de riscos consideráveis à mulherprostituta. Neste universo de trabalho, as perspectivas alternativas de enfrentamentodestas profissionais são encontradas através de parcerias de trabalhos voluntáriospactuados entre as próprias profissionais, organizações sociais e governamentais. Assoluções referentes a esta peculiaridade da saúde pública no Estado recorrem desdea década de 90 à alternativas de engajamento voluntário, constituído de profissionaisde diversas áreas relativas à saúde que colaboram em trabalhos de grupos, emdiversas cidades e localidades gaúchas.Desde 1989, a criação de uma ONG promove um apoio social importantepara a realidade das prostitutas no RS. Foi fundado, então, o NEP – Núcleo deEstudos da Prostituição – sendo este o único trabalho social destinado exclusivamenteà causa das mulheres em situação de prostituição feminina no RS. Estetrabalho vem mobilizando e apoiando as profissionais em diversos aspectos queenvolvem situações de vulnerabilidade com a execução de projetos e práticas voluntáriasdesenvolvidas pelas próprias profissionais do sexo, em parceria com entidadesreligiosas, governamentais e privadas. Entre as atividades permanentes daInstituição, são realizadas oficinas de redução de danos à saúde da mulher, sobredrogas e encaminhamentos, orientadas por profissionais de saúde em atividadevoluntária; oficinas sobre direitos humanos e cidadania com a colaboração deprofissionais da área do direito, também em atividades voluntárias; distribuiçãogratuita de preservativos; atendimento psicológico; encaminhamento jurídicofrente às denúncias de violência sexual e discriminatória; além da representação eparticipação política em Comissões e Conselhos respectivos à defesa dos DireitosHumanos, em âmbito Estadual e Municipal (NEP, <strong>2011</strong>).No entanto, a realidade do serviço público de saúde oferecido a estas profissionais,no Estado, constitui um desafio à efetividade das práticas de inclusãosocial relacionadas à saúde destas mulheres, pois estes serviços limitam-se a umcuidado de caráter periódico com a manutenção de exames laboratoriais de rotinaou mesmo eventuais emergências, pois, na política de saúde do país, ainda não


existe uma política pública que legitime a integralidade do direito à saúde destasprofissionais. Isso no que diz respeito à garantia de subvenções e licenciamentosem relação a problemas relacionados à integridade física e psicossocial da mulherem situação de prostituição, como por exemplo, a questão da maternidade, oumesmo em relação à acidentes, à aposentadoria, etc.São estes os problemas sociais de um grupo, gerados por sua própria condiçãosocial, onde a vulnerabilidade física é passível de uma vulnerabilidade socialconstante e vice-versa, desprovida de qualquer proteção legal à respeito dos seusdireitos trabalhistas e portanto, sociais e individuais. Na verdade, a resposta paratais dilemas é, indubitavelmente, a redefinição da exposição moral construída pelasociedade sobre o papel da prostituta e a consequente transformação política doreconhecimento deste segmento profissional. Um reconhecimento que pareceestar longe de sua concretude.19.6 CONSIDERAÇÕES FINAISEm suma, a plena cidadania que incita ser conquistada ao exercício destasmulheres em situação de prostituição, no Rio Grande do Sul, parece ter desafiosem si, a considerar efeitos comparáveis ao de um dominó. Isso porque os fatoressociais que interferem na realidade de saúde destas mulheres colidem com os demaisfatores, tão potencialmente históricos quanto morais, dos quais, a memóriaestigmatizadora da prostituição feminina, assim impetrada na solidificação culturalda sexualidade brasileira, aqui exemplificada, revela a capacidade de se fazer pesar eabsorver-se de outras instâncias que interferem na realidade de vida destas mulheres.Desse modo, a cultura do estigma, que ainda se encontra arraigada as suasrealidades, o que pôde ser demonstrado nas entrevistas relatadas, conclui que suasnecessidades, tanto sociais quanto individuais, permanecem profundamente correlacionadasà sua condição, mesmo já na sociedade atual. Portanto, a conturbadaexequibilidade de seus direitos, depende por primazia, de uma drástica transformaçãocultural na visibilidade social destas mulheres, que deve oportunizar meios maisefetivos à reparação dos conceitos históricos que legitimam o produto da realidadesocial assistido. Ou seja, a busca de uma nova perspectiva a respeito da transformaçãodesta concepção social, deve ser sustentável a uma legalidade coerente em defesa dospreceitos fundamentais constituintes dos Direitos Humanos, norteadores da nossaatual Constituição Federal. Por isso, a questão merece observâncias mais apuradas19 - PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOS HUMANOS NO RS - Ana Paula Dhein Griebeler363


em torno da polemizada crítica que a própria sociedade reproduz, ou seja, que o tabude um manejo público favorável aos direitos específicos desta categoria profissional,requisitante de tais questões da realidade social na atualidade.É preciso, então, desvelar o que está por detrás destes contextos, e a partirdisso, construir as estratégias mais adequadas ao manejo da questão social, sobretudoa questão referente à saúde destas mulheres, que sofrem com o desamparolegal e a carência política de práticas publicas responsabilizadas pelas demandasda causa presente neste artigo.Em verdade, a representação social deste tabu hoje traduz os entraves doprocesso social aqui proposto, ou seja, são negligências de uma irreflexão cultural,que permitem interferir indiretamente sobre a questão de saúde das mulheres emsituação de prostituição, por caminhos que a legalidade brasileira ainda necessitaelaborar, de forma que interceda à cerca dos riscos antes expostos à condiçãoprofissional deste segmento social.PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS364REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASABREU, Waldir de. O Submundo da Prostituição, Vadiagem e Jogo de Bicho.Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1968.BASSIL, Marcela H. Sexualidade e saúde em mulheres profissionais do sexoem Porto Alegre. Monografia de Especialização em Psicologia. Porto Alegre:UFRGS, 2007.BOZON, Michel. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: FGV, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Aids. Disponível em: . 2010. Acesso em: 15 dejaneiro de <strong>2011</strong>.BRASIL. Ministério da Saúde. Sistemas Aids. Disponível em: . <strong>2011</strong>. Acesso em: 17 de marçode <strong>2011</strong>.CARRARA, Sérgio et alii. Tributo a Vênus: A luta contra a sífilis no Brasil, dapassagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996.FREYRE, Gilberto M. Casa Grande & Senzala. 12 ed. Brasília: Universidadede Brasília, 1963.


LUMAHNN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. RJ. Ed. Vozes. 2009.MATHIS, Armin. A sociedade na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.Disponível em: Acesso em: 05 de agosto de 2010.MINHOTO, Laurindo D. Paradoxos da Proteção Jurídica da Saúde. In: Revistade Direito Sanitário; vol.8 n.3 nov.2007/fev.2008. p.49-62MORAES, Evaristo de. “Prostituição e Infância” In Primeiro Congresso Brasileirode Proteção à Infância. Rio de Janeiro, Gráfica Editora, 1925.MORAES, Evaristo de. Ensaios de Patologia Social. Rio de Janeiro, Leite Ribeiro,1921, pp. 238-249.MOTTA, Candido. Prostituição, Polícia de Costumes e Lenocínio. São Paulo,1897.NÚCLEO DE ESTUDOS DA PROSTITUIÇÃO. Folheto de divulgação.Porto Alegre: p.02-10, <strong>2011</strong>.REDE DE PROSTITUTAS. Rede de Prostitutas. Disponível em: Acesso em: 25 de agosto de <strong>2011</strong>.RODRIGUES, Marlene T. A prostituição no Brasil Contemporâneo: um trabalhocomo outro qualquer? Rev. Katál. Florianópolis: vol. 12 n.1 p.68-76, Jan – Jun,2009.SAFFIOTI, Hellieth I. B. Diferença ou Indiferença: Gênero, Raça/ Etnia, ClasseSocial, in: ADORNO, Sérgio (org.). A Sociologia entre a Modernidade ea Contemporaneidade. Cadernos de Sociologia, IFCH/UFRGS, n° especial,Porto Alegre, 1995.SEXUALITY POLICY WATCH. Direitos Humanos e Prostituição Feminina//HumanRights and Female Prostitution. Disponível em: . Acesso em:05 de setembro de <strong>2011</strong>.SILVEIRA, Alfredo Baltazar. A Regulamentação do Meretrício. Rio de Janeiro,Imprensa Oficial, 1915.SIMÕES, Soraya S. Identidade e Política: a prostituição e o reconhecimento deum métier no Brasil. Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS--UFSCar, vol. 02 n.1 Jan-Jun. p. 24-46,2010.VAINFAS, Ronaldo. História e Sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Grall, 1986.19 - PROSTITUIÇÃO FEMININA E DIREITOS HUMANOS NO RS - Ana Paula Dhein Griebeler365


S/ título – bordado – 42 X 57cmNatália Leite – Oficina de Criatividade/ HPSP


20 NOVOS DESAFIOS PARA OS DIREITOSHUMANOS DAS/OS SEM-TERRA E SEMTETO NO RIO GRANDE DO SUL A PARTIRDE <strong>2011</strong>Jacques Távora Alfonsin 226Resumo:A luta pela terra não para, especialmente para o povo trabalhador. Apresentamos neste artigoalguns aspectos da situação da terra urbana e rural, mostrando que a não-distribuição dasterras no Brasil tem reflexos em todos os segmentos sociais. Os movimentos sociais continuamcom muita coragem e força na luta por uma sociedade mais justa.Palavras-chave:Luta, terra, direito, pobreza.Entra dia sai dia, entra mês sai mês, entra ano sai ano, os desafios político--jurídicos relacionados com a posse e a propriedade da terra, no Rio Grande doSul, e as dificuldades que o povo trabalhador e pobre com direito de acesso a essebem de vida enfrenta, ganham sempre novos contornos, conferindo à palavra“crise” uma repetição tão frequente quanto ambígua nas suas causas e ambivalentenos seus efeitos.Ao que se pode atribuir esse fato? Vista à luz dos direitos humanos fundamentaisda população pobre do campo e da cidade, a ambiguidade das causasda ameaça ou da violação que padecem, parece residir preponderantemente nomodo como se faz a análise da realidade geradora da crise e a embivalência dosseus efeitos no modo como são interpretadas as responsabilidades legais por elaimpostas e os encargos que, para resolvê-la, deixaram de ser assumidos.Convém examinar mais de perto, então, cada uma dessas dificiências, para o20 NOVOS DESAFIOS PARA OS DIREITOS HUMANOS DOS SEM-TERRA E SEM TETO NO RS - Jacques Távora Alfonsin226 Advogado, Procurador aposentado do RS, mestre em Direito pela Unisinos e assessor jurídicodos sem-terra e dos sem-teto.367


Relatório <strong>Azul</strong> deste ano poder ampliar, prevenido quanto possa contra despistesideológicos, o debate com as/os suas/seus leitoras/es, visando empoderar a defesados direitos humanos relacionados com a terra do Rio Grande e o povo sem-terrae sem-teto que, embora com direito de acesso à ela, vive apenas da esperança queum dia isso aconteça.20.1 Realidade geradora da crisePARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS368Que a história revele o conflito permanente entre quem tem terra e quem nãotem, seja no meio urbano, seja no meio rural, isso não é novidade. Em <strong>2011</strong>, noRio Grande do Sul, eles também não deixaram de aparecer, embora sem a mesmaintensidade de anos anteriores. Servem de exemplo de disputa por terra rural, osverificados em Viamão, em Vacaria (ação judicial possessória 11100041615), eem Eldorado (processo 11100021128). Em São Borja, ainda está pendendo dejulgamento uma ação de desapropriação do Estado tendo por objeto a FazendaPalermo (processo 10400071928).De disputa por terra urbana, serve de exemplo a luta empreendida pelospossuidores de moradias no Morro Santa Tereza,. fronteiro ao estádio Beira-Rio,em Porto Alegre. Depois de terem vencido, em 2010, a pretensão manifestadapela governadora do Estado de então, de vender a área pública onde esse povomorava, estão dando os passos indispensáveis para, agora, alcançarem a regularizaçãofundiária de toda a área onde residem, inclusive com a concessão real deuso para fins de moradia, prevista na Medida provisória 2220/01 a ser outorgadapara cada família.Não se tem como comparar o tratamento que o Poder Público do Estadoconseguiu dar a tais lides com o do governo anterior. Ao que se saiba, a preferênciapela mediação negociada com a multidão de famílias pobres, rés dessas açõespossessórias, abrindo alternativas de solução política para gestos de desesperocomo sempre presentes nessas ocupações de terra, impediu a violência, a truculênciacom que a Polícia Militar cumpriu ordens judiciais, particularmente entre2009 e 2010, uma delas resultando no assassinato do agricultor Elton Brum daSilva, em São Gabriel.Submetidas essas demandas todas às decisões das autoridades administrativase judiciárias, uma das suas causas, quando menos, não é ambígua. A “honradezdo real” exige reconhecer-se que ela consiste na pobreza de multidão de pessoas,


sofrendo a não satisfação de necessidades vitais, como as de moradia e alimentação,direitos humanos fundamentais, entre outros, cuja obrigação de respeitoe atendimento, além de naturalmente improrrogável, vem prevista solenementeem Tratados internacionais e nas Constituições dos Estados que se proclamamdemocráticos e de direito, como faz o Brasil.As estatísticas relacionadas com a pobreza, no Rio Grande do Sul, fornecemnúmeros capazes de, nos lugares e nos tempos onde ela está presente, forneceremos dados indispensáveis para o diagnóstico de suas causas e o prognóstico da suaerradicação, aparecendo o bem terra, como não poderia deixar de ser, como aqueleque merece uma atenção toda especial para isso.Por essa razão, a Câmara Temática das economias do campo, integrante doConselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado, promoveu umencontro de debate, durante a Feira do livro de <strong>2011</strong>, realizada em Porto Alegre,no qual a realidade da pobreza e da desigualdade social no Estado do Rio Grandedo Sul foi estudada, a partir de um trabalho coordenado pela Doutora ClitiaHelena Martins e o Doutor Marcos Wink, pesquisadores da Fundação Estadualde Estatística (FEE).Os dados, então exibidos e criticados pelas pessoas presentes neste Encontro,revelam uma realidade social muito grave, retratando profunda violação de direitoshumanos de grande parte da população que aqui vive, exigindo providências inadiáveis,tanto por parte do governo deste Estado e do referido Conselho, quantopor parte da sociedade civil.Partindo da diferença, reconhecida internacionalmente, entre pobreza extrema(pessoa que ganha em torno de US$70,00 por mês) e pobreza relativa (rendaem torno de US$ 140,00 por mês), avaliaram-se os efeitos de uma e outra. Napobreza extrema, por exemplo, entre outras carências, as pessoas não dispõem deágua potável, a desnutrição é crônica, a moradia não oferece condições de salubridade,estão sujeitas às epidemias e as doenças mentais e psicológicas, há uma baixaexpectativa de vida, são muito vulneráveis às catástrofes e mudanças climáticas e,no Estado todo, elas ainda alcançam um percentual de 2,87% da população total(mais de 306.000 gaúchas/os).Encontram-se em pobreza extrema (também chamada de absoluta) 29, 7%da população de Redentora, 29,1% da população de Lajeado do Bugre, e 19,9%da população de Benjamin Constant. São Valério Do Sul, Jacuizinho, VicenteDutra, Engenho Velho, Derrubadas, Santana da Boa Vista, Jaboticaba, embora em20 NOVOS DESAFIOS PARA OS DIREITOS HUMANOS DOS SEM-TERRA E SEM TETO NO RS - Jacques Távora Alfonsin369


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS370percentuais pouco inferiores, sofrem do mesmo mal, conforme o censo de 2010.Porto Alegre deve-se envergonhar, pois tem 3,1% do seu povo aí enquadrado.Não é preciso grande conhecimento científico para se concluir que o podereconômico-político contrário ao acesso à terra da população pobre se encontraentre as principais causas dessa pobreza, continuando a reforma agrária a sofrero castigo social da sua não efetivação, da retirada de pauta do interesse políticopúblico nela implicado.A urgência de implementação dessa política pública ficou evidenciada naquelemesmo Encontro de debate. Ali se reconheceu que o só nível de renda das pessoasé um índice insuficiente para orientar iniciativas públicas e privadas de erradicaçãoda pobreza. É o próprio modelo de desenvolvimento até aqui empregado no uso ena exploração da terra que precisa ser reformado, se o respeito devido aos direitoshumanos do povo pobre gaúcho, especialmente os sociais, ocupar efetivamenteo lugar que lhe compete.Foram cobradas, naquele evento, as principais razões das agressões que a terrasofre e da pobreza consequente do povo que a ela não tem acesso, acrescentando--se aos dados estatísticos então discutidos, o interesse transnacional refletido nainvasão de terras indígenas e quilombolas, os projetos de construção de barragens,o uso indiscriminado de agrotóxicos e sementes transgênicas, as modificaçõesem curso no Código Florestal (este apontamento está sendo redigido quando oprojeto respectivo se encontra em discussão no Senado), os riscos inerentes aodesmatamento considerado indispensável à monocultura e à criação de gado, emdesfavor da biodiversidade.Por aí pode-se fazer uma ideia do volume de problemas que se encontram adesafiar a defesa dos direitos humanos implicada nesse bem indispensável à vida.Movimentos sociais, como o MST, o MMC, o MAB, o MPA, a OCERGS, aCUT, a FETAG, a FETRAF, a COCEARGS, entre outras organizações populares,aí incluídos sindicatos, partidos, pastorais, pequenas cooperativas de produção,de consumo, de crédito, estão tentando criar, no meio desse tumulto econômico,social e político – mesmo em graus diferentes de visão ideológica, empenhoestratégico e tático – uma economia diferente, capaz de enfrentá-lo ao ponto degarantir eficácia aos direitos humanos que o modelo atual de desenvolvimentoameaça ou viola.Guardam divergências sérias entre si, tanto interna como externamente,seja do ponto de vista ideológico, seja do ponto de vista político, algumas delas,inclusive, denunciando outras como cúmplices do atual modelo.


É claro que essas divergências também se refletem na implementação daspolíticas públicas relacionadas com a terra e o povo da terra, particularmente noque se refere às prioridades de aplicação dos recursos públicos.Aí, em contexto que se queira honesto, é necessário um cuidado muito atentoà realidade que ameace ou viole os direitos humanos, para não se confundirqualquer injustiça com “fatalidade” ou, pior, “normalidade”:O que a vida comporta de emoção, de singularidade inédita quenão mais se repetirá, é eliminado não porque estes elementos nãosão comunicáveis – a arte, a poesia, uma relação afetiva fazem-nospartilhá-los – mas porque são estranhos ao magistério do direito.Eis porque o direito expropria os fatos. Estes são despojados do quetem de peculiar, de singular, de individual. Talvez tais elementosencontrem alguma pertinência numa fase posterior do raciocíniojudiciário, para a escolha da pena, o cálculo de perdas e danos,um julgamento com equidade, mas não antecipemos, trata-se nomomento da pesquisa do direito aplicável. 227Para que o direito, então, não exproprie os fatos, tem-se de examinar, mesmoresumidamente, algumas medidas de responsabilidade cumpridas ou descumpridaspor quantas/os têm obrigação legal de atender as demandas oriundas dopovo sem-terra e sem-teto, bem como os motivos pelos quais isso acontece oudeixa de acontecer.20.2 RESPONSABILIDADES INERENTES AOS DESAFIOSENFRENTADOS PELO DIREITOS HUMANOS RELACIONADOSCOM A POSSE E A PROPRIEDADE DA TERRAQuando a defesa dos direitos humanos avalia serem parcos os seus resultadosnessa área de sua atuação, isso se deve em grande parte, ressalvado melhor juízo,à ambivalência dos efeitos desses direitos, decorrente do poder a eles atribuídopelo ordenamento jurídico.Esse fica dependente, tanto das responsabilidades políticas do Poder Público,quanto da força de pressão das/os integrantes desses movimentos sociais, seja a20 NOVOS DESAFIOS PARA OS DIREITOS HUMANOS DOS SEM-TERRA E SEM TETO NO RS - Jacques Távora Alfonsin227 RIGAUX, François. A Lei dos Juízes. São Paulo: Martins Fontes, p. 47371


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS372exercida sobre suas próprias lideranças, seja a exercida sobre a arregimentação denovas adesões às suas reivindicações.Então, quando uma ameaça ou violação desses direitos, especialmente ossociais, chega à administração pública ou ao Poder Judiciário em busca de proteção,essa ambivalência se manifesta, ora na ignorância das causas geradoras danecessidade e urgência da sua proteção, ora na falta de previsão garante dos seusefeitos, o que deixa os deveres públicos e privados obrigados ao seu respeito, jogadosao limbo da indefinição. Mesmo porque é muito fácil descartá-los sob desculpasdo tipo “isso decorre de circunstâncias do mercado”, “o movimento dos capitaisgerou essa crise” e assim por diante.Para melhor compreensão desse quadro de visível complexidade, vale lembraruma lição oportuna sobre as razões pelas quais ele testemunha a tão lamentadafalta de eficácia dos direitos humanos fundamentais sociais e a desconsideraçãonão raro chegando ao desprezo com que são tratados, de modo particular quandoentram em conflito com os patrimoniais:Para a dogmática, não há direitos derivados da mera condiçãohumana, mas apenas direitos derivados de estatutos jurídicos,atos jurídicos, negócios jurídicos e fatos jurídicos criados por umordenamento jurídico positivo.A dogmática jurídica possui limites técnicos que não lhe permitemabarcar o conceito de direitos humanos. Para ela, direitos queestão além de ordenamentos jurídicos particulares são ficções” (...)“... Os direitos humanos não podem ser pensados como direitossubjetivos no sentido da dogmática jurídica.A dogmática jurídica mede o humano a partir do direito: Quem épessoa do ponto de vista da ordem positiva? O conceito de direitoshumanos inverte essa lógica: o que vale como direito positivo àluz da dignidade da pessoa humana?Nos direitos humanos, a pessoa humana é a medida do direito.”(...) “sem o conceito de direitos humanos, corre-se o risco de queo bem comum seja identificado na prática com o bem de umaclasse, do Estado, do partido ou de um grupo.Os direitos humanos trazem o bem comum do céu das abstraçõescoletivistas para o chão da vida concreta dos seres humanos.” (...)“para a plena realização da pessoa, é necessária uma pluralidadede direitos que tutelam as várias dimensões da natureza humanaem circunstâncias concretas: animalidade (vida e saúde); racionalidade:(liberdade, educação, direitos políticos); sociabilidade:


(família, comunicação, associação.) Estes direitos não pertencem ànatureza humana, mas as pessoas humanas: João, Tiago e Pedro. 228Nessa mesma linha de raciocínio, própria de quem não separa os direitoshumanos da dignidade de cada pessoa, lê-se em outro crítico da distância quecertos paradigmas hermenêuticos da lei colocam aqueles direitos:Acerca da noção de pessoa no Código Civil, pode-se afirmar quea crítica se volta contra a abstração excessiva que se deu sobre oconceito no modelo privado, que desaguou diretamente no CódigoCivil brasileiro. E é por isso que, não raro, nos elementos darelação jurídica coloca-se o sujeito, e aí se revela claramente que apessoa não precede ao conceito jurídico de si próprio, ou seja, sóé pessoa quem o Direito define como tal. 229 (...)Com efeito, o jurídico, em sua construção moderna, apesar dapretensão emancipatória é estruturado sobre essa razão instrumentalregulatória que tem por objetivo centrais a previsibilidadee a segurança (...) O ser humano concreto se transforma em meiopara essa estabilidade, na medida em que não é ele o fim último:o fim se apresenta na abstração do dado formal a que se denomina“segurança jurídica”. 230É do mesmo autor, depois, uma advertência sobre responsabilidades inerentesaos deveres de respeito para com os direitos humanos, muito oportuna para o queacontece em <strong>2011</strong>, no Rio Grande do Sul:... não sendo os direitos de personalidade uma “concessão” doDireito Positivo, desnecessário é tipificar cada direito de modo ainseri-lo no “mundo do direito”. A visão contemporânea a respeitoda ideia de sistema no direito e dos métodos de construção normativademonstra que não se sustenta a noção de que a aplicaçãodo Direito se daria por meio da subsunção a modelos rígidos derelações jurídicas, dependendo de respostas prontas que prescindamda problematização do caso concreto.A personalidade que se apresenta como tutelada pelo Direito não é,20 NOVOS DESAFIOS PARA OS DIREITOS HUMANOS DOS SEM-TERRA E SEM TETO NO RS - Jacques Távora Alfonsin228 BARZOTTO. Luiz Fernando. Os direitos humanos como direitos subjetivos – da dogmáticajurídica à ética. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Jurisdição e direitos fundamentais. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 240 e seguintes.229 FACHIN, Luiz Edson e PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A dignidade da pessoa humana noDireito Contemporâneo, na mesma coletânea, p. 16.230 Idem, p.22/23.373


pois mero objeto criado pela norma. (...) tudo aquilo que é inerenteà personalidade do sujeito concreto é digno de proteção jurídica,por dizer respeito à dignidade da pessoa humana. 231Aliás, esse tipo de raciocínio estreito, que costuma presidir decisões administrativase judiciais relacionadas com os direitos humanos sociais, especialmente nocaso de conflitarem com patrimoniais, encontra campo fértil quando invoca contraos primeiros o dogma do direito adquirido, como se esse sempre fosse sinônimoinquestionável de conservado, por maior que seja o descumprimento que ele manifestecontra a sua função social, coisa mais do que frequente em matéria de terra.Entre as lições da doutrina jurídica conhecida como garantista da qual LuigiFerrajoli é apontado como seu maior expoente, já existe uma advertência expressacontra o risco de verdadeiros preconceitos e meias-verdades, consolidadosem caldo cultural do passado, deitarem raízes na interpretação do ordenamentojurídico que se faz hoje:PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS... a fase de crise do direito que atravessamos é de um garantismodos direitos sociais quase completamente por fundar, e de umgarantismo das liberdades individuais em grande medida porrestaurar. É evidente que uma perspectiva garantista como aquelaaqui delineada é diametralmente oposta à perseguida pelas estratégiasneoliberais. (...) É por isso que o seu pressuposto essencialé hoje uma refundação democrática e um empoderamento dosinstitutos da democracia capazes de colmar a divergência existenteentre instituições e o sistema social; isto é, a democratização dospartidos a articulação de novas formas de articulação política e odesenvolvimento de espaços de liberdade, de auto-determinação ede poderes diretamente sociais aos quais fique vinculada a representação.Em uma palavra, a inversão dos processos de comunicaçãopolítica, não já de cima até embaixo se não de baixo até acima. 232“Poderes diretamente sociais aos quais fique vinculada a representação”?De baixo até acima”? Note-se em que extensão teses como essa pressupõem umapostura administrativa e, ou, judicial, consciente dos fins de sua autoridade. Issopassa por uma humildade muito rara. Muito direito humano tem sido ameaçadoou violado numa ou noutra dessas instâncias pelo fato de elas preferirem o argu-374231 FACHIN, ob cit. p. 30/31.232 FERRAJOLI, Luigi. El Garantismo y La Filosofia Del Derecho. Bogotá: Universidad Externadode Colombia, 2001, p. 90/91. Tradução livre, para o português, nossa.


mento de autoridade à autoridade do argumento, mais ou menos assim como “seeu não punir ficarei desmoralizado”, não se precisando de dúvida sobre a cabeçade quem essa sanção vai cair.No caso da lide sobre terra na qual os direitos humanos fundamentais sociaisconflitem com os patrimoniais, esse vício tem sido responsável por muitainjustiça praticada contra os direitos humanos fundamentais de pessoas sem-terrae de sem-teto, pois, mais preocupado com sua própria imagem de autoridade doque com o caso que lhe cabe decidir, a/o administrador/a público/a ou o/a juiz/anão desconfia em que medida essa sua “consciência moral” de autoridade podeestar sendo manipulada pelo chamado “sistema”, justamente para que ela deixede perceber o que pode estar oculto na crise e no conflito que envolva direitoshumanos sociais:... Deverá ser superado o dualismo reducionista (de Descartes,Kant ou da “Ilustração”) que situava numa hipotética “alma” oque a ética necessitava para expor seu tema e que, a partir de sua“antropologia metafísica”, deformava desde o início toda possívelanálise posterior. Mas, além disso, tendo fixado toda a atenção na“consciência”, perdeu-se todo o nível dos processos auto-organizativosda vida e ainda auto-regulados da vida social, que não sãodescobertos pela consciência, uma vez que se trata de estruturascom efeitos não intencionais. 233Qual é o tipo mais notório de “processo auto-organizativo”, “auto-reguladoda vida social” não descoberto pelas consciências, capaz de criar “estruturas comefeitos não intencionais”? É difícil deixar de ver aí o retrato fiel do chamado “livre”mercado.A capacidade que ele tem de criar essas estruturas, Marx previra, passa incólumeou sob total desconsideração por grande parte, talvez a maioria, das decisõesadministrativas e das sentenças judiciais, devendo-se estranhar como essaobviedade não é levada em conta quando se inquirem as razões pelas quais asreferidas decisões valorizam tanto a justiça comutativa e dão atenção tão pequenaà distributiva, justamente aquela da qual mais dependem os direitos humanos.Deixa-se de considerar aí, até, como esse poder auto-organizado e auto-20 NOVOS DESAFIOS PARA OS DIREITOS HUMANOS DOS SEM-TERRA E SEM TETO NO RS - Jacques Távora Alfonsin233 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação. Na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis:Vozes, 2000, p. 95375


-regulado coloca em dúvida a democracia e desmente a soberania do povo queao Estado cabe garantir.É bem como o falecido jurista gaúcho Ovidio Araujo Baptista da Silva denunciou:Ao glorificar a democracia liberal, Fucuayma esqueceu-se da crescentesuspeita com que os eleitores veem que sua convocação paravotar de quatro em quatro anos não tenha a relevância que seriade esperar de uma democracia representativa. A desconfiança éexplicável: enquanto os eleitores são convocados a votar de quatroem quatro anos o mercado como alguém já observou, vota todosos dias. Além disso, a mídia encarrega-se de promover, habilmente,seus votos, de modo que essas decisões tornam-se determinantese imperativas para os governos. Na verdade, a teoria políticaesquece-se de incluir, em suas construções teóricas, a mídia comoo Grande Eleitor. 234PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSComo se observa, não são poucas as razões que motivam pessoas e organizaçõessociais defensoras de direitos humanos, a renovarem diariamente sua fidelidadeao trabalho desenvolvido com o povo vítima de violação de tais direitos.Entre os encargos próprios das responsabilidades que pesam sobre quempresta serviços aí, defendendo o povo pobre sem-terra e sem-teto, já se percorreuum longo caminho aqui no Estado do Rio Grande do Sul, não podendo haversurpresa nesses novos desafios. O futuro se mostra bem cheio de interrogaçõespreocupantes.Em tais circunstâncias, quando essas/es militantes avaliam a correlação deforças existente entre o que fazem e o que se lhes opõe, é grande a tentação dedesânimo e de abandono do seu engajamento junto às pessoas e grupos humanosa quem servem.A história parece indicar que esse sacrifício, queira-se ou não, já faz parteintegrante desse trabalho e, embora isso não sirva de consolo, já se viveram diasbem piores. Nesse tempo, muitas/os militantes preferiram oferecer a própria vida adeixarem sem proteção e defesa o povo cuja dignidade e cidadania fora desrespeitada.Nós contraímos o dever de sermos dignos delas/es. Coragem!376234 Processo e ideologia. O paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, p. 12.


S/ título – acrílico/madeira – 42 X 30cmLeonardo Fagundes da Rocha – Oficina de Criatividade/ HPSP


21 RESQUÍCIOS DA DITADURA: O CASODO SOLDADO DE SANTA MARIA 235Deputado Estadual Jeferson FernandesResumo:Este relato é o recorte de um processo em pleno andamento. Qualquer decisão tomada pelosentes públicos responsáveis, pode mudar o rumo dos acontecimentos. Aproveito para agradecero papel ativo da imprensa, sem o qual esse caso poderia cair no ostracismo. A ação de nossomandato, como integrante da CCDH, é contribuir para um mundo com mais cidadania,mais direitos e, principalmente, mais humano para todos e todas.21.1 A SÍNTESE DOS FATOSOs advogados do soldado D. P. K. fizeram contato com o gabinete. Em reuniãona Assembleia <strong>Legislativa</strong>, relataram que o seu cliente sofrera violência sexualpor parte de quatro colegas seus, na noite do dia 17 de maio de <strong>2011</strong>.O fato ocorrera dentro das repartições do Exército Brasileiro, especificamenteno Alojamento do Parque Regional de Manutenção da 3ª Região Militar,em Santa Maria. Além de relatarem a violência sofrida, alegaram falta de respeitoaos Direitos Humanos da vítima, visto que a mesma permanecera internada noHospital Militar, sob vigilância constante de soldados, sem que o fato fosse levadoao conhecimento de seus familiares.O caso foi então levado à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos– CCDH da Assembleia <strong>Legislativa</strong> RS e foi determinado que a violação fosseacompanhada pelo órgão técnico.O primeiro passo foi ouvir a versão do Comando do Exército de Santa Maria.No dia 7 de julho, no Comando Militar do Sul, localizado no centro de Porto21 - RESQUÍCIOS DA DITADURA: O CASO DO SOLDADO DE SANTA MARIA - Deputado Estadual Jeferson Fernandes235 Artigo escrito em 25/10/<strong>2011</strong>.379


Alegre, o deputado e a assessoria da CCDH foram recebidos pelo general SérgioWestphalen Etchegoyen.21.2 AFIRMAÇÕES DO COMANDO DO EXÉRCITOPARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS380Cabe registrar o pronto atendimento ao pedido de reunião com o generalEtchegoyen. Foi demonstrado pleno conhecimento do fato, bem como domínioem torno do andamento do inquérito. Num primeiro momento, o general agradeceua iniciativa da Comissão de procurar o Exército, pois, segundo ele, ninguémteria procurado formalmente até o presente momento. O general foi taxativo emdemonstrar sua disposição de auxiliar elucidação do caso.Ao discorrerem sobre o caso, foram confirmados alguns fatos, negados e oujustificados outros, bem como apresentados elementos do inquérito. O soldado D.P. K. estava cumprindo punição disciplinar no dia 17 de maio, o que o obrigava apernoitar no alojamento do Parque Regional de Manutenção. Causou estranhezao fato do jovem alegar que sofreu estupro na noite do dia 17 de maio e somentereclamar o ocorrido na tarde do dia 18, oportunidade na qual foi remetido parao Hospital de Guarnição de Santa Maria. Foi então feito todo atendimento necessário,desde exame de corpo de delito até medicação e demais cuidados físicose psicológicos. A presença constante de um soldado ao lado do leito de D. P. K.foi justificada como medida de segurança para o próprio paciente. “Poderia haverconstrangimento e tentativa de suicídio”, afirmou o General Ertchegoyen.No referido exame, segundo o general Etchegoyen, constatou-se lesão leve noânus, o que na sua visão, por si só, não comprovaria o alegado estupro. O generalnegou qualquer empecilho ao acesso dos advogados do soldado a cada passo doinquérito militar em curso. Alegaram que nunca foram oficiados pelos mesmos arespeito de qualquer elemento do processo administrativo.O general Etchegoyen mencionou o incidente com a mãe do soldado. Segundosua versão, ela teria se mostrado nervosa no interior do quartel e, se sofreualguma retaliação, foi em função do desrespeito ao rito processual do inquérito.Fez questão de dizer da sua compreensão com uma mãe que ficou abalada como ocorrido.Na ocasião, foi explicado que o inquérito foi prorrogado por mais 20 dias,como forma de recepcionar nos autos o resultado do exame de corpo de delito doInstituto Médico Legal, requerido pelos advogados do soldado.


Ao ser perguntado a respeito de provável conclusão do inquérito, o generalEtchegoyen disse que o conjunto probatório não indicaria a ocorrência do crimealegado por D. P. K. “O que pode ter havido é uma espécie de luta corporal de brincadeiraentre os rapazes.” E foi taxativo ao dizer que se porventura ficasse provadarelação sexual, consentida ou não, todos serão punidos de acordo com a previsãolegal das Forças Armadas.Etchegoyen atribuiu a intensidade na divulgação do caso aos advogados queentraram no caso depois que o inquérito já estava em andamento. Insinuou queestes usam a imprensa como forma de fortalecer suas teses para futuras indenizaçõespecuniárias. Em que pese transparecer ceticismo quanto ao êxito da demanda deD. P. K., afirmou que possivelmente o Ministério Público ofereceria denúncia aoJudiciário, justificada pela repercussão do caso.Por fim, o Comandante Etchegoyen considerou que a pedido da Ouvidoriada Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, o Ministério Público, representadopelo Procurador Osmar Machado Fernandes está acompanhando todo odesenrolar do caso.21.3 AFIRMAÇÕES DO SOLDADO D. P. K.Na noite do dia 7 de julho de <strong>2011</strong>, a Comissão de Direitos Humanos,acompanhada pelo ex-deputado José Gomes, foram até Santa Maria, onde ouvirame registraram o relato do soldado D. P. K. e de seu pai, L. A. K.O soldado informou que fora punido com detenção de dez dias pelo seucomando em função de ausência no dia 24 de abril na prestação de serviço deplantão. Alegou que, após uma faxina no banheiro do alojamento, foi abordadopor quatro colegas. Teria sido então jogado numa cama e imobilizado de bruços.Por volta de 30 minutos ininterruptos, foi forçado a praticar sexo anal contra suavontade. Enquanto três lhe seguravam, havia um recruta que lhe introduzia o pênis.Somente um destes quatro jovens não teria efetuado penetração. Seus esforçospara desvencilhar-se foram insuficientes. Os demais soldados que compartilhavamo mesmo alojamento não vieram em seu auxílio.D. P. K. não sabe por quais razões lhe fizeram tal violência. Alegou que nãotinha nenhuma desavença com os referidos colegas. Contudo, confessou que eracomum fazerem brincadeiras de mau gosto com ele, invadindo periodicamente suaprivacidade. A vítima disse que somente informou o ocorrido ao sargento Freitas21 - RESQUÍCIOS DA DITADURA: O CASO DO SOLDADO DE SANTA MARIA - Deputado Estadual Jeferson Fernandes381


na tarde do dia 18 de maio porque não aguentava mais a pressão dos colegas emtorno do fato de ter sido estuprado. Ao contar para o superior imediato, foi encaminhadopara o Hospital e lá submetido a exames. Alegou que fora examinadono ânus por um enfermeiro. Não obteve nenhuma explicação a respeito de seuestado. Recebeu duas injeções durante os sete dias que esteve internado (entroudia 18 e saiu dia 25 de maio). Em nenhuma oportunidade, enquanto internado,teria recebido atendimento psicológico ou psiquiátrico. Ligou para sua mãe nodia 19 e informou que estava internado e não poderia participar da solenidade deEntrega da Boina. Não informou verdadeiro motivo por vergonha.21.4 ALEGAÇÕES DO PAI: L. A. K.PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS382Os pais da vítima foram visitá-lo no dia 20 de maio. Quando chegaram naportaria, alegaram que não poderiam deixá-los entrar, exceto no horário de visita.Devido à insistência, conseguiram ir até o quarto. Estranharam o fato de ter umguarda permanentemente ao lado do seu filho. No sábado, dia 21, retornarampara visitar o filho e no domingo, 22, somente o pai. Na saída, ele recebeu umaligação de sua esposa, dando conta que teria sido informada por um infectologista,conhecido da família, a respeito duma violência sexual contra um soldado queestava internado no Hospital Militar. Suspeitava que fosse um caso envolvendoo filho do casal.A partir disso, o pai voltou ao quarto e obteve a confirmação de seu filhoque teria sido vítima de violência sexual de seus colegas. A partir de então, a mãefoi até o hospital e, mesmo contra a vontade do Comando do Exército, permaneceucom seu filho até o dia 25, quando o soldado deixou a instituição hospitalar.Na segunda-feira, 22, a mãe dele foi ameaçada de prisão, sob alegada insubordinaçãocontra autoridades militares dentro do quartel. Nessa oportunidade,no pátio do quartel, o subtenente Bernardes afirmou para os pais da vítima queo mesmo “era homossexual”. No mesmo dia, a família de D. P. K. contatou umadvogado que acompanhou o depoimento da vítima. Esse foi transcrito e impressonum computador portátil pelo próprio subtenente Bernardes. Não foi entreguecópia do documento para a vítima.O pai disse que a saída do seu filho do hospital se deu pelo fato de a imprensaestar noticiando a respeito do estupro, com informes diretos da frente dolocal. Não fosse isso, interpreta que não teria sido liberado. Narrou ainda, que


após a saída do hospital é que foi requerido o exame de corpo de delito ao InstitutoMédico Legal, como forma de haver o máximo de isenção na prova material.L. A. K. fez questão de narrar um outro fato de violência sexual contra umsoldado na mesma unidade o Exército em Santa Maria. Fato este que teria sido“abafado” pelo comando. Informou que o filho e tampouco ele ou a esposa nuncaforam procurados pelo Promotor de Justiça que, segundo informações que receberamde seus advogados, deveria acompanhar o caso. Emocionado, clamou por justiça.21.5 CONTRADIÇÕESHá inúmeras contradições ao analisarmos as afirmações da vítima e seus paisem contraste com o que diz o Exército Brasileiro. O elemento probatório essencial,no caso, é a prova material colhida no ato de internação de D. P. K. e a outra porocasião da sua ida ao Instituto Médico Legal. Sobre essas provas, há de se dar razãoà tese da acusação: deveriam ter sido apuradas de maneira tecnicamente corretajá no ato da denúncia. Ainda mais numa instituição que lida com situação derisco, no que tange ao uso de armamento e preparo para guerra e outros conflitos.Apesar do jovem denunciante ter mais de 18 anos, o que não obrigaria legalmenteo Exército a chamar seus pais após o ocorrido, razoável seria, do ponto devista humanitário, ao menos um acompanhamento psicológico. Esse tratamento/acompanhamento poderia inclusive orientar a vítima e seus comandantes a respeitodo procedimento para com seus familiares.Logo após o ocorrido, o estado emocional do jovem, segundo o psiquiatraVilmar Taschetto Seixas, contratado pela família para tratar D. P. K.., era deabatimento e depressão, com assumida tendência para o suicídio. Diante disso,entende-se por adequado a sua ausência do meio militar até que seja atestada suacondição de plena recuperação por médico especializado. Seus comandantes admitemsua transferência para outra unidade no final do inquérito, como forma deevitar constrangimentos. A preocupação é salutar e, contudo, não pode ter comoparâmetro o final da apuração e sim as condições psíquicas do paciente.21 - RESQUÍCIOS DA DITADURA: O CASO DO SOLDADO DE SANTA MARIA - Deputado Estadual Jeferson Fernandes21.6 LAUDO MÉDICOEm setembro, após o ocorrido, a vítima está sob atendimento psiquiátrico.383


O médico Vilmar Taschetto Seixas afirma em laudo que D. P. K.. é portadorde retardo mental moderado associado ao transtorno do déficit de atençãocom hiperatividade. O psiquiatra é taxativo no documento: “... tem perímetroencefálico menor que a normalidade – e portanto, é incapaz para exerceratividades da vida militar em definitivo do ponto de vista psiquiátrico, e quedeveria ter sido identificado desde o início de sua inclusão no mês de fevereirode <strong>2011</strong> nas fileiras do Exército”.21.7 O ABSURDOPARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS384O Ministério Público Militar acolheu as conclusões do inquérito militar,onde a vítima também é arrolada como réu. O Código Penal Militar, lei anteriorà Constituição Cidadã, considera crime o ato sexual ou qualquer ato libidinosoquando praticados em área de administração militar – artigo 235. No CPM nãohá distinção entre o ato consentido ou não. Além de D. P. K., também foramdenunciados os quatro rapazes que participaram ativamente do ato de violência,além do sentinela que estava no plantão no alojamento, por omissão relevante.O processo corre em segredo de justiça, mas o promotor Jorge Cesar de Assisjá adianta em documento encaminhado à Assembleia <strong>Legislativa</strong> que “os atosnão evidenciaram a ocorrência de emprego de violência ou grave ameaça”, mesmotendo conhecimento do laudo do IML e de que todas as evidências apontemnesse sentido.21.8 CONCLUSÃOUm caso de violência sexual sofrida dentro de um espaço de segurança nacionalrevela o quanto nossas instituições carecem de avanços, no que tange à proteçãoaos mais fracos. Inadmissível que num alojamento de soldados do Exércitoninguém reaja em socorro a um jovem enquanto é estuprado por quatro colegas.Inadmissível também o despreparo da instituição na averiguação técnica doocorrido e nos cuidados com a vítima. A perícia técnica nas roupas do soldadoviolentado só se deu pela ação dos advogados contratados pelos familiares.O que chamou ainda mais a atenção, foi o posicionamento do MinistérioPúblico Militar sobre o caso. Apressou-se em acatar a conclusão do inquérito mi-


litar, arrolando o soldado vítima como tão culpado quanto os seus agressores. Adenúncia do MPM alega que houve sexo consentido, o que é proibido pelo artigo235 do Código Penal Militar.Se o MPM tivesse pedido qualquer diligência para adicionar informações aoinquérito militar, teria descoberto, através do psiquiatra que está tratando o rapaz,que ele não tem condições mentais de estar nas fileiras do Exército.21.9 PROVIDÊNCIASPerante as denúncias, enquanto membro da CCDH, foram tomadas as seguintesprovidências:• Encaminhados pedidos de esclarecimento para o Comando do Exército epara o Ministério Público Militar.• Enviada correspondência ao procurador de Justiça, Osmar Machado Fernandes,com intuito de saber suas providências em relação ao Inquérito Militar.• Um relatório do caso foi entregue a presidente da Comissão de Cidadania,Direitos Humanos e Minoria da Câmara dos Deputados, deputada ManuelaD’Ávila um relato do caso e das providencias tomadas.• Foi designado que o ouvidor da Secretaria Nacional de Direitos Humanos,Domingos Sávio Dresch da Silveira, acompanhe o caso e ouça o soldadoD. P. K..• O caso foi encaminhado ao senador Paulo Paim, presidente da Comissão deDireitos Humanos e Legislação Participativa.• A violação foi apresentada à Comissão de Direitos Humanos da Organizaçãodos Estados Americanos.21 - RESQUÍCIOS DA DITADURA: O CASO DO SOLDADO DE SANTA MARIA - Deputado Estadual Jeferson Fernandes21.10 RECOMENDAÇÕES21.10.1 Mudança Código Penal MilitarO Código Penal Militar está em desacordo com a Constituição brasileira.385


Segundo o coordenador do grupo Nuances, Célio Golin, o CPM é a única leino Brasil que penaliza as práticas homossexuais e é mantida justamente paraperpetuar a homofobia dentro das Forças Armadas.O estupro é considerado um crime hediondo de acordo com a Lei 12.015/90,a qual altera o título VI da parte especial do Código Penal, que dispõe sobre crimeshediondos. Com essa nova redação fica extinto o atentado violento ao pudor etodo o ato sexual não consentido passa a ser considerado estupro.Porém, o Código Penal Militar, de acordo com o artigo 232, só consideraestupro a penetração homem-mulher. No caso da penetração não consentidahomem-homem, é enquadramento idêntico ao atentado violento ao pudor, desrespeitandoa lei maior.21.10.2 Ingresso no Serviço Militar ObrigatórioPARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSÉ preciso aperfeiçoar os requisitos para o ingresso nas Forças Armadas. Alémde aptidão física, devem ser levados em conta aspectos psicológicos e o históricoescolar.21.10.3 Defesa dos Direitos Humanos nas Forças ArmadasAs Forças Armadas brasileiras precisam atuar de acordo com o Estado Democráticode Direito, respeitando a Constituição Federal.21.10.4 O casoO exército precisa estar preparado para fazer uma perícia completa para apurarsituações como essa, respeitando os Direitos Humanos. É necessário prestaratendimento psicológico imediato à vítima e seus familiares, bem como ao longodo tempo necessário. Com base no exposto, é necessário dar continuidade noacompanhamento do caso até que haja decisão judiciária a respeito.386


Faces – tapeçaria de recorte – 48 X 62cmJulia Maria de Castro - Oficina de Criatividade/ HPSP


22 A LEI MARIA DA PENHA E AVIOLÊNCIA CONTRA A MULHERRubia Abs da Cruz 236Resumo:O objetivo deste artigo é descrever aspectos significativos da violência doméstica e familiarque acontece contra as mulheres no interior das próprias residências. Destaca ainda elementosculturais que contribuem para a incidência deste fenômeno e as repercussões sociais, legaise jurídicas do mesmo. O artigo demonstra que fatores históricos e culturais têm relações intrínsecascom a violência contra as mulheres; por fim, a autora aponta possíveis passos e ousoluções para a implantação da Lei Maria da Penha nas diferentes cidades e os resultadosdecorrentes destes primeiros anos de sua existência da própria lei.Palavras-chave:Violência doméstica e familiar, violência contra a mulher, violência sexual, direitos humanosdas mulheres e Lei Maria da Penha.Um dos grandes obstáculos referentes à prevenção da violência doméstica efamiliar contra a mulher está na falta de conhecimento ou de reconhecimento daimportância do problema e do seu real significado, para a construção e garantia dosdireitos humanos. A percepção de que esse tipo de violência é um problema público,e não somente privado, é relativamente recente na história, pois por muitos anos asquestões decorrentes da violência doméstica e familiar, eram enfrentados somentepela família, sem buscar-se respostas no sistema de segurança e justiça, e em especialna Lei Maria da Penha, que trata da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.Na maioria das vezes, as questões de violências familiares se “resolviam”,sem uma intervenção estatal, especialmente por não haver um sistema organizadode como se denunciar esse problema cultural e social. Nesse caminho, surgiramlegislações protetivas específicas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente22 - A LEI MARIA DA PENHA E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER - Rubia Abs da Cruz236 Advogada, Coordenadora Geral da Themis de 2005 a <strong>2011</strong>. Diretora do Departamento daJustiça da Secretaria da Justiça e Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul.389


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS390a o Estatuto do Idoso e mais recentemente a Lei Maria da Penha, apontando asformas de denunciar essas violações ocorridas no âmbito privado e familiar, assimcomo, para assegurar proteção e a garantia dos direitos.Mesmo com a nova Lei Maria da Penha, grandes preocupações em relaçãoaos mecanismos policiais e jurídicos permanecem, principalmente, pelo fato daviolência doméstica e familiar contra as mulheres estar inserida em um contextopeculiar, em que o ato violento é, na maioria das vezes, mais uma expressão de poderdo que somente de força física. Trata-se de um tipo específico de violência que,independentemente de raça ou classe social, está relacionada com a desigualdadehistórico-cultural instituída entre homens e mulheres. A violência no contexto familiartraz a característica da habitualidade e da relação hierarquizada (CAMPOS:2006), constituindo-se numa escalada de alto potencial lesivo à integridade física epsicológica das mulheres e crianças. Diferentemente da violência urbana, a violênciadoméstica e familiar incide sempre sobre as mesmas vítimas, de forma habitualou rotineira. Essas características são extremamente relevantes, com consequênciasespecíficas, que tornam este tipo de violência diferenciada (OMS: 2002).A pesquisa realizada pelo Ibope Opinião e o Instituto Patrícia Galvão em2009 sobre o tema, verificou que a violência contra a mulher foi considerada muitograve por 88% dos entrevistados, sendo também o tema que mais preocupaas mulheres, seguidas de preocupações na área da saúde vinculadas ao câncer e aaids. Em pesquisa realizada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, as mulheresrelataram que além de ameaças de surra (13%), uma em cada dez mulheres (10%)já foi de fato espancada ao menos uma vez na vida (respectivamente 12% e 11%em 2001). Considerando-se a última vez em que essas ocorrências teriam se dado e ocontingente de mulheres representadas em ambos levantamentos, o número de brasileirasespancadas permanece altíssimo, mas diminuiu de uma a cada 15 segundos parauma em cada 24 segundos – ou de 8 para 5 mulheres espancadas a cada 2 minutos.Importante mencionar que cerca de seis em cada sete mulheres (84%) e homens(85%) já ouviram falar da Lei Maria da Penha e cerca de quatro em cada cinco (78%e 80% respectivamente) têm uma percepção positiva da mesma.A pesquisa Perseu Abramo vai ao encontro das pesquisas realizadas peloIbope/ Themis em 2008 e com o Ibope/Instituto Patrícia Galvão em 2009, noque refere-se ao conhecimento das pessoas sobre a Lei Maria da Penha. O que ébastante positivo, pois embora os procedimentos da Lei possam ser desconhecidos,existe o conhecimento sobre a Lei e de que assunto trata. (Perseu Abramo, 2010).Pondera-se que embora essa violência seja sentida em todos os segmentos


sociais, independentemente de condições econômicas, se revela com muito maisforça nas parcelas da população com menores meios de enfrentá-la, ou seja, commaiores vulnerabilidades, seja por dificuldades emocionais, econômicas, educacionais,de acesso à informação e à justiça, ou de acolhimento pelas instituiçõespúblicas nas áreas de segurança, saúde, assistência social e jurídica. Importantemencionar também as dificuldades culturais existentes para denunciar e rompercom a violência vivida, pois ainda hoje, muitos casos de violência contra a mulhersão vistos como meros problemas domésticos ou como vingança ou implicância davítima, decorrentes da culpabilidade da própria mulher, dificultando ainda maisa decisão pelo rompimento da relação ou de denúncia das violências.Essa breve contextualização do problema, busca nos fazer compreender asdificuldades das mulheres em recorrer aos serviços e a dar publicidade à violênciaque ocorre no âmbito doméstico, já que a própria institucionalização e os procedimentosadotados ainda são insuficientes e muitas vezes ineficazes. Políticaspúblicas efetivas e algumas soluções apontadas na nova Lei, como a prevençãoda violência através da educação e da mídia, do trabalho multidisciplinar e emrede, enquadram-se nas necessidades de diversos contextos culturais brasileiros.Importante também apontar a violência sexual por ser uma das formas maiscomuns de violência contra a mulher e crianças. Estudos e pesquisas apontam agrande incidência dessa violação no âmbito doméstico, muitas vezes associada aum contexto de violência física e/ou psicológica. Entretanto, enquanto a violênciafísica tem sido denunciada em maiores proporções, a violência sexual não possuia mesma visibilidade, devido em parte, as dificuldades para denunciar, seja pelospadrões morais que determinam certos comportamentos sexuais, especialmenteàs mulheres, além de processos de culpabilização em relação a violência sofrida,que igualmente atingem mais fortemente as mulheres, mesmo as muito jovens.A luta prolongada do movimento de mulheres em âmbito nacional e mundialfoi conquistando o reconhecimento público sobre a situação de discriminação e deviolência às quais as mulheres e crianças estão submetidas. Estas conquistas refletem-sena normatização de procedimentos como a Norma Técnica de Prevenção e Tratamentoaos Agravos Resultantes de Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes emvigência desde 1998 e que foi reeditada em 2005, sendo integralmente asseguradana Lei Maria da Penha, Lei Federal 11.340/2006 que trata de Violência Domésticae Familiar Contra a Mulher, da Penha, que assegura o seguinte: Artigo 9 º parágrafo3 o a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderáo acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluin-22 - A LEI MARIA DA PENHA E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER - Rubia Abs da Cruz391


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS392do os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças SexualmenteTransmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outrosprocedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual. Logicamenteque para assegurar a legislação, devemos contar com serviços públicos de saúde, queestejam devidamente informados e que disponibilizem o acesso.Portanto é dever do Estado e dos gestores de saúde manter os hospitais públicospreparados para estes procedimentos, inclusive para realização do aborto previstoem lei, decorrente de violência sexual, conforme determina a Norma Técnica e aLei Maria da Penha, além de outros documentos de consenso internacional, comoo Plano de Ação de Cairo, fortalecido em 1995 com a IV Conferência Mundial daMulher realizado em Pequim, que legitima o conceito de direitos sexuais e de direitosreprodutivos. Este conceito estabeleceu bases para um novo modelo de intervençãona saúde sexual e reprodutiva, que considera os direitos humanos. Logicamente,essa linha se originou devido aos princípios internacionais já firmados em relação àuniversalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, tratandoos direitos sexuais e direitos reprodutivos globalmente e com igualdade, de formajusta e equitativa, de acordo com as diversidades e as especificidades existentes.Importante ponderar, que as decisões judiciais para serem justas socialmente,devem partir da análise das diferenças históricas verificadas nos espaços de poderentre homens e mulheres e no exercício deste poder. A Lei Maria da Penha quetrata de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, implica igualmente, noreconhecimento da Constituição Federal enquanto uma realidade material aindaem construção e que não se limita a forma. Nesse sentido também existe umadificuldade de reconhecimento pelos operadores do direito dos instrumentos jurídicosinternacionais de direitos humanos das mulheres, ainda não integralmentereconhecidos ou valorizados em nosso ordenamento jurídico, como a ConvençãoInteramericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher daOEA, e a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminaçãocontra a Mulher (CEDAW), ambos já ratificados pelo Estado Brasileiro.A Lei Maria da Penha surge para reafirmar a existência dessas Convenções epara colocar em prática conteúdos da própria Constituição Federal. A Lei rompecom a mentalidade anterior e trás novos paradigmas. Antes a violência contra amulher considerada um crime de menor potencial ofensivo, passa a ser reconhecidacomo uma violação aos direitos humanos. Qualquer debate deve ser contextualizadoneste novo marco jurídico.A Lei tem caráter pedagógico, preventivo e protetivo – o que precisamos


para minimizar o problema – além de contar com a criação de um Juizado deViolência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência cívil e criminal,buscando assim, não mais fragmentar a mulher em uma roda viva de processose serviços para conseguir garantir seus direitos. Observa-se que a competênciacivil e criminal não vem sendo respeitada pelos operadores do direito que muitasvezes atuam em uma perspectiva somente criminal, não resolutiva em relação aodireito de família, e que na maioria dos casos, é o que mais interessa à mulherresolver. Inclusive essa resolução pelo juiz provisoriamente dos conflitos de direitode família, inibe novos episódios de violência.As consequências deste novo formato de legislação ainda estão sendo conhecidose reconhecidos, mas as consequências do procedimento da Lei 9.099/95 nosconflitos de violência doméstica e familiar contra a mulher foram insatisfatórios ebanalizaram a violência, deixando um sentimento de impunidade e de certa forma,permitindo a continuidade da violência, o que não podemos mais admitir.É importante dizer que ainda existem encaminhamentos de casos de violênciadoméstica e familiar para o Juizado Especial CriminalA Lei cumpre com uma responsabilidade assumida pelo Estado Brasileirode criação de lei específica para coibir a violência, decorrente das Recomendaçõesda Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Estado Brasileiro, devidoao encaminhamento de uma petição pelo Comitê Latino Americano e do Caribede Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM e pelo CEJIL, em um casode violência doméstica, onde o marido tentou assassinar a esposa duas vezes e osistema penal brasileiro não estava sendo resolutivo por mais de uma década. ALei é chamada Maria da Penha em homenagem a esta mulher, Maria da PenhaFernandes que ficou paraplégica em decorrência da violência sofrida, mas quebuscou apoio no movimento feminista para romper com essa realidade social deimpunidade e violência.A implementação efetiva da Lei poderá ajudar a minimizar a violência, masdeverá contar com o suporte de diversas áreas, realizando trabalhos articulados ecomplementares, conforme inclusive esta previsto na Lei. Os serviços multidisciplinaresdando apoio ao Judiciário. O art. 8º tem por objetivo definir as diretrizesdas políticas públicas e medidas integradas para a prevenção e erradicaçãoda violência doméstica contra as mulheres. Prevê-se um conjunto articulado deações governamentais e não-governamentais da União, dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios, destacando-se a integração operacional de órgãos do22 - A LEI MARIA DA PENHA E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER - Rubia Abs da Cruz393


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS394Poder Judiciário, Ministério Público, Segurança Pública, Assistência Social, Saúde,Educação, Trabalho e Habitação.De acordo com o art. 9º, a assistência social às mulheres em situação de violênciadoméstica e familiar deverá ser prestada de forma articulada, emergencial ounão, conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica de AssistênciaSocial e no Sistema Único de Saúde, dentre outras normas pertinentes. Prevê-seainda o atendimento por equipe multidisciplinar aos envolvidos, formada porprofissionais de diversas áreas de conhecimento, inclusive externas ao meio jurídico,como psicólogos, assistentes sociais e médicos, a fim de subsidiar a atuaçãodo juiz, do Ministério Público e da Defensoria Pública.O Ministério Público assume importante papel na fiscalização dos estabelecimentospúblicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violênciae na compilação dos dados em colaboração com demais serviços públicos. OMinistério Público do Rio Grande do Sul tem cumprido essa função em relaçãoà sistematização dos dados, mas infelizmente essa não é uma realidade nacional.A Defensoria Pública é garantida a toda mulher em situação de violência domésticae familiar. Esse é um grande avanço, já que a defensoria pública atuava antesda Lei Maria da Penha, somente na defesa de quem cometia o crime, entretanto,essa é outra grande dificuldade, visto que em muitas cidades do interior do Estadoinexiste esse atendimento da defensoria pública.Importante os serviços reconhecerem que ao lidar com o problema da violência,cada setor tem um papel a desempenhar, e, coletivamente, a abordagemadotada por cada um deles têm potencial para produzir resultados significativos,como por exemplo: conseguir revelar a violência existente e encoberta; realizarpesquisas que busquem direcionar caminhos sobre as causas e os fatores relacionadosà violência, investigar os fatores que aumentam ou diminuem o risco deviolência e o que pode ser modificado através de intervenções.Devemos com base em dados, explorar formas de evitar a violência, utilizandoas informações obtidas, elaborando, monitorando e avaliando as intervenções,além de divulgar exemplos de intervenções que obtiveram êxito ou que pareçampromissoras e eficazes.Finalizando, espera-se que o Estado Brasileiro avance no enfrentamento àsviolências através da implementação da Lei Maria da Penha e de seus devidosprocedimentos legais, e da aplicação de suas diretrizes quanto à prevenção, queefetivamente se reflitam em políticas públicas, que possam dar conta desse fenômenosocial. Nesse sentido, seria importante que a Ação Declaratória de Cons-


titucionalidade 19, referente a Lei Maria da Penha e interposta por iniciativa daAdvocacia Geral da União, fosse julgada Constitucional junto ao Supremo TribunalFederal, demonstrando uma verdadeira responsabilidade social, jurídica epolítica do Estado Brasileiro através de seus agentes. E ainda, que a Lei possa seraplicada em relação à violência contra a mulher da forma mais ampla possível,e não restritivamente, já que assegurada pela Constituição Federal e por instrumentosinternacionais de proteção as mulheres, já ratificados de forma soberanapelo Estado Brasileiro.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCAMPOS, Carmen Hein de. Direitos Humanos, Violência de gênero e DireitoPenal: primeiras considerações sobre a Lei 11.340/2006. In: www.articulacaodemulheres.org.br.AMB, 2006.CRUZ, Rubia Abs da; AZEVEDO, Ielena; PASINI, Elisiane. Nominando oInominável: Violência contra a mulher e o Poder Judiciário. Porto Alegre: EditoraThemis, 2008.CRUZ, Rubia Abs da. Advocacy Feminista e a Lei Maria da Penha. In: WOLF,Cristina Scheibe; FÁVERI, Marlene de; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.).Leituras em rede gênero e preconceito. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.CRUZ Rubia Abs da; e SEVERO Elena Erling – Advocacy Feminista para oAcesso à Justiça, página 45 à 60. Justiça e Direitos Humanos – Experiências deAssessoria Jurídica Popular, Curitiba PR; Terra de Direitos, 2010.http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/pesquisas-de-opinião-publica/pesquisas-realizadas/pesquisas-mulheres-brasileiras-nos-esEm 25 de abril de <strong>2011</strong>.INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOSHUMANOS – os Direitos das Mulheres são Direitos Humanos, Cepia – Rio deJaneiro 2001.LEI FEDERAL 11.340 de 7 de agosto de 2006 – Violência Doméstica e Familiarcontra a Mulher – www.themis.org.br Advocacia Feminista/Legislações.Em 25 de abril de <strong>2011</strong>.ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – Relatório Mundial sobre Violênciae Saúde – um problema mundial de saúde pública Genebra – 2002.22 - A LEI MARIA DA PENHA E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER - Rubia Abs da Cruz395


S/ título – acrílico/tela – 51 X 41cmSandro Magalhães Azambuja – Oficina de Criatividade/ HPSP


23 A LUTA POR MEMÓRIA, VERDADE EJUSTIÇASuzana Lisboa 237Resumo:A luta pela democracia passa necessariamente pela Memória, pela Verdade e Justiça. A consolidaçãoda democracia nos países da América Latina só se efetivará quando for resgatada averdade de nosso recente passado. A tortura que ainda vem sendo praticada em muitas partesde nosso país precisa ter fim. Este debate tem sido motivo de muitas conferências e encontros,todos com o sentido de resgatar a cidadania dos familiares e das próprias vítimas. Neste artigo,a autora coloca a importância da Comissão da Verdade para o Brasil e para a históriade muitas famílias dos que lutaram pela redemocratização de nosso país.Palavras-chave:Democracia, memória, verdade, justiça, luta.23.1 APRESENTAÇÃO DO TEMAApós a promulgação da lei nº 6.683, sancionada pelo último dos ditadoresmilitares, João Baptista Figueiredo, no dia 28 de agosto de 1979, conhecida comoLei da Anistia, a luta pelo resgate dos fatos ocorridos durante a ditadura militarpercorreu – e ainda percorre – caminhos tortuosos, onde a verdade e a justiça têmsido relegadas a um plano secundário ou mesmo ignoradas.Para isso concorrem não apenas os defensores do golpe militar, integrantesdos organismos da repressão política, que praticaram ou não torturas e assassinatos,e os setores mais reacionários da sociedade brasileira, mas os governos democráticosque se seguiram. Houve o reconhecimento das mortes e desaparecimentosnos governos FHC e Lula, mas a busca dos desaparecidos políticos não tocou os23 - A LUTA POR MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA - Suzana Lisboa237 Membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos397


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS398presidentes da República como no restante do Cone Sul – Uruguai, Chile e Argentinanos dão exemplos diários do quanto estamos longe do caminho da Verdade.Enquanto isso, a impunidade dos crimes cometidos pela ditadura inspira ealimenta os crimes hoje cometidos contra os pobres e marginalizados desse nossopaís, torturados, mortos e também desaparecidos nos descaminhos da violêncianas nossas cidades.A tortura foi e é uma prática cotidiana – para que acabe, é preciso que hajapunição dos torturadores de ontem e dos de hoje. A triste decisão tomada pelo STFem 29 de abril de 2010, negando o pedido da OAB para que fosse reconhecidoque a lei da anistia política não se estendeu aos torturadores precisa ser revista.Crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. Não há qualquer dúvida do errocometido, mas essa luta não termina no julgamento do STF – a batalha continua...Nossa democracia somente será verdadeira, se os homens e mulheres queperderam suas vidas pelas mãos do estado brasileiro puderem ser resgatados emsua plenitude: a democracia não será construída sobre os cadáveres insepultos doscombatentes assassinados e sob as mãos impunes dos seus assassinos.É esse o debate que ainda hoje se trava, quando se discute a Comissão daMemória, da Verdade e da Justiça.O eixo Verdade e Memória não constava da programação feita pela SecretariaEspecial de Direitos Humanos da Presidência da República e foi incluídona pauta da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos pela ConferênciaEstadual de Minas Gerais.Dentre as propostas aprovadas na Conferência Nacional, constou o que foiaprovado no grupo Verdade e Memória:• criação da Comissão Nacional de Memória, Verdade e Justiça, autônoma eindependente, composta de forma plural e suprapartidária com ampla legitimidadesocial e política, com caráter público, mandato e prazo definidos, complenos poderes para apurar, identificar, de forma substanciada, e encaminharà punição e/ou reparação os casos de graves violações de direitos humanosrealizadas no período da ditadura militar (1964-1985), tendo poderes para:a) requisição de documentos dos diversos órgãos nos quais estiveremguardados;b) cobrar a colaboração de todas as instâncias do executivo federal para odesenvolvimento de suas competências;c) pleno acesso a todas as instituições públicas e privadas, a todas as fon-


tes de informação, determinando a obrigatória colaboração de todasas autoridades federais;d) identificar e publicizar as estruturas da repressão clandestinas e ilegais,suas ramificações nos diversos aparelhos de Estado e na sociedade;e) determinar que agentes públicos que obstruam os trabalhos possam serresponsabilizados administrativamente.No entanto, no decorrer de 2009, o texto aprovado na conferência começoua sofrer alterações, mesmo antes da publicação. Primeiro, o governo tentou fazerpassar que a Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça se transformasseem Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, para deixar claro que a decisãoera evitar a responsabilização e punição dos agentes de estado que cometeram oscrimes de lesa-humanidade.Mas pressionado com a ofensiva dos setores reacionários da sociedade brasileira,o governo federal recuou ainda mais. Depois de ter assinado o PNDH-3, o Presidenteda República vergonhosamente cedeu às pressões dos militares e, para diluir aindamais sua responsabilidade, decidiu que, ao invés de assumir a criação da Comissãoda Verdade e da Justiça, enviaria ao Congresso um projeto de lei, a ser elaboradopor um grupo de trabalho, que não contemplava, é claro, os defensores da posiçãotomada na Conferência Nacional de Direitos Humanos. E excluía da discussão osprincipais protagonistas dessa luta: os familiares de mortos e desaparecidos políticose os movimentos sociais que durante todos esses anos levantaram essa bandeira.A Comissão da Verdade que o governo propôs ao Congresso Nacional é uminstrumento ineficaz e poderá se tornar descomprometido com as graves violaçõesdos direitos humanos.No decorrer do processo, foi ressuscitada pelos setores reacionários do governoa pecha de ‘revanchista’, criada pela ditadura militar para ser usada contraos familiares de mortos e desaparecidos a cada denúncia dos crimes cometidos e,agora, usada pela democracia para rotular os que divergem.A tentativa de isolar os que persistiram na luta se confrontou com os que sedeixaram imobilizar diante do medo e da intimidação de que estariam apostandono retrocesso político se denunciassem a presença de torturadores nos postos demando, se exigissem a punição dos torturadores ou se fizessem a simples denúnciada existência de torturadores.23 - A LUTA POR MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA - Suzana Lisboa399


23.2 BUSCANDO JUSTIÇAPARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSMas o ano de 2010 trouxe companhia aos familiares de mortos e desaparecidos:essa luta já alcançara a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a justiçaque não encontramos no Brasil foi decretada pela Corte – o Brasil foi condenadopor seus crimes na Guerrilha do Araguaia em ação que fora proposta em 1996,em razão da morosidade da justiça brasileira.Em 1982, os familiares dos guerrilheiros do Araguaia iniciaram uma açãojudicial para exigir do Estado esclarecimentos sobre as circunstâncias das mortese desaparecimentos de seus parentes e a localização dos seus restos mortais. Frenteà lentidão, foi feito o recurso à Comissão Interamericana de Direitos Humanosem 1996, que encaminhou o caso para a Corte.A ação interna teve sentença favorável aos familiares em 2003, quando a juízaSolange Salgado decretou ao Estado garantir o direito à verdade aos familiaresdos desaparecidos políticos, determinando rigorosas investigações no âmbito dasForças Armadas, prevendo inclusive a intimação de todos os agentes militaresainda vivos que tenham participado das operações militares, independentementedos cargos que ocupavam na época.Foi com surpresa e indignação que os familiares souberam, em agosto de2003, que o Presidente Lula recorrera da decisão e o fez sucessivamente, interpondorecursos e embargos para impedir a execução da sentença, sem sucesso, atéque a sentença transitou em julgado no ano de 2007.Somente em 2009, quando a Corte Interamericana acatou o pedido dosfamiliares para julgamento, o governo brasileiro tomou providências para o cumprimentoda sentença outorgada em 2003. Passou a tarefa ao Ministério da Defesae não à Secretaria de Direitos Humanos, excluindo os familiares da discussão eparticipação e o que se seguiu com a criação do GTT – Grupo de Trabalho Tocantins,não merece maiores referências.Em sua sentença, de novembro de 2010, a Corte Interamericana de DireitosHumanos 238 , dentre outras decisões, declarou que o Estado é responsável pelosdesaparecimentos forçados e que as disposições da lei de anistia brasileira queimpedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos sãoincompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não400238 A integra da sentença da CIDH está transcrita no site da Secretaria Especial de DireitosHumanos www.direitoshumanos.gov.br, ali citada como Caso Julia Gomes Lund


podem seguir representando um obstáculo para a investigação do ocorrido, nempara a identificação e punição dos responsáveis.A sentença determina, dentre outras disposições, que o Estado investigueos fatos, puna os responsáveis, busque os corpos, indenize os familiares, faça atopúblico de reconhecimento de responsabilidade internacional, desenvolva cursopermanente e obrigatório sobre direitos humanos a todos os níveis hierárquicosdas Forças Armadas, tipifique o delito de desaparecimento forçado.A Corte acompanha o cumprimento da sentença e deverá realizar audiênciapara que o informe das medidas adotadas seja avaliado.As buscas dos corpos na região do Araguaia têm sido feitas pelo Grupo deTrabalho do Araguaia, mas o Exército, que contribui com a logística, continua adeclarar que não sabe de nada, não abre seus arquivos e não apresenta as informaçõesnecessárias e fundamentais para a localização das sepulturas.23.3 A COMISSÃO DA VERDADEEnquanto isso, os familiares tentaram formalmente, desde junho, participarda discussão do projeto de lei enviado ao congresso pelo governo anterior, masnão foram recebidos.Em documento encaminhado ao governo com críticas e considerações aoprojeto, os familiares declararam que:Para que tenhamos uma Comissão que efetive a Justiça:• o período de abrangência do projeto de lei deverá ser restrito ao período de1964 a 1985;• a expressão “promover a reconciliação nacional” seja substituída por “promovera consolidação da Democracia”, objetivo mais propício para impedira repetição dos fatos ocorridos sob a ditadura civil-militar;• no inciso V, do artigo 3º, deve ser suprimida a referência às Leis: 6.683,de 28 de agosto de 1979; 9.140, de 1995; 10.559, de 13 de novembro de2002, tendo em vista que estas leis se reportam a períodos históricos e ob-23 - A LUTA POR MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA - Suzana Lisboa401


jetivos distintos dos que devem ser cumpridos pela Comissão Nacional daVerdade e Justiça.• o parágrafo 4°, do artigo 4°, que determina que “as atividades da ComissãoNacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório“, deveser substituído por nova redação que delegue à Comissão poderes para apuraros responsáveis pela prática de graves violações de direitos humanos noperíodo em questão e o dever legal de enviar suas conclusões para as autoridadescompetentes.Para que tenhamos uma comissão de verdade:PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS• o parágrafo 2°, do artigo 4º que dispõe que “os dados, documentos e informaçõessigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderãoser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardarseu sigilo”, deve ser totalmente suprimido pela necessidade de amploconhecimento pela sociedade dos fatos que motivaram as graves violaçõesdos direitos humanos;• o artigo 5°, que determina que “as atividades desenvolvidas pela ComissãoNacional da Verdade serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério,a manutenção do sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos oupara resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas”,deve ser modificado, suprimindo-se a exceção nele referida, estabelecendoque todas as atividades sejam públicas, com ampla divulgação pelos meiosde comunicação oficiais.23.3.3 Para que tenhamos uma Comissão da Verdadelegítima:402• os critérios de seleção e o processo de designação dos membros da Comissão,previstos no artigo 2º, deverão ser precedidos de consulta à sociedade civil, emparticular aos resistentes (militantes, perseguidos, presos, torturados, exilados,suas entidades de representação e de familiares de mortos e desaparecidos);


• os membros da Comissão não deverão pertencer ao quadro das Forças Armadase Órgãos de Segurança do Estado, para que não haja parcialidadee constrangimentos na apuração das violações de direitos humanos queenvolvem essas instituições, tendo em vista seu comprometimento com oprincípio da hierarquia a que estão submetidos;• os membros designados e as testemunhas, em decorrência de suas atividades,deverão ter a garantia da imunidade civil e penal e a proteção do Estado.Para que tenhamos uma Comissão com estrutura adequada:• a Comissão deverá ter autonomia e estrutura administrativa adequada, contandocom orçamento próprio, recursos financeiros, técnicos e humanos paraatingir seus objetivos e responsabilidades. Consideramos necessário ampliaro número atual de sete (07) membros integrantes da Comissão, conformeprevisto no Projeto Lei 7376/2010.Para que tenhamos uma verdadeira consolidação daDemocracia:• concluída a apuração das graves violações e crimes, suas circunstâncias e autores,com especial foco nos casos de desaparecimentos forçados ocorridosdurante o regime civil-militar, a Comissão de Verdade e Justiça deve elaborarum Relatório Final que garanta à sociedade o direito à verdade sobre essesfatos. A reconstrução democrática, entendida como de Justiça de Transição,impõe enfrentar, nos termos adotados pela Escola Superior do MinistérioPúblico da União, “(...) o legado de violência em massa do passado, paraatribuir responsabilidades, para exigir a efetividade do direito à memória eà verdade, para fortalecer as instituições com valores democráticos e garantira não repetição das atrocidades”.23 - A LUTA POR MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA - Suzana LisboaO projeto apresentado pelo governo certamente já estará aprovado quandoda impressão deste Relatório <strong>Azul</strong>. Ficará o sabor amargo da exclusão dos quelutaram por décadas e sequer foram ouvidos.403


Mas a luta continua! Estaremos atentos ao trabalho da Comissão da Verdade.A pretensa e mal chamada reciprocidade imputada à lei de anistia não impede apunição dos crimes da ditadura: o que temos que garantir é uma interpretação quedesmonte a aberração jurídica e histórica da autoanistia que se quer naturalizar.Não é possível realizar uma transição que seja democrática com esquecimentoe impunidade – a abertura incondicional dos arquivos da repressão é condiçãoimprescindível para o desfecho deste processo. Reparação não combina com reconciliação,muito menos com sigilo eterno e mentira organizada.PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS404


Bichos - acrílico/tela – 40 X 60,5cmNilda Arruda Gregoski – Oficina de Criatividade/ HPSP


24 ASSÉDIO MORAL NO TRABALHOSônia Mascaro Nascimento 239Assédio é o termo utilizado para designar toda conduta que cause constrangimentopsicológico ou físico à pessoa. O assédio moral (mobbing, bullying,harcèlement moral ou, ainda, manipulação perversa, terrorismo psicológico)caracteriza-se por ser uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que atentacontra a dignidade psíquica, de forma repetitiva e prolongada, e que expõe otrabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de causar ofensaà personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tenha por efeito excluira posição do empregado no emprego ou deteriorar o ambiente de trabalho,durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções. A caracterização doassédio moral é subjetiva.Enfatiza-se que o assédio moral é caracterizado por uma conduta abusiva,seja do empregador que se utiliza de sua superioridade hierárquica para constrangerseus subalternos ou seja dos empregados entre si com a finalidade de excluiralguém indesejado do grupo, o que pode se dar, aliás muito comumente, por motivosde competição ou de discriminação pura e simples. Ao primeiro fenômenose dá o nome de assédio vertical, bossing ou mesmo mobbing descendente, comoprefere denominar o Dr. Heinz Leymann, psicólogo e cientista médico alemãoque, na década de 80, começou a estudar o fenômeno do assédio moral a partirde experiências verificadas por outros estudiosos em grupos de crianças em idade24 – ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO – Sônia Mascaro Nascimento239 Especialista, Mestre e Doutora em Direito do Trabalho pela USP; Professora Universitária;Membro do Instituto Ítalo-Brasileiro de Direito do Trabalho; Autora dos Livros AssédioMoral, Horário de Trabalho e Trabalho da Mulher e Direitos Humanos. Autora de diversos artigos;Coordenadora do Curso de Pós-Graduação do Instituto dos Advogados de Sorocaba e Região;Diretora-Geral do Núcleo Mascaro de Cursos; Consultora-sócia de Amauri Mascaro Nascimento& Sônia Mascaro Advogados; Consultora e Advogada Trabalhista; Colaboradora do Caderno deEmpregos do Jornal O Estado de São Paulo. Colaboradora do Jornal Valor Econômico, Folha deS. Paulo, Rádio CBN e Revista Liderança.407


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS408escolar que tinham comportamentos hostis, cujas manifestações começaram a serpercebidas, vinte anos depois, no ambiente de trabalho.Assim, o que se verifica no assédio vertical é a utilização do poder de chefiapara fins de verdadeiro abuso de direito do poder diretivo e disciplinar, bem comopara esquivar-se de consequências trabalhistas. Tal é o exemplo do empregadorque, para não ter que arcar com as despesas de uma dispensa imotivada de umfuncionário, tenta convencê-lo a demitir-se ou cria situações constrangedoras,como retirar sua autonomia no departamento, transferir todas suas atividades aoutras pessoas, isolá-lo do ambiente, para que o empregado sinta-se de algum modoculpado pela situação, pedindo sua demissão. Já o fenômeno percebido entre ospróprios colegas de trabalho que, motivados pela inveja do trabalho muito apreciadodo outro colega, o qual pode vir a receber uma promoção, ou ainda pela meradiscriminação motivada por fatores raciais, políticos, religiosos, etc., submetemo sujeito “incômodo” a situações de humilhação perante comentários ofensivos,boatos sobre sua vida pessoal, acusações que podem denegrir sua imagem perantea empresa, sabotando seus planos de trabalho, é o denominado assédio horizontal.Ainda são enumerados como espécie de assédio moral o mobbing combinadoe o mobbing ascendente, conforme classificação do Dr. Leymann. Aquele sedaria com a união, tanto do chefe, quanto dos colegas no objetivo de excluir umfuncionário, enquanto o último seria o assédio praticado por um subalterno quese julga merecedor do cargo do chefe, bem como por um grupo de funcionáriosque quer sabotar o novo chefe, pois não o julgam tão tolerante quanto o antigoou tão capacitado para tal cargo.Na formulação atual, o assédio moral é concebido como uma forma de “terrorpsicológico” praticado pela empresa ou pelos colegas, que também é definidocomo “qualquer conduta imprópria que se manifeste especialmente através decomportamentos, palavras, atos, gestos, escritos capazes de causar ofensa à personalidade,à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, de colocarseu emprego em perigo ou de degradar o clima de trabalho”, ou mesmo como“prática persistente de danos, ofensas, intimidações ou insultos, abusos de poderou sanções disciplinares injustas que induz naquele a quem se destina sentimentosde raiva, ameaça, humilhação, vulnerabilidade que minam a confiança em simesmo”. De tais conceitos, podemos depreender que o elemento comum, alémda finalidade de exclusão, é a modalidade da conduta, a qual sempre se verificaagressiva e vexatória, capaz de constranger a vítima, trazendo nela sentimentos dehumilhação, inferiorização, afetando essencialmente a sua auto-estima.


A principal implicação do terrorismo psicológico é a afetação da saúde mentale física da vítima, mais comumente acometida de doenças como depressão e stress,chegando, por vezes, ao suicídio. Um dos elementos essenciais para a caracterizaçãodo assédio moral no ambiente de trabalho é a reiteração da conduta ofensiva ouhumilhante, uma vez que, sendo este fenômeno de natureza psicológica, não háde ser um ato esporádico capaz de trazer lesões psíquicas à vítima.Como bem esclarece o acórdão proferido no TRT da 17ª Região, “a humilhaçãorepetitiva e de longa duração interfere na vida do assediado de mododireto, comprometendo sua identidade, dignidade e relações afetivas e sociais,ocasionando graves danos à saúde física e mental, que podem evoluir para a incapacidadelaborativa, desemprego ou mesmo a morte, constituindo um riscoinvisível, porém concreto, nas relações e condições de trabalho.” Assim, o arcotemporal deve ser suficientemente longo para que cause um impacto real e deverdadeira perseguição pelo assediador.Atualmente, não se fala em um tempo determinado em dias, ou meses, porémfoi constatado que o assédio moral, em regra, se configura no prazo de 1 a3 anos, o que, porém, não deve servir de parâmetro, vez que o assédio pode serverificado em tempo mais exíguo, dependendo do tempo que o dano levar parase instalar. O assédio moral é uma das formas de se configurar o dano aos direitospersonalíssimos do indivíduo. Assim, um ato violador de qualquer desses direitospoderá configurar, dependendo das circunstâncias, o assédio moral, o assédio sexualou a lesão ao direito de personalidade propriamente dita. A diferença entre eles éo modo como se verifica a lesão, bem como a gravidade do dano.Dessa forma, teríamos o assédio moral como uma situação de violação maisgrave que a “mera” lesão do direito de personalidade, eis que acarreta um dano àsaúde psicológica da pessoa, à sua higidez mental, o que deve ser mais severamenterepreendido pelo ordenamento. Tal repreensão se revela, principalmente, no tocanteà valoração da indenização advinda do assédio moral, que deve ser analisadade modo diverso daqueles critérios comumente utilizados para as demais formasde pleito do dano moral. Nota-se que não é dado ao assediado a devida atençãovalorativa na reparação do dano sofrido, pois, como forma mais grave de violaçãoda personalidade e da saúde mental do trabalhador, mereceria indenização superior.Estudos feitos por médicos e psicólogos do trabalho mostram que o processoque desencadeia o assédio moral pode levar à total alienação do indivíduodo mundo social que o cerca, julgando-se inútil e sem forças e levando, muitasvezes, ao suicídio. Levando isso em conta, a não configuração do assédio moral24 – ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO – Sônia Mascaro Nascimento409


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSpela ausência do dano psíquico não exime o agressor da devida punição, pois aconduta será considerada como lesão à personalidade do indivíduo, ensejando odever de indenizar o dano moral daí advindo.Destarte, a pessoa que resiste à doença psicológica, seja por ter boa estruturaemocional, seja por ter tido o cuidado de procurar ajuda profissional de psicólogosou psiquiatras, não será prejudicada, pois sempre restará a reparação pelodano moral sofrido, ainda que o mesmo não resulte do assédio moral. Assim,reiteramos nosso entendimento no sentido de que nem todo dano à personalidadeconfigura o assédio moral, como se percebe na maioria dos estudos jurídicosatuais e, principalmente, nas decisões da Justiça do Trabalho. O que se observa éa banalização do instituto, que é quase confundido com o dano moral, ou seja,basta o empregador insultar o empregado uma vez diante dos colegas para que oPoder Judiciário condene a empresa por assédio moral.O que se pretende é justamente delinear os limites em que o assédio moralse dá para que não haja generalização do instituto, fugindo da natureza que ocriou, que é a preocupação com as doenças psicológicas nascidas nas relações detrabalho. Nessa esteira, entendo que a configuração do assédio moral depende deprévia constatação da existência do dano, no caso, a doença psíquico-emocional.Para tanto, necessária a perícia feita por psiquiatra ou outro especialista da áreapara que, por meio de um laudo técnico, informe o magistrado, que não poderiachegar a tal conclusão sem uma opinião profissional, sobre a existência desse dano,inclusive fazendo a aferição do nexo causal.Ressalto que a prova técnica para a constatação do dano deve ser produzidapor perito da área médica, sem o que não há como se falar em assédio moral, eisausente seu pressuposto essencial: o dano psicológico ou psíquico-emocional.Para concluir esse ponto, reitero que: a) a existência do dano psíquico, emocionalou psicológico é requisito para configuração do assédio moral; b) é necessária aprova técnica do dano, que se daria por meio de laudo médico afirmando existira doença advinda do trabalho; c) a vítima da conduta assediadora que não sofreresse tipo específico de dano não ficará desprotegida, pois ainda poderá pleiteardanos morais pela ofensa aos seus direitos de personalidade.410


A Morada dos Ignorados, 2001 – tapeçaria de recorte – 97,5cm X 2,03mBarbara E. Neubarth – Oficina de Criatividade/ HPSP


25 A OFICINA DE CRIATIVIDADE DOHOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO:ARTE E MEMÓRIA 240 Barbara E. Neubarth 241À memória do meu companheiro Sérgio Tadeu Vargas CôrtesÉ urgente sustentar a memória das víti mas, de todas as vítimas.Assim, é neces sária uma linguagem que parta da sintaxe do sangueda realidade contemporânea. A educação pela arte deve ser o momentode ligação entre a memória daquele que existenciou a dore a memória que se cria pela compreensão que nasce da partilhaíntima de um sentido através da arte. (VILELA, 2001, p. 252).Entre as inúmeras enfermidades que podem acometer o ser humano está adoença mental. Ainda hoje, entender patologias deste espectro representa um grandedesafio. Divergências conceituais sobre suas causas e consequências implicamterapêuticas diversificadas e, muitas vezes, discutíveis. É quando os trata mentossão baseados, exclusivamente, em sintomas e protocolos, prática esta que faz lembrara ação de Procusto 242 , ao propor cuidados uniformes a sujeitos diferentes.Buscar entender o homem e quais os conflitos que o afligem é tarefa instigante enecessária para aqueles que desejam envolver-se com uma clínica comprometida25 - A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA - Barbara Neubarth240 NEUBARTH, Barbara Elisabeth. No fim da linha do bonde, um tapete voa-dor: a Oficinade Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (1990-2008): inventário de uma práxis /UFRGS: Porto Alegre, 2009.241 Psicóloga da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, Doutora em Educação.Contato: barbaraneubarth@gmail.com242 Procusto, na mitologia grega, era um bandido que obrigava aos que passavam por um desfiladeirodeitar-se em um leito de ferro. Aos que fossem muito grandes cortava-lhes os pés, aosmuito pequenos espichava até que tomassem o tamanho do leito.413


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOScom pessoas adoecidas e não apenas com as doenças nas pessoas. Colocar luz sobreaspectos do inconsciente, sem descuidar dos modos como o sujeito vive e se relaciona,como desenvolve seus processos criativos, quais são suas fragilidades ou seestá estável, qual o alcance e a trama de sua rede social, exige grandes e repetidosesforços, que, em muitos casos, tornam-se trabalho de Sísifo. 243 É o que acontecequando estamos diante de sujeitos psicóticos, os casos de difícil acesso. Aquelessujeitos cujo me canismo essencial, segundo Lacan (1999), é o de foraclusão doNome-do-Pai – os sujeitos que se en contram fora-do-discurso. Problemática estaque pode se complicar quando se trabalha com pessoas internados em antigosmanicômios, cujos relacionamentos são ainda mais restritos e pouco demandantes.A psiquiatria instituída na França, como um conjunto de teorias e práticasmédicas que pretendia regulamentar o espaço social toma força no Brasil no finaldo Império 244 e advento da República 245 . Nos hospícios brasileiros, o movimentode reafir mação do potencial normativo social se caracterizou por sua funçãoeminentemente segregadora e de simples reclusão asilar, sendo a exclusão umdos seus mais fundamentais papéis. Ao enclausurar o sujeito da desrazão, o louco,aquele que não se adaptava às novas razões do trabalho e do mundo burguês,favorecia-se a ordem e o progresso. Para isto, o louco era internado em um lugarhigienizado física e mentalmente saudável, onde poderia recuperar os bons valoresmorais perdidos. (SCHIAVONI, 1997)No Rio Grande do Sul, o Hospício São Pedro é inaugurado em 29 de junhode 1884, na esteira das mesmas preocupações higienistas, associadas à modernizaçãodas cidades. Na ocasião, foram para lá transferidos 41 (quarenta e um) alienadosori undos da Santa Casa de Misericórdia e da Cadeia Civil. Com o passar dos anoschegou a abrigar cerca de 5.000 (cinco mil) internos. (CHEUICHE)O grande número de doentes internados e seu alto custo, somados à não resolutividadedeste sistema, levaram a que, na década de 70, do século XX, ocorresse,em inúmeros países, o recrudescimento da crítica ao modelo hospitalocêntricode atendimento à doença mental. O modelo havia se esgotado, e, de diferentesmaneiras, iniciava-se o lento processo pelo fim dos manicômios, cujas propostas414243 Trabalho de Sísifo: Sísifo tendo escapado a Tânatos, deus da morte, enviado por Zeus paracastigá-lo, foi levado ao Inferno, onde o condenaram ao suplício de rolar uma rocha até o cimo deum monte, donde ela se despencava, devendo o condenado recomeçar incessantemente o trabalho.244 Império do Brasil (1822- 1889)245 Proclamação da República do Brasil ocorreu em 15 de novembro de 1889.


têm por fundamento mudanças no modelo de atenção, operando para, ao invésde tratar de doen ças, cuidar de sujeitos concretos, pessoas reais, lidando, comquestões de cidadania, de inclusão social, de solidariedade. (AMARANTE, 2006)No Brasil, tal movimento nasce no conjunto de ações que visam a democratizaçãodo país, que clama por liberdades individuais e, entre estas, os direitosa cidadania do louco. (TENÓRIO, 2001)Entre as propostas para o São Pedro estava a implantação de um Centro deReferência Humanística, chamado Projeto Vida. Coorde nado pelo psiquiatraSalvador Célia, tal projeto era dedicado a populações carenciadas, incluindo-seos pacientes psiquiátricos e se baseava em vivências e atividades intersetoriais,mesclando cultura, saúde, educação, esporte, ciências e tecnologias, e ainda, apoiojurídico. Este conjunto de ações destinava-se ao resgate da auto-estima e da cidadania,criando um espaço, para além do espaço físico – um espaço para buscar olúdico, o criativo, a saúde dentro do respeito à cultura de cada um. (CÉLIA, 1994)A promulgação da lei da Reforma Psiquiátrica 246 desencadeou, no Rio Grandedo Sul, um amplo processo de discussão denominado São Pedro Cidadão. 247Partindo da transformação do HPSP deveria operar saídas para as situações deconfinamento e exclusão em que viviam os pacientes psiquiátricos. Além disto,na ocasião, foi deliberada a urgência de implantação de modelos dife renciados deassistência, o resgate da identidade e da cidadania dos usuários, dentro de umapolí tica de atenção à saúde mental para todo o Estado.Entre avanços e recuos, o que se tem, na atualidade, é que, na área de moradiado São Pedro, sua parte asilar, tende a se extinguir e, desde 1999, não entramnovos moradores. Alguns, dos que ali estavam, foram transferidos para o MoradaSão Pedro e, outros, para o Morada Viamão, que atendendo a um disposi tivo da leida Reforma Psiquiátrica, servem como serviços residenciais terapêuticos. Outros,poucos, foram morar em pensões ou com familiares, enquanto muitos foram aóbito. Mas ainda existem aqueles que, estando lá, precisam da nossa atenção. Nãode uma atenção que só se importe com a comida, as roupas, os remédios, masque invente modos de estar no mundo. No mais, a situação no HPSP é tal que25 - A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA - Barbara Neubarth246 Após um longo processo de discus sões foi promulgada, em abril de 2001, a Lei nº 10.216,que dispõe sobre a proteção e os di reitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionao modelo assistencial em sa úde mental.247 RIO GRANDE DO SUL. CONSELHO ESTADUAL DE SAÚDE. Comissão de SaúdeMental. São Pedro Cidadão: assembleia instituinte. Conselho Estadual de Saúde. 1992. (textodigitado)415


para ali acorrem, na área hospitalar, pacientes psicóticos ou neuróticos graves oupacientes cujo sofrimento psíquico os leva ao abuso de álcool e outras drogas. Ea clientela da comunidade do entorno, os bairros Partenon, Lomba do Pinheiroe Agronomia.Entre os dispositivos para atender a esta demanda temos: o Clube da Amizade,o Serviço de Educação Física, o Serviço de Reabilitação, a Associação dos Trabalhadoresda Usina de Triagem e a Oficina de Criatividade, recursos organizados emum Centro de Reabilitação Psicossocial São Pedro. Algo de certa forma sonhadopelo Dr. Salvador Célia, no Projeto Vida, no final da década de 80, do século XX.25.1 POR UMA CERTA HISTORICIDADE SOBRE A ARTE DOSLOUCOSPARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSFalar da expressão plástica como recurso terapêutico em nosso país, é fa larde duas importantes figuras, os psiquiatras Osório César e Nise da Silveira, ambosconsagrados entre aqueles que se dedicam ao estudo da arte nos manicômios. Valelembrar, que seu trabalho, desenvolvido junto a pacientes psiquiátricos, tambémrepercutiu entre críticos de arte e nos museus. Osório César exerceu suas atividadesno Hospital do Juqueri, em Franco da Rocha, São Paulo, onde desenvol veuestudos sobre a arte dos alienados e, em 1925, instalou a Escola Livre de ArtesPlásticas do Juqueri. Fortemente influenciado pela psi canálise, acredi tava que ofa zer artístico por si só propiciava a cura. Para ele, durante o surto esquizofrênico,o poder criador vem à tona como meio de reorganizar a percepção do mundoexterior. (FERRAZ, 1998). A alagoana Nise da Sil veira inconformada pela formacomo eram tratados os internos no Centro Psi quiá trico Pedro II, no Engenho deDentro, Rio de Janeiro, não só humanizou o tratamento ali dispensado, comoinstituiu uma terapêutica diferente. Era 1946, a jovem psiquiatra observando oincessante caminhar dos internos pelos pátios do hospício, fundou a Seção deTerapêutica Ocupacional e de Reabilitação (STOR), oferecendo-lhes espaço ondepoderiam exprimir-se através do desenho, da pintura, da mode lagem. Baseada naescrita de um de seus clientes, denominou-a a emoção de lidar 248 . Com a determinaçãoque lhe era peculiar, Nise propôs “ (...) a abolição dos mé todos agressivos,do regime carcerário e a mudança de atitude face ao in diví duo que deixa de ser416248 Emoção de lidar, termo cunhado por um de seus clientes, ao referir-se ao trabalho no ateliê.


o paciente para adquirir a condição de pessoa com direito a ser respeitada.” (SIL-VEIRA, 1992) Pelo conjunto de seu trabalho, a doutora Nise é reconhecida comoprecursora, no Brasil, de uma nova maneira de se aproximar e de tratar pessoascom doença mental. O trabalho da Dra. Nise é marco humanizador e, ao mesmotempo, revolucionário na questão do respeito ao sujeito portador de sofrimentopsíquico. Nise foi uma figura ímpar, cuja trajetória foi marcada pelo afeto, pelafirmeza de caráter e por sua postura po lítica militante.De um lado, as propostas de Osório César, fundamentadas na psicanálisefreudi ana, e das quais existem, guardadas, algumas centenas de obras. De outrolado, o trabalho de Nise da Silveira, baseada nos estudos de Jung, e que originaramo grande acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, que conta com cercade 300 mil obras. Em comum, ambos propunham a livre expressão como formade desenvolvimento das atividades artísticas e acreditavam no potencial curativoque a ex pressão através da arte possibilitava. Foram tempos em que a produçãonos ateliês era bastante volumosa e de grande qualidade. Alguns dos seus clientesforam reconhecidos como artistas brasileiros.No Hospital Psiquiátrico São Pedro, em agosto de 1990, montamos 249 aOficina de Criatividade, lugar no qual tem sido desenvolvida uma prática implicadacom questões de dor, mas, especialmente, de arte e vida. Nossa tarefa, nosprimeiros anos, sugeria estarmos em um campo de batalha, onde tentávamos, comafoiteza, descobrir corpos ainda vivos, pulsantes 250 . Assim é que, nas ma nhãs desegunda à sexta, passávamos pelas unidades de moradia e pelos pátios com umsingelo convite: vamos desenhar? E, quando encontrávamos um mínimo brilhono olhar do outro, isto era motivo para uma segunda tentativa de aproximação:estamos esperando na oficina.Desde seu início, a oficina se impôs como espaço dife renciado. Afinal, osantigos moradores do São Pedro, alguns com mais de cinquenta anos de internação,estavam alojados em unidades escuras, lúgubres, com janelas no alto dasparedes, de onde só enxergavam uma nesga de céu. Nossa oficina representou umcontraponto. Era uma sala rosa, iluminada, que permitia um olhar furtivo entreos vidros de janelas basculantes. Um lugar que se mos trou tão diferente, que ouvi25 - A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA - Barbara Neubarth249 Barbara Elisabeth Neubarth (psicóloga), Luciana Moro Machado (terapeuta ocupacional),Luiza Germani de Paula Gutierres (artista plástica) e Rosvita Ana Bauer (enfermeira).250 Consta em trabalho escrito por Côrtes (2002), que ainda em 1999, mais da metade, dosentão setecentos e setenta moradores, não tinham sequer certidão de nascimento, sendo a maioriadestes, ignorados. Ignorados no nome, na filiação, e, acrescento, na subjetividade.417


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS418sujeitos dizendo, lá no São Pe dro, ao se referirem aos demais espaços do hospital.A oficina, embora geograficamente inserida na área hospitalar, constituiu, desdelogo, um lugar à parte. Um lugar acolhedor, onde se aplicam doses maciças deatenção, respeito e afeto, tudo mediado por argila, lápis de cor, papéis, pincéis,tintas, agu lhas, linhas e panos. E, acompanhando o ato de construção da obra,convocamos o olhar da psicanálise, como um entre-lugar, em que a singularidadesendo convocada, tem sido possível constituir sujeito. Sujeito fragmentado,falhado, faltoso, mas sujeito.Nesta empreitada tem sido fundamental a participação dos estagiá rios e dosprofissionais pesquisadores, nos estudos de casos e trabalhos teórico-práticos e naescrita no Querido Diário – alcunha cari nhosa dos livros de registro. Mas, nãomenos importante, é o testemunho de um conjunto de cerca de 100 mil trabalhos– desenhos, pinturas, modelagens e bordados – pois, quando pessoas marcadas pelosofrimento não puderem falar, a arte é uma voz fundamental. (ROUSSET, apud,VILELA, 2001)25.2 A OFICINA DE CRIATIVIDADE: LUGAR DOTESTEMUNHOA criatividade é inerente ao ser humano, embora não se possa, de antemão,estabelecer até onde ela (a criatividade) possa nos levar. A apropriação dos elementosdas linguagens artísticas – suas técnicas e materiais – possibilita que se estimule ese dê condições mais adequadas ao fazer. Isto se aplica, também, a pessoas adoecidasfísica ou psiquicamente, mas, nestes casos, é preciso encontrar os núcleossaudáveis, as partes não atingidas pela doença, para, de alguma forma estimulá-las.A artista mexicana Frida Kahlo é uma referência de superação. Se tomarmos, porexemplo, apenas o acidente que ela sofreu, enquanto ainda menina, são admiráveisas brechas por ela encontradas para produzir sua arte. Quando Astrogildo afirmou“riscar é um modo de não morrer à míngua”, ele nos ensinou que, enquanto faziariscos nas paredes, nos altos muros do hospício, vencia sua luta cotidiana contra odefinitivo adversário – a morte. Seu gesto assumia, então, a magnitude do ato dacriação. (NEUBARTH, 2002-1) E, ao criar, estava se criando, estava se tornandovisível, neste sentido, a criação se fazia pelo ato – um ato de ruptura. Edgar Koetz,ilustrador, por força de sua depressão e alcoolismo foi internado no São Pedro,


momento em que produziu a série intitulada Alienados, 1964 251 . Segundo Sousa(2004), analisando esta coleção, tais imagens registram uma espécie de contorno doabandono, como meio de resistir ao esquecimento e marcando um lugar de testemunho,em que a obra de arte gera um espaço de presença, sendo um compromisso comos laços sociais de seu tempo. (SOUSA, 2002)Para Ernst Bloch, a obra de arte não reflete o real como um espelho, masabre perspectivas podendo ser considerada subversiva, ao questionar os hábitos, oscostumes, os gestos, a complacência de seu público, ao invés de simplesmente quereragradá-lo. (BLOCH, apud ALBORNOZ, 1985) Segundo Bloch, as pessoas emgeral percebem o que lhes falta como sendo o bem, enquanto o mal seria a faltados bens que nos faltam. Pensando assim ele sugere ser preciso subverter esteestado de coisas, que é (...) a fome de cores, de sons, de versos, a fome de encontro,argumentos, leis justas e participação, desenvolvendo-se em dimensões mais amplasatravés do prazer do olho, do ouvido, do cérebro, pois os homens têm fomes estéticas eintelectuais. (BLOCH, apud ALBORNOZ, 1985, p. 138) Contudo, para que sealcance a ética proposta por Bloch, é preciso coragem de transformar, subverter,denunciar, combater sempre que os homens estiverem constrangidos a situações,que estejam aquém de suas possibilidades, quando estiverem escravizados, abandonados,diminuídos. Ao que eu acrescentaria, como ainda estão muitos pacientespsiquiátricos.Entre os dispositivos de reabilitação psicossocial emergentes desde dentrodo HPSP está a Oficina de Criatividade, fundada antes mesmo da promulgaçãoda lei estadual sobre a Reforma Psiquiátrica (Lei nº 9.716/92) que, em seu art.2º, propõe a criação de centros de convi vên cia e oficinas de atividades construtivase similares. Ao planejar a oficina, dentro de um manicômio, nosso objetivo foiconstruir um espaço semelhante ao proposto por Nise da Silveira, no Rio de Janeiro.Afinal, os pátios do São Pedro também estavam cheios de pacientes que,há muitos anos, por ali vagavam.Em texto publicado em 1965, Pechansky, já chamara atenção a quanto haviade dinamismo perdido nos pátios dos hospícios. E propunha a participação emprogramas de terapêutica ocupacional 252 para atender a um número tão absurdode pessoas internadas, cujos discursos, na maior parte do tempo, não eram sequer25 - A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA - Barbara Neubarth251 Galeria Virtual CELPCYRO – EDGAR KOETZ252 Vale a leitura do período em que oficinas de Terapêutica Ocupacional foram desenvolvidasno São Pedro, em textos de Pechansky (1961) e Meneghini (1974).419


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOSescutados. O fato de ainda em 1999, mais da metade dos pacientes internados nãoter sequer certidão de nascimento, sendo “conhecidos” como ignorados, sugeria,ali se estava diante de coisas e não de sujeitos 253 .No primeiro ano da oficina, a produção das obras foi tão expressiva a pontoda artista plástica Te resa Poester 254 estimular a organização das exposições Artee Vida na Casa de Cul tura Mario Quintana e no Ateliê Livre da Prefeitura, emagosto e novembro de 1990, respectivamente. O texto de abertura destas exposiçõescontinha, em essência, os fundamentos do trabalho na oficina: a arte comocriação e produção de vida; a proposta de um trabalho em clima de confiançamútua, amor e respeito pelas diferenças, derrubando a ideia preconceituosa derigidez afetiva nos doentes mentais; a expressão plástica no resgate da identidade,ao que, mais tarde, agregamos a questão da subjetividade.A partir daí o trabalho alternou altos e baixos, movido, em grande parte,por mudanças, especialmente, nas po líticas de atenção à saúde mental. Mudançasque se fizeram notar, por exemplo, na disponi bilidade de verbas para compra demateriais (tintas, pincéis, papéis) ou na carência de tais re cursos; na composição daequipe de trabalho, que oscilou entre à contratação ou demissão de profissionaisespecialistas, graduados na área das artes (o profissional específico deste núcleo desaber 255 ); e no incentivo ou no impedimento em participar de eventos culturais,nos espaços da cidade ou até fora do estado. Além disso, desde o lado de fora, aolongo dos anos, cresceu a participação voluntária de amigos da oficina, pessoasque, por acreditarem neste projeto, têm disponibilizado seu tempo e um traba lhoespecialmente dedicado a estes homens sem fama 256 e as suas marcas.A rede de sonhadores está sendo tecida de forma a salvar, em sua trama, uminefável tesouro. Eugênia Vilela e David Rousset (2001) propõem a arte comoúnica possibilidade para que tempos de exclusão, como tempos de asilamento (pensoeu), não sejam tempos de todo perdidos. Assim foi crescendo a oficina, como umapráxis possível, no rumo sempre inacabado da reabilitação psicossocial. Dissertan-420253 A Morada dos Ignorados (Barbara E. Neubarth), ilustração em anexo, faz referência a esteperíodo.254 Professora Dra Te resa Poester. Instituto de Artes/UFRGS255 CAMPOS, Gastão. Subjetividade e administração de pessoal. In: Práxis em salud. São Paulo:Hucitec, 1997. Núcleo de saber: conjunto de saberes e de responsabilidades específicas a cadaprofissão ou especialidade256 Homens sem fama, numa alusão a Macabéa, a personagem de Clarice Lispector em A Horada Estrela. (1977)


do sobre a Oficina de Criatividade, Ávila (2006) afirmou ser este um espaço decompensação e escape dentro da estrutura manicomial, um espaço heterotópico.Numa de suas salas estão os frequentadores que trabalham na perspectiva dalivre expressão 257 . A expressão é livre, no sentido que, quer desenhando, pintando,bordando, cantando ou dançando o sujeito se expressa sem interferências sobreo seu fazer. Funcionando o espaço nos moldes de uma escola de artes, tal comoa concebia Augusto Rodrigues 258 . O acompanhante ou monitor, ao lado, estáali para acolher, despertando a possibilidade de satisfação desejante do sujeito.Ou seja, o atravessamento – o social – aguçando o desejo e inquietando para apossível satisfação. Só assim poderemos empurrar nossos moradores para sonhose devaneios, tendo a fantasia como presença constitutiva da existência, abrindo ohorizonte desses sujeitos para a experiência da diferença. Mas isto se, estando nolugar de Outro, eu acredito nas potencialidades daquele que está diante de mim.(BIRMAN, 2007)O núcleo também recebe pessoas in ternadas na área hospitalar, clientes doambulatório e grupos da comunidade do entorno, os bairros Partenon, Lomba doPinheiro e Agronomia. Os participantes externos são indicados por profissionaisdo ambulatório do hospital ou das unidades básicas de saúde (UBS), a partir domatriciamento 259 . Em um ateliê para as artes plásticas, que funciona diariamente,estes participantes externos ou têm uma maior identificação com as atividadesplásticas ou aceitam ser desafiados em seu processo e são acompanhados peloprofissional de artes na construção de projetos particulares.Desde o início, havia a proposta em abrir espaço para a comunidade, mas astentativas eram tímidas. Aos poucos, no entanto, as práticas artísticas como alter-257 Livre expressão: conceito associado a Herbert Read e Viktor Lowenfeld, para quem era maisimportante o processo espontâneo da criação artística, em detrimento do produto final dos trabalhos.Para Read (1986) a criança absorvida num desenho ou em outra atividade criativa seria umacriança feliz, sendo a expressão identificada ao desenvolvimento de uma expressão estética pessoal.258 O artista Augusto Rodrigues funda e dirige, no Rio de Janeiro, em 1948, a Escolinha deArte do Brasil, com a ideia de que o ensino da arte deveria ser parte fundamental da educação.E onde na aprendizagem, professor e aluno deveriam estar em perplexidade, aprendendo juntos,sem verdades estabelecidas e imposições. Dizia ele que sendo a criatividade expressão natural doser humano, era preciso não castrá-la na criança. http://www.penedo.com/content/view/48/200/.259 Matriciamento: nova lógica de produção do processo de trabalho onde um profissionalatuando em determinado setor oferece apoio em sua especialidade para outros profissionais, equipese setores. Inverte-se, assim, o esquema tradicional e fragmentado de saberes e fazeres já que aomesmo tempo o profissional cria pertencimento à sua equipe, setor, mas também funciona comoapoio, referência para outras equipes. http://www.redehumanizasus.net/25 - A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA - Barbara Neubarth421


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS422nativa terapêutica em saúde mental, têm sido decisivas para consolidar tal aberturae o amálgama entre os de dentro e os de fora vem se produzindo. Pensando numainclusão possível para sujeitos portadores de problemas psiquiátricos diversos nossaintenção com este espaço compartilhado é favorecer trocas que levem à criaçãode novos sentidos. Dessa forma, operamos em um processo de inclusão em queos dois lados se encontram, desde dentro do manicômio.Ao longo dos anos, a oficina tem sido este lugar de criação e invenção artística,onde o processo sempre é valorizado como produção de uma linguagem possível.Além disto, é o lugar concreto em que o sujeito vem produzir e onde lhe é dadoum crédito e um prazo. Um crédito articulado à hipótese que nós fazemos de queo participante da oficina é competente para criar e, isto, num sentido semelhanteao proposto por Bergès e Balbo (2003-1) ao se referirem, por exemplo, ao sorrisoque a mãe espera de seu bebê. Dizem eles que, a partir do momento em que a mãeespera o sorriso, ela dota seu filho da capacidade de sorrir e isto é lhe dar um crédito.Mas também é preciso lhe dar um prazo para que possa desenvolver-se aoseu tempo. E é o que temos feito – dar-lhes crédito e prazo – para que o processode criação possa, cotidianamente, voltar a se fazer e se inventar.Procurando não nos deter apenas sobre o indivíduo, mas aceitando a esteque está à minha frente, enquanto sujeito singular, imerso num universo de intensidades,permeado pelos valores simbólicos que o transcendem e pelas forças pulsionaisque o impactam. (BIRMAN, 2007, p.296)Para alguns, o trabalho de criação passa a ser um trabalho de produção artesanal.São aqueles sujeitos que sentiram necessidade de que o produto de seutrabalho lhes rendesse algum dinheiro. Junto a estes colamos o profissional das artes,quer de pintura em tecido, de papel reciclado, do bordado, para que o produtodo seu trabalho possa ter valor no mercado e que não seja adquirido por caridade.Para outros, o que importa é que o resultado do seu trabalho seja cuidadosamenteguardado, e, às vezes, exibido em alguma exposição. Para vários deles o que importaé o fazer em si e sentem-se imensamente gratos por isto. Tal é o caso do senhorClemente ao sujar pilhas de papel com riscos, e que, ao nos encontrar, estende amão cumprimentando e desejando um Bom Dia! E que, nas segundas-feiras aocruzar conosco, comunica que rezou por nós na missa do sábado. É preciso sermuito clemente para um gesto tão generoso!Pensando no dispositivo – oficina de artes – este pode ser o lugar do laço social.Para tanto, profissionais oficineiros estão no lugar de preparadores de passagem,como afirma Tenório. Atentos ao discurso do outro, estabelecendo vínculos, às vezes


ganhando tempo, enquanto ele tenta organizar sua fala, estimulando trocas, colocandodesafios, diante dos materiais e das linguagens da arte. (TENÓRIO, 2001)Ao iniciarmos as atividades da oficina tínhamos convicção de que os trabalhosali produzidos seriam reunidos em um acervo. Animava-nos, como um norte, oMuseu de Imagens do Inconsci ente 260 . A participação da professora Tania MaraGalli Fonseca (UFRGS), desde 2001, foi decisiva na questão do acervo, agenciandoo primeiro grupo organizador, que iniciou o garimpo nas obras. Na linha depesquisa Modos de trabalhar, modos de subjetivar do Programa de Pós-Graduaçãoem Psicologia Social e Institucional/ UFRGS, a professora Tania orienta váriaspesquisas, no que tem trabalhado em parceria com a professora Blanca Brittes,do Instituto de Artes da mesma universidade. A participação da ULBRA, atravésde alunos do curso de História, tem se debruçado sobre a primeira etapa de preparaçãodo trabalho museológico. Assim que estes cerca de 100 (cem) mil documentossão matéria viva de produção de conhecimento na área da arte e loucura.25.3 POR UMA ARTE POSSÍVELO ordenamento das sociedades modernas tinha a loucura como paradigmada exclusão, só restando, ao louco, o ficar confinado. Com o advento da pósmodernidade, nas décadas finais do século XX, ocorreram uma série de mudanças,é o tempo do efêmero e do culto à liberdade. A abertura dos manicômios éconse quência dessas mudanças e se traduz na busca por inserir o louco no novotecido so cial. Contudo, a restrição na participação social – nesta posição marginal– em que vi veram muitos dos considerados insanos, deixou marcas profundas,dificultando as práticas de sociabilidade a um significativo número daqueles pacientesasilares, de longa permanência. Isto, não foi, contudo, impeditivo para osurgimento de novas alternativas no cuidado a eles dispensado. O trabalho comos antigos moradores do São Pedro, na Oficina de Criatividade, tem se pautadocomo via de contato, pela criação artística, para que eles adquiram certa consciênciade si. Ao lidar com a matéria – lápis de cor, giz de cera, argila, tintas, tesoura,agulhas e linhas, colas, papéis – as suas propriedades, fazem parte do que precisaser regulado, dominado, para ser convenientemente utilizado. Ou seja, a relaçãosujeito e matéria serve à regulagem da vida social.25 - A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA - Barbara Neubarth260 www.museuimagensdoinconsciente.org.br423


PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS424A convivência em um ambiente projetado para o acolhimento e as trocasmostrou-se importante mo mento, de preparação de passagem, entre o dentro eo fora. Mas foram os pequenos gestos, ligados a experiências concretas, do dia-a--dia, que mais fundo tocaram. Neles, encontraram-se potências como partes doato de sentir, se emocio nar, sonhar. Aspectos estes empobrecidos na fragilidadedessas vidas ig noradas.Desde que iniciamos na oficina buscamos interlocução com o lado de forada instituição. Do ponto de vista político, tal proposta se inscreve na ordem dainclusão social, movimento caro ao ideário da Reforma Psiquiátrica. Por outrolado, do ponto de vista da clínica, a questão do laço social está diretamente vinculadaà inscrição do su jeito e, neste sentido, nos interessava ao nos debruçarmossobre o que entendemos ser uma clínica da psicose. Ganhamos o espaço da rua,através de inúmeras exposições de arte, em imagens cedidas para ilustrações decapas de livros, calendá rios e folders, em postais e convites de formatura, além dasfilmagens em vídeos e en saios fotográficos. Ações que têm trazido importan tesfrutos para a Oficina de Criatividade e seus frequentadores. Além disto, a oficinae seus acontecimentos saíram de entre muros do hospício, através da produçãoacadêmica, dos muitos estagiários e pesquisadores, que se tra duziu em estudos decasos, dissertações de mestrado ou tese de doutorado e está no social, nas inúmeraspublicações, como artigos em revistas ou capítulos de livros.Há duzentos anos atrás nossa sociedade empurrou os loucos para trás dosmuros do hospício. Neste momento, ao levar a produção dos internos para forada instituição manicomial se faz uma torção. Vazando para a cidade, que agorase deixa infiltrar pelo discurso do louco, se problematiza a loucura, se questionasua práxis, mas, também, se propõe um retorno à cidadania.Lugares se criam a cada movimento da sociedade. Assim, o Hospício SãoPedro, construído naquele fim da linha do bonde, estava no lugar onde terminavaa técnica, encarregada de transportar os homens, e onde iniciou a técnica paracontê-los. Esta rugosidade do passado, em que ainda se encontram restos decombinações técnicas e de práticas, restos de sujeitos desidentificados, tem sidoestendida, também desde dentro. Assim que, o lugar-oficina tornou-se um novolugar, um lugar de todas as artes, lugar da poiética, da estética, da poesia, dastrocas linguageiras. Com esta arte, que nem sempre cabe nos museus, mas que,ao se fazer como criação artística, também se fez pelos prazeres lúdicos de alegrar avida. (DUFRENNE, apud PASSERON, 1997) Tal como a entendia FernandoDiniz, para quem desenhar é como namorar.


As ilustrações, neste Relatório <strong>Azul</strong>, produzidas na Oficina de Criatividadedo Hospital Psiquiátrico São Pedro servem de testemunho sobre como, a partir dapotência da atividade artística, é possível ao sujeito restabelecer sua criatividade,ampliando seus laços sociais. Trabalhando em pequenos gestos, em atos significantes.Uma arte menor afirmam muitos, mas uma arte possível, dizem outros,naquele lugar e para aqueles sujeitos, que inventaram e continuam inventandoformas de estabelecer o seu contorno em torno do vazio.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia. Porto Alegre: Movimento, 1985.AMARANTE, Paulo. Rumo ao fim dos manicômios. Revista Mente e Cérebro,São Paulo, n.164, 30-35, set, 2006.ÁVILA, Maria de Fátima. O sentido-resistência da Oficina de Criatividade emum contexto manicomial. Porto Alegre: UFRGS, 2006. Dissertação (Mestradoem psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucionaldo Sul, Porto Alegre, 2006.BÈRGÈS Jean; BALBO, Gabriel. Há um infantil da psicose? Porto Alegre: CMC,2003-1.de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2002. p. 89-130.BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. Subjetividade e administração de pessoal:considerações sobre modos de gerenciar trabalho em equipes de saúde. In: MERHY,Emerson Elias; ONOCKO, Rosana. Práxis em salud: um desafio para lo público.São Paulo: Hucitec, 1997. p. 229-266CÉLIA, Salvador. Criatividade e espaços lúdicos: sua importância no desenvolvimentoda infância e adolescência. Montevidéu, 1994. (Texto datilografado, palestra)CHEUICHE, Edson Medeiros. De hospício a hospital. http://www.saude.rs.gov.brCÔRTES, Sérgio Tadeu Vargas. Central de Benefícios: construção de identidades.Porto Alegre, 2002. (Texto digitado, inédito)DESVIAT, Manuel. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1999.25 - A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA - Barbara Neubarth425


FERRAZ, Maria Heloísa de Toledo. Arte e Loucura: limites do imprevisível. SãoPaulo: Lemos Editorial, 1998.LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 5 – As formações do inconsciente. Riode Janeiro: Jorge Zahar, 1999.MENEGHINI, Luiz. A sombra do plátano. Porto Alegre: Emma, 1974.NEUBARTH, Barbara Elisabeth. Riscar, um modo de não morrer à míngua.Porto & Vírgula. Porto Alegre, n. 45, p. 35-37. 2002-1.NEUBARTH, Barbara Elisabeth. No fim da linha do bonde, um tapete voa-dor:a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (1990-2008): inventáriode uma práxis / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade deEducação. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2009, Porto Alegre, BR-RS.PASSERON, René. Da estética à poiética. Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n. 15,p. 103-116, nov. 1997.PARTE IV - SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS426PECHANSKY, Isac. Terapêutica ocupacional. A propósito de dois casos de esquizofrenia.In: Psiquiatria. Porto Alegre: vol.I, n. 1-2-3, 1961. p.62-4. (separata)PECHANSKY, I. Terapêutica ocupacional psiquiátrica. In: Anais da Faculdadede Medicina de Porto Alegre. Porto Alegre: Gráfica da URGS, 1965. p.96-103.(separata)READ, Herbert. A redenção do robô. São Paulo: Summus, 1986.RIO GRANDE DO SUL. CONSELHO ESTADUAL DE SAÚDE. Comissãode Saúde Mental. São Pedro Cidadão: assembleia instituinte. Conselho Estadualde Saúde. 1992. (texto digitado)RIO GRANDE DO SUL. Lei Estadual nº 9716, de 07 de agosto de 1992.Dispõe sobre a reforma psiquiátrica no Rio Grande do Sul. Porto Ale gre: DiárioOficial; 07/ago/1982.SCHIAVONI, Alexandre Giovani da Costa. A institucionalização da loucurano Rio Grande do Sul: O Hospício São Pedro e a Faculdade de Medicina. PortoAlegre: UFRGS, 1997. 209 p. Dissertação (Mestrado em História) – Programade Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,Porto Alegre, 1997.SERRANO, Alan Índio. O que é psiquiatria alternativa. São Paulo: Brasiliense,1992.SILVEIRA, Nise. O mundo das imagens. São Paulo: Ática, 1992.


SOUSA, Edson Luiz André de. Quando atos se tornam formas. In: BARTUC-CI, Giovanna. Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago,2002. p. 143-151.SOUSA, Edson Luiz André de. Contornos depois da explosão. Jornal do MARGS.Porto Alegre: junho 2004TENÓRIO, Fernando. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio deJaneiro: Marca d’agua, 2001.VILELA, Eugênia. Corpos inabitáveis. Errância, Filosofia e memória. In: LAR-ROSA, Jorge. SKLIAR, Carlos. (Org.). Habitantes de Babel. Belo Horizonte:Autêntica, 2001. p. 233-53.25 - A OFICINA DE CRIATIVIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO: ARTE E MEMÓRIA - Barbara Neubarth427


Relatório dasatividadesda CCDHem <strong>2011</strong>


COMPETÊNCIAS DA COMISSÃOO artigo 56, inciso IV, do Regimento Interno da Assembleia <strong>Legislativa</strong> doEstado do Rio Grande do Sul (RIAL), fixa competência da Comissão de Cidadaniae Direitos Humanos (CCDH) para analisar os aspectos atinentes a direitosdas minorias, do índio, do menor, da mulher, do idoso, segurança social e sistemapenitenciário; defesa do consumidor e demais assuntos relacionados à problemáticahomem trabalho e direitos humanos.Artigo 57 – Às Comissões Técnicas Permanentes, na respectiva área de atuação,compete:I - iniciar o processo legislativo em leis complementares e ordinárias, noscasos permitidos pela Constituição;II - emitir parecer sobre as proposições sujeitas à deliberação do Plenário,opinando pela aprovação ou rejeição, total ou parcial, ou pelo arquivamento,e, quando for o caso, formular projetos delas decorrentes;III - apresentar substitutivos, emendas e subemendas;IV - sugerir ao Plenário o destaque de parte de proposições para constituirprojeto em separado, ou requerer ao Presidente da Assembléia a anexaçãode proposições análogas;V - requisitar, por intermédio de seu Presidente, diligências sobre matériaem exame;VI - discutir e votar projetos de lei e decretos legislativos, excetuados os:a) de lei complementar;b) de código;c) de iniciativa de Comissão;d) em regime de urgência;e) com parecer contrário da Comissão de Constituição e Justiça;f) de iniciativa popular;RELATÓRIO DAS ATIVIDADES DA CCDH EM <strong>2011</strong>429


g) de leis orçamentárias;VII - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil;VIII - promover estudos, pesquisas e investigações sobre problemas de interessepúblico, relacionados com a sua competência;IX - receber petições, reclamações ou representações de qualquer pessoacontra atos ou omissões de autoridades ou entidades públicas;X - solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão para prestarinformações, obedecido o rito previsto nos §§ 2º ao 5º do art. 262-B; (Redaçãodada pela Resolução nº 2.958/05)XI - apreciar programas de obras, planos estaduais, regionais e setoriais dedesenvolvimento e sobre eles emitir parecer.DOS TRABALHOS DA COMISSÃOPARTE V - A COMISSÃOA CCDH, que é composta por doze deputados titulares e suplentes, reúne-seordinariamente nas quartas-feiras das 9 às 11horas, podendo ser acompanhadapelo público. Nas reuniões são apreciados e votados pareceres sobre propostaslegislativas,requerimentos diversos e de audiências públicas, relatórios de subcomissões eatas de reuniões ordinárias e audiências. Além disso, são lidas correspondências, éfeito o recebimento e distribuição de proposições para relatoria conforme o méritodos assuntos propostos, é dado conhecimento de matérias da alçada da comissãoe debatidos assuntos gerais.Em <strong>2011</strong> foram realizadas 36 reuniões ordinárias.AUDIÊNCIAS PÚBLICAS430Conforme é previsto no Regimento Interno da ALRS é competência daCCDH realizar audiências públicas que são aprovadas previamente por no mínimosete membros da comissão. Estas reuniões também podem ser feitas emconjunto com outras comissões do legislativo estadual para tratar de assuntos deinteresse público relevante, por requerimento de parlamentares ou entidades dasociedade civil. As instituições devem ser legalmente constituídas, sendo vedado


solicitação de câmaras de vereadores, prefeituras, secretarias estaduais ou municipaise assemelhados.Em <strong>2011</strong> foram realizadas 30 audiências públicas:Data Evento Local Requerente18/03 AP Programa Nacional de DH PlenarinhoDep. Miriam Marronie Dep. Edegar pretto23/03 AP Violência Contra a Mulher Plenarinho Dep. Miki Breier01/0406/0413/0425/0404/0509/0512/0508/0616/0622/0627/06AP Discussão PL 36/<strong>2011</strong> –Casas da SolidariedadeAP Condições de MoradiaBairro AgualAP Sistema Penitenciário –Mutirão CarcerárioAP Psicólogos no SistemaPenitenciárioAP Proibição do uso deTatuagens por salva-vidascivis temporáriosIntolerância: Violência eDesagregação Social –Palestra Boaventura de SousaSantosAP Violência de PoliciaisMilitares contra JovensNegros no RSAP Políticas Voltadas àscrianças e adolescentes esituações de vulnerabilidadeAP Violência Contra a Mulher– Lei Maria da PenhaAP Assédio Moral no ServiçoPúblicoAP Situação da Saúde no Valedo Paranhana Conjunta comCSMACâmara Municipalde Palmeira dasMissõesEscola MunicipalIrineu Rapaki -TramandaíTeatro DanteBaronePlenarinhoSala SalzanoVieira da CunhaAL/RSPlenário 20 deSetembroPlenarinhoPlenarinhoAuditório daURI – FredericoWestphalenPlenarinhoAuditório daFaccatDep. Edegar PrettoDep. Ana AffonsoDep. Miki BreierConselho Regionalde PsicologiaDep. LucianoAzevedoAL/RSCCDHFórumGoverno EstadualUNEGRODep. Miki BreierDep. Miki BreierDep. Miki BreierDep. Miki BreierRELATÓRIO DAS ATIVIDADES DA CCDH EM <strong>2011</strong>431


PARTE V - A COMISSÃO06/07 AP Defesa do Consumidor Plenarinho Dep. Miki Breier24/08 AP Situação do Idoso no RS Plenarinho Dep. Miki Breier26/0802/0914/0916/0921/0923/0926/0919/1021/10AP Combate à Violênciae à Exploração Sexual deCrianças e AdolescentesAP Jornada Combate àViolência e à ExploraçãoSexual de Crianças eAdolescentesAP Condições de Trabalhonos setores da Saúde,Educação e Assistência SocialAP Jornada Combate àViolência e à ExploraçãoSexual de Crianças eAdolescentesAP Violência e Extermínio deJovens no RSAP Titulações Quilombo deMorro Alto e outros no RSAP Jornada Combate àViolência e à ExploraçãoSexual de Crianças eAdolescentesAP Abrigos, Casas e Pol. Púb.p/ Acolhimento de Crianças eAdol. no RSAP Jornada Combate àViolência e à ExploraçãoSexual de Crianças eAdolescentes31/10 1º Fórum Direitos Humanos14/11AP – Os TerritóriosQuilombolas no RSUNIFRA - SantaMariaTeatro MunicipalRio GrandePlenarinhoCapela ColégioDom Boscoanexo unidade IIda Fema – SantaRosaPlenarinhoPlenarinhoUniversidadede PassoFundo CampusI – Auditório daFaculdade deDireitoPlenarinho 9h30Lions Clube deUruguaianaPalácio PedroOsório - BagéTeatro DanteBaroneCCDH – Fund.Maurício Sirotsky –SJDH - MPCCDH – Fund.Maurício Sirotsky –SJDH - MPDep. Miki BreierCCDH – Fund.Maurício Sirotsky –SJDH - MPDep. Miki BreierRaul CarrionCCDH – Fund.Maurício Sirotsky –SJDH - MPDep. Miki BreierCCDH – Fund.Maurício Sirotsky –SJDH - MPCCDH – Prefeitura deBagé – Coord. de Dir.HumanosCCDH – Comissão deDH Senado432


21/1128/11AP Jornada Combate àViolência e à ExploraçãoSexual de Crianças eAdolescentesAP Jornada Combate àViolência e à ExploraçãoSexual de Crianças eAdolescentes03/12 1º Fórum Estadual de Adoção07/12AP Bebidas Alcoólicas nosEstádios de FutebolUniversidade deCaxias do Sul –Auditório Bloco JUlbra Gravataí -AuditórioTeatro DanteBaronePlenarinhoCCDH – Fund.Maurício Sirotsky –SJDH - MPCCDH – Fund.Maurício Sirotsky –SJDH - MPAL/RS – CCDH –Câmara Federal– Inst. Amigos deLucas – MPDep. Miki BreierSUBCOMISSÃO CONTRA O CRACKVisitas técnicas a instituições de tratamento da dependência química e oitoaudiências públicas compuseram o trabalho da Subcomissão contra o Crack.Proposta pela deputada Miriam Marroni (PT), desde maio, coletou dados e informaçõespara traçar diagnóstico da rede pública de tratamento da drogadição. Omapeamento de vagas e de unidades especializadas contribuirá para apresentaçãode propostas de políticas públicas voltadas à criação, efetivação e aprimoramentodo sistema. “Queremos indicar caminhos para quem busca libertar um filho,amigo ou parente do drama do vício. A construção de rede efetiva de apoio é umdos primeiros passos, mas é importante oferecer oportunidades para a reinserçãosocial”, aponta Miriam Marroni. Canoas, Passo Fundo, Pelotas, Cachoeira doSul, Santo Ângelo e Santa Maria sediaram as audiências públicas. Fizeram parteda Subcomissão os deputados Luciano Azevedo (PPS) e Marlon Santos (PDT).RELATÓRIO DAS ATIVIDADES DA CCDH EM <strong>2011</strong>SUBCOMISSÃO DA SITUAÇÃOCARCERÁRIAO caos do sistema prisional gaúcho motivou o deputado Jeferson Fernandes apropor na Comissão de Direitos Humanos(CCDH) o aprofundamento do tema.433


A Subcomissão da Situação Carcerária do Rio Grande do Sul quer contribuir como Governo Tarso. “Precisamos criar condições para o devido cumprimento dapena e ressocialização do apenado”, observa o deputado. A Subcomissão visitoua Penitenciária Estadual do Jacuí e ouviu todos os principais envolvidos no tema.“Também foi muito importante o relato de ex-detentos”, ressaltou Jeferson.Entre os principais problemas estão a superlotação, o recrutamento de presosprovisórios pelo crime organizado e a situação das mulheres: a grande maioriaestá em penitenciárias mistas. Os deputados Álvaro Boesio (PMDB) e MiriamMarroni (PT) também integram a Comissão.INFORMATIVOAs atividades desenvolvidas pela Comissão da Cidadania e Direitos Humanosao longo de <strong>2011</strong> foram compiladas em um jornal informativo, permitindo que aspessoas tivessem acesso às diferentes temáticas abordadas pelos deputados gaúchos.PARTE V - A COMISSÃO434


PUBLICAÇÕESNo sentido de se ampliar a defesa dos direitos dos diferentes grupos, aCCDH está editando um conjunto de publicações com importantes leis para acidadania brasileira.RELATÓRIO DAS ATIVIDADES DA CCDH EM <strong>2011</strong>435


Anexos


PROJETO DE LEICria a Comissão Nacional da Verdade, no âmbito da Casa Civil da Presidênciada República.O CONGRESSO NACIONAL decreta:Art. 1º Fica criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, aComissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as gravesviolações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato dasDisposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória eà verdade histórica e promover a reconciliação nacional.Art. 2º A Comissão Nacional da Verdade, composta de forma pluralista,será integrada por sete membros, designados pelo Presidente da República, entrebrasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesada democracia e institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aosdireitos humanos.§ 1º Os membros serão designados para mandato com duração até o términodos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, a qual será considerada extintaapós a publicação do relatório mencionado no art. 11.§ 2º A participação na Comissão Nacional da Verdade será consideradaserviço público relevante.COMISSÃO DA VERDADEArt. 3º São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações dedireitos humanos mencionados no caput do art. 1º;II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes,desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, aindaque ocorridos no exterior;III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e437


as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanosmencionadas no caput do art. 1º, suas eventuais ramificações nos diversosaparelhos estatais e na sociedade;IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informaçãoobtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos erestos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º da Lei no9.140, de 4 de dezembro de 1995;V - colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração deviolação de direitos humanos, observadas as disposições das Leis nos 6.683,de 28 de agosto de 1979, 9.140, de 1995, e 10.559, de 13 de novembrode 2002;VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violaçãode direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetivareconciliação nacional; eVII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da históriados casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar paraque seja prestada assistência às vítimas de tais violações.ANEXO438Art.4º Para execução dos objetivos previstos no art. 3º, a Comissão Nacionalda Verdade poderá:I - receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe foremencaminhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentorou depoente, quando solicitado;II - requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades doPoder Público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo;III - convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardarqualquer relação com os fatos e circunstâncias examinados;IV - determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperaçãode informações, documentos e dados;V - promover audiências públicas;VI - requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontreem situação de ameaça, em razão de sua colaboração com a ComissãoNacional da Verdade;VII - promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados,nacionais ou internacionais, para o intercâmbio de informações, dados edocumentos; e


VIII - requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.§ 1º As requisições previstas nos incisos II, VI e VIII serão realizadas diretamenteaos órgãos e entidades do Poder Público.§ 2º Os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à ComissãoNacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros,cabendo a seus membros resguardar seu sigilo.§ 3º É dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a ComissãoNacional da Verdade.§ 4º As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicionalou persecutório.§ 5º A Comissão Nacional da Verdade poderá requerer ao Poder Judiciárioacesso a informações, dados e documentos públicos ou privados necessários parao desempenho de suas atividades.Art. 5º As atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdadeserão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção de sigilo sejarelevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, vidaprivada, honra ou imagem de pessoas.Art. 6º A Comissão Nacional da Verdade poderá atuar de forma articulada eintegrada com os demais órgãos públicos, especialmente com o Arquivo Nacional,a Comissão de Anistia, criada pela Lei no 10.559, de 2002, e a Comissão Especialsobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei no 9.140, de 1995.Art. 7º Os membros da Comissão Nacional da Verdade perceberão o valormensal de R$ 11.179,36 (onze mil, cento e setenta e nove reais e trinta e seiscentavos) pelos serviços prestados.§ 1º O servidor ocupante de cargo efetivo, o militar ou o empregado permanentede qualquer dos Poderes da União, dos Estados, dos Municípios ou doDistrito Federal, designados como membros da Comissão, manterão a remuneraçãoque percebem no órgão ou entidade de origem acrescida da diferença entreesta, se de menor valor, e o montante previsto no caput.§ 2º A designação de servidor público federal da administração direta ouindireta ou de militar das Forças Armadas implicará a dispensa das suas atribuiçõesdo cargo.§ 3º Além da remuneração prevista neste artigo, os membros da ComissãoCOMISSÃO DA VERDADE439


eceberão passagens e diárias, para atender aos deslocamentos, em razão do serviço,que exijam viagem para fora do local de domicílio.Art. 8º A Comissão Nacional da Verdade poderá firmar parcerias com instituiçõesde ensino superior ou organismos internacionais para o desenvolvimentode suas atividades.Art. 9º Ficam criados, a partir de 1º de janeiro de <strong>2011</strong>, no âmbito da administraçãopública federal, para exercício na Comissão Nacional da Verdade, osseguintes cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramentos Superiores:I - um DAS-5; II - dez DAS-4; e III - três DAS-3.Parágrafo único. Os cargos previstos neste artigo ficarão automaticamenteextintos após o término do prazo dos trabalhos da Comissão Nacional daVerdade, e os seus ocupantes, exonerados.Art. 10. A Casa Civil da Presidência da República dará o suporte técnico,administrativo e financeiro necessário ao desenvolvimento das atividades da ComissãoNacional da Verdade.Art. 11. A Comissão Nacional da Verdade terá prazo de dois anos, contadosda data de sua instalação, para a conclusão dos trabalhos, devendo apresentar, aofinal, relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados,as conclusões e recomendações.Art. 12. O Poder Executivo regulamentará o disposto nesta Lei.ANEXOArt. 13. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.Brasília,440


EM n.o 14 / 2010 – SDH-PR/MD/MJ/MPBrasília, 30 de Abril de 2010Excelentíssimo Senhor Presidente da República,Temos a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência o anexo Projetode Lei que cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil daPresidência da República.2. A criação de uma Comissão Nacional da Verdade com o objetivo estratégicode promover a apuração e o esclarecimento público das graves violações dedireitos humanos praticadas no Brasil no período fixado pelo artigo 8º do Ato dasDisposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal, emsintonia com uma das diretrizes constantes do 3º Programa Nacional de DireitosHumanos (PNDH - 3) publicado no final de 2009, responde a uma demandahistórica da sociedade brasileira.3. O reconhecimento da memória e da verdade como direito humano dacidadania é dever do Estado, reconhecido internacionalmente pela Organizaçãodas Nações Unidas e pela Organização dos Estados Americanos.4. No mundo todo, foram constituídas mais de 30 Comissões da Verdade,em contextos de transição política, superação de conflitos armados internos oude períodos ditatoriais, uma das ferramentas daquilo que é denominado “justiçatransicional”. Apesar dos diferentes contextos históricos, políticos, sociais, legais eculturais e das diferentes dinâmicas e formatos adotados, todas as Comissões tiveramcomo objetivo principal promover a reconciliação nacional, por intermédioda revelação, registro e compreensão da verdade sobre o passado de violações dedireitos humanos nos respectivos países.COMISSÃO DA VERDADE441


5. Como exemplos emblemáticos podemos citar a Comissión Nacional sobrela Desaparición de Personas, constituída na Argentina, que teve como escopo ainvestigação dos casos de desaparecimentos forçados, ocorridos durante o regimede exceção enfrentado por aquele país, e a Truth and Reconciliation Commissionconstituída na África do Sul com escopo de apurar violações de direitos humanosocorridas no período do Apartheid, buscar indenizações e instaurar processos deanistia.6. No Brasil, transcorridos mais de vinte anos desde a promulgação daConstituição Federal de 1988, a democracia encontra-se consolidada e importantespassos foram dados no sentido de identificar e reparar vítimas e familiaresdas graves violações ocorridas durante a ditadura militar.7. Nesse sentido, merece destaque a Comissão Especial sobre Mortos eDesaparecidos, criada pela Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995, com o objetivode reparar as famílias de uma lista inicial de 136 pessoas e julgar outroscasos apresentados para seu exame, além de empreender esforços na localizaçãode restos mortais de pessoas desaparecidas. A criação dessa Comissão marca o reconhecimentoda responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de opositoresao regime instalado a partir de 1964.ANEXO8. No mesmo sentido, a Lei no 10.559, de 13 de novembro de 2002, quecriou a Comissão de Anistia, no âmbito do Ministério da Justiça, com a finalidadede examinar os requerimentos de reparação econômica, de caráter indenizatório,aos anistiados políticos que sofreram prejuízos em razão de perseguições políticas,no período de 1946 a 1988. A referida Comissão desempenha importante papelna reparação daqueles que tiveram seus direitos violados por razões políticas, tendojulgado até 2009 mais de 54.803 processos.4429. Aliado ao trabalho desenvolvido pelas Comissões, o Governo Federal empreendeuesforços para garantir acesso aos arquivos públicos referentes ao regimede exceção instalado em 1964 a todos os cidadãos interessados. Como resultado,por determinação do Presidente da República, foram encaminhados ao ArquivoNacional os arquivos dos extintos Serviço Nacional de Informações, Conselhode Segurança Nacional e Comissão Geral de Investigações, além dos arquivos doDepartamento de Polícia Federal, do Gabinete de Segurança Institucional e de


outros órgãos públicos. Os acervos recolhidos foram organizados e digitalizadose encontram-se disponíveis para consulta pelo público.10. Soma-se a essas medidas o envio ao Congresso Nacional do Projeto deLei no 5.228, de 2009, conhecido como “Projeto de Lei de Acesso a Informações”,cujo texto contempla a previsão do art. 19 da Declaração Universal dos DireitosHumanos ao garantir maior transparência à administração pública e reduzir arestrição de acesso a informações, viabilizando o exercício pleno da cidadania, demodo a contribuir para a consolidação da democracia e para a modernização doEstado brasileiro.11. Em complementação às medidas mencionadas, é imprescindível asseguraro resgate da memória e da verdade sobre as graves violações de direitos humanosocorridas no período anteriormente mencionado, de modo a evitar que os fatosapurados voltem a fazer parte da história de nosso país.12. O anexo Projeto de Lei propõe a criação da Comissão Nacional da Verdadeno âmbito da Casa Civil da Presidência da República, composta por brasileiros,de reconhecida idoneidade, trajetória ética, e identificados com a defesa dademocracia, escolhidos e designados pelo Presidente da República.13. A Comissão Nacional da Verdade terá como objetivos:I. esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitoshumanos praticadas no período mencionado, de forma a promovero esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentosforçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridosno exterior;II. identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e ascircunstâncias relacionadas à prática das violações de direitos humanos, suaseventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;III. encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informaçãoobtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restosmortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º da Lei no 9.140,de 4 de dezembro de 1995;IV. colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração deviolações de direitos humanos, observadas as disposições das Leis no 6.683,COMISSÃO DA VERDADE443


de 28 de agosto de 1979, no 9.140, de 04 de dezembro de 1995 e no 10.559,de 13 de novembro de 2002;V. recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violaçõesde direitos humanos e assegurar sua não repetição e promover a efetivareconciliação nacional; eVI. promover, com base em seus informes, a reconstrução da história doscasos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para queseja prestada assistência às vítimas de tais violações.14. Para a execução desses objetivos, a Comissão Nacional da Verdade poderárequisitar diretamente aos órgãos e entidades públicos, dados e documentos,ainda que classificados como sigilosos, promover audiências públicas, determinara realização de perícias e diligências, requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos,promover parcerias para o intercâmbio de informações, convocar pessoasque possam guardar qualquer relação com os fatos e circunstâncias examinadaspara colher testemunho, dentre outras prerrogativas.15. O Projeto de Lei estabelece ainda o dever dos servidores públicos e dosmilitares de colaborar com os trabalhos da Comissão da Verdade e fixa o prazo dedois anos para conclusão de seus trabalhos, prevendo a apresentação de relatóriocircunstanciado ao final, especificando as atividades realizadas, os fatos examinados,as conclusões e recomendações.16. Destaque-se ainda que a Comissão Nacional da Verdade não terá caráterjurisdicional ou persecutório, em coerência com seu objetivo de promoção dodireito à memória e à verdade.ANEXO17. A criação da Comissão Nacional da Verdade assegurará o resgate damemória e da verdade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridasno período anteriormente mencionado, contribuindo para o preenchimento daslacunas existentes na história de nosso país em relação a esse período e, ao mesmotempo, para o fortalecimento dos valores democráticos.44418. Para dar suporte técnico à Comissão Nacional da Verdade, serão criados,a partir de janeiro de <strong>2011</strong>, quatorze cargos em comissão do grupo de Direção eAssessoramento Superior, sendo: um DAS-5; dez DAS-4; e três DAS- 3.


19. A Comissão Nacional da Verdade será composta de forma pluralista eserá integrada por sete membros, designados pelo Presidente da República, entrebrasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesada democracia e institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aosdireitos humanos, os quais perceberão o valor mensal de R$ 11.179,36 (onzemil, cento e setenta e nove reais e trinta e seis centavos) pelos serviços prestados.20. São essas, Senhor Presidente, as razões pelas quais submetemos o anexodo Projeto de Lei à elevada apreciação de Vossa Excelência.Respeitosamente,Assinado eletronicamente por: Rogerio Sottili, Nelson Azevedo Jobim, LuizPaulo Teles Ferreira Barreto, Paulo Bernardo Silva.COMISSÃO DA VERDADE445


Assessoriada CCDH/ALCoordenação:Luis Carlos TrombettaAssessoria Técnica:Cláudia Regina Costa da SilvaCésar PeresGisele OrtolanSecretária:Rejane SilvaEstagiários:Cristian Pereira PinheiroJenifer Rodrigues AmaralOrganizador:Luis Carlos TrombettaCapa e Diagramação:Endrigo ValadãoTodas as ilustrações presentes no miolo do livro são de autoria depacientes do Hospital Psiquiátrico São Pedro, de Porto Alegre/RS.Caso queira adquirir uma delas, entre em contato com BárbaraNeubarth da Oficina de Criatividade do São Pedro, através dotelefone (51) 3339-2111 ou do e-mail barbaraneubarth@gmail.com

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