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história do brasil frei vicente do salvador livro primeiro em que se ...

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HISTÓRIA DO BRASILPORFREI VICENTE DO SALVADORLIVRO PRIMEIROEM QUE SE TRATA DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL, COSTUMES DOS NATURAIS,AVES, PEIXES, ANIMAIS E DO MESMO BRASIL.Escrita na Bahia a 20 de dez<strong>em</strong>bro de 1627.DEDICATÓRIAAO LICENCIADO MANUEL SEVERIM DE FARIA CHANTRE NA SANTA SÉ DE ÉVORAO motivo <strong>que</strong> teve Aristóteles para <strong>se</strong> divertir da especulação, a <strong>que</strong> o <strong>se</strong>u gênio e inclinaçãonatural o levava, como consta da sua Lógica, Física, e Metafísica, e dar-<strong>se</strong> a escrever <strong>livro</strong>shistóricos e morais, quais as suas Éticas epólicas e a história de animais, além de lho mandar ogrande Alexandre, e lhe fazer as despesas, foi ver também, <strong>que</strong> estimava tanto o <strong>livro</strong> de Homero,<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> contam os feitos heróicos de Achiles, e de outros esforça<strong>do</strong>s guerreiros <strong>que</strong>, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong>refere Plutarco in vita Alexandre de ordinário o trazia consigo, ou quan<strong>do</strong> o largava da mão ofechava <strong>em</strong> escritório guarneci<strong>do</strong> de ouro, e pedras preciosas, melhor peça, <strong>que</strong> lhe coube <strong>do</strong>sdespojos de Dario, fican<strong>do</strong>-lhe na mão a chave, <strong>que</strong> de ninguém a fiava, e com muita razão, por<strong>que</strong>como diz Túlio, de oratore, os <strong>livro</strong>s históricos são luz da verdade, vida da m<strong>em</strong>ória, e mestres davida; e Dio<strong>do</strong>ro Siculo diz in pro<strong>em</strong>io sui operis, <strong>que</strong> estes igualam os mancebos na prudência aosvelhos, por<strong>que</strong> o <strong>que</strong> os velhos alcançam com larga vida e muitos discursos, pod<strong>em</strong> os mancebosalcançar <strong>em</strong> poucas horas de lição, as<strong>se</strong>nta<strong>do</strong>s <strong>em</strong> suas casas.Eis aqui a razão por <strong>que</strong> o grande Alexandre tanto estimava o <strong>livro</strong> de Homero, e <strong>se</strong> hojehouvera muitos Alexandres, também houvera muitos Homeros, por<strong>que</strong> como diz Ovídioscribent<strong>em</strong> juvat ip<strong>se</strong> favor, minuit<strong>que</strong> labor<strong>em</strong>:Cun-i<strong>que</strong> suo crescens pectore fervet opus.O favor ajuda o escritor, alivia-lhe o trabalho, anima-o, e dá-lhe fervor a sua obra; porém o<strong>que</strong> agora v<strong>em</strong>os é <strong>que</strong> <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s <strong>se</strong>r estima<strong>do</strong>s, e louva<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s escritores, há mui poucos <strong>que</strong>os louv<strong>em</strong> e estim<strong>em</strong>, e menos <strong>que</strong> lhes façam as despesas, só t<strong>em</strong>os a V. M. <strong>em</strong> Portugal <strong>que</strong> o<strong>se</strong>stima, e favorece tanto como <strong>se</strong> vê na sua livraria, <strong>que</strong> qua<strong>se</strong> toda t<strong>em</strong> ocupada de <strong>livro</strong>s históricos,e principalmente no <strong>que</strong> fez de louvores <strong>do</strong>s três historia<strong>do</strong>res portugue<strong>se</strong>s, Luiz Camões, João deBarros e Diogo <strong>do</strong> Couto, favor tão grande para escritores de histórias, <strong>que</strong> <strong>se</strong> pode dizer, e assim é,<strong>que</strong> aos mortos da vida, ressuscitan<strong>do</strong>-lhes a m<strong>em</strong>ória, <strong>que</strong> já o t<strong>em</strong>po lhes tinha <strong>se</strong>pultada, e aosvivos excita, dá ânimo e fervor, para <strong>que</strong> saiam à luz com <strong>se</strong>us escritos, e folgue cada um de contar,e compor sua história. Este foi o motivo <strong>que</strong> tive, para sair com esta <strong>do</strong> Brasil, junto com V. M. ma<strong>que</strong>rer fazer de tomar a impressão à sua custa para <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> parecer com Alexandre. Outro tive,<strong>que</strong> foi pedir-mo Vossa Mercê, e pelo con<strong>se</strong>guinte mandar-mo, pois os rogos <strong>do</strong>s <strong>se</strong>nhores t<strong>em</strong>força de preceitos. Glos. ï l unica, et in L. I. ff., quod jussu, <strong>do</strong>nde é a<strong>que</strong>le verso


2Est rogare ducum species violenta jubendi.E assim foi este de tanta força, <strong>que</strong> não só incitei a um amigo <strong>que</strong> a mesma históriacompu<strong>se</strong>s<strong>se</strong> <strong>em</strong> verso, de sorte <strong>que</strong> pudes<strong>se</strong> dizer o <strong>que</strong> dis<strong>se</strong> Santo Agostinho ao Santo bispoSimpliciano, <strong>que</strong> haven<strong>do</strong>-lhe pedi<strong>do</strong> um trata<strong>do</strong> breve <strong>em</strong> declaração de certas dificuldades lheofereceu <strong>do</strong>is <strong>livro</strong>s inteiros, desculpan<strong>do</strong>-<strong>se</strong>, ainda, com <strong>se</strong>r a letra tanta, <strong>que</strong> pudera causar fastio,de não satisfazer <strong>que</strong> lhe foi pedi<strong>do</strong>, conforme ao de<strong>se</strong>jo <strong>do</strong> suplicante; são suas palavras as <strong>que</strong> <strong>se</strong><strong>se</strong>gu<strong>em</strong>:Vereor ne ista, quae sunt a me dicta, et non satisfecerint expectationi et taedio fuerintgmavitati tuae, quan<strong>do</strong>quid<strong>em</strong> et tu ex omnibus, quae interrogati unum a me libellum misti veles,ego duos libros, eosd<strong>em</strong><strong>que</strong> longissimos misi, et fortas<strong>se</strong> quaistionibus nequaquam expeditediligenter respondi. Aug. Lb. 2 º quaistion. ad Simplic.Desta maneira haven<strong>do</strong>-me Vossa Mercê pedi<strong>do</strong> um trata<strong>do</strong> das coisas <strong>do</strong> Brasil, lhe ofereço<strong>do</strong>is, leitura, <strong>que</strong> pudera causar fastio, <strong>se</strong> o diverso méto<strong>do</strong> a não variara, e dera apetite, e contu<strong>do</strong>receio de não satisfazer curiosidade de Vossa Mercê, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> <strong>se</strong>i, <strong>que</strong> gosta desta iguaria. Dondetomei também motivo para a dedicar a Vossa Mercê e não a outr<strong>em</strong>, l<strong>em</strong>bran<strong>do</strong>-me <strong>que</strong> por darJacó a Isac <strong>se</strong>u pai uma de <strong>que</strong> gostava alcançou a bênção como a mãe lho havia certifica<strong>do</strong>,dizen<strong>do</strong>:Nuncergo, fihi mi, acquiesce consiliis meis: et mihi duos hce<strong>do</strong>s ut faciam ex eis escas patrituo, quibus libentar vescituri quas cum intulenis, et comedenit bençdicat tibi.B<strong>em</strong> enxergou o santo velho, ainda <strong>que</strong> cego, <strong>que</strong> Jacob o enganava, pois o conheceu pelavoz. Vere quid<strong>em</strong> voz Jacob, est; mas leva<strong>do</strong> <strong>do</strong> gosto da iguaria a <strong>que</strong> era afeiçoa<strong>do</strong> depois dainspiração <strong>do</strong> céu lhe concedeu a bênção, esta peço eu a Vossa Mercê, e com ela não tenho <strong>que</strong>t<strong>em</strong>er a maldizentes. Nosso Senhor, vida, saúde, e esta<strong>do</strong> con<strong>se</strong>rve e aumente a Vossa Mercê, comoos <strong>se</strong>us lhe de<strong>se</strong>jamos.Bahia, 20 de dez<strong>em</strong>bro de 1627.Servo de Vossa MercêFREI VICENTE DO SALVADOR.LIVRO PRIMEIRODO DESCOBRIMENTO DO BRASIL


3CAPÍTULO PRIMEIROComo foi descoberto este Esta<strong>do</strong>A terra <strong>do</strong> Brasil, <strong>que</strong> está na América, uma das quatro partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, não <strong>se</strong> descobriude propósito, e de principal intento; mas acaso in<strong>do</strong> Pedro Álvares Cabral, por manda<strong>do</strong> de el-rei d.Manuel, no ano de 1500 para as Índias, por capitão-mor de 12 naus, afastan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> da costa de Guiné,<strong>que</strong> já era descoberta ao Oriente, achou estoutra ao Ocidente, da qual não havia notícia alguma, foicostean<strong>do</strong> alguns dias com tormenta até chegar a um porto <strong>se</strong>guro, <strong>do</strong> qual a terra vizinha ficoucom o mesmo nome.Ali des<strong>em</strong>barcou o dito capitão com <strong>se</strong>us solda<strong>do</strong>s arma<strong>do</strong>s, para pelejar<strong>em</strong>; por<strong>que</strong> man<strong>do</strong>u<strong>primeiro</strong> um batel com alguns a descobrir campo, e deram novas de muitos gentios, <strong>que</strong> viram;porém não foram necessárias armas, por<strong>que</strong> só de ver<strong>em</strong> homens vesti<strong>do</strong>s, e calça<strong>do</strong>s, brancos, ecom barba / <strong>do</strong> <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> eles carec<strong>em</strong> / os tiveram por divinos, e mais <strong>que</strong> homens, e assimchaman<strong>do</strong>-lhe Caraíbas, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r dizer na sua língua coisa divina, <strong>se</strong> chegaram pacificamente aosnossos.Donde assim como os índios da Nova Espanha, quan<strong>do</strong> viram des<strong>em</strong>barcar nela o<strong>se</strong>spanhóis lhes chamaram viracocés, <strong>que</strong> significa escumas <strong>do</strong> mar, parecen<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> o mar oslançara de si como escumas, e este nome lhes ficou s<strong>em</strong>pre, assim somos ainda destoutroschama<strong>do</strong>s Caraíbas e respeita<strong>do</strong>s mais <strong>que</strong> homens. Mas muito mais cresceu neles o respeito,quan<strong>do</strong> viram oito frades da ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> nosso padre São Francisco, <strong>que</strong> iam com Pedro ÁlvaresCabral, e por guardião o padre <strong>frei</strong> Henri<strong>que</strong>, <strong>que</strong> depois foi bispo de Cepta, o qual dis<strong>se</strong> ali missa, epregou, onde os gentios ao levantar da hóstia, e cálice <strong>se</strong> ajoelharam, e batiam nos peitos comofaziam os cristãos, deixan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> b<strong>em</strong> nisto ver como Cristo <strong>se</strong>nhor nosso neste divino Sacramento<strong>do</strong>mina os gentios, <strong>que</strong> é o <strong>que</strong> a igreja canta no Invitatório de suas Matinas, dizen<strong>do</strong>: Christumreg<strong>em</strong> <strong>do</strong>minant<strong>em</strong> gentibus, qui <strong>se</strong> manducantibus dat spiritus pinguedin<strong>em</strong>, venite a<strong>do</strong>r<strong>em</strong>us.Do deus Pã, diziam os antigos gentios, <strong>que</strong> <strong>do</strong>minava e era <strong>se</strong>nhor <strong>do</strong> Universo, e dis<strong>se</strong>ramverdade <strong>se</strong> o entenderam deste Pã divino; por<strong>que</strong> s<strong>em</strong> falta ele é o Deus <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> <strong>do</strong>mina, e apenashá lugar <strong>em</strong> toda a terra onde já não <strong>se</strong>ja venera<strong>do</strong>, n<strong>em</strong> nação tão bárbara de <strong>que</strong> não <strong>se</strong>ja <strong>que</strong>ri<strong>do</strong>e a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>, como estes Brasis bárbaros fizeram.B<strong>em</strong> qui<strong>se</strong>ram os nossos frades, pela facilidade <strong>que</strong> nisto mostraram, para aceitar<strong>em</strong> a nossafé católica, ficar-<strong>se</strong> ali, para os ensinar<strong>em</strong> e batizar<strong>em</strong>, mas o capitão-mor, <strong>que</strong> os levava para outra<strong>se</strong>ara não menos importante, partiu daí a poucos dias com eles para a Índia, deixan<strong>do</strong> ali uma cruzlevantada como também <strong>do</strong>is portugue<strong>se</strong>s degrada<strong>do</strong>s para <strong>que</strong> aprendess<strong>em</strong> a língua, e despediuum navio a Portugal, de <strong>que</strong> era capitão Gaspar de L<strong>em</strong>os com a nova a el-rei d. Manuel, <strong>que</strong> arecebeu com o contentamento, <strong>que</strong> tão grande coisa, e tão pouco esperada merecia.CAPÍTULO SEGUNDODo nome <strong>do</strong> BrasilO dia <strong>em</strong> <strong>que</strong> o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz, <strong>que</strong> no capítulo atrásdiss<strong>em</strong>os, era 3 de maio, quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> celebra a invenção da Santa Cruz, <strong>em</strong> <strong>que</strong> Cristo NossoRedentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra, <strong>que</strong> havia descoberta, de Santa Cruz, epor este nome foi conhecida muitos anos: porém como o d<strong>em</strong>ônio com o sinal da cruz perdeu to<strong>do</strong> o<strong>do</strong>mínio, <strong>que</strong> tinha sobre os homens, recean<strong>do</strong> perder também o muito <strong>que</strong> tinha nos desta terra,trabalhou <strong>que</strong> <strong>se</strong> es<strong>que</strong>ces<strong>se</strong> o <strong>primeiro</strong> nome, e lhe ficas<strong>se</strong> o de Brasil, por causa de um pau assimchama<strong>do</strong>, de cor abrasada e vermelha, com <strong>que</strong> ting<strong>em</strong> panos, <strong>que</strong> o da<strong>que</strong>le divino pau <strong>que</strong> deu


4tinta e virtude a to<strong>do</strong>s os sacramentos da igreja, e sobre <strong>que</strong> ela foi edificada, e ficou tão firme eb<strong>em</strong> fundada, como sab<strong>em</strong>os, e porventura por isto ainda <strong>que</strong> ao nome de Brasil ajuntaram o deesta<strong>do</strong>, e lhe chamaram esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil, ficou ele tão pouco estável, <strong>que</strong> com não haver hoje 100anos, quan<strong>do</strong> isto escrevo, <strong>que</strong> <strong>se</strong> começou a povoar, já <strong>se</strong> hão despovoa<strong>do</strong>s alguns lugares, e <strong>se</strong>n<strong>do</strong>a terra tão grande, e fértil, como adiante ver<strong>em</strong>os, n<strong>em</strong> por isso vai <strong>em</strong> aumento, antes <strong>em</strong>diminuição.Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoa<strong>do</strong>res; aos reis pelo poucocaso <strong>que</strong> haviam feito deste tão grande esta<strong>do</strong>, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> o título qui<strong>se</strong>ram dele, pois intitulan<strong>do</strong>-<strong>se</strong><strong>se</strong>nhores de Guiné, por uma caravelinha <strong>que</strong> lá vai, e v<strong>em</strong>, como dis<strong>se</strong> o Rei <strong>do</strong> Congo, <strong>do</strong> Brasilnão <strong>se</strong> qui<strong>se</strong>ram intitular, n<strong>em</strong> depois da morte de el-rei d. João Terceiro, <strong>que</strong> o man<strong>do</strong>u povoar esoube estimá-lo, houve outro <strong>que</strong> dele curas<strong>se</strong>, <strong>se</strong>não para colher suas rendas e direitos; e dest<strong>em</strong>esmo mo<strong>do</strong> <strong>se</strong> haviam os povoa<strong>do</strong>res, os quais por mais arraiga<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> na terra estivess<strong>em</strong>, <strong>em</strong>ais ricos <strong>que</strong> foss<strong>em</strong>, tu<strong>do</strong> pretendiam levar a Portugal, e <strong>se</strong> as fazendas e bens <strong>que</strong> possuíamsoubess<strong>em</strong> falar também lhes haveriam de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeiracoisa <strong>que</strong> ensinam é papagaio real para Portugal; por<strong>que</strong> tu<strong>do</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong> para lá, e isto não t<strong>em</strong> só os<strong>que</strong> de lá vieram, mas ainda os <strong>que</strong> cá nasceram, <strong>que</strong> uns e outros usam da terra, não como<strong>se</strong>nhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutar<strong>em</strong>, e a deixar<strong>em</strong> destruída.Donde nasce também, <strong>que</strong> nenhum hom<strong>em</strong> nesta terra é repúblico, n<strong>em</strong> zela, ou trata <strong>do</strong>b<strong>em</strong> comum, <strong>se</strong>não cada um <strong>do</strong> b<strong>em</strong> particular. Não notei eu isto tanto quanto o vi notar um bispode Tucuman da Ord<strong>em</strong> de S. Domingos, <strong>que</strong> por algumas destas terras passou para a Corte, eragrande canonista, hom<strong>em</strong> de bom entendimento e prudência, e assim ia muito rico; notava as coisas,e via <strong>que</strong> mandava comprar um frangão, quatro ovos, e um peixe, para comer, e nada lhe traziam:por<strong>que</strong> não <strong>se</strong> achava na praça n<strong>em</strong> no açougue, e <strong>se</strong> mandava pedir as ditas coisas, e outras muitasa casas particulares lhas mandavam, então dis<strong>se</strong> o bispo verdadeiramente <strong>que</strong> nesta terra andam ascoisas trocadas, por<strong>que</strong> toda ela não é república, <strong>se</strong>n<strong>do</strong>-o cada casa; e assim é, <strong>que</strong> estan<strong>do</strong> as casas<strong>do</strong>s ricos / ainda <strong>que</strong> <strong>se</strong>ja a custa alheia, pois muitos dev<strong>em</strong> quanto têm / providas de to<strong>do</strong> onecessário, por<strong>que</strong> t<strong>em</strong> escravos, pesca<strong>do</strong>res, caça<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> lhes traz<strong>em</strong> a carne e o peixe, pipas devinho e de azeite, <strong>que</strong> compram por junto: nas vilas muitas vezes <strong>se</strong> não acha isto a venda. Pois o<strong>que</strong> é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, por<strong>que</strong> aten<strong>do</strong>-<strong>se</strong> uns aosoutros nenhum as faz, ainda <strong>que</strong> bebam água suja, e <strong>se</strong> molh<strong>em</strong> ao passar <strong>do</strong>s rios, ou <strong>se</strong> orvalh<strong>em</strong>pelos caminhos, e tu<strong>do</strong> isto v<strong>em</strong> de não tratar<strong>em</strong> <strong>do</strong> <strong>que</strong> há cá de ficar, <strong>se</strong>não <strong>do</strong> <strong>que</strong> hão de levarpara o reino.Estas são as razões por<strong>que</strong> alguns, como muitos diz<strong>em</strong>, <strong>que</strong> não permanece o Brasil n<strong>em</strong> vai<strong>em</strong> crescimento; e a estas <strong>se</strong> pode ajuntar a <strong>que</strong> atrás tocamos de lhe haver<strong>em</strong> chama<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>Brasil, tiran<strong>do</strong>-lhe o de Santa Cruz, com <strong>que</strong> pudera <strong>se</strong>r esta<strong>do</strong>, e ter estabilidade e firmeza.CAPÍTULO TERCEIRODa d<strong>em</strong>arcação da terra, e costa <strong>do</strong> Brasil com a <strong>do</strong> Peru e Índias de CastelaGrandes dúvidas e diferentes <strong>se</strong> começavam a mover sobre as conquistas das terras <strong>do</strong> NovoMun<strong>do</strong>, e houveram de crescer cada dia mais, <strong>se</strong> os reis católicos de Castela, d. Fernan<strong>do</strong>, e d.Isabel, sua mulher, e el-rei de Portugal, d. João Segun<strong>do</strong>, <strong>que</strong> as iam conquistan<strong>do</strong> não atalharass<strong>em</strong>com um concerto, <strong>que</strong> entre si fizeram, de <strong>que</strong> também deram conta ao Papa, e houveram suaaprovação e beneplácito. O concerto foi, <strong>que</strong> de uma das ilhas de cabo Verde chamada Santo Antão<strong>se</strong> mediss<strong>em</strong> 370 léguas para o oeste, e dali lançan<strong>do</strong> uma linha meridiana de norte a sul, todas as


5terras e ilhas <strong>que</strong> estavam para descobrir desta linha para a parte <strong>do</strong> oriente foss<strong>em</strong> da coroa dePortugal, e as ocidentais da coroa de Castela.Conforme a isto, diz Pedro Nunes, famoso cosmógrafo, <strong>que</strong> a terra <strong>do</strong> Brasil da Coroa dePortugal começa além da ponta <strong>do</strong> rio Amazonas, da parte <strong>do</strong> oeste no porto de Vicente Pizon, <strong>que</strong>d<strong>em</strong>arca <strong>em</strong> <strong>do</strong>is graus da linha equinocial, para o norte, e corre pelo <strong>se</strong>rtão até além da Baía de S.Mathias, por 44 graus, pouco mais ou menos, para o sul, e por esta medida / diz o mesmocosmógrafo / t<strong>em</strong> o Brasil pela costa 1500 léguas; porém, da<strong>do</strong> <strong>que</strong> assim <strong>se</strong>ja na teoria a prática énão chegar ao Brasil mais <strong>que</strong> até o rio da Prata, <strong>que</strong> esta <strong>em</strong> 35 graus, e, contu<strong>do</strong>, ainda t<strong>em</strong> maisde 1000 léguas por costa, por<strong>que</strong> posto <strong>que</strong> <strong>em</strong> algumas partes corre de norte a sul, <strong>que</strong> são os graussó de 17,5 léguas: todavia pela maior parte, <strong>que</strong> é para o sul <strong>do</strong> cabo de Santo Agostinho até o rio daPrata, corre de nordeste a su<strong>do</strong>este, <strong>que</strong> são de 25 léguas, e para o norte <strong>do</strong> cabo Branco até o rioAmazonas, qua<strong>se</strong> de leste a oeste, onde <strong>se</strong> altera o grau, <strong>se</strong> multiplicam as léguas, e assim não émuito <strong>que</strong> <strong>em</strong> 35 graus haja tantas.Donde <strong>se</strong> colige também, <strong>que</strong> é a terra <strong>do</strong> Brasil da figura de uma harpa, cuja parte superiorfica mais larga ao norte corren<strong>do</strong> <strong>do</strong> oriente ao ocidente, e as colaterais a <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão <strong>do</strong> norte a sul, eda costa <strong>do</strong> nordeste a su<strong>do</strong>este, <strong>se</strong> vão ajuntar no rio da Prata <strong>em</strong> uma ponta à maneira de harpa,como <strong>se</strong> verá no mapa mundi, e na estampa <strong>se</strong>guinte.Da largura <strong>que</strong> a terra <strong>do</strong> Brasil t<strong>em</strong> para o <strong>se</strong>rtão não trato, por<strong>que</strong> até agora não houvequ<strong>em</strong> a andas<strong>se</strong>, por negligência <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s <strong>que</strong>, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> grandes conquista<strong>do</strong>res de terras, não<strong>se</strong> aproveitam delas, mas contentam-<strong>se</strong> de as andar arranhan<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> mar como caranguejos.Depois <strong>do</strong> sobredito concerto e d<strong>em</strong>arcação, <strong>se</strong> moveram ainda novas dúvidas sobre aconquista destas terras; por<strong>que</strong> um português por nome Fernão de Magalhães, hom<strong>em</strong> de grandeespírito, e de muita prática e experiência na arte de navegação, por um agravo <strong>que</strong> teve de el-rei d.Manuel, por lhe não mandar acrescentar um tostão a moradia <strong>que</strong> tinha para ficar igual a de <strong>se</strong>usantepassa<strong>do</strong>s, <strong>se</strong> tirou <strong>do</strong> <strong>se</strong>u <strong>se</strong>rviço e <strong>se</strong> passou ao impera<strong>do</strong>r Carlos Quinto, oferecen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> até darmaiores proveitos da Índia de <strong>que</strong> tinham os portugue<strong>se</strong>s, e por viag<strong>em</strong> mais breve e menos custosae perigosa <strong>que</strong> a sua, por um estreito <strong>que</strong> ele novamente descobrira na costa <strong>do</strong> Brasil; e lhe pôstambém as ilhas de Maluco na d<strong>em</strong>arcação de Castela. Ao <strong>que</strong> o impera<strong>do</strong>r não somente deuouvi<strong>do</strong>s, mas admitiu ao <strong>se</strong>u <strong>se</strong>rviço, e posto <strong>que</strong> el-rei lhe escreveu logo, fazen<strong>do</strong>-lhe asl<strong>em</strong>branças necessárias, não deixou de dar navios e gente a Fernão de Magalhães com <strong>que</strong> cometeua viag<strong>em</strong>, e foi pelo estreito às ilhas de Maluco, onde to<strong>do</strong>s <strong>se</strong> perderam, exceto um, <strong>que</strong> depois depassar muitos trabalhos e perigos, e cinco me<strong>se</strong>s de fome estreitíssima, de <strong>que</strong> lhe morreram 21pessoas, os <strong>que</strong> ficaram vivos, constrangi<strong>do</strong>s da extr<strong>em</strong>a necessidade, arribaram-<strong>se</strong> à ilha de CaboVerde, onde os portugue<strong>se</strong>s, enquanto não souberam da viag<strong>em</strong> <strong>que</strong> traziam, os agasalharam eproveram com to<strong>do</strong>s os mantimentos e refrescos necessários, por<strong>que</strong> os castelhanos diziam vir<strong>em</strong>das Antilhas, mas depois <strong>que</strong> entenderam a verdade, determinaram <strong>se</strong>cretamente de lançar mão danau, e a fizeram deter, até dar<strong>em</strong> aviso ao reino, o <strong>que</strong> também aventaram os castelhanos, e <strong>se</strong>fizeram à vela com tanta pressa, <strong>que</strong> não tiveram t<strong>em</strong>po de recolher o <strong>se</strong>u batel, e os da ilha otomaram com 13 homens, <strong>que</strong> estavam <strong>em</strong> terra, e os mandaram logo a el-rei com novas <strong>do</strong> <strong>que</strong>passava. el-rei <strong>que</strong> já nes<strong>se</strong> t<strong>em</strong>po era d. João Terceiro, por falecimento de el-rei d. Manuel, <strong>se</strong>u pai,<strong>que</strong> havia um ano era morto, a 13 de dez<strong>em</strong>bro de 1521, man<strong>do</strong>u logo quatro caravelas <strong>em</strong> busca <strong>do</strong>navio, mas por maior pressa, <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram, acharam novas, <strong>que</strong> já era aporta<strong>do</strong> <strong>em</strong> Sevilha.Pelo <strong>que</strong> determinou no <strong>se</strong>u Con<strong>se</strong>lho de mandar pedir ao impera<strong>do</strong>r toda a especiaria, <strong>que</strong> onavio trouxera das ilhas de Maluco, por estar<strong>em</strong> dentro da sua d<strong>em</strong>arcação, e <strong>que</strong> não qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong>começar a dar motivo de <strong>se</strong> <strong>que</strong>brar<strong>em</strong> as pazes, <strong>que</strong> por ambos estavam ratificadas, e assim oescreveu ao impera<strong>do</strong>r e a Luiz da Silveira, <strong>que</strong> havia manda<strong>do</strong> por <strong>se</strong>u <strong>em</strong>baixa<strong>do</strong>r a Castela sobrecasamentos e lianças, escreveu mudas<strong>se</strong> a substância da <strong>em</strong>baixada, e só tratas<strong>se</strong> deste negócio,


6como também o man<strong>do</strong>u fazer o impera<strong>do</strong>r pelo <strong>se</strong>u <strong>se</strong>cretário <strong>que</strong> estava <strong>em</strong> Portugal, CristóvãoBarroso, ao qual escreveu, <strong>que</strong> falas<strong>se</strong> logo a el-rei, e lhe des<strong>se</strong> uma carta, <strong>que</strong> sobre isso lheescrevia, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>ixava muito de todas estas coisas, e principalmente de ele mandar noalcance da sua nau, <strong>que</strong> vinha carregada de especiaria das terras, <strong>que</strong> cabiam na sua d<strong>em</strong>arcaçãos<strong>em</strong> tocar por toda a Índia e <strong>que</strong> isto era <strong>que</strong>brar as capitulações antigas, e novas das pazes, <strong>que</strong>estavam as<strong>se</strong>ntadas, e juradas de um reino a outro, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os navios portugue<strong>se</strong>s por <strong>se</strong>umanda<strong>do</strong> mui b<strong>em</strong> recolhi<strong>do</strong>s <strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os portos de <strong>se</strong>us <strong>se</strong>nhorios, por onde lhe pedia, <strong>que</strong> lh<strong>em</strong>andas<strong>se</strong> soltar os presos, e castigar na ilha os <strong>que</strong> prenderam: às quais <strong>que</strong>ixas <strong>se</strong> respondeu departe a parte, <strong>que</strong> <strong>se</strong> poriam <strong>em</strong> juízo, e <strong>se</strong> julgaria o <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> justiça.Mas s<strong>em</strong> falta <strong>se</strong> viera o negócio a averiguar pelas armas, <strong>se</strong> não <strong>se</strong> efetuass<strong>em</strong> neste t<strong>em</strong>poos casamentos del-rei com a rainha d. Catarina irmã <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, e <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r com a imperatrizd. Isabel, irmã del-rei com <strong>que</strong> ficaram duas vezes cunha<strong>do</strong>s, e irmãos, e pelo con<strong>se</strong>guinte <strong>em</strong> muitapaz e amizade.Também el-rei Francisco de França de<strong>se</strong>joso de ter parte nos grandes proveitos, <strong>que</strong> diziamtirar-<strong>se</strong> destas terras, começou a argüir novas dúvidas sobre a d<strong>em</strong>arcação <strong>que</strong> entre si os reis dePortugal fizeram com os de Castela, da qual ele <strong>se</strong> lançara de fora <strong>se</strong>n<strong>do</strong> re<strong>que</strong>ri<strong>do</strong> para isso, e agora<strong>se</strong>ntia muito a renunciação, <strong>que</strong> tinha feito. Donde <strong>se</strong> veio a dizer, <strong>que</strong> pelo desgosto, <strong>que</strong> tinhadestes <strong>do</strong>is reis de Portugal e Castela repartir<strong>em</strong> entre si o mun<strong>do</strong>, e o d<strong>em</strong>arcar<strong>em</strong> à sua vontade,con<strong>se</strong>ntia andar<strong>em</strong> os <strong>se</strong>us vassalos pelo mar tão soltos, <strong>que</strong> não somente roubavam os navios, mascometiam as ditas terras, e as <strong>que</strong>riam povoar, principalmente as <strong>do</strong> Brasil, como adiante ver<strong>em</strong>os.CAPÍTULO QUARTODo clima e t<strong>em</strong>peramento <strong>do</strong> BrasilOpinião foi de Aristóteles, e de outros filósofos antigos de <strong>que</strong> a zona tórrida era inabitável,por<strong>que</strong> como o sol passa por ela cada ano duas vezes para os trópicos, parecia-lhes, <strong>que</strong> com tantocalor não poderia alguém viver, e confirmavam sua opinião, por<strong>que</strong> o sol a<strong>que</strong>nta com os <strong>se</strong>us raiosuniformiter diformiter, mais ao perto <strong>que</strong> ao longe, e por essa causa no inverno a<strong>que</strong>nta pouco,por<strong>que</strong> anda distante, <strong>se</strong>d sic est, <strong>que</strong> na zona t<strong>em</strong>perada onde nunca entra, só pelo acesso <strong>que</strong> fazno verão enfermam, e morr<strong>em</strong> os homens de calor, logo a fortiori <strong>em</strong> a zona tórrida <strong>do</strong>nde nuncasai, há de <strong>se</strong>r mortífero.Porém a experiência t<strong>em</strong> já mostra<strong>do</strong>, <strong>que</strong> a zona tórrida é habitável, e <strong>que</strong> <strong>em</strong> algumaspartes dela viv<strong>em</strong> os homens com mais saúde, <strong>que</strong> <strong>em</strong> toda a zona t<strong>em</strong>perada, principalmente noBrasil, onde nunca há peste, n<strong>em</strong> outras enfermidades comuns, <strong>se</strong>não bexigas de t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos,de <strong>que</strong> a<strong>do</strong>ec<strong>em</strong> os negros, e os naturais da terra, e isto só uma vez, s<strong>em</strong> a <strong>se</strong>gundar <strong>em</strong> os <strong>que</strong> já astiveram, e <strong>se</strong> alguns a<strong>do</strong>ec<strong>em</strong> de enfermidades particulares, é mais por suas desordens, <strong>que</strong> pormalícia da terra. A razão disto é por<strong>que</strong> ainda <strong>que</strong> a terra <strong>do</strong> Brasil <strong>se</strong>ja cálida por estar a maior delana zona tórrida, contu<strong>do</strong> é juntamente muito úmida, como <strong>se</strong> prova <strong>do</strong> orvalhar tanto de noite, <strong>que</strong>n<strong>em</strong> depois de sair o sol a quatro horas <strong>se</strong> enxugam as ervas; e <strong>se</strong> alguém <strong>do</strong>rme ao <strong>se</strong>reno, <strong>se</strong>levanta pela manhã tão molha<strong>do</strong> dele como <strong>se</strong> lhe houvera chovi<strong>do</strong>.Daqui v<strong>em</strong> também não poder o sal e o açúcar, por mais <strong>que</strong> o <strong>se</strong>qu<strong>em</strong>, e resguard<strong>em</strong>,con<strong>se</strong>rvar-<strong>se</strong> s<strong>em</strong> umedecer-<strong>se</strong>, e o ferro e aço de uma espada ou navalha, por mais limpos, esacala<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>jam, <strong>se</strong> enche logo de ferrug<strong>em</strong>, e esta umidade é causa de <strong>que</strong> o calor desta terra <strong>se</strong>t<strong>em</strong>pere, e faz este clima de boa complexão, outra é pelos ventos leste e nordeste, <strong>que</strong> ventam <strong>do</strong>mar to<strong>do</strong> o verão <strong>do</strong> meio-dia pouco mais ou menos, até a meia-noite, e lavam e refrescam toda aterra.


7A última causa é pela igualdade <strong>do</strong>s dias e das noites, por<strong>que</strong> (como diz<strong>em</strong> os filósofos) aextensão faz intenção; <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> um pu<strong>se</strong>s<strong>se</strong> ou tives<strong>se</strong> a mão devagar sobre um fogo fraco deestopas ou de palhas <strong>se</strong> <strong>que</strong>imaria mais, <strong>que</strong> <strong>se</strong> depressa a passas<strong>se</strong> por um fogo forte, e por isto <strong>em</strong>Portugal, posto <strong>que</strong> o calor é mais r<strong>em</strong>isso <strong>se</strong> <strong>se</strong>nte mais, por<strong>que</strong> dura mais, e são maiores os dias noverão, <strong>que</strong> as noites, mas no Brasil, ainda <strong>que</strong> mais intenso, dura menos, e não a<strong>que</strong>nta tanto <strong>que</strong> ofrio da noite o não atalhe, <strong>que</strong> não chegue de um dia a outro.Donde <strong>se</strong> responde ao argumento de Aristóteles de <strong>que</strong> o sol a<strong>que</strong>nta mais na zona tórrida,<strong>que</strong> na t<strong>em</strong>perada, intensiva, mas não extensiva, e <strong>que</strong> esta intenção de calor <strong>se</strong> modera com osventos frescos <strong>do</strong> mar, e umidade da terra, junto com a frescura <strong>do</strong> arvore<strong>do</strong>, de <strong>que</strong> toda estácoberta; de tal sorte <strong>que</strong> os <strong>que</strong> a habitam viv<strong>em</strong> nela alegr<strong>em</strong>ente. O <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> verifica a opinião<strong>do</strong>s filósofos é nas coisas mortas, por<strong>que</strong> estan<strong>do</strong> nas outras terras a carne três ou quatro dias sã, eincorrupta, e da mesma maneira o pesca<strong>do</strong>, nesta não está 24 horas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não dane e corrompa.CAPÍTULO QUINTODas minas de metais e pedras preciosas <strong>do</strong> BrasilJá no capítulo terceiro, comecei a murmurar da negligência <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> não <strong>se</strong>aproveitavam das terras <strong>do</strong> Brasil, <strong>que</strong> conquistaram, e agora me é necessário continuar com amurmuração, haven<strong>do</strong> de tratar das minas <strong>do</strong> Brasil, pois <strong>se</strong>n<strong>do</strong> contígua esta terra com a <strong>do</strong> Peru,<strong>que</strong> a não divide mais <strong>que</strong> uma linha imaginária indivisível, ten<strong>do</strong> lá os castelhanos descobertastantas e tão ricas minas, cá n<strong>em</strong> uma passada dão por isso, e quan<strong>do</strong> vão ao <strong>se</strong>rtão é a buscar índiosforros, trazen<strong>do</strong>-os à força, e com enganos, para <strong>se</strong> <strong>se</strong>rvir<strong>em</strong> deles, e os vender<strong>em</strong> com muitoencargo de suas consciências, e é tanta a fome <strong>que</strong> disto levam, <strong>que</strong> ainda <strong>que</strong> de caminho ach<strong>em</strong>mostras, ou novas de minas, não as cavam, n<strong>em</strong> ainda as vê<strong>em</strong>, ou as d<strong>em</strong>arcam.Um solda<strong>do</strong> de crédito me dis<strong>se</strong>, <strong>que</strong> in<strong>do</strong> de São Vicente com outros, entraram muitasléguas pelo <strong>se</strong>rtão, <strong>do</strong>nde trouxeram muitos índios, e <strong>em</strong> certa parag<strong>em</strong> lhes dis<strong>se</strong> um <strong>que</strong> dali a trêsjornadas estava uma mina de muito ouro limpo, e descoberto, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> podia tirar <strong>em</strong> pedaços,porém <strong>que</strong> receava a morte <strong>se</strong> lha fos<strong>se</strong> mostrar, por<strong>que</strong> assim morrera já outro <strong>que</strong> <strong>em</strong> outraocasião a qui<strong>se</strong>ra mostrar aos brancos; e dizen<strong>do</strong>-lhe estes, <strong>que</strong> não t<strong>em</strong>es<strong>se</strong>, por<strong>que</strong> lhe rogariam aDeus pela vida, prometeu <strong>que</strong> lha iria mostrar, e as<strong>se</strong>ntaram de partir no dia <strong>se</strong>guinte pela manhã,por<strong>que</strong> a<strong>que</strong>le era já tarde, com isto <strong>se</strong> apartou o índio para o <strong>se</strong>u rancho, e quan<strong>do</strong> amanheceu oacharam morto, e como morreram to<strong>do</strong>s, não houve mais qu<strong>em</strong> tives<strong>se</strong> ânimo para descobrir a<strong>que</strong>lari<strong>que</strong>za, <strong>que</strong> a mesma natureza / <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> dizia o índio / ali está mostran<strong>do</strong> descoberta. Outraentrada fez um Antônio Dias A<strong>do</strong>rno, da Bahia, <strong>em</strong> <strong>que</strong> também achou de passag<strong>em</strong> muitas sortesde pedras preciosas, de <strong>que</strong> trouxe algumas mostras, e por tais foram julgadas <strong>do</strong>s lapidários.De cristal sab<strong>em</strong>os <strong>em</strong> certo haver uma <strong>se</strong>rra na capitania <strong>do</strong> Espírito Santo <strong>em</strong> <strong>que</strong> estãometidas muitas esmeraldas, de <strong>que</strong> Marcos de Azeve<strong>do</strong> levou as mostras a el-rei, e feito exame por<strong>se</strong>u manda<strong>do</strong>, dis<strong>se</strong>ram os lapidários, <strong>que</strong> a<strong>que</strong>las eram da superfície, e estavam tostadas <strong>do</strong> sol,mas <strong>que</strong> <strong>se</strong> cavass<strong>em</strong> ao fun<strong>do</strong> as achariam claras e finíssimas, pelo <strong>que</strong> el-rei lhe fez mercê <strong>do</strong>hábito de Cristo, e de <strong>do</strong>is mil cruza<strong>do</strong>s, para <strong>que</strong> tornas<strong>se</strong> a elas, os quais <strong>se</strong> não deram; e o hom<strong>em</strong>era velho e morreu s<strong>em</strong> haver mais até agora qu<strong>em</strong> lá tornas<strong>se</strong>.Também há minas de cobre, ferro e salitre, mas <strong>se</strong> pouco trabalham pelas de ouro e pedraspreciosas, muito menos faz<strong>em</strong> por estoutras.Não ponho culpa a el-rei, assim por<strong>que</strong> <strong>se</strong>i <strong>que</strong> nesta matéria lhe t<strong>em</strong> da<strong>do</strong> alguns alvitresfalsos e, diz Aristóteles, <strong>que</strong> é pena <strong>do</strong>s <strong>que</strong> ment<strong>em</strong> não lhes dar<strong>em</strong> crédito quan<strong>do</strong> falam verdade,


8como também por<strong>que</strong> não basta mandar el-rei, <strong>se</strong> os ministros não obedec<strong>em</strong>, como <strong>se</strong> viu no da<strong>se</strong>smeraldas de Marcos de Azeve<strong>do</strong>.CAPÍTULO SEXTODas árvores agrestes <strong>do</strong> BrasilHá no Brasil grandíssimas matas de árvores agrestes, cedros, carvalhos, vinháticos, angelins,e outras não conhecidas <strong>em</strong> Espanha, de madeiras fortíssimas para <strong>se</strong> poder<strong>em</strong> fazer delasfortíssimos galeões, e o <strong>que</strong> mais é, <strong>que</strong> da casca de algumas <strong>se</strong> tira a estopa para <strong>se</strong> calafetar<strong>em</strong>, efazer<strong>em</strong> cordas para enxárcia e amarras, <strong>do</strong> <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> aproveitam os <strong>que</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong> cá fazer navios, e<strong>se</strong> poderá aproveitar el-rei <strong>se</strong> cá os mandara fazer; mas os índios naturais da terra as <strong>em</strong>barcações de<strong>que</strong> usam são canoas de um só pau, <strong>que</strong> lavram a fogo e a ferro; e há paus tão grandes, <strong>que</strong> ficamdepois de cava<strong>do</strong>s, com 10 palmos de boca de bor<strong>do</strong> a bor<strong>do</strong>; e tão compri<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> r<strong>em</strong>am a 20r<strong>em</strong>os por banda.São também as madeiras <strong>do</strong> Brasil mui acomodadas para os edifícios das casas por suafortaleza, e com elas <strong>se</strong> acha juntamente a pregadura; por<strong>que</strong> ao pé das mesmas árvores nasc<strong>em</strong> unsvimes mui rijos, chama<strong>do</strong>s timbós, e cipós <strong>que</strong>, subin<strong>do</strong> até o mais alto delas ficam parecen<strong>do</strong>mastros de navios com <strong>se</strong>us cordéis, e com estes atam os caibros, ripas e toda a madeira das casas,<strong>que</strong> houvera de <strong>se</strong>r pregadas, no <strong>que</strong> <strong>se</strong> forra muito gasto de dinheiro e, principalmente, nas grandescercas, <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> aos pastos <strong>do</strong>s bois <strong>do</strong>s engenhos, por<strong>que</strong> não saiam a comer os canaviais <strong>do</strong>açúcar, e os ach<strong>em</strong> no pasto, quan<strong>do</strong> os houver<strong>em</strong> mister para a moenda, as quais cercas <strong>se</strong> faz<strong>em</strong>de estacas e varas atadas com estes cipós.Ao longo <strong>do</strong> mar, e <strong>em</strong> algumas partes, muito espaço dentro dele há grandes matas d<strong>em</strong>angues, uns direitos e delga<strong>do</strong>s de <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> estas cercas e caibros para as casas. Outros <strong>que</strong> <strong>do</strong>sramos lhes desc<strong>em</strong> as raízes ao la<strong>do</strong>, e delas sob<strong>em</strong> outros, <strong>que</strong> depois de cima lançam outras raízes,e assim <strong>se</strong> vão continuan<strong>do</strong> de ramos a raízes, e de raízes a ramos, até ocupar um grande espaço,<strong>que</strong> é coisa de admiração.Não é menos admirável outra planta, <strong>que</strong> nasce nos ramos de qual<strong>que</strong>r árvore, e ali cresce, edá um fruto grande, e mui <strong>do</strong>ce chama<strong>do</strong> caragatá, e entre suas folhas, <strong>que</strong> são largas, e rijas, <strong>se</strong>acha to<strong>do</strong> o verão água frigidíssima, <strong>que</strong> é o r<strong>em</strong>édio <strong>do</strong>s caminhantes, onde não há fontes. Hámuitas castas de palmeiras, de <strong>que</strong> <strong>se</strong> com<strong>em</strong> os palmitos e o fruto, <strong>que</strong> são uns cachos de cocos, e<strong>se</strong> faz deles azeite para comer, e para a candeia, e das palmas <strong>se</strong> cobr<strong>em</strong> as casas.N<strong>em</strong> menos são as madeiras <strong>do</strong> Brasil formosas <strong>que</strong> fortes, por<strong>que</strong> as há de todas as cores,brancas, negras, vermelhas, amarelas, roxas, rosadas e jaspeadas, porém tira<strong>do</strong> o pau vermelho, a<strong>que</strong> chamam Brasil, e o amarelo chama<strong>do</strong> Tataisba, e o rosa<strong>do</strong> Arariba, os mais não dão tinta desuas cores, e, contu<strong>do</strong>, são estima<strong>do</strong>s por sua formosura para fazer leitos, cadeiras, escritórios ebufetes: como também <strong>se</strong> estimam outros, por<strong>que</strong> estilam de si óleo o<strong>do</strong>rífero, e medicinal, quaissão umas árvores mui grossas, altas e direitas chamadas copaíbas, <strong>que</strong> golpeadas no t<strong>em</strong>po <strong>do</strong> estiocom um macha<strong>do</strong>, ou furadas com uma verruma, ao pé estilam <strong>do</strong> âmago um precioso óleo, com<strong>que</strong> <strong>se</strong> curam todas as enfermidades de humor frio, e <strong>se</strong> mitigam as <strong>do</strong>res <strong>que</strong> delas proced<strong>em</strong>, esaram quais<strong>que</strong>r chagas, principalmente de feridas frescas, posto com o sangue, de tal mo<strong>do</strong>, <strong>que</strong>n<strong>em</strong> fica delas sinal algum, depois <strong>que</strong> saram: e acerta às vezes estar este licor tão de vez, ede<strong>se</strong>joso de sair, <strong>que</strong> <strong>em</strong> tiran<strong>do</strong> a verruma, corre <strong>em</strong> tanta quantidade como <strong>se</strong> tiraram o torno auma pipa de azeite; porém, n<strong>em</strong> <strong>em</strong> todas <strong>se</strong> acha isto, <strong>se</strong>não nas <strong>que</strong> os índios chamam fêmeas, eesta é a diferença <strong>que</strong> t<strong>em</strong> <strong>do</strong>s machos, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> o mais s<strong>em</strong>elhante, n<strong>em</strong> só t<strong>em</strong> estas árvores


9virtude no óleo, mas também na casca, e assim <strong>se</strong> acham ordinariamente roçadas <strong>do</strong>s animais, <strong>que</strong>as vão buscar para r<strong>em</strong>édio de suas enfermidades.Outras árvores há chamadas coboreibas, <strong>que</strong> dão o suavíssimo bálsamo com <strong>que</strong> <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> asmesmas curas, e o Sumo Pontífice o t<strong>em</strong> declara<strong>do</strong>, por matéria legítima da santa unção, e crisma, ecomo tal <strong>se</strong> mistura e sagra com os santos óleos onde falta o da Pérsia.Este <strong>se</strong> tira também dan<strong>do</strong> golpes na árvore, e meten<strong>do</strong> neles um pouco de algodão <strong>em</strong> <strong>que</strong><strong>se</strong> colhe, e exprimi<strong>do</strong> o met<strong>em</strong> <strong>em</strong> uns coquinhos para o guardar<strong>em</strong> e vender<strong>em</strong>.Outras árvores <strong>se</strong> estimam ainda <strong>que</strong> agrestes, por <strong>se</strong>us saborosos frutos, <strong>que</strong> sãoinumeráveis, as <strong>que</strong> frutificam pelos campos, e matos, e assim não poderei contar <strong>se</strong>não algumasprincipais, tais são as sasapocaias de <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> os eixos para as moendas <strong>do</strong>s engenhos, por <strong>se</strong>r<strong>em</strong>rigíssimas, direitas e tão grossas como tonéis, cujos frutos são uns vasos tapa<strong>do</strong>s, cheios desaborosas amên<strong>do</strong>as, os quais depois <strong>que</strong> estão de vez <strong>se</strong> destapam, e comidas as amên<strong>do</strong>as <strong>se</strong>rv<strong>em</strong>as cascas de grãos para pisar adubos, ou o <strong>que</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong>.Maçarandubas, <strong>que</strong> é a madeira mais ordinária de <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> as traves e to<strong>do</strong> omadeiramento das casas, por <strong>se</strong>r qua<strong>se</strong> incorruptível, <strong>se</strong>u fruto é como cerejas, maior e mais <strong>do</strong>ce,mas lança de si leite, como os figos mal maduros.Jenipapos, de <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> os r<strong>em</strong>os para os barcos como na Espanha os faz<strong>em</strong> de faia, t<strong>em</strong> umfruto re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> tão grande como laranjas, o qual quan<strong>do</strong> é verde, espr<strong>em</strong>i<strong>do</strong> dá o sumo tão clarocomo a água <strong>do</strong> pote; porém qu<strong>em</strong> <strong>se</strong> lava com ele fica negro como carvão, n<strong>em</strong> <strong>se</strong> lhe tira a tinta<strong>em</strong> poucos dias.Desta <strong>se</strong> pintam, e ting<strong>em</strong> os índios <strong>em</strong> suas festas, e sa<strong>em</strong> tão contentes nus, como <strong>se</strong>saíss<strong>em</strong> com uma rica libré, e este fruto <strong>se</strong> come depois de maduro, s<strong>em</strong> botar dele nada fora.Gyitis (sic) é fruto de outras, o qual posto <strong>que</strong> feio à vista, e por isto lhe chamam coroe, <strong>que</strong><strong>que</strong>r dizer no<strong>do</strong>so, e sarabulhento, contu<strong>do</strong> é de tanto sabor e cheiro, <strong>que</strong> não parece simples, <strong>se</strong>nãocomposto de açúcar, ovos e almiscar.Os cajueiros dão a fruta chamada cajus, <strong>que</strong> são como verdiais, mas de mais sumo, os quais<strong>se</strong> colh<strong>em</strong> no mês de dez<strong>em</strong>bro <strong>em</strong> muita quantidade, e os estimam tanto, <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le mês não<strong>que</strong>r<strong>em</strong> outro mantimento, bebida ou regalo, por<strong>que</strong> eles lhes <strong>se</strong>rv<strong>em</strong> de fruta, o sumo de vinho, ede pão lhes <strong>se</strong>rv<strong>em</strong> umas castanhas, <strong>que</strong> v<strong>em</strong> pegadas a esta fruta, <strong>que</strong> também as mulheres brancasprezam muito, e <strong>se</strong>cas as guardam to<strong>do</strong> o ano <strong>em</strong> casa para fazer<strong>em</strong> maçapães e outros <strong>do</strong>ces, comode amên<strong>do</strong>as; e dá goma como a Arábia. A figura desta árvore e <strong>do</strong> <strong>se</strong>u fruto é a <strong>se</strong>guinte.O mesmo t<strong>em</strong> outra planta <strong>que</strong> produz os anana<strong>se</strong>s, fruta <strong>que</strong> <strong>em</strong> formosura, cheiro e saborexcede todas as <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, alguma tacha lhe põ<strong>em</strong> os <strong>que</strong> têm chagas e feridas abertas, por<strong>que</strong> lhasassanha muito <strong>se</strong> a com<strong>em</strong>, trazen<strong>do</strong> ali to<strong>do</strong>s os ruins humores, <strong>que</strong> acha no corpo: porém istoantes argue a sua bondade, <strong>que</strong> é não sofrer consigo ruins humores, e purgá-los, pelas vias, <strong>que</strong> achaabertas, como o experimentam os enfermos de pedra, <strong>que</strong> lha desfaz <strong>em</strong> areias, e expele com aurina, e até a ferrug<strong>em</strong> da faca, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> apara, a limpa; a figura da planta e fruto é o <strong>se</strong>guinte.Cultivam-<strong>se</strong> palmares de cocos grandes, e colh<strong>em</strong>-<strong>se</strong> muitos, principalmente à vista <strong>do</strong> mar,mas só os com<strong>em</strong>, e lhes beb<strong>em</strong> a água, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> dentro <strong>se</strong>us mais proveitos, <strong>que</strong> tiram na Índia,onde diz o padre Frei Gaspar no <strong>se</strong>u Itinerário a folhas 14, <strong>que</strong> das palmeiras <strong>se</strong> arma uma nau àvela, e <strong>se</strong> carrega de to<strong>do</strong> o mantimento necessário s<strong>em</strong> levar sobre si mais, <strong>que</strong> a si mesma. Faz<strong>em</strong><strong>se</strong>favais de favas e feijões de muitas castas, e as favas <strong>se</strong>cas são melhores <strong>que</strong> as de Portugal,por<strong>que</strong> não criam bicho, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a casca tão dura como as de lá, e as verdes não são piores.A sua rama é a mo<strong>do</strong> de vimes, e <strong>se</strong> t<strong>em</strong> por onde trepar faz grande ramada.Maracujás é outra planta <strong>que</strong> trepa pelos matos, e também a cultivam e põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> latadas nospátios e quintais, dão fruto de quatro ou cinco sortes, uns maiores, outros menores, uns amarelos,outros roxos, to<strong>do</strong>s mui cheirosos, e gostosos, e o <strong>que</strong> mais <strong>se</strong> pode notar é a flor por<strong>que</strong> além de <strong>se</strong>r


10formosa e de várias cores, é misteriosa, começa no mais alto <strong>em</strong> três folhinhas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> r<strong>em</strong>atam <strong>em</strong>um globo, <strong>que</strong> repre<strong>se</strong>nta as três divinas pessoas <strong>em</strong> uma Divindade ou / como outros <strong>que</strong>r<strong>em</strong> / ostrês cravos com <strong>que</strong> Cristo foi encrava<strong>do</strong>, e logo t<strong>em</strong> abaixo <strong>do</strong> globo (<strong>que</strong> é o fruto) outras cincofolhas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> r<strong>em</strong>atam <strong>em</strong> uma roxa coroa, repre<strong>se</strong>ntan<strong>do</strong> as cinco chagas e coroa de espinhos deCristo Nosso Redentor.Das árvores e plantas frutíferas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> cultivam <strong>em</strong> Portugal, <strong>se</strong> dão no Brasil as de espinhocom tanto viço, e fertilidade, <strong>que</strong> to<strong>do</strong> o ano há laranjas, limões cidras e limas <strong>do</strong>ces <strong>em</strong> muitaabundância. Há também romãs, marmelos, figos e uvas de parreira, <strong>que</strong> <strong>se</strong> vindimam duas vezes noano; e na mesma parreira / <strong>se</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong>/ t<strong>em</strong> juntamente uvas <strong>em</strong> flor, outras <strong>em</strong> agraço, outrasmaduras, <strong>se</strong> as podam a pedaços <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos diversos.Há muitas melancias e abóboras de Quaresma, e de con<strong>se</strong>rva muitos melões to<strong>do</strong> o verão tãobons, como os bons de Abrantes, e com esta vantag<strong>em</strong> <strong>que</strong> lá entre cento <strong>se</strong> não acham <strong>do</strong>is bons, ecá entre cento <strong>se</strong> não acham <strong>do</strong>is ruins.Finalmente <strong>se</strong> dá no Brasil toda a hortaliça de Portugal, hortelã, endros, coentro, <strong>se</strong>gurelha,alfaces, celgas, borragens, nabos e couves, e estas só uma vez <strong>se</strong> plantam de couvinha, mas depois<strong>do</strong>s olhos, <strong>que</strong> nasc<strong>em</strong> ao pé, <strong>se</strong> faz a planta muitos anos, e <strong>em</strong> poucos dias cresc<strong>em</strong> e <strong>se</strong> faz<strong>em</strong>grandes couves: além destas há outras couves da mesma terra, chamadas taiobas, das quais com<strong>em</strong>também as raízes cozidas, <strong>que</strong> são como batatas pe<strong>que</strong>nas.CAPÍTULO SÉTIMODas árvores e ervas medicinais, e outras qualidades ocultasAlém das árvores <strong>do</strong> salutífero bálsamo, e óleo de copaíba, de <strong>que</strong> já fiz menção no capítulo<strong>se</strong>xto, há outras, <strong>que</strong> destilam de si mui boa almécega, para as boticas: outras chamadas sassafrás,ou árvores de funcho, por<strong>que</strong> cheiram, a ele, cujas raízes e o próprio pau para enfermidades dehumores frios é tão medicinal como o pau da China. Há árvores de canafístula brava, assimchamada, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> dá nos matos, e outra <strong>que</strong> <strong>se</strong> planta, e é a mesma <strong>que</strong> das Índias.Há umas árvores chamadas anudaz, <strong>que</strong> dão castanhas excelentes para purgas, e outras <strong>que</strong>dão pinhões para o mesmo efeito, os quais têm este mistério <strong>que</strong> <strong>se</strong> tomam com uma tona, e películosutil, <strong>que</strong> t<strong>em</strong>, provocam o vômito, e <strong>se</strong> lha tiram, somente provocam a câmera. Mas t<strong>em</strong>-<strong>se</strong> pormais fácil, e melhor a purga da batata, ou mechoação, <strong>que</strong> também há muita pelos matos.Nas praias <strong>do</strong> mar, ou ao longo delas <strong>se</strong> dá uma erva, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não é a salsaparrilha, parece-<strong>se</strong>com ela, e tomada <strong>em</strong> sua<strong>do</strong>uros faz os mesmos efeitos.A erva fedegosa, chamada <strong>do</strong>s gentios e índios feiticeira, pelas muitas curas, <strong>que</strong> com ela <strong>se</strong>faz<strong>em</strong> e, particularmente <strong>do</strong> bicho, <strong>que</strong> é uma <strong>do</strong>ença mortífera.As ambaíbas, são umas figueiras bravas <strong>que</strong> dão uns figos de <strong>do</strong>is palmos, qua<strong>se</strong>, decompri<strong>do</strong>, mas pouco mais grossos <strong>que</strong> um de<strong>do</strong>, os quais <strong>se</strong> com<strong>em</strong> e são mui <strong>do</strong>ces, e os olhosdessas árvores pisa<strong>do</strong>s, e postos <strong>em</strong> feridas frescas, com o sangue as saram maravilhosamente. Afolha da figueira <strong>do</strong> inferno posta sobre nascidas, e leicenços mitiga a <strong>do</strong>r, e a sara. As de jurubebasaram as chagas, e as raízes são contra peçonha. A caroba sara das boubas. O cipó, das câmeras;enfim não há enfermidade contra a qual não haja ervas nesta terra, n<strong>em</strong> os índios naturais dela têmoutra botica ou usam de outras medicinas.Outras há de qualidades ocultas, entre as quais é admirável uma ervazinha, a <strong>que</strong> chamamerva viva, e lhe puderam chamar <strong>se</strong>nsitiva, <strong>se</strong> o não contradis<strong>se</strong>ra a filosofia, a qual ensina o<strong>se</strong>nsitivo <strong>se</strong>r diferença genérica <strong>que</strong> distingue o animal da planta, e assim define o animal, <strong>que</strong> écorpo vivente <strong>se</strong>nsitivo.


11Mas contra isto v<strong>em</strong>os, <strong>que</strong> <strong>se</strong> tocam esta erva com a mão, ou com qual<strong>que</strong>r outra coisa, <strong>se</strong>encolhe logo, e <strong>se</strong> murcha, como <strong>se</strong> <strong>se</strong>ntira o to<strong>que</strong>, e depois <strong>que</strong> a largam, como já es<strong>que</strong>cida <strong>do</strong>agravo, <strong>que</strong> lhe fizeram, <strong>se</strong> torna a estender e abrir as folhas; deve isto <strong>se</strong>r alguma qualidade oculta,qual a da pedra de cevar para atrair o ferro, e não lhe sab<strong>em</strong>os outra virtude.CAPÍTULO OITAVODo mantimento <strong>do</strong> BrasilÉ o Brasil mais abasta<strong>do</strong> de mantimentos <strong>que</strong> quantas terras há no mun<strong>do</strong>, por<strong>que</strong> nele <strong>se</strong>dão os mantimentos de todas as outras. Dá-<strong>se</strong> trigo <strong>em</strong> S. Vicente <strong>em</strong> muita quantidade, e dar-<strong>se</strong>-ánas mais partes cansan<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> as terras, por<strong>que</strong> o viço lhe faz mal.Dá-<strong>se</strong> também <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o Brasil muito arroz, <strong>que</strong> é o mantimento da Índia Oriental, e muitomilho zaburro, <strong>que</strong> é o das Antilhas e Índia Ocidental. Dão-<strong>se</strong> muitos inhames grandes, <strong>que</strong> é omantimento de S. Tomé e Cabo Verde, e outros mais pe<strong>que</strong>nos, e muitas batatas, as quais plantadasuma só vez s<strong>em</strong>pre fica a terra inçada destas.Mas o ordinário e principal mantimento <strong>do</strong> Brasil é o <strong>que</strong> <strong>se</strong> faz da mandioca, <strong>que</strong> são umasraízes maiores <strong>que</strong> nabos e de admirável propriedade, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> as com<strong>em</strong> cruas, ou assadas sãomortífera peçonha, mas raladas, esprimidas e desfeitas <strong>em</strong> farinha faz<strong>em</strong> delas uns bolos delga<strong>do</strong>s,<strong>que</strong> coz<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma bacia, ou alguidar, e <strong>se</strong> chamam beijus, <strong>que</strong> é muito bom mantimento, e de fácildigestão, ou coz<strong>em</strong> a mesma farinha mexen<strong>do</strong>-a na bacia como confeitos, e esta <strong>se</strong> a torram b<strong>em</strong>,dura mais <strong>que</strong> os beijus, e por isso é chamada farinha de guerra, por<strong>que</strong> os índios a levam quan<strong>do</strong>vão a guerra longe de suas casas, e os marinheiros faz<strong>em</strong> dela sua matalotag<strong>em</strong> daqui para o reino.Outra farinha <strong>se</strong> faz fresca, <strong>que</strong> não é tão cozida, e para esta / <strong>se</strong> a <strong>que</strong>r<strong>em</strong> regalada / deitam<strong>primeiro</strong> as raízes de molho, até <strong>que</strong> amoleçam, e <strong>se</strong> façam brandas, e então as espr<strong>em</strong><strong>em</strong> etc., e <strong>se</strong>estas raízes assim moles as põ<strong>em</strong> a <strong>se</strong>car ao sol chama-<strong>se</strong> carimã, e as guardam ao fumo <strong>em</strong> caniçosmuito t<strong>em</strong>po, as quais, pisadas <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> <strong>em</strong> pó tão alvo como o da farinha de trigo, e dele amassa<strong>do</strong>faz<strong>em</strong> pão, <strong>que</strong> <strong>se</strong> é de leite, ou mistura<strong>do</strong> com farinha de milho, e de arroz, é muito bom, ma<strong>se</strong>str<strong>em</strong>e é algum tanto corriento; e assim o para <strong>que</strong> mais o <strong>que</strong>r<strong>em</strong> é para papas, <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> para os<strong>do</strong>entes com açúcar, e as t<strong>em</strong> por melhores <strong>que</strong> tisanas, e para os sãos as faz<strong>em</strong> de cal<strong>do</strong> de peixe oude carne, ou só de água, e esta é a melhor triaga <strong>que</strong> há contra toda a peçonha, e por isso dis<strong>se</strong>destas raízes, <strong>que</strong> tinham propriedade admirável, por<strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> cruas mortífera peçonha, só com umpouco de água e sal <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> mantimento e salutífera triaga: e ainda t<strong>em</strong> outra a meu ver maisadmirável, <strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> estas raízes cruas mantimento com <strong>que</strong> sustentam e engordam ceva<strong>do</strong>s ecavalos, <strong>se</strong> as espr<strong>em</strong><strong>em</strong> e lhe beb<strong>em</strong> só o sumo morr<strong>em</strong> logo, e com <strong>se</strong>r este sumo tão finapeçonha, <strong>se</strong> o deixam as<strong>se</strong>ntar-<strong>se</strong> coalha <strong>em</strong> um polme, a <strong>que</strong> chamam tapioca, de <strong>que</strong> <strong>se</strong> faz maisgostosa farinha, e beijus, <strong>que</strong> da mandioca, e cru é bela goma para engomar mantos.Outra casta há de mandioca, a <strong>que</strong> chamam aipins, <strong>que</strong> <strong>se</strong> pod<strong>em</strong> comer crus, s<strong>em</strong> fazerdano, e assa<strong>do</strong>s sab<strong>em</strong> a castanhas de Portugal assadas, e assim de uma como da outra não énecessário perder-<strong>se</strong> a s<strong>em</strong>ente, quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> planta, como no trigo; mas só <strong>se</strong> planta a rama feita <strong>em</strong>pedaços de pouco mais de palmo, os quais meti<strong>do</strong>s até o meio na terra cavada dão muitas e grandesraízes, n<strong>em</strong> <strong>se</strong> recolh<strong>em</strong> <strong>em</strong> celeiros <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> comam de gorgulho como o trigo, mas colh<strong>em</strong>-as <strong>do</strong>campo pouco a pouco, quan<strong>do</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong>, e até as folhas pisadas, e cozidas <strong>se</strong> com<strong>em</strong>.CAPÍTULO NONO


12Dos animais e bichos <strong>do</strong> BrasilCriam-<strong>se</strong> no Brasil to<strong>do</strong>s os animais <strong>do</strong>mésticos, e <strong>do</strong>máveis de Espanha, cavalos, vacas,porcos, ovelhas e cabras, e par<strong>em</strong> a <strong>do</strong>is e três filhos de cada ventre, e a carne de porco <strong>se</strong> comeindiferent<strong>em</strong>ente de inverno e verão, e a dão a <strong>do</strong>entes como a de galinha. Há também muitosporcos monte<strong>se</strong>s; alguns como os javalis de Espanha, os quais andam <strong>em</strong> manadas, e <strong>se</strong> o caça<strong>do</strong>rfere algum há logo de subir-<strong>se</strong> a alguma árvore; por<strong>que</strong> ven<strong>do</strong> eles <strong>que</strong> não pod<strong>em</strong> chegar-lher<strong>em</strong>et<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s ao feri<strong>do</strong> e aos outros <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> pegou algum sangue, com tanta fereza, <strong>que</strong> <strong>se</strong> nãoapartam até não deixar<strong>em</strong> três ou quatro mortos no campo, e então <strong>se</strong> vão <strong>em</strong> paz, e o caça<strong>do</strong>rtambém com a caça.Outros há <strong>que</strong> têm o umbigo nas costas, e é necessário tirar-lho com uma faca, antes <strong>que</strong> oesquartej<strong>em</strong>, sob pena de ficar toda a carne feden<strong>do</strong> a raposinhos.Outros há a <strong>que</strong> chamam capivaras, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r dizer come<strong>do</strong>res de erva, andam s<strong>em</strong>pre naágua tira<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> sa<strong>em</strong> a pas<strong>se</strong>ar pelos vales, e margens <strong>do</strong>s rios, e alguns tomam, e criam <strong>em</strong>casa fora da água, pelo <strong>que</strong> <strong>se</strong> julgam por carne, e não por pesca<strong>do</strong>. Há outros animais a <strong>que</strong>chamam antas, <strong>que</strong> são de feição de mulas, mas não tão grandes, e têm o focinho mais delga<strong>do</strong>, e obeiço superior compri<strong>do</strong> a maneira de tromba, e as orelhas re<strong>do</strong>ndas, a cor cinzenta pelo corpo, ebranca pela barriga, estas sa<strong>em</strong> a pas<strong>se</strong>ar só de noite, e tanto <strong>que</strong> amanhece met<strong>em</strong>-<strong>se</strong> <strong>em</strong> mato<strong>se</strong>spessos, e ali estão o dia to<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong>s; a carne destes animais, é no sabor, e fêvera como devaca, e <strong>do</strong> couro curti<strong>do</strong> <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> mui boas couras para vestir, e defender de <strong>se</strong>tas e estocadas:algumas t<strong>em</strong> no bucho umas pedras, <strong>que</strong> na virtude são como as de bazar, mas mais lisas, e maciças.Há outras mais caças de vea<strong>do</strong>s, coelhos, cutias; e pacas <strong>que</strong> são como lebres, mas maisgordas e saborosas, e não <strong>se</strong> esfolam para <strong>se</strong> comer<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> têm couros como de leitão.Há tatus, a <strong>que</strong> os espanhóis chamam armadilhos, por<strong>que</strong> são cobertas de uma concha nãointeiriça como a das tartarugas, mas de peças a mo<strong>do</strong> de lâminas, e sua carne assada é como degalinha.Tamanduá é um animal tão grande como carneiro, o qual é de cor parda com algumas pintasbrancas, t<strong>em</strong> o focinho compri<strong>do</strong> e delga<strong>do</strong> para baixo, a boca não rasgada como os outros animais,mas pe<strong>que</strong>na e re<strong>do</strong>nda, a língua da grossura de um de<strong>do</strong>, e qua<strong>se</strong> de três palmos de compri<strong>do</strong>; asunhas, a maneira de escopros, o rabo mui povoa<strong>do</strong> de cerdas, qua<strong>se</strong> tão compridas como de cavalo,e todas estas coisas lhe são necessárias para con<strong>se</strong>rvar sua vida; por<strong>que</strong> como não come outra coisa<strong>se</strong>não formigas, vai-<strong>se</strong> com as unhas cavar os formigueiros, até <strong>que</strong> saiam da cova, e logo lança alíngua fora da boca, para <strong>que</strong> <strong>se</strong> pegu<strong>em</strong> a ela, e como a t<strong>em</strong> b<strong>em</strong> cheia a recolhe para dentro, o <strong>que</strong>faz tantas vezes até <strong>que</strong> <strong>se</strong> farta, e quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>r esconder aos caça<strong>do</strong>res, lança o rabo sobre si, e <strong>se</strong>cobre to<strong>do</strong> com suas <strong>se</strong>das, de mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> não <strong>se</strong> lhe vê<strong>em</strong> os pés n<strong>em</strong> cabeça, n<strong>em</strong> parte alguma <strong>do</strong>corpo, e o mesmo faz quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>rme, gozan<strong>do</strong> debaixo da<strong>que</strong>le pavilhão um sono tão quieto, <strong>que</strong>ainda <strong>que</strong> dispar<strong>em</strong> junta uma bombarda, ou caia uma árvore com grande estrépito não desperta,<strong>se</strong>não é somente com um assobio, <strong>que</strong> por pe<strong>que</strong>no, <strong>que</strong> <strong>se</strong>ja o ouve logo, e <strong>se</strong> levanta.A carne des<strong>se</strong> animal com<strong>em</strong> os índios velhos, e não os mancebos, por suas superstições, eagouros. Há também muita diversidade de animais nocivos, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não com<strong>em</strong>, como são onças, outigres, <strong>que</strong> matam touros, e <strong>se</strong> estão famintos comerão um exército, mas <strong>se</strong> estão fartos, não só nãoofend<strong>em</strong> a alguém, mas n<strong>em</strong> ainda <strong>se</strong> defend<strong>em</strong> e <strong>se</strong> deixam matar facilmente.Há raposas, e bugios, e destes há uns <strong>que</strong> são grandes, chama<strong>do</strong>s guaribas, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> barbascomo homens, e <strong>se</strong> barbeiam uns aos outros, cortan<strong>do</strong> o cabelo com os dentes; andam s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong>ban<strong>do</strong>s pelas árvores, e <strong>se</strong> o caça<strong>do</strong>r atira <strong>em</strong> algum, e não o acerta matam-<strong>se</strong> to<strong>do</strong>s de riso, mas <strong>se</strong>o acerta, e não cai, arranca a flecha <strong>do</strong> corpo, e torna a fazer tiro com ela a qu<strong>em</strong> o feriu, e logo fogepela árvore acima e, mastigan<strong>do</strong> folhas, meten<strong>do</strong>-as na feridas <strong>se</strong> cura, e estanca o sangue com elas.


13Outros bugios há não tão grandes, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong> mais habilidades <strong>que</strong> fazer momos e caretas,mas são de cheiro; e outros pe<strong>que</strong>nos chama<strong>do</strong>s sagüis, uns par<strong>do</strong>s, outros ruivos.Há outro animal chama<strong>do</strong> jaritacaca, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> as mãos e pés como bugio, o qual é malha<strong>do</strong>de várias cores e detestável à vista, mais <strong>que</strong> ao olfato, como experimentam os <strong>que</strong> o <strong>que</strong>r<strong>em</strong> caçar,por<strong>que</strong> só com uma ventosidade <strong>que</strong> larga, é tanto o fe<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> lhe foge o caça<strong>do</strong>r, e <strong>do</strong> caça<strong>do</strong>rfog<strong>em</strong> os vizinhos, muitos dias não poden<strong>do</strong> sofrer o mau cheiro, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhe comunicou, e vaicomunican<strong>do</strong> por onde <strong>que</strong>r <strong>que</strong> vá, e os cães <strong>se</strong> vão muitas vezes lavar na água, e esfregar com aterra s<strong>em</strong> poder tirar o fe<strong>do</strong>r.Outro animal há a <strong>que</strong> chamam preguiça, por <strong>se</strong>r tão preguiçoso, e tar<strong>do</strong> <strong>em</strong> mover os pés <strong>em</strong>ãos, <strong>que</strong> para subir a uma árvore, ou andar um espaço de vinte palmos há mister meia hora, eposto <strong>que</strong> o aguilho<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> por isso foge mais depressa.Há outro a <strong>que</strong> chamam taibu, <strong>que</strong>, depois <strong>que</strong> pare os filhos, os recolhe to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> um bolso,<strong>que</strong> t<strong>em</strong> no peito, onde os traz até os acabar de criar.Há também muitas cobras, e algumas tão grandes, <strong>que</strong> engol<strong>em</strong> um vea<strong>do</strong> inteiro, e diz<strong>em</strong>os índios naturais da terra, <strong>que</strong> depois de fartas rebentam, e corrupta a carne <strong>se</strong> gera outra <strong>do</strong>espinhaço; por<strong>que</strong> já aconteceu achar-<strong>se</strong> alguma presa com um vime, <strong>que</strong> tinha <strong>em</strong> si incorpora<strong>do</strong>, o<strong>que</strong> não podia <strong>se</strong>r, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> ficou junto ao vime quan<strong>do</strong> rebentou, e <strong>se</strong> lhe corrompeu a carne, edepois crian<strong>do</strong> outra de novo a colheu de dentro, e incorporou <strong>em</strong> si; porém não <strong>se</strong> há de dizer qu<strong>em</strong>orr<strong>em</strong> / como os índios cuidam /, <strong>se</strong>não, <strong>que</strong> com a carne corrupta ficam ainda vivas, e assim nãoressuscitam mas saram, e algumas <strong>se</strong> viram já de 60 palmos de compri<strong>do</strong>, <strong>em</strong> Pernambuco, <strong>se</strong>enrolou uma destas <strong>em</strong> um hom<strong>em</strong>, <strong>que</strong> ia caminhan<strong>do</strong>, de tal sorte <strong>que</strong> <strong>se</strong> não levara bom cãoconsigo, <strong>que</strong> morden<strong>do</strong>-a muitas vezes a fez largar, s<strong>em</strong> falta o matava: e ainda assim o deixou tal,<strong>que</strong> nunca mais tornou as suas cores, e forças passadas.Também me contou uma mulher de crédito, na mesma capitania de Pernambuco, <strong>que</strong>estan<strong>do</strong> parida lhe viera algumas noites uma cobra mamar nos peitos, o <strong>que</strong> fazia com tantabrandura, <strong>que</strong> ela cuidava <strong>se</strong>r a criança, e depois <strong>que</strong> conheceu o engano o dis<strong>se</strong> ao mari<strong>do</strong>, o qual aespreitou na noite <strong>se</strong>guinte e a matou. Há outras a <strong>que</strong> chamam cascavéis; por<strong>que</strong> os têm no rabo,com <strong>que</strong> vão fazen<strong>do</strong> rugi<strong>do</strong>, por onde <strong>que</strong>r <strong>que</strong> vão, e cada ano lhe nasce um de novo, algumas vi<strong>que</strong> tinham oito, e são tão venenosas, <strong>que</strong> os mordi<strong>do</strong>s delas de maravilha escapam. Outra há <strong>que</strong>chamam de duas cabeças, por<strong>que</strong> tanto mord<strong>em</strong> com o rabo como com a cabeça.Há no Brasil infinitas formigas, <strong>que</strong> cortam as folhas das árvores, e <strong>em</strong> uma noite tosam todauma laranjeira, <strong>se</strong> <strong>se</strong>u <strong>do</strong>no <strong>se</strong> descuida de lhe botar água <strong>em</strong> uns testos, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> aos pés.Outra casta há chamada copy, <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> uns caminhos cobertos por onde andam, e ro<strong>em</strong> asmadeiras das casas, e os <strong>livro</strong>s, e roupa <strong>que</strong> acham, <strong>se</strong> não há muita vigilância. Piolhos e percevejosnão há no Brasil, n<strong>em</strong> tantas pulgas como <strong>em</strong> Portugal; mas há uns bichinhos de feição de pulgas,tão pe<strong>que</strong>nos como piolhos de galinhas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> met<strong>em</strong> nos de<strong>do</strong>s e solas <strong>do</strong>s pés de qu<strong>em</strong> andadescalço, e <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> tão grandes, e re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>s como camarinhas, qu<strong>em</strong> sabe tirá-los inteiros s<strong>em</strong>lesão o faz com a ponta de um alfinete, mas qu<strong>em</strong> não sabe rebenta-os, e fican<strong>do</strong> a pele dentro criamatéria.CAPÍTULO DÉCIMODas avesAlém das aves <strong>que</strong> <strong>se</strong> criam <strong>em</strong> casa, galinhas, patos, pombos, e perus, há no Brasil muitasgalinhas bravas pelos matos, patos nas lagoas, pombas bravas, e umas aves chamadas jacus, <strong>que</strong> nafeição e grandeza são qua<strong>se</strong> como perus.


14Há perdizes e rolas, mas as perdizes têm alguma diferença das de Portugal. Há águias de<strong>se</strong>rtão, <strong>que</strong> criam nos montes altos, e <strong>em</strong>as tão grandes como as da África, umas brancas, e outrasmalhadas de negro, <strong>que</strong> s<strong>em</strong> voar<strong>em</strong> <strong>do</strong> chão com uma asa levantada ao alto, ao mo<strong>do</strong> de velalatina, corr<strong>em</strong> com o vento como caravelas, e contu<strong>do</strong> as tomam os índios a cosso nas campinas.Há muitas garças ao longo <strong>do</strong> mar, e outras aves chamadas guarás, <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> <strong>em</strong>penamsão brancas, e depois pardas e, finalmente, vermelhas como grã. Há papagaios verdes de cinco ou<strong>se</strong>is espécies, uns maiores, outros menores, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s falam o <strong>que</strong> lhes ensinam. Há também araras,e canindés de bico revolto como papagaios, mas são maiores, e de mais formosas penas. Há unspassarinhos, <strong>que</strong> para <strong>que</strong> as cobras lhes não entr<strong>em</strong> nos ninhos a comer-lhes os ovos, e filhinhos, osfaz<strong>em</strong> pendura<strong>do</strong>s nos ramos das árvores de quatro ou cinco palmos de compri<strong>do</strong>, com o caminhomui intrinca<strong>do</strong>, e compostos de tantos pauzinhos <strong>se</strong>cos, <strong>que</strong> <strong>se</strong> pode com eles cozer uma panela decarne. Há outros chama<strong>do</strong>s tapéis, <strong>do</strong> tamanho de melros, to<strong>do</strong>s negros, e as asas amarelas, <strong>que</strong>r<strong>em</strong>edam no canto to<strong>do</strong>s os outros pássaros perfeitissimamente, os quais faz<strong>em</strong> <strong>se</strong>us ninhos <strong>em</strong> unssacos teci<strong>do</strong>s.Há muitas mui grandes baleias, <strong>que</strong> no meio <strong>do</strong> inverno v<strong>em</strong> a parir nas baías, e rios fun<strong>do</strong>sdesta costa, e às vezes lançam a ela muito âmbar, <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar arrancam, quan<strong>do</strong>com<strong>em</strong>, e conheci<strong>do</strong> na praia, por<strong>que</strong> aves, caranguejos, e quantas coisas vivas há acod<strong>em</strong> a comêlo.Há outro peixe chama<strong>do</strong> espadarte, por uma espada <strong>que</strong> t<strong>em</strong> no focinho de <strong>se</strong>is ou <strong>se</strong>tepalmos de compri<strong>do</strong>, e um de largura, com muitas pontas, com <strong>que</strong> peleja com as baleias, elevantam a água tão alta quan<strong>do</strong> brigam, <strong>que</strong> <strong>se</strong> vê daí a três ou quatro léguas.Há também homens marinhos, <strong>que</strong> já foram vistos sair fora d’água após os índios, e nela hãomorto alguns, <strong>que</strong> andavam pescan<strong>do</strong>, mas não lhes com<strong>em</strong> mais <strong>que</strong> os olhos e nariz, por onde <strong>se</strong>conhece, <strong>que</strong> não foram tubarões, por<strong>que</strong> também há muitos neste mar, <strong>que</strong> com<strong>em</strong> pernas e braços,e toda a carne.Na capitania de S. Vicente, na era de 1564, saiu uma noite um monstro marinho à praia, oqual visto de um mancebo chama<strong>do</strong> Baltazar Ferreira, filho <strong>do</strong> capitão, <strong>se</strong> foi a ele com uma espada,e levantan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> o peixe direito como um hom<strong>em</strong> sobre as barbatanas <strong>do</strong> rabo lhe deu o mancebouma estocada pela barriga, com <strong>que</strong> o derrubou, e tornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a levantar com a boca aberta para otragar-lhe deu um altabaixo na cabeça, com <strong>que</strong> o ator<strong>do</strong>ou, e logo acudiram alguns escravos <strong>se</strong>us,<strong>que</strong> o acabaram de matar, fican<strong>do</strong> também o mancebo desmaia<strong>do</strong>, e qua<strong>se</strong> morto, depois de haverti<strong>do</strong> tanto ânimo. Era este monstruoso peixe de 15 palmos de compri<strong>do</strong>, não tinha escama <strong>se</strong>nãopêlo, como <strong>se</strong> verá na figura <strong>se</strong>guinte.Há uns peixes pe<strong>que</strong>nos <strong>em</strong> toda esta costa, menores de palmo, chama<strong>do</strong>s majacus, <strong>que</strong><strong>se</strong>ntin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> presos <strong>do</strong> anzol o cortam com os dentes, e fog<strong>em</strong>, mas <strong>se</strong> lhe atam a isca <strong>em</strong> qual<strong>que</strong>rlinha, e pegam nela, os vão trazen<strong>do</strong> brandamente a superfície da água, onde com uma rede-fole ostomam s<strong>em</strong> alguma resistência, e tanto <strong>que</strong> os tiram fora da água incham tanto, <strong>que</strong> de compri<strong>do</strong>s<strong>que</strong> eram ficam re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>s como uma bexiga cheia de vento, e assim <strong>se</strong> lhe dão um coice rebentam esoam como um mos<strong>que</strong>te, t<strong>em</strong> a pele muito pintada, mas mui venenosa, e da mesma maneira o fel;porém <strong>se</strong> o esfolam b<strong>em</strong> <strong>se</strong> com<strong>em</strong> assa<strong>do</strong>s, ou cozi<strong>do</strong>s, como qual<strong>que</strong>r outro peixe. Outros há <strong>do</strong>mesmo nome mas maiores, e to<strong>do</strong>s cobertos de espinhos mui agu<strong>do</strong>s, como ouriços cacheiros, eestes não vêm <strong>se</strong>não de arribação de t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos, e um ano houve tantos nesta baía, <strong>que</strong> ascasas, e engenhos <strong>se</strong> alumiaram muito t<strong>em</strong>po com o azeite de <strong>se</strong>us fíga<strong>do</strong>s.Mariscos há <strong>em</strong> muita quantidade, ostras, umas <strong>que</strong> <strong>se</strong> criam nos mangues, outras naspedras, e outras nos lo<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> são maiores. Nas restingas de areia há outras re<strong>do</strong>ndas e espalmadas,<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> acha aljôfar miú<strong>do</strong>, e diz<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> as tirass<strong>em</strong> <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> de mergulho achariam pérolas


15grossas. Há briguigões, amêijoas, mexilhões, búzios como caracóis, e outros tão grandes, <strong>que</strong>comida a polpa ou miolo faz<strong>em</strong> das cascas buzinas, <strong>em</strong> <strong>que</strong> tang<strong>em</strong>, e soão mui longe.Há muitas castas de caranguejos, não só na água <strong>do</strong> mar e nas praias entre os mangues: mastambém <strong>em</strong> terra entre os matos há uns de cor azul chama<strong>do</strong>s guaiamus, os quais nas primeiraságuas <strong>do</strong> inverno, <strong>que</strong> são <strong>em</strong> fevereiro, quan<strong>do</strong> estão mais gor<strong>do</strong>s, e as fêmeas cheias de ovas, <strong>se</strong>sa<strong>em</strong> das covas, e <strong>se</strong> andam vagan<strong>do</strong> pelo campo, e estradas, e meten<strong>do</strong>-<strong>se</strong> pelas casas para <strong>que</strong> oscomam.Camarões há muitos, não só no mar como os de Portugal, mas nos rios e lagoas de água<strong>do</strong>ce, e alguns tão grandes como lagostins, <strong>do</strong>s quais também há muitos, <strong>que</strong> <strong>se</strong> tomam nos recifesde águas-vivas, e muitos polvos e lagostas.CAPÍTULO UNDÉCIMODe outras coisas <strong>que</strong> há no mar e terra <strong>do</strong> BrasilInop<strong>em</strong> me copia fecit, dis<strong>se</strong> o poeta, e dis<strong>se</strong> verdade, por<strong>que</strong> onde as coisas são muitas éforça<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> percam, como acontece ao <strong>que</strong> vindima a vinha fértil e abundante de fruto, <strong>que</strong>s<strong>em</strong>pre lhe ficam muitos cachos de rebusco, e assim me há sucedi<strong>do</strong> com as coisas <strong>do</strong> mar e terra <strong>do</strong>Brasil, de <strong>que</strong> trato. Pelo <strong>que</strong> me é necessário rebuscar ainda algumas, <strong>que</strong> farei neste capítulo, <strong>que</strong>quanto todas é impossível relatá-las.Faz-<strong>se</strong> no Brasil sal não só <strong>em</strong> salinas artificiais, mas <strong>em</strong> outras naturais, como <strong>em</strong> CaboFrio, e além <strong>do</strong> Rio Grande, onde <strong>se</strong> acha coalha<strong>do</strong> <strong>em</strong> grandes pedras muito, e muito alvo. Faz-<strong>se</strong>também muita cal, assim de pedra <strong>do</strong> mar, como da terra, e de cascas de ostras, <strong>que</strong> o gentioantigamente comia, e <strong>se</strong> acham hoje montes delas cobertos de arvore<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> tira e <strong>se</strong> cozeengradada entre madeira com muita facilidade.Há tucum, <strong>que</strong> são umas folhas qua<strong>se</strong> de <strong>do</strong>is palmos de compri<strong>do</strong>, <strong>do</strong>nde só com a mão s<strong>em</strong>outro artifício <strong>se</strong> tira pita rijíssima, e cada folha dá uma estriga. Outra planta há chamada caraguatá,da feição da erva babosa, mas cada folha t<strong>em</strong> uma braça de compri<strong>do</strong>, as quais deitadas de molho episadas, <strong>se</strong> desfaz<strong>em</strong> <strong>em</strong> linho de <strong>que</strong> <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> linhas, e cordas, e <strong>se</strong> pode fazer pano.Há árvores de sabão, por<strong>que</strong> com a casca das frutas <strong>se</strong> ensaboa a roupa, e as frutas são umascontas tão re<strong>do</strong>ndas e negras, <strong>que</strong> parec<strong>em</strong> de pau evano tornea<strong>do</strong>, e assim não há mais <strong>que</strong> furá-las,enfiá-las, e rezar por elas.Há muita erva de anil, e de vidro, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não lavra. Há muitas fontes, e rios caudalosos, com<strong>que</strong> mo<strong>em</strong> os engenhos de açúcar, e outros por onde entra a maré, mui largos e fun<strong>do</strong>s, e de boasbarras e portos para os navios.Quis um pintar uma cidade mui bastecida e abastada, e pintou-a com as portas <strong>se</strong>rradas, eferrolhadas, significan<strong>do</strong> <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> tinha <strong>em</strong> si, e não era necessário vir-lhe alguma de fora, <strong>que</strong> é aexcelência; por<strong>que</strong> diz o Psalmista <strong>que</strong> louve a celestial cidade de Jerusalém ao <strong>se</strong>nhor / LaudaHierusalém <strong>do</strong>minum, lauda Deum tuum, Sion, quoniam confortavit <strong>se</strong>ras portarum tuarum/. Masnão faltou logo qu<strong>em</strong> contrafizes<strong>se</strong> e pintas<strong>se</strong> outra com as portas abertas, e por elas entran<strong>do</strong>carretas carregadas de mantimentos, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> a<strong>que</strong>la era mais bastecida e abastada, n<strong>em</strong> lhefaltou outra autoridade com <strong>que</strong> a confirmar <strong>do</strong> mesmo Psalmista, o qual diz <strong>que</strong> ama Deus muito asPortas de Sion / diligit <strong>do</strong>minus portas Sion super omnia tabernacula Jacob/ e isto não por<strong>que</strong> astêm fechadas, <strong>se</strong>não abertas a naturais, e estrangeiros, a brancos e negros, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s têm <strong>se</strong>u trato ecomércio / Ecce alieniginae et Tiros et populus Ethiopum hi fuerunt illic /. Conforme a isto digna éde to<strong>do</strong>s os louvores à terra <strong>do</strong> Brasil, pois primeiramente pode sustentar-<strong>se</strong> com <strong>se</strong>us portosfecha<strong>do</strong>s s<strong>em</strong> socorro de outras terras: Senão pergunto eu; de Portugal v<strong>em</strong> farinha de trigo? a da


16terra basta. Vinho? de açúcar <strong>se</strong> faz mui suave, e para qu<strong>em</strong> o <strong>que</strong>r rijo, com o deixar ferver <strong>do</strong>isdias <strong>em</strong>bebeda como de uvas.Azeite? faz-<strong>se</strong> de cocos de palmeiras. Pano? faz-<strong>se</strong> de algodão com menos trabalho <strong>do</strong> <strong>que</strong> lá<strong>se</strong> faz o de linho, e de lã; por<strong>que</strong> debaixo <strong>do</strong> algo<strong>do</strong>eiro o pode a fiandeira estar colhen<strong>do</strong>, e fian<strong>do</strong>,n<strong>em</strong> faltam tintas com <strong>que</strong> <strong>se</strong> tinja.Sal? cá <strong>se</strong> faz artificial e natural como agora diss<strong>em</strong>os. Ferro? muitas minas há dele, e <strong>em</strong> S.Vicente esta um engenho onde <strong>se</strong> lavra finíssimo. Especiaria? há muitas espécies de pimenta egengibre. Amên<strong>do</strong>as? também <strong>se</strong> escusam com a castanha de caju, et sic de caeteris.Se me dis<strong>se</strong>r<strong>em</strong> <strong>que</strong> não pode sustentar-<strong>se</strong> a terra, <strong>que</strong> não t<strong>em</strong> pão de trigo, e vinho de uvaspara as missas, conce<strong>do</strong>, pois este divino Sacramento é nosso verdadeiro sustento, mas para istobasta o <strong>que</strong> <strong>se</strong> dá no mesmo Brasil <strong>em</strong> S. Vicente e Campo de S. Paulo, como tenho dito no capítulonono, e com isto está, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> os portos abertos e grandes barras, e baías, por onde cada dia lheentram navios carrega<strong>do</strong>s de trigo, vinho e outras ricas merca<strong>do</strong>rias, <strong>que</strong> deixam a troco das daterra.CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDODa orig<strong>em</strong> <strong>do</strong> gentio <strong>do</strong> Brasil, e diversidade de línguas <strong>que</strong> entre eles há.D. Diogo de Avalos vizinho de Chuquiabue no Peru na sua Miscelânea Austral, diz <strong>que</strong> nas<strong>se</strong>rras de Altamira, <strong>em</strong> Espanha, havia uma gente bárbara, <strong>que</strong> tinha ordinária guerra com o<strong>se</strong>spanhóis, e <strong>que</strong> comiam carne humana, <strong>do</strong> <strong>que</strong> enfada<strong>do</strong>s os espanhóis juntaram suas forças, e lhesderam batalha na Andaluzia, <strong>em</strong> <strong>que</strong> os desbarataram, e mataram muitos. Os poucos <strong>que</strong> ficaramnão <strong>se</strong> poden<strong>do</strong> sustentar <strong>em</strong> terra a des<strong>em</strong>pararam, e <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram para onde a fortuna os guias<strong>se</strong>,e assim deram consigo nas ilhas Fortunadas, <strong>que</strong> agora <strong>se</strong> chamam Canárias: tocaram as de CaboVerde e aportaram no Brasil: saíram <strong>do</strong>is irmãos por cabos desta gente, um chama<strong>do</strong> Tupi e outroGuarani, este último deixan<strong>do</strong> o Tupi povoan<strong>do</strong> o Brasil passou ao Paraguai com sua gente, epovoou o Peru: esta opinião não é certa, e menos o são outras, <strong>que</strong> não refiro, por<strong>que</strong> não t<strong>em</strong>fundamento: o certo é <strong>que</strong> esta gente veio de outra parte, porém <strong>do</strong>nde não <strong>se</strong> sabe, por<strong>que</strong> n<strong>em</strong>entre eles há escrituras, n<strong>em</strong> houve algum autor antigo, <strong>que</strong> deles escreves<strong>se</strong>. O <strong>que</strong> de pre<strong>se</strong>ntev<strong>em</strong>os é <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s são de cor castanha, e s<strong>em</strong> barba, e só <strong>se</strong> distingu<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>r<strong>em</strong> uns maisbárbaros, <strong>que</strong> outros / posto <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s o são assaz /. Os mais bárbaros <strong>se</strong> chamam in genereTapuias, <strong>do</strong>s quais há muitas castas de diversos nomes, diversas línguas, e inimigos uns <strong>do</strong>s outros.Os menos bárbaros, <strong>que</strong> por isso <strong>se</strong> chamam Apuabetó, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r dizer homens verdadeiros,posto <strong>que</strong> também são de diversas nações e nomes; por<strong>que</strong> os de S. Vicente até o rio da Prata sãoCarijós, os de Rio de Janeiro, Tamoios, os da Bahia, Tupinambás, os <strong>do</strong> rio de S. Francisco,Amaupiras, e os de Pernambuco, até o rio das Amazonas Potiguaras, contu<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s falam umamesma linguag<strong>em</strong> e este aprend<strong>em</strong> os religiosos <strong>que</strong> os <strong>do</strong>utrinam por uma arte de gramática <strong>que</strong>compôs o padre José de Anchieta, varão santo da ord<strong>em</strong> da Companhia de Jesus, é linguag<strong>em</strong> muicompendiosa, e de alguns vocábulos mais abundantes <strong>que</strong> o nosso Português; por<strong>que</strong> nós a to<strong>do</strong>s osirmãos chamamos irmãos e a to<strong>do</strong>s os tios, tios, mas eles ao irmão mais velho chamam de umamaneira, aos mais de outra. O tio irmão <strong>do</strong> pai t<strong>em</strong> um nome, e o tio irmão da mãe outro, e algunsvocábulos têm de <strong>que</strong> não usam <strong>se</strong>não as fêmeas, e outros <strong>que</strong> não <strong>se</strong>rv<strong>em</strong> <strong>se</strong>não aos machos, e s<strong>em</strong>falta são mui eloqüentes, e <strong>se</strong> prezam alguns tanto disto, <strong>que</strong> da prima noite até pela manhã andampelas ruas e praças pregan<strong>do</strong>, excitan<strong>do</strong> os mais a paz, ou a guerra, ou trabalho, ou qual<strong>que</strong>r outracoisa <strong>que</strong> a ocasião lhes oferece, e entretanto <strong>que</strong> um fala to<strong>do</strong>s os mais calam, e ouv<strong>em</strong> comatenção, mas nenhuma palavra pronunciam com f, l ou r, não só das suas, mas n<strong>em</strong> ainda das


17nossas, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong> dizer Francisco, diz<strong>em</strong> Pancicu; e <strong>se</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong> dizer Luiz, diz<strong>em</strong> Duhi; e opior é <strong>que</strong> também carec<strong>em</strong> de fé, de lei e de rei, <strong>que</strong> <strong>se</strong> pronunciam com as ditas letras.Nenhuma fé t<strong>em</strong> n<strong>em</strong> a<strong>do</strong>ram a algum Deus; nenhuma lei guardam, ou preceitos, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong>rei <strong>que</strong> lha dê, e a qu<strong>em</strong> obedeçam, <strong>se</strong>não é um capitão, mais para a guerra, <strong>que</strong> para a paz, o qualentre eles é o mais valente e aparenta<strong>do</strong>; e morto este, <strong>se</strong> t<strong>em</strong> filho, e é capaz de governar, fica <strong>em</strong><strong>se</strong>u lugar, <strong>se</strong>não algum parente mais chega<strong>do</strong> ou irmão.Fora este, <strong>que</strong> é capitão de toda a aldeia, t<strong>em</strong> cada casa <strong>se</strong>u principal, <strong>que</strong> são também <strong>do</strong>smais valentes, e aparenta<strong>do</strong>s, e <strong>que</strong> t<strong>em</strong> mais mulheres; porém n<strong>em</strong> a estes, n<strong>em</strong> ao maioral pagamos outros algum tributo, ou vassalag<strong>em</strong>, mais <strong>que</strong> chamá-los quan<strong>do</strong> t<strong>em</strong> vinhos, para os ajudar<strong>em</strong> abeber, ao <strong>que</strong> são muito da<strong>do</strong>s, e os faz<strong>em</strong> de mel, ou de frutas, de milho, batatas, e outros legumesmastiga<strong>do</strong>s por <strong>do</strong>nzelas, e deli<strong>do</strong>s <strong>em</strong> água até <strong>se</strong> azedar, e não beb<strong>em</strong> quan<strong>do</strong> com<strong>em</strong>, <strong>se</strong>nãoquan<strong>do</strong> praticam, ou bailan<strong>do</strong>, ou cantan<strong>do</strong>.CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRODe suas aldeiasHá uma casta de gentios Tapuias chama<strong>do</strong>s por particular nome Aimorés, os quais nãofaz<strong>em</strong> casas onde mor<strong>em</strong>, mas onde <strong>que</strong>r <strong>que</strong> lhes anoitece, debaixo das árvores limpam umterreiro, no qual esfregan<strong>do</strong> uma cana ou flecha com outra acend<strong>em</strong> lume, e o cobr<strong>em</strong> com bomcouro de vea<strong>do</strong>, posto sobre quatro forquilhas, e ali <strong>se</strong> deitam to<strong>do</strong>s a <strong>do</strong>rmir com os pés para ofogo, dan<strong>do</strong>-lhes pouco, como os tenham enxutos e <strong>que</strong>ntes, <strong>que</strong> lhes chova <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o corpo.Porém as mais castas de índios viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> aldeias, <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> cobertas de palma, e de talmaneira arrumadas, <strong>que</strong> lhes fi<strong>que</strong> no meio um terreiro, onde façam <strong>se</strong>us bailes e festas, e <strong>se</strong>ajunt<strong>em</strong> de noite a con<strong>se</strong>lho. As casas são tão compridas <strong>que</strong> moram <strong>em</strong> cada uma 70, ou 80 casais,e não há nelas algum repartimento mais, <strong>que</strong> os tirantes, e entre um e outro é um rancho, onde <strong>se</strong>agasalha um casal com sua família, e o <strong>do</strong> principal da casa é o <strong>primeiro</strong> no copiar, ao qual convida<strong>primeiro</strong> qual<strong>que</strong>r <strong>do</strong>s outros, quan<strong>do</strong> v<strong>em</strong> de caçar, ou de pescar, partin<strong>do</strong> com ele daquilo <strong>que</strong>traz, e logo vai também repartin<strong>do</strong> pelos mais, s<strong>em</strong> lhe ficar mais <strong>que</strong> quanto então jante, ou ceie,por mais grande <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> a cambada <strong>do</strong> pesca<strong>do</strong>, ou da caça.E quan<strong>do</strong> algum v<strong>em</strong> de longe, as velhas da<strong>que</strong>la casa o vão visitar, ao <strong>se</strong>u rancho comgrande pranto, não todas juntamente, mas uma depois de outra, no qual pranto lhe diz<strong>em</strong> assaudades <strong>que</strong> tiveram, e trabalhos <strong>que</strong> padeceram <strong>em</strong> sua ausência, e ele também chora dan<strong>do</strong> unsurros de quan<strong>do</strong> <strong>em</strong> quan<strong>do</strong> s<strong>em</strong> exprimir coisa alguma, e o pranto acaba<strong>do</strong> lhe perguntam <strong>se</strong> veio,e ele responde <strong>que</strong> sim, e então lhe traz<strong>em</strong> de comer, o <strong>que</strong> também faz<strong>em</strong> aos portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> vãoàs suas aldeias, principalmente <strong>se</strong> lhes entend<strong>em</strong> a língua, maldizen<strong>do</strong> no choro a pouca ventura <strong>que</strong><strong>se</strong>us avós e os mais antepassa<strong>do</strong>s tiveram, <strong>que</strong> não alcançaram gente tão valorosa como são osportugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> são <strong>se</strong>nhores de todas as coisas boas, <strong>que</strong> traz<strong>em</strong> a terra de <strong>que</strong> eles dantescareciam, e agora as t<strong>em</strong> <strong>em</strong> tanta abundância, como são macha<strong>do</strong>s, foices, anzóis, facas, tesouras,espelhos, pentes e roupas, por<strong>que</strong> antigamente roçavam os matos com cunhas de pedra, e gastavammuitos dias <strong>em</strong> cortar uma árvore, pescavam com uns espinhos, faziam o cabelo e as unhas compedras agudas, e quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>riam enfeitar faziam de um alguidar de água espelho, e <strong>que</strong> destamaneira viviam mui trabalha<strong>do</strong>s, porém agora faz<strong>em</strong> suas lavouras, e todas as mais coisas commuito descanso, pelo <strong>que</strong> os dev<strong>em</strong> de ter <strong>em</strong> muita estima; e este recebimento é tão usa<strong>do</strong> entreeles, <strong>que</strong> nunca ou de maravilha deixam de fazer, <strong>se</strong>não quan<strong>do</strong> reinam alguma malícia ou traiçãocontra a<strong>que</strong>les, <strong>que</strong> vão às suas aldeias a visitá-los, ou resgatar com eles.


18A noite toda t<strong>em</strong> fogo para <strong>se</strong> a<strong>que</strong>ntar<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> <strong>do</strong>rm<strong>em</strong> <strong>em</strong> redes no ar, e não têmcobertores, n<strong>em</strong> vesti<strong>do</strong>, mas <strong>do</strong>rm<strong>em</strong> nus mari<strong>do</strong> e mulher na mesma rede, cada um com os péspara a cabeça <strong>do</strong> outro, exceto os principais, <strong>que</strong> como têm muitas mulheres <strong>do</strong>rm<strong>em</strong> sós nas suasredes, e dali quan<strong>do</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong> <strong>se</strong> vão deitar com a <strong>que</strong> lhes parece, s<strong>em</strong> <strong>se</strong> pejar<strong>em</strong> de <strong>que</strong> os vejam.Quan<strong>do</strong> é hora de comer <strong>se</strong> ajuntam os <strong>do</strong> rancho, e <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntam <strong>em</strong> cócoras, mas o pai da famíliadeita<strong>do</strong> na rede, e to<strong>do</strong>s com<strong>em</strong> <strong>em</strong> um alguidar, ou cabaço, a <strong>que</strong> chamam cuia, <strong>que</strong> estas são assuas baixelas, e <strong>do</strong>s cabaços principalmente faz<strong>em</strong> muito cabedal, por<strong>que</strong> lhes <strong>se</strong>rv<strong>em</strong> de pratospara comer, de potes e de púcaros para água e vinho, e de colheres, e assim os guardam <strong>em</strong> unscaniços <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> chama<strong>do</strong>s jiraus, onde também curam ao fumo os <strong>se</strong>us legumes, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> nãocorrompam, e s<strong>em</strong> ter<strong>em</strong> caixas, n<strong>em</strong> fechaduras, e os ranchos s<strong>em</strong> portas, to<strong>do</strong>s abertos, são tãofiéis uns aos outros, <strong>que</strong> não há qu<strong>em</strong> tome ou bula <strong>em</strong> coisa alguma s<strong>em</strong> licença de <strong>se</strong>u <strong>do</strong>no.Não moram mais <strong>em</strong> uma aldeia <strong>que</strong> <strong>em</strong> quanto lhes não apodrece a palma <strong>do</strong>s tetos dascasas, <strong>que</strong> é espaço de três ou quatro anos, e então o mudam para outra parte, escolhen<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> oprincipal, com o parecer <strong>do</strong>s mais antigos, o sítio <strong>que</strong> <strong>se</strong>ja alto, desabafa<strong>do</strong>, com água perto, e terraa propósito para suas roças e s<strong>em</strong>enteiras, <strong>que</strong> eles diz<strong>em</strong> <strong>se</strong>r a <strong>que</strong> não foi ainda cultivada, por<strong>que</strong>têm por menos trabalho cortar árvores <strong>que</strong> mondar erva, e <strong>se</strong> estas aldeias ficam fronteiras de <strong>se</strong>uscontrários, e têm guerras, as cercam de pau-a-pi<strong>que</strong> mui forte, e às vezes de duas e três cercas, todascom suas <strong>se</strong>teiras, e entre uma e outra cerca faz<strong>em</strong> fossos cobertos de erva, com muitos estrepes debaixo, e outras armadilhas de vigas mui pesadas, <strong>que</strong> <strong>em</strong> lhes tocan<strong>do</strong> ca<strong>em</strong>, e derribam a quantosacham.CAPÍTULO DÉCIMO QUARTODos <strong>se</strong>us casamentos e criação <strong>do</strong>s filhosNão é fácil averiguar, mormente entre os principais, <strong>que</strong> têm muitas mulheres, qual <strong>se</strong>ja averdadeira, e legítima, por<strong>que</strong> nenhum contrato exprim<strong>em</strong>, e facilmente deixam umas e tomamoutras, mas conjetura-<strong>se</strong> <strong>que</strong> é a<strong>que</strong>la de <strong>que</strong> <strong>primeiro</strong> <strong>se</strong> namoram, e por cujo amor <strong>se</strong>rviram aossogros, pescan<strong>do</strong>-lhes, caçan<strong>do</strong>, roçan<strong>do</strong> o mato para a s<strong>em</strong>enteira, e trazen<strong>do</strong>-lhes a lenha para ofogo. Mas o sogro não entrega a moça até lhe não vir <strong>se</strong>u costume, e então é ela obrigada a trazerata<strong>do</strong> pela cintura um fio de algodão, e <strong>em</strong> cada um <strong>do</strong>s buchos <strong>do</strong>s braços, outro, para <strong>que</strong> venha ànotícia de to<strong>do</strong>s, e depois <strong>que</strong> é deflorada pelo mari<strong>do</strong>, ou por qual<strong>que</strong>r outro, <strong>que</strong>bra <strong>em</strong> sinal dissoos fios, parecen<strong>do</strong>-lhe <strong>que</strong> <strong>se</strong> o encobrir a levará o diabo, e o mari<strong>do</strong> de qual<strong>que</strong>r maneira a recebe,e consuman<strong>do</strong> o matrimônio, <strong>se</strong> t<strong>em</strong> <strong>que</strong> esta é a legítima mulher, ou quan<strong>do</strong> assim não estãocasa<strong>do</strong>s, a cunhada, mulher <strong>que</strong> foi <strong>do</strong> irmão defunto, ainda <strong>que</strong> lhe ficas<strong>se</strong> filho dele, ou a sobrinha/ filha, não <strong>do</strong> irmão, <strong>que</strong> esta t<strong>em</strong> eles <strong>em</strong> conta de filha própria, e não casam com ela, <strong>se</strong>não dairmã, / e com qual<strong>que</strong>r destas com <strong>que</strong> <strong>primeiro</strong> <strong>se</strong> casaram, ou <strong>se</strong>ja, a sobrinha ou a cunhada, oscasam depois sacramentalmente os religiosos <strong>que</strong> os curam, no mesmo dia <strong>em</strong> <strong>que</strong> batizamdispensan<strong>do</strong> nos impedimentos, por privilégio <strong>que</strong> para isto t<strong>em</strong>, e lhes tiram todas as outras,casan<strong>do</strong>-as com outros, não s<strong>em</strong> <strong>se</strong>ntimento <strong>do</strong>s <strong>primeiro</strong>s mari<strong>do</strong>s; por<strong>que</strong> de ordinário <strong>se</strong> ficamcom as mais velhas.A mulher <strong>em</strong> acaban<strong>do</strong> de parir <strong>se</strong> vai lavar ao rio, e o mari<strong>do</strong> <strong>se</strong> deita na rede, mui coberto,<strong>que</strong> não dê o vento, onde está <strong>em</strong> dieta, até <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>se</strong><strong>que</strong> o umbigo ao filho, e ali o v<strong>em</strong> os amigos avisitar como a <strong>do</strong>ente, n<strong>em</strong> há poder lhes tirar esta superstição, por<strong>que</strong> diz<strong>em</strong> <strong>que</strong> com isto <strong>se</strong>pre<strong>se</strong>rvam de muitas enfermidades a si, e à criança, a qual também deitam <strong>em</strong> outra rede com <strong>se</strong>ufogo debaixo, <strong>que</strong>r <strong>se</strong>ja inverno, <strong>que</strong>r verão, e <strong>se</strong> é macho logo lhe põ<strong>em</strong> na azelha da rede umarquinho com suas flechas; e <strong>se</strong> fêmea uma roca com algodão.


19As mães dão de mamar aos filhos <strong>se</strong>te ou oito anos, <strong>se</strong> tantos estão s<strong>em</strong> tornar a parir, e to<strong>do</strong>este t<strong>em</strong>po os traz<strong>em</strong> ao colo ora elas, ora os mari<strong>do</strong>s, principalmente quan<strong>do</strong> vão às suas roças,onde vão to<strong>do</strong>s os dias depois de almoçar<strong>em</strong>, e não com<strong>em</strong> enquanto andam no trabalho, <strong>se</strong>não àvéspera, depois <strong>que</strong> voltam para casa. Os mari<strong>do</strong>s na roça derrubam o mato, <strong>que</strong>imam-no, e dão aterra limpa às mulheres, e elas plantam, mondam a erva, colh<strong>em</strong> o fruto e o carregam, e levam paracasa <strong>em</strong> uns cofos mui grandes feitos de palma, lança<strong>do</strong>s sobre as costas, <strong>que</strong> pode <strong>se</strong>r suficientecarga de uma azêmola, e os mari<strong>do</strong>s levam um lenho aos ombros, e na mão <strong>se</strong>u arco e flechas, <strong>que</strong>faz<strong>em</strong> com as pontas de dentes de tubarões, ou de umas canas agudas, a <strong>que</strong> chamam taquaras, de<strong>que</strong> são grandes tira<strong>do</strong>res; por<strong>que</strong> logo ensinam aos filhos de pe<strong>que</strong>nos a tirar ao alvo, e poucasvezes tiram a um passarinho, <strong>que</strong> não o acert<strong>em</strong>, por pe<strong>que</strong>no <strong>que</strong> <strong>se</strong>ja .Também os ensinam a fazer balaios, e outras coisas de mecânica, para as quais têm grandehabilidade, <strong>se</strong> eles a <strong>que</strong>r<strong>em</strong> aprender, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não <strong>que</strong>r<strong>em</strong> não os constrang<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> os castigam porerros, e crimes <strong>que</strong> cometam, por mais enormes <strong>que</strong> <strong>se</strong>jam. As mães ensinam as filhas a fiar algodãoe fazer redes de fio, e nastros para os cabelos, <strong>do</strong>s quais <strong>se</strong> prezam muito, e os penteiam, e untam deazeite de coco bravo, para <strong>que</strong> <strong>se</strong> façam compri<strong>do</strong>s, grossos, e negros.Nas festas <strong>se</strong> ting<strong>em</strong> todas de jenipapo, de mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> não é no cabelo parec<strong>em</strong> negras deGuiné, e da mesma tinta pintam os mari<strong>do</strong>s, e lhes arrancam o cabelo da barba, <strong>se</strong> acerta de lhenascer algum, e o das sobrancelhas e pestanas, com <strong>que</strong> eles <strong>se</strong> t<strong>em</strong> por mui galantes, junto comter<strong>em</strong> os beiços de baixo fura<strong>do</strong>s, e alguns as faces, e uns tornos, ou bato<strong>que</strong>s de pedras verdesmeti<strong>do</strong>s pelos buracos, com <strong>que</strong> parec<strong>em</strong> uns d<strong>em</strong>ônios.Pois hei trata<strong>do</strong> neste capítulo <strong>do</strong> contrato matrimonial deste gentio: tratarei também <strong>do</strong>smais contratos, e não <strong>se</strong>rei por isso prolixo ao leitor, por<strong>que</strong> os <strong>livro</strong>s <strong>que</strong> hão escrito os <strong>do</strong>utores decontractibus, s<strong>em</strong> os poder<strong>em</strong> de to<strong>do</strong> resolver pelos muitos, <strong>que</strong> de novo inventa cada dia a cobiçahumana, não tocam a este gentio; o qual só usa de uma simples comutação de uma coisa por outra,s<strong>em</strong> tratar<strong>em</strong> <strong>do</strong> excesso, ou defeito <strong>do</strong> valor, e assim com um pintainho <strong>se</strong> hão por pagos de umagalinha.N<strong>em</strong> jamais usam de pesos e medidas, n<strong>em</strong> têm números por onde cont<strong>em</strong> mais <strong>que</strong> atécinco, e <strong>se</strong> a conta houver de passar daí a faz<strong>em</strong> pelos de<strong>do</strong>s das mãos e pés, o <strong>que</strong> lhes nasce da suapouca cobiça; posto <strong>que</strong> com isso está <strong>se</strong>r<strong>em</strong> mui apetitosos de qual<strong>que</strong>r coisa <strong>que</strong> v<strong>em</strong>, mas tanto<strong>que</strong> a t<strong>em</strong>, a tornam facilmente de graça, ou por pouco mais de nada.CAPÍTULO DÉCIMO QUINTODa cura <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us enfermos e enterro <strong>do</strong>s mortosNão há entre este gentio médicos sinala<strong>do</strong>s, <strong>se</strong>não os <strong>se</strong>us feiticeiros, os quais moram <strong>em</strong>casas apartadas, cada um per si, e com porta mui pe<strong>que</strong>na, pela qual não ousa alguém entrar, n<strong>em</strong>tocar-lhe <strong>em</strong> alguma coisa sua; por<strong>que</strong> <strong>se</strong> algum lhas toma, ou lhes não dá o <strong>que</strong> eles ped<strong>em</strong>, diz<strong>em</strong>vai, <strong>que</strong> hás de morrer, a <strong>que</strong> chamam lançar a morte, e são tão bárbaros <strong>que</strong> <strong>se</strong> vai logo o outrolançar na rede s<strong>em</strong> <strong>que</strong>rer comer, e de pasmo <strong>se</strong> deixa morrer, s<strong>em</strong> haver qu<strong>em</strong> lhe meta na cabeça<strong>que</strong> pode escapar, e assim <strong>se</strong> pod<strong>em</strong> estes feiticeiros chamar mais mata-sanos, <strong>que</strong> médicos, n<strong>em</strong>eles curam os enfermos, <strong>se</strong>não com enganos chupan<strong>do</strong>-lhes na parte <strong>que</strong> lhes dói, e tiran<strong>do</strong> da bocaum espinho ou prego velho, <strong>que</strong> já nela levavam, lho mostram dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> aquilo lhes fazia o mal,e <strong>que</strong> já ficam sãos, fican<strong>do</strong> eles tão <strong>do</strong>entes como de antes.Outros médicos há melhores, <strong>que</strong> são os acautela<strong>do</strong>s, e <strong>que</strong> padeceram as mesma<strong>se</strong>nfermidades, os quais aplican<strong>do</strong> ervas, ou outras medicinas, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> acharam b<strong>em</strong>, saram o<strong>se</strong>nfermos, mas <strong>se</strong> a enfermidade é prolongada; ou incurável, não há mais qu<strong>em</strong> os cure, e os deixam


20ao desamparo. Test<strong>em</strong>unha sou eu de um, <strong>que</strong> achei na Paraíba tolhi<strong>do</strong> de pés e mãos, à borda deuma estrada, o qual me pediu lhe des<strong>se</strong> uma vez de água, <strong>que</strong> morria de <strong>se</strong>de, s<strong>em</strong> os <strong>se</strong>us, <strong>que</strong> porali passavam cada hora, lha <strong>que</strong>rer<strong>em</strong> dar, antes lhe diziam <strong>que</strong> morres<strong>se</strong> por<strong>que</strong> já estava tísico, e<strong>que</strong> não <strong>se</strong>rvia mais <strong>que</strong> para comer o pão aos sãos; mandei eu buscar água por uns <strong>que</strong> meacompanhavam e, entretanto, o fi<strong>que</strong>i catequizan<strong>do</strong> por<strong>que</strong> ainda não era cristão, e de tal maneira <strong>se</strong>acendeu na <strong>se</strong>de de o <strong>se</strong>r, e de salvar sua alma, <strong>que</strong> vinda a água, <strong>primeiro</strong> quis <strong>que</strong> o batizas<strong>se</strong>, <strong>que</strong>beber, e daí a poucos dias morreu <strong>em</strong> um incêndio de uma aldeia, onde o mandei levar, s<strong>em</strong> haverqu<strong>em</strong> o qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> tirar da casa <strong>que</strong> ardia, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> não tinha ele pés n<strong>em</strong> forças para <strong>se</strong> livrar.Donde <strong>se</strong> vê a pouca caridade <strong>que</strong> t<strong>em</strong> este gentio com os fracos e enfermos, e juntamente ami<strong>se</strong>ricórdia <strong>do</strong> Senhor, e efeitos da sua eterna predestinação, a qual não só neste, mas <strong>em</strong> outrosmuitos manifesta muitas vezes, ordenan<strong>do</strong> <strong>que</strong> percam os religiosos o caminho <strong>que</strong> levam, e vão darnos tigipares ou cabanas com enfermos <strong>que</strong> estão agonizan<strong>do</strong>, os quais receben<strong>do</strong> de boa vontade osacramento <strong>do</strong> batismo <strong>se</strong> vão a gozar da b<strong>em</strong>-aventurança no céu.Tanto <strong>que</strong> algum morre o levam a enterrar, <strong>em</strong>brulha<strong>do</strong> na mesma rede <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>do</strong>rmia, e amulher, filhas e parentas, <strong>se</strong> as t<strong>em</strong>, o vão prantean<strong>do</strong> até a cova com os cabelos soltos lança<strong>do</strong>ssobre o rosto, e depois o pranteia ainda a mulher muitos dias: mas <strong>se</strong> morre algum principal daaldeia, o untam to<strong>do</strong> de mel, e por cima <strong>do</strong> mel o <strong>em</strong>penam com penas de pássaros de cores, epõ<strong>em</strong>-lhe uma carapuça de penas na cabeça com to<strong>do</strong>s os mais enfeites, <strong>que</strong> ele costumava trazer<strong>em</strong> suas festas, e faz<strong>em</strong>-lhe na mesma casa, e rancho onde morava, uma cova muito funda e grande,onde lhe armam sua rede, e o deitam nela assim enfeita<strong>do</strong> com <strong>se</strong>u arco e flechas, espada etamaracá, <strong>que</strong> é um cabaço com pedrinhas dentro, com <strong>que</strong> costumam tanger, e faz<strong>em</strong>-lhe fogo aolongo da rede para <strong>se</strong> a<strong>que</strong>ntar, e põ<strong>em</strong>-lhe de comer <strong>em</strong> um alguidar, e a água <strong>em</strong> um cabaço, e namão uma cangueira, <strong>que</strong> é um canu<strong>do</strong> feito de palma cheio de tabaco, e então lhe cobr<strong>em</strong> a cova d<strong>em</strong>adeira, e de terra por cima, <strong>que</strong> não caia sobre o defunto, e a mulher por dó corta os cabelos, etinge-<strong>se</strong> toda de jenipapo, prantean<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong> muitos dias, e o mesmo faz<strong>em</strong> com ela as <strong>que</strong> a v<strong>em</strong>visitar, e tanto <strong>que</strong> o cabelo cresce até lhe dar pelos olhos, o torna a cortar, e a tingir-<strong>se</strong> de jenipapo,para tirar o dó, e faz sua festa com <strong>se</strong>us parentes, e muito vinho.O mari<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> lhe morre a mulher também <strong>se</strong> tinge de jenipapo, e quan<strong>do</strong> tira o dó <strong>se</strong>torna a tingir, tosquia-<strong>se</strong> e ordena grandes revoltas de cantar, e bailar, e beber, nestas festas <strong>se</strong>cantam as proezas <strong>do</strong> defunto, ou defunta, e <strong>do</strong> <strong>que</strong> tira o dó, e <strong>se</strong> morre algum menino filho deprincipal o met<strong>em</strong> <strong>em</strong> um pote, posto <strong>em</strong> cócoras, ata<strong>do</strong>s aos joelhos com a barriga, e enterram opote na mesma casa, e rancho, debaixo <strong>do</strong> chão, e ali o choram muitos dias.CAPÍTULO DÉCIMO SEXTODo mo<strong>do</strong> de guerrear o gentio <strong>do</strong> Brasil.É este gentio naturalmente tão belicoso, <strong>que</strong> to<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u cuida<strong>do</strong> é como farão guerra a <strong>se</strong>uscontrários, e sobre isto <strong>se</strong> ajuntam no terreiro da aldeia com o principal dela, os principais das casas,e outros índios discretos, a con<strong>se</strong>lho, onde depois de as<strong>se</strong>nta<strong>do</strong>s nas suas redes, <strong>que</strong> para isto armam<strong>em</strong> umas estacas, e quieto o rumor <strong>do</strong>s mais <strong>que</strong> <strong>se</strong> ajuntam a ouvir, por<strong>que</strong> é a gente <strong>que</strong> <strong>em</strong>nenhuma coisa t<strong>em</strong> <strong>se</strong>gre<strong>do</strong>, propõ<strong>em</strong> o maioral sua prática, a <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s estão mui atentos, e como<strong>se</strong> acaba respond<strong>em</strong> os mais antigos cada um per si, até <strong>que</strong> v<strong>em</strong> a concluir no <strong>que</strong> hão de fazer,brindan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> entretanto algumas vezes com o fumo da erva santa, <strong>que</strong> eles têm por cerimônia grave,e <strong>se</strong> conclu<strong>em</strong> <strong>que</strong> a guerra <strong>se</strong> faça, mandam logo <strong>que</strong> <strong>se</strong> faça muita farinha de guerra, e <strong>que</strong> <strong>se</strong>apercebam de arcos, e flechas, e alguns pave<strong>se</strong>s, ou rodelas, e espadas de paus tosta<strong>do</strong>s, e comotodas estas coisas estão prestes à noite antes da partida, anda o principal da aldeia pregan<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r


21das casas, declaran<strong>do</strong>-lhes onde vão, e a obrigação <strong>que</strong> t<strong>em</strong> de fazer<strong>em</strong> a<strong>que</strong>la guerra, exortan<strong>do</strong>-osà vitória, para <strong>que</strong> fi<strong>que</strong> deles m<strong>em</strong>ória, e os vin<strong>do</strong>uros possam contar suas proezas.O dia <strong>se</strong>guinte depois de almoçar<strong>em</strong> toma cada um suas armas nas mãos, e a rede <strong>em</strong> <strong>que</strong> háde <strong>do</strong>rmir às costas, é uma pa<strong>que</strong>vira de farinha, <strong>que</strong> é um <strong>em</strong>brulho lia<strong>do</strong>, quanto pode carregar,feito de umas folhas rijas, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> <strong>se</strong> romp<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> a água as passa, e não <strong>se</strong> curam de maisvianda; por<strong>que</strong> com a flecha a caçam pelo caminho, e nas árvores acham frutas, e favos de mel.Os principais levam consigo suas mulheres, <strong>que</strong> lhes levam a farinha e as redes, e eles nãolevam mais <strong>que</strong> as armas; e antes <strong>que</strong> abal<strong>em</strong> faz o maioral um capitão da dianteira, <strong>que</strong> eles têmpor grande honra, o qual vai mostran<strong>do</strong> o lugar onde <strong>se</strong> hão de alojar, e o caminhar é um após outro,por um carreiro como formigas, n<strong>em</strong> já mais sab<strong>em</strong> andar de outra maneira, t<strong>em</strong> grandeconhecimento da terra, e não só o caminho por onde uma vez foram atinam, por mais <strong>se</strong>rra<strong>do</strong> <strong>que</strong> jáesteja, mas ainda por onde nunca foram.Tanto <strong>que</strong> sa<strong>em</strong> fora de <strong>se</strong>us limites, e entram pela terra <strong>do</strong>s contrários, levam suas espiasadiante, <strong>que</strong> são mancebos mui ligeiros, e há alguns de tão bom faro, <strong>que</strong> a meia légua cheiram ofogo, ainda <strong>que</strong> não apareça o fumo.Chegan<strong>do</strong> duas jornadas da aldeia de <strong>se</strong>us contrários não faz<strong>em</strong> fogo, por<strong>que</strong> não <strong>se</strong>jam poreles <strong>se</strong>nti<strong>do</strong>s, e ordenam-<strong>se</strong> de maneira, <strong>que</strong> possam entrar de madrugada, e tomá-los descuida<strong>do</strong>s edespercebi<strong>do</strong>s, e depois entram com grande urro de vozes, e estron<strong>do</strong> de buzinas e tambores, <strong>que</strong> éespanto, não per<strong>do</strong>an<strong>do</strong> no <strong>primeiro</strong> encontro a grandes n<strong>em</strong> pe<strong>que</strong>nos, a <strong>que</strong> com suas espadas depau não <strong>que</strong>br<strong>em</strong> as cabeças, por<strong>que</strong> não t<strong>em</strong> por valor o matar, <strong>se</strong>não <strong>que</strong>bram as cabeças, ainda<strong>que</strong> <strong>se</strong>ja <strong>do</strong>s mortos por outros, e quantas cabeças <strong>que</strong>bram tantos nomes tomam, largan<strong>do</strong> o <strong>que</strong> opai lhes deu no nascimento, <strong>que</strong> um, e outros são de animais, de plantas, ou <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhes antolha,mas o nome <strong>que</strong> tomaram não o descobr<strong>em</strong> / ainda <strong>que</strong> lho rogu<strong>em</strong> / <strong>se</strong>não com grandes festas devinho, e cantares <strong>em</strong> <strong>se</strong>u louvor, e eles <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> riscar e lavrar com um dente agu<strong>do</strong> de um animal,e lançan<strong>do</strong> pó de carvão pelos riscos e lavores ensangüenta<strong>do</strong>s, ficam com eles impressos toda avida, o <strong>que</strong> t<strong>em</strong> por grande bizarria, por<strong>que</strong> por estes lavores, e pela diferença deles <strong>se</strong> entendequantas cabeças <strong>que</strong>braram.E <strong>se</strong>n<strong>do</strong> caso <strong>que</strong> acham <strong>se</strong>us contrários apercebi<strong>do</strong>s com cercas feitas, faz<strong>em</strong>-lhes outracontracerca de estacas metidas na terra com ramos e espinhos, lia<strong>do</strong>s, a <strong>que</strong> chamam caiçara, a qualenquanto verde não há coisa <strong>que</strong> a rompa, e dali blasonam, e jogam as pulhas com os contrários, até<strong>que</strong> uns ou outros abalroam, ou sa<strong>em</strong> a pelejar <strong>em</strong> campo, e toda a sua peleja é fazen<strong>do</strong> o motim,<strong>que</strong> é correr e saltar de uma parte para outra, por<strong>que</strong> lhe não façam pontaria.CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMODos <strong>que</strong> cativam na guerraOs <strong>que</strong> pod<strong>em</strong> cativar na guerra levam para vender aos brancos, os quais lhe compram porum macha<strong>do</strong>, ou foice cada um, ten<strong>do</strong>-os por verdadeiros cativos, não tanto por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> toma<strong>do</strong>s <strong>em</strong>guerra, pois não consta da justiça dela, quanto por a vida <strong>que</strong> lhes dão, <strong>que</strong> é maior b<strong>em</strong> <strong>que</strong> aliberdade; por<strong>que</strong> <strong>se</strong> os brancos os não compram, os <strong>primeiro</strong>s <strong>se</strong>nhores os têm <strong>em</strong> prisões ata<strong>do</strong>spelo pescoço, e pela cinta com cordas de algodão grossas e fortes, e dão a cada um por mulher amais formosa moça, <strong>que</strong> há na casa, a qual t<strong>em</strong> o cuida<strong>do</strong> de o regalar, e lhe dar de comer até <strong>que</strong>engorde, e esteja para o poder<strong>em</strong> comer, e então ordenam grandes festas, e ajuntamentos deparentes e amigos, chama<strong>do</strong>s de 30, 40 léguas, com os quais na véspera, e dia <strong>do</strong> sacrifício, cantame bailam, com<strong>em</strong>, e beb<strong>em</strong> alegr<strong>em</strong>ente, e também o padecente come e bebe com eles, depois ountam com mel de abelhas, e sobre o mel o <strong>em</strong>penam com muitas penas de várias cores, e a lugares


22o pintam de jenipapo, e lhe ting<strong>em</strong> os pés de vermelho, e meten<strong>do</strong>-lhe uma espada na mão, para <strong>que</strong><strong>se</strong> defenda como puder, o levam assim ata<strong>do</strong> a um terreiro fora da aldeia, e o met<strong>em</strong> entre <strong>do</strong>ismourões, <strong>que</strong> estão meti<strong>do</strong>s no chão, afasta<strong>do</strong>s um <strong>do</strong> outro alguns 20 palmos, os quais estãofura<strong>do</strong>s, e por cada furo met<strong>em</strong> as pontas das cordas, onde o preso fica como touro, e as velhas lhecantam, <strong>que</strong> <strong>se</strong> farte de ver o sol, pois ce<strong>do</strong> o deixará de ver, e o cativo responde com muitacorag<strong>em</strong>, <strong>que</strong> b<strong>em</strong> vinga<strong>do</strong> há de <strong>se</strong>r, então vão buscar o <strong>que</strong> há de matar a sua casa to<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>usparentes, e amigos, onde o acham já pinta<strong>do</strong> de tinta de jenipapo com carapuça de penas na cabeça,manilhas de ossos nos braços, e nas pernas grandes ramais de contas ao pescoço, com <strong>se</strong>u rabo depenas nas ancas, e uma espada de pau pesada de ambas as mãos mui pintada, com cascas d<strong>em</strong>ariscos pegadas com cera, e no cabo e <strong>em</strong>punhadura da espada grandes penachos; e assim otraz<strong>em</strong> com grandes cantares, e tangeres de <strong>se</strong>us búzios, gaitas e tambores, chaman<strong>do</strong>-lhe b<strong>em</strong>aventura<strong>do</strong>,pois chegou a tamanha honra, e com este estron<strong>do</strong> entra no terreiro, onde o paciente oespera, e lhe diz <strong>que</strong> <strong>se</strong> defenda, por<strong>que</strong> v<strong>em</strong> para o matar, e logo r<strong>em</strong>ete a ele com a espada deambas as mãos, e o padecente com a sua <strong>se</strong> defende, e ainda às vezes ofende, mas como os <strong>que</strong> ot<strong>em</strong> pelas cordas o não deixam desviar <strong>do</strong> golpe, o mata<strong>do</strong>r lhe <strong>que</strong>bra a cabeça, e toma nome, <strong>que</strong>depois declara com as cerimônias <strong>que</strong> vimos no capítulo passa<strong>do</strong>.Em morren<strong>do</strong> este preso, logo os velhos da aldeia o despedaçam, e lhe tiram as tripas eforçura, <strong>que</strong> mal lavadas coz<strong>em</strong> para comer, e reparte-<strong>se</strong> a carne por todas as casas, e peloshóspedes, <strong>que</strong> vieram a esta matança, e dela com<strong>em</strong> logo assada, e cozida, e guardam alguma muitoassada, e mirrada, a <strong>que</strong> chamam moquém, metida <strong>em</strong> novelos de fio de algodão, e posta noscaniços ao fumo, para depois renovar<strong>em</strong> o <strong>se</strong>u ódio, e fazer<strong>em</strong> outras festas, e <strong>do</strong> cal<strong>do</strong> faz<strong>em</strong>grandes alguidares de migas, e papas de farinha de carimã, para suprir na falta de carne, e poderchegar a to<strong>do</strong>s; o <strong>que</strong> o matou nenhuma coisa come dele, antes <strong>se</strong> vai logo deitar na rede, e <strong>se</strong> fazto<strong>do</strong> sarrafaçar, e sangrar, ten<strong>do</strong> por certo <strong>que</strong> morrerá <strong>se</strong> não derrama de si a<strong>que</strong>le sangue, n<strong>em</strong> fazo cabelo dali a <strong>se</strong>te ou oito me<strong>se</strong>s, os quais passa<strong>do</strong>s faz muitos vinhos, e apelida os amigos parabeber e cantar, e com essa festa <strong>se</strong> tos<strong>que</strong>ia, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> tira o dó da<strong>que</strong>le morto, e é tão cruel estegentio com os <strong>se</strong>us cativos, <strong>que</strong> não só os matam a eles, mas <strong>se</strong> acontece a algum haver filho damoça <strong>que</strong> lhe deram por mulher, a obrigam <strong>que</strong> o entregue a um parente mais chega<strong>do</strong>, para <strong>que</strong> omate, qua<strong>se</strong> com as mesmas cerimônias, e a mãe é a primeira <strong>que</strong> lhe come a carne; posto <strong>que</strong>algumas, pelo amor <strong>que</strong> lhes têm, os escond<strong>em</strong>, e às vezes soltam também os presos, e <strong>se</strong> vão comeles para suas terras, ou para outras.LIVRO SEGUNDODA HISTÓRIA DO BRASIL NO TEMPO DO SEU DESCOBRIMENTO


23CAPÍTULO PRIMEIRODe como <strong>se</strong> continuou o descobrimento <strong>do</strong> Brasil, e <strong>se</strong> deu ord<strong>em</strong> a <strong>se</strong> povoarPosto <strong>que</strong> el-rei d. Manuel, quan<strong>do</strong> soube a nova <strong>do</strong> descobrimento <strong>do</strong> Brasil, feito porPedro Álvares Cabral, andava mui ocupa<strong>do</strong> com as conquistas da Índia Oriental, pelo proveito <strong>que</strong>de si prometiam, e com as de África pela glória e louvor, <strong>que</strong> a <strong>se</strong>us vassalos delas resultava, nãodeixou, quan<strong>do</strong> teve ocasião de mandar uma armada de <strong>se</strong>is velas, e por capitão-mor delas GonçaloCoelho, para <strong>que</strong> descobris<strong>se</strong> toda esta costa, o qual an<strong>do</strong>u por ela muitos me<strong>se</strong>s descobrin<strong>do</strong>-lhe osportos e rios, e <strong>em</strong> muitos deles entrou e as<strong>se</strong>ntou marcos, com as armas del-rei, <strong>que</strong> para isso trazialavra<strong>do</strong>s, mas pela pouca experiência <strong>que</strong> então <strong>se</strong> tinha de como corria a costa, e os ventos com<strong>que</strong> <strong>se</strong> navega, passou tantos trabalhos e infortúnios, <strong>que</strong> foi força<strong>do</strong> tornar-<strong>se</strong> para o reino comduas caravelas menos, e a t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> <strong>que</strong> já era morto el-rei d. Manuel, <strong>que</strong> faleceu no ano <strong>do</strong>Senhor de 1521; e reinava <strong>se</strong>u filho el-rei d. João Terceiro, ao qual <strong>se</strong> apre<strong>se</strong>ntou com asinformações <strong>que</strong> pôde alcançar, pelas quais el-rei parecen<strong>do</strong>-lhe coisa de importância, man<strong>do</strong>u logooutra armada, e por capitão-mor Cristóvão Jac<strong>que</strong>s, fidalgo de sua casa, <strong>que</strong> neste descobrimentotrabalhou com notável proveito sobre a clareza da navegação desta costa, continuan<strong>do</strong> com <strong>se</strong>uspadrões conforme o regimento <strong>que</strong> trazia, e andan<strong>do</strong> corren<strong>do</strong> esta grande costa veio dar com a baíaa <strong>que</strong> chamou de To<strong>do</strong>s os Santos, por <strong>se</strong>r no dia da sua festa, <strong>primeiro</strong> de nov<strong>em</strong>bro, e entran<strong>do</strong> porela, especulan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u recôncavo, e rios, achou <strong>em</strong> um deles chama<strong>do</strong> de Paraguaçu duas nausfrancesas, <strong>que</strong> estavam ancoradas comercian<strong>do</strong> com o gentio, com as quais <strong>se</strong> pôs às bombardadas,e as meteu no fun<strong>do</strong> com toda a gente, e fazenda, e logo <strong>se</strong> foi para o reino, e deu as informações detu<strong>do</strong> a Sua Alteza, as quais b<strong>em</strong> consideradas, com outras <strong>que</strong> já tinha de Pero Lopes de Sousa, <strong>que</strong>por esta costa também an<strong>do</strong>u com outra armada, ordenou <strong>que</strong> <strong>se</strong> povoas<strong>se</strong> esta província, repartin<strong>do</strong>as terras por pessoas <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhe ofereceram para as povoar<strong>em</strong> e conquistar<strong>em</strong> à custa de suafazenda, e dan<strong>do</strong> a cada um 50 léguas por costa com to<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u <strong>se</strong>rtão, para <strong>que</strong> eles foss<strong>em</strong> não só<strong>se</strong>nhores, mas capitães delas; pelo <strong>que</strong> <strong>se</strong> chamam, e <strong>se</strong> distingu<strong>em</strong> por capitanias.Deu-lhes jurisdição no crime de baraço e pregão, açoites e morte, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> o criminoso peão e<strong>se</strong>n<strong>do</strong> nobre até 10 anos de degre<strong>do</strong>; e no cível c<strong>em</strong> mil-réis de alçada, e <strong>que</strong> assistam às eleições<strong>do</strong>s juízes, e verea<strong>do</strong>res eles ou <strong>se</strong>u ouvi<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> eles faz<strong>em</strong>, como também faz<strong>em</strong> escrivãos <strong>do</strong>público, judicial e notas, escrivão da câmara, escrivão da ouvi<strong>do</strong>ria, juiz, e escrivão <strong>do</strong>s órfãos,meirinho da vila, alcaide <strong>do</strong> campo, por<strong>que</strong> o <strong>do</strong> cárcere provê o alcaide-mor, e el-rei os ofícios dasua real fazenda, como são os <strong>do</strong>s prove<strong>do</strong>res, e <strong>se</strong>us meirinhos, almoxarifes, porteiros daalfândega, e guardas <strong>do</strong>s navios; e ainda <strong>que</strong> os <strong>do</strong>natários são sismeiros das suas terras, e asrepart<strong>em</strong> pelos mora<strong>do</strong>res como <strong>que</strong>r<strong>em</strong>, todavia moven<strong>do</strong>-<strong>se</strong> depois alguma dúvida sobre as datas,não são eles os juízes delas, <strong>se</strong>não o prove<strong>do</strong>r da fazenda, n<strong>em</strong> os <strong>que</strong> as receb<strong>em</strong> de <strong>se</strong>smaria têmobrigação de pagar mais <strong>que</strong> dízimo a Deus <strong>do</strong>s frutos <strong>que</strong> colh<strong>em</strong>, e este <strong>se</strong> paga a el-rei por <strong>se</strong>rMestre da Ord<strong>em</strong> de Cristo, e ele da aos <strong>do</strong>natários a redízima, <strong>que</strong> é o dízimo de tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> lherend<strong>em</strong> os dízimos: pertenc<strong>em</strong>-lhes também a vintena de to<strong>do</strong> o pesca<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> pesca nos limitesdar suas capitanias, e todas as águas com <strong>que</strong> mo<strong>em</strong> os engenhos de açúcar, pelos quais lhes pagamde cada c<strong>em</strong> arrobas duas, ou três, ou conforme <strong>se</strong> concertam os <strong>se</strong>nhores <strong>do</strong>s engenhos com eles,ou com <strong>se</strong>us procura<strong>do</strong>res, as quais pensões não têm a Bahia, Rio de Janeiro, Paraíba e as maiscapitanias de el-rei, nas quais <strong>se</strong> paga o dízimo somente, mas no <strong>que</strong> toca a jurisdição <strong>do</strong> cível, ecrime lha limitou el-rei depois muito, como ver<strong>em</strong>os no capítulo <strong>primeiro</strong> <strong>do</strong> <strong>livro</strong> terceiro.


24CAPÍTULO SEGUNDODas capitanias e terras, <strong>que</strong> el-rei <strong>do</strong>ou a Pero Lopes e MartimAfonso de Souza, IrmãosComo Pero Lopes de Souza havia já anda<strong>do</strong> por estas partes <strong>do</strong> Brasil coube-lhe a escolha<strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> a outros, e não tomou todas as suas 50 léguas juntas, <strong>se</strong>não 25 <strong>em</strong> Itamaracá, de <strong>que</strong>adiante tratar<strong>em</strong>os, e outras 25 <strong>em</strong> São Vicente, <strong>que</strong> <strong>se</strong> d<strong>em</strong>arcam e confrontam com as terras dacapitania de <strong>se</strong>u irmão Martim Afonso de Sousa <strong>em</strong> tanta vizinhança, <strong>que</strong> não deixa de haver litígioe dúvidas, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> de princípio as povoaram e fortificaram foi de muito proveito estavizinhança por <strong>se</strong> poder ajudar um ao outro, e defender <strong>do</strong> inimigo, como b<strong>em</strong> <strong>se</strong> viu depois de i<strong>do</strong>spelas muitas guerras <strong>que</strong> os mora<strong>do</strong>res tiveram com os gentios, e france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> entre eles andavam,e por mar <strong>em</strong> canoas lhe vinham dar muitos assaltos, e por muitas vezes os tiveram cerca<strong>do</strong>s, es<strong>em</strong>pre <strong>se</strong> defenderam muito b<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> não poderiam fazer <strong>se</strong> as povoações e fortes nãoestivess<strong>em</strong> tão próximos.Donde <strong>se</strong> verifica b<strong>em</strong> o <strong>que</strong> Scipião africano dis<strong>se</strong> no <strong>se</strong>na<strong>do</strong> de Roma, <strong>que</strong> era necessáriocontinuar-<strong>se</strong> com as guerras de África, por<strong>que</strong> faltan<strong>do</strong> estas as haveria civis entre os vizinhos;como as houve entre estes / ainda <strong>que</strong> irmãos / depois <strong>que</strong> venceram os gentios; mas descen<strong>do</strong> aoparticular a razão das dúvidas, <strong>que</strong> estes <strong>se</strong>nhores têm, ou <strong>se</strong>us herdeiros, acerca destas capitaniasme parece <strong>que</strong> é por dizer<strong>em</strong> as suas <strong>do</strong>ações, <strong>que</strong> <strong>se</strong> d<strong>em</strong>arcaram pela barra <strong>do</strong> Rio de S. Vicente,um para o norte, outro para o sul, e como este rio t<strong>em</strong> três barras, causadas de duas ilhas, <strong>que</strong> odivid<strong>em</strong>, uma <strong>que</strong> corre ao longo da costa, e outra dentro <strong>do</strong> rio, como <strong>se</strong> verá na descrição<strong>se</strong>guinte, daqui v<strong>em</strong> duvidar-<strong>se</strong> de qual destas barras <strong>se</strong> há de fazer a d<strong>em</strong>arcação.Nesta ilha fora esteve uma vila, <strong>que</strong> <strong>se</strong> chamou Santo Amaro, de <strong>que</strong> já não há mais <strong>que</strong> aermida <strong>do</strong> santo: mas fez-<strong>se</strong> outra na terra firme da parte <strong>do</strong> sul chamada vila da Conceição. Na ilhade dentro há duas povoações, uma chamada de Santos, outra de São Vicente como o rio, a qual veioedificar Martim Afonso de Souza <strong>em</strong> pessoa, e a povoou de mui nobre gente, <strong>que</strong> consigo trouxe, eassim floresceu <strong>em</strong> mui breve t<strong>em</strong>po.Daqui <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou no ano de 1533, para descobrir mais costa e rios dela, e foi corren<strong>do</strong> atéchegar ao rio da Prata, pelo qual navegou muitos dias, e perden<strong>do</strong> alguns navios e gente deles nosbaixos <strong>do</strong> rio, <strong>se</strong> tornou para a sua capitania, <strong>do</strong>nde foi chama<strong>do</strong> por Sua Alteza para o mandar porcapitão-mor <strong>do</strong> mar da Índia, <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>rviu muitos anos, e depois de governa<strong>do</strong>r da Índia, <strong>do</strong>ndevin<strong>do</strong> a Portugal <strong>se</strong>rviu muitos anos no con<strong>se</strong>lho de esta<strong>do</strong> até el-rei d. Sebastião, <strong>em</strong> cujo t<strong>em</strong>pofaleceu.Pelo <strong>se</strong>rtão nove léguas <strong>do</strong> rio de São Vicente está a vila de São Paulo, na qual há ummosteiro da Companhia de Jesus, outro <strong>do</strong> Carmo, e nos t<strong>em</strong> sinala<strong>do</strong> sítio para outro de nossa<strong>se</strong>ráfica ord<strong>em</strong>, <strong>que</strong> nos ped<strong>em</strong> <strong>que</strong>iramos edificar há muitos anos, com muita instância epromessas, e s<strong>em</strong> isso era incitamento bastante termos ali <strong>se</strong>pulta<strong>do</strong> na igreja <strong>do</strong>s padres dacompanhia um frade leigo da nossa ord<strong>em</strong>, castelhano, a qu<strong>em</strong> matou outro castelhano <strong>se</strong>cular,por<strong>que</strong> o repreendia <strong>que</strong> não juras<strong>se</strong>, foi religioso de santa vida, e confirmou-o Deus depois de <strong>se</strong>umartírio com um milagre, e foi <strong>que</strong> as<strong>se</strong>ntan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> uma mulher enferma de fluxo de sangue sobre asua <strong>se</strong>pultura ficou sã.Ao re<strong>do</strong>r desta vila estão quatro aldeias de gentio amigo, <strong>que</strong> os padres da Companhia<strong>do</strong>utrinam, fora outro muito, <strong>que</strong> cada dia desce <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão.São os ares destas duas capitanias frios e t<strong>em</strong>pera<strong>do</strong>s, como os de Espanha, por<strong>que</strong> já estãofora da zona tórrida <strong>em</strong> 24 graus e mais; e assim é a terra mui sadia, fresca e de boas águas, e estafoi a primeira onde <strong>se</strong> fez açúcar, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> levou plantas de canas para as outras capitanias, posto<strong>que</strong> hoje <strong>se</strong> não dão tanto a fazê-lo quanto a lavoura <strong>do</strong> trigo, <strong>que</strong> <strong>se</strong> dá ali muito, e cevada e


25grandes vinhas, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> colh<strong>em</strong> muitas pipas de vinho, ao qual para durar dão uma fervura nofogo.Outros <strong>se</strong> dão a criação de vacas, <strong>que</strong> multiplicam muito, e são as carnes mais gordas <strong>que</strong> naEspanha, principalmente os ceva<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong> cevam com milho zaburro, e com pinhões de grandespinhais, <strong>que</strong> há agrestes, tão férteis e viçosos, <strong>que</strong> cada pinha é como uma botija, e cada pinhão,depois de limpo, como uma castanha, ou belota de Portugal.Cavalos há tantos, <strong>que</strong> vale cada um cinco ou <strong>se</strong>is tostões. Mas o melhor de tu<strong>do</strong> é o ouro,de <strong>que</strong> tratar<strong>em</strong>os adiante, quan<strong>do</strong> tratarmos <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r d. Francisco de Souza, <strong>que</strong> pormanda<strong>do</strong> del-rei assistiu nas minas.(A) Destas vilas <strong>se</strong> foi há poucos anos um mora<strong>do</strong>r de nação castelhana, por <strong>se</strong>r muito ciosoda mulher, <strong>que</strong> era portuguesa, natural de São Vicente, e muito formosa, a morar <strong>em</strong> uma ilhachamada de Cananéia, <strong>que</strong> fica mais ao sul, e chegada ao rio da Prata; mas pouco viveu s<strong>em</strong> <strong>se</strong>usreceios, por<strong>que</strong> conhecida a fertilidade da terra, <strong>se</strong> foram outros muitos com suas famílias a morartambém a ela, e <strong>se</strong> fez uma povoação tão grande como estoutras.CAPÍTULO TERCEIRODa terra e capitania <strong>que</strong> el-rei <strong>do</strong>ou a Pero LopesEm companhia de Pero Lopes de Souza an<strong>do</strong>u por esta costa <strong>do</strong> Brasil Pedro de Góes,fidalgo honra<strong>do</strong>, muito cavaleiro, e pela afeição <strong>que</strong> tomou à terra pediu a el-rei d. João <strong>que</strong> lhedes<strong>se</strong> nela uma capitania, e assim lhe fez mercê de cinqüenta léguas de terra ao longo da costa, ouas <strong>que</strong> <strong>se</strong> achass<strong>em</strong> <strong>do</strong>nde acabass<strong>em</strong> as de Martim Afonso de Souza, até <strong>que</strong> entestas<strong>se</strong> com as deVasco Fernandes Coutinho: da qual capitania foi tomar pos<strong>se</strong> com uma boa frota, <strong>que</strong> fez <strong>em</strong>Portugal à sua custa, b<strong>em</strong> fornecida de gente e to<strong>do</strong> o necessário, e no rio chama<strong>do</strong> da Paraíba, <strong>que</strong>está <strong>em</strong> 21º e <strong>do</strong>is terços, <strong>se</strong> fortificou e fez uma povoação, <strong>em</strong> <strong>que</strong> esteve b<strong>em</strong> os <strong>primeiro</strong>s <strong>do</strong>isanos, e depois <strong>se</strong> lhe levantou o gentio, e o teve <strong>em</strong> guerra cinco ou <strong>se</strong>is anos, fazen<strong>do</strong> às vezespazes, <strong>que</strong> logo <strong>que</strong>bravam, e o apertavam tanto, <strong>que</strong> força<strong>do</strong> a despejar a terra e passar-<strong>se</strong> com todaa gente para a Capitania <strong>do</strong> Espírito Santo, <strong>em</strong> <strong>em</strong>barcações, <strong>que</strong> para isso lhe man<strong>do</strong>u VascoFernandes Coutinho, <strong>do</strong>nde ficou com toda a sua fazenda gastada, e muitos mil cruza<strong>do</strong>s de umMartim Ferreira, <strong>que</strong> com ele armava para fazer<strong>em</strong> muitos engenhos de açúcar.No distrito desta terra e capitania cai a terra <strong>do</strong>s Aitacazes, <strong>que</strong> é toda baixa e alagada, ondeestes gentios viv<strong>em</strong> mais à maneira de homens marinhos <strong>que</strong> terrestres; e assim nunca <strong>se</strong> puderamconquistar, posto <strong>que</strong> a isso foram algumas vezes ao Espírito Santo e Rio de Janeiro; por <strong>que</strong>quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> há de vir às mãos com eles, met<strong>em</strong>-<strong>se</strong> dentro das lagoas, onde não há entrá-los a pé n<strong>em</strong>a cavalo, são grandes búzios e nada<strong>do</strong>res, e a braços tomam o peixe ainda <strong>que</strong> <strong>se</strong>jam tubarões, paraos quais levam <strong>em</strong> uma mão um pau de palmo pouco mais, ou menos, <strong>que</strong> lhes met<strong>em</strong> na bocadireito, e como o tubarão fi<strong>que</strong> com a boca aberta, <strong>que</strong> a não pode <strong>se</strong>rrar com o pau, com a outramão lhe tiram por ela as entranhas, e com elas a vida, e o levam para a terra não tanto para oscomer<strong>em</strong>, como para <strong>do</strong>s dentes fazer<strong>em</strong> as pontas das suas flechas, <strong>que</strong> são peçonhentas <strong>em</strong>ortíferas, e para provar<strong>em</strong> forças e ligeireza, como também diz<strong>em</strong> <strong>que</strong> as provam com os vea<strong>do</strong>snas campinas, toman<strong>do</strong>-os a cosso, e ainda com os tigres e onças, e outros feros animais.Estas e outras incredíveis coisas <strong>se</strong> contam deste gentio, creia-as qu<strong>em</strong> qui<strong>se</strong>r, <strong>que</strong> o <strong>que</strong>daqui eu <strong>se</strong>i é, <strong>que</strong> nunca foi alguém a <strong>se</strong>u poder, <strong>que</strong> tornas<strong>se</strong> com vida para as contar; verdade é<strong>que</strong> já hoje há deles mais notícia, por<strong>que</strong> lhes deu uma cruel <strong>do</strong>ença de bexigas, <strong>que</strong> os obrigou anos ir<strong>em</strong> buscar, e <strong>se</strong>r nossos amigos, como ver<strong>em</strong>os no <strong>livro</strong> quinto desta história.


26CAPÍTULO QUARTODa terra e capitania <strong>do</strong> Espírito Santo, <strong>que</strong> el-rei <strong>do</strong>ou a Vasco Fernandes CoutinhoNão teve menos trabalhos com a sua capitania Vasco Fernandes Coutinho, a qu<strong>em</strong> el-rei,pelos muitos <strong>se</strong>rviços <strong>que</strong> lhe havia feito na Índia, lhe fez mercê de 50 léguas de terra por costa, oqual a foi conquistar, e povoar com uma grande frota à sua custa, levan<strong>do</strong> consigo a d. Jorge deMenezes o de Maluco, e d. Simão de Castelo Branco, e outros fidalgos, com os quais avistan<strong>do</strong><strong>primeiro</strong> a <strong>se</strong>rra de Mestre Álvaro, <strong>que</strong> é grande, alta e re<strong>do</strong>nda, foi entrar no Rio <strong>do</strong> Espírito Santo,o qual esta <strong>em</strong> 20°; onde logo à entrada <strong>do</strong> rio, da banda <strong>do</strong> sul, começou a edificar a vila daVitória, <strong>que</strong> agora <strong>se</strong> chama a Vila Velha <strong>em</strong> respeito da outra vila <strong>do</strong> Espírito Santo, <strong>que</strong> depois <strong>se</strong>edificou uma légua mais dentro <strong>do</strong> rio, na ilha de Duarte de L<strong>em</strong>os, por t<strong>em</strong>or <strong>do</strong> gentio: e como oespírito de Vasco Fernandes era grande, deixan<strong>do</strong> ordena<strong>do</strong>s quatro engenhos de açúcar, <strong>se</strong> tornoupara o reino a aviar-<strong>se</strong> para ir pelo <strong>se</strong>rtão a conquistar minas de ouro, e prata, de <strong>que</strong> tinha novas,deixan<strong>do</strong> por <strong>se</strong>u loco-tenente d. Jorge de Menezes, ao qual logo os gentios fizeram tão cruelguerra, <strong>que</strong> lhe <strong>que</strong>imaram os engenhos, e fazendas, e a ele mataram às flechadas, s<strong>em</strong> lhe valer <strong>se</strong>rtão grande capitão, e <strong>que</strong> na Índia, Maluco e outras partes tinha feitas muitas cavalarias.O mesmo fizeram a d. Simão de Castelo Branco, <strong>que</strong> lhe sucedeu na capitania, e a pu<strong>se</strong>ram<strong>em</strong> tal cerco, e aperto, <strong>que</strong> não poden<strong>do</strong> os mora<strong>do</strong>res dela resistir-lhes <strong>se</strong> passaram para outras, etornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> Vasco Fernandes Coutinho <strong>do</strong> reino para a sua, por mais <strong>que</strong> trabalhou o possível pelar<strong>em</strong>ediar, e vingar <strong>do</strong> gentio, não foi <strong>em</strong> sua mão, por estar s<strong>em</strong> gente e munições de guerra, e ogentio pelas vitórias passadas muito soberbo, antes viveu muitos anos mui afronta<strong>do</strong> deles na<strong>que</strong>lailha, até <strong>que</strong> depois pouco a pouco reformou as duas ditas vilas.Mas enfim gasta<strong>do</strong>s muitos mil cruza<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> trouxe da Índia, e muito patrimônio, <strong>que</strong> tinha<strong>em</strong> Portugal, acabou tão pobr<strong>em</strong>ente <strong>que</strong> chegou a lhe dar<strong>em</strong> de comer por amor de Deus, e não <strong>se</strong>i<strong>se</strong> teve um lençol <strong>se</strong>u <strong>em</strong> <strong>que</strong> o amortalhass<strong>em</strong>.Seu filho, <strong>do</strong> mesmo nome, também com muita pobreza viveu, e morreu na mesmacapitania, e não <strong>se</strong> atribua isto à maldade da terra, <strong>que</strong> é antes uma das melhores <strong>do</strong> Brasil; por<strong>que</strong>da muito bom açúcar, e algodão, ga<strong>do</strong> vaccum, e tanto mantimento, frutas e legumes, pesca<strong>do</strong> <strong>em</strong>ariscos, <strong>que</strong> lhe chamava o mesmo Vasco Fernandes o meu Vilão farto.Dá também muitas árvores de bálsamo, de <strong>que</strong> as mulheres misturan<strong>do</strong>-o com a casca dasmesmas árvores pisadas faz<strong>em</strong> muita contaria, <strong>que</strong> <strong>se</strong> manda para o reino, e para outras partes; maso <strong>que</strong> fez mal a estes <strong>se</strong>nhores depois das guerras foi não <strong>se</strong>guir<strong>em</strong> o descobrimento das minas deouro e prata, como determinavam, e parece <strong>que</strong> herdaram deles este descui<strong>do</strong> <strong>se</strong>us sucessores, poisdescobrin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> depois na mesma capitania uma <strong>se</strong>rra de cristal, e esmeraldas, de <strong>que</strong> tenho feitomenção no capítulo quinto <strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> <strong>livro</strong>, n<strong>em</strong> disto <strong>se</strong> trata, n<strong>em</strong> de fortificar-<strong>se</strong> a terra, paradefender-<strong>se</strong> <strong>do</strong>s corsários, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>que</strong> por <strong>se</strong>r o rio estreito <strong>se</strong> pudera fortalecer com facilidade: anteslevan<strong>do</strong>-o pelo espiritual me dis<strong>se</strong> Francisco de Aguiar Coutinho, <strong>se</strong>nhor dela, <strong>que</strong> dis<strong>se</strong>ra a SuaMajestade <strong>que</strong> tinha uma fortaleza na barra da sua capitania, <strong>que</strong> lha defendia, e não havia mistermais, e <strong>que</strong> esta era a ermida de Nossa Senhora da Pena, <strong>que</strong> ali está, aonde <strong>do</strong> Mosteiro <strong>do</strong> NossoPadre S. Francisco, <strong>que</strong> t<strong>em</strong>os na vila <strong>do</strong> Espírito Santo, vão <strong>do</strong>is frades to<strong>do</strong>s os sába<strong>do</strong>s a dizermissa, e a t<strong>em</strong>os a nossa conta; e na verdade a dita ermida <strong>se</strong> pode contar por uma das maravilhas<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, consideran<strong>do</strong>-<strong>se</strong> o sítio, por<strong>que</strong> está sobre um monte alto um pene<strong>do</strong>, <strong>que</strong> é outro monte,a cujo cume <strong>se</strong> sobe por 55 degraus lavra<strong>do</strong>s no mesmo pene<strong>do</strong>, e <strong>em</strong> cima t<strong>em</strong> um plano, <strong>em</strong> <strong>que</strong>está a igreja, e capela, <strong>que</strong> é de abóbada, e ainda fica ao re<strong>do</strong>r por onde ande a procissão cerca<strong>do</strong> depeitoril de parede, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> não pode olhar para baixo s<strong>em</strong> <strong>que</strong> fuja o lume <strong>do</strong>s olhos.


27Nesta ermida esteve antigamente por ermitão um frade leigo da nossa ord<strong>em</strong>, asturiano,chama<strong>do</strong> <strong>frei</strong> Pedro, de mui santa vida, como <strong>se</strong> confirmou <strong>em</strong> sua morte, a qual conheceu algunsdias antes, e <strong>se</strong> an<strong>do</strong>u despedin<strong>do</strong> das pessoas devotas, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> feita a festa de Nossa Senhora,havia de morrer, e assim sucedeu, e o acharam morto de joelhos, e com as mãos levantadas comoquan<strong>do</strong> orava, e na tresladação de <strong>se</strong>us ossos desta igreja para o nosso convento, fez muitosmilagres, e poucos enfermos os tocam com devoção <strong>que</strong> não sar<strong>em</strong> logo, principalmente de febres,como tu<strong>do</strong> consta <strong>do</strong> Instrumento de test<strong>em</strong>unhas <strong>que</strong> esta no arquivo <strong>do</strong> convento.CAPÍTULO QUINTODa capitania de Porto SeguroEsta capitania foi a primeira terra <strong>do</strong> Brasil <strong>que</strong> <strong>se</strong> descobriu por Pedro Álvares Cabral in<strong>do</strong>para a Índia, como está dito no <strong>primeiro</strong> capítulo <strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> <strong>livro</strong>, e dela fez el-rei mercê, e <strong>do</strong>açãode 50 léguas de terra na forma das mais a Pedro <strong>do</strong> Campo Tourinho, natural de Viana, muito vistona arte de marear, o qual arman<strong>do</strong> uma frota de muitos navios à sua custa, com sua mulher e filhos,e alguns parentes, e muitos amigos, partiu de Viana, e des<strong>em</strong>barcou no rio de Porto Seguro, <strong>que</strong> está<strong>em</strong> 16º, e <strong>do</strong>is terços, e <strong>se</strong> fortificou no mesmo lugar onde agora é a vila, cabeça desta capitania:edificou mais a vila de Santa Cruz, e outra de Santo Amaro, onde esta uma ermida de NossaSenhora da Ajuda <strong>em</strong> um monte mui alto, e no meio dele, no caminho pelo qual <strong>se</strong> sobe, uma fontede água milagrosa, assim nos efeitos, <strong>que</strong> Deus obra por meio dela, dan<strong>do</strong> saúde aos enfermos, <strong>que</strong>a beb<strong>em</strong>, como na orig<strong>em</strong>, <strong>que</strong> subitamente a deu o Senhor ali pela oração de um religioso dacompanhia, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> me dis<strong>se</strong> como test<strong>em</strong>unha de vista, e b<strong>em</strong> qualificada, um neto <strong>do</strong> dito Pedro<strong>do</strong> Campo Tourinho, e <strong>do</strong> <strong>se</strong>u próprio nome, meu condiscípulo no estu<strong>do</strong> das Artes e Teologia, edepois Deão da Sé desta Bahia, o qual depois da morte de <strong>se</strong>u avô, <strong>se</strong> veio a viver com sua avó <strong>em</strong>ãe, por sua mãe Leonor <strong>do</strong> Campo, com licença de Sua Majestade, vender a capitania a d. João deLencastre, <strong>primeiro</strong> du<strong>que</strong> de Aveiro, por 100 mil-réis de juro, o qual man<strong>do</strong>u logo capitão <strong>que</strong> agovernas<strong>se</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>u nome, e fizes<strong>se</strong> um Engenho à sua custa, e des<strong>se</strong> ord<strong>em</strong> a <strong>se</strong> fazer<strong>em</strong> outros,como <strong>se</strong> fizeram, posto <strong>que</strong> depois <strong>se</strong> foram desfazen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s, assim por falta de bois, <strong>que</strong> não criaesta terra ga<strong>do</strong> vaccum, por causa de certa erva <strong>do</strong> pasto, <strong>que</strong> o mata, como por os muitos assaltos<strong>do</strong> gentio Aimoré, <strong>em</strong> <strong>que</strong> lhe matavam os escravos, pelo <strong>que</strong> também despovoaram muitosmora<strong>do</strong>res, e <strong>se</strong> passaram para outras capitanias.Porém s<strong>em</strong> isto t<strong>em</strong> outras coisas, pelas quais merecia <strong>se</strong>r b<strong>em</strong> povoada; por<strong>que</strong> no rioGrande, onde parte com a capitania <strong>do</strong>s Ilhéus, t<strong>em</strong> muito pau-<strong>brasil</strong>, e no rio das Caravelas muitozimbo, dinheiro de Angola, <strong>que</strong> são uns buziozinhos mui miú<strong>do</strong>s de <strong>que</strong> levam pipas cheias, etraz<strong>em</strong> por elas navios de negros, e na terra deste rio, e <strong>em</strong> todas as mais <strong>que</strong> há até entestar com asde Vasco Fernandes Coutinho, <strong>se</strong> dá muito b<strong>em</strong> o ga<strong>do</strong> vaccum, e <strong>se</strong> pod<strong>em</strong> com facilidade fazermuitos engenhos.CAPÍTULO SEXTODa capitania <strong>do</strong>s IlhéusQuan<strong>do</strong> el-rei d. João Terceiro repartiu as capitanias <strong>do</strong> Brasil, fez mercê de uma delas, com50 léguas de terra por costa, a Jorge de Figueire<strong>do</strong> Corrêa, escrivão de sua fazenda, a qual começada ponta <strong>do</strong> sul da barra da Bahia, chamada o morro de São Paulo, por diante.Este Jorge de Figueire<strong>do</strong> fez uma frota b<strong>em</strong> provida <strong>do</strong> necessário, e mora<strong>do</strong>res, com a qualman<strong>do</strong>u um castelhano, grande cavaleiro, hom<strong>em</strong> de esforço e experiência, chama<strong>do</strong> Francisco


28Romeiro, o qual des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> no dito morro, começou ali a povoar, e por <strong>se</strong> não contentar <strong>do</strong>sítio, <strong>se</strong> passou para onde esta a vila <strong>do</strong>s Ilhéus, <strong>que</strong> assim <strong>se</strong> chama pelos <strong>que</strong> têm defronte dabarra, e vin<strong>do</strong> as<strong>se</strong>ntar pazes com o gentio Tupiniquim foi com a capitania <strong>em</strong> grande crescimento,e neste esta<strong>do</strong> a vendeu o <strong>do</strong>natário com licença de Sua Majestade a Lucas Giraldes, <strong>que</strong> nela meteugrande cabedal, com <strong>que</strong> veio a ter oito engenhos, ainda <strong>que</strong> os feitores (como costumam fazer noBrasil) lhe davam <strong>em</strong> conta a despesa por receita, mandan<strong>do</strong>-lhe mui pouco ou nenhum açúcar: pelo<strong>que</strong> ele escreveu a um florentino chama<strong>do</strong> Thomaz, <strong>que</strong> lhe pagava com cartas de muita eloqüência,Thomazo, quiere <strong>que</strong> te diga, manda la asucre deixa la parolle, e assinou-<strong>se</strong>, s<strong>em</strong> escrever maisletra.Mas não foi este o mal desta capitania, <strong>se</strong>não a praga <strong>do</strong>s <strong>se</strong>lvagens Aimorés, <strong>que</strong> com <strong>se</strong>usassaltos cruéis, fizeram despovoar os engenhos, e <strong>se</strong> hoje estão já de paz, ficaram os homens tãodesbarata<strong>do</strong>s de escravos, e mais fábrica, <strong>que</strong> <strong>se</strong> contentam com plantar mantimento para comer.Porém no rio <strong>do</strong> Camamu, e nas ilhas de Tinharé e Boepeba, <strong>que</strong> são da mesma capitania, eestão mais perto da Bahia, há alguns bons engenhos e fazendas, e no rio de Taipé, <strong>que</strong> dista só duasléguas <strong>do</strong>s Ilhéus, t<strong>em</strong> Bartolomeu Luiz de Espinha um engenho, e junto dele esta uma lagoa deágua <strong>do</strong>ce, onde há muito e bom peixe <strong>do</strong> mar, e peixes-bois, e um pomar formoso de marmelos,figos e uvas, e frutas de espinhos.CAPÍTULO SÉTIMODa capitania da BahiaToma esta capitania o nome da Bahia por ter uma tão grande, <strong>que</strong> por antonomásia eexcelência <strong>se</strong> levanta com o nome comum, e aproprian<strong>do</strong>-o a si <strong>se</strong> chama a Bahia, e com razão,por<strong>que</strong> t<strong>em</strong> maior recôncavo, mais ilhas, e rios dentro de si, <strong>que</strong> quantas são descobertas no mun<strong>do</strong>,tanto <strong>que</strong> ten<strong>do</strong> hoje 50 engenhos de açúcar, e para cada engenho mais de dez lavra<strong>do</strong>res de canas,de <strong>que</strong> <strong>se</strong> faz o açúcar, to<strong>do</strong>s têm <strong>se</strong>us esteiros, e portos particulares; n<strong>em</strong> há terra <strong>que</strong> tenha tantoscaminhos, por onde <strong>se</strong> navega.As ilhas <strong>que</strong> dentro de si t<strong>em</strong>, entre grandes e pe<strong>que</strong>nas, são 32, só t<strong>em</strong> um <strong>se</strong>não, <strong>que</strong> é não<strong>se</strong> poder defender a entrada <strong>do</strong>s corsários, por<strong>que</strong> t<strong>em</strong> duas bocas, ou barras, uma dentro da outra, aprimeira a leste da ponta <strong>do</strong> padrão da Bahia, ou morro de S. Paulo, <strong>que</strong> é de 12 léguas, a <strong>se</strong>gunda,<strong>que</strong> é a interior ao sul da dita barra, ou ponta <strong>do</strong> Padrão, a ilha de Itaparica, <strong>que</strong> é boca de trêsléguas.Está esta Bahia <strong>em</strong> 13º, e um terço e t<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>u circuito a melhor terra <strong>do</strong> Brasil; por<strong>que</strong>não t<strong>em</strong> tantas áreas como as da banda <strong>do</strong> norte, n<strong>em</strong> tantas penedias como as <strong>do</strong> sul, pelo <strong>que</strong> osíndios velhos comparam o Brasil a uma pomba, cujo peito é a Bahia, e as asas as outras capitanias,por<strong>que</strong> diz<strong>em</strong> <strong>que</strong> na Bahia está a polpa da terra, e assim da o melhor açúcar <strong>que</strong> há nestas partes.Também é tradição antiga entre eles, <strong>que</strong> veio o b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong> Apóstolo São Tomé a estaBahia, e lhes deu a planta da mandioca, e das bananas de São Tomé, de <strong>que</strong> t<strong>em</strong>os trata<strong>do</strong> no<strong>primeiro</strong> <strong>livro</strong>; e eles <strong>em</strong> paga deste benefício, e de lhes ensinar <strong>que</strong> a<strong>do</strong>rass<strong>em</strong> e <strong>se</strong>rviss<strong>em</strong> a Deus,e não ao D<strong>em</strong>ônio, <strong>que</strong> não tivess<strong>em</strong> mais de uma mulher, n<strong>em</strong> comess<strong>em</strong> carne humana, oqui<strong>se</strong>ram matar e comer, <strong>se</strong>guin<strong>do</strong>-o efeito até uma praia, <strong>do</strong>nde o santo <strong>se</strong> passou de uma passada àilha de Maré, distância de meia légua, e daí não sab<strong>em</strong> por onde, devia de <strong>se</strong>r in<strong>do</strong> para a Índia, <strong>que</strong>qu<strong>em</strong> tais passadas dava b<strong>em</strong> podia correr todas estas terras, e qu<strong>em</strong> as havia de correr tambémconvinha <strong>que</strong> des<strong>se</strong> tais passadas.Mas como estes gentios não us<strong>em</strong> de escrituras, não há disto mais outra prova, ou indícios,<strong>que</strong> achar-<strong>se</strong> uma pegada impressa <strong>em</strong> uma pedra na<strong>que</strong>la praia, <strong>que</strong> diziam ficara <strong>do</strong> santo quan<strong>do</strong>


29<strong>se</strong> passou à ilha, onde <strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória fizeram os portugue<strong>se</strong>s no alto uma ermida <strong>do</strong> título, einvocação de São Tomé.Pela banda <strong>do</strong> norte parte esta capitania com a de Pernambuco, pelo rio de São Francisco, oqual era merece<strong>do</strong>r de <strong>se</strong> escrever não só <strong>em</strong> bom capítulo particular, <strong>se</strong>não <strong>em</strong> muitos, pelas muita<strong>se</strong> grandes coisas, <strong>que</strong> dele <strong>se</strong> diz<strong>em</strong>, mas contento-me com passá-las <strong>em</strong> suma, ou a vulto, como heipassa<strong>do</strong> outras, por<strong>que</strong> estão todas as <strong>do</strong> Brasil tão desacreditadas, <strong>que</strong> não <strong>se</strong>i <strong>se</strong> ainda assim o<strong>que</strong>rerão ler.Está este rio <strong>em</strong> altura de 10º, e uma quarta, na boca da barra t<strong>em</strong> duas léguas de largo, entraa maré por ele outras duas somente, e daí para cima é água <strong>do</strong>ce, <strong>do</strong>nde há tão grandes pescarias,<strong>que</strong> <strong>em</strong> quatro dias carregam de peixe quantos caravelões lá vão, e <strong>se</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong> navegam por ele até20 léguas, ainda <strong>que</strong> <strong>se</strong>jam de 50 toneladas de porte.No inverno, nau traz tanta água, n<strong>em</strong> corre tanto como no verão, e no cabo das ditas 20léguas, faz uma cachoeira, por onde a água <strong>se</strong> despenha, e impede a navegação; porém daí pordiante <strong>se</strong> pode navegar <strong>em</strong> barcos, <strong>que</strong> lá <strong>se</strong> armar<strong>em</strong>, até um sumi<strong>do</strong>uro, onde este rio v<strong>em</strong> 10 ou12 léguas por baixo da terra, e também é navegável daí para cima 80 ou 90 léguas, poden<strong>do</strong> navegarbarcos, ainda mui grandes, pela quietação com <strong>que</strong> corre o rio, qua<strong>se</strong> s<strong>em</strong> <strong>se</strong>ntir-<strong>se</strong>, e os índiosAnaupirás navegam por ele <strong>em</strong> canoas.É gentio este <strong>que</strong> ainda não foi trata<strong>do</strong>, e diz<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> ataviam com algumas peças de ouro;pelo <strong>que</strong> Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>se</strong>nhor <strong>que</strong> foi de Pernambuco, tratou no reino destaconquista, mas nunca <strong>se</strong> fez, n<strong>em</strong> o rio <strong>se</strong> povoou até agora mais <strong>que</strong> de alguns currais de ga<strong>do</strong> eroças de farinha ao longo <strong>do</strong> mar, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> assim <strong>que</strong> é capaz de boas povoações, por<strong>que</strong> t<strong>em</strong> muitopau-<strong>brasil</strong> e terras para engenhos.Não trato <strong>do</strong> rio de Sergipe, <strong>do</strong> rio Real e outros, <strong>que</strong> ficam nos limites desta capitania daBahia, por não <strong>se</strong>r prolixo, e também por<strong>que</strong> adiante pode <strong>se</strong>r tenham lugar.Desta capitania da Bahia fez mercê el-rei d. João Terceiro a Francisco Pereira Coutinho,fidalgo mui honra<strong>do</strong>, de grande fama e cavalarias na Índia, o qual veio <strong>em</strong> pessoa com uma grandearmada à sua custa no ano <strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> Senhor de 1535, e des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> da ponta <strong>do</strong> Padrãoda Bahia para dentro <strong>se</strong> fortificou; onde agora chamam a Vila Velha, esteve de paz alguns anos comos gentios, e começou <strong>do</strong>is engenhos levantan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> eles depois, lhos <strong>que</strong>imaram, e lhe fizeramguerra por espaço de <strong>se</strong>te ou oito anos, de maneira <strong>que</strong> lhe foi força<strong>do</strong>, e aos <strong>que</strong> com ele estavam,<strong>em</strong>barcar<strong>em</strong>-<strong>se</strong> <strong>em</strong> caravelões, e acolher<strong>em</strong>-<strong>se</strong> à capitania <strong>do</strong>s Ilhéus, onde o mesmo gentio,obriga<strong>do</strong> da falta <strong>do</strong> resgate <strong>que</strong> com eles faziam, <strong>se</strong> foram ter com eles as<strong>se</strong>ntan<strong>do</strong> pazes, epedin<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornass<strong>em</strong>, como logo fizeram com muita alegria; porém levantan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> umatormenta deram à costa dentro na Bahia na ilha Itaparica, onde o mesmo gentio os matou, e comeu ato<strong>do</strong>s, exceto um Diogo Alvares, por alcunha posta pelos índios o Caramuru, por<strong>que</strong> lhe sabia falara língua, e não <strong>se</strong>i <strong>se</strong> ainda isto bastaria pelo <strong>que</strong> são carniceiros, e ficaram encarniça<strong>do</strong>s noscompanheiros, <strong>se</strong> dele não <strong>se</strong> namorara a filha de um índio principal, <strong>que</strong> tomou a <strong>se</strong>u cargo odefendê-lo, e desta maneira acabou Francisco Pereira Coutinho com to<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u valor, e esforço, e asua capitania com ele.CAPÍTULO OITAVODa capitania de Pernambuco, <strong>que</strong> el-rei <strong>do</strong>ou a Duarte CoelhoAs 50 léguas de terra desta capitania <strong>se</strong> contêm <strong>do</strong> rio de São Francisco, de <strong>que</strong> tratei nocapítulo próximo passa<strong>do</strong>, até o rio de Iguaraçu, de <strong>que</strong> tratei no capítulo <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> deste <strong>livro</strong>, e


30chama-<strong>se</strong> de Pernambuco, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r dizer mar fura<strong>do</strong>, por respeito de uma pedra furada, por onde omar entra, a qual está vin<strong>do</strong> da ilha de Itamaracá, e também <strong>se</strong> poderá assim chamar por respeito <strong>do</strong>porto principal desta capitania, <strong>que</strong> é o mais nomea<strong>do</strong>, e freqüenta<strong>do</strong> de navios <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s os mais<strong>do</strong> Brasil, ao qual <strong>se</strong> entra pela boca de um recife de pedra tão estreita, <strong>que</strong> não cabe mais de umanau enfiada após outra, e entran<strong>do</strong> desta barra, ou recife para dentro, fica logo ali um poço, ousurgi<strong>do</strong>uro, onde v<strong>em</strong> acabar de carregar as naus grandes, e nadam as pe<strong>que</strong>nas carregadas de 100toneladas, ou pouco mais, para o <strong>que</strong> esta ali uma povoação de 200 vizinhos com uma freguesia <strong>do</strong>Corpo Santo, de qu<strong>em</strong> são os mareantes mui devotos, e muitas vendas e tabernas, e os passos deaçúcar, <strong>que</strong> são umas lojas grandes, onde <strong>se</strong> recolh<strong>em</strong> os caixões até <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcar<strong>em</strong> os navios.Esta povoação, <strong>que</strong> <strong>se</strong> chama de Recife, esta <strong>em</strong> 80º uma légua da vila de Olinda, cabeçadesta capitania, aonde <strong>se</strong> vai por mar, e por terra, por<strong>que</strong> é uma ponta de areia como ponte, <strong>que</strong> omar da costa, <strong>que</strong> entra pela dita boca, cinge ao leste, e voltan<strong>do</strong> pela outra parte faz um rio estreito,<strong>que</strong> a cinge ao oeste, pelo qual rio navegam com a maré muitos batéis, e as barcas, <strong>que</strong> levam asfazendas ao vara<strong>do</strong>uro da vila, onde esta a alfândega.A vila <strong>se</strong> chama de Olinda, nome <strong>que</strong> lhe pôs um galego, cria<strong>do</strong> de Duarte Coelho, por<strong>que</strong>andan<strong>do</strong> com outros por entre o mato buscan<strong>do</strong> o sítio onde <strong>se</strong> edificas<strong>se</strong>, achan<strong>do</strong> este, <strong>que</strong> é <strong>em</strong>um monte alto, dis<strong>se</strong> com exclamação e alegria, Olinda.Desta capitania fez el-rei d. João Terceiro mercê a Duarte Coelho, pelos muitos <strong>se</strong>rviços <strong>que</strong>lhe havia feito na Índia na tomada de Malaca, e <strong>em</strong> outras ocasiões, o qual como tinha tão valoroso<strong>se</strong> altos espíritos, fez uma grossa armada <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou com sua mulher d. Beatriz deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e <strong>se</strong>u cunha<strong>do</strong> Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e foi des<strong>em</strong>barcar no rio de Iguaraçu, ondechamam os marcos, por<strong>que</strong> ali <strong>se</strong> d<strong>em</strong>arcam as terras de sua capitania com as de Itamaracá, e asmais <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram a Pero Lopes de Souza, onde já estava uma feitoria de el-rei para o pau-<strong>brasil</strong>, euma fortaleza de madeira <strong>que</strong> el-rei lhe largou, e nela <strong>se</strong> recolheu, e morou alguns anos, e ali lhenasceram <strong>se</strong>us filhos Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e uma filha chamadad. Ignez de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> casou com d. Jerônimo de Moura, e cá morreram ambos, e um filho,<strong>que</strong> houveram, to<strong>do</strong>s três <strong>em</strong> uma s<strong>em</strong>ana.Dali deu Duarte Coelho ord<strong>em</strong> a <strong>se</strong> fazer a vila de Iguaraçu uma légua pelo rio adentro, <strong>do</strong>qual tomou o nome, e também <strong>se</strong> chama a vila de São Cosme e Damião, pela igreja matriz, <strong>que</strong> t<strong>em</strong>deste título, e orago, a qual é mui freqüentada <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res da vila de Olinda, <strong>que</strong> dista delaquatro léguas, e de outras partes mais distantes, pelos muitos milagres, <strong>que</strong> o Senhor faz pelosmerecimentos, e intercessão <strong>do</strong>s santos.Esta vila encarregou Duarte Coelho a um hom<strong>em</strong> honra<strong>do</strong> Viannez chama<strong>do</strong> AfonsoGonçalves, <strong>que</strong> já o havia acompanha<strong>do</strong> da Índia. Da vila de Iguaraçu, ou <strong>do</strong>s santos Cosmos,man<strong>do</strong>u vir de Viana <strong>se</strong>us parentes, <strong>que</strong> tinha muitos, e mui pobres, os quais vieram logo com suasmulheres e filhos, e começaram a lavrar a terra entre os mais mora<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> já havia plantan<strong>do</strong>mantimentos e canas de açúcar, para o qual começava já o capitão a fazer um engenho, e <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> osajudavam os gentios, <strong>que</strong> estavam de paz, e entravam e saíam da vila com <strong>se</strong>us resgates, ou s<strong>em</strong>eles, cada vez <strong>que</strong> <strong>que</strong>riam, mas <strong>em</strong>bebedan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> uma vez uns poucos <strong>se</strong> começaram a ferir, <strong>em</strong>atar de mo<strong>do</strong>, <strong>que</strong> foi necessário mandar o capitão alguns brancos com <strong>se</strong>us escravos, <strong>que</strong> osapartass<strong>em</strong>, ainda <strong>que</strong> contra o parecer <strong>do</strong>s nossos línguas, e intérpretes, <strong>que</strong> lhe dis<strong>se</strong>ram osdeixas<strong>se</strong> brigar, e <strong>que</strong>brar as cabeças uns aos outros; por<strong>que</strong> <strong>se</strong> lhes acudiam, como s<strong>em</strong>pre <strong>se</strong>recei<strong>em</strong> <strong>do</strong>s brancos, haviam cuidar <strong>que</strong> os iam prender, e cativar, e <strong>se</strong> haviam de pôr <strong>em</strong>resistência, e assim foi, <strong>que</strong> logo <strong>se</strong> fizeram <strong>em</strong> um corpo, e com a mesma fúria, <strong>que</strong> uns traziamcontra os outros, <strong>se</strong> tornaram to<strong>do</strong>s os nossos, s<strong>em</strong> bastar vir depois o mesmo capitão com maisgente para os acabar de aquietar, e o pior foi <strong>que</strong> alguns, <strong>que</strong> ficaram fora da bebedice, <strong>se</strong> foramlogo corren<strong>do</strong> à sua aldeia apelidan<strong>do</strong> arma; por<strong>que</strong> os brancos <strong>se</strong> haviam já descoberto com eles, e


31tinham presos, mortos, e cativos, e feri<strong>do</strong>s quantos estavam na vila, e assim o iriam fazen<strong>do</strong> pelasaldeias, e para mais confirmação desta mentira levavam uns <strong>do</strong>s mortos, <strong>que</strong> era filho <strong>do</strong> principalda aldeia, com a cabeça <strong>que</strong>brada, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> por ali veriam <strong>se</strong> falavam verdade, o qual visto, eouvi<strong>do</strong> pelo principal, e pelos mais <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram logo <strong>em</strong> arma, e foram dar nos escravos <strong>do</strong> capitão,<strong>que</strong> andavam no mato cortan<strong>do</strong> madeira, onde mataram um, os outros fugiram para a vila a contar o<strong>que</strong> <strong>se</strong> passava; e não bastou mandar-lhes o capitão dizer <strong>que</strong> os <strong>se</strong>us próprios fizeram a briga, e s<strong>em</strong>ataram uns aos outros com a bebedice, e <strong>que</strong> os brancos foram só apartá-los, e eram <strong>se</strong>us amigos;nada disto bastou, antes apeli<strong>do</strong>u o principal o das outras aldeias mandan<strong>do</strong>-lhes parte <strong>do</strong> escravo<strong>do</strong> capitão, <strong>que</strong> haviam morto, para <strong>que</strong> <strong>se</strong> cevass<strong>em</strong> nela, como os da sua haviam feito na outra eassim <strong>se</strong> ajuntaram infinitos, e pu<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> cerco a vila, dan<strong>do</strong>-lhe muitos assaltos, e matan<strong>do</strong>alguns mora<strong>do</strong>res, e entre eles o capitão Afonso Gonçalves de uma flechada, <strong>que</strong> lhe deram por umolho, e lhe penetrou até os miolos, o qual os da vila recolheram, e enterraram com tanto <strong>se</strong>gre<strong>do</strong>,<strong>que</strong> o não souberam os inimigos <strong>em</strong> <strong>do</strong>is anos, <strong>que</strong> durou o cerco, antes viam tanto vigia, econcerto, <strong>que</strong> parecia estar dentro algum grande capitão, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>que</strong> cada um o era de si mesmo, e anecessidade de to<strong>do</strong>s; por<strong>que</strong> até as mulheres vigiavam o <strong>se</strong>u quarto na fortaleza enquanto oshomens <strong>do</strong>rmiam, e estan<strong>do</strong> elas de posto uma noite, ven<strong>do</strong> os inimigos tanto silêncio, <strong>que</strong> parecianão haver ali gente, subiram alguns, e começaram a entrar pelas portinholas das peças, mas elas,<strong>que</strong> os haviam <strong>se</strong>nti<strong>do</strong> subir, os estavam aguardan<strong>do</strong> com suas partasanas nas mãos, e quan<strong>do</strong>estavam já com meio corpo dentro lhas meteram pelos peitos, e os passaram de parte a parte, e umanão contente com isso tomou um tição, e pôs fogo a uma peça com <strong>que</strong> fez fugir os outros, eespertar os nossos, <strong>que</strong> foi um feito mui heróico para mulheres ter<strong>em</strong> tanto silêncio, e tanto ânimo.O aperto maior <strong>que</strong> houve neste cerco foi o da fome; por<strong>que</strong> <strong>se</strong> não podiam valer de suasroças, onde tinham o mantimento, n<strong>em</strong> <strong>do</strong> mar para pescar e mariscar, e <strong>se</strong> da ilha de Itamaracá osnão socorreram pelo rio <strong>em</strong> um barco, s<strong>em</strong> dúvida morreram to<strong>do</strong>s à fome; e ainda este socorro lhequi<strong>se</strong>ram estorvar por muitos mo<strong>do</strong>s, mandan<strong>do</strong> ameaçar aos da ilha, <strong>que</strong> só por isto lhes iriamfazer guerra, e esperan<strong>do</strong> o barco; quan<strong>do</strong> passava, lhe tiravam de terra muitas flechadas, pelo <strong>que</strong>era necessário ir mui b<strong>em</strong> <strong>em</strong>pavesa<strong>do</strong>, e contu<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre feriam alguns r<strong>em</strong>eiros, e uma vezdeterminaram fazer uma armadilha com <strong>que</strong> metess<strong>em</strong> o barco no fun<strong>do</strong> com quantos iam nele, epara este efeito cortaram uma grande árvore, <strong>que</strong> estava <strong>em</strong> uma ponta de terra, por onde haviam deir costean<strong>do</strong>, e não a cortaram de to<strong>do</strong>, <strong>se</strong>não quanto <strong>se</strong> tinha por uma corda, para <strong>que</strong> quan<strong>do</strong>passas<strong>se</strong> o barco por junto dela então a largass<strong>em</strong> e deixass<strong>em</strong> cair; mas quis Deus <strong>que</strong> eles caíss<strong>em</strong>na armadilha, <strong>que</strong> fizeram, por<strong>que</strong> a árvore não caiu para fora, <strong>se</strong>não para a terra, e os colheudebaixo, matan<strong>do</strong> e ferin<strong>do</strong> a muitos.Outros muitos milagres obrou Nosso Senhor neste cerco, pela intervenção <strong>do</strong>s b<strong>em</strong>aventura<strong>do</strong>sS. Cosme e Damião, padroeiros desta vila, <strong>que</strong> <strong>se</strong> isto não fora não <strong>se</strong> puderamsustentar com tantas necessidades quantas padeciam.N<strong>em</strong> Duarte Coelho os podia socorrer, por estar também neste t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> contínuos assaltos<strong>do</strong> gentio na vila de Olinda, e lhe ter<strong>em</strong> por terra to<strong>do</strong>s os caminhos toma<strong>do</strong>s; somente man<strong>do</strong>ulevar <strong>em</strong> uns barcos as crianças, e a mais gente, <strong>que</strong> não pudes<strong>se</strong> pelejar; por<strong>que</strong> não estorvass<strong>em</strong>,n<strong>em</strong> comess<strong>em</strong> o mantimento aos mais, <strong>que</strong> não foi pe<strong>que</strong>no acor<strong>do</strong> para a<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po, até <strong>que</strong> quisNosso Senhor, <strong>que</strong> os mesmos inimigos, cansa<strong>do</strong>s já de pelejar, <strong>se</strong> pacificaram, e tornaram a terpaz, e amizade com os brancos, com o <strong>que</strong> tornaram a fazer suas fazendas.CAPÍTULO NONODe como Duarte Coelho correu a costa da sua capitania, fazen<strong>do</strong>guerra aos france<strong>se</strong>s, e paz com o gentio, e <strong>se</strong> foi para o reino


32Não menos foi o aperto <strong>em</strong> <strong>que</strong> Duarte Coelho / como t<strong>em</strong>os toca<strong>do</strong> / teve tu<strong>do</strong> este t<strong>em</strong>pona vila de Olinda, ten<strong>do</strong>-o por algumas vezes os inimigos posto <strong>em</strong> cerco <strong>em</strong> a sua torre, commuitas necessidades de fome e <strong>se</strong>de, contra qu<strong>em</strong> não valiam as balas, <strong>que</strong> valorosamente atiravamde dentro, ainda <strong>que</strong> com elas matavam muitos gentios e france<strong>se</strong>s: mas Deus Nosso Senhor, <strong>que</strong>excitou o ânimo de Raab, mulher desonesta, para <strong>que</strong> escondes<strong>se</strong> as espias de <strong>se</strong>u povo, e fos<strong>se</strong>instrumento da vitória <strong>que</strong> <strong>se</strong> alcançou contra Jericó, a excitou também a filha de um principaldestes gentios, <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia afeiçoa<strong>do</strong> a um Vasco Fernandes de Lucena, e de qu<strong>em</strong> tinha já filhos,para <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> entre os <strong>se</strong>us, e gaban<strong>do</strong> os brancos às outras as trouxess<strong>em</strong> todas carregadas decabaças de água, e mantimentos, com <strong>que</strong> os nossos <strong>se</strong> sustinham; por<strong>que</strong> isto faziam muitas vezes,e com muito <strong>se</strong>gre<strong>do</strong>, e era este Vasco Fernandes tão b<strong>em</strong> t<strong>em</strong>i<strong>do</strong> e estima<strong>do</strong> entre os gentios, <strong>que</strong> oprincipal <strong>se</strong> tinha por honra<strong>do</strong> <strong>em</strong> tê-lo por genro, por<strong>que</strong> o tinham por grande feiticeiro; e assimuma vez <strong>que</strong> o cerco era mais aperta<strong>do</strong> e estavam os de dentro receosos de os entrar<strong>em</strong>, saiu ele sófora, e lhes começou a pregar na sua língua brasílica, <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> amigos <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, comoeles o eram <strong>se</strong>us, e não <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> os enganavam, e traziam ali para <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> mortos, elogo fez uma risca no chão com um bordão, <strong>que</strong> levava, dizen<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> <strong>se</strong> avisass<strong>em</strong>, <strong>que</strong>nenhum passas<strong>se</strong> da<strong>que</strong>la risca para a fortaleza, por<strong>que</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>que</strong> passass<strong>em</strong> haviam de morrer,ao <strong>que</strong> o gentio deu uma grande risada, fazen<strong>do</strong> zombaria disto, e <strong>se</strong>te ou oito indigna<strong>do</strong>s <strong>se</strong> foram aele para o matar<strong>em</strong>, mas, <strong>em</strong> passan<strong>do</strong> a risca, caíram to<strong>do</strong>s mortos; o <strong>que</strong> visto pelos maislevantaram o cerco, e <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> fugida.Não crera eu isto, posto <strong>que</strong> o vi escrito por pessoa, <strong>que</strong> o afirmava, <strong>se</strong> não soubera <strong>que</strong>neste próprio lugar, onde <strong>se</strong> fez à risca, defronte da torre, <strong>se</strong> edificou depois um suntuoso t<strong>em</strong>plo <strong>do</strong>Salva<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> é matriz das mais igrejas de Olinda, onde <strong>se</strong> celebram os divinos ofícios, com muitasolenidade e, assim não <strong>se</strong> há de atribuir aos feitiços <strong>se</strong>não à Divina Providência, <strong>que</strong> quis com est<strong>em</strong>ilagre sinalar o sítio, e imunidade <strong>do</strong> <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>plo.Com estas e outras vitórias, alcançadas mais por milagres de Deus, <strong>que</strong> por forças humanas,cobrou Duarte Coelho tanto ânimo, <strong>que</strong> não <strong>se</strong> contentou de ficar na sua povoação pacífico, <strong>se</strong>nãoir-<strong>se</strong> <strong>em</strong> suas <strong>em</strong>barcações pela costa abaixo até o rio de S. Francisco, entran<strong>do</strong> nos portos to<strong>do</strong>s desua capitania, onde achou naus francesas, <strong>que</strong> estavam ao resgate de pau-<strong>brasil</strong> com o gentio, e asfez despejar os portos, e tomou algumas lanças e france<strong>se</strong>s, posto <strong>que</strong> não tanto a <strong>se</strong>u salvo, e <strong>do</strong>s<strong>se</strong>us, <strong>que</strong> não ficass<strong>em</strong> muitos feri<strong>do</strong>s, e ele de uma bombardada, de <strong>que</strong> an<strong>do</strong>u muito t<strong>em</strong>pomaltrata<strong>do</strong>, e contu<strong>do</strong> não <strong>se</strong> quis recolher até não a limpar a costa toda destes ladrões, e fazer pazescom os mais <strong>do</strong>s índios, e isto feito <strong>se</strong> tornou para a sua povoação com muitos escravos, <strong>que</strong> lhederam os índios, <strong>do</strong>s <strong>que</strong> tinham toma<strong>do</strong>s nas suas guerras, <strong>que</strong> uns lá tinham com os outros, o <strong>que</strong>fez também muito t<strong>em</strong>i<strong>do</strong>, e estima<strong>do</strong> <strong>do</strong>s circunvizinhos de Olinda, dizen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s <strong>que</strong> a<strong>que</strong>lehom<strong>em</strong> devia <strong>se</strong>r algum diabo imortal, pois <strong>se</strong> não contentava de pelejar <strong>em</strong> sua casa com eles, ecom os france<strong>se</strong>s, mas ainda ia buscar fora com qu<strong>em</strong> pelejar, e com isto mais por me<strong>do</strong> <strong>que</strong> porvontade lhe foram dan<strong>do</strong> lugar para fazer um engenho uma légua da vila, e <strong>se</strong>u cunha<strong>do</strong> Jerônimode Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> outro; e os lavra<strong>do</strong>res suas roças de mantimentos, e canaviais, a <strong>que</strong> o gentio osvinha ajudar, e lhes traziam muitas galinhas, caças, e frutas <strong>do</strong> mato, peixe, e mariscos a troco deanzóis, facas, foices, e macha<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> eles estimavam muito.Fez também caravelões, e lanchas <strong>em</strong> <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> resgatar com os da costa com <strong>que</strong> tinhafeito pazes, <strong>do</strong>nde a troco das mesmas ferramentas, e de outras coisas de pouca valia, resgatavammuitos escravos e escravas, de <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>se</strong>rviam, e os casavam com outros livres, <strong>que</strong> os <strong>se</strong>rviamtambém como os cativos.Ven<strong>do</strong> Duarte Coelho <strong>que</strong> a terra estava quieta, e os mora<strong>do</strong>res contentes, determinou ir-<strong>se</strong> aPortugal com <strong>se</strong>us filhos, deixan<strong>do</strong> o governo da capitania a <strong>se</strong>u cunha<strong>do</strong> Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong><strong>em</strong> companhia da irmã.


33O intento <strong>que</strong> o levou devia <strong>se</strong>r para re<strong>que</strong>rer <strong>se</strong>us <strong>se</strong>rviços, <strong>que</strong> na verdade eram grandes; eainda <strong>que</strong> eram para <strong>se</strong>u proveito, e de <strong>se</strong>us descendentes, aos quais rende hoje a capitania perto devinte mil cruza<strong>do</strong>s: muito mais eram para el-rei, a qu<strong>em</strong> só os dízimos passam cada ano de 60 milcruza<strong>do</strong>s, fora o pau-<strong>brasil</strong>, e direitos <strong>do</strong> açúcar, <strong>que</strong> importam muito os desta capitania por havernela c<strong>em</strong> engenhos; porém como ainda então não havia tantos, n<strong>em</strong> tanta renda, e devia estarmexerica<strong>do</strong> com el-rei, <strong>que</strong> lhe tomava a jurisdição, quan<strong>do</strong> lhe foi beijar a mão lho r<strong>em</strong>ocou, e orecebeu com tão pouca graça, <strong>que</strong> in<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para casa enfermou de nojo, e morreu daí a poucos dias;pelo <strong>que</strong> in<strong>do</strong> Afonso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> com dó ao passo, e saben<strong>do</strong> el-rei dele por qu<strong>em</strong> o trazia, lhedis<strong>se</strong>: Pesa-me <strong>se</strong>r morto Duarte Coelho, por<strong>que</strong> era muito bom cavaleiro. Esta foi a paga de <strong>se</strong>us<strong>se</strong>rviços, mas mui diferente a <strong>que</strong> de Deus receberia, <strong>que</strong> é só o <strong>que</strong> paga dignamente, e ainda ultracondignum, aos <strong>que</strong> o <strong>se</strong>rv<strong>em</strong>.CAPÍTULO DÉCIMODe como na ausência de Duarte Coelho ficou governan<strong>do</strong> Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> a Capitania dePernambuco, e <strong>do</strong> <strong>que</strong> nela aconteceu neste t<strong>em</strong>poRazão tinha / <strong>se</strong> tivera perfeito uso dela / o gentio desta capitania para não <strong>se</strong> inquietar, einquietá-la com a ausência de Duarte Coelho, pois ficava <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar sua mulher d. Beatriz deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> a to<strong>do</strong>s tratava como filhos, e Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>se</strong>u irmão, <strong>que</strong> assim porsua natural brandura, e boa condição, como por ter muitos filhos das filhas <strong>do</strong>s principais, os tratavaa eles com respeito. Mas como é gente <strong>que</strong> <strong>se</strong> leva mais por t<strong>em</strong>or, <strong>que</strong> por amor, tanto <strong>que</strong> viramau<strong>se</strong>ntes o <strong>que</strong> t<strong>em</strong>iam, começaram a fazer das suas, matan<strong>do</strong>, e comen<strong>do</strong> a quantos brancos enegros <strong>se</strong>us escravos encontravam pelos caminhos, e o pior era <strong>que</strong> n<strong>em</strong> por isto deixavam de lhesvir a casa com <strong>se</strong>us resgates, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> eles o não faziam, <strong>se</strong>não alguns velhacos, <strong>que</strong> haviammister b<strong>em</strong> castiga<strong>do</strong>s.Muito dava isto <strong>em</strong> <strong>que</strong> entender a Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> por não saber <strong>que</strong> con<strong>se</strong>lhotomas<strong>se</strong>, e assim chamou a ele os oficiais da Câmara, e outras pessoas <strong>que</strong> o podiam dar, e juntos<strong>em</strong> sua casa lhes perguntou o <strong>que</strong> faria, começou logo cada um a dizer o <strong>que</strong> <strong>se</strong>ntia, e os mais foramde parecer <strong>que</strong> os castigass<strong>em</strong>, e lhes fizess<strong>em</strong> guerra, mas não concordan<strong>do</strong> no mo<strong>do</strong> dela, <strong>se</strong>desfez a junta s<strong>em</strong> resolução <strong>do</strong> caso, e <strong>se</strong> foi cada um para sua casa, só ficaram alguns, <strong>que</strong> melhor<strong>se</strong>ntiam, e entre eles um chama<strong>do</strong> Vasco Fernandes de Lucena, hom<strong>em</strong> grave, e muitoexperimenta<strong>do</strong> nesta matéria de índios <strong>do</strong> Brasil, <strong>que</strong> lhes sabia b<strong>em</strong> a língua, e as tretas de <strong>que</strong>usam, o qual dis<strong>se</strong> ao governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> não era b<strong>em</strong> dar guerra a este gentio s<strong>em</strong> <strong>primeiro</strong> averiguarquais eram os culpa<strong>do</strong>s, por<strong>que</strong> não ficass<strong>em</strong> pagan<strong>do</strong> os justos pelos peca<strong>do</strong>res; e <strong>que</strong> ele / <strong>se</strong> lhedava licença / daria ord<strong>em</strong> e traça com <strong>que</strong> eles mesmos <strong>se</strong> descobriss<strong>em</strong>, e acusass<strong>em</strong> uns aosoutros, e sobre isso ficass<strong>em</strong> entre si divisos, e inimigos mortais, <strong>que</strong> era o <strong>que</strong> mais importava;por<strong>que</strong> to<strong>do</strong> o reino <strong>em</strong> si diviso <strong>se</strong>rá assola<strong>do</strong>, e uns aos outros <strong>se</strong> destruíram s<strong>em</strong> nós lhesfazermos guerra, e quan<strong>do</strong> fos<strong>se</strong> necessário fazer-lha, nos ajudaríamos <strong>do</strong> ban<strong>do</strong> contrário, <strong>que</strong> fois<strong>em</strong>pre o mo<strong>do</strong> mais fácil das guerras, <strong>que</strong> os portugue<strong>se</strong>s fizeram no Brasil, e para isto mandas<strong>se</strong>logo ordenar muitos vinhos, e convidar os principais das aldeias, para <strong>que</strong> os viess<strong>em</strong> beber, e nomais deixas<strong>se</strong> a ele o cargo.Pareceu isto b<strong>em</strong> aos <strong>que</strong> ali estavam, e o governa<strong>do</strong>r encomendan<strong>do</strong>-lhes o <strong>se</strong>gre<strong>do</strong> comoconvinha, man<strong>do</strong>u fazer os vinhos, e eles feitos man<strong>do</strong>u chamar os principais das aldeias <strong>do</strong>sgentios, e tanto <strong>que</strong> vieram os man<strong>do</strong>u agasalhar pelos línguas, ou intérpretes, <strong>que</strong> o fizeram ao <strong>se</strong>umo<strong>do</strong> beben<strong>do</strong> com eles, por<strong>que</strong> não suspeitass<strong>em</strong> ter o vinho peçonha, e o bebess<strong>em</strong> de boavontade, e depois <strong>que</strong> estiveram carrega<strong>do</strong>s, lhes dis<strong>se</strong> Vasco Fernandes de Lucena <strong>que</strong> o


34governa<strong>do</strong>r os mandava chamar por<strong>que</strong> determinava ir fazer guerra aos Tobayoyas (Tobayáras?),<strong>que</strong> eram outros gentios <strong>se</strong>us contrários, o <strong>que</strong> não <strong>que</strong>ria fazer s<strong>em</strong> sua ajuda; porém como entreeles havia .alguns velhacos, como eles mesmos confessavam, <strong>que</strong> ainda <strong>em</strong> sua pre<strong>se</strong>nça matavam,e comiam os portugue<strong>se</strong>s, e os <strong>se</strong>us escravos, <strong>que</strong> achavam pelos caminhos, <strong>se</strong> receava <strong>que</strong> <strong>em</strong> suaausência viriam a suas casas a matar suas mulheres e filhos, pelo <strong>que</strong> era necessário, antes <strong>que</strong> <strong>se</strong>partiss<strong>em</strong>, saber qu<strong>em</strong> eram estes para os castigar, e pr<strong>em</strong>iar os bons; e como eles / deve de <strong>se</strong>r pelavirtude <strong>do</strong> vinho, <strong>que</strong> entre outras t<strong>em</strong> também esta / nunca falam verdade, <strong>se</strong>não quan<strong>do</strong> estãobêba<strong>do</strong>s, começaram a nomear os culpa<strong>do</strong>s, e sobre isto vieram às pancadas, e flechadas, ferin<strong>do</strong>-<strong>se</strong>,e matan<strong>do</strong> uns aos outros, até <strong>que</strong> acudiu o governa<strong>do</strong>r Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e os prendeu; edepois de averiguar quais foram os homicidas <strong>do</strong>s brancos, uns man<strong>do</strong>u pôr <strong>em</strong> bocas debombardas, e dispará-las à vista <strong>do</strong>s mais, para <strong>que</strong> os viss<strong>em</strong> voar feitos pedaços, e outros entregouaos acusa<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> os mataram <strong>em</strong> terreiros, e os comeram <strong>em</strong> confirmação da sua inimizade, eassim a tiveram daí avante tão grande como <strong>se</strong> fora de muitos anos, e <strong>se</strong> dividiram <strong>em</strong> <strong>do</strong>is ban<strong>do</strong>s,fican<strong>do</strong> os acusa<strong>do</strong>res com os <strong>se</strong>us <strong>se</strong>quazes, <strong>que</strong> era o maior número, onde dantes estavam, da vilaaté a mata <strong>do</strong> pau-<strong>brasil</strong>, por onde tiveram os portugue<strong>se</strong>s lugar de <strong>se</strong> alargar<strong>em</strong> por esta parte, efazer<strong>em</strong> <strong>se</strong>us engenhos, e fazendas, assim na várzea de Capiguaribe, <strong>que</strong> é a melhor de toda estacapitania, como <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o espaço, <strong>que</strong> há até a vila de Iguaraçu; e a gente <strong>do</strong>s culpa<strong>do</strong>s, eacusa<strong>do</strong>res, <strong>se</strong> passou para as matas <strong>do</strong> cabo de Santo Agostinho, louvan<strong>do</strong> aos portugue<strong>se</strong>s <strong>que</strong>haviam feito justiça.Porém de lá vinham fazer tanta guerra a estoutros nossos amigos de uma grande cerca, <strong>que</strong>fizeram nos outeiros, <strong>que</strong> cercam a várzea de Capiguaribe da banda <strong>do</strong> sul, chama<strong>do</strong>s Guararapes,<strong>que</strong> foi necessário ao capitão-mor Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> ir dar nela com os brancos, <strong>que</strong> pôdeajuntar, e mais de dez mil de estoutros índios, <strong>que</strong> para isto <strong>se</strong> lhe ofereceram de boa vontade, ecomo eram tantos, e os da cerca 600 flecheiros, com muita confiança r<strong>em</strong>eteram a ela, e aacometeram por todas as partes, parecen<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> já a tinham ganhada, mas os de dentro, comoandavam mais resguarda<strong>do</strong>s, <strong>se</strong> defenderam, e os ofenderam de mo<strong>do</strong> matan<strong>do</strong> e ferin<strong>do</strong> tantos, <strong>que</strong>foi força<strong>do</strong> aos capitães, depois de muitas horas de peleja, mandá-los recolher para uma caiçara, oucerca de rama, <strong>que</strong> fizeram 25 braças afastada da <strong>do</strong>s contrários, e houve toda a<strong>que</strong>la noite grandejogo de pulhas, e bravatas de parte a parte, como costumam: dizen<strong>do</strong>, todavia, os contrários s<strong>em</strong>pre<strong>que</strong> não o haviam com os brancos, antes <strong>que</strong>riam sua amizade, <strong>se</strong>não com os índios, e assim omostraram o dia <strong>se</strong>guinte, por<strong>que</strong> estan<strong>do</strong> os nossos portugue<strong>se</strong>s, e índios muito descuida<strong>do</strong>s,cuidan<strong>do</strong> <strong>que</strong> não os viriam buscar, eles com um socorro de duzentos flecheiros, <strong>que</strong> lhes veio deoutra aldeia, saíram com tanta pressa, e os cometeram com tanta fúria, <strong>que</strong> a muitos não deramlugar para tomar armas, e s<strong>em</strong> elas, e s<strong>em</strong> ord<strong>em</strong> alguma lançaram a fugir, tira<strong>do</strong> o capitão-morJerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> <strong>se</strong> foi retiran<strong>do</strong> com os portugue<strong>se</strong>s ordenadamente, mas não tanto a<strong>se</strong>u salvo <strong>que</strong> lhe não <strong>que</strong>brass<strong>em</strong> um olho com uma flecha na<strong>que</strong>la primeira r<strong>em</strong>etida, <strong>que</strong> depoisnão qui<strong>se</strong>ram <strong>se</strong>gui-los <strong>se</strong>não aos negros, <strong>que</strong> iam fugin<strong>do</strong>, nos quais fizeram grande destruição, <strong>em</strong>atança, de <strong>que</strong> depois <strong>se</strong> vingaram in<strong>do</strong> com Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> por morte de <strong>se</strong>upai veio com <strong>se</strong>u irmão Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> a governar esta sua capitania, e foi dar guerra a estegentio <strong>do</strong> cabo, como a <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po contar<strong>em</strong>os.CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRODa capitania de ItamaracáJá diss<strong>em</strong>os no capítulo <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> como Pero Lopes de Souza não tomou as 50 léguas deterra, de <strong>que</strong> el-rei lhe fez mercê, todas juntas, <strong>se</strong>não repartidas, 25 da capitania de São Vicente para


35o sul, e outras 25 da capitania de Pernambuco para o norte, a <strong>que</strong> chamam de Itamaracá por respeitode uma ilha assim chamada, na qual está situada a vila da Conceição com uma igreja matriz <strong>do</strong>mesmo título, e outra da Santa Mi<strong>se</strong>ricórdia.A ilha t<strong>em</strong> duas léguas de compri<strong>do</strong>, ou pouco mais, ao re<strong>do</strong>r dela v<strong>em</strong> des<strong>em</strong>bocar cincorios, <strong>do</strong>s quais, o de Iguaraçu, <strong>que</strong> d<strong>em</strong>arca e extr<strong>em</strong>a esta capitania da de Pernambuco, e está <strong>em</strong> 7ºe um terço, alaga da ilha da parte <strong>do</strong> sul, onde está a dita vila, e o porto <strong>do</strong>s Navios, os quais paraentrar<strong>em</strong> t<strong>em</strong> por baliza, e sinal umas barreiras vermelhas, com as quais pon<strong>do</strong>-<strong>se</strong> nordeste su<strong>do</strong>esteentram pela barra à vontade. Outra barra t<strong>em</strong> a ilha à parte <strong>do</strong> norte, pela qual entram caravelões dacosta.Os outros rios <strong>que</strong> da terra firme vêm des<strong>em</strong>bocar ao re<strong>do</strong>r desta ilha são os de Araripe,Tapir<strong>em</strong>a, Tujucupapo e Gueena, nos quais há mui bons engenhos de açúcar principalmente nesteúltimo de Gueena, onde está outra freguesia.Nesta ilha de Itamaracá tinham os france<strong>se</strong>s feito uma fortaleza com um presídio de mais dec<strong>em</strong> solda<strong>do</strong>s, com muitas munições, e artilharia, onde <strong>se</strong> recolhia a gente <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us navios quan<strong>do</strong>vinham a carregar de pau-<strong>brasil</strong>, <strong>que</strong> os gentios lhe cortavam, e acarretavam aos ombros a troco deferramenta e outros resgates de pouca valia, <strong>que</strong> lhes davam, como também lhes traziam a troco <strong>do</strong>smesmos muito algodão, e fia<strong>do</strong>, e redes feitas <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>do</strong>rm<strong>em</strong>, bugios, papagaios, pimenta e outrascoisas <strong>que</strong> a terra dá, <strong>que</strong> para os france<strong>se</strong>s era de muito ganho, e por esta causa assim neste portocomo nos mais <strong>do</strong> Brasil comerciavam com o gentio, e os alteravam contra os portugue<strong>se</strong>s,induzin<strong>do</strong>-os <strong>que</strong> os não con<strong>se</strong>ntiss<strong>em</strong> povoar, antes os matass<strong>em</strong> e comess<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> o mesmovinham eles a fazer, o qual sabi<strong>do</strong> por el-rei d. João Terceiro, ordenou uma armada mui b<strong>em</strong>provida de to<strong>do</strong> o necessário, e man<strong>do</strong>u nela por capitão-mor Pero Lopes de Souza, para <strong>que</strong> vies<strong>se</strong>primeiramente a esta ilha, e daqui a to<strong>do</strong>s os mais portos, e lanças<strong>se</strong> dele to<strong>do</strong>s os france<strong>se</strong>s <strong>que</strong>achas<strong>se</strong>, e destruís<strong>se</strong> suas fortalezas e feitorias, levantan<strong>do</strong> outras, <strong>do</strong>nde lhe carregass<strong>em</strong> o pau<strong>brasil</strong>por sua conta, por<strong>que</strong> esta era a droga <strong>que</strong> tomava para si.Esta armada partiu de Lisboa, e navegou prosperamente até avistar a ilha de Itamaracá at<strong>em</strong>po <strong>que</strong> havia dela saí<strong>do</strong> uma nau francesa carregada para França, a qual cui<strong>do</strong>u fugir-lhe, masman<strong>do</strong>u atrás dela uma caravela muito ligeira, e por capitão dela um João Gonçalves, hom<strong>em</strong> de suacasa, de cujo esforço tinha muita confiança, pela experiência <strong>que</strong> dele tinha de outras armadas <strong>em</strong><strong>que</strong> o acompanhou contra os corsários na costa de Portugal e de Castela; e como a caravela era umpensamento, e a nau francesa sobrecarregada, posto <strong>que</strong> alojou muita parte da carga <strong>do</strong> pau-<strong>brasil</strong>,enfim foi alcançada, e <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> <strong>se</strong> pôr <strong>em</strong> defesa lhe tiraram da nossa com um pelouro de cadeia,<strong>que</strong> a colheu de proa a popa, e a de<strong>se</strong>nxarceou de uma banda, e lhe matou alguns homens, com o<strong>que</strong> <strong>se</strong> renderam os mais, <strong>que</strong> eram 35 entre grandes e pe<strong>que</strong>nos, e a nau com oito peças deartilharia, com a qual presa <strong>se</strong> tornou o capitão João Gonçalves, haven<strong>do</strong> já 27 dias <strong>que</strong> o capitãomorestava na ilha, onde teve informação de outra nau <strong>que</strong> vinha de França com munições eresgates aos france<strong>se</strong>s, e a man<strong>do</strong>u esperar por outras duas caravelas, de <strong>que</strong> foram por capitãesÁlvaro Nunes de Andrada, hom<strong>em</strong> fidalgo, galezo, da geração <strong>do</strong>s Andradas, e Gamboas, eSebastião Gonçalves Arvelos, os quais a tomaram, e entraram com ela na mesma maré <strong>em</strong> <strong>que</strong> JoãoGonçalves entrou com a outra, com <strong>que</strong> os france<strong>se</strong>s da fortaleza começaram a enfra<strong>que</strong>cer, edesmaiar, e muito mais por<strong>que</strong> <strong>se</strong> lhe levantou um levantisco, e alguns portugue<strong>se</strong>s <strong>que</strong> eles tinhamtoma<strong>do</strong>, e andavam entre os gentios, os quais, como lhes sabiam falar já a língua, os amotinaramcontra os france<strong>se</strong>s de tal mo<strong>do</strong>, <strong>que</strong> <strong>se</strong> Pero Lopes de Souza lho não proibira, qui<strong>se</strong>ram logo matálos,e comê-los, <strong>que</strong> tão variável é o gentio, e amigo de novidades; e assim vieram logo osprincipais oferecer-<strong>se</strong> a Pero Lopes de Souza para isto, e para tu<strong>do</strong> o mais <strong>que</strong> lhes mandas<strong>se</strong>; oqual os recebeu benignamente, e lhes dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> não fizess<strong>em</strong> o mal aos france<strong>se</strong>s, por<strong>que</strong> to<strong>do</strong><strong>se</strong>ram irmãos, n<strong>em</strong> ele lho havia de fazer, <strong>se</strong> lhe não resistiss<strong>em</strong>, antes muitos benefícios, e favores;


36sabi<strong>do</strong> isto pelos france<strong>se</strong>s / <strong>que</strong> logo lhe foram dizer / lhe man<strong>do</strong>u o <strong>se</strong>u capitão oferecer <strong>que</strong> fos<strong>se</strong>tomar entrega da fortaleza, e deles, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s <strong>que</strong>riam <strong>se</strong>r <strong>se</strong>us prisioneiros, e cativos, e só pediammercê das vidas, e assim <strong>se</strong> fez; não esperan<strong>do</strong> o capitão da fortaleza <strong>que</strong> Pero Lopes de Souzachegas<strong>se</strong> a ela, mas ao caminho lhe trouxe as chaves, e lhas entregou com to<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>us solda<strong>do</strong>sdesarma<strong>do</strong>s, ele lhes man<strong>do</strong>u entregar a sua roupa, e despejada a fortaleza da artilharia, e <strong>do</strong> mais<strong>que</strong> tinha a man<strong>do</strong>u arrasar, fazen<strong>do</strong> outra mais forte na povoação, e outra nos marcos, pararesguar<strong>do</strong> da feitoria Del-rei, <strong>que</strong> depois Sua Alteza deu a Duarte Coelho, onde logo <strong>se</strong> tratou defazer muito pau para a carga <strong>do</strong>s navios: e enquanto estas coisas <strong>se</strong> faziam sucedeu uma noite, <strong>que</strong>estan<strong>do</strong> o capitão-mor com a candeia, e janela aberta lhe tiraram de fora com duas flechas, das quaisuma lhe foi tocan<strong>do</strong> com as penas pelo roupão, e ambas <strong>se</strong> foram pregar <strong>em</strong> umas rodelas, <strong>que</strong>estavam defronte na parede, o qual suspeitan<strong>do</strong> nos france<strong>se</strong>s, man<strong>do</strong>u pela manhã <strong>que</strong> o<strong>se</strong>nforcass<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s, e começan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a fazer execução, ven<strong>do</strong> <strong>do</strong>is <strong>que</strong> ele havia toma<strong>do</strong> para afortaleza por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> bombardeiros, <strong>que</strong> os mais eram inocentes, dis<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> altas vozes <strong>que</strong> ele<strong>se</strong>ram os culpa<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> lhe haviam atira<strong>do</strong> cuidan<strong>do</strong> de o acertar<strong>em</strong>, e nenhum da<strong>que</strong>loutros tinhaculpa; pelo <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u sustar a execução neles, e enforcar a estoutros, mas estavam muito<strong>se</strong>nforca<strong>do</strong>s, e cá <strong>se</strong> consumiram to<strong>do</strong>s, com <strong>que</strong> os gentios ficaram estiman<strong>do</strong> mais os portugue<strong>se</strong>s,e os começaram a ajudar a fazer suas roças e fazendas, e a cortar e trazer o pau, <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia decarregar nos navios de el-rei, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> lhes pagava muito a <strong>se</strong>u gosto.Carrega<strong>do</strong>s os navios da armada <strong>que</strong> o capitão havia trazi<strong>do</strong> para este efeito <strong>se</strong> partiram parao reino, e ele nos outros foi correr a costa, como el-rei lhe mandava, onde entrou <strong>em</strong> muitos portos,e <strong>que</strong>imou algumas naus francesas <strong>que</strong> achou, mas os france<strong>se</strong>s lhe fugiram pela terra dentro comos gentios, <strong>do</strong>nde depois nos fizeram muito mal.Ultimamente chegou a São Vicente, onde achou a <strong>se</strong>u irmão mais velho, Martim Afonso deSouza, fortifican<strong>do</strong>, e povoan<strong>do</strong> a sua capitania, e dan<strong>do</strong> ord<strong>em</strong> a <strong>se</strong> povoar, e fortificar também asua de São Vicente para o sul, <strong>se</strong> tornou a esta de Itamaracá, e achan<strong>do</strong> boa informação de umFrancisco de Braga, grande intérprete <strong>do</strong> Brasil, <strong>que</strong> havia deixa<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar, o tornou a deixarcom to<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>us poderes, e <strong>se</strong> tornou a Portugal a dar conta a el-rei <strong>do</strong> <strong>que</strong> tinha feito, <strong>do</strong>nde foipor capitão-mor de quatro naus para a Índia o ano de 1539, e a tornada para o reino <strong>se</strong> sumiu a nau<strong>em</strong> <strong>que</strong> vinha, s<strong>em</strong> nunca mais aparecer, n<strong>em</strong> coisa alguma dela.CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDODo <strong>que</strong> aconteceu na capitania de Itamaracá depois <strong>que</strong> dela<strong>se</strong> foi o <strong>do</strong>natário Pero Lopes de SouzaComo o capitão Francisco de Braga sabia falar a língua <strong>do</strong> gentio, e era tão conheci<strong>do</strong> entreeles, não faziam <strong>se</strong>não o <strong>que</strong> ele <strong>que</strong>ria, e lhes mandava, e assim <strong>se</strong> ia esta capitania povoan<strong>do</strong> commuita facilidade, mas chegou neste t<strong>em</strong>po Duarte Coelho a povoar a sua, e como fez a povoaçãonos marcos, foi a muita vizinhança causa de ter<strong>em</strong> algumas diferenças, por fim das quais lh<strong>em</strong>an<strong>do</strong>u Duarte Coelho dar uma cutilada pelo rosto, e o capitão ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> não podia vingar, <strong>se</strong><strong>em</strong>barcou para as Índias de Castela, levan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> pôde; pelo <strong>que</strong> ficou a capitaniadesbaratada, perdida, como corpo s<strong>em</strong> cabeça, e muito mais por chegar neste t<strong>em</strong>po novas <strong>que</strong> eramorto Pero Lopes de Souza, vin<strong>do</strong> da Índia, onde el-rei o man<strong>do</strong>u por capitão-mor das naus. Massua mulher d. Isabel de Gamboa man<strong>do</strong>u logo aprestar um patacho <strong>em</strong> <strong>que</strong> vies<strong>se</strong> o capitão JoãoGonçalves, <strong>que</strong> já havia esta<strong>do</strong> com <strong>se</strong>u mari<strong>do</strong>, e <strong>se</strong> partis<strong>se</strong> à pressa, s<strong>em</strong> esperar por outros trêsnavios, <strong>que</strong> <strong>se</strong> ficavam negocian<strong>do</strong>; e assim <strong>se</strong> partiu; porém os <strong>que</strong> partiram derradeiro chegaram, e


37o <strong>primeiro</strong> arribou às Antilhas, e foi dar à costa na ilha de Santo Domingo, com os mastros<strong>que</strong>bra<strong>do</strong>s, posto <strong>que</strong> <strong>se</strong> salvou a gente.Ven<strong>do</strong> Pedro Voga<strong>do</strong>, <strong>que</strong> assim <strong>se</strong> chamava o capitão-mor <strong>do</strong>s três navios, <strong>que</strong> não erachega<strong>do</strong> o capitão João Gonçalves à ilha, os carregou logo de pau-<strong>brasil</strong>, e os tornou a mandar,avisan<strong>do</strong> a d. Isabel <strong>do</strong> <strong>que</strong> passava, e de como ele ficava entretanto governan<strong>do</strong>. A qual, <strong>em</strong> vez deo mandar continuar por<strong>que</strong> o fazia mui honradamente, man<strong>do</strong>u outro capitão, <strong>que</strong> mais era paragovernar uma barca, e assim <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou, e foi por essas capitanias abaixo / como fez o Braga /,deixan<strong>do</strong> esta <strong>em</strong> termos de <strong>se</strong> acabar de despovoar, <strong>se</strong> não fora um mora<strong>do</strong>r honra<strong>do</strong> chama<strong>do</strong>Miguel Álvares de Paiva, o qual levantaram por capitão, por<strong>que</strong> nunca <strong>se</strong> quis sair da ilha, antesteve mão nos outros, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não foss<strong>em</strong> n<strong>em</strong> mandass<strong>em</strong> suas mulheres, e filhos, como alguns<strong>que</strong>riam, com me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s gentios, <strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po tinham cercada a vila de Iguaraçu, e osameaçavam <strong>que</strong> lhes haviam de fazer o mesmo; este capitão era o <strong>que</strong> socorria os <strong>do</strong> cerco com osbarcos <strong>do</strong> mantimento, como diss<strong>em</strong>os no capítulo nono, e trazia outros entre a ilha e a terra firmecom solda<strong>do</strong>s e armas, para <strong>que</strong> estorvass<strong>em</strong> ao inimigo a passag<strong>em</strong>, até <strong>que</strong> finalmente <strong>se</strong>quietaram, e chegou o capitão João Gonçalves das Antilhas, cuja vinda foi muito festejada, e osgentios lhe tinham muito respeito, por ver<strong>em</strong> <strong>que</strong> assim lho tinha Pero Lopes de Souza, quan<strong>do</strong> cáesteve, e assim não lhe chamavam <strong>se</strong>não o capitão velho, e pai de Pero Lopes: e na verdade ele oparecia no zelo com <strong>que</strong> o <strong>se</strong>rvia, e procurava o aumento desta sua capitania, não con<strong>se</strong>ntin<strong>do</strong> <strong>que</strong>aos Índios <strong>se</strong> fizes<strong>se</strong> algum agravo, mas carician<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s, com <strong>que</strong> eles andavam tão contentes, e<strong>do</strong>mésticos, <strong>que</strong> de sua livre vontade <strong>se</strong> ofereciam a <strong>se</strong>rvir os brancos, e lhes cultivavam as terras degraça, ou por pouco mais de nada, principalmente um ano <strong>que</strong> houve de muita fome na Paraíba,<strong>do</strong>nde só pelo comer <strong>se</strong> vinham meter por suas casas a <strong>se</strong>rvi-los; e assim não havia branco, porpobre <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> nesta capitania, <strong>que</strong> não tives<strong>se</strong> 20 ou 30 negros destes, de <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>se</strong>rviam como decativos, e os ricos tinham aldeias inteiras.Pois <strong>que</strong> direi <strong>do</strong>s resgates <strong>que</strong> faziam, <strong>do</strong>nde por uma foice, por uma faca, ou um pentetraziam cargas de galinhas, bugios, papagaios, mel, cera, fio de algodão, e quanto os pobres tinham.Durou esta era, a <strong>que</strong> ainda hoje os mora<strong>do</strong>res antigos chamam <strong>do</strong>urada, enquanto viveu ocapitão velho, mas depois <strong>que</strong> morreu vieram outros a destruir quanto estava feito, fazen<strong>do</strong>, econ<strong>se</strong>ntin<strong>do</strong> fazer<strong>em</strong>-<strong>se</strong> tantas vexações e agravos aos pobres gentios <strong>em</strong> suas próprias terras, ealdeias, <strong>que</strong> <strong>se</strong> começaram a inquietar e rebelar, e os <strong>que</strong> pela nossa paz e amizade <strong>se</strong> afastavam <strong>do</strong>sfrance<strong>se</strong>s, e <strong>se</strong>não eram alguns da beira mar, os outros <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão de nenhuma maneira os admitiamentre si, n<strong>em</strong> <strong>que</strong>riam <strong>se</strong>u comércio; depois uns e outros <strong>se</strong> liaram com eles, e nos fizeram tãograndes guerras, quanto os mora<strong>do</strong>res desta capitania o <strong>se</strong>ntiram <strong>em</strong> suas pessoas e fazendas, e nãomenos o <strong>do</strong>natário, <strong>que</strong> to<strong>do</strong> este t<strong>em</strong>po recebeu dela perdas s<strong>em</strong> proveito, e enfim lhe veio a custartomar-lhe el-rei um grande pedaço dela, <strong>que</strong> é grande parte da Paraíba, por havê-la conquista<strong>do</strong>, eliberta<strong>do</strong> <strong>do</strong> poder <strong>do</strong>s inimigos à custa da sua fazenda, e de <strong>se</strong>us vassalos, como no <strong>livro</strong> quartover<strong>em</strong>os.CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRODa terra e capitania, <strong>que</strong> el-rei d. João Terceiro <strong>do</strong>oua João de BarrosNo fim das 25 léguas da terra da capitania de Itamaracá, <strong>que</strong> el-rei <strong>do</strong>ou a Pero Lopes deSouza, <strong>do</strong>ou, e fez mercê a João de Barros, feitor, <strong>que</strong> foi da casa da Índia, de 50 léguas por costa; oqual cuidan<strong>do</strong> de <strong>se</strong> aproveitar a si e a <strong>se</strong>us amigos, armou com Fernand’Álvares de Andrade,tesoureiro-mor <strong>do</strong> reino, e Aires da Cunha, <strong>que</strong> veio por capitão da <strong>em</strong>presa, mandan<strong>do</strong> com ele<strong>do</strong>is filhos <strong>se</strong>us <strong>em</strong> uma frota de 10 navios, <strong>em</strong> <strong>que</strong> vinham 900 homens, e com to<strong>do</strong> o necessário


38para a jornada, e para a povoação <strong>que</strong> vinham fazer, <strong>se</strong> partiram de Lisboa no ano de 1535; masdesgarran<strong>do</strong>-<strong>se</strong> com as águas e ventos foram tomar terra junto <strong>do</strong> Maranhão, onde <strong>se</strong> perderam nosbaixos.Deste naufrágio escapou muita gente, com a qual os filhos de João de Barros <strong>se</strong> recolherama uma ilha, <strong>que</strong> então <strong>se</strong> chamava das Vacas, e agora de São Luiz, <strong>do</strong>nde fizeram pazes com ogentio tapuia, <strong>que</strong> então ali habitava, resgatan<strong>do</strong> mantimentos, e outras coisas, <strong>que</strong> lhes eramnecessárias: e chegou o trato e amizade a tanto <strong>que</strong> alguns houveram filhos das Tapuias, como <strong>se</strong>descobriu depois <strong>que</strong> cresceram, não só por<strong>que</strong> barbaram, e barbam ainda hoje to<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>usdescendentes, como <strong>se</strong>us pais e avós, <strong>se</strong>não pelo amor <strong>que</strong> têm aos portugue<strong>se</strong>s <strong>em</strong> tanta maneira,<strong>que</strong> nunca jamais qui<strong>se</strong>ram paz com os outros gentios, n<strong>em</strong> com os france<strong>se</strong>s, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> a<strong>que</strong>lesnão eram verdadeiros Peros / <strong>que</strong> assim chamam aos portugue<strong>se</strong>s, parece por respeito de algum <strong>que</strong><strong>se</strong> chamava Pedro / e, todavia, quan<strong>do</strong> na era de 614 entraram os nossos no Maranhão, logo osvieram ver, e fazer pazes com eles, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> estes eram os <strong>se</strong>us Peros de<strong>se</strong>ja<strong>do</strong>s, de <strong>que</strong> elesdescendiam.Donde <strong>se</strong> colige <strong>que</strong> não era o Maranhão a terra, <strong>que</strong> el-rei deu a João de Barros, comoalguns cuidam, <strong>se</strong>não estoutra, <strong>que</strong> d<strong>em</strong>arca pela Paraíba com a de Pero Lopes de Souza; por<strong>que</strong> <strong>se</strong>fora a <strong>do</strong> Maranhão, haven<strong>do</strong> <strong>se</strong>us filhos escapa<strong>do</strong> <strong>do</strong> naufrágio, e chega<strong>do</strong> à <strong>do</strong> Maranhão comqua<strong>se</strong> toda a sua gente, e achan<strong>do</strong> a da terra tão benévola, e pacífica, <strong>que</strong> causa havia para <strong>que</strong> a nãopovoass<strong>em</strong>?Prova-<strong>se</strong> também por <strong>que</strong> todas as <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po foram contíguas umas comoutras, e os <strong>do</strong>natários éreos uns <strong>do</strong>s outros pela ord<strong>em</strong> <strong>que</strong> vimos nos capítulos precedentes.E finalmente <strong>se</strong> confirma, por <strong>que</strong> a <strong>do</strong> Maranhão foi dada a Luiz de Mello da Silva, <strong>que</strong> adescobriu, como <strong>se</strong> verá no capítulo <strong>se</strong>guinte, e não devia el-rei de dar a um, o <strong>que</strong> tinha da<strong>do</strong> aoutro.N<strong>em</strong> o mesmo João de Barros, na primeira década, <strong>livro</strong> <strong>se</strong>xto, capítulo <strong>primeiro</strong>, onde falada sua capitania, faz menção <strong>do</strong> Maranhão, mas só diz <strong>que</strong> da repartição <strong>que</strong> el-rei d. João Terceirofez das capitanias na província de Santa Cruz, <strong>que</strong> comumente <strong>se</strong> chama <strong>do</strong> Brasil, lhe coube uma, aqual lhe custou muita substância de fazenda, por razão de uma armada, <strong>que</strong> fez <strong>em</strong> companhia deAires da Cunha / et cetera, / <strong>que</strong> é a armada / como t<strong>em</strong>os dito / <strong>que</strong> arribou, e <strong>se</strong> foi perder noMaranhão, e daí man<strong>do</strong>u depois <strong>em</strong> outros navios buscar <strong>se</strong>us filhos, <strong>do</strong>nde ficou tão pobre, eendivida<strong>do</strong>, <strong>que</strong> não pôde mais povoar a sua terra, a qual já agora é de Sua Majestade, por cujomanda<strong>do</strong> depois <strong>se</strong> conquistou, e <strong>se</strong> ganhou ao gentio Potiguar à custa de sua real fazenda.CAPÍTULO DÉCIMO QUARTODa terra e capitania <strong>do</strong> Maranhão, <strong>que</strong> el-rei d. JoãoTerceiro <strong>do</strong>ou a Luiz de Mello da SilvaO Maranhão é uma grande baía, <strong>que</strong> fez o mar, cuja boca <strong>se</strong> abre ao norte <strong>em</strong> 2º e umquarto da linha para o sul, entre a’ponta <strong>do</strong> Pereá, <strong>que</strong> lhe fica a leste, e a <strong>do</strong> Cumá a oeste, t<strong>em</strong> nomeio a ilha de S. Luiz, <strong>que</strong> é de 20 léguas de compri<strong>do</strong>, e <strong>se</strong>te ou oito de largura, onde esteve Airesda Cunha, quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> perdeu com a sua armada, e os filhos de João de Barros, como diss<strong>em</strong>os nocapítulo precedente. A qual ilha sai desta baía como língua com a ponta de Arassoagi ao norte, ondet<strong>em</strong> a boca. Dentro t<strong>em</strong> outras muitas ilhas, das quais a maior é de <strong>se</strong>is léguas. Deságuam nesta baíacinco rios caudalosos, e to<strong>do</strong>s navegáveis, <strong>que</strong> são o Monim, o Itapucuru, o Mearim, o Pinaré, <strong>que</strong>diz<strong>em</strong> nasce muito perto <strong>do</strong> Peru, e o Maracu, <strong>que</strong> <strong>se</strong> deriva por muitos, e mui espaçosos lagos.


39To<strong>do</strong>s estes rios têm boníssimas águas, e pesca<strong>do</strong>s, excelentes terras, muitas madeiras,muitas frutas, muitas caças, e por isto muito povoadas de gentios.No t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> <strong>se</strong> começou a descobrir o Brasil, veio Luiz de Mello da Silva, filho <strong>do</strong>alcaide-mor de Elvas, como aventureiro, <strong>em</strong> uma caravela a correr esta costa, para descobrir algumaboa capitania, <strong>que</strong> pedir a el-rei, e não poden<strong>do</strong> passar de Pernambuco desgarrou com o t<strong>em</strong>po eáguas, e <strong>se</strong> foi entrar no Maranhão, <strong>do</strong> qual <strong>se</strong> contentou muito, e tomou língua <strong>do</strong> gentio, e depoisna Margarita de alguns solda<strong>do</strong>s <strong>que</strong> haviam fica<strong>do</strong> da companhia de Francisco de Orelhana, <strong>que</strong>como test<strong>em</strong>unhas de vista muito lha gabaram, e prometeram muitos haveres de ouro, e prata pelaterra dentro, <strong>do</strong> <strong>que</strong> movi<strong>do</strong> Luiz de Mello <strong>se</strong> foi a Portugal pedir a el-rei a<strong>que</strong>la capitania para aconquistar e povoar, e <strong>se</strong>n<strong>do</strong>-lhe concedida, <strong>se</strong> fez prestes na cidade de Lisboa, e partiu dela <strong>em</strong> trêsnaus e duas caravelas, com <strong>que</strong> chegan<strong>do</strong> ao Maranhão <strong>se</strong> perdeu nos esparsos e baixos da barra, <strong>em</strong>orreu a maior parte da gente <strong>que</strong> levava, escapan<strong>do</strong> só ele com alguns <strong>em</strong> uma caravela, <strong>que</strong> ficoufora <strong>do</strong> perigo, e 18 homens <strong>em</strong> um batel, <strong>que</strong> foi ter à ilha de Santo Domingo, <strong>do</strong>s quais foi ummeu pai, <strong>que</strong> Nosso Senhor tenha <strong>em</strong> sua glória, o qual <strong>se</strong>n<strong>do</strong> moço, por fugir de uma madrasta, e<strong>se</strong>r Alentejano, como o capitão, da geração <strong>do</strong>s Palhas, e com pouco grau para sustentar a vida, <strong>se</strong><strong>em</strong>barcou então para o Maranhão, e depois para esta Bahia, onde <strong>se</strong> casou, e me houve, e a outrosfilhos e filhas.Depois de Luiz de Mello <strong>se</strong>r <strong>em</strong> Portugal <strong>se</strong> passou à Índia, onde obrou valorosos feitos, evin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para o reino muito rico, e com tenção de tornar a esta <strong>em</strong>presa, acabou na viag<strong>em</strong> na nauSão Francisco, <strong>que</strong> desapareceu s<strong>em</strong> <strong>se</strong> saber mais novas dela; n<strong>em</strong> houve qu<strong>em</strong> tratas<strong>se</strong> mais <strong>do</strong>Maranhão o <strong>que</strong> visto pelos france<strong>se</strong>s, lançaram mão dele, como ver<strong>em</strong>os no <strong>livro</strong> quinto.Mas hão <strong>se</strong> aqui por fim deste de advertir duas coisas: a primeira <strong>que</strong> não guardei nele aord<strong>em</strong> de t<strong>em</strong>po e antigüidade das capitanias, e povoações, <strong>se</strong>não a <strong>do</strong> sítio, e contiguação de umascom outras, começan<strong>do</strong> <strong>do</strong> sul para o norte, o <strong>que</strong> não farei nos <strong>se</strong>guintes <strong>livro</strong>s, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>guirei aord<strong>em</strong> <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos, e sucessão das coisas. A <strong>se</strong>gunda, <strong>que</strong> não tratei das <strong>do</strong> Rio de Janeiro, Sergipe,Paraíba, e outras, por<strong>que</strong> estas <strong>se</strong> conquistaram depois, e povoaram por conta del-rei, por ord<strong>em</strong> de<strong>se</strong>us capitães, e governa<strong>do</strong>res gerais, e terão <strong>se</strong>u lugar quan<strong>do</strong> tratarmos deles nos <strong>livro</strong>s <strong>se</strong>guintes.LIVRO TERCEIRODA HISTÓRIA DO BRASIL DO TEMPO QUE OGOVERNOU TOMÉ DE SOUZA


40ATÉ A VINDA DO GOVERNADOR MANUEL TELES BARRETOCAPÍTULO PRIMEIRODe como el-rei man<strong>do</strong>u outra vez povoar a Bahia por Toméde Souza, governa<strong>do</strong>r geral da BahiaDepois <strong>que</strong> el-rei soube da morte de Francisco Pereira Coutinho, e da fertilidade da terra daBahia, bons ares, boas águas, e outras qualidades <strong>que</strong> tinha para <strong>se</strong>r povoada; e juntamente estar nomeio das outras capitanias, determinou povoá-la e fazer nela uma cidade, <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> como coraçãono meio <strong>do</strong> corpo, <strong>do</strong>nde todas <strong>se</strong> socorress<strong>em</strong>, e foss<strong>em</strong> governadas. Para o <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u fazer umagrande armada, provida de to<strong>do</strong> o necessário para a <strong>em</strong>presa, e por capitão-mor Tomé de Souza, <strong>do</strong><strong>se</strong>u con<strong>se</strong>lho, com título de governa<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil, dan<strong>do</strong>-lhe grande alçada depoderes, e regimento, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>que</strong>brou os <strong>que</strong> tinha concedi<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os outros capitãesproprietários, por no cível e crime lhes ter da<strong>do</strong> d<strong>em</strong>asiada alçada, como vimos no capítulo <strong>se</strong>gun<strong>do</strong><strong>do</strong> <strong>livro</strong> <strong>se</strong>gun<strong>do</strong>; mandan<strong>do</strong> <strong>que</strong> no crime nenhuma tenham, s<strong>em</strong> <strong>que</strong> dê<strong>em</strong> apelação para oouvi<strong>do</strong>r-geral deste esta<strong>do</strong>, e no cível 20 mil-réis somente; e <strong>que</strong> o dito ouvi<strong>do</strong>r-geral possa entrarpor suas terras por correção, e ouvir nelas de auções novas e velhas, o <strong>que</strong> não faziam dantes, e paraisto lhe deu por ajuda<strong>do</strong>res o <strong>do</strong>utor Pero Borges, correge<strong>do</strong>r <strong>que</strong> fora de Elvas, para <strong>se</strong>rvir deouvi<strong>do</strong>r-geral; Antônio Car<strong>do</strong>so de Barros para prove<strong>do</strong>r-mor da Fazenda, e Diogo Moniz Barretopara alcaide-mor da cidade <strong>que</strong> edificas<strong>se</strong>; com os quais, e com alguns cria<strong>do</strong>s del-rei, <strong>que</strong> vinhamprovi<strong>do</strong>s <strong>em</strong> outros cargos, e <strong>se</strong>is padres da companhia para <strong>do</strong>utrinar, e converter o gentio, e outrossacer<strong>do</strong>tes, e <strong>se</strong>culares, partiu de Lisboa a 2 de fevereiro de 1549, trazen<strong>do</strong> mais alguns homenscasa<strong>do</strong>s, e mil de peleja, <strong>em</strong> <strong>que</strong> entravam quatrocentos degrada<strong>do</strong>s.Com toda esta gente chegou à Bahia a 20 de março <strong>do</strong> mesmo ano, e des<strong>em</strong>barcou na VilaVelha, <strong>que</strong> Francisco Pereira deixou edificada logo à entrada da barra, onde achou a Diogo ÁlvaresCaramuru, de qu<strong>em</strong> dis<strong>se</strong> no sétimo capítulo <strong>do</strong> <strong>livro</strong> <strong>se</strong>gun<strong>do</strong>, <strong>que</strong> foi livre da morte pela filha deum índio principal, <strong>que</strong> dele <strong>se</strong> namorou, a qual <strong>em</strong>barcan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> ele depois, fugi<strong>do</strong> <strong>em</strong> um naviofrancês, <strong>que</strong> aqui veio carregar de pau, e in<strong>do</strong> já o navio à vela, <strong>se</strong> foi a na<strong>do</strong> <strong>em</strong>barcar com ele, echegan<strong>do</strong> à França, batizan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> ela, e chaman<strong>do</strong>-<strong>se</strong> Luiza Alvares, <strong>se</strong> casaram ambos, e depois ostornaram a trazer os france<strong>se</strong>s no mesmo navio, prometen<strong>do</strong>-lhes ele de lho fazer carregar por <strong>se</strong>uscunha<strong>do</strong>s.Porém chegan<strong>do</strong> à Bahia, e ancoran<strong>do</strong> no rio de Paraguaçu, junto à ilha <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, lhesman<strong>do</strong>u uma noite cortar a amarra, com <strong>que</strong> deram à costa, e despoja<strong>do</strong>s de quanto traziam, foramto<strong>do</strong>s mortos, e comi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> gentio, dizen<strong>do</strong>-lhes Luiza Alvares, sua parenta, <strong>que</strong> a<strong>que</strong>les eraminimigos, e só <strong>se</strong>u mari<strong>do</strong> era amigo, e como tal tornava a buscá-los, e <strong>que</strong>ria viver entre eles, comode feito viveu até a vinda de Tomé de Souza, e depois muitos anos, e a ela alcancei eu, morto já omari<strong>do</strong>, viúva mui honrada, amiga de fazer esmolas aos pobres, e outras obras de piedade.E assim fez junto a Vila Velha <strong>em</strong> um aprazível sítio uma ermida de Nossa Senhora daGraça, e impetrou <strong>do</strong> Sumo Pontífice indulgências para os romeiros, <strong>do</strong>s quais é mui freqüentada.Esta capela ou administração dela <strong>do</strong>ou aos padres de São Bento, <strong>que</strong> ali vão to<strong>do</strong>s ossába<strong>do</strong>s cantar uma missa.Morreu muito velha, e viu <strong>em</strong> sua vida todas suas filhas, e algumas netas casadas com osprincipais portugue<strong>se</strong>s da terra, e b<strong>em</strong> o mereciam também por parte de <strong>se</strong>u progenitor DiogoÁlvares Caramuru, por cujo respeito fiz esta digressão; pois este foi o <strong>que</strong> con<strong>se</strong>rvou a pos<strong>se</strong> daterra tantos anos, e por <strong>se</strong>u meio fez o governa<strong>do</strong>r Tomé de Souza pazes com o gentio, e os fez


41<strong>se</strong>rvir aos brancos, e assim edificou, povoou e fortificou a cidade, <strong>que</strong> chamou <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r, ondeela hoje está, <strong>que</strong> é meia légua da barra para dentro, por <strong>se</strong>r aqui o porto mais quieto, e abriga<strong>do</strong>para os navios: onde ouvi dizer a homens <strong>do</strong> <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po / <strong>que</strong> ainda alcancei alguns / <strong>que</strong> ele era o<strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> lançava mão <strong>do</strong> pilão para os taipais, e ajudava a levar a <strong>se</strong>us ombros os caibros, <strong>em</strong>adeiras para as casas, mostran<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a to<strong>do</strong>s companheiro, e afável / parte mui necessária nos <strong>que</strong>governam novas povoações /; com isto folgavam to<strong>do</strong>s de trabalhar, e exercitar cada um ashabilidades <strong>que</strong> tinha, dan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> uns à agricultura, outros a criar ga<strong>do</strong>, e a toda a mecânica, ainda<strong>que</strong> a não tivess<strong>em</strong> aprendida, com o <strong>que</strong> foi a terra <strong>em</strong> grande crescimento, e muito mais com aajuda de custa, <strong>que</strong> el-rei fazia com tanta liberalidade, <strong>que</strong> <strong>se</strong> afirma no triênio deste governa<strong>do</strong>rgastar de sua real fazenda mais de 300 mil cruza<strong>do</strong>s <strong>em</strong> sol<strong>do</strong>s, ordena<strong>do</strong>s de ministros, edifícios daSé, e casa <strong>do</strong>s padres da Companhia, ornamentos, sinos, artilharia, ga<strong>do</strong>s, roupas, e outras coisasnecessárias, o <strong>que</strong> fazia não tanto pelo interes<strong>se</strong>, <strong>que</strong> esperava de <strong>se</strong>us direitos, e <strong>do</strong>s dízimos, de<strong>que</strong> o Sumo Pontífice lhe fez concessão com obrigação de prover as igrejas, e <strong>se</strong>us ministros,quanto pelo gosto, <strong>que</strong> tinha de aumentar este esta<strong>do</strong>, e fazer dele um grande império, como eledizia.N<strong>em</strong> <strong>se</strong> deixou então de praticar, <strong>que</strong> <strong>se</strong> alguma hora aconteces<strong>se</strong> / o <strong>que</strong> Deus não permita /<strong>se</strong>r Portugal entra<strong>do</strong>, e possuí<strong>do</strong> de inimigos estrangeiros, como há aconteci<strong>do</strong> <strong>em</strong> outros reinos, desorte <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> força<strong>do</strong> passar-<strong>se</strong> el-rei com <strong>se</strong>us portugue<strong>se</strong>s a outra terra, a nenhuma o podiamelhor fazer, <strong>que</strong> a esta: por<strong>que</strong> passar-<strong>se</strong> às ilhas / como diziam, e fez o <strong>se</strong>nhor d. Antônio,pretendente <strong>do</strong> reino, no ano <strong>do</strong> Senhor de 1580 /, além de <strong>se</strong>r<strong>em</strong> mui pe<strong>que</strong>nas, estão tão perto dePortugal <strong>que</strong> lhe iriam os inimigos no alcance, e antes de <strong>se</strong> poder<strong>em</strong> reparar dariam sobre eles.A Índia, ainda <strong>que</strong> é grande, é tão longe, e a navegação tão perigosa, <strong>que</strong> era perder aesperança de poder tornar, e recuperar o reino. Porém o Brasil, com <strong>se</strong>r grande fica <strong>em</strong> tal distância,e tão fácil a navegação, <strong>que</strong> com muita facilidade pode cá vir e tornar quan<strong>do</strong> qui<strong>se</strong>r<strong>em</strong>, ou ficar-<strong>se</strong>de morada, pois a gente <strong>que</strong> cabe <strong>em</strong> menos 100 léguas de terra, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> to<strong>do</strong> Portugal, b<strong>em</strong> caberá<strong>em</strong> mais de mil, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> o Brasil, e <strong>se</strong>ria este um grande reino, ten<strong>do</strong> gente, por<strong>que</strong> <strong>do</strong>nde há asabelhas há o mel, e mais quan<strong>do</strong> não só das flores, mas das ervas e canas <strong>se</strong> colhe mel e açúcar, <strong>que</strong>de outros reinos estranhos viriam cá buscar com a mesma facilidade a troco das suas merca<strong>do</strong>rias,<strong>que</strong> ca não há; e da mesma maneira as drogas da Índia, <strong>que</strong> daqui fica mais vizinha, e a viag<strong>em</strong> maisbreve e fácil, pois a Portugal não vão buscar outras coisas <strong>se</strong>não estas, <strong>que</strong> pão, panos, e outrascoisas s<strong>em</strong>elhantes não lhe faltam <strong>em</strong> suas terras; mas toda esta reputação e estima <strong>do</strong> Brasil <strong>se</strong>acabou com el-rei d. João, <strong>que</strong> o estimava e reputava.CAPÍTULO SEGUNDODe outras duas armadas, <strong>que</strong> el-rei man<strong>do</strong>u com gente eprovimento para a BahiaLogo no ano <strong>se</strong>guinte de mil quinhentos e cinqüenta man<strong>do</strong>u el-rei outra armada com muitagente e provimento, e por capitão-mor dela Simão da Gama d’Andrade, no galeão velho muitoafama<strong>do</strong>; foi este fidalgo nesta cidade grande republico, e daí a muitos anos morreu nela de herpes,<strong>que</strong> lhe deram <strong>em</strong> uma perna, deixan<strong>do</strong> uma capela perpétua de missas na Igreja da Mi<strong>se</strong>ricórdia,onde está <strong>se</strong>pulta<strong>do</strong> com um epitáfio, <strong>que</strong> diz assim:Pela suma caridadede Cristo Crucifica<strong>do</strong>,está aqui <strong>se</strong>pulta<strong>do</strong>Simão da Gama d’Andrade


42para <strong>se</strong>r ressuscita<strong>do</strong>.Nesta armada veio o bispo d. Pedro Fernandes Sardinha, pessoa de muita autoridade eex<strong>em</strong>plo, e extr<strong>em</strong>a<strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r, e trouxe <strong>em</strong> sua companhia quatro sacer<strong>do</strong>tes da Companhia deJesus para ajudar<strong>em</strong> os <strong>se</strong>is, <strong>que</strong> já cá estavam, na <strong>do</strong>utrina, e conversão <strong>do</strong> gentio, e outros clérigos,e ornamentos para a sua Sé.O ano <strong>se</strong>guinte de mil quinhentos cinqüenta e um, man<strong>do</strong>u el-rei outra armada, e porcapitão-mor dela Antônio de Oliveira Carvalhal para alcaide-mor de Vila Velha, com muitas<strong>do</strong>nzelas da rainha d. Catarina, e <strong>do</strong> Mosteiro das Órfãs, encarregadas ao governa<strong>do</strong>r para <strong>que</strong> ascasas<strong>se</strong>, como o fez, com homens a <strong>que</strong> deu ofícios da República, e algumas <strong>do</strong>tou de sua própriafazenda.Era Tomé de Souza hom<strong>em</strong> muito avisa<strong>do</strong> e prudente, e muito experimenta<strong>do</strong> nas guerras daÁfrica e da Índia, onde estivera, tinha mostra<strong>do</strong> valoroso cavaleiro, mas estava isto cá tão <strong>em</strong> agro,e enfadava-<strong>se</strong> de labutar com degrada<strong>do</strong>s, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> não eram como o pês<strong>se</strong>go, «pomo <strong>que</strong> daPátria Pérsia veio melhor torna<strong>do</strong> no terreno alheio,» <strong>que</strong> pediu com muita instância por muitasvezes a el-rei <strong>que</strong> lhe des<strong>se</strong> licença para <strong>se</strong> tornar ao reino, contu<strong>do</strong> é muito para notar um dito, <strong>que</strong>/ entre outros <strong>que</strong> tinha mui galantes / dis<strong>se</strong> quan<strong>do</strong> lhe veio a licença.É costume nesta Bahia ir o meirinho <strong>do</strong> mar quan<strong>do</strong> entram os navios, e trazer a nova aogoverna<strong>do</strong>r <strong>do</strong>nde são, e <strong>do</strong> <strong>que</strong> traz<strong>em</strong>; como pois fos<strong>se</strong> <strong>em</strong> a<strong>que</strong>la ocasião, e achas<strong>se</strong> <strong>que</strong> vinhasucessor ao governa<strong>do</strong>r, tornou-<strong>se</strong> mui alegre a pedir-lhe alvíssaras, por<strong>que</strong> já eram cumpri<strong>do</strong>s <strong>se</strong>usde<strong>se</strong>jos, e estava no porto novo governa<strong>do</strong>r, respondeu-lhe ele depois de estar um pouco suspenso:Vedes isso, meirinho, verdade é <strong>que</strong> eu o de<strong>se</strong>java muito, e me crescia a água na boca quan<strong>do</strong>cuidava <strong>em</strong> ir para Portugal, mas não <strong>se</strong>i <strong>que</strong> é <strong>que</strong> agora <strong>se</strong> me <strong>se</strong>ca a boca de tal mo<strong>do</strong>, <strong>que</strong> <strong>que</strong>rocuspir, e não posso. Não deu o meirinho resposta a isto, n<strong>em</strong> eu a <strong>do</strong>u, por<strong>que</strong> os leitores dê<strong>em</strong> a<strong>que</strong> lhes parecer.CAPÍTULO TERCEIRODo <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r geral, <strong>que</strong> el-rei man<strong>do</strong>u ao BrasilMovi<strong>do</strong> el-rei <strong>do</strong>s rogos e importunações <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Tomé de Souza, acaba<strong>do</strong> o triênio<strong>do</strong> <strong>se</strong>u governo, lhe man<strong>do</strong>u por sucessor d. Duarte da Costa, o qual <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou, e partiu de Lisboano ano de mil quinhentos cinqüenta e três a oito <strong>do</strong> mês de maio, trazen<strong>do</strong> <strong>em</strong> sua companhia <strong>se</strong>ufilho d. Álvaro, e o Padre Luiz da Grã, <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> reitor no Colégio de Coimbra, e mais <strong>do</strong>ispadres sacer<strong>do</strong>tes, e quatro irmãos da companhia, um <strong>do</strong>s quais era José de Anchieta, <strong>que</strong> depois foicá <strong>se</strong>u provincial, e <strong>se</strong> pode chamar Apóstolo <strong>do</strong> Brasil, pelas obras e milagres, <strong>que</strong> nele fez, como opadre São Francisco Xavier <strong>se</strong> chamou da Índia.O governa<strong>do</strong>r tanto <strong>que</strong> chegou trabalhou muito por fortificar e defender esta nova cidade daBahia contra os bárbaros gentios, <strong>que</strong> <strong>se</strong> levantaram, e cometeram grandes insultos, <strong>que</strong> ele<strong>em</strong>endava dissimulan<strong>do</strong> alguns com prudência, e castigan<strong>do</strong> outros com armas, matan<strong>do</strong>-os, ecativan<strong>do</strong>-os <strong>em</strong> guerras, <strong>que</strong> lhes fez, de <strong>que</strong> era capitão <strong>se</strong>u filho d. Álvaro da Costa, o qual <strong>em</strong>todas <strong>se</strong> houve valorosamente. N<strong>em</strong> el-rei o deixou de favorecer <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po com armadasde muitos solda<strong>do</strong>s, e mora<strong>do</strong>res.Ajudavam também o bispo d. Pedro Fernandes, trabalhan<strong>do</strong> s<strong>em</strong> cessar na conversão dasalmas, na ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> Culto Divino, administração <strong>do</strong>s sacramentos, e <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> mais tocante aoespírito, <strong>que</strong> el-rei não menos pretendia, e encomendava <strong>que</strong> o t<strong>em</strong>poral.


43Porém o d<strong>em</strong>ônio perturba<strong>do</strong>r da paz a começou a perturbar de mo<strong>do</strong> entre estas cabeça<strong>se</strong>clesiásticas, e <strong>se</strong>cular, e houve entre eles tantas diferenças <strong>que</strong> foi necessário ao bispo <strong>em</strong>barcar-<strong>se</strong>para o reino com suas ri<strong>que</strong>zas, aonde não chegou por <strong>se</strong> perder a nau, <strong>em</strong> <strong>que</strong> ia, no rio Cururuipe,<strong>se</strong>is léguas <strong>do</strong> de S. Francisco, com toda a mais gente <strong>que</strong> nela ia, <strong>que</strong> era Antônio Car<strong>do</strong>so deBarros, <strong>que</strong> fora prove<strong>do</strong>r-mor, e <strong>do</strong>is cônegos, duas mulheres honradas, muitos homens nobres, eoutra muita gente, <strong>que</strong> por to<strong>do</strong>s eram mais de c<strong>em</strong> pessoas, os quais, posto <strong>que</strong> escaparam <strong>do</strong>naufrágio com vida, não escaparam da mão <strong>do</strong> gentio Caeté, <strong>que</strong> na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po <strong>se</strong>nhoreava a<strong>que</strong>lacosta, o qual depois de rouba<strong>do</strong>s, e despi<strong>do</strong>s, os prenderam, e ataram com cordas, e pouco a poucoos foram matan<strong>do</strong>, e comen<strong>do</strong>, <strong>se</strong>não a <strong>do</strong>is índios, <strong>que</strong> iam desta Bahia, e um português, <strong>que</strong> sabiaa língua.Não <strong>se</strong>i <strong>se</strong> deu isto ânimo aos mais governa<strong>do</strong>res para depois continuar<strong>em</strong> diferenças com osbispos, de <strong>que</strong> tratarei <strong>em</strong> <strong>se</strong>us lugares, e porventura os culparei mais, por<strong>que</strong> tenho notícia dasrazões, ou para melhor dizer s<strong>em</strong> razões de suas diferenças, o <strong>que</strong> não posso neste caso s<strong>em</strong> <strong>se</strong>rnota<strong>do</strong> de murmura<strong>do</strong>r, pois não <strong>se</strong>i a causa, <strong>que</strong> tiveram, somente direi o <strong>que</strong> ouvi das pessoas, <strong>que</strong>caminham desta Bahia para Pernambuco, e passam junto ao lugar <strong>do</strong>nde o bispo foi morto / por<strong>que</strong>por ali é o caminho / <strong>que</strong> nunca mais <strong>se</strong> cobriu de erva, estan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o mais campo coberto dela, ede mato, como <strong>que</strong> está o <strong>se</strong>u sangue chaman<strong>do</strong> a Deus da terra contra qu<strong>em</strong> o derramou; e assim oouviu Deus, <strong>que</strong> depois <strong>se</strong> foi desta Bahia dar guerra à<strong>que</strong>le gentio, e <strong>se</strong> tomou dele vingança, comoadiante ver<strong>em</strong>os.CAPÍTULO QUARTODe uma nau da Índia, <strong>que</strong> arribou a esta Bahia no t<strong>em</strong>po <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>rd. Duarte da CostaNo <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> ano <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r d. Duarte da Costa, <strong>que</strong> foi o <strong>do</strong> Senhor de mil quinhentoscinqüenta e cinco, <strong>em</strong> o mês de maio, arribou a esta Bahia, por falta de água, a nau São Paulo, <strong>que</strong>ia para a Índia <strong>em</strong> companhia de outras quatro, das quais todas ia por capitão-mor d. João deMenezes de Se<strong>que</strong>ira, e por capitão desta arribada Antônio Fernandes, <strong>que</strong> era <strong>se</strong>nhor dela; vinhamnesta nau muitos <strong>do</strong>entes, os quais o governa<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u recolher no hospital, e aos sãos ordenoudar<strong>em</strong>-lhes mesa cinco me<strong>se</strong>s <strong>que</strong> aqui estiveram, por <strong>se</strong> tomar parecer entre os oficiais da nau, eoutros da terra / pre<strong>se</strong>nte o governa<strong>do</strong>r, e d. Antônio de Noronha, o catarraz, <strong>que</strong> ia <strong>se</strong>rvir àcapitania de Diu / e as<strong>se</strong>ntaram to<strong>do</strong>s <strong>que</strong>, <strong>se</strong> partis<strong>se</strong> <strong>em</strong> outubro poderia passar à Índia, comoaconteceu, e <strong>em</strong> menos de quatro me<strong>se</strong>s chegou a Cochim, onde ainda achou a nau Capitânia, de<strong>que</strong> era capitão d. João de Menezes, e o dia <strong>se</strong>guinte deu a vela para Goa muito contente por levarnovas da<strong>que</strong>la nau, <strong>que</strong> já <strong>se</strong> tinha por perdida, ainda <strong>que</strong> mui descontente com outras <strong>que</strong> levava damorte <strong>do</strong> ínclito infante d. Luiz, du<strong>que</strong> de Beja, e Condestable de Portugal, <strong>se</strong>nhor de Serpa, Moura,Cavilhão, e Almada, e governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> priora<strong>do</strong> de Crato, <strong>que</strong> faleceu este ano de mil quinhentoscinqüenta e cinco, o qual, entre outras muitas virtudes, e excelências, de <strong>que</strong> foi a<strong>do</strong>rna<strong>do</strong>,principalmente teve duas, zelo da religião cristã e ciência da arte militar, e ainda <strong>que</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po<strong>se</strong> moveram poucas guerras, <strong>em</strong> <strong>que</strong> ele <strong>se</strong> pudes<strong>se</strong> achar, saben<strong>do</strong> <strong>que</strong> o impera<strong>do</strong>r Carlos Quinto,<strong>se</strong>u cunha<strong>do</strong>, passava a África, <strong>se</strong> foi para ele s<strong>em</strong> licença alguma, n<strong>em</strong> companhia, por saber <strong>que</strong> ohavia el-rei <strong>se</strong>u irmão de negar, como já <strong>em</strong> outras ocasiões o havia feito, ao <strong>que</strong> todavia el-reiacudiu logo dan<strong>do</strong> licença a alguns fidalgos, <strong>que</strong> o <strong>se</strong>guiss<strong>em</strong>, e mandan<strong>do</strong> a uma armada sua, <strong>que</strong>já lá estava, lhe obedeces<strong>se</strong>, de <strong>que</strong> era capitão Antônio de Saldanha, e para to<strong>do</strong> o dinheiro <strong>que</strong>gastas<strong>se</strong> lhe man<strong>do</strong>u grande crédito, e por esta via <strong>se</strong> achou com formosa cavalaria de nobreza de<strong>se</strong>u reino acompanha<strong>do</strong>, <strong>em</strong> ajuda <strong>do</strong> invictíssimo impera<strong>do</strong>r na conquista da Goleta, e de Tunes,


44<strong>que</strong> por <strong>se</strong>u con<strong>se</strong>lho <strong>se</strong> conquistou contra o parecer de muitos capitães mais antigos,experimenta<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> o contrário diziam.Mas o nosso infante, não poden<strong>do</strong> sofrer <strong>que</strong> no exército onde ele <strong>se</strong> achava <strong>se</strong> enxergas<strong>se</strong>ponto algum de covardia, tanto insistiu neste <strong>se</strong>u parecer <strong>que</strong> o impera<strong>do</strong>r deixou de levantar ocerco, como determinava pelo con<strong>se</strong>lho <strong>do</strong>s outros, e o man<strong>do</strong>u pros<strong>se</strong>guir como o infante dizia, oqual militan<strong>do</strong> debaixo da bandeira <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, <strong>se</strong> mostrou solda<strong>do</strong> digno de tal capitão, e ele <strong>se</strong>havia por b<strong>em</strong>-afortuna<strong>do</strong> da milícia de tal solda<strong>do</strong>, parecen<strong>do</strong>-lhe <strong>que</strong> no Con<strong>se</strong>lho tinha umNestor, e no Exército um Achiles; era aos estrangeiros benigno, aos naturais afável, e com to<strong>do</strong>sgeralmente liberalíssimo, pelo <strong>que</strong> de to<strong>do</strong>s era ama<strong>do</strong>, e de to<strong>do</strong>s louva<strong>do</strong>.Nunca casou n<strong>em</strong> teve filhos, mais <strong>que</strong> um natural, <strong>que</strong> foi o <strong>se</strong>nhor d. Antônio, o qual, pornão <strong>se</strong>r legítimo, não foi rei de Portugal, posto <strong>que</strong> <strong>em</strong> algumas partes <strong>do</strong> reino chegou a <strong>se</strong>rlevanta<strong>do</strong> por rei.Também este mesmo ano de mil quinhentos cinqüenta e cinco <strong>se</strong> recolheu o impera<strong>do</strong>rCarlos Quinto à religião no Convento de S. Jerônimo de Juste, por <strong>se</strong>r lugar sadio, e acomoda<strong>do</strong> aqu<strong>em</strong> larga o governo, e inquietações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>que</strong> ele deixou ao muito católico príncipe d. Felipe<strong>se</strong>u filho.CAPÍTULO QUINTODe outra nau da Índia, <strong>que</strong> arribou à BahiaNo ano de mil quinhentos cinqüenta e <strong>se</strong>is man<strong>do</strong>u el-rei negociar cinco naus para mandar àÍndia, de <strong>que</strong> deu a capitania-mor a d. Luiz Fernandes de Vasconcellos, o qual escolheu a nau SantaMaria da Barca para ir nela; estan<strong>do</strong> todas prestes, e carregadas para dar à vela abriu a nauCapitânia uma água tão grossa, <strong>que</strong> <strong>se</strong> ia ao fun<strong>do</strong>, e acudin<strong>do</strong> oficiais para lhe dar<strong>em</strong> r<strong>em</strong>édio, nãolho puderam dar, por não saber<strong>em</strong> por onde entrava a água, ven<strong>do</strong> el-rei, <strong>que</strong> <strong>se</strong> ia gastan<strong>do</strong> ot<strong>em</strong>po, man<strong>do</strong>u fazer as outras naus à vela, e <strong>que</strong> a<strong>que</strong>la <strong>se</strong> descarregas<strong>se</strong>, o <strong>que</strong> <strong>se</strong> fez já; na nauCapitânia <strong>se</strong> despejou toda com muita pressa, e <strong>se</strong> resolveu, e buscou de popa a proa s<strong>em</strong> lhepoder<strong>em</strong> dar com a água, e andava um grande burburinho entre os pesca<strong>do</strong>res de Alfama, dizen<strong>do</strong><strong>que</strong> Deus prometia aquilo, por<strong>que</strong> a<strong>que</strong>le ano lhes tirara o arcebispo as antigas cerimônias com <strong>que</strong>festejavam o dia <strong>do</strong> b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong> São Frei Pedro Gonçalves levan<strong>do</strong>-o às hortas de Enxobregascom muitas folias, cargas de fogaças, e outras mostras de alegria, e de lá o traziam enrama<strong>do</strong> decoentros frescos, e eles to<strong>do</strong>s com capelas ao re<strong>do</strong>r dele cantan<strong>do</strong>, e bailan<strong>do</strong>; chegou esta <strong>que</strong>ixa aoarcebispo, e como era mui amigo deste fidalgo, <strong>que</strong> andava tristíssimo, por não poder a<strong>que</strong>le anofazer viag<strong>em</strong>; movi<strong>do</strong> também da grande fé, e devoção, <strong>que</strong> os pesca<strong>do</strong>res, e mareantes tinham aosanto, lhes tornou a conceder licença para <strong>que</strong> o festejass<strong>em</strong> como dantes, entretanto não <strong>se</strong> deixoude buscar a água da nau, e trabalhar com as bombas, e outros vasos <strong>em</strong> esgotar, ou diminuir a muita<strong>que</strong> entrava, até <strong>que</strong> um marinheiro foi dar com o furo de um prego na quilha, <strong>que</strong> por descui<strong>do</strong>ficou por pregar, e por calafetar, e só <strong>se</strong> tapou com o breu, <strong>que</strong> depois <strong>se</strong> tirou, e por ali fazia a<strong>que</strong>laágua, a qual <strong>se</strong> tomou logo com grande alvoroço, e tornou a nau a carregar, por<strong>que</strong> dis<strong>se</strong>ram osoficiais <strong>que</strong> ainda tinham t<strong>em</strong>po, e assim deu a vela a <strong>do</strong>is de maio, e foi <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> sua derrota, masna costa de Guiné achou tanta calmaria, <strong>que</strong> a deteve <strong>se</strong>tenta dias, e toman<strong>do</strong> parecer sobre o <strong>que</strong>fariam as<strong>se</strong>ntaram <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> invernar ao Brasil, por<strong>que</strong> era muito tarde, e logo <strong>se</strong> fizeram na voltada baía de To<strong>do</strong>s os Santos, onde chegaram a quatorze de agosto.O governa<strong>do</strong>r d. Duarte da Costa foi logo des<strong>em</strong>barcar o capitão-mor, e os fidalgos <strong>que</strong>vinham na nau, <strong>que</strong> eram Luiz de Mello da Silva, d. Pedro de Almeida, despacha<strong>do</strong> na capitania deBaçaim, d. Filipe de Menezes, d. Paulo de Lima, Nuno de Men<strong>do</strong>nça, e Henri<strong>que</strong> de Men<strong>do</strong>nça <strong>se</strong>u


45irmão; Jerônimo Corrêa Barreto, Henri<strong>que</strong> Moniz Barreto, e outros fidalgos, <strong>que</strong> agasalhou,ban<strong>que</strong>teou, e deu pousadas à sua vontade, e o mesmo fez a toda a mais gente da nau, a <strong>que</strong> deumantimento to<strong>do</strong> o t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> ali esteve.Seguiu-<strong>se</strong> o ano de mil quinhentos cinqüenta e <strong>se</strong>te mui sinala<strong>do</strong> assim pela morte <strong>do</strong>impera<strong>do</strong>r Carlos Quinto, <strong>que</strong> nele morreu na idade de cinqüenta e oito anos e <strong>se</strong>te me<strong>se</strong>s,renuncian<strong>do</strong> ainda <strong>em</strong> vida <strong>em</strong> <strong>se</strong>u filho Felipe os <strong>se</strong>us reinos, e <strong>em</strong> <strong>se</strong>u irmão Fernan<strong>do</strong> o império,e recolhen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> <strong>em</strong> um mosteiro, onde acabou felicissimamente a vida; como pela morte de el-rei d.João, <strong>que</strong> faleceu <strong>em</strong> 11 de junho de idade de cinqüenta e cinco, ten<strong>do</strong> reina<strong>do</strong> trinta e cinco, e nesteano acabou o <strong>se</strong>u governo d. Duarte da Costa, e lhe veio sucessor.Teve d. Duarte da Costa, além de <strong>se</strong>r grande <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong>r del-rei, uma virtude singular, <strong>que</strong> por<strong>se</strong>r muito importante aos <strong>que</strong> governam não é b<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> cale, e é <strong>que</strong> sofria com paciência asmurmurações <strong>que</strong> de si ouvia, tratan<strong>do</strong> mais de <strong>em</strong>endar-<strong>se</strong>, <strong>que</strong> de vingar-<strong>se</strong> <strong>do</strong>s murmura<strong>do</strong>res,como lhe aconteceu uma noite, <strong>que</strong> andan<strong>do</strong> rondan<strong>do</strong> a cidade ouviu <strong>que</strong> <strong>em</strong> casa de um cidadão <strong>se</strong>estava murmuran<strong>do</strong> dele altissimamente, e depois <strong>que</strong> ouviu muito lhes dis<strong>se</strong> de fora: Senhores,fal<strong>em</strong> baixo, <strong>que</strong> os ouve o governa<strong>do</strong>r. Conheceram-no eles na fala, e ficaram mui medrosos <strong>que</strong>os castigaria, mas nunca mais lhes falou nisso, n<strong>em</strong> lhes mostrou ruim vontade ou s<strong>em</strong>blante.CAPÍTULO SEXTODo terceiro governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil, <strong>que</strong> foi M<strong>em</strong> de SáA d. Duarte da Costa sucedeu o dr. M<strong>em</strong> de Sá, <strong>que</strong> com razão pode <strong>se</strong>r espelho degoverna<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Brasil; por<strong>que</strong> concorren<strong>do</strong> nele letras, e esforço, <strong>se</strong> sinalou muito na guerra, ejustiça.Este, <strong>em</strong> pon<strong>do</strong> os pés no Brasil, <strong>que</strong> foi no ano de mil quinhentos cinqüenta e <strong>se</strong>te,nenhuma coisa <strong>do</strong> <strong>se</strong>u regimento executou <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> o <strong>que</strong> el-rei lhe mandava <strong>em</strong> favor daReligião Cristã; para isto man<strong>do</strong>u chamar os principais índios das aldeias vizinhas desta Bahia, eas<strong>se</strong>ntou com eles pazes com condição <strong>que</strong> <strong>se</strong> abstivess<strong>em</strong> de comer carne humana, ainda <strong>que</strong> fos<strong>se</strong>de inimigos presos, ou mortos <strong>em</strong> justa guerra, e <strong>que</strong> recebess<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas terras os padres dacompanhia, e os outros mestres da fé, e lhes fizess<strong>em</strong> casas <strong>em</strong> suas aldeias, onde <strong>se</strong> recolhess<strong>em</strong>, et<strong>em</strong>plos onde dis<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> missa aos cristãos, <strong>do</strong>utrinass<strong>em</strong> os catecumenos, e pregass<strong>em</strong> o Evangelholivr<strong>em</strong>ente; e por<strong>que</strong> a cobiça os portugue<strong>se</strong>s tinha da<strong>do</strong> <strong>em</strong> cativar quantos podiam colher, fos<strong>se</strong>justa ou injustamente, proibiu o governa<strong>do</strong>r isto com graves penas, e man<strong>do</strong>u dar liberdade a to<strong>do</strong>sos <strong>que</strong> contra justiça eram trata<strong>do</strong>s como escravos.Acudiu depois a vingar as injúrias <strong>do</strong>s índios cristãos, <strong>que</strong> outros <strong>se</strong>us vizinhos pagãos lhefaziam até chegar a matar alguns.Pediu <strong>que</strong> lhe entregass<strong>em</strong> os homicidas, e per<strong>do</strong>aria aos mais, mas eles fia<strong>do</strong>s na suamultidão zombaram da sua petição; pelo <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r <strong>em</strong> pessoa os cometeu dentro de suasterras, e feita neles grande matança, e <strong>que</strong>imadas mais de <strong>se</strong>tenta aldeias, os desfez, de sorte <strong>que</strong>lhes foi força<strong>do</strong> pedir<strong>em</strong> a paz, a qual lhes concedeu com as mesmas condições, <strong>que</strong> havia posto aosoutros.O t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> lhe vagava da guerra, gastava o bom governa<strong>do</strong>r na administração da justiça,por<strong>que</strong> além de <strong>se</strong>r <strong>em</strong> <strong>que</strong> consiste a honra <strong>do</strong>s <strong>que</strong> reg<strong>em</strong>, e governam, como diz David: HonorRegis judicium diligit: a trazia ele particularmente a cargo por uma provisão del-rei, <strong>em</strong> qu<strong>em</strong>andava <strong>que</strong> nenhuma ação nova <strong>se</strong> tomas<strong>se</strong> s<strong>em</strong> sua licença; o <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u el-rei por <strong>se</strong>rinforma<strong>do</strong> das muitas usuras, <strong>que</strong> já na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po cometiam os merca<strong>do</strong>res no <strong>que</strong> vendiam fia<strong>do</strong>,pelo <strong>que</strong> muitos, por <strong>se</strong> não descobrir a usura, <strong>que</strong> eles s<strong>em</strong>pre costumam paliar, e por não perder<strong>em</strong>


46a dívida, e haver as mais penas <strong>que</strong> o direito põe, não levavam <strong>se</strong>us deve<strong>do</strong>res a juízo, e lhe<strong>se</strong>speravam pela paga quanto t<strong>em</strong>po <strong>que</strong>riam; mas só punham ações por dívidas lícitas, <strong>que</strong> ogoverna<strong>do</strong>r logo mandava pagar, e <strong>se</strong> era o deve<strong>do</strong>r pessoa pobre pagava por ele, ou fazia <strong>que</strong> ocre<strong>do</strong>r esperas<strong>se</strong> pela dívida, pois fiara de qu<strong>em</strong> sabia <strong>que</strong> não tinha por onde lhe pagar; e assimcessaram as d<strong>em</strong>andas, de mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> fazen<strong>do</strong> o dr. Pedro Borges, ouvi<strong>do</strong>r-geral, uma vez audiência,não houve parte alguma re<strong>que</strong>rente, <strong>do</strong> <strong>que</strong> levantan<strong>do</strong> as mãos ao céu deu graças a Deus; masdurou pouco este b<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> logo veio por ouvi<strong>do</strong>r-geral o dr. Braz Fragoso com outra provisão<strong>em</strong> contrário à <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r, e tornaram a correr as d<strong>em</strong>andas, e as usuras, não só paliadas, mastanto de escancara, <strong>que</strong> <strong>se</strong> vale um escravo vinte mil-réis pago logo, o dão fia<strong>do</strong> por um ano porquarenta, e o <strong>que</strong> mais é, <strong>que</strong> por isso o não <strong>que</strong>r<strong>em</strong> já vender a dinheiro de conta<strong>do</strong>, <strong>se</strong>não fia<strong>do</strong>, enão há qu<strong>em</strong> por isto olhe.CAPÍTULO SÉTIMODe como man<strong>do</strong>u o governa<strong>do</strong>r <strong>se</strong>u filho Fernão de Sá socorrera Vasco Fernandes Coutinho, e o matou lá o gentioNeste t<strong>em</strong>po estava Vasco Fernandes Coutinho <strong>em</strong> grande aperto posto pelo gentio na suacapitania <strong>do</strong> Espírito Santo, e man<strong>do</strong>u à Bahia re<strong>que</strong>rer ao governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá <strong>que</strong> o socorres<strong>se</strong>,o <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r logo fez, mandan<strong>do</strong> cinco <strong>em</strong>barcações b<strong>em</strong> providas de gente, e por capitãomordela a <strong>se</strong>u filho Fernão de Sá na galé São Simão; os outros capitães eram Diogo Morim, oVelho, e Paulo Dias A<strong>do</strong>rno. Chegaram to<strong>do</strong>s a Porto Seguro, onde lhes dis<strong>se</strong>ram, <strong>que</strong> no riochama<strong>do</strong> Bricaré estava o mais <strong>do</strong> gentio, <strong>que</strong> fazia guerra a Vasco Fernandes, e <strong>que</strong> aí deviam deos ir buscar, oferecen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para ir com eles, como de feito foram, o capitão Diogo Álvares, eGaspar Barbosa <strong>em</strong> <strong>se</strong>us caravelões, e navegaram pelo dito rio arriba quatro dias, até <strong>que</strong> viram ascercas <strong>do</strong> gentio <strong>que</strong> estavam juntas da água, onde, pon<strong>do</strong> as proas <strong>em</strong> terra por estar a maré cheia,por elas des<strong>em</strong>barcaram, e saltaram fora os solda<strong>do</strong>s, tornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> os marinheiros com os navios aomeio <strong>do</strong> rio por não ficar<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>co na vazante, e os bombardeiros, para de lá fazer<strong>em</strong> <strong>se</strong>us tiros,começou-<strong>se</strong> a travar a briga, na qual logo no <strong>primeiro</strong> encontro pu<strong>se</strong>ram o gentio <strong>em</strong> desbarate, mastornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a ajuntar, e reformar, voltou com tanta força <strong>que</strong> forçou aos nossos a desordenar<strong>em</strong>, <strong>em</strong>isturar<strong>em</strong> com os inimigos, de maneira <strong>que</strong> os tiros <strong>que</strong> tiravam das <strong>em</strong>barcações, não só os nãodefendiam, mas antes os feriam, e matavam, e retiran<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para <strong>se</strong> acolher a elas estavam tanto aopego, <strong>que</strong> os mais foram a na<strong>do</strong>, e os feri<strong>do</strong>s <strong>em</strong> algumas jangadas, entre os quais foram os <strong>do</strong>iscapitães A<strong>do</strong>rno, e Morim, fican<strong>do</strong> o capitão-mor com o <strong>se</strong>u alferes Joanne Monge na retaguarda,onde crescen<strong>do</strong> o gentio, <strong>que</strong> de outras aldeias vinha de socorro, os mataram às flechadas; e assimacabou Fernão de Sá, depois de haver feito grandes coisas <strong>em</strong> armas contra a multidão destesbárbaros, assim neste combate, como <strong>em</strong> outros <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> achou na Bahia, e <strong>em</strong> outras partes: osmais <strong>se</strong> partiram para o Espírito Santo, onde Vasco Fernandes os recebeu com muito pesar.,saben<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>se</strong>u destroço, e da morte de Fernão de Sá, e os man<strong>do</strong>u com a mais gente <strong>que</strong> pôdeajuntar a dar <strong>em</strong> outros gentios, <strong>que</strong> o tinham qua<strong>se</strong> <strong>em</strong> cerco, os quais lho fizeram levantar, posto<strong>que</strong> com morte de alguns <strong>do</strong>s nossos, entre os quais Bernar<strong>do</strong> Pimentel, o Velho, <strong>que</strong> mataram aoentrar <strong>em</strong> uma casa.Feito isto <strong>se</strong> foram a São Vicente, e daí a Bahia, onde o governa<strong>do</strong>r os não quis ver, saben<strong>do</strong>como haviam deixa<strong>do</strong> matar <strong>se</strong>u filho, e quan<strong>do</strong> eles não tiveram esta culpa, n<strong>em</strong> por isso adev<strong>em</strong>os dar ao pai <strong>em</strong> fazer extr<strong>em</strong>os pela morte de tal filho.


47CAPÍTULO OITAVODa entrada <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s no Rio de Janeiro, e guerra <strong>que</strong> lhe foi fazer o governa<strong>do</strong>rO Rio de Janeiro esta <strong>em</strong> 23º graus debaixo <strong>do</strong> Trópico de Capricórnio, e impropriamente <strong>se</strong>chama Rio, por<strong>que</strong> antes é um braço de mar, <strong>que</strong> ali entra por uma boca estreita, <strong>que</strong> <strong>se</strong> podefacilmente defender de uma parte a outra com artilharia; mas dentro faz uma baía, ou en<strong>se</strong>ada <strong>em</strong><strong>que</strong> entram muitos rios, e t<strong>em</strong> perto de quarenta ilhas, das quais as maiores <strong>se</strong> povoam, e as menores<strong>se</strong>rv<strong>em</strong> de ornar o sítio, ou de portos onde <strong>se</strong> abrigu<strong>em</strong> os navios.Estas comodidades, e outras muitas deste Rio e baía, juntas com a fertilidade da terra, afaziam digna de <strong>se</strong>r povoada, quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> povoaram as mais <strong>do</strong> Brasil; mas ou por<strong>que</strong> coube na<strong>do</strong>ação a Pero de Goes, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não atreveu com o gentio, como diss<strong>em</strong>os no capítulo terceiro <strong>do</strong><strong>se</strong>gun<strong>do</strong> <strong>livro</strong>, ou por não <strong>se</strong>i <strong>que</strong> descui<strong>do</strong>, ela esteve por povoar até <strong>que</strong> Nicolau Villegaignon,hom<strong>em</strong> nobre de França, e cavaleiro <strong>do</strong> hábito de São João, informa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> por alivinham comerciar com o gentio Tapuia, determinou de vir a povoá-la; para o <strong>que</strong> fez uma armada<strong>em</strong> <strong>que</strong> veio com muitos solda<strong>do</strong>s, e entran<strong>do</strong> no rio no ano de mil quinhentos cinqüenta e <strong>se</strong>is, lhefortificou a entrada, solicitou os gentios, e fez liga e amizade com eles, e para maior defensacomeçou <strong>em</strong> uma das ilhas da en<strong>se</strong>ada a levantar uma fortaleza de pedra, tijolo, e gesso, <strong>em</strong> cujaobra trabalhavam os índios com muita vontade, e de França lhe vinham cada dia novos socorros.Corria já o ano de mil quinhentos cinqüenta e nove, <strong>em</strong> <strong>que</strong> reinava a rainha d. Catarina pormorte de el-rei d. João <strong>se</strong>u mari<strong>do</strong>, e por <strong>se</strong>u neto el-rei d. Sebastião não ter ainda a este t<strong>em</strong>po mais<strong>que</strong> cinco anos de idade; a qual, informada <strong>do</strong> <strong>que</strong> passava no Rio de Janeiro, escreveu aogoverna<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá encarregan<strong>do</strong>-lhe muito esta <strong>em</strong>presa, e mandan<strong>do</strong>-lhe para ajuda dela umaboa armada, com a qual o governa<strong>do</strong>r, e com outras naus, <strong>que</strong> pôde ajuntar, acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong>sprincipais portugue<strong>se</strong>s da Bahia, e alista<strong>do</strong>s os mais solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> pôde, assim brancos como índiosda terra, no ano <strong>do</strong> Senhor de mil quinhentos e <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta <strong>se</strong> partiu para o Rio de Janeiro, onderompen<strong>do</strong> as forças, <strong>que</strong> impediam a entrada, entrou na en<strong>se</strong>ada, e tomou uma nau francesa, da qualsoube não estar aí já o Villegaignon, <strong>que</strong> fora chama<strong>do</strong> a Malta, mas ter deixa<strong>do</strong> um sobrinho <strong>se</strong>upor capitão na fortaleza, a qu<strong>em</strong> escreveu o governa<strong>do</strong>r na maneira <strong>se</strong>guinte:«El-rei de Portugal, meu Senhor, saben<strong>do</strong> <strong>que</strong> Villegaignon vosso tio lhe tinha usurpada estaterra, <strong>se</strong> man<strong>do</strong>u <strong>que</strong>ixar a el-rei de França, o qual lhe respondeu <strong>que</strong> <strong>se</strong> cá estava, <strong>que</strong> lhe fizes<strong>se</strong>guerra, e botas<strong>se</strong> fora, por<strong>que</strong> não viera com sua comissão, e posto <strong>que</strong> já aqui o não acho, estaisvós <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar, a qu<strong>em</strong> admoesto, e re<strong>que</strong>iro da parte de Deus, e <strong>do</strong> vosso rei, e <strong>do</strong> meu, <strong>que</strong> logolargueis a terra alheia a cuja é, e vos vades <strong>em</strong> paz s<strong>em</strong> <strong>que</strong>rer experimentar os danos <strong>que</strong>sucederam da guerra.»Ao <strong>que</strong> respondeu o mancebo <strong>que</strong> não era <strong>se</strong>u julgar cuja era a terra <strong>do</strong> Rio de Janeiro, <strong>se</strong>nãofazer o <strong>que</strong> o <strong>se</strong>nhor Villegaignon <strong>se</strong>u tio lhe havia manda<strong>do</strong>, <strong>que</strong> era sustentar, e defender a<strong>que</strong>lasua fortaleza, e <strong>que</strong> assim o havia de cumprir, ainda <strong>que</strong> lhe custas<strong>se</strong> a vida, e muitas vidas, dasquais lhe re<strong>que</strong>ria também <strong>que</strong> não qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> <strong>se</strong>r homicida, antes <strong>se</strong> tornas<strong>se</strong> <strong>em</strong> paz.Gastaram-<strong>se</strong> nisto dez ou <strong>do</strong>ze dias, nos quais a nossa armada <strong>se</strong> pôs <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> de guerra, eassim ouvida esta resposta, a outra <strong>que</strong> lhe deram foi de artilharia e arcabuzes, com <strong>que</strong> começarama bater o forte insuperável / ao parecer / às forças humanas; porém estan<strong>do</strong> uns outros meti<strong>do</strong>s nofuror <strong>do</strong> combate, Manuel Coutinho, hom<strong>em</strong> par<strong>do</strong>, Afonso Martins Diabo, e outros valentessolda<strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, subin<strong>do</strong> por uma parte <strong>que</strong> parecia inacessível, entraram o castelo, eocuparam repentinamente a pólvora <strong>do</strong> inimigo.Descorçoa<strong>do</strong>s os france<strong>se</strong>s com a perda da pólvora, e com o inopina<strong>do</strong> atrevimento <strong>do</strong>sportugue<strong>se</strong>s, desampararam o castelo à meia-noite com todas as máquinas de guerra <strong>que</strong> nele havia,recolheram-<strong>se</strong> às suas naus, e parte deles nelas <strong>se</strong> tornaram para sua terra, outros ficaram com os


48Tamoios/ <strong>que</strong> este é o nome da<strong>que</strong>le gentio /, assim para restaurar a guerra, e a opinião perdida,como para exercitar a mercancia com eles, de <strong>que</strong> tiravam muito proveito.Alcançada tão ilustre vitória desfez o governa<strong>do</strong>r o forte, por não poder deixar gente <strong>que</strong> odefendes<strong>se</strong>, e povoas<strong>se</strong> a terra, por lhe haver<strong>em</strong> morta muita gente neste combate, e man<strong>do</strong>u <strong>se</strong>usobrinho Estácio de Sá na nau <strong>que</strong> havia torna<strong>do</strong> aos france<strong>se</strong>s com o aviso <strong>do</strong> sucesso a rainha d.Catarina.CAPÍTULO NONODe como o governa<strong>do</strong>r tornou <strong>do</strong> Rio de Janeiro para a Bahia, eo sucesso <strong>que</strong> teve uma nau da Índia, <strong>que</strong> a ela arribouO governa<strong>do</strong>r <strong>se</strong> tornou <strong>do</strong> Rio de Janeiro para a Bahia, e chegou a ela no mês de junho <strong>do</strong>mesmo ano de mil quinhentos e <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta, onde continuou com o governo da terra, na qual era tãonecessária a sua assistência, e pre<strong>se</strong>nça, <strong>que</strong> algumas poucas vezes, <strong>que</strong> ia ver um engenho <strong>que</strong> fez<strong>em</strong> Sergipe, ia de noite, e deixava um paj<strong>em</strong> na escada, <strong>que</strong> dis<strong>se</strong>s<strong>se</strong> <strong>que</strong> estava ocupa<strong>do</strong> a qu<strong>em</strong> porele perguntas<strong>se</strong>, o qual não mentia, por<strong>que</strong> onde <strong>que</strong>r <strong>que</strong> estava <strong>se</strong> ocupava; e isto fazia para <strong>que</strong> anotícia da sua ausência não fos<strong>se</strong> ocasião de alguma desord<strong>em</strong>, e assim, ainda <strong>que</strong> o engenhodistava desta cidade oito léguas, fazia lá mui pouca detença.Neste ano de mil quinhentos e <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta arribou a esta Bahia a nau S. Paulo, como já outravez havia arriba<strong>do</strong> <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r d. Duarte da Costa, posto <strong>que</strong> então vinha nela porcapitão Antônio Fernandes, como diss<strong>em</strong>os no capítulo quarto deste <strong>livro</strong>, e desta vez vinha Rui deMello da Câmara, o qual ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> para invernar aqui haviam de gastar <strong>se</strong>te ou oito me<strong>se</strong>s, e <strong>que</strong> aágua e gusano corromp<strong>em</strong> brev<strong>em</strong>ente a madeira das naus, ajuntan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> com os pilotos, e da terra,diante <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r praticaram <strong>se</strong> haveria ainda t<strong>em</strong>po para <strong>se</strong>guir<strong>em</strong> viag<strong>em</strong>, e ir invernar àÍndia? e de comum parecer as<strong>se</strong>ntaram <strong>que</strong> sim, <strong>se</strong> partiss<strong>em</strong> daqui <strong>em</strong> <strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro, e foss<strong>em</strong> pormuita altura buscar a ilha de Sumatra, para dela <strong>em</strong> fevereiro voltar<strong>em</strong> com a monção com <strong>que</strong> v<strong>em</strong>as naus de Malaca e China, e toman<strong>do</strong> desta cidade tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> lhes foi necessário, partiram <strong>em</strong> 15de <strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro, achan<strong>do</strong> os t<strong>em</strong>pos prósperos foram a vista <strong>do</strong> cabo da Boa Esperança <strong>em</strong> fim denov<strong>em</strong>bro, e assim foram <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> sua viag<strong>em</strong> para a ilha de Sumatra com ventos bran<strong>do</strong>s até vintede janeiro, dia <strong>do</strong> b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong> mártir São Sebastião à boca da noite, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> acharam tãoaborda<strong>do</strong>s com a terra por causa da grande corrente das águas, <strong>que</strong> por muito <strong>que</strong> trabalharam por<strong>se</strong> afastar foram varar nela, e quis Deus <strong>que</strong> foi <strong>em</strong> parte onde ficou a nau encalhada, e to<strong>do</strong>s nelaaté pela manhã, <strong>que</strong> lançaram o batel ao mar, e <strong>se</strong> passaram a terra s<strong>em</strong> coisa alguma entender comeles, por <strong>se</strong>r a gente dali mesquinha, e tão <strong>do</strong>méstica, <strong>que</strong> acudiram logo a lhes vender algumascoisas posto <strong>que</strong> assim não fora, os da nau eram <strong>se</strong>tecentos homens, to<strong>do</strong>s b<strong>em</strong> dispostos, earma<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> puderam atravessar toda a<strong>que</strong>la ilha, e assim logo fizeram cabanas, para <strong>se</strong>agasalhar<strong>em</strong>, e des<strong>em</strong>barcaram da nau mantimentos, vinhos, azeite, e tu<strong>do</strong> o mais, <strong>que</strong> puderam, edesfizeram a nau, e tiraram dela toda a pregadura, madeira, cor<strong>do</strong>alha, e tu<strong>do</strong> mais <strong>que</strong> lhe foinecessário, e armaram duas <strong>em</strong>barcações, e levantaram o batel, trabalhan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s com muito gosto,e presteza; <strong>se</strong>rvin<strong>do</strong> de ferreiros, <strong>se</strong>rra<strong>do</strong>res, carpinteiros, e de to<strong>do</strong>s os mais ofícios, como <strong>se</strong>s<strong>em</strong>pre o usaram; e assim <strong>em</strong> breve t<strong>em</strong>po as acabaram, e lançaram ao mar, e fizeram sua aguada<strong>em</strong> abastança, e recolheram nelas todas as armas, e alguns berços, e falcões, por não <strong>se</strong>r<strong>em</strong> asvasilhas capazes de maiores peças, por<strong>que</strong> eram a mo<strong>do</strong> de barcaças.Uma delas <strong>se</strong> deu a Diogo Pereira de Vasconcelos, um fidalgo <strong>que</strong> ali levava sua mulher,<strong>que</strong> <strong>se</strong> chamava d. Francisca Sardinha, e era uma das mais formosas <strong>do</strong> <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po.Outra tomou Rui de Mello, capitão da nau, e a terceira deram a Antônio de Refoios, umcavaleiro muito honra<strong>do</strong>, <strong>que</strong> ia despacha<strong>do</strong> com a Capitânia de Coulão, e repartin<strong>do</strong> a gente por


49elas não coube <strong>em</strong> cada uma mais <strong>que</strong> cento e <strong>se</strong>tenta homens, fican<strong>do</strong> cento e <strong>se</strong>tenta, <strong>que</strong> pornenhum caso <strong>se</strong> puderam agasalhar: pelo <strong>que</strong> as<strong>se</strong>ntaram, <strong>que</strong> estes caminhass<strong>em</strong> por terra à vista<strong>do</strong>s batéis, para lhes socorrer<strong>em</strong> alguma necessidade, e repartin<strong>do</strong> por eles as espingardas, <strong>que</strong>havia, começaram a caminhar de longo <strong>do</strong> mar, e os batéis s<strong>em</strong>pre à sua vista, e tanto <strong>que</strong> era noiteescolhiam lugar para descansar<strong>em</strong>, e <strong>do</strong>rmir<strong>em</strong>, e surgiam os batéis com as proas <strong>em</strong> terra; e omesmo faziam a horas de jantar, <strong>em</strong> <strong>que</strong> tomavam a refeição ordinária, e assim foram caminhan<strong>do</strong>nesta ord<strong>em</strong> s<strong>em</strong> lhes acontecer desastre algum, e haven<strong>do</strong> poucos dias <strong>que</strong> caminhavam houveramvista de quatro <strong>em</strong>barcações, a <strong>que</strong> foram corren<strong>do</strong>, e elas trabalhan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> podiam por lhesfugir, e atiran<strong>do</strong>-lhes de uma <strong>em</strong>barcação das nossas com um falcão, <strong>que</strong> lhes foi zunin<strong>do</strong> pelasorelhas, lhes pôs tão grande me<strong>do</strong> e espanto, <strong>que</strong> logo <strong>se</strong> lançaram a na<strong>do</strong> para a terra, e deixaramos navios carrega<strong>do</strong>s de farinhas de sagu / <strong>que</strong> é o principal mantimento de todas a<strong>que</strong>las ilhas / de<strong>que</strong> os nossos <strong>se</strong> proveram <strong>em</strong> abastança /, e recolheram nestas <strong>em</strong>barcações toda a gente <strong>que</strong> ia porterra, com o <strong>que</strong> ficaram mais descansa<strong>do</strong>s, e <strong>se</strong>n<strong>do</strong> já <strong>em</strong> três graus da banda <strong>do</strong> sul, <strong>se</strong> recolherama um formoso rio, <strong>que</strong> acharam, des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> terra para <strong>se</strong> recrear<strong>em</strong>, e <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>também nela algumas noites, com tanto descui<strong>do</strong> e <strong>se</strong>gurança, como <strong>se</strong> a terra fos<strong>se</strong> sua, e até DiogoPereira de Vasconcellos <strong>se</strong> des<strong>em</strong>barcou ali com sua mulher, a qual vista pelos Manancabos, <strong>que</strong> é agente da terra, tão formosa, junto com estar ricamente vestida, de<strong>se</strong>jaram levá-la ao <strong>se</strong>u rei, e assimderam uma noite nas suas estâncias, e mataram perto de <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta pessoas, e levaram d. FranciscaSardinha, <strong>em</strong> cuja defensa fez o mestre da nau espantosas coisas até <strong>que</strong> o mataram. O DiogoPereira salvou uma filha, <strong>que</strong> tinha, chamada d. Constança, <strong>que</strong> depois casou com Tomé de Mellode Castro, e outras mulheres, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> recolheu à sua <strong>em</strong>barcação muito anoja<strong>do</strong> destadesventura, <strong>que</strong> lhe aconteceu por sua sobeja confiança.Dali <strong>se</strong> partiram de longo da costa, <strong>que</strong> era mui limpa, com muito mais tento, por<strong>que</strong> a<strong>que</strong>ledesastre os espertou, e não <strong>se</strong> fiaram mais da gente da terra; e assim <strong>em</strong>bocaram o bo<strong>que</strong>irão <strong>do</strong>Sonda, e foram tomar a cidade de Pata, onde acharam quatro naus portuguesas, de <strong>que</strong> era capitãomorPero Barreto Rollim, <strong>que</strong> ali estava carregan<strong>do</strong> de pimenta, e recebeu toda esta gente, e arepartiu pelas naus, e proveu a to<strong>do</strong>s bastant<strong>em</strong>ente, e parte deles <strong>se</strong> passaram a China, para ondePero Barreto Rollim ia por manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> viso-rei d. Constantino.CAPÍTULO DÉCIMODo aperto, <strong>em</strong> <strong>que</strong> os Tamoios <strong>do</strong> Rio de Janeiro pu<strong>se</strong>ram a Capitania de S. Vicente,e o governa<strong>do</strong>r lhes man<strong>do</strong>u fazer <strong>se</strong>gunda guerraVen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> os Tamoios já livres da guerra <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá, <strong>se</strong> tornaram a fortificarno Rio de Janeiro, <strong>do</strong>nde saíam a correr a costa toda até São Vicente, saltean<strong>do</strong> os índios novoscristãos, prenden<strong>do</strong>, matan<strong>do</strong>, e comen<strong>do</strong> a quantos podiam alcançar.Durou esta moléstia <strong>do</strong>is anos, s<strong>em</strong> <strong>que</strong> força alguma pudes<strong>se</strong> reprimir o atrevimento <strong>do</strong>sbárbaros insolentes, <strong>que</strong> cada dia crescia com o favor, e ajuda <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, com <strong>que</strong> já <strong>se</strong> nãocontentavam <strong>do</strong> mal <strong>que</strong> faziam aos outros índios, mas a to<strong>do</strong>s os mora<strong>do</strong>res de São Vicenteameaçavam com cruel guerra, e apre<strong>se</strong>ntavam uma armada de canoas para por mar, e por terra oscombater<strong>em</strong>.Este mal tão grande quis r<strong>em</strong>ediar o padre Manuel da Nóbrega, <strong>primeiro</strong> provincial <strong>que</strong>havia si<strong>do</strong> da Ord<strong>em</strong> da Companhia de Jesus na província <strong>do</strong> Brasil, resolven<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a ir tentear osânimos <strong>do</strong>s bárbaros para reduzi-los a condições de paz, ou dar a vida pela saúde comum.


50Para isto tomou por <strong>se</strong>u companheiro o irmão José de Anchieta, e um Antônio Luiz, hom<strong>em</strong><strong>se</strong>cular; com os quais <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> uma nau de Francisco A<strong>do</strong>rno, ilustre genovês, hom<strong>em</strong>na<strong>que</strong>la terra mui conheci<strong>do</strong>, rico, e devoto da companhia.Os bárbaros, a notícia da nau portuguesa, cuidan<strong>do</strong> <strong>que</strong> ia de guerra, acudiram a suas canoas,e lhe saíram ao encontro carregadas de flechas; porém o irmão José de Anchieta com uma breve, eamorosa prática, <strong>que</strong> lhes fez na sua língua, os quietou, e fez benévolos a sua chegada, e depois comoutras muitas, e principalmente com suas devotas orações, e ex<strong>em</strong>plo, <strong>que</strong> deu de sua vida <strong>em</strong> trêsme<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> ficou só entre eles, e <strong>do</strong>is <strong>que</strong> esteve com o padre Nóbrega, <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornou para SãoVicente, os reduziu a de<strong>se</strong>jada paz, exceto alguns, <strong>que</strong> discordes <strong>do</strong>s mais, e fia<strong>do</strong>s nas armas <strong>do</strong>sfrance<strong>se</strong>s, continuaram a guerra contra os portugue<strong>se</strong>s.Estes sucessos previu a rainha d. Catarina quan<strong>do</strong> leu a carta <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá, <strong>em</strong><strong>que</strong> lhe dava conta da vitória, <strong>que</strong> alcançara no Rio de Janeiro, e assim, ainda <strong>que</strong> lhe agradeceu, e<strong>se</strong> houve por b<strong>em</strong> <strong>se</strong>rvida dele, todavia lhe estranhou muito o haver arrasa<strong>do</strong> o forte, e não deixarqu<strong>em</strong> defendes<strong>se</strong>, e povoas<strong>se</strong> a terra, e lhe man<strong>do</strong>u, <strong>que</strong> logo o fizes<strong>se</strong>, por<strong>que</strong> não tornas<strong>se</strong> oinimigo a fazer ali as<strong>se</strong>nto com perigo de to<strong>do</strong> o Brasil; o mesmo lhe escreveu o cardeal d.Henri<strong>que</strong>, <strong>que</strong> com ela governava o reino, e para este efeito lhe mandaram pelo próprio <strong>se</strong>usobrinho Estácio de Sá, <strong>que</strong> levou a nova, uma armada de <strong>se</strong>is caravelas com o galeão S. João, euma nau da carreira da Índia chamada Santa Maria, a Nova, a <strong>que</strong> ajuntou o governa<strong>do</strong>r os maisnavios <strong>que</strong> pôde, e qui<strong>se</strong>ra ir <strong>em</strong> pessoa; mas por o povo lho não con<strong>se</strong>ntir man<strong>do</strong>u o dito <strong>se</strong>usobrinho, no ano de mil quinhentos <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta e três, a qu<strong>em</strong> acompanhou o ouvi<strong>do</strong>r-geral BrazFragoso, e Paulo Dias A<strong>do</strong>rno, comenda<strong>do</strong>r de Santiago, <strong>em</strong> uma galeota sua, <strong>que</strong> r<strong>em</strong>ava dezr<strong>em</strong>os por banda, e outros capitães, os quais chegan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s ao Rio de Janeiro acharam uma naufrancesa, <strong>que</strong> lhe quis fugir pelo rio acima, mas os nossos lhe foram no alcance, e a primeira <strong>que</strong> lhechegou foi a galé de Paulo Dias A<strong>do</strong>rno, <strong>em</strong> <strong>que</strong> também ia Duarte Martins Mourão, e Melchior deAzere<strong>do</strong>, depois chegou Braz Fragoso, e outros, os quais entran<strong>do</strong> na nau, acharam muito pão,vinho, e carne, e assim a levaram para baixo onde ficava a Capitânia Santa Maria, a Nova, e ogaleão, e o capitão-mor Estácio de Sá fez capitão dela a Antônio da Costa; mas como não há gostonesta vida, <strong>que</strong> não <strong>se</strong>ja agua<strong>do</strong>, in<strong>do</strong> uma madrugada três batéis nossos tomar água à ribeira daCarioca, deram com nove canoas de índios inimigos, <strong>que</strong> estavam aguardan<strong>do</strong> <strong>em</strong> cilada, os quaisrepartin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> três e três a cada batel, mataram no da capitânia o contramestre, o guardião, e outros<strong>do</strong>is marinheiros, e no <strong>do</strong> galeão feriram a Cristóvão d’Aguiar, o moço, com <strong>se</strong>te flechadas, e outros<strong>se</strong>te homens, e o levavam, mas Paulo Dias A<strong>do</strong>rno lhe acudiu à pressa na sua galé, e chegan<strong>do</strong> a tiroman<strong>do</strong>u pôr fogo a um falcão, <strong>que</strong> os fez largar o batel.Enterra<strong>do</strong>s os mortos <strong>em</strong> uma ilha, chamou Estácio de Sá os capitães a con<strong>se</strong>lho, eas<strong>se</strong>ntaram, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fos<strong>se</strong> a S. Vicente buscar canoas, e gentio <strong>do</strong>méstico, e amigo, com <strong>que</strong> melhor<strong>se</strong> poderia fazer guerra à<strong>que</strong>le bárbaro inimigo.Saíram uma madrugada, e a nau francesa, <strong>que</strong> haviam toma<strong>do</strong>, diante de todas as outras comum caravelão de Domingos Fernandes, <strong>do</strong>s Ilhéus, acharam na barra muitas canoas de inimigosíndios, e france<strong>se</strong>s mistura<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> chegan<strong>do</strong> ao caravelão o furaram com macha<strong>do</strong>s, e o meteramno fun<strong>do</strong>, matan<strong>do</strong>-lhe quatro homens, e ferin<strong>do</strong> a Domingos Fernandes de <strong>se</strong>is flechadas, com <strong>que</strong><strong>se</strong> foi a na<strong>do</strong> para a nau, a qual também chegaram, e lhe fizeram um buraco; mas um índio da Índiade Praz Fragoso, <strong>que</strong> ali ia com <strong>se</strong>u <strong>se</strong>nhor, <strong>se</strong> foi abaixo da coberta, e pelo mesmo buraco matouum francês, com o <strong>que</strong> eles, ou com o t<strong>em</strong>or da armada, <strong>que</strong> vinha atrás, <strong>se</strong> foram <strong>em</strong>bora, e a nautambém, <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> <strong>se</strong>u caminho para São Vicente, onde contaram ao capitão-mor, e aos mais o <strong>que</strong>lhes havia sucedi<strong>do</strong>.Neste t<strong>em</strong>po estava a povoação de São Paulo, <strong>que</strong> é da capitania de São Vicente, de guerracom o gentio, <strong>que</strong> a tinha posta <strong>em</strong> grande aperto, ao <strong>que</strong> acudiu Estácio de Sá com muita gente da


51<strong>que</strong> consigo levava, a cuja vista o gentio lhe veio logo pedir pazes, e ele lhas concedeu, e ficaramfixas.Entretanto chegaram os capitães Jorge Ferreira, e Paulo Dias, com as canoas, e gentio, <strong>que</strong>tanto <strong>que</strong> chegou man<strong>do</strong>u buscar a Cananéia, e provida a armada de to<strong>do</strong> o necessário <strong>se</strong> partiuoutra vez para o Rio de Janeiro no ano de mil quinhentos <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta e quatro, dia de São Sebastião, aqu<strong>em</strong> tomou por patrão da sua jornada, entrou pelo Rio <strong>em</strong> <strong>primeiro</strong> de março, e ancoran<strong>do</strong> naen<strong>se</strong>ada, saltaram <strong>em</strong> terra, e feitos tujupares, <strong>que</strong> são umas tendas ou choupanas de palha, paramorar<strong>em</strong>, onde agora chamam a Cidade Velha, ao pé de um pene<strong>do</strong>, <strong>que</strong> <strong>se</strong> vai às nuvens, chama<strong>do</strong>o Pão de Açúcar, <strong>se</strong> fortificaram com baluarte, e trincheiras de madeira, e terra, o melhor <strong>que</strong>puderam, <strong>do</strong>nde saíam a fazer guerra aos bárbaros, ajudan<strong>do</strong>-os Deus por espaço de <strong>do</strong>is anos <strong>que</strong>ali estiveram, de mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>em</strong> encontros qua<strong>se</strong> s<strong>em</strong>pre saíam vitoriosos, e os feri<strong>do</strong>s de mortaisferidas das flechas inimigas brev<strong>em</strong>ente saravam: outros feri<strong>do</strong>s nos peitos nus com pelouros <strong>do</strong>sarcabuzes france<strong>se</strong>s, não <strong>se</strong>ntiam mais o golpe <strong>que</strong> <strong>se</strong> estiveram arma<strong>do</strong>s de peitos de prova, e aospés lhes caíam os pelouros.Cansa<strong>do</strong>s já os Tamoios de tão prolixa guerra, e enfa<strong>do</strong>s de ruins sucessos, por<strong>que</strong>ordinariamente nos encontros saíam escalavra<strong>do</strong>s, determinaram lançar o resto de <strong>se</strong>u poder, e desua ventura <strong>em</strong> uma batalha industria<strong>do</strong>s pelos france<strong>se</strong>s, e s<strong>em</strong> dúvida a coisa ia traçada paracon<strong>se</strong>guir<strong>em</strong> <strong>se</strong>u intento. Porém a Divina Providência <strong>se</strong> acostou à parte mais justificada.Haviam os Tamoios ajunta<strong>do</strong> ao número ordinário de suas canoas outras novas, <strong>que</strong>chegaram a cento e oitenta, fabricadas <strong>se</strong>cretamente longe <strong>do</strong> posto <strong>do</strong>nde estavam os navios <strong>do</strong>sportugue<strong>se</strong>s.Toda esta armada de canoas pu<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> cilada, escondida <strong>em</strong> uma volta <strong>que</strong> fazia o mar,daqui saiu um pe<strong>que</strong>no número delas, contra as quais man<strong>do</strong>u o general cinco das nove <strong>que</strong> trouxede S. Vicente, por<strong>que</strong> os índios amigos, enfada<strong>do</strong>s da guerra, <strong>se</strong> haviam já i<strong>do</strong> com as quatro.Os Tamoios, não ainda b<strong>em</strong> começada a batalha, viraram as costas, <strong>que</strong> assim o haviamtraça<strong>do</strong>, e meteram os nossos, <strong>que</strong> atrevidamente os iam <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> na cilada, <strong>do</strong>nde saíram as maiscanoas inimigas, e subitamente as cercaram por todas as partes; mas n<strong>em</strong> por isso perderam o ânimoos portugue<strong>se</strong>s, antes resistiram valorosamente ajuda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Divino favor, o qual ainda das coisas<strong>que</strong> parec<strong>em</strong> adversas sabe tirar prósperos sucessos, como aqui <strong>se</strong> viu <strong>que</strong> acaso ascenden<strong>do</strong>-<strong>se</strong> apólvora <strong>em</strong> uma das nossas canoas chamuscou a alguns <strong>do</strong>s inimigos, <strong>que</strong> a tinham abordada, com o<strong>que</strong>, e com a chama <strong>que</strong> levantou a pólvora <strong>se</strong> alterou tanto a mulher <strong>do</strong> general, Tamoia, <strong>que</strong> dan<strong>do</strong>gritos e vozes espantosas at<strong>em</strong>orizou a to<strong>do</strong>s, e <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>se</strong>u mari<strong>do</strong> o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> fugiu com ela, os<strong>se</strong>guiram os mais, deixan<strong>do</strong> livres os nossos, os quais tornan<strong>do</strong> às suas fronteiras deram graças aDeus por tão grande benefício, e por os haver livres de perigo tão grande pela voz e assombro deuma fraca mulher, ainda <strong>que</strong> depois declararam os mesmos inimigos <strong>que</strong> não fora por isto, <strong>se</strong>nãopor haver<strong>em</strong> visto um combatente estranho, de notável postura, e beleza, <strong>que</strong> saltan<strong>do</strong>atrevidamente nas suas canoas os enchera de me<strong>do</strong>; <strong>do</strong>nde creram os portugue<strong>se</strong>s <strong>que</strong> era o b<strong>em</strong>aventura<strong>do</strong>S. Sebastião, a qu<strong>em</strong> haviam toma<strong>do</strong> por padroeiro desta guerra.CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRODa viag<strong>em</strong>, <strong>que</strong> fez Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> de Pernambuco para oreino, e casos <strong>que</strong> nela sucederamNão faltavam também neste t<strong>em</strong>po guerras <strong>em</strong> Pernambuco, por<strong>que</strong> com a<strong>que</strong>la vitória, <strong>que</strong>os gentios <strong>do</strong> cabo de Santo Agostinho alcançaram de Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, de <strong>que</strong> fiz<strong>em</strong>osmenção no capítulo undécimo <strong>do</strong> <strong>livro</strong> precedente, ficaram tão soberbos, e atrevi<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> nãocessavam de dar assaltos nos escravos <strong>que</strong> os portugue<strong>se</strong>s tinham <strong>em</strong> suas roças, e fazendas, e


52principalmente <strong>em</strong> outros gentios da mata <strong>do</strong> Brasil, nossos confedera<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> eles tinham parmortais inimigos; e o mesmo faziam os <strong>do</strong> rio de São Francisco nos barcos <strong>que</strong> iam ao resgate, <strong>que</strong><strong>se</strong> ao descoberto comerciavam, e mostravam amor aos portugue<strong>se</strong>s, <strong>em</strong> <strong>se</strong>creto <strong>se</strong> colhiam algunsdescuida<strong>do</strong>s os matavam, e comiam.Sobre tu<strong>do</strong> isto a rainha d. Catarina, <strong>que</strong> governava o reino, e não teve menos cuida<strong>do</strong> <strong>em</strong>mandar acudir a estas guerras <strong>que</strong> às <strong>do</strong> Rio de Janeiro, mandan<strong>do</strong> <strong>que</strong> logo <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcas<strong>se</strong> DuarteCoelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> herdeiro da<strong>que</strong>la capitania, e a vies<strong>se</strong> socorrer, o qual, por entender quãonecessário lhe era trazer consigo <strong>se</strong>u irmão Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, pediu à rainha <strong>que</strong> o mandas<strong>se</strong>como man<strong>do</strong>u, e ele obedeceu, assim por <strong>se</strong>rviço da Rainha e del-rei, <strong>se</strong>u neto, como por dar gosto a<strong>se</strong>u irmão, e o ajudar.E assim, tanto <strong>que</strong> chegaram a Pernambuco, e tomou Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> pos<strong>se</strong>da sua capitania, <strong>que</strong> foi na era de mil quinhentos e <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta, logo chamou a con<strong>se</strong>lho os homensprincipais <strong>do</strong> governo da terra, e <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntou entre to<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong> eleges<strong>se</strong> por general da guerraJorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, o qual aceitan<strong>do</strong> o cargo começou logo a fazer assim aos inimigos <strong>do</strong> cabode Santo Agostinho, sain<strong>do</strong>-lhes muitas vezes ao encontro aos <strong>se</strong>us assaltos, matan<strong>do</strong>, e ferin<strong>do</strong> amuitos, com <strong>que</strong> já deixavam alargar-<strong>se</strong> os brancos, e viver <strong>em</strong> suas granjas, como aos <strong>do</strong> rio de SãoFrancisco, aonde foi <strong>em</strong> companhia de <strong>se</strong>u irmão, e neste militar exercício <strong>se</strong> ocupou cinco anos,sofren<strong>do</strong> muitas fomes, e <strong>se</strong>des, e não s<strong>em</strong> derramar <strong>se</strong>u sangue de muitas flechadas, <strong>que</strong> osinimigos lhe deram, até <strong>que</strong> enfada<strong>do</strong> mais das guerras civis, e dis<strong>se</strong>nsões <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s amigos<strong>que</strong> destoutras, determinou ir-<strong>se</strong> outra vez para o reino, e <strong>em</strong>barcar-<strong>se</strong> <strong>em</strong> uma nau nova deduzentos tonéis, por nome Santo Antônio, <strong>que</strong> estava carregada no porto <strong>do</strong> Recife para Lisboa, de<strong>que</strong> era mestre André Rodrigues, e piloto Álvaro Marinho, e estan<strong>do</strong> carregada a nau, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou,e partiu <strong>em</strong> uma quarta-feira, 16 de maio <strong>do</strong> ano de 1566, e não era b<strong>em</strong> fora da barra, quan<strong>do</strong> lheacalmou o vento com <strong>que</strong> partiu, e <strong>se</strong> lhe tornou tão contrário, <strong>que</strong> com a corrente da maré, <strong>que</strong>começava a vazar, levou a nau através até dar <strong>em</strong> um baixo, onde esteve quatro marés mui perto de<strong>se</strong> perder, <strong>se</strong> os mares foram mais grossos; e por lhe acudir<strong>em</strong> com presteza muitos batéis e outras<strong>em</strong>barcações, <strong>se</strong> salvou toda a gente, e fazenda, e n<strong>em</strong> assim descarregada pôde sair <strong>do</strong> baixo, <strong>em</strong><strong>que</strong> estava, s<strong>em</strong> lhe cortar<strong>em</strong> os mastros, pelo <strong>que</strong> lhe foi força<strong>do</strong> tornar ao porto, e concertar-<strong>se</strong>, ecarregar de novo, no <strong>que</strong> gastou mês e meio, até 29 de junho, dia de São Pedro e São Paulo, <strong>em</strong> <strong>que</strong><strong>se</strong> tornou a <strong>em</strong>barcar com to<strong>do</strong>s os da sua companhia não s<strong>em</strong> contradição <strong>do</strong>s amigos, <strong>que</strong> peloprincípio lhe prognosticavam o ruim sucesso da viag<strong>em</strong>, a qual foi uma das piores, e maisperigosas, <strong>que</strong> hão visto navegantes; por<strong>que</strong> in<strong>do</strong> d<strong>em</strong>andar as ilhas uma <strong>se</strong>gunda-feira, 3 de<strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro, fazen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> o piloto com elas, veio a eles uma nau de corsários france<strong>se</strong>s, artilhada, econcertada como costumam, e por a nossa ir desarmada, e só com um falcão, e um berço,determinaram os homens <strong>do</strong> mar a <strong>se</strong> render, e entregar aos france<strong>se</strong>s, a <strong>que</strong> acudiu Jorge deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> nunca Deus qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong>, n<strong>em</strong> permitis<strong>se</strong> <strong>que</strong> a nau <strong>em</strong> <strong>que</strong> ele ia <strong>se</strong> rendes<strong>se</strong>s<strong>em</strong> pelejar, e <strong>se</strong> defender quanto possível fos<strong>se</strong>; por isso <strong>que</strong> trabalhass<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s de fazer o <strong>que</strong>deviam, e o ajudass<strong>em</strong> a pelejar, por<strong>que</strong>, com a ajuda de Nosso Senhor, somente com o berço, efalcão, <strong>que</strong> tinham, esperava <strong>se</strong> defender; mas como a nau ia tão desapercebida de armas, e os mais<strong>que</strong> nela iam foss<strong>em</strong> tão fracos de coração, não achou Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> qu<strong>em</strong> o qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong>ajudar, mais <strong>que</strong> <strong>se</strong>te homens, <strong>que</strong> para isso <strong>se</strong> lhe ofereceram; e assim com estes somente, contra oparecer <strong>do</strong>s mais, <strong>se</strong> pôs às bombardas, arcabuzadas, e flechadas com os france<strong>se</strong>s perto de três dias,até <strong>que</strong> o mestre, e o piloto, ven<strong>do</strong> o muito dano <strong>que</strong> assim a nau como a gente recebia da artilharia,e arcabuzaria <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, e <strong>que</strong> Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>em</strong> nenhum mo<strong>do</strong> determinava entregar<strong>se</strong>,mandaram dar subitamente com as velas <strong>em</strong>baixo, e começaram a bradar pelos france<strong>se</strong>s <strong>que</strong>entrass<strong>em</strong> a nau, como logo fizeram pela quadra dezes<strong>se</strong>te france<strong>se</strong>s arma<strong>do</strong>s de armas brancas comsuas espadas e broquéis, e pistolas, os quais, s<strong>em</strong> lhes responder<strong>em</strong> n<strong>em</strong> lhe poder estorvar <strong>se</strong>


53a<strong>se</strong>nhorearam da nau, e ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> nela não havia mais <strong>que</strong> o berço, e falcão, <strong>que</strong> esta dito, ficarammuito espanta<strong>do</strong>s, e muito mais quan<strong>do</strong> lhe dis<strong>se</strong>ram quão poucos eram os <strong>que</strong> pelejavam, e <strong>se</strong>n<strong>do</strong>dito ao capitão francês <strong>que</strong> Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> fora o <strong>que</strong> fizera defender a nau to<strong>do</strong> a<strong>que</strong>let<strong>em</strong>po, <strong>se</strong> chegou a ele, e lhe dis<strong>se</strong>: Não me espanta o teu esforço, <strong>que</strong> es<strong>se</strong> t<strong>em</strong> to<strong>do</strong> o bom solda<strong>do</strong>,mas espanta-me a t<strong>em</strong>eridade de <strong>que</strong>reres defender uma nau tão desapercebida com tão poucoscompanheiros, e menos petrechos de guerra, mas mão te desconsoles, <strong>que</strong> por quão bom solda<strong>do</strong> tués, eu te farei muito boa companhia, e assim lha fez, tanto <strong>que</strong> não <strong>que</strong>ria comer s<strong>em</strong> ele vir<strong>primeiro</strong>, e o fazia as<strong>se</strong>ntar na cabeceira da mesa, até <strong>que</strong> um dia, rogan<strong>do</strong>-lhe o capitão <strong>que</strong> abenzes<strong>se</strong> ao mo<strong>do</strong> <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, ele a benzeu com o sinal da cruz, como costumamos, <strong>do</strong> <strong>que</strong>alguns <strong>do</strong>s circunstantes luteranos o repreenderam, e ele repreendi<strong>do</strong>, mas não arrependi<strong>do</strong>, <strong>se</strong>tornou a benzer, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> com a<strong>que</strong>le sinal da cruz <strong>se</strong> havia de abraçar enquanto vives<strong>se</strong>, e neleesperava de <strong>se</strong> salvar de to<strong>do</strong>s <strong>se</strong>us inimigos, e com isto pediu ao capitão licença para não ir comermais, com eles, e poder comer <strong>em</strong> sua câmera o <strong>que</strong> lhe dess<strong>em</strong>, e posto <strong>que</strong> o capitão mostrou-<strong>se</strong>agravar-<strong>se</strong> disto, todavia lhe deu a licença <strong>que</strong> pedia, e vinha ele algumas vezes comer com Jorge deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>.Estan<strong>do</strong> já <strong>em</strong> altura de 43º graus, <strong>em</strong> uma quarta-feira 12 de <strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro, sobreveio a maiortormenta de vento <strong>que</strong> nunca <strong>se</strong> viu, com <strong>que</strong> a nau chegou a ficar s<strong>em</strong> l<strong>em</strong>e, s<strong>em</strong> velas, s<strong>em</strong>mastros, e qua<strong>se</strong> rasa com a água; e ven<strong>do</strong>-<strong>se</strong> to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> tão grande perigo, ficaram assombra<strong>do</strong>s efora de si, t<strong>em</strong>en<strong>do</strong> <strong>se</strong>r esta a derradeira hora da vida, e com este t<strong>em</strong>or <strong>se</strong> chegaram to<strong>do</strong>s a umpadre da Companhia de Jesus por nome Álvaro de Lucena, <strong>que</strong> com eles ia, e a ele <strong>se</strong> confessaram,e depois de confessa<strong>do</strong>s, e <strong>se</strong> pedir<strong>em</strong> perdão uns aos outros, <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram to<strong>do</strong>s de joelhos pedin<strong>do</strong> aNosso Senhor Mi<strong>se</strong>ricórdia, o <strong>que</strong> também fizeram os france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> ficaram dentro da nossa nau,por<strong>que</strong> a sua logo no princípio da tormenta desapareceu, e pediam perdão aos portugue<strong>se</strong>s dizen<strong>do</strong><strong>que</strong> por <strong>se</strong>us peca<strong>do</strong>s viera a<strong>que</strong>la tormenta, <strong>que</strong> rogass<strong>em</strong> a Deus por eles, <strong>que</strong> já <strong>se</strong> davam pormortos, pois a nau estava da maneira <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s viam. Mas Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> começou <strong>em</strong> altasvozes a esforçar a uns e outros, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> fizess<strong>em</strong> também de sua parte o r<strong>em</strong>édio possível, unsdan<strong>do</strong> à bomba, outros esgotan<strong>do</strong> a água <strong>que</strong> estava no convés; por<strong>que</strong> esperava na bondade divina,e intercessão da Virg<strong>em</strong> Senhora Nossa, <strong>que</strong> haviam de <strong>se</strong>r livres <strong>do</strong> perigo <strong>em</strong> <strong>que</strong> estavam;estan<strong>do</strong>-lhes dizen<strong>do</strong> isto viram to<strong>do</strong>s um resplen<strong>do</strong>r grande no meio da grandíssima escuridão com<strong>que</strong> iam, a <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s <strong>se</strong> tornaram a pôr de joelhos, encomendan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> à Virg<strong>em</strong>, e pedin<strong>do</strong> a DeusMi<strong>se</strong>ricórdia, o qual foi <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> de aplacar a tormenta, e logo apareceu também a nau francesatambém muito desbaratada, mas não tanto <strong>que</strong> ainda não pudes<strong>se</strong> prover estoutra assim de enxárciae velas como de mantimento, o <strong>que</strong> não qui<strong>se</strong>ram fazer, antes descarregan<strong>do</strong>-a de alguma fazenda<strong>que</strong> tinha <strong>em</strong> si, e levan<strong>do</strong> os <strong>se</strong>us france<strong>se</strong>s, <strong>se</strong> foram para França, deixan<strong>do</strong> só aos portugue<strong>se</strong>s<strong>do</strong>is sacos de biscoito podre, e uma pouca de cerveja danada, ao <strong>que</strong> <strong>se</strong> ajuntou uma botija, <strong>que</strong>ainda os nossos tinham, com duas canadas de vinho, e um frasco de água de flor, uns poucos decocos, e poucos punha<strong>do</strong>s de farinha de guerra, e <strong>se</strong>is tassalhos de peixe-boi, <strong>que</strong> Jorge deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> foi repartin<strong>do</strong> por trinta e tantos homens o t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> durou a viag<strong>em</strong>, para a qual deuord<strong>em</strong> com <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizes<strong>se</strong> uma vela de alguns guardanapos e toalhas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> acharam na nau, asquais man<strong>do</strong>u <strong>se</strong> ajuntass<strong>em</strong> a uma velinha de esquife <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> ficou, e de <strong>do</strong>is r<strong>em</strong>osfizeram uma verga, e sobre o pé <strong>do</strong> mastro grande pu<strong>se</strong>ram um pedaço de pau de duas braças <strong>em</strong>alto, e de uns pedaços de enxárcia, <strong>que</strong> haviam fica<strong>do</strong>, e de cordas de rede, e morrões, fizeramenxárcia; o l<strong>em</strong>e andava pendura<strong>do</strong> por um só ferro, <strong>que</strong> lhe ficou, e lançaram-lhe umas cordas para<strong>que</strong> pudes<strong>se</strong> <strong>se</strong>rvir, e com isto <strong>se</strong>guiram sua viag<strong>em</strong>, toman<strong>do</strong> a Nossa Senhora Mãe de Deus porguia, s<strong>em</strong> mais outra agulha ou astrolábio <strong>que</strong> prestas<strong>se</strong>, por<strong>que</strong> tu<strong>do</strong> lhe levaram os france<strong>se</strong>s; aqual os guiou de mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> milagrosamente <strong>se</strong> acharam defronte da sua igreja da Pena, entre asBarlengas e a <strong>se</strong>rra de Cintra; ao dia <strong>se</strong>guinte <strong>se</strong> acharam mui perto da roca, e in<strong>do</strong> já a nau para dar


54à costa, passou por eles uma caravela, <strong>que</strong> ia para a pederneira, e pedin<strong>do</strong> aos homens dela <strong>que</strong> àhonra da morte e paixão de Nosso Senhor os qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> socorrer, e <strong>que</strong> lhes pagariam muito b<strong>em</strong> <strong>se</strong>os tomass<strong>em</strong>, e levass<strong>em</strong> à terra, responderam <strong>que</strong> Jesus Cristo lhes vales<strong>se</strong>, <strong>que</strong> eles não podiamperder t<strong>em</strong>po de viag<strong>em</strong>, e <strong>se</strong> foram s<strong>em</strong> alguma piedade, ou porventura houveram me<strong>do</strong> da nau porlhes parecer fantasma, por<strong>que</strong> nunca <strong>se</strong> viu no mar coisa tão dess<strong>em</strong>elhada para navegar, como opedaço da nau <strong>em</strong> <strong>que</strong> iam; porém este me<strong>do</strong> ou crueldade não tiveram outros <strong>que</strong> iam para aAtouguia, os quais acudiram logo aos <strong>primeiro</strong>s bra<strong>do</strong>s / <strong>que</strong> não podiam ouvir <strong>se</strong>nãomilagrosamente por estar<strong>em</strong> muito longe / e levaram a nau à toa até a por<strong>em</strong> <strong>em</strong> Cascais, a horas desol posto; <strong>do</strong>nde o infante d. Henri<strong>que</strong>, cardeal, <strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po governava o reino de Portugal, aman<strong>do</strong>u levar pelo rio acima, e pô-la defronte da igreja de São Paulo, para <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>que</strong> aviss<strong>em</strong> dess<strong>em</strong> muitos louvores a Deus, por livrar os <strong>que</strong> nela vinham de tantos perigos comopassaram. E assim, ainda <strong>que</strong> esta viag<strong>em</strong> pertence tanto a História <strong>do</strong> Brasil <strong>que</strong> vou escreven<strong>do</strong>por <strong>se</strong>r ele o término a quo, e feita, e padecida por um <strong>do</strong>s capitães destas partes, e natural delas,contu<strong>do</strong> rogo aos <strong>que</strong> ler<strong>em</strong> este capítulo, <strong>que</strong> dê<strong>em</strong> ao Senhor as mesmas graças, e louvores; etenham s<strong>em</strong>pre nele firme esperança, <strong>que</strong> os pode livrar de to<strong>do</strong>s os perigos.CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDODe como o governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá tornou ao Rio de Janeiro, fun<strong>do</strong>u nele a cidade deS. Sebastião, e <strong>do</strong> mais <strong>que</strong> lá fez até tornar à BahiaPosto <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá não estava ocioso na Bahia, não deixava de estar com opensamento nas coisas <strong>do</strong> Rio de Janeiro, e assim sacudin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> de todas as mais, aprestou umaarmada, e com o bispo d. Pedro Leitão, <strong>que</strong> ia visitar as capitanias <strong>do</strong> sul, <strong>que</strong> todas na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>poeram da sua dioce<strong>se</strong>, e jurisdição, e com toda a mais luzida <strong>que</strong> pôde levar desta cidade, <strong>se</strong><strong>em</strong>barcou e chegou brev<strong>em</strong>ente ao Rio, onde <strong>em</strong> dia de São Sebastião, vinte de janeiro <strong>do</strong> ano d<strong>em</strong>il quinhentos <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta e <strong>se</strong>te, acabou de lançar os inimigos de toda a en<strong>se</strong>ada, e os <strong>se</strong>guiu dentrode suas terras sujeitan<strong>do</strong>-os a <strong>se</strong>u poder, e arrasan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is lugares <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> haviam fortifica<strong>do</strong> osfrance<strong>se</strong>s, posto <strong>que</strong> <strong>em</strong> um deles, <strong>que</strong> foi na aldeia de um índio principal chama<strong>do</strong> Iburaguaçumirim, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r dizer «pau grande pe<strong>que</strong>no,» lhe feriram <strong>se</strong>u sobrinho Estácio de Sá de umamortífera flechada, de <strong>que</strong> depois morreu.Sos<strong>se</strong>gadas as coisas da guerra, escolheu o governa<strong>do</strong>r sítio acomoda<strong>do</strong> ao edifício de umanova cidade, a qual man<strong>do</strong>u fortalecer com quatro castelos, e a barra ou entrada <strong>do</strong> Rio com <strong>do</strong>is,chamou a cidade de S. Sebastião, não só por <strong>se</strong>r nome de <strong>se</strong>u rei, <strong>se</strong>não por agradecimento <strong>do</strong>sbenefícios recebi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> santo, pois a vitória passada <strong>se</strong> ganhou dia de S. Sebastião; e <strong>em</strong> este dia,<strong>do</strong>is anos antes, partiu Estácio de Sá de S. Vicente para o Rio de Janeiro, e começou a guerrainvocan<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u favor, o qual reconheceram b<strong>em</strong> os portugue<strong>se</strong>s, assim na batalha naval das canoas,como <strong>em</strong> outras ocasiões de perigo.Pelo <strong>que</strong>, ainda <strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória da vitória das canoas, <strong>se</strong> faz to<strong>do</strong>s os anos na<strong>que</strong>la baía,defronte da cidade, no dia <strong>do</strong> glorioso São Sebastião uma escaramuça de canoas com grande grita<strong>do</strong>s índios, <strong>que</strong> as r<strong>em</strong>am, e <strong>se</strong> combat<strong>em</strong>, coisa muito para ver.O sítio <strong>em</strong> <strong>que</strong> M<strong>em</strong> de Sá fun<strong>do</strong>u a cidade de São Sebastião foi o cume de um monte,<strong>do</strong>nde facilmente <strong>se</strong> podiam defender <strong>do</strong>s inimigos, mas depois, estan<strong>do</strong> a terra de paz, <strong>se</strong> estendeupelo vale ao longo <strong>do</strong> mar, de sorte <strong>que</strong> a praia lhe <strong>se</strong>rve de rua principal, e assim <strong>se</strong>n<strong>do</strong> lá capitãomorAfonso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>se</strong> achou uma manhã defronte da porta <strong>do</strong> Convento <strong>do</strong> Carmo, <strong>que</strong>ali está, uma baleia morta, <strong>que</strong> de noite havia da<strong>do</strong> à costa; e as canoas <strong>que</strong> v<strong>em</strong> das roças, ougranjas <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res, ali ficam des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> cada um à sua porta, ou perto dela, com o <strong>que</strong>


55traz<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> lhe custar trabalho de carretos, como costa pela ladeira acima. N<strong>em</strong> eles próprios lásubiram <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o ano, e menos as mulheres, <strong>se</strong> não fora estar lá a igreja Matriz, e a <strong>do</strong>s padres dacompanhia, pela qual causa mora ainda lá alguma gente.Fundada pois a cidade pelo governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá no dito outeiro, ordenou logo <strong>que</strong>houves<strong>se</strong> oficiais, e ministros da milícia, justiça, e fazenda, e por<strong>que</strong> haviam i<strong>do</strong> na armadamerca<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> entre outras merca<strong>do</strong>rias levaram algumas pipas de vinho, man<strong>do</strong>u-lhes ogoverna<strong>do</strong>r <strong>que</strong> o vendess<strong>em</strong> ataverna<strong>do</strong>, e pedin<strong>do</strong> eles <strong>que</strong> lhes pu<strong>se</strong>s<strong>se</strong> a canada por um preçoexcessivo, tirou ele o capacete da cabeça com cólera, e dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> sim, mas <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le havia de <strong>se</strong>r oquartilho, e assim foi, e é ainda hoje, por onde <strong>se</strong> afilam as medidas, <strong>do</strong>nde v<strong>em</strong> <strong>se</strong>r<strong>em</strong> tão grandes,<strong>que</strong> a maior peroleira não leva mais de cinco quartilhos.Entre os <strong>primeiro</strong>s france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> vieram ao Rio de Janeiro <strong>em</strong> companhia de NicolauVillegaignon, de <strong>que</strong> tratamos no capítulo oitavo deste <strong>livro</strong>, vinha um hereje calvinista chama<strong>do</strong>João Bouller, o qual fugiu para a capitania de S. Vicente, onde os portugue<strong>se</strong>s o receberamcuidan<strong>do</strong> <strong>se</strong>r católico, e como tal o admitiam <strong>em</strong> suas conversações, por ele <strong>se</strong>r também na suaeloqüente, e universal na língua espanhola, latina, grega, e saber alguns princípios da hebréia, eversa<strong>do</strong> <strong>em</strong> alguns lugares da Sagrada Escritura, com os quais entendi<strong>do</strong>s a <strong>se</strong>u mo<strong>do</strong> <strong>do</strong>urava aspirolas, e encobria o veneno aos <strong>que</strong> o ouviam, e viam morder algumas vezes na autoridade <strong>do</strong>Sumo Pontífice, no uso <strong>do</strong>s sacramentos, no valor das indulgências, e na veneração das imagens.Contu<strong>do</strong> não faltou qu<strong>em</strong> o conheces<strong>se</strong> / <strong>que</strong> ao lume da Fé nada <strong>se</strong> esconde /, e o foram denunciarao bispo, o qual o condenou como <strong>se</strong>us erros mereciam, e sua obstinação, <strong>que</strong> nunca quis retratar<strong>se</strong>;pelo <strong>que</strong> o r<strong>em</strong>eteu ao governa<strong>do</strong>r, o qual o man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> à vista <strong>do</strong>s outros, <strong>que</strong> tinham cativosna última vitória, morres<strong>se</strong> a mãos de um algoz.Achou-<strong>se</strong> ali para o ajudar a b<strong>em</strong> morrer o padre José de Anchieta, <strong>que</strong> já então erasacer<strong>do</strong>te, e o tinha ordena<strong>do</strong> o mesmo bispo d. Pedro Leitão, e posto <strong>que</strong> no princípio o achourebelde não prometeu a Divina Providência <strong>que</strong> <strong>se</strong> perdes<strong>se</strong> a<strong>que</strong>la ovelha fora <strong>do</strong> rebanho da igreja,<strong>se</strong>não <strong>que</strong> o padre com suas eficazes razões, e principalmente com a eficácia da graça, o reduzis<strong>se</strong> aela, ficou o padre tão contente deste ganho, e por con<strong>se</strong>guinte tão receoso de o tornar a perder, <strong>que</strong>ven<strong>do</strong> <strong>se</strong>r o algoz pouco destro <strong>em</strong> <strong>se</strong>u ofício, e <strong>que</strong> <strong>se</strong> detinha <strong>em</strong> dar a morte ao réu, e com isso oangustiava, e o punha <strong>em</strong> perigo de renegar a verdade, <strong>que</strong> já tinha confessada, repreendeu o algoz,e o industriou para <strong>que</strong> fizes<strong>se</strong> com presteza <strong>se</strong>u ofício, escolhen<strong>do</strong> antes pôr-<strong>se</strong> a si mesmo <strong>em</strong>perigo de incorrer nas penas eclesiásticas, de <strong>que</strong> logo <strong>se</strong> absolveria, <strong>que</strong> arriscar-<strong>se</strong> a<strong>que</strong>la alma àspenas eternas.Casos são estes <strong>que</strong> desculpa a divina dispensação, e a caridade, <strong>que</strong> é sobre toda a lei, e s<strong>em</strong>isto mais são para admirar, <strong>que</strong> para imitar.Ordenadas todas as coisas tocantes ao governo político, povoada, e fortificada a terra, aencarregou o governa<strong>do</strong>r a Salva<strong>do</strong>r Corrêa de Sá, <strong>se</strong>u sobrinho, para <strong>que</strong> a governas<strong>se</strong>, e ele <strong>se</strong>tornou para a Bahia.CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRODe como o governa<strong>do</strong>r tornou para a Bahia, e de uma nau <strong>que</strong>a ela arribou in<strong>do</strong> para a ÍndiaTornan<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá para a Bahia, e chegan<strong>do</strong> a ela, escreveu logo a rainha, eao infante cardeal d. Henri<strong>que</strong>, <strong>que</strong> governava o reino, o <strong>que</strong> tinha feito no Rio de Janeiro, pedin<strong>do</strong><strong>em</strong> satisfação de <strong>se</strong>us <strong>se</strong>rviços lhe mandas<strong>se</strong> sucessor, para <strong>se</strong> poder ir para Portugal, onde tinha suafilha d. Helena, <strong>que</strong> depois casou com o conde de Linhares d. Fernan<strong>do</strong> de Noronha; e entretanto foicontinuan<strong>do</strong> com <strong>se</strong>u cargo como costumava, e era obriga<strong>do</strong>.


56Neste t<strong>em</strong>po veio aqui de arribada Francisco Barreto, <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r da Índia, eia conquistar Menomotapa, a qu<strong>em</strong> o governa<strong>do</strong>r <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> pôde para sua navegação; ficou-lheaqui muita gente, e entre os mais um solda<strong>do</strong> homicida, <strong>que</strong> <strong>em</strong> algum t<strong>em</strong>po teve diferenças comoutro <strong>em</strong> Portugal, mas haviam-<strong>se</strong> depois congraça<strong>do</strong>, e vinham ambos, e como tais <strong>se</strong> foram umatarde recrear ao campo, onde <strong>se</strong> lançaram à sombra de uma fresca árvore, e a<strong>do</strong>rmecen<strong>do</strong> o outro, oMedeiros / <strong>que</strong> assim <strong>se</strong> chamava o homicida/ lhe deu uma estocada de <strong>que</strong> logo morreu.Muito de<strong>se</strong>jou Francisco Barreto castigar esta aleivosia <strong>do</strong> <strong>se</strong>u solda<strong>do</strong>, mas não pôde colhêlo,porém depois da sua partida o ouvi<strong>do</strong>r-geral Fernão da Silva o prendeu, e forma<strong>do</strong> o processo foi<strong>se</strong>ntencia<strong>do</strong> à morte.O dia <strong>que</strong> o levaram a justiçar os mais, <strong>que</strong> ficaram de Francisco Barreto, tinham da<strong>do</strong>ord<strong>em</strong> <strong>que</strong> estivess<strong>em</strong> trinca<strong>do</strong>s os baraços, para <strong>que</strong> caís<strong>se</strong> da forca, como <strong>em</strong> efeito caiu não sóuma vez mas três vezes, o <strong>que</strong> visto pelos irmãos da Mi<strong>se</strong>ricórdia, <strong>que</strong> o haviam acompanha<strong>do</strong> coma justiça, como é costume, re<strong>que</strong>reram ao ouvi<strong>do</strong>r-geral, <strong>que</strong> não executas<strong>se</strong> a <strong>se</strong>ntença, pois assimparecia <strong>se</strong>r vontade de Deus, o <strong>que</strong> ele fez, e tornan<strong>do</strong>-o ao cárcere foi logo avisar ao governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong><strong>que</strong> havia passa<strong>do</strong>, o qual, como era letra<strong>do</strong> e reto na justiça, o repreendeu muito, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong>a<strong>que</strong>la pie<strong>do</strong>sa opinião era, mas não tinha lugar na<strong>que</strong>le caso, onde a verdade era sabida, e aaleivosia tão notória, pelo <strong>que</strong> o mesmo governa<strong>do</strong>r uma madrugada o man<strong>do</strong>u tirar da cadeia, efazer uma forca à porta dela, onde o enforcaram, e não <strong>que</strong>brou a corda.Nestas, e outras coisas s<strong>em</strong>elhantes <strong>se</strong> ocupava o governa<strong>do</strong>r na Bahia enquanto esperavasucessor, e as guerras não cessavam assim nas capitanias <strong>do</strong> sul, como <strong>do</strong> norte, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> ver<strong>em</strong>osnos capítulos <strong>se</strong>guintes.CAPÍTULO DÉCIMO QUARTODe como os Tamoios, e france<strong>se</strong>s depois da vinda <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r foram <strong>do</strong> Cabo Frio ao Rio deJaneiro para tomar<strong>em</strong> uma aldeia, e <strong>do</strong> <strong>que</strong> lhe sucedeuPosto <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r geral M<strong>em</strong> de Sá, antes <strong>que</strong> <strong>se</strong> vies<strong>se</strong> para a Bahia, deixou limpa a<strong>do</strong> Rio de Janeiro <strong>do</strong>s inimigos Tamoios, eles <strong>se</strong> acolheram ao Cabo Frio, <strong>que</strong> dista <strong>do</strong> Rio 18léguas, e ali <strong>se</strong> fizeram, fortes, e saíam a dar alguns assaltos aos de S. Vicente ajuda<strong>do</strong>s <strong>do</strong>sfrance<strong>se</strong>s, a conta deles mesmos também os ajudar<strong>em</strong> a cortar pau-<strong>brasil</strong> para carregar<strong>em</strong> suas naus,<strong>que</strong> há muito na<strong>que</strong>le cabo; e a tanto chegou o <strong>se</strong>u atrevimento, <strong>que</strong> juntan<strong>do</strong> a oito naus francesasas canoas <strong>que</strong> puderam, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram uns e outros, e entraram pelo Rio de Janeiro, e passan<strong>do</strong> àvista da cidade de S. Sebastião, foram surgir <strong>em</strong> um porto de uma aldeia, <strong>que</strong> distava da cidade umalégua, a qual era <strong>do</strong>s índios confedera<strong>do</strong>s, e amigos <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, onde estava por principal umde grande ânimo, e esforço, <strong>que</strong> nas guerras passadas havia feito grandes façanhas <strong>em</strong> defensa <strong>do</strong>nome cristão, e <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s: <strong>se</strong>u nome <strong>brasil</strong>eiro foi Araribóia, e no batismo <strong>se</strong> chamou MartimAfonso de Souza, como <strong>se</strong>u padrinho o <strong>se</strong>nhor de S. Vicente, <strong>que</strong> o padrinhou quan<strong>do</strong> viu a suacapitania no ano de mil quinhentos e trinta.A este vinham os Tamoios ajuda<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s saltear e prender, para fazer<strong>em</strong> <strong>em</strong> suaterra um solene ban<strong>que</strong>te de suas carnes, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> eles o mandaram por um mensageiro dizer aocapitão-mor Salva<strong>do</strong>r Corrêa de Sá, o qual t<strong>em</strong>eroso <strong>que</strong> tomada a aldeia tornass<strong>em</strong> sobre a cidade,a fortificou muito à pressa, e man<strong>do</strong>u aos mora<strong>do</strong>res, e solda<strong>do</strong>s <strong>que</strong> estivess<strong>em</strong> <strong>em</strong> armas, e nãomenos solícito da saúde <strong>do</strong> índio amigo lhe man<strong>do</strong>u logo socorro de gente portuguesa / ainda <strong>que</strong>pouca/ animosa, e governada por Duarte Martins Mourão, <strong>se</strong>u capitão.Avisa<strong>do</strong> o valoroso índio Martim Afonso de Souza, cercou logo a sua aldeia de trincheiras, edeten<strong>do</strong> só nela os <strong>que</strong> podiam pelejar, man<strong>do</strong>u sair toda a gente inútil, e escondê-la <strong>em</strong> parte


57<strong>se</strong>gura, e ele com grande ânimo esperou os inimigos, os quais des<strong>em</strong>barca<strong>do</strong>s <strong>em</strong> terra, e a <strong>se</strong>uprometer <strong>se</strong>guros da vitória, nenhuma coisa fizeram a<strong>que</strong>le dia, dilatan<strong>do</strong> a batalha para o outro<strong>se</strong>guinte.Donde os nossos, <strong>que</strong> vieram de socorro, ajuda<strong>do</strong>s da obscuridade da noite puderam pôr <strong>em</strong>bom lugar um falconete, <strong>que</strong> <strong>em</strong> uma grande canoa haviam trazi<strong>do</strong> para arredar<strong>em</strong> com ele osinimigos.Esforça<strong>do</strong> mais o valoroso índio com este socorro, e animan<strong>do</strong> os <strong>se</strong>us, man<strong>do</strong>u romper astrincheiras, e apelidan<strong>do</strong> o nome de Jesus e de São Sebastião, acometer o inimigo, antes <strong>que</strong> <strong>se</strong>concertas<strong>se</strong> <strong>em</strong> esquadrões; os índios alenta<strong>do</strong>s com a voz <strong>do</strong> <strong>se</strong>u capitão, e anima<strong>do</strong>s com oex<strong>em</strong>plo <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, cerraram com os inimigos desconcerta<strong>do</strong>s, os quais ainda, por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> mais<strong>em</strong> número, lhes resistiram fort<strong>em</strong>ente, enfim viraram as costas, não poden<strong>do</strong> sofrer a força <strong>do</strong>sportugue<strong>se</strong>s, e índios confedera<strong>do</strong>s.Os nossos os <strong>se</strong>guiram, e com pouco dano <strong>se</strong>u, fizeram grande matança, por<strong>que</strong> as nausfrancesas, acostan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> d<strong>em</strong>asiadamente à terra, com a vazante da maré haviam fica<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>co, e ofalconete, choven<strong>do</strong> sobre elas uma t<strong>em</strong>pestade de pedras, matava, e feria muitos marinheiros, <strong>que</strong>nelas estavam, e solda<strong>do</strong>s <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcavam, até <strong>que</strong> tornan<strong>do</strong> a crescer a maré <strong>se</strong> fizeram ao mar,perdi<strong>do</strong>s muitos france<strong>se</strong>s, e elas maltratadas; os bárbaros destroça<strong>do</strong>s com dificuldade saltaram nascanoas, e perdi<strong>do</strong>s os brios, e desfeitas as forças, <strong>em</strong> companhia das naus francesas tornaram para oCabo Frio, e os <strong>que</strong> carrega<strong>do</strong>s de armas saíram de sua terra ameaçan<strong>do</strong> <strong>que</strong> haviam despedaçarcom <strong>se</strong>us dentes a Martim Afonso, deixaram no campo espalha<strong>do</strong>s muitos <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us, para <strong>que</strong> com<strong>se</strong>us bicos os despedaçass<strong>em</strong> as aves.Os france<strong>se</strong>s, reparadas suas naus, e carregadas de pau-<strong>brasil</strong>, <strong>se</strong> tornaram nelas à sua pátria.CAPÍTULO DÉCIMO QUINTODas guerras, <strong>que</strong> houve neste t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> PernambucoVen<strong>do</strong> Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> a muita gente <strong>que</strong> acudia, assim de Portugal comodas outras capitanias, para povoar<strong>em</strong> a sua de Pernambuco, e fazer<strong>em</strong> nela engenhos e fazendas; e<strong>que</strong> as terras <strong>do</strong> cabo, <strong>que</strong> os gentios inimigos tinham ocupadas, eram as mais férteis, e melhores,determinou de lhas fazer despejar por guerra, e para isto fez re<strong>se</strong>nha de gente <strong>que</strong> podia levar, eordenou <strong>que</strong> com a gente de Iguaraçu fos<strong>se</strong> por capitão Fernão Lourenço, <strong>que</strong> era o mesmo capitãoda dita vila: com a gente de Parati Gonçalo Mendes Leitão, irmão <strong>do</strong> bispo, <strong>que</strong> então era d. PedroLeitão, e casa<strong>do</strong> com uma filha de Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>; com a gente da Várzea deCapiguaribe Cristovão Lins, fidalgo al<strong>em</strong>ão; e da gente da vila, merca<strong>do</strong>res, e mora<strong>do</strong>res, por<strong>que</strong>eram de diversas partes <strong>do</strong> reino, ordenou outras três companhias, e <strong>que</strong> por capitão <strong>do</strong>s Vianen<strong>se</strong>sfos<strong>se</strong> J. 0 Paes; <strong>do</strong>s <strong>do</strong> Porto, Bento Dias de Santiago; e <strong>do</strong>s de Lisboa, Gonçalo Mendes Delvas,merca<strong>do</strong>r; pelas quais <strong>se</strong>is companhias iam reparti<strong>do</strong>s vinte mil negros, os mais deles <strong>do</strong> gentio damata <strong>do</strong> pau-<strong>brasil</strong>, contrários <strong>do</strong>s <strong>do</strong> cabo.Também lhes man<strong>do</strong>u o capitão da ilha de Itamaracá uma companhia de trinta e cincosolda<strong>do</strong>s brancos, e <strong>do</strong>is mil índios flecheiros, e por capitão Pero Lopes Lobo: posto <strong>que</strong> ele o<strong>se</strong>ntregou a Duarte Coelho, para <strong>que</strong> os repartis<strong>se</strong> por onde vis<strong>se</strong> <strong>se</strong>r<strong>em</strong> necessários, e quis antesmeter-<strong>se</strong> na companhia <strong>do</strong>s aventureiros, <strong>que</strong> era <strong>do</strong>s mancebos solteiros.Sobre to<strong>do</strong>s ia por general Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, acompanha<strong>do</strong> de d. Filipe deMoura, e Filipe Cavalcante, genros de Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e de outros homens nobres ehonra<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s o qui<strong>se</strong>ram acompanhar, e não ficou mais na vila <strong>que</strong> Jerônimo deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> com alguns velhos, <strong>que</strong> não podiam menear as armas.


58Com toda esta gente <strong>se</strong> partiu Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e foi marchan<strong>do</strong> até àsprimeiras cercas <strong>do</strong>s inimigos, onde o esperaram aos <strong>primeiro</strong>s encontros, e houve alguns mortos eferi<strong>do</strong>s de parte a parte, mas ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> era impossível resistir a tantos, <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> fugida comgrande pressa, para <strong>que</strong> <strong>se</strong>guin<strong>do</strong>-os com a mesma não tivess<strong>em</strong> os nossos lugar de desmancharlhesas casas, e as cercas, e assim tornass<strong>em</strong> depois pelos matos a meter-<strong>se</strong> nelas; mas DuarteCoelho, <strong>que</strong> lhes adivinhou os pensamentos, lhes man<strong>do</strong>u <strong>que</strong>imar algumas, e <strong>em</strong> outras deixoupresídios, com ord<strong>em</strong> <strong>que</strong> lhes arrancass<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os mantimentos, com o <strong>que</strong> os obrigou a cometerpazes, e ele lhas outorgou com as condições, <strong>que</strong> melhor lhe estiveram, e repartiu as terras porpessoas, <strong>que</strong> as começaram logo a lavrar, os quais como acharam tanto mantimento planta<strong>do</strong> nãofaziam mais <strong>que</strong> comê-lo, e replantá-lo da mesma rama, e nas mesmas covas, e com isto foramfazen<strong>do</strong> <strong>se</strong>us canaviais, e engenhos de açúcar, com <strong>que</strong> enri<strong>que</strong>ceram muito, por a terra <strong>se</strong>rfertilíssima, e só um, <strong>que</strong> por isto <strong>se</strong> chamou João Paes <strong>do</strong> Cabo, chegou a fazer oito engenhos, <strong>que</strong>repartiram por oito filhos <strong>que</strong> teve, e coube a cada um <strong>se</strong>u de legítima.E por<strong>que</strong> as terras <strong>do</strong> rio de Cirinhaen, <strong>que</strong> ficam defronte da ilha de Santo Aleixo, <strong>se</strong>isléguas <strong>do</strong> cabo, eram também muito boas, e as tinha ocupadas outro gentio contrário, <strong>que</strong> já estavasujeito e pacífico, e de lá os vinham inquietar, e salteá-los, lhes man<strong>do</strong>u Duarte Coelho dizer pelosnossos línguas, e intérpretes, <strong>que</strong> <strong>se</strong> quietass<strong>em</strong>, e foss<strong>em</strong> amigos, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> lhe <strong>se</strong>ria necessáriodefendê-los, e tomar vingança <strong>do</strong>s agravos, e injúrias, <strong>que</strong> lhes faziam.Ao <strong>que</strong> eles com muita arrogância responderam <strong>que</strong> não o haviam com os brancos, n<strong>em</strong> comele, <strong>se</strong>não com a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> eram <strong>se</strong>us inimigos, e contrários antigos; mas <strong>se</strong> os brancos <strong>que</strong>riam poreles tomar pendências, ainda tinham braços para <strong>se</strong> defender<strong>em</strong> de uns, e de outros.Torna<strong>do</strong>s os línguas com esta reposta, fez Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> uma junta deoficiais da Câmera, e mais pessoas da governança, onde <strong>se</strong> julgou <strong>se</strong>r a coisa bastante para <strong>se</strong> lhesfazer guerra justa, e os cativar, e com este as<strong>se</strong>nto <strong>se</strong> aprestou logo outro exército, <strong>em</strong> <strong>que</strong> foi FilipeCavalcante, fidalgo florentino, capitão <strong>do</strong>s <strong>que</strong> foram por mar <strong>em</strong> barcos, e caravelões, e Jerônimode Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>do</strong>s <strong>que</strong> marcharam por terra, <strong>que</strong> Duarte Coelho como solda<strong>do</strong> quis ir solto, nacompanhia <strong>do</strong>s aventureiros, e tanto <strong>que</strong> chegaram às cercas, e aldeias <strong>do</strong>s inimigos, tiveramgrandes encontros, e resistências, por<strong>que</strong> eram muitas, e rotas umas <strong>se</strong> acolhiam logo, e <strong>se</strong>fortificavam, e defendiam <strong>em</strong> outras com grande ânimo e corag<strong>em</strong>.Porém quan<strong>do</strong> viram o socorro <strong>do</strong>s barcos, e <strong>que</strong> não puderam impedir-lhes o des<strong>em</strong>barcar,posto <strong>que</strong> o acometeram animosamente, logo desconfiaram, e fugiram para o <strong>se</strong>rtão, levan<strong>do</strong> asmulheres, e filhos diante, e fican<strong>do</strong> os valentes fazen<strong>do</strong>-lhes costas, <strong>que</strong> nunca as viraram aosnossos aventureiros, e índios nossos amigos, <strong>que</strong> os foram <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> muitas léguas, até chegar a umagrande cerca, onde <strong>se</strong> meteram uma tarde, aparecen<strong>do</strong> alguns pelos altos dela, com tantos ralhos, <strong>em</strong>ostras de <strong>se</strong> defender<strong>em</strong>, <strong>que</strong> ali cuidaram os nossos <strong>que</strong> os tinham certos, e não sabiam já quan<strong>do</strong>havia de amanhecer para abalroar<strong>em</strong>, animan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> to<strong>do</strong>s uns aos outros para a peleja; porém pelamanhã a acharam despejada, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s haviam fugi<strong>do</strong>, e só saíram de entre o mato um moço e umamoça de outro gentio, <strong>que</strong> eles tinham cativos, os quais contaram <strong>que</strong> no mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>que</strong> osralha<strong>do</strong>res apareceram na fronteira da cerca, iam to<strong>do</strong>s os mais <strong>se</strong>cretamente fugin<strong>do</strong> pela outraparte; e assim não havia para <strong>que</strong> cansar mais <strong>em</strong> os <strong>se</strong>guir, por<strong>que</strong> iam para mui longe, e para maisnão tornar<strong>em</strong>, como de feito assim foi, e os nossos <strong>se</strong> tornaram para onde haviam deixa<strong>do</strong> os mais, eos acharam arrancan<strong>do</strong>, e desfazen<strong>do</strong> os mantimentos <strong>do</strong>s fugi<strong>do</strong>s, com o <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornaram to<strong>do</strong>s,uns por mar outros por terra, a Olinda com muito contentamento.A fama destas duas vitórias ficou to<strong>do</strong> o gentio desta costa até o rio de S. Francisco tãoat<strong>em</strong>oriza<strong>do</strong>, <strong>que</strong> <strong>se</strong> deixavam amarrar <strong>do</strong>s brancos como <strong>se</strong> foram <strong>se</strong>us carneiros e ovelhas; e assimiam <strong>em</strong> barcos por es<strong>se</strong>s rios, e os traziam carrega<strong>do</strong>s deles a vender por <strong>do</strong>is cruza<strong>do</strong>s, ou mil-réiscada um, <strong>que</strong> é o preço de um carneiro. Isto não faziam os <strong>que</strong> t<strong>em</strong>iam a Deus, <strong>se</strong>não os <strong>que</strong> faziam


59mais conta <strong>do</strong>s interes<strong>se</strong>s desta vida, <strong>que</strong> da <strong>que</strong> haviam de dar a Deus, e principalmente veio umclérigo a esta capitania, a <strong>que</strong> vulgarmente chamavam o Padre <strong>do</strong> Ouro, por ele <strong>se</strong> jactar de grand<strong>em</strong>ineiro, e por esta arte era mui estima<strong>do</strong> de Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e o man<strong>do</strong>u ao <strong>se</strong>rtãocom 30 homens brancos, e 200 índios, <strong>que</strong> não quis ele mais, n<strong>em</strong> lhe eram necessários; por<strong>que</strong> <strong>em</strong>chegan<strong>do</strong> a qual<strong>que</strong>r aldeia <strong>do</strong> gentio, por grande <strong>que</strong> fos<strong>se</strong>, forte, e b<strong>em</strong> povoada, depenava umfrangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas , ou folhas lançava para o ar tantos d<strong>em</strong>ôniosnegros vinham <strong>do</strong> inferno lançan<strong>do</strong> labaredas pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobresgentios machos, e fêmeas, tr<strong>em</strong>en<strong>do</strong> de pés e mãos, e <strong>se</strong> acolhiam aos brancos, <strong>que</strong> o padre levavaconsigo; os quais não faziam mais <strong>que</strong> amarrá-los, e levá-los aos barcos, e a<strong>que</strong>les i<strong>do</strong>s, outrosvin<strong>do</strong>s, s<strong>em</strong> Duarte Coelho de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, por mais repreendi<strong>do</strong> <strong>que</strong> foi de <strong>se</strong>u tio, e de <strong>se</strong>u irmãoJorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>do</strong> reino, <strong>que</strong>rer nunca atalhar tão grande tirania, não <strong>se</strong>i <strong>se</strong> pelo <strong>que</strong>interessava nas peças, <strong>que</strong> <strong>se</strong> vendiam, <strong>se</strong> por<strong>que</strong> o Padre Mágico o tinha enfeitiça<strong>do</strong>; e foi istocausa para <strong>que</strong> el-rei d. Sebastião o mandas<strong>se</strong> ir para o reino, <strong>do</strong>nde passou, e morreu com ele naÁfrica, e ficou a capitania a Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> Coelho, <strong>que</strong> também passou com el-rei, e foicativo, feri<strong>do</strong>, e aleija<strong>do</strong> de ambas as pernas, mas resgatou-<strong>se</strong>, e viveu depois muitos anos casa<strong>do</strong>com a filha de d. Álvaro Coutinho de Amourol, da qual houve <strong>do</strong>is filhos, Duarte de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>Coelho, e Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, de <strong>que</strong> tratar<strong>em</strong>os <strong>em</strong> o Livro Quinto. E o Padre <strong>do</strong> Ourotambém foi preso <strong>em</strong> um navio para o reino, o qual arribou às ilhas, <strong>do</strong>nde desapareceu uma noites<strong>em</strong> mais <strong>se</strong> saber dele.CAPÍTULO DÉCIMO SEXTODe como vinha por governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil d. Luiz Fernandes de Vasconcelos,e o mataram no mar os corsáriosNo ano <strong>do</strong> Senhor de mil quinhentos e <strong>se</strong>tenta vinha por governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil d. LuizFernandes de Vasconcelos, o qual, parti<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma boa frota, ao <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> dia <strong>que</strong> saiu da barra deLisboa começou a correr tormenta, <strong>que</strong> fez apartar umas naus das outras, <strong>do</strong>nde uma foi encontrarcom corsários poderosos, <strong>que</strong> a tomaram, e mataram quarenta padres da Companhia de Jesus, <strong>que</strong>nela vinham com o padre Inácio de Azeve<strong>do</strong>, <strong>que</strong> já havia si<strong>do</strong> no Brasil <strong>se</strong>u <strong>primeiro</strong> visita<strong>do</strong>r, e atoda a mais gente <strong>que</strong> a nau trazia e d. Luiz arribou destroça<strong>do</strong> da t<strong>em</strong>pestade à ilha da Madeira,onde refazen<strong>do</strong>-<strong>se</strong>, sobre ter navega<strong>do</strong> de uma parte para a outra mais de duas mil léguas, comimenso trabalho chegou à vista <strong>do</strong> Brasil, <strong>que</strong> d<strong>em</strong>andava, e s<strong>em</strong> a poder tomar, por mais <strong>que</strong> porisso trabalhou, lhe foi força<strong>do</strong> arribar dali a ilha Espanhola, <strong>que</strong> é das Índias de Castela, e invernarnela, e arribar dali outra vez a Portugal com a nau desbaratada da falta de tu<strong>do</strong>, e aportan<strong>do</strong> assimna ilha Terceira, no porto da ilha lhe deram a nova da morte de <strong>se</strong>u filho d. Fernan<strong>do</strong>, <strong>que</strong>desastradamente morreu na Índia a mãos de mouros.Passa<strong>do</strong> a outra nau, esperan<strong>do</strong> t<strong>em</strong>po para tornar a cometer a viag<strong>em</strong> <strong>do</strong> Brasil, partiuquan<strong>do</strong> o teve, s<strong>em</strong> alguma companhia de outras naus, e encontrou na mesma s<strong>em</strong>ana três naus decorsários luteranos, a cujas mãos, não <strong>se</strong>n<strong>do</strong> poderoso de defender-<strong>se</strong> n<strong>em</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> render,sobre ter mui esforçadamente peleja<strong>do</strong>, foi morto na batalha.Era d. Luiz Fernandes de Vasconcelos / além de outras boas qualidades, pelas quais pareciadigno de melhor ventura / curiosíssimo da arte marítima, e tão <strong>do</strong>uto, e diligente nela, <strong>que</strong> podiacompetir com os mais cientes, e experimenta<strong>do</strong>s pilotos; mas com isto infelicíssimo <strong>em</strong> todas suasviagens, e navegações.A primeira vez <strong>que</strong> houve de sair ao mar, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> despacha<strong>do</strong> por capitão-mor da Armada daÍndia, estan<strong>do</strong> já as naus carregadas, e a ponto de partir<strong>em</strong>, abriu a sua capitania uma tão grossa


60água, <strong>que</strong> não pôde partir com as outras, mas partiu depois só, e veio invernar a esta Bahia, comodiss<strong>em</strong>os no capítulo quinto deste <strong>livro</strong>, e pior foi a jornada da Índia para o reino, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> perdeucom mi<strong>se</strong>rabilíssimo naufrágio, de <strong>que</strong> salvou somente a pessoa, com 30 e tantos companheiros, nobatel da nau, deixan<strong>do</strong> nela mais de 300, <strong>que</strong> <strong>se</strong> afogaram, com tanta mágoa de <strong>se</strong>u coração por lhesnão poder valer, <strong>que</strong> cobriu os olhos com uma toalha por não ver tão triste espetáculo, e sain<strong>do</strong>assim da nau permitiu Nosso Senhor <strong>que</strong> vis<strong>se</strong> ela <strong>em</strong> poucos dias da ilha de S. Lourenço, povoadade cruel, e bárbaro gentio, com <strong>que</strong> as vidas não ficavam menos arriscadas, não ten<strong>do</strong> dali, <strong>se</strong>nãomuito longe, outra terra, n<strong>em</strong> navio, n<strong>em</strong> mantimento; mas ordenou a Divina Mi<strong>se</strong>ricórdia <strong>que</strong>topas<strong>se</strong> ali acaso uma nau resgatan<strong>do</strong>, na qual tornaram a Índia, onde d. Luiz <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> outrapara Portugal, e sobre ter peregrina<strong>do</strong> três anos, e mais, chegou ao reino, s<strong>em</strong> ter de tão longajornada, <strong>em</strong> <strong>que</strong> metera tanto cabedal, mais <strong>que</strong> dívidas, e trabalhos, e perigos, <strong>que</strong> nela passou, enão <strong>se</strong> cansan<strong>do</strong> n<strong>em</strong> <strong>se</strong> mudan<strong>do</strong> por t<strong>em</strong>po sua fortuna, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> depois manda<strong>do</strong> por governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Brasil lhe aconteceram os infortúnios, <strong>que</strong> atrás diss<strong>em</strong>os, e por fim deles a morte, <strong>que</strong> põe fim atu<strong>do</strong>.CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMODa morte <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de SáNeste mesmo ano, <strong>em</strong> <strong>que</strong> d. Luiz Fernandes de Vasconcelos foi morto no mar a mãos deinimigos corsários, <strong>que</strong> foi o de mil quinhentos <strong>se</strong>tenta e um, morreu de sua enfermidade ogoverna<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá, <strong>que</strong> o estava esperan<strong>do</strong> para ir-<strong>se</strong> para o reino, mas <strong>que</strong>reria Nosso Senhorlevá-lo para outro reino melhor, <strong>que</strong> é <strong>do</strong> céu, como por sua vida, e morte, e principalmente pelaMi<strong>se</strong>ricórdia Divina, <strong>se</strong> pode confiar. Foi <strong>se</strong>pulta<strong>do</strong> na capela da igreja <strong>do</strong>s padres da companhia,<strong>que</strong> ele havia ajuda<strong>do</strong> a fazer de penas das condenações aplicadas para a obra, e de outras esmolas.Fez testamento, <strong>em</strong> <strong>que</strong> instituiu universal herdeira da sua fazenda, a sua filha condessa deLinhares, com esta cláusula, <strong>que</strong> <strong>se</strong> morres<strong>se</strong> s<strong>em</strong> deixar filho ou filha, <strong>que</strong> a herdas<strong>se</strong>, <strong>do</strong> engenhoe terras, <strong>que</strong> cá tinha <strong>em</strong> Sergipe, ficas<strong>se</strong> a terceira parte a casa da Mi<strong>se</strong>ricórdia desta cidade daBahia, e os outros <strong>do</strong>is terços aos padres da companhia, um para eles, outro para repartir<strong>em</strong> <strong>em</strong>esmolas, e <strong>do</strong>tes de órfãs.Porém ainda <strong>que</strong> a condessa morres<strong>se</strong> s<strong>em</strong> deixar filhos herdeiros, ela legou estes bens aoColégio <strong>do</strong>s Padres da Companhia de Santo Antão de Lisboa, onde man<strong>do</strong>u fazer uma capela, e ospadres de cá, não lhes parecen<strong>do</strong> b<strong>em</strong> pôr-<strong>se</strong> à d<strong>em</strong>anda com os <strong>se</strong>us, deixaram o litígio aMi<strong>se</strong>ricórdia.Não somente o governa<strong>do</strong>r M<strong>em</strong> de Sá morreu gozoso de suas vitórias / <strong>se</strong> há coisa nasmundanas <strong>que</strong> na morte possa dar gozo/, mas também de outras, <strong>que</strong> neste ano da sua morte, odécimo quarto <strong>do</strong> <strong>se</strong>u governo, alcançaram os católicos contra os infiéis, <strong>que</strong> foram as mais insignesde quantas no mun<strong>do</strong> <strong>se</strong> hão visto; uma foi a <strong>que</strong> os portugue<strong>se</strong>s alcançaram na Índia contra trêsreis, <strong>que</strong> <strong>se</strong> confederaram para os lançar<strong>em</strong> dela, e para este efeito deram to<strong>do</strong>s a um t<strong>em</strong>po, oHidalcão sobre Goa, o Nisa Maluco sobre Chaul, e o de Ach<strong>em</strong> sobre Malaca; mas como <strong>em</strong> toda<strong>se</strong>stas partes havia defensores portugue<strong>se</strong>s, <strong>em</strong> todas foi igual a resistência. Muitos foram de parecer<strong>que</strong> <strong>se</strong> largas<strong>se</strong> Chaul, por<strong>que</strong> não estava mura<strong>do</strong>, n<strong>em</strong> tinha gente <strong>que</strong> o pudes<strong>se</strong> defender <strong>do</strong> poderde Nisa Maluco, e para lhe mandar socorro de Goa <strong>se</strong>ria por<strong>em</strong>-<strong>se</strong> a perigo de perder<strong>em</strong> uma coisa,e outra: porém o viso-rei d. Luiz de Ataíde, contra o parecer de to<strong>do</strong>s, dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> nada havia delargar, e assim fican<strong>do</strong>-<strong>se</strong> com só <strong>do</strong>is mil homens <strong>em</strong> Goa, man<strong>do</strong>u d. Francisco Mascarenhas aChaul com 600 solda<strong>do</strong>s escolhi<strong>do</strong>s, fora muitos fidalgos, e capitães, <strong>do</strong>s quais alguns aperceberamnavios <strong>em</strong> <strong>que</strong> o <strong>se</strong>guiram com gente à sua custa, como foram d. Nuno Álvares Pereira, Pedro da


61Silva de Menezes, Nuno Velho Pereira, Rui Pires de Távora, João de Men<strong>do</strong>nça, e outros, <strong>que</strong> nãopoden<strong>do</strong> haver <strong>em</strong>barcações por partir<strong>em</strong> a furto <strong>do</strong> viso-rei, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram com estes, <strong>que</strong>diss<strong>em</strong>os, e com outros, <strong>que</strong> pelo t<strong>em</strong>po foram acudin<strong>do</strong>, e com tão pouca gente foi Deus <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong><strong>que</strong> o viso-rei vences<strong>se</strong> <strong>em</strong> Goa o Hidalcão, o qual o teve cinco me<strong>se</strong>s <strong>em</strong> cerco com 35 milcavalos, e 60 mil de pé, <strong>do</strong>is mil elefantes arma<strong>do</strong>s, e 200 peças de artilharia de campo, as maisdelas de monstruosa grandeza, e d. Francisco Mascarenhas com a gente <strong>que</strong> levava de socorro, e a<strong>que</strong> tinha Luiz Freire de Andrade, capitão-mor de Chaul, <strong>que</strong> <strong>se</strong>não 800 homens, mataram a NisaMaluco 12 mil mouros de 100 mil combatentes de pé, e 55 mil de cavalo, com <strong>que</strong> teve cerca<strong>do</strong> aChaul, e o pu<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> tanta desconfiança <strong>que</strong> a cabo de nove me<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> durou o cerco, cometeupazes a d. Francisco Mascarenhas.As mesmas cometeu o Hidalcão ao viso-rei, e um, e outro as aceitou com condições a <strong>se</strong>ugosto, muito a salvo da sua honra, e del-rei. Pois o de Ach<strong>em</strong> não <strong>livro</strong>u melhor <strong>que</strong> estoutros,por<strong>que</strong> in<strong>do</strong> para Malaca <strong>se</strong> encontrou com Luiz de Mello da Silva, <strong>que</strong> <strong>em</strong> naval batalha o venceu,e o fez por então tornar frustra<strong>do</strong> de <strong>se</strong>u intento.Com esta vitória chegou o viso-rei d. Luiz de Ataíde ao reino a 22 de julho <strong>do</strong> ano <strong>se</strong>guintede mil quinhentos <strong>se</strong>tenta e <strong>do</strong>is, por deixar já na Índia d. Antônio de Noronha, <strong>se</strong>u sucessor, e el-reid. Sebastião foi na cidade de Lisboa dar graças a Deus no <strong>do</strong>mingo <strong>se</strong>guinte, <strong>em</strong> solene procissão daSé ao Mosteiro de S. Domingos, onde <strong>se</strong> pregou, e denunciou ao povo, levan<strong>do</strong> à mão direita oviso-rei <strong>em</strong> precedência de to<strong>do</strong>s os príncipes e <strong>se</strong>nhores, de <strong>que</strong> foi acompanha<strong>do</strong>; grande honra,mas b<strong>em</strong> merecida, e devida a tão heróicos feitos.A outra vitória <strong>que</strong> neste ano de mil quinhentos <strong>se</strong>tenta e um <strong>se</strong> alcançou foi a de d. João deÁustria, general da liga cristã, o qual com Marco Antônio Colona, general das galés <strong>do</strong> papa PioQuinto, Sebastião Veniero, general <strong>do</strong>s Venezianos, o príncipe Doria, o de Parma, e Urbino, eoutros <strong>se</strong>nhores, <strong>que</strong> <strong>se</strong>guiram <strong>se</strong>u estandarte, <strong>em</strong> um <strong>do</strong>mingo, a 7 de outubro, no golfo de Lepantovenceu o Baxá general <strong>do</strong>s turcos, matou-o, e lhe cativou <strong>do</strong>is filhos, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> mais mortos 30 milturcos, cativos cinco mil, tomadas duzentas e 20 galés, e galeotas, e liberta<strong>do</strong>s 15 mil escravoscristãos, a <strong>que</strong> vinham r<strong>em</strong>an<strong>do</strong> na armada <strong>do</strong> turco; mas também <strong>do</strong>s nossos morreram na batalha<strong>se</strong>te mil e quinhentos solda<strong>do</strong>s, <strong>em</strong> <strong>que</strong> entraram alguns capitães famosos.Sabida a nova da perda da sua armada por Selim, impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s turcos, a <strong>se</strong>ntiu tanto, <strong>que</strong>saiu <strong>do</strong> <strong>se</strong>u juízo, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> era princípio da ruína <strong>do</strong> <strong>se</strong>u império, mas <strong>se</strong>n<strong>do</strong> consola<strong>do</strong> porLuchali, <strong>que</strong> havia escapa<strong>do</strong> com 15 galés, e lhe mostrou o estandarte de Malta, <strong>que</strong> havia toma<strong>do</strong>na batalha, acon<strong>se</strong>lha<strong>do</strong> pelos <strong>se</strong>us, man<strong>do</strong>u logo aprestar outra armada, fazen<strong>do</strong> general dela o ditoLuchali, o qual mui contente com o novo cargo <strong>se</strong> dava pressa <strong>em</strong> fabricar galés, fundir artilharia,fazer munições, e vitualhas para sair o ano <strong>se</strong>guinte, o <strong>que</strong> sabi<strong>do</strong> pelo Sumo Pontífice tornou atratar com os príncipes cristãos de nova liga, pedin<strong>do</strong> também a el-rei de Portugal d. Sebastiãoqui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> entrar nela, e juntamente qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> aceitar o casamento de Margarita, filha de el-reiHenri<strong>que</strong> de França, <strong>em</strong> <strong>que</strong> já lhe haviam fala<strong>do</strong>, e ela não qui<strong>se</strong>ra, o qual saben<strong>do</strong> <strong>que</strong> o dito rei deFrança <strong>se</strong> escusava da liga contra o turco, respondeu <strong>que</strong> aceitava o casamento, e não <strong>que</strong>ria mais<strong>do</strong>te com ela, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> entras<strong>se</strong> <strong>se</strong>u pai na dita liga, e ele mesmo <strong>se</strong> oferecia <strong>que</strong> pelo mar Roxo, ePérsico molestaria o grão turco com suas armadas na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po vitoriosas, e nisso trabalharia comto<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u poder e forças.Tão zeloso era el-rei d. Sebastião da honra de Deus, e de guerrear por ela contra os infiéis,<strong>que</strong> só por isto aceitava o casamento / a <strong>que</strong> não era afeiçoa<strong>do</strong> /, e não <strong>que</strong>ria outro <strong>do</strong>te; mas não <strong>se</strong>concluin<strong>do</strong> este matrimônio, <strong>que</strong> tantos males, e desventuras pudera escusar, casou com elaHenri<strong>que</strong> de Bourbon, du<strong>que</strong> de Van<strong>do</strong>ma, e príncipe de Bierne, e el-rei d. Sebastião continuou comsuas guerras, <strong>que</strong> era o <strong>que</strong> de<strong>se</strong>java sobre todas as coisas da vida, até <strong>que</strong> nelas a perdeu.


62CAPÍTULO DÉCIMO OITAVODe como el-rei d. Sebastião man<strong>do</strong>u Cristóvão de Barrospor capitão-mor a governar o Rio de JaneiroEl-rei d. Sebastião, depois <strong>que</strong> começou a governar por si o reino, como era tão solícito deconquistas / <strong>que</strong> provera a Deus não fora tanto /, saben<strong>do</strong> da <strong>que</strong> <strong>se</strong> fazia no Rio de Janeiro, man<strong>do</strong>ua ela por capitão-mor, e governa<strong>do</strong>r a Cristóvão de Barros, o qual era filho bastar<strong>do</strong> de AntônioCar<strong>do</strong>so de Barros, <strong>primeiro</strong> prove<strong>do</strong>r-mor da Fazenda del-rei no Brasil, <strong>que</strong> tornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para oreino <strong>em</strong> companhia <strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> bispo, dan<strong>do</strong> a nau à costa junto ao rio de S. Francisco, foi morto,e comi<strong>do</strong> <strong>do</strong> gentio, como já diss<strong>em</strong>os no capítulo terceiro deste <strong>livro</strong>.Era Cristóvão de Barros hom<strong>em</strong> sagaz, e prudente, e b<strong>em</strong>-afortuna<strong>do</strong> nas guerras, e assimdepois <strong>que</strong> chegou ao Rio de Janeiro, <strong>em</strong> todas as <strong>que</strong> teve com os Tamoios ficou vitorioso, epacificou de mo<strong>do</strong> o recôncavo, e rios da<strong>que</strong>la Bahia, <strong>que</strong> torna<strong>do</strong>s os ferros das lanças <strong>em</strong> foices, eas espadas <strong>em</strong> macha<strong>do</strong>s, e enxadas, tratavam os homens já somente de fazer suas lavouras, efazendas, e ele fez também um engenho de açúcar junto a um rio chama<strong>do</strong> Magé, onde <strong>se</strong> faz umapescaria de fataças, e chama-<strong>se</strong> Piraiqué, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r dizer «entrada de peixe», tão notável, <strong>que</strong> não éb<strong>em</strong> passá-la <strong>em</strong> silêncio.É este rio de água <strong>do</strong>ce, mas entra por ele a maré uma légua pouco mais ou menos. Naságuas vivas <strong>do</strong> mês de junho, <strong>que</strong> é ali a força <strong>do</strong> inverno, entram por ele tantas fataças, oucorimans / como os índios brasis lhes chamam /, <strong>que</strong> para as poder<strong>em</strong> vencer <strong>se</strong> juntam duzentascanoas de gente, e lançan<strong>do</strong> muito barbasco machuca<strong>do</strong> à riba <strong>do</strong>nde chega a maré, quan<strong>do</strong> estapreamar <strong>se</strong> tapa a boca, ou barra <strong>do</strong> rio com uma rede <strong>do</strong>brada, vai o peixe a sair com a vazante, nãopode com a rede, n<strong>em</strong> menos esconder-<strong>se</strong> no fun<strong>do</strong>, por<strong>que</strong> a água o <strong>em</strong>basbaca, e <strong>em</strong>bebeda d<strong>em</strong>aneira <strong>que</strong>, viradas de barriga as fataças andam sobre ela meias mortas, <strong>do</strong>nde com um rede-foleas tiram como colher de caldeira, aos pares, até encher as canoas.Sa<strong>em</strong>-<strong>se</strong> logo fora, e cortadas as cabeças lhes escalam os corpos, e salgadas os põ<strong>em</strong> a <strong>se</strong>carnos pene<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> há ali muitos; e das cabeças cozidas faz<strong>em</strong> azeite para <strong>se</strong> alumiar<strong>em</strong> to<strong>do</strong> o ano.Nas águas <strong>se</strong>guintes de julho <strong>se</strong> faz outra Piraiqué, ou pescaria, da mesma maneira <strong>que</strong> apassada, mas não são já tão gordas as fataças, por<strong>que</strong> estão todas ovadas de ovas grandes esaborosas, as quais salgam, prensam, e <strong>se</strong>cam para comer<strong>em</strong>, e levar<strong>em</strong> a vender à Bahia, e a outraspartes.Contei isto, por<strong>que</strong> esta pescaria <strong>se</strong> faz na<strong>que</strong>le rio de Magé, onde Cristovão de Barros fez o<strong>se</strong>u engenho, e no <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po, e ainda depois alguns anos <strong>se</strong> mandava lançar público pregão nacidade <strong>do</strong> dia <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia de fazer a pescaria, para <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> a ela to<strong>do</strong>s os <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong>, epoucos deixavam de ir, assim pelo proveito como por recreação.CAPÍTULO DÉCIMO NONODo quarto governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil Luiz de Brito de Almeida, e desua ida ao rio realSabida no reino a nova da morte de Luiz Fernandes de Vasconcellos, <strong>que</strong> os corsáriosmataram no mar vin<strong>do</strong> governar o Brasil, man<strong>do</strong>u logo el-rei por governa<strong>do</strong>r a Luiz de Brito deAlmeida, <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> escrivão da Mi<strong>se</strong>ricórdia <strong>em</strong> um ano de muita festa <strong>em</strong> Lisboa, edesamparan<strong>do</strong> o prove<strong>do</strong>r, e irmãos o hospital com t<strong>em</strong>or <strong>do</strong> mal contagioso, ele assistiu s<strong>em</strong>pre,proven<strong>do</strong>-os de to<strong>do</strong> o necessário para sua cura; pelo <strong>que</strong> el-rei lhe encarregou este governo, noqual, depois de chegar, e prover nas coisas da paz, <strong>que</strong> por morte de <strong>se</strong>u antecessor achou


63desordenadas, começou a entender nas da guerra; e a primeira a <strong>que</strong> acudiu foi a lançar os gentiosinimigos <strong>do</strong> rio Real, e povoá-lo como el-rei lhe havia manda<strong>do</strong>, pelas boas informações <strong>que</strong> deletinha, e o mesmo nome de rio Real esta publican<strong>do</strong>, e prometen<strong>do</strong>.Este rio esta <strong>em</strong> 12 graus, t<strong>em</strong> de boca meia légua, <strong>em</strong> a qual há <strong>do</strong>is canais, e por qual<strong>que</strong>rdeles entram navios da costa de cinqüenta toneladas. Da barra para dentro é o rio mui fun<strong>do</strong>, e fazuma baía de mais de uma légua, onde há grandes pescarias de peixes-bois, e de toda a mais sorte depeixe.Entra a maré por ele <strong>se</strong>te ou oito léguas. Do salga<strong>do</strong> para cima é a terra muito boa paracanas-de-açúcar, e outras plantas; t<strong>em</strong> muito pau-<strong>brasil</strong>, e por todas estas coisas a mandava el-reipovoar; porém como havia ali gentio contrário, foi <strong>primeiro</strong> o governa<strong>do</strong>r para a fazer despejar commuitos mora<strong>do</strong>res da Bahia, uns por terra, outros nos barcos, <strong>em</strong> <strong>que</strong> iam os mantimentos, ealcançou vitória de um grande principal chama<strong>do</strong> Sorobi, <strong>que</strong>iman<strong>do</strong>-lhe as aldeias, matan<strong>do</strong>, ecativan<strong>do</strong> a muitos; e por<strong>que</strong> outro chama<strong>do</strong> Aperipé lhe fugiu com a sua gente o <strong>se</strong>guiu cinqüentaléguas pelo <strong>se</strong>rtão s<strong>em</strong> lhe poder dar alcance, onde achou duas léguas notáveis, uma de quinhentasbraças de compri<strong>do</strong>, e cento de largo, cuja água é mais salgada <strong>que</strong> a <strong>do</strong> mar, e toda cercada deperrexil outra pegada a esta de mais de 600 braças de largo de água muito <strong>do</strong>ce; ambas têm muitospeixes, e o governa<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u pescar muito, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornou para a Bahia, encarregan<strong>do</strong> apovoação a Garcia da Vida, <strong>que</strong> tinha sua casa, fazenda, e muitos currais dali a 12 ou 13 léguas norio de Tatuapará, o qual a começou, mas nunca <strong>se</strong> acabou de povoar <strong>se</strong>não de currais de ga<strong>do</strong>.CAPÍTULO VIGÉSIMODas entradas, <strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po <strong>se</strong> fizeram pelo <strong>se</strong>rtãoNão ficaram pouco pesarosos os mora<strong>do</strong>res da Bahia, <strong>que</strong> acompanharam o governa<strong>do</strong>r aorio Real, por não achar<strong>em</strong> o gentio, <strong>que</strong> buscavam, para o cativar<strong>em</strong>, e <strong>se</strong> <strong>se</strong>rvir<strong>em</strong> dele comoa<strong>que</strong>les a qu<strong>em</strong> havia leva<strong>do</strong> mais esta cobiça <strong>que</strong> o zelo da nova povoação, <strong>que</strong> el-rei pretendia <strong>se</strong>fizes<strong>se</strong>; mas ainda <strong>se</strong> ajudaram <strong>do</strong> sucesso para <strong>se</strong>u intento, dizen<strong>do</strong> ao governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> pois asguerras afugentavam os gentios, como <strong>se</strong> vira nesta, e nas <strong>que</strong> <strong>se</strong>u antecessor lhes havia feitas, com<strong>que</strong> os fez afastar <strong>do</strong> mar mais de <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta léguas, <strong>se</strong>ria melhor trazê-los por paz, e per persuasão d<strong>em</strong>amalucos, <strong>que</strong> por eles saber<strong>em</strong> a língua, e pelo parentesco, <strong>que</strong> com eles tinham / porqu<strong>em</strong>amalucos chamamos mestiços, <strong>que</strong> são filhos de brancos, e de índias/, os trariam mais facilmente<strong>que</strong> por armas.Por estas razões, ou por comprazer aos suplicantes, deu o governa<strong>do</strong>r as licenças, <strong>que</strong> lhepediram, para mandar<strong>em</strong> ao <strong>se</strong>rtão descer índios por meio <strong>do</strong>s mamalucos, os quais não iam tãoconfia<strong>do</strong>s na eloqüência, <strong>que</strong> não levass<strong>em</strong> muitos solda<strong>do</strong>s brancos, e índios confedera<strong>do</strong>s, eamigos, com suas flechas, e armas, com as quais, quan<strong>do</strong> não <strong>que</strong>riam por paz, e por vontade, ostraziam por guerra, e por força: mas ordinariamente bastava a língua <strong>do</strong> parente mamaluco, <strong>que</strong> lhesrepre<strong>se</strong>ntava a fartura <strong>do</strong> peixe, e mariscos <strong>do</strong> mar, de <strong>que</strong> lá careciam, a liberdade de <strong>que</strong> haviamde gozar, a qual não teriam <strong>se</strong> os trouxess<strong>em</strong> por guerra.Com estes enganos, e com algumas dádivas de roupas, e ferramentas, <strong>que</strong> davam aosprincipais, e resgates, <strong>que</strong> lhes davam pelos <strong>que</strong> tinham presos <strong>em</strong> cordas para os comer<strong>em</strong>,abalavam aldeias inteiras, e <strong>em</strong> chegan<strong>do</strong> à vista <strong>do</strong> mar, apartavam os filhos <strong>do</strong>s pais, os irmãos<strong>do</strong>s irmãos, e ainda às vezes a mulher <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, levan<strong>do</strong> uns o capitão mamaluco, outros ossolda<strong>do</strong>s, outros os arma<strong>do</strong>res, outros os <strong>que</strong> impetraram a licença, outros qu<strong>em</strong> lha concedeu, eto<strong>do</strong>s <strong>se</strong> <strong>se</strong>rviam deles <strong>em</strong> suas fazendas, e alguns os vendiam, porém com declaração <strong>que</strong> eramíndios de consciência, e <strong>que</strong> lhes não vendiam <strong>se</strong>não o <strong>se</strong>rviço, e qu<strong>em</strong> os comprava, pela primeira


64culpa, ou fugida, <strong>que</strong> faziam, os ferrava na face, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> lhe custaram <strong>se</strong>u dinheiro, e eram <strong>se</strong>uscativos; <strong>que</strong>bravam os prega<strong>do</strong>res os púlpitos sobre isto, mas era como <strong>se</strong> pregass<strong>em</strong> <strong>em</strong> de<strong>se</strong>rto.Entre estas entradas no <strong>se</strong>rtão fez uma Antônio Dias A<strong>do</strong>rno, ao qual encomen<strong>do</strong>u ogoverna<strong>do</strong>r <strong>que</strong> trabalhas<strong>se</strong> por descobrir algumas minas, o qual entrou pelo rio das Contas, <strong>que</strong> éda capitania <strong>do</strong>s Ilhéus, e <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> a sua corrente, <strong>que</strong> v<strong>em</strong> de mui longe, rodeou grande parte <strong>do</strong><strong>se</strong>rtão, onde achou esmeraldas, e outras pedras preciosas, de <strong>que</strong> trouxe as amostras, e o governa<strong>do</strong>ras man<strong>do</strong>u ao reino, onde examinadas pelos lapidários, as acharam muito boas; mas n<strong>em</strong> por isso s<strong>em</strong>an<strong>do</strong>u mais a elas, sinal <strong>que</strong> haviam lá i<strong>do</strong> mais a buscar peças <strong>que</strong> pedras, e assim trouxeram7000 almas <strong>do</strong>s gentios Tupiguaens, s<strong>em</strong> trazer<strong>em</strong> algum mantimento, <strong>que</strong> comess<strong>em</strong>, <strong>em</strong> 200léguas, <strong>que</strong> caminharam muito devagar, por vir<strong>em</strong> muitas mulheres, e crianças, e muitos velhos, evelhas, sustentan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> só de frutas agrestes, caça, e mel, mas isto <strong>em</strong> tanta abundância <strong>que</strong> nunca <strong>se</strong><strong>se</strong>ntiu fome, antes chegaram to<strong>do</strong>s gor<strong>do</strong>s, e valentes: <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> colige quão fértil é a<strong>que</strong>le <strong>se</strong>rtão, epelo con<strong>se</strong>guinte com quanta facilidade <strong>se</strong> pudera tornar <strong>em</strong> busca das pedras preciosas jádescobertas, e descobrir outras.Também man<strong>do</strong>u o mesmo governa<strong>do</strong>r um Sebastião Álvares ao rio de S. Francisco comoficiais, e tu<strong>do</strong> o mais necessário para fazer uma <strong>em</strong>barcação <strong>em</strong> <strong>que</strong> por ele navegass<strong>em</strong> <strong>em</strong>descobrir algumas minas, e para isso escreveu a um grande principal <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão chama<strong>do</strong> Porquinho,<strong>que</strong> o ajudas<strong>se</strong> com gente, e tu<strong>do</strong> o mais <strong>que</strong> pudes<strong>se</strong>; ele man<strong>do</strong>u um vesti<strong>do</strong> de escarlata, e umavara de meirinho para trazer na mão.Levou este reca<strong>do</strong> um Diogo de Castro, <strong>que</strong> já havia esta<strong>do</strong> <strong>em</strong> sua casa, e sabia b<strong>em</strong> falarlhea língua, e outro grande língua, <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> irmão da companhia, chama<strong>do</strong> Jorge Velho.Estimou muito o Porquinho ver o caso <strong>que</strong> dele fazia o governa<strong>do</strong>r, e nunca jamais faltou<strong>em</strong> quanto os brancos o ocuparam; e assim pôs com sua ajuda o capitão a <strong>em</strong>barcação <strong>em</strong> boaaltura, e a fez <strong>em</strong> parag<strong>em</strong> <strong>do</strong>nde o rio era to<strong>do</strong> navegável, por<strong>que</strong> dali para baixo lhe ficava já acachoeira, e o sumi<strong>do</strong>uro, quan<strong>do</strong> lhe chegou uma carta <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Lourenço da Veiga, <strong>que</strong>sucedeu a Luiz de Brito, <strong>em</strong> <strong>que</strong> mandava <strong>que</strong> logo lhe vies<strong>se</strong> dar conta da fazenda de el-rei, <strong>que</strong>levara, obedeceu o hom<strong>em</strong>, e posto <strong>que</strong> depois tornou não achou já os <strong>se</strong>us, <strong>que</strong> <strong>se</strong> haviam meti<strong>do</strong>com outros de Pernambuco a descer gentio, como ele também fez, e to<strong>do</strong>s lá acabaram.Não só da Bahia, mas também <strong>do</strong>s Ilhéus, e de Pernambuco, <strong>se</strong> fizeram neste t<strong>em</strong>po outra<strong>se</strong>ntradas.Dos Ilhéus foi Luiz Álvares Espinha com pretexto de fazer guerra a certas aldeias daí a 30léguas, por haver<strong>em</strong> nelas mortos alguns brancos, porém hão <strong>se</strong> contentou com lha fazer, e cativartodas a<strong>que</strong>les aldeãos, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> passou adiante, e desceu infinito gentio.De Pernambuco foram Francisco de Caldas, <strong>que</strong> <strong>se</strong>rviu de prove<strong>do</strong>r da fazenda, e GasparDias de Taíde com muitos solda<strong>do</strong>s ao rio de S. Francisco, e ajudan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> <strong>do</strong> Braço de Peixe, <strong>que</strong>era um grande principal <strong>do</strong>s Tabajaras, e da sua gente, <strong>que</strong> era muito esforçada, e guerreira,entraram muitas léguas pelo <strong>se</strong>rtão, matan<strong>do</strong> os <strong>que</strong> resistiam, e cativan<strong>do</strong> os mais.Tornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> depois para o mar com <strong>se</strong>te mil cativos, determinaram pagar ao Braço com olevar<strong>em</strong> também amarra<strong>do</strong>, e a to<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>us: porém ele os entendeu, e não deixan<strong>do</strong> de os <strong>se</strong>rvircom mantimentos das suas roças, e caça <strong>do</strong> mato, para a<strong>que</strong>les, deu 200 caça<strong>do</strong>res para as<strong>se</strong>gurarmais a sua caça, e depois <strong>que</strong> os teve <strong>se</strong>guros, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> <strong>se</strong> vigiavam, n<strong>em</strong> lhes parecia haver para<strong>que</strong>, man<strong>do</strong>u chamar outro principal <strong>se</strong>u parente, chama<strong>do</strong> As<strong>se</strong>nto de Pássaro, <strong>que</strong> vies<strong>se</strong> com osflecheiros da sua aldeia, e avisou os <strong>se</strong>us caça<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> estavam entre os brancos, estivess<strong>em</strong> alertana madrugada <strong>se</strong>guinte, para <strong>que</strong>, quan<strong>do</strong> ouviss<strong>em</strong> o <strong>se</strong>u urro costuma<strong>do</strong>, dar<strong>em</strong> juntamente nosnossos, e lhes não escapar algum com vida; e assim foi <strong>que</strong>, achan<strong>do</strong>-os <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> mui descuida<strong>do</strong>s,subitamente os acometeram com tanto ímpeto, <strong>que</strong> não lhes deram lugar, a tomar armas, n<strong>em</strong> afugir, e os mataram to<strong>do</strong>s; e soltos os outros gentios cativos, depois <strong>que</strong> ajudaram a festejar a sua


65liberdade, comen<strong>do</strong> a carne de <strong>se</strong>us <strong>se</strong>nhores, os deixaram tornar para suas terras, ou para ondequi<strong>se</strong>ram; só escapou <strong>do</strong>s nossos um mamaluco, <strong>que</strong> uma moça, irmã <strong>do</strong> principal As<strong>se</strong>nto dePássaro, escondeu.Este levou a nova aos brancos, <strong>que</strong> estavam no porto esperan<strong>do</strong>, e depois neles a Olinda,onde foi muito <strong>se</strong>ntida de to<strong>do</strong>s, prantean<strong>do</strong> as viúvas <strong>se</strong>us mari<strong>do</strong>s, e os filhos <strong>se</strong>us pais, <strong>que</strong> alimorreram. N<strong>em</strong> parou aqui o mal, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> os homicidas, t<strong>em</strong>en<strong>do</strong>-<strong>se</strong> <strong>que</strong> os brancos foss<strong>em</strong>tomar vingança destas mortes, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> Tabajaras, e contrários <strong>do</strong>s Potiguares, <strong>se</strong> foram meter comeles na Paraíba, e <strong>se</strong> fizeram <strong>se</strong>us amigos para os ajudar<strong>em</strong> nas guerras, <strong>que</strong> nos faziam, comoadiante ver<strong>em</strong>os.NB. Este capítulo foi copia<strong>do</strong> das adições e <strong>em</strong>endas a esta História <strong>do</strong> Brasil; cujosadiamentos exist<strong>em</strong> no Real Arquivo da Torre <strong>do</strong> Tombo.CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRODas diferenças, <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r, e o bispo tiveram sobre umpreso, <strong>que</strong> <strong>se</strong> acolheu a igrejaPor morte <strong>do</strong> bispo d. Pedro Leitão veio o bispo d. Antônio Barreiros, <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> d. priorde Aviz, a governar este bispa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil; era hom<strong>em</strong> benigno, esmoler, e <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de muitasvirtudes; mas não era chega<strong>do</strong> de muitos dias, quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> ofereceu uma ocasião de diferenças, edesgostos entre ele e o governa<strong>do</strong>r Luiz de Brito; a ocasião foi esta:Havia nesta terra um hom<strong>em</strong>, aliás honra<strong>do</strong>, e rico, chama<strong>do</strong> Sebastião da Ponte, mas cruel<strong>em</strong> alguns castigos, <strong>que</strong> dava a <strong>se</strong>us <strong>se</strong>rvos, foss<strong>em</strong> brancos ou negros; entre outros chegou a ferrarum hom<strong>em</strong> branco <strong>em</strong> uma espádua como ferro das vacas depois de b<strong>em</strong> açouta<strong>do</strong>; <strong>se</strong>nti<strong>do</strong> ohom<strong>em</strong> disto <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou, e foi para Lisboa, onde esperan<strong>do</strong> uma manhã a el-rei, quan<strong>do</strong> ia para acapela, deixou cair a capa, <strong>que</strong> só levava sobre os ombros, e lhe mostrou o ferrete, pedin<strong>do</strong>-lhejustiça com muitas lágrimas.Informa<strong>do</strong> el-rei <strong>do</strong> caso, escreveu ao governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> mandas<strong>se</strong> preso, e a bom reca<strong>do</strong> aoreino o dito Sebastião da Ponte.Teve ele notícia disto, e acolheu-<strong>se</strong> a uma ermida de Nossa Senhora da Escada, <strong>que</strong> estájunto a Pirajá, onde o réu então morava: d<strong>em</strong>ais disto chamou-<strong>se</strong> às ordens, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> tinha asmenores, e andava com hábito, e tonsura, por<strong>que</strong> não era casa<strong>do</strong>, pelas quais razões deprecou obispo ao governa<strong>do</strong>r não o prendes<strong>se</strong>, mas não lhe valeu, começou logo a proceder a censuras, efinalmente chegou o negócio a tanto, <strong>que</strong> houveram de vir às armas, corren<strong>do</strong> com elas o povonéscio, e inconstante, já ao bispo com o t<strong>em</strong>or das censuras, já ao governa<strong>do</strong>r com o t<strong>em</strong>or da penacapital, <strong>que</strong> ao som da caixa <strong>se</strong> publicava, e o <strong>que</strong> mais era, <strong>que</strong> ainda depois de to<strong>do</strong>s acosta<strong>do</strong>s aogoverna<strong>do</strong>r, <strong>se</strong>us próprios filhos, <strong>que</strong> estudavam para <strong>se</strong> ordenar<strong>em</strong>, com pedras nas mãos contra<strong>se</strong>us pais <strong>se</strong> acostavam ao bispo, e a <strong>se</strong>us clérigos, e familiares.Porém enfim/ Jussio Regis urgebat/, e <strong>se</strong> man<strong>do</strong>u o preso ao reino, como el-rei o mandava,onde foi meti<strong>do</strong> na prisão <strong>do</strong> Limoeiro, e nela acabou como suas culpas mereciam.Também neste t<strong>em</strong>po deu a nau Santa Clara, in<strong>do</strong> para a Índia, à costa no rio Arambepe àmeia-noite, dan<strong>do</strong> por cima de uma lájea, um tiro de falcão <strong>do</strong> recife, e <strong>se</strong> perderam mais detrezentos homens, <strong>que</strong> nela iam com o capitão Luiz de Andrade.Dista o rio <strong>do</strong>nde a nau <strong>se</strong> perdeu cinco ou <strong>se</strong>is léguas desta cidade, e assim acudiu logo lámuita gente, e <strong>se</strong> tirou <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar muito dinheiro de mergulho, de <strong>que</strong> <strong>se</strong> pagaram per si osbúzios, e nada<strong>do</strong>res, e muitos <strong>que</strong> nada nadaram. A isto acudiu o bispo com a excomunhão da Bulada Ceia contra os <strong>que</strong> tomam os bens <strong>do</strong>s naufrágios; não <strong>se</strong>i <strong>se</strong> aproveitou alguma coisa, só <strong>se</strong>i, <strong>que</strong>ouvi dizer a um, dali a muitos anos, <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le fora o t<strong>em</strong>po <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> para esta Bahia pelo muito


66dinheiro <strong>que</strong> então nela corria, e muitos índios, <strong>que</strong> desceram <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão, e b<strong>em</strong> dizia <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>, e nãode ouro, por<strong>que</strong> para este outras coisas <strong>se</strong> re<strong>que</strong>riam.CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDODo princípio da rebelião, e guerras <strong>do</strong> gentio da ParaíbaO rio da Paraíba, <strong>que</strong> nas cartas de marear <strong>se</strong> chama de S. Domingos, está <strong>em</strong> <strong>se</strong>is graus etrês quartos... A boca da abra <strong>que</strong> o rio faz t<strong>em</strong> de largo uma légua, e o canal <strong>que</strong> vai pelo meio, <strong>que</strong>é o <strong>que</strong> chamam barra, t<strong>em</strong> um quarto de légua, e to<strong>do</strong> o mais de uma parte e outra é muitoesparcela<strong>do</strong>, o fun<strong>do</strong> é de areia limpa, e assim é muito maior porto, e capaz de maiores<strong>em</strong>barcações, <strong>que</strong> o de Pernambuco, <strong>do</strong> qual dista 22 léguas de costa para a banda <strong>do</strong> norte.Pelo rio acima uma légua t<strong>em</strong> uma ilha formosa de arvore<strong>do</strong> de uma légua de compri<strong>do</strong>, eum terço de largo, defronte da qual esta o surgi<strong>do</strong>uro das naus capaz de grande quantidade delas, eabriga<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os ventos, e chega ainda a maré pelo rio acima cinco léguas, por onde pod<strong>em</strong>navegar grandes caravelões; t<strong>em</strong> uma várzea de mais de 14 léguas de compri<strong>do</strong>, e de largo duas milbraças, toda retalhada de esteiros, e rios caudais de água <strong>do</strong>ce, <strong>que</strong> já hoje está toda povoada decanas-de-açúcar e engenhos, para os quais dão os mangues <strong>do</strong> salga<strong>do</strong> lenha para <strong>se</strong> cozer o açúcar,e para cinza da decoada <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> limpa; neste rio entravam mais de 20 naus francesas to<strong>do</strong>s osanos a carregar de pau-<strong>brasil</strong>, com ajuda <strong>que</strong> lhes davam os gentios Potiguares, <strong>que</strong> <strong>se</strong>nhoreavamtoda a<strong>que</strong>la terra da Paraíba até o Maranhão algumas 400 léguas: e assim ajudavam os portugue<strong>se</strong>svizinhos das capitanias de Itamaracá e Pernambuco, depois <strong>que</strong> tiveram pazes, como fica dito nocapítulo décimo <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>livro</strong> <strong>se</strong>gun<strong>do</strong>; mas tantas vexações, e perrarias lhe fizeram, <strong>que</strong> <strong>se</strong>tornaram a rebelar.Uma só contarei, <strong>que</strong> foi como disposição última, e ocasião propínqua desta rebelião, e foi<strong>que</strong> entre outros mamalucos, <strong>que</strong> andavam pelas aldeias suas resgatan<strong>do</strong> peças cativas, e outrascoisas, e debaixo disto rouban<strong>do</strong>-os com violência e enganos, houve um natural de Pernambuco, oqual, posto <strong>que</strong> era filho de um hom<strong>em</strong> honra<strong>do</strong>, tirou mais a ralé da mãe <strong>que</strong> <strong>do</strong> pai; este in<strong>do</strong> auma aldeia da Capaôba com <strong>se</strong>us resgates <strong>se</strong> agasalhou <strong>em</strong> um rancho de um principal grandechama<strong>do</strong> Iniguaçú, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r dizer «rede grande», e <strong>se</strong> namorou de uma filha sua, moça de 15 anos,dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria casar ou amancebar-<strong>se</strong> com ela, para ficar entre eles, e não vir mais para osbrancos, no <strong>que</strong> ela con<strong>se</strong>ntiu, e o pai também, entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong> cumpriria o noivo a condiçãoprometida. Porém in<strong>do</strong> a uma caça, <strong>que</strong> durou alguns dias, quan<strong>do</strong> tornou não achou o genro, n<strong>em</strong> afilha, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> haviam i<strong>do</strong> para Pernambuco: <strong>se</strong>ntiu-o muito, e man<strong>do</strong>u logo <strong>do</strong>is filhos <strong>se</strong>us <strong>em</strong>busca da irmã, os quais, por<strong>que</strong> o mamaluco lha não quis dar <strong>se</strong> foram <strong>que</strong>ixar a Antônio Sal<strong>em</strong>a,<strong>que</strong> estava por correição <strong>em</strong> Pernambuco, posto <strong>que</strong> já de partida para a Bahia, e ele man<strong>do</strong>u logonotificar <strong>que</strong> o pai <strong>do</strong> <strong>que</strong>rela<strong>do</strong>, <strong>que</strong> trouxes<strong>se</strong> a moça, como trouxe, e a entregou aos irmãos,passan<strong>do</strong>-lhes uma provisão para <strong>que</strong> ninguém lhes impedis<strong>se</strong> o caminho, ou lhes fizes<strong>se</strong> agravo,antes lhes dess<strong>em</strong> os brancos por onde passass<strong>em</strong> to<strong>do</strong> o favor, e ajuda para o <strong>se</strong>guir<strong>em</strong>; avisan<strong>do</strong>os<strong>que</strong> não con<strong>se</strong>ntiss<strong>em</strong> mamalucos <strong>em</strong> suas aldeias, e assim o avisou ao capitão-mor da ilhaAfonso Rodrigues Bacelar, <strong>que</strong> não con<strong>se</strong>ntis<strong>se</strong> <strong>em</strong> ir ao <strong>se</strong>rtão s<strong>em</strong>elhante gente.Foram os negros mui contentes com sua irmã, e mais depois <strong>que</strong> viram o bom agasalha<strong>do</strong>,<strong>que</strong> pelo caminho lhes faziam os brancos, obedecen<strong>do</strong> à provisão <strong>que</strong> levavam, até <strong>que</strong> chegaram àcasa de um Diogo Dias, <strong>que</strong> era o derradeiro <strong>que</strong> estava nas fronteiras da capitania de Itamaracá, oqual os recebeu com muitas mostras de amor, e muito mais a irmã, <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u recolher com outrasmoças de Câmera, s<strong>em</strong> mais a <strong>que</strong>rer dar aos porta<strong>do</strong>res, n<strong>em</strong> ao outros, <strong>que</strong> o pai man<strong>do</strong>u depois<strong>que</strong> soube, pedin<strong>do</strong>-lhe <strong>que</strong> lhe mandas<strong>se</strong> sua filha, e quan<strong>do</strong> não qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> a foss<strong>em</strong> pedir ao dito


67capitão-mor da ilha, como foram, e nenhuma coisa aproveitou, por<strong>que</strong> o capitão era amigo de DiogoDias, e dissimulou com o caso.Espalhada esta nova pelos gentios das aldeias qui<strong>se</strong>ram logo tomar vingança nos regatões,<strong>que</strong> nelas estavam, e tomar-lhes os resgates; mas o principal agrava<strong>do</strong> lhes foi à mão dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong>a<strong>que</strong>les não tinham culpa, e não era razão pagass<strong>em</strong> os justos pelos peca<strong>do</strong>res, e somente os fez sairdas aldeias, e ir para suas casas como o correge<strong>do</strong>r Antônio Sal<strong>em</strong>a havia manda<strong>do</strong>; tão b<strong>em</strong>intenciona<strong>do</strong> era este negro, e afeto aos portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> ainda de <strong>se</strong>u ofensor tomaravingança, <strong>se</strong>não fora atiça<strong>do</strong> por outros Potiguares, principalmente pelos da beira-mar, com os quaiscomunicavam os france<strong>se</strong>s, e para o <strong>se</strong>u comércio <strong>do</strong> pau-<strong>brasil</strong> lhes importava muito ter aliançacom estoutros da <strong>se</strong>rra, e como nesta conjunção estavam três naus francesas à carga na baía daTraição, e o capitão-mor da ilha de Itamaracá havia da<strong>do</strong> um assalto, <strong>que</strong> matou alguns france<strong>se</strong>s, elhes <strong>que</strong>imou muito pau <strong>que</strong> tinham feito, no qual o assalto <strong>se</strong> havia também acha<strong>do</strong> Diogo Dias,tantas coisas dis<strong>se</strong>ram ao bom Rede Grande, <strong>que</strong> veio a con<strong>se</strong>ntir <strong>que</strong> dess<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua casa, efazenda, <strong>que</strong> era um engenho <strong>que</strong> havia começa<strong>do</strong> no rio Taracunhaê; e por<strong>que</strong> sabiam <strong>que</strong> ohom<strong>em</strong> tinha muita gente, e escravos, e uma cerca mui grande feita, com uma casa forte dentro, <strong>em</strong><strong>que</strong> tinha algumas peças de artilharia, <strong>se</strong> concertaram <strong>que</strong> ele viria com to<strong>do</strong> o gentio da <strong>se</strong>rra poruma parte, e o Tujucipapo, <strong>que</strong> era o maior principal da ribeira, com os <strong>se</strong>us, e com os france<strong>se</strong>s poroutra, e assim como o dis<strong>se</strong>ram o fizeram, e com <strong>se</strong>r<strong>em</strong> infinitos <strong>em</strong> número ainda usaram de umagrande astúcia, <strong>que</strong> não r<strong>em</strong>eteram to<strong>do</strong>s à cerca n<strong>em</strong> <strong>se</strong> descobriram, <strong>se</strong>não somente alguns, eainda estes começan<strong>do</strong> os nossos a feri-los de dentro com flechas, e pelouros, <strong>se</strong> foram retiran<strong>do</strong>como <strong>que</strong> fugiam; o <strong>que</strong> visto por Diogo Dias <strong>se</strong> pôs a cavalo, e sain<strong>do</strong> da cerca com os <strong>se</strong>u<strong>se</strong>scravos, foi <strong>em</strong> <strong>se</strong>u <strong>se</strong>guimento, mas tanto <strong>que</strong> o viram fora rebentaram os mais da cilada com umurro, <strong>que</strong> atroava a terra, e o cercaram de mo<strong>do</strong>, <strong>que</strong> não poden<strong>do</strong> recolher-<strong>se</strong> à sua cerca, foi alimorto com to<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>us, e a cerca entrada, onde não deixaram branco n<strong>em</strong> negro, grande n<strong>em</strong>pe<strong>que</strong>no, macho n<strong>em</strong> fêmea, <strong>que</strong> não matass<strong>em</strong>, e esquartejass<strong>em</strong>.Foi esta guerra <strong>do</strong>s Potiguares, governan<strong>do</strong> o Brasil Luiz de Brito, na era de mil quinhentos<strong>se</strong>tenta e quatro, e dela <strong>se</strong> <strong>se</strong>guiram tantas, <strong>que</strong> duraram 25 anos.CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRODe como dividiu el-rei o governo <strong>do</strong> Brasil mandan<strong>do</strong> o dr. Antônio Sal<strong>em</strong>a governar o Rio deJaneiro com o Espírito Santo, e mais capitanias <strong>do</strong> sul, e o governa<strong>do</strong>r Luiz de Brito com aBahia, e as outras <strong>do</strong> norte, e <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> conquistar a ParaíbaInforma<strong>do</strong> el-rei d. Sebastião de to<strong>do</strong> o conteú<strong>do</strong> no capítulo precedente, e receoso de <strong>se</strong> osfrance<strong>se</strong>s situar<strong>em</strong> no rio da Paraíba, man<strong>do</strong>u ao governa<strong>do</strong>r Luiz de Brito de Almeida o fos<strong>se</strong> ver,e eleger sítio para uma forte povoação, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> pudess<strong>em</strong> defender deles, e <strong>do</strong>s Potiguares, e para<strong>que</strong> melhor o pudes<strong>se</strong> fazer, e s<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>ntiss<strong>em</strong> sua falta as capitanias <strong>do</strong> sul, de Porto Seguro parabaixo, encarregou o governo delas ao dr. Antônio Sal<strong>em</strong>a, <strong>que</strong> havia esta<strong>do</strong> <strong>em</strong> Pernambuco comalçada, e então estava na Bahia, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> partiu no ano <strong>do</strong> Senhor de mil quinhentos <strong>se</strong>tenta e cinco,e foi b<strong>em</strong> recebi<strong>do</strong> no Rio de Janeiro assim pelo capitão-mor Cristóvão de Barros, como de to<strong>do</strong>s osmais portugue<strong>se</strong>s, e índios principais, <strong>que</strong> o visitaram, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> o <strong>primeiro</strong> e principalíssimo MartimAfonso de Souza, Araribóia, de qu<strong>em</strong> tratamos no capítulo décimo quarto deste <strong>livro</strong>, ao qual, comoo governa<strong>do</strong>r des<strong>se</strong> cadeira, e ele <strong>em</strong> <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntan<strong>do</strong> cavalgas<strong>se</strong> uma perna sobre a outra <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> o<strong>se</strong>u costume, man<strong>do</strong>u-lhe dizer o governa<strong>do</strong>r pelo intérprete, <strong>que</strong> ali tinha, <strong>que</strong> não era a<strong>que</strong>la boacortesia quan<strong>do</strong> falava com um governa<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> repre<strong>se</strong>ntava a pessoa de el-rei.


68Respondeu o índio de repente, não s<strong>em</strong> cólera e arrogância, dizen<strong>do</strong>-lhe:” Se tu souberasquão cansadas eu tenho as pernas das guerras <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>rvi a el-rei, não estranharas dar-lhe agoraeste pe<strong>que</strong>no descanso, mas já <strong>que</strong> me achas pouco cortesão eu me vou para minha aldeia, onde nósnão curamos des<strong>se</strong>s pontos, e não tornarei mais à tua corte.” Porém nunca deixou de <strong>se</strong> achar comos <strong>se</strong>us <strong>em</strong> todas as ocasiões, <strong>que</strong> o ocupou.Depois <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r esteve alguns dias <strong>em</strong> terra compon<strong>do</strong> e ordenan<strong>do</strong> as coisas dela,e da justiça, como bom letra<strong>do</strong> <strong>que</strong> era, foi informa<strong>do</strong> <strong>que</strong> no Cabo Frio estavam muitas nausfrancesas resgatan<strong>do</strong> com o gentio, e <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s os anos ali vinham carregar de pau-<strong>brasil</strong>; pelo <strong>que</strong>determinou logo lançá-los fora, e para isto <strong>se</strong> ajuntou com Cristóvão de Barros, e com 400portugue<strong>se</strong>s, e 700 gentios amigos, cometeram animosamente os france<strong>se</strong>s, e posto <strong>que</strong> os acharamjá fortifica<strong>do</strong>s com os Tamoios, e <strong>se</strong> defenderam com muito ânimo, todavia apertaram tanto comeles, <strong>que</strong> tiveram por <strong>se</strong>u b<strong>em</strong> entregar-<strong>se</strong>, e os Tamoios, <strong>que</strong> escaparam, com espanto <strong>do</strong> <strong>que</strong>tinham visto <strong>se</strong> afastaram de toda a<strong>que</strong>la costa, mas os cativos, <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ram receber a Fé, pôs ogoverna<strong>do</strong>r Antônio Sal<strong>em</strong>a <strong>em</strong> duas aldeias no recôncavo <strong>do</strong> Rio de Janeiro, a <strong>que</strong> chamaram umade S. Barnabé, e outra de S. Lourenço, e <strong>se</strong> encomendaram aos padres da companhia, para <strong>que</strong>como aos outros catecumenos lhes ensinass<strong>em</strong> o ministério de nossa Fé.CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTODe como o governa<strong>do</strong>r Luiz de Brito man<strong>do</strong>u o ouvi<strong>do</strong>r-geral Fernão da Silva à conquista da Paraíba, e depois ia el<strong>em</strong>esmo, e não pôde chegar com ventos contráriosPor não poder o governa<strong>do</strong>r Luiz de Brito de Almeida ir logo à conquista da Paraíba, <strong>que</strong> elreilhe encomen<strong>do</strong>u, a encarregou ao dr. Fernão da Silva, ouvi<strong>do</strong>r-geral, e prove<strong>do</strong>r-mor desteesta<strong>do</strong>, <strong>que</strong> na<strong>que</strong>la ocasião ia por correição a Pernambuco, o qual com to<strong>do</strong> o poder de gente de pée de cavalo, e índios, <strong>que</strong> de Pernambuco e Itamaracá pôde levar, foi a ver o sítio, e castigar osPotiguares rebela<strong>do</strong>s: os quais como o viram ir tão poderoso não ousaram esperá-lo, n<strong>em</strong> ele oscorreu mais <strong>que</strong> até à boca <strong>do</strong> dito rio, onde tomou dele pos<strong>se</strong> <strong>em</strong> nome de el-rei com muitasolenidade de atos, <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u fazer muito b<strong>em</strong> nota<strong>do</strong>s, e com este feito <strong>se</strong> tornou mui satisfeito aPernambuco, e daí depois de concluí<strong>do</strong>s os negócios de <strong>se</strong>u ofício outra vez para a Bahia, porém osPotiguares, <strong>que</strong> nenhuma coisa entend<strong>em</strong> de atos n<strong>em</strong> termos judiciais, n<strong>em</strong> <strong>se</strong> lhes dá deles, comonão viram pelouros, n<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> lhos tiras<strong>se</strong>, <strong>se</strong> tornaram a <strong>se</strong>nhorear da terra como de antes, e commais ânimo e corag<strong>em</strong>.Neste interim <strong>se</strong> havia concerta<strong>do</strong> Boaventura Dias, filho de Diogo Dias, com um Miguel deBarros, de Pernambuco, hom<strong>em</strong> rico, e <strong>que</strong> tinha muito gentio da terra para fazer<strong>em</strong> um engenho deaçúcar <strong>em</strong> Guiana (Goyana?), no sítio <strong>em</strong> <strong>que</strong> depois o teve Antônio Cavalcante, e para b<strong>em</strong> opoder<strong>em</strong> fazer, e defender, fizeram uma casa forte de madeira de taipa, e mão <strong>do</strong>brada, <strong>do</strong>nde comos arcabuzes, <strong>que</strong> os brancos dentro tinham, e o <strong>se</strong>u gentio com arcos e flechas, <strong>se</strong> defenderam dealguns assaltos, <strong>que</strong> os Potiguares lhe deram, e cerco <strong>em</strong> <strong>que</strong> os pu<strong>se</strong>ram; porém um dia advertiram<strong>que</strong> a loja da casa estava aberta por uma parte onde lhes não haviam feito taipa, e enquanto unspelejavam outros <strong>se</strong>cretamente meteram por ali muita palha <strong>se</strong>ca, e lhes pu<strong>se</strong>ram fogo, o qual <strong>se</strong>começou logo a atear nas traves, e tábuas <strong>do</strong> sobra<strong>do</strong>, s<strong>em</strong> <strong>que</strong> os de riba viss<strong>em</strong> mais <strong>que</strong> a fumaça,<strong>que</strong> os cegava, s<strong>em</strong> saber<strong>em</strong> <strong>do</strong>nde vinha, e in<strong>do</strong> duas mulheres abrir um alçapão para ver<strong>em</strong> o <strong>que</strong>era, subiu incontinente tão grande labareda <strong>que</strong> as abrasou, o <strong>que</strong> visto pelos homens, e como toda acasa estava cercada de inimigo, determinaram sair a campo, e vender b<strong>em</strong> suas vidas, comofizeram, matan<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> a muitos, <strong>que</strong> deles foss<strong>em</strong> mortos, e como o número era tão grandeforam venci<strong>do</strong>s e mortos.


69CAPÍTULO VIGÉSIMO QUINTODe uma entrada, <strong>que</strong> nes<strong>se</strong> t<strong>em</strong>po <strong>se</strong> fez de Pernambuco ao <strong>se</strong>rtãoNa era <strong>do</strong> Senhor de mil quinhentos <strong>se</strong>tenta e oito, <strong>em</strong> <strong>que</strong> Lourenço da Veiga governavaeste esta<strong>do</strong>, <strong>se</strong> ordenou <strong>em</strong> Pernambuco uma entrada para o <strong>se</strong>rtão <strong>em</strong> <strong>que</strong> foi por capitão FranciscoBarbosa da Silva <strong>em</strong> um caravelão até ao rio de S. Francisco, e por <strong>se</strong>r a gente muita, e não caber na<strong>em</strong>barcação, foram <strong>se</strong>tenta homens por terra, levan<strong>do</strong> por <strong>se</strong>u cabo a Diogo de Castro, <strong>que</strong> falavab<strong>em</strong> a língua da terra, e havia já i<strong>do</strong> da Bahia a outras entradas.Estes haven<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> o rio Formoso foram cometi<strong>do</strong>s de um ban<strong>do</strong> de porcos monte<strong>se</strong>s,com tanta fúria, e rugi<strong>do</strong> de dentes, <strong>que</strong> os pôs <strong>em</strong> pavor, mas como tinham as espingardascarregadas, descarregaram-nas neles, e os fizeram voltar fican<strong>do</strong> <strong>se</strong>te mortos, <strong>que</strong> foram bons para amatulag<strong>em</strong>.Daí a nove dias, chegan<strong>do</strong> à lagoa viram estar uma nau francesa, surta três léguas ao mar,para o rio de S. Miguel, da qual <strong>se</strong> haviam des<strong>em</strong>barca<strong>do</strong> 10 france<strong>se</strong>s, e estavam <strong>em</strong> umatran<strong>que</strong>ira contratan<strong>do</strong> com alguns gentios.Deram os nossos sobre eles de madrugada quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmiam, mataram nove, fican<strong>do</strong> só umdefenden<strong>do</strong>-<strong>se</strong> tão valorosamente com uma alabarda, <strong>que</strong> com estar já com uma perna cortada,ainda antes <strong>que</strong> o matass<strong>em</strong> matou um solda<strong>do</strong> nosso chama<strong>do</strong> Pedro da Costa.Os índios, <strong>que</strong> com eles estavam, eram poucos, e dizen<strong>do</strong>-lhes Diogo de Castro, <strong>que</strong> os nãobuscavam, <strong>se</strong>não aos france<strong>se</strong>s, <strong>se</strong> foram s<strong>em</strong> fazer alguma resistência, e os nossos <strong>se</strong>guiram <strong>se</strong>ucaminho até o des<strong>em</strong>barca<strong>do</strong>uro <strong>do</strong> rio de S. Francisco, onde foi aportar o caravelão com o <strong>se</strong>ucapitão, e os mais, <strong>que</strong> levava; e dali, por não ter<strong>em</strong> índios, <strong>que</strong> lhes carregass<strong>em</strong> os mantimentos, eresgates, os mandaram pedir ao principal chama<strong>do</strong> Porquinho, e a outro <strong>se</strong>u contrário chama<strong>do</strong> oSeta, para <strong>que</strong> <strong>se</strong> um os não des<strong>se</strong>, os des<strong>se</strong> o outro, e eles foram tão obedientes, <strong>que</strong> de ambas aspartes vieram; e assim para os contentar <strong>se</strong> foi o capitão com os <strong>do</strong> Seta, e Diogo de Castro com os<strong>do</strong> Porquinho.O Seta, depois de ter o capitão <strong>em</strong> casa, lhe cometeu <strong>que</strong> lhe <strong>que</strong>ria vender uma aldeia decontrários, <strong>que</strong> tinha dali a nove ou 10 léguas, <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> com ele, e lha. entregaria; aceitou o capitãoo parti<strong>do</strong>, e deixan<strong>do</strong> <strong>em</strong> guarda <strong>do</strong> fato um Diogo Martins Leão com 12 homens, <strong>se</strong> foi com osmais onde o Seta os levava.Dos <strong>que</strong> ficaram com o Leão foram cinco pelas aldeias vizinhas a buscar de comer, por<strong>que</strong>os gentios delas <strong>se</strong> publicavam amigos, mas eles os mataram s<strong>em</strong> lhes haver<strong>em</strong> da<strong>do</strong> para issoocasião alguma, e logo <strong>se</strong> foram à casa onde Diogo Martins Leão havia fica<strong>do</strong> com os mais para osmatar<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s, e lhes tomar<strong>em</strong> os resgates, os quais entenden<strong>do</strong> a determinação com <strong>que</strong> iamcarregaram à pressa as espingardas, e começaram a <strong>se</strong> defender valorosamente.Logo escreveu Diogo Martins uma carta a Diogo de Castro, <strong>que</strong> o socorres<strong>se</strong>, e lha man<strong>do</strong>upor um cigano, a qual vista, e o perigo, e aperto <strong>em</strong> <strong>que</strong> ficavam, deu cópia dela ao Porquinho, <strong>que</strong>logo <strong>se</strong> pôs a pregar <strong>que</strong> s<strong>em</strong>pre fora amigo <strong>do</strong>s brancos, e o havia de <strong>se</strong>r até a morte, pois eles lheslevavam as ferramentas com <strong>que</strong> faziam suas roças, e s<strong>em</strong>enteiras, e outras coisas boas de <strong>que</strong> eram<strong>se</strong>nhores; <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizess<strong>em</strong> prestes para os ir<strong>em</strong> socorrer, por<strong>que</strong> ele <strong>se</strong> punha já ao caminho, comode feito <strong>se</strong> pôs, e dentro de 24 horas <strong>se</strong> achou junto aos cerca<strong>do</strong>s com 1.500 índios, <strong>em</strong> companhiade Diogo de Castro, e de mais oito homens brancos, os quais, reparti<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> duas mangas,feito o sinal com uma corneta, deram subitamente no inimigo com tanto ímpeto <strong>que</strong> não lhespuderam resistir, e <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> fugida; mas como os tinham cerca<strong>do</strong>s com as mangas, iam lhesdar nas mãos, e foram mortos mais de 600; era isto ant<strong>em</strong>anhã, e como amanheceu depois de <strong>se</strong>


70saudar<strong>em</strong>, e render<strong>em</strong> as graças os <strong>que</strong> ficaram livres <strong>do</strong> cerco, lhes perguntou <strong>se</strong> sabia o capitãoda<strong>que</strong>la rebelião <strong>do</strong> gentio, e por lhe dizer<strong>em</strong> <strong>que</strong> não, lhe escreveu <strong>do</strong>is escritos <strong>do</strong> <strong>que</strong> haviapassa<strong>do</strong>, e <strong>que</strong> logo <strong>se</strong> tornas<strong>se</strong> com boa ord<strong>em</strong>, e vigilância até <strong>se</strong> juntar<strong>em</strong> com ele, <strong>que</strong> também oia buscar, por<strong>que</strong> entre tantos inimigos não convinha andar<strong>em</strong> espalha<strong>do</strong>s: um destes escritos levavaum mamaluco, <strong>que</strong> não chegou, por<strong>que</strong> os inimigos o mataram no caminho; o outro levou um índio<strong>que</strong> chegou, o qual visto pelo capitão dissimulou o t<strong>em</strong>or, e alvoroço, <strong>que</strong> com ele recebeu e dis<strong>se</strong>ao Seta e aos mais, <strong>que</strong> os acompanhavam, <strong>que</strong> era necessário tornar atrás a socorrer os brancos,<strong>que</strong> o Porquinho tinha posto <strong>em</strong> cerco, e com isto fez volta até um rio, <strong>que</strong> distava dali quatroléguas, onde os rebeldes o estavam já aguardan<strong>do</strong> <strong>em</strong> cilada, e rebentan<strong>do</strong> dela <strong>se</strong> travou entre to<strong>do</strong>suma briga, <strong>que</strong> durou até a noite, e tornan<strong>do</strong> pela manhã a continuá-la, chegaram Diogo de Castro, eo Porquinho, com cujo socorro <strong>se</strong> animou mais o capitão, e combaten<strong>do</strong>-os uns por detrás, outrospor diante, mataram mais de 500.Ali tomaram con<strong>se</strong>lho, e as<strong>se</strong>ntaram <strong>que</strong> os acabass<strong>em</strong> de uma vez, e foss<strong>em</strong> a uma cercaforte, e grande, onde <strong>se</strong> haviam acolhi<strong>do</strong>, dali a 12 léguas, no alto de uma <strong>se</strong>rra.Começaram a marchar, e no <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> dia chegaram a um rio, <strong>que</strong> manava de um pene<strong>do</strong>,onde acharam morto, e com os braços corta<strong>do</strong>s, e as pernas, o mamaluco, <strong>que</strong> haviam manda<strong>do</strong> como escrito ao capitão. Dali mandaram um branco com <strong>do</strong>is negros por espias, <strong>que</strong> <strong>se</strong> encontraramcom outros <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s inimigos; um mataram, e trouxeram o outro vivo, <strong>do</strong> qual souberam <strong>que</strong> a cercadistava dali duas léguas, e <strong>que</strong> estavam nela 43 principais nomea<strong>do</strong>s com toda a sua gente, mulhere<strong>se</strong> filhos.Chega<strong>do</strong>s os nossos à vista, não a qui<strong>se</strong>ram os brancos dar de si <strong>se</strong>não só os <strong>do</strong> Porquinho,<strong>que</strong> já a este t<strong>em</strong>po eram vin<strong>do</strong>s das suas aldeias mais de <strong>do</strong>is mil, os quais vistos pelos da cercasaíram a eles outros tantos, e fingin<strong>do</strong> os <strong>do</strong> Porquinho, depois de haver<strong>em</strong> b<strong>em</strong> batalha<strong>do</strong>, <strong>que</strong> lhesfugiam, <strong>se</strong> foram retiran<strong>do</strong> até os afastar um bom espaço da cerca, e então saiu o nosso capitão comos brancos, dan<strong>do</strong>-lhe sua surriada de pelouros pelas costas, e voltaram os da retirada com outra deflechas, onde toman<strong>do</strong>-os <strong>em</strong> meio trezentos, e os mais s<strong>em</strong> poder<strong>em</strong> tornar à cerca, <strong>se</strong> acolherampara os matos.A cerca tinha três mil e 236 braças <strong>em</strong> circuito, e lançava um braço até a água de <strong>que</strong>bebiam; esta lhe determinaram os nossos tomar <strong>primeiro</strong>, e posto <strong>que</strong> os de dentro a defenderamcom muito esforço <strong>se</strong>is dias, contu<strong>do</strong> no sétimo foi rendida, com o <strong>que</strong> começaram a morrer de<strong>se</strong>de, e a cometer muitos parti<strong>do</strong>s, e o último foi <strong>que</strong> entregariam uma aldeia de <strong>se</strong>us contrários <strong>se</strong>os brancos foss<strong>em</strong> com eles a tomar a entre a como foram, e entran<strong>do</strong> na aldeia começaram a pregar<strong>que</strong> eles os tinham vendi<strong>do</strong> por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> <strong>se</strong>us inimigos, e ainda lhe faziam muita mercê <strong>em</strong> não osmatar<strong>em</strong> n<strong>em</strong> os vender<strong>em</strong> a outros gentios, <strong>que</strong> os matass<strong>em</strong> ou maltratass<strong>em</strong>, <strong>se</strong>não a cristãos, <strong>que</strong>os haviam tratar cristãmente; ao <strong>que</strong> respondeu o principal da aldeia, chama<strong>do</strong> Araconda, <strong>que</strong> ele<strong>se</strong>ram os <strong>que</strong> mereciam o cativeiro, e a morte, por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> mata<strong>do</strong>res de brancos, e não ele n<strong>em</strong> os<strong>se</strong>us, <strong>que</strong> nunca lhes fizeram nenhum dano; e então <strong>se</strong> virou para o capitão, e lhe dis<strong>se</strong>: «Branco, eununca fiz mal a teus parentes, n<strong>em</strong> estes me pod<strong>em</strong> vender; mas eu por minha vontade <strong>que</strong>ro <strong>se</strong>rcativo, e ir contigo.»O capitão lhe agradeceu com palavras, e man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> <strong>se</strong> aprestass<strong>em</strong> dentro de quinze diaspara o caminho, como fizeram; eram tantos, <strong>que</strong> in<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> fileira um atrás de outro comocostumam /, ocupavam uma légua de terra.Não <strong>se</strong>i eu com <strong>que</strong> justiça e razão homens cristãos, <strong>que</strong> professavam guardá-la, qui<strong>se</strong>ramaqui <strong>que</strong> pagas<strong>se</strong> o justo pelo peca<strong>do</strong>r, trazen<strong>do</strong> cativo o gentio, <strong>que</strong> não lhes havia feito mal algum,e deixan<strong>do</strong> <strong>em</strong> sua liberdade os rebeldes, e homicidas, <strong>que</strong> lhes haviam feito tanta guerra e traições.Porém eles lhes deram o pago, pois apenas os haviam deixa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> determinaram de lhe ir noalcance, e mandaram adiante alguns por espias, <strong>que</strong> <strong>se</strong> metess<strong>em</strong> pelos matos, e quan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>


71Araconda foss<strong>em</strong> à caça lhes dis<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> <strong>que</strong> eles r<strong>em</strong>ordi<strong>do</strong>s de suas consciências os <strong>que</strong>riamredimir <strong>do</strong> cativeiro <strong>do</strong>s brancos <strong>em</strong> <strong>que</strong> os pu<strong>se</strong>ram, e para isto lhes <strong>que</strong>riam dar guerra, pelo <strong>que</strong>os avisavam <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> viss<strong>em</strong> a batalha os deixass<strong>em</strong>, e <strong>se</strong> foss<strong>em</strong> <strong>em</strong>bora para suas terras,por<strong>que</strong> a gente <strong>do</strong> Porquinho era já despedida, e não tinham <strong>que</strong> t<strong>em</strong>er; mas posto <strong>que</strong> isto <strong>se</strong> tratoucom muito <strong>se</strong>gre<strong>do</strong>, o ouviu uma índia das cativas, <strong>que</strong> o dis<strong>se</strong> a <strong>se</strong>u <strong>se</strong>nhor, e o <strong>se</strong>nhor a outros, <strong>que</strong>não creram <strong>se</strong>não depois <strong>que</strong> o viram, e não lhes aproveitou o aviso, por<strong>que</strong> os inimigos lhes deramna retaguarda, e lhes mataram 11 homens, s<strong>em</strong> os da vanguarda lhes poder<strong>em</strong> valer, assim por ir<strong>em</strong>mais longe, como pelo gentio de Araconda <strong>se</strong>r acolhi<strong>do</strong>, e cuidar o capitão <strong>que</strong> nenhum daretaguarda lhes haveria escapa<strong>do</strong> com vida; só man<strong>do</strong>u <strong>do</strong>is negros saber <strong>se</strong> eram mortos ou vivos,os quais ven<strong>do</strong>-os cerca<strong>do</strong>s e postos <strong>em</strong> tanto aperto, <strong>que</strong> qua<strong>se</strong> estavam desmaia<strong>do</strong>s, entraramapelidan<strong>do</strong> a Santo Antônio, e um com arco e flecha, outro com <strong>se</strong>u terça<strong>do</strong>, e rodela, fazen<strong>do</strong> tantoestrago, <strong>que</strong> bastou este pe<strong>que</strong>no socorro para animar os amigos, e at<strong>em</strong>orizar os inimigos, de sorte<strong>que</strong> <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> fugida, e os pernambucanos não os poden<strong>do</strong> já <strong>se</strong>guir, <strong>se</strong> tornaram para suascasas, mais pobres <strong>do</strong> <strong>que</strong> vieram.Tinha o governa<strong>do</strong>r d. Lourenço da Veiga uma coisa, e era <strong>que</strong>, por mais negócios, <strong>que</strong>tives<strong>se</strong>, não deixava de ouvir missa, e para não obrigar alguém a <strong>que</strong> o acompanhas<strong>se</strong>, ia e vinhas<strong>em</strong>pre a cavalo.CAPÍTULO VIGÉSIMO SEXTODa morte <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Lourenço da VeigaDepois <strong>que</strong> el-rei d. Henri<strong>que</strong> reinou, por morte de el-rei d. Sebastião <strong>se</strong>u sobrinho, comoera já de tanta idade quan<strong>do</strong> entrou no reina<strong>do</strong>, <strong>que</strong> passava de <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta e <strong>se</strong>is anos, logo <strong>se</strong>começou a altercar sobre qu<strong>em</strong> lhe havia de suceder no reino, por<strong>que</strong> os pretensores eram el-reicatólico Filipe Segun<strong>do</strong> de Castela, a du<strong>que</strong>sa de Bragança, o príncipe de Parma, o du<strong>que</strong> deSabóia, e o <strong>se</strong>nhor d. Antônio, e to<strong>do</strong>s enviaram <strong>se</strong>us procura<strong>do</strong>res à Corte, para <strong>que</strong>, informa<strong>do</strong> elreida justiça de cada um, declaras<strong>se</strong> por sucessor o <strong>que</strong> lhe pareces<strong>se</strong> nela mais justifica<strong>do</strong>.To<strong>do</strong>s alegavam <strong>que</strong> eram <strong>se</strong>us sobrinhos, filhos de <strong>se</strong>us irmãos ou irmãs, e estavam <strong>em</strong>igual grau de parentesco, por<strong>que</strong> el-rei católico era filho de sua irmã a imperatriz d. Isabel, e <strong>do</strong>impera<strong>do</strong>r Carlos Quinto. A du<strong>que</strong>sa de Bragança era filha <strong>do</strong> infante d. Duarte, <strong>se</strong>u irmão, e de d.Isabel, filha <strong>do</strong> du<strong>que</strong> de Bragança d. Jaime.O príncipe de Parma era casa<strong>do</strong> com a infanta d. Maria, também filha <strong>do</strong> mesmo infante d.Duarte. O du<strong>que</strong> de Sabóia era filho da infanta d. Beatriz, sua irmã, e de Carlos, du<strong>que</strong> de Sabóia.O <strong>se</strong>nhor d. Antônio era filho natural <strong>do</strong> infante d. Luiz, <strong>se</strong>u irmão, to<strong>do</strong>s netos de el-rei d.Manuel, pai <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us genitores, e <strong>do</strong> mesmo rei Henri<strong>que</strong>, <strong>se</strong>u tio.El-rei, posto <strong>que</strong> de princípio <strong>se</strong> inclinou à parte da du<strong>que</strong>sa de Bragança, contu<strong>do</strong>, por <strong>se</strong>rfêmea, e el-rei católico varão, e por outras razões, <strong>se</strong> resolveu <strong>que</strong> a ele pertencia o reino, mas não oquis declarar por <strong>se</strong>ntença, n<strong>em</strong> <strong>em</strong> testamento, por<strong>que</strong> era melhor para os pretensores, e para omesmo reino de Portugal, <strong>que</strong> lho dess<strong>em</strong> por concerto.Já a este t<strong>em</strong>po el-rei <strong>se</strong> achava mui fraco, e foi apertan<strong>do</strong> o mal de maneira <strong>que</strong> morreu<strong>se</strong>n<strong>do</strong> de idade de 68 anos, e os perfez no mesmo dia <strong>em</strong> <strong>que</strong> morreu, <strong>que</strong> foi o último rei dePortugal de linha masculina, e como o <strong>primeiro</strong> <strong>se</strong>nhor de Portugal <strong>se</strong> chamou Henri<strong>que</strong>, assim <strong>se</strong>chamou o último.Morto el-rei, os governa<strong>do</strong>res <strong>que</strong> deixou nomea<strong>do</strong>s foram o arcebispo de Lisboa, Franciscode Sá, camareiro-mor de el-rei, d. João Tello, d. João Mascarenhas, e Diogo Lopes de Souza,presidente <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho de Justiça, ainda <strong>que</strong> não tinham vontade de resistir a el-rei católico,todavia, por dar satisfação ao povo, proveram algumas coisas para a defensa <strong>do</strong> reino, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong>


72sabi<strong>do</strong> por el-rei, e as diligências <strong>que</strong> d. Antônio fazia para <strong>que</strong> o levantass<strong>em</strong> por rei de Portugal,<strong>se</strong>ntiu muito não poder escusar-<strong>se</strong> de aproveitar-<strong>se</strong> das armas, e já estava as<strong>se</strong>gura<strong>do</strong> da consciência,com pareceres de teólogos e canonistas, <strong>que</strong> o podia fazer, e <strong>se</strong> aparelhava para isso; mas escreveu<strong>primeiro</strong> aos governa<strong>do</strong>res, e a cinco principais cidades <strong>do</strong> reino, e aos três esta<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> estavam <strong>em</strong>Cortes <strong>em</strong> Almeirim, pedin<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> o declarass<strong>em</strong> conforme a vontade <strong>do</strong> rei-defunto <strong>se</strong>u tio, e a<strong>se</strong>u direito. Responderam-lhe <strong>que</strong> não podiam até <strong>que</strong> a causa <strong>se</strong> declaras<strong>se</strong> por justiça; o <strong>que</strong> vistopor el-rei, nomeou o du<strong>que</strong> de Alba por general <strong>do</strong> exército, e man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> entrass<strong>em</strong> <strong>em</strong> Portugalpor terra e por mar.Iam no exército mais de 1.400 cavalos, a infantaria, além <strong>do</strong>s terços de Espanha, eram qua<strong>se</strong>quatro mil al<strong>em</strong>ães, e <strong>se</strong>u coronel o conde Baldrou (de Lodron), e quatro mil italianos com <strong>se</strong>ucapitão-general d. Pedro de Médicis.O du<strong>que</strong> de Alba, contra o parecer de outros, <strong>que</strong> diziam <strong>que</strong> s<strong>em</strong> tratar da torre de S. Gião(S. Julião), <strong>se</strong> foss<strong>em</strong> direitos a Lisboa, e começou de bater com vinte e quatro canhões, e ainda <strong>que</strong>lhe não fez grande dano, Tristão Vaz da Veiga, irmão de Lourenço da Veiga, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil,<strong>que</strong> era o capitão da Torre, determinou de entregá-la, e mandan<strong>do</strong> pedir <strong>se</strong>guro ao du<strong>que</strong> <strong>se</strong> viu comele <strong>em</strong> campo, e <strong>se</strong> concertou de entregar a fortaleza, <strong>se</strong> lhe concediam o <strong>que</strong> d. Antônio lhe haviada<strong>do</strong>, e assim <strong>se</strong> fez, e <strong>se</strong> meteu nela presidiu de castelhanos; o <strong>que</strong> visto por Pedro Barba, capitão<strong>do</strong> forte da Cabeça Seca, <strong>que</strong> até então <strong>se</strong> não havia <strong>que</strong>ri<strong>do</strong> render, e <strong>que</strong> o marquês de Santa Cruz,d. Álvaro Baçan, ia entran<strong>do</strong> com as galés castelhanas, o desamparou, e <strong>se</strong> foi a d. Antônio, <strong>que</strong>também foi daí a poucos dias venci<strong>do</strong> <strong>em</strong> Lisboa, e retiran<strong>do</strong>-<strong>se</strong> dela a cidade de Coimbra, e deCoimbra à <strong>do</strong> Porto, onde o reconheceram por rei, in<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> <strong>se</strong>guimento Sancho de Ávila;finalmente o forçou a <strong>em</strong>barcar-<strong>se</strong> no rio Minho, vesti<strong>do</strong> como marinheiro, e passar-<strong>se</strong> às ilhas, edelas a outros reinos estranhos, onde acabou a vida.Hei dito estas coisas <strong>em</strong> suma, não s<strong>em</strong> propósito, <strong>se</strong>não para declarar o acha<strong>que</strong> ou ocasiãoda morte <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil Lourenço da Veiga, .<strong>que</strong> como <strong>se</strong> prezava de português, <strong>se</strong>ntiutanto haver <strong>se</strong>u irmão Tristão Vaz da Veiga entregue a torre de S. Gião da maneira <strong>que</strong> t<strong>em</strong>os visto,<strong>que</strong> ouvin<strong>do</strong> a nova enfermou, e morreu; e assim acabou o governa<strong>do</strong>r Lourenço da Veiga, e nóscom ele acabamos também este <strong>livro</strong>.LIVRO QUARTODA HISTORIA DO BRASILDO TEMPO QUE O GOVERNOU MANUEL TELES BARRETOATÉ A VINDA DO GOVERNADOR GASPAR DE SOUZACAPÍTULO PRIMEIRO


73De como veio governar o Brasil Manuel Teles Barreto, e <strong>do</strong> <strong>que</strong> aconteceu a umas naus francesas, einglesas no Rio de Janeiro, e S. VicenteComo a Majestade de el-rei Filipe Segun<strong>do</strong> de Castela, e Primeiro de Portugal, foi jura<strong>do</strong>nele por rei no fim <strong>do</strong> ano de mil quinhentos e oitenta, saben<strong>do</strong> da morte <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> BrasilLourenço da Veiga, man<strong>do</strong>u por governa<strong>do</strong>r Manuel Teles Barreto, irmão de Antônio MonizBarreto, <strong>que</strong> foi governa<strong>do</strong>r da Índia; era de 60 anos de idade, e não só era velho nela, mas tambémde Portugal o Velho; a to<strong>do</strong>s falava por vós, ainda <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> ao bispo, mas caía-lhe <strong>em</strong> graça, a qualnão têm os velhos to<strong>do</strong>s.Tanto <strong>que</strong> chegou a esta Bahia, <strong>que</strong> foi no ano de mil quinhentos oitenta e <strong>do</strong>is, escreveu atodas as capitanias <strong>que</strong> conhecess<strong>em</strong> a Sua Majestade por <strong>se</strong>u rei, e foi de importância este aviso,por<strong>que</strong> daí a poucos dias chegaram três naus francesas ao Rio de Janeiro, e surgiram junto aobaluarte, <strong>que</strong> está no porto da cidade, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> iam com uma carta de d. Antônio para o capitãoSalva<strong>do</strong>r Corrêa de Sá, o qual nesta ocasião era i<strong>do</strong> ao <strong>se</strong>rtão fazer guerra ao gentio; mas oadministra<strong>do</strong>r Bartolomeu Simões Pereira, <strong>que</strong> havia fica<strong>do</strong> governan<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar, e estavainforma<strong>do</strong> da verdade pela carta <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r geral, lhes respondeu <strong>que</strong> <strong>se</strong> foss<strong>em</strong> <strong>em</strong>bora, por<strong>que</strong>já sabia qu<strong>em</strong> era <strong>se</strong>u rei; e por<strong>que</strong> a cidade estava s<strong>em</strong> gente, e não havia mais nela <strong>que</strong> os moço<strong>se</strong>studantes, e alguns velhos, <strong>que</strong> não puderam ir à guerra <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão, destes fez uma companhia, e d.Ignez de Souza, mulher de Salva<strong>do</strong>r Corrêa de Sá, fez outra de mulheres com <strong>se</strong>us chapéus nascabeças, arcos e flechas nas mãos, com o <strong>que</strong>, e com o mandar<strong>em</strong> tocar muitas caixas, e fazermuitos fogos de noite pela praia, fizeram imaginar aos france<strong>se</strong>s <strong>que</strong> era gente para defender acidade, e assim a cabo de dez ou <strong>do</strong>ze dias levantaram as âncoras, e <strong>se</strong> foram.No mesmo t<strong>em</strong>po foram <strong>do</strong>is galeões de ingle<strong>se</strong>s, de 300 toneladas cada um, à capitania deS. Vicente com intento de povoar, e fortificar-<strong>se</strong> por relação de um inglês, <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia ali casa<strong>do</strong>,das minas de ouro, e outros metais, <strong>que</strong> há na<strong>que</strong>la terra, e publicavam <strong>que</strong> el-rei católico era morto,e d. Antônio tinha o reino de Portugal, oferecen<strong>do</strong> da parte da rainha de Inglaterra grandes coisas.Porém os portugue<strong>se</strong>s, pela carta <strong>que</strong> tinham estiveram mui firmes por el-rei católico, s<strong>em</strong> <strong>que</strong>reradmitir aos ingle<strong>se</strong>s, os quais ameaçavam de entrar por força, e realmente o fizeram, <strong>se</strong> na<strong>que</strong>laconjunção não chegaram três naus de castelhanos, <strong>que</strong> começaram a pelejar com eles, os quais logobateram estandarte, pedin<strong>do</strong> paz, <strong>que</strong> os castelhanos lhes não deram, antes jogaram a artilharia todaa noite, por<strong>que</strong> pelas correntes não os puderam abordar.Ao outro dia, ainda <strong>que</strong> deixaram uma nau tão maltratada <strong>que</strong> <strong>se</strong> foi ao fun<strong>do</strong>,desampararam a <strong>em</strong>presa, e saíram <strong>do</strong> porto mui maltratadas, s<strong>em</strong> antenas, e as naus furadas pormuitas partes, e mais de 50 homens mortos, e 14 feri<strong>do</strong>s. Entraram as naus castelhanas no porto,<strong>se</strong>n<strong>do</strong> b<strong>em</strong> recebidas <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> rogavam mil bens a Sua Majestade, pois / ainda <strong>que</strong>acaso / tão presto os começava a defender.O caso como ali foram a<strong>que</strong>las naus <strong>se</strong> contará no capítulo <strong>se</strong>guinte.CAPÍTULO SEGUNDODa armada, <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u Sua Majestade ao estreito de Magalhães, <strong>em</strong> <strong>que</strong> foi porgeneral Diogo Flores de Valdez, e o sucessor <strong>que</strong> teveFrancisco Drake, corsário inglês, passou o ano de mil quinhentos <strong>se</strong>tenta e nove o estreito deMagalhães, e correu o mar <strong>do</strong> Sul; e d. Francisco de Tole<strong>do</strong>, viso-rei <strong>do</strong> Peru, man<strong>do</strong>u atrás dele aPedro Sarmento, e Antão Paulo Corso, piloto, os quais haven<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> o mesmo estreito <strong>do</strong> sul aonorte, chegaram a Sevilha, e daí a Badajós, onde el-rei católico então estava despedin<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u


74exército sobre Portugal, e ouvida sua relação, e o desassos<strong>se</strong>go, <strong>que</strong> no Peru havia posto o corsário;e certifican<strong>do</strong> muito Pedro Sarmento, <strong>que</strong> no estreito <strong>se</strong> podiam fazer fortes de ambas as partes, <strong>do</strong>squais facilmente com a artilharia <strong>se</strong> impedis<strong>se</strong> o passo aos navios, houve pareceres contrários,dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> o estreito era mais largo <strong>do</strong> <strong>que</strong> Sarmento o figurava, e <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> fos<strong>se</strong> tão estreito,como dizia, n<strong>em</strong> por isso <strong>se</strong> impediria o passo aos navios, pela muita corrente, e por<strong>que</strong> com umgolpe, ou <strong>do</strong>is de artilharia, não s<strong>em</strong>pre <strong>se</strong> mete uma nau no fun<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> meta passa outra:entre outros <strong>que</strong> tiveram esta opinião foi um o du<strong>que</strong> de Alba d. Fernan<strong>do</strong> Álvares de Tole<strong>do</strong>,Porém el-rei man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> <strong>se</strong> juntass<strong>em</strong> no rio de Sevilha 23 naus de alto bor<strong>do</strong>, com cincomil homens de mar e guerra, com petrechos para a fábrica destes fortes, capazes para 300 homensde guerra, e alguns povoa<strong>do</strong>res para facilitar mais sua con<strong>se</strong>rvação.Nomeou para general desta armada a Diogo Flores de Valdez, e por piloto-mor a AntãoPaulo Corso, e a Pedro Sarmento por governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s fortes, e povoações. Saiu de S. Lucas estaarmada a 25 de <strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro <strong>do</strong> ano de 1581, com tão mau t<strong>em</strong>po por a pressa <strong>que</strong> o du<strong>que</strong> de MedinaSi<strong>do</strong>nia dava, <strong>que</strong> depois de três dias arribou com tormenta a baía de Cadiz com perda de trêsnavios, haven<strong>do</strong>-<strong>se</strong> afoga<strong>do</strong> a maior parte da gente, e tão destroçada, <strong>que</strong> para reparar-<strong>se</strong> <strong>se</strong> detev<strong>em</strong>ais de 40 dias; tornou a sair com 17 navios, e chegou ao Brasil, ao porto da cidade de S. Sebastião<strong>do</strong> Rio de Janeiro, onde invernou <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s e meio; por<strong>que</strong> ainda <strong>que</strong> chegou a 25 de março, <strong>que</strong><strong>em</strong> Espanha é a primavera, nestas partes é o princípio <strong>do</strong> inverno, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> não pode navegar parao estreito; e por<strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po não estives<strong>se</strong> a gente ociosa, a ocupou <strong>em</strong> fazer estacas paratrincheiras, e taipais, e outros petrechos, e <strong>em</strong> lavrar madeira para duas casas, <strong>em</strong> <strong>que</strong> no estreitotivess<strong>em</strong> as munições recolhidas.Para o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> deu muita ajuda Salva<strong>do</strong>r Corrêa de Sá, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Rio de Janeiro, eparecen<strong>do</strong> <strong>que</strong> já era t<strong>em</strong>po para navegar saíram da barra <strong>do</strong> Rio a 2 <strong>do</strong> mês de outubro com 16navios, deixan<strong>do</strong> um por inútil, e toman<strong>do</strong> a derrota <strong>do</strong> estreito, <strong>que</strong> está 700 léguas deste porto,chegaram ao rio da Prata, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> levantou um t<strong>em</strong>poral de ventos tão fortes, <strong>que</strong> estiveram 22dias mar <strong>em</strong> través, s<strong>em</strong> poder pôr um palmo de vela; e haven<strong>do</strong>-<strong>se</strong> perdi<strong>do</strong> aqui <strong>em</strong> véspera deSanto André a nau <strong>do</strong> capitão Palomar, e 236 pessoas nela, s<strong>em</strong> podê-los r<strong>em</strong>ediar; aos 2 dedez<strong>em</strong>bro aplacou alguma coisa o mar, e o vento, e com acor<strong>do</strong> <strong>do</strong>s capitães e pilotos tornou DiogoFlores atrás, buscan<strong>do</strong> porto para reparar as naus, por<strong>que</strong> estavam cinco delas abertas da tormenta, eas mais <strong>em</strong> perigo de fazer o mesmo.Foram à ilha de Santa Catarina, 300 léguas dali, a qual ainda <strong>que</strong> despovoada / por <strong>se</strong>r deportugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> não sab<strong>em</strong> povoar, n<strong>em</strong> aproveitar-<strong>se</strong> das terras, <strong>que</strong> conquistam/, é terra de muitaágua, pesca<strong>do</strong>, caça, lenha, e outras coisas: onde a cabo de vinte e <strong>do</strong>is dias, <strong>que</strong> ali estiveram,deixou Diogo Flores de Valdez três naus, <strong>que</strong> não puderam navegar, a cargo <strong>do</strong> conta<strong>do</strong>r AndréEquinon, com ord<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornass<strong>em</strong> ao Rio de Janeiro, e deu outras três a d. Alonso de SoutoMaior, <strong>que</strong> ia por governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Chile, para levar a sua gente pelo rio da Prata ao porto de BuenosAires, <strong>do</strong>nde não há mais <strong>que</strong> vinte jornadas à China; e o dito Diogo Flores, com as mais, <strong>em</strong> dia dereis <strong>do</strong> ano de mil quinhentos oitenta e três, tornou a volta <strong>do</strong> estreito. As três naus, <strong>que</strong> ficaram nailha de Santa Catarina, saíram dali aos 14 de janeiro, e aos 24 <strong>do</strong> mesmo chegaram à barra de S.Vicente, e na mesma barra acharam os <strong>do</strong>is galeões ingle<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> estavam para tomar a terra <strong>se</strong> nãochegass<strong>em</strong> os castelhanos, <strong>que</strong> os lançaram dali às bombardas, como t<strong>em</strong>os dito.Diogo Flores de Valdez <strong>se</strong>guiu <strong>se</strong>u caminho, para o estreito, levan<strong>do</strong> a terra à vista, sobre amão direita, até dar<strong>em</strong> com a boca <strong>em</strong> 53º graus, e entran<strong>do</strong> com bom t<strong>em</strong>po como duas ou trêsléguas, <strong>se</strong> levantou de repente uma t<strong>em</strong>pestade, <strong>que</strong> os. tornou ao mar mais de 40 léguas.Andaram oito dias porfian<strong>do</strong> por tornar a <strong>em</strong>bocar o estreito; porém não poden<strong>do</strong> com ovento, não quis Diogo Flores tentar mais a fortuna, por ver as naus destruídas, e a gente enferma detanto trabalho. Tornou-<strong>se</strong> à costa <strong>do</strong> Brasil, ao porto de S. Vicente, e com as naus <strong>que</strong> trazia, e as


75duas, <strong>que</strong> ali achou, passou ao Rio de Janeiro, onde topou a d. Diogo de Alzeda, <strong>que</strong> por manda<strong>do</strong>de el-rei com quatro naus o ia socorrer com batimentos, e outras coisas, e parecen<strong>do</strong> a Diogo Flores<strong>que</strong> a armada estava desfeita, s<strong>em</strong> gente, e s<strong>em</strong> munições, determinou de tornar à Espanha com d.Diogo de Alzeda, e <strong>que</strong> o <strong>se</strong>u almirante Diogo da Ribeira, com cinco navios, <strong>que</strong> lhe deixou, ficas<strong>se</strong>ali para tornar o verão <strong>se</strong>guinte, a ver <strong>se</strong> teria mais ventura de <strong>em</strong>bocar o estreito, e povoá-lo, comoel-rei mandava.Navegan<strong>do</strong> Diogo Flores com os mais navios, <strong>que</strong> já não eram mais de <strong>se</strong>te, arribou comuma tormenta, <strong>que</strong> o fez tornar 200 léguas atrás, a esta baía de To<strong>do</strong>s os Santos, no princípio <strong>do</strong> mêsde junho de 1583, onde <strong>se</strong> deteve a concertá-los, para o <strong>que</strong> da fazenda de el-rei <strong>se</strong> lhe deu o <strong>que</strong> foinecessário; e <strong>se</strong> man<strong>do</strong>u fornecimento ao Rio de Janeiro para o almirante Diogo da Ribeira <strong>se</strong>guir asua viag<strong>em</strong> ao estreito, e o governa<strong>do</strong>r Manuel Teles Barreto o ban<strong>que</strong>teou, e a to<strong>do</strong>s os capitães egentis-homens um dia esplendidamente, e o bispo d. Antônio Barreiros outro; mas o <strong>que</strong> mais feznesta matéria foi um cidadão <strong>se</strong>nhor de engenho, chama<strong>do</strong> Sebastião de Faria., o qual lhe largou assuas casas com to<strong>do</strong> o <strong>se</strong>rviço, e o ban<strong>que</strong>teou, e aos <strong>se</strong>us familiares e apanigua<strong>do</strong>s oito me<strong>se</strong>s, <strong>que</strong>aqui estiveram, só por <strong>se</strong>rvir a el-rei, s<strong>em</strong> por isso receber mercê alguma, por<strong>que</strong> <strong>se</strong>rviços <strong>do</strong> Brasilraramente <strong>se</strong> pagam.CAPÍTULO TERCEIRODo socorro, <strong>que</strong> da Paraíba <strong>se</strong> man<strong>do</strong>u pedir ao governa<strong>do</strong>r Manuel Teles, e o as<strong>se</strong>nto<strong>que</strong> sobre isso <strong>se</strong> tomouNo capítulo vinte e cinco <strong>do</strong> <strong>livro</strong> terceiro tocamos como o governa<strong>do</strong>r Lourenço da Veigadesistira da conquista da Paraíba, por el-rei d. Henri<strong>que</strong>, <strong>que</strong> na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po governava, a encarregara Frutuoso Barbosa, <strong>que</strong> lha pediu.Havia este hom<strong>em</strong> i<strong>do</strong> de Pernambuco, e por haver na Paraíba carrega<strong>do</strong>s navios de pau poralgumas vezes, no t<strong>em</strong>po das pazes, <strong>que</strong> lhe os Potiguares fizeram, e por ter conhecimento da terra,e deles, o encarregou el-rei da conquista por contrato <strong>que</strong> fez <strong>em</strong> sua fazenda, dan<strong>do</strong>-lhe para isso asprovisões necessárias, naus, e mantimentos, e conquistan<strong>do</strong> a Paraíba, a capitania por 10 anoschegou Frutuoso Barbosa à barra de Pernambuco no ano de mil quinhentos <strong>se</strong>tenta e nove <strong>em</strong> umformoso galeão, e uma zabra, e outros navios, com muita gente portuguesa, assim solda<strong>do</strong>s comopovoa<strong>do</strong>res casa<strong>do</strong>s, com muitos resgates, munições, e petrechos necessários, assim a conquistacomo a povoação, <strong>que</strong> logo havia de fazer; para a qual trazia um vigário, a qu<strong>em</strong> el-rei davaquatrocentos cruza<strong>do</strong>s de ordena<strong>do</strong>, e religiosos da nossa Seráfica Ord<strong>em</strong> Franciscana, e de S.Bento, com toda a ord<strong>em</strong> e reca<strong>do</strong> necessário à <strong>em</strong>presa, <strong>que</strong> a fazenda de el-rei devia de custarmuito, e <strong>em</strong> <strong>se</strong>te ou oito dias, <strong>que</strong> esteve na barra surto s<strong>em</strong> des<strong>em</strong>barcar, n<strong>em</strong> tratar <strong>do</strong> negócio a<strong>que</strong> vinha, lhe deu um t<strong>em</strong>po com <strong>que</strong> arribou às Índias, onde lhe morreu a mulher, e tornan<strong>do</strong> daliao reino partiu dele no ano de mil quinhentos e oitenta e <strong>do</strong>is, por manda<strong>do</strong> de el-rei d. Filipe, etornan<strong>do</strong> a Pernambuco <strong>se</strong> concertou com os da vila de Olinda <strong>que</strong> o licencia<strong>do</strong> Simão RodriguesCar<strong>do</strong>so, capitão-mor e ouvi<strong>do</strong>r de Pernambuco, fos<strong>se</strong> por terra com gente, e ele com a <strong>que</strong> trazia, eoutra muita <strong>que</strong> da capitania por <strong>se</strong>rviço de el-rei <strong>se</strong> lhe ajuntou, por mar, o qual chegan<strong>do</strong> a boca dabarra da Paraíba com a armada <strong>que</strong> trouxe, e alguns caravelões, entrou pelo rio acima, por ter avisode <strong>se</strong>te ou oito naus francesas, <strong>que</strong> lá estavam surtas b<strong>em</strong> descuidadas, e varadas <strong>em</strong> terra, e a maiorparte da gente nela, e os índios meti<strong>do</strong>s pelo <strong>se</strong>rtão a fazer pau para carregá-las, e dan<strong>do</strong> de súbitosobre elas <strong>que</strong>imou cinco, esbulhan<strong>do</strong>-as <strong>primeiro</strong>, <strong>que</strong> foi um honra<strong>do</strong> feito, e as outras fugiramcom qua<strong>se</strong> toda a gente.


76Descuida<strong>do</strong>s os nossos com esta vitória alcançada com tão pouco custo, e nenhum sangue,sain<strong>do</strong> alguns deles <strong>em</strong> terra com um filho de Frutuoso Barbosa, rebentou o gentio de uma ilha, <strong>em</strong><strong>que</strong> estava, e dan<strong>do</strong> neles os foram matan<strong>do</strong> até os batéis, aonde <strong>se</strong> iam recolhen<strong>do</strong>, s<strong>em</strong> das naus ossocorrer<strong>em</strong>, <strong>que</strong> foi coisa lastimosa ver matar mais de quarenta portugue<strong>se</strong>s, <strong>em</strong> <strong>que</strong> entrou o filho<strong>do</strong> capitão, e com a mesma fúria houveram os inimigos de tomar a zabra <strong>em</strong> <strong>que</strong> ia Gregório Lopesde Abreu por capitão, <strong>que</strong> o dia de antes entrara diante, e o fizera muito b<strong>em</strong>, por ficar na ponta dailha qua<strong>se</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>co, e a <strong>se</strong> não defender tão esforçadamente, s<strong>em</strong>pre os índios o tomaram, eacabaram to<strong>do</strong>s.O capitão Frutuoso Barbosa ficou tão corta<strong>do</strong>, e receoso deste sucesso, <strong>que</strong> <strong>se</strong> levantou comtoda a armada, e foi surgir na boca da barra, por <strong>se</strong> não ter por <strong>se</strong>guro dentro, esperan<strong>do</strong> a gente <strong>que</strong>ia por terra, e estan<strong>do</strong> para dar à vela por ver <strong>que</strong> tardava, chegou o licencia<strong>do</strong> Simão Rodriguescom duzentos homens de pé, e de cavalo, e muito gentio, o qual no caminho da várzea da Paraíbateve um bom recontro com os Potiguares, <strong>que</strong> avisa<strong>do</strong>s da sua vinda o foram esperar, e meteram <strong>em</strong>revolta e pressa, <strong>se</strong> o nosso gentio ajuda<strong>do</strong> da gente branca lhe não tivera a<strong>que</strong>le <strong>primeiro</strong> encontro;por<strong>que</strong> os Potiguares anima<strong>do</strong>s da vitória passada <strong>se</strong> metiam tanto, <strong>que</strong> vinham a braços com osnossos, mas enfim ficaram venci<strong>do</strong>s, e desbarata<strong>do</strong>s, e assim chegaram os nossos à barra <strong>do</strong> rio dabanda <strong>do</strong> norte com esta vitória, com <strong>que</strong> consolaram os da armada, e anima<strong>do</strong>s uns com outrostrataram, <strong>em</strong> oito dias, <strong>que</strong> ali estiveram, os meios de <strong>se</strong> fortificar<strong>em</strong> da banda <strong>do</strong> norte, por<strong>que</strong>pareceu impossível da banda <strong>do</strong> sul, no Cabedelo, por <strong>se</strong>r mau o sítio, e não ter água, o <strong>que</strong> nãofizeram de uma parte n<strong>em</strong> de outra, antes fugiram à maior pressa, por ver<strong>em</strong> da banda dalém muitogentio, pelo <strong>que</strong> mandan<strong>do</strong> dali o galeão com aviso à Sua Majestade <strong>do</strong> <strong>que</strong> passava, de<strong>se</strong>spera<strong>do</strong> jáFrutuoso Barbosa de tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> veio lograr um novo casamento, <strong>que</strong> à sombra da governação decaminho <strong>em</strong> Pernambuco havia feito para restauro da mulher e filho, <strong>que</strong> havia perdi<strong>do</strong>; e assimficou tu<strong>do</strong> como dantes, os inimigos mais soberbos, e as capitanias vizinhas a risco de <strong>se</strong>despovoar<strong>em</strong>, só os detinham as esperanças, <strong>que</strong> tinham de <strong>se</strong>r<strong>em</strong> socorri<strong>do</strong>s da Bahia, onde haviammanda<strong>do</strong> por procura<strong>do</strong>r um Antônio Raposo ao governa<strong>do</strong>r Manuel Teles Barreto com grandesprotestos de encampação; o qual fez sobre isto junta, e con<strong>se</strong>lho <strong>em</strong> sua casa, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> acharamcom ele o bispo d. Antônio Barreiros, o general da Armada Castelhana Diogo Flores Valdez, oouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão, e os mais <strong>que</strong> na matéria podiam ter voto, e <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntou <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> ogeneral Diogo Flores, e <strong>em</strong> sua companhia o licencia<strong>do</strong> Martim Leitão, com to<strong>do</strong>s os poderesbastantes para efeito da povoação da Paraíba, e por prove<strong>do</strong>r da Fazenda, e mantimentos da armada,Martim Carvalho, cidadão da Bahia, os quais to<strong>do</strong>s aceitaram com muito ânimo e gosto,particularmente Diogo Flores, por ver, já <strong>que</strong> o jogo lhe sucedeu tão mal no estreito, <strong>se</strong> ao menospodia levar este vinte de caminho.CAPÍTULO QUARTODe como o licencia<strong>do</strong> Martim Leitão, ouvi<strong>do</strong>r-geral, foi por manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r com o generalDiogo Flores de Valdez a conquista da Paraíba, e <strong>se</strong> fez nela a fortaleza da barraToma<strong>do</strong> o as<strong>se</strong>nto <strong>que</strong> fica dito no capítulo precedente <strong>se</strong> aprestaram, e saíram da Bahia a<strong>primeiro</strong> <strong>do</strong> mês de março <strong>do</strong> ano de 1584 com uma armada de nove naus, <strong>se</strong>te castelhanas, e duasportuguesas, e chegaram a Pernambuco a vinte <strong>do</strong> mesmo, onde logo des<strong>em</strong>barcou o ouvi<strong>do</strong>r-geral,fican<strong>do</strong> de fora toda a armada, e fez ajuntar <strong>em</strong> Câmera d. Filipe de Moura, capitão da capitania porJorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>se</strong>nhor dela, com os mais vogais, <strong>em</strong> <strong>que</strong> também <strong>se</strong> achou d. Antônio deBarreiros, bispo deste esta<strong>do</strong>, <strong>que</strong> havia i<strong>do</strong> na armada a visitar as igrejas de Pernambuco, eItamaracá, e ficou as<strong>se</strong>nta<strong>do</strong> <strong>se</strong> aprestas<strong>se</strong> tu<strong>do</strong> para <strong>do</strong>mingo de Páscoa partir<strong>em</strong> d. Filipe de Moura


77por cabeça, com a gente <strong>que</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral havia de fazer, como logo começou rogan<strong>do</strong> um, e um,compon<strong>do</strong>-lhes suas coisas, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> aviaram muitos <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res de Pernambuco, e <strong>se</strong>ajuntaram na vila de Iguaraçu no dia sinala<strong>do</strong>; haven<strong>do</strong> já d. Filipe juntos os da ilha de Itamaracá noengenho de <strong>se</strong>u sogro Filipe Cavalcante, <strong>em</strong> Araripe, até onde Martim Leitão acompanhou o arraial,e depois de parti<strong>do</strong>s dali ajuntou mais alguns 40 homens, <strong>que</strong> entregues a um Álvaro Bastar<strong>do</strong>,man<strong>do</strong>u a d. Filipe, e o alcançaram junto ao rio Paraíba, onde tiveram to<strong>do</strong>s um recontro com ogentio; mas enfim passaram o rio acima para a banda <strong>do</strong> norte, por onde Simão Rodrigues Car<strong>do</strong>soo havia outra vez passa<strong>do</strong>, e foram d<strong>em</strong>andar a barra, onde acharam a Diogo Flores, <strong>que</strong> já tinha<strong>que</strong>imadas três naus francesas, <strong>que</strong> ali achou surtas, e varadas <strong>em</strong> terra, <strong>do</strong>nde in<strong>do</strong> para subir <strong>em</strong>uma lhe deram os inimigos de dentro <strong>do</strong> mato uma flechada no peito, <strong>que</strong> lhe não fez nojo, pelasboas armas <strong>que</strong> levava, e por<strong>que</strong> o principal fim, <strong>que</strong> <strong>se</strong> pretendia, era povoar-<strong>se</strong> a terra, chega<strong>do</strong>, ealoja<strong>do</strong> o arraial, saiu Diogo Flores, e toma<strong>do</strong> con<strong>se</strong>lho entre os capitães, as<strong>se</strong>ntaram fazer-<strong>se</strong> umforte <strong>primeiro</strong>, para <strong>que</strong> à sua sombra pudess<strong>em</strong> povoar.Para o qual nomeou o general por alcaide o capitão da sua infantaria Francisco Castejon com110 arcabuzeiros castelhanos, e 50 portugue<strong>se</strong>s, para os quais e para povoação, <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia defazer, r<strong>em</strong>eteu ao exército português eleges<strong>se</strong> cabeça, e por a maior parte <strong>se</strong>r de viane<strong>se</strong>s, <strong>se</strong> elegeuFrutuoso Barbosa, <strong>que</strong> era vianês, ten<strong>do</strong>-<strong>se</strong> também respeito à provisão <strong>que</strong> apre<strong>se</strong>ntou de el-rei d.Henri<strong>que</strong>, <strong>em</strong> <strong>que</strong> o fazia capitão da Paraíba <strong>se</strong> a conquistas<strong>se</strong>, posto <strong>que</strong>, como era condicional,faltan<strong>do</strong> a condição parece <strong>que</strong> já não obrigava, e este era o parecer <strong>do</strong> general.O forte <strong>se</strong> situou logo uma légua da barra da parte <strong>do</strong> norte, defronte da ponta da ilha, mas,por não fugir<strong>em</strong> os solda<strong>do</strong>s, com o largo rio, <strong>que</strong> fica <strong>em</strong> meio, <strong>que</strong> por <strong>se</strong>r bom sítio, <strong>que</strong> é baixo,e de ruim água, <strong>do</strong> qual ficou por alcaide o capitão Francisco Castejon, e dele deu homenag<strong>em</strong> aogeneral Diogo Flores, e <strong>se</strong> lhe pôs o nome de S. Filipe e Santiago; no dia <strong>do</strong>s quais santos <strong>se</strong> fez àvela o general caminho de Espanha, onde chegou a salvamento.O capitão Simão Falcão, enquanto os mais assistiam na obra <strong>do</strong> forte, espiada uma aldeia<strong>do</strong>s inimigos a salteou uma madrugada, matan<strong>do</strong> alguma gente, e cativan<strong>do</strong> quatro, com cuja línguao nosso exército, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> já ali não era de efeito, <strong>se</strong> partiu a via <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão <strong>em</strong> busca <strong>do</strong>s inimigosaté uma campina, <strong>que</strong> <strong>se</strong> chama das Ostras, três léguas <strong>do</strong> forte, onde <strong>se</strong> alojou, e por <strong>se</strong>r a festa <strong>do</strong>Espírito Santo, e a gente <strong>se</strong>r dada a folgar, <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram a festejar com muito descui<strong>do</strong> o dia, eoitavas, e dizia d. Filipe por descargo <strong>que</strong> esperava a <strong>se</strong>u sogro Filipe Cavalcante, <strong>que</strong> havia fica<strong>do</strong>no forte.Uma tarde ouvin<strong>do</strong> uma trombeta, e grande rumor, foram dez de cavalo, e alguns quarentade pé com muitos índios à ord<strong>em</strong> de um Antônio Leitão, com muita desord<strong>em</strong>, a descobrir campo, ederam <strong>em</strong> uma cilada, <strong>que</strong> os começou a sacudir até chegar<strong>em</strong> à vista <strong>do</strong> arraial, s<strong>em</strong> haver acor<strong>do</strong>para lhes acudir<strong>em</strong>, antes <strong>se</strong> pôs tu<strong>do</strong> <strong>em</strong> tão grande confusão, <strong>que</strong> vinda a noite <strong>se</strong> deitaram a umalagoa por onde haviam tornar ao forte, e passan<strong>do</strong> uns por cima <strong>do</strong>s outros, voan<strong>do</strong> com asas <strong>do</strong>me<strong>do</strong>, <strong>que</strong> levavam, foram bater às portas <strong>do</strong> forte, <strong>que</strong> o alcaide, enfada<strong>do</strong> de os ver, lhes não quisabrir, deixan<strong>do</strong>-os estar à chuva toda a noite, <strong>que</strong> foi leve castigo para o mereci<strong>do</strong>.Vin<strong>do</strong> o dia lhes persuadiu <strong>que</strong> tornass<strong>em</strong> a buscar os inimigos com mais cinqüentaarcabuzeiros, <strong>que</strong> lhes dava <strong>do</strong>s <strong>do</strong> presídio, e tais estavam <strong>que</strong> n<strong>em</strong> com isto qui<strong>se</strong>ram ir, <strong>se</strong>nãovoltar para Pernambuco, e assim <strong>se</strong> vieram, passan<strong>do</strong> o rio defronte <strong>do</strong> forte <strong>em</strong> barcos com b<strong>em</strong>trabalho por <strong>se</strong>r inverno, <strong>que</strong> os tratou mal to<strong>do</strong> o caminho, onde lhes morreram muitos cavalos, eescravos à míngua.CAPÍTULO QUINTODos socorros, <strong>que</strong> por indústria <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>r-geral <strong>se</strong> mandaram a Paraíba


78Chega<strong>do</strong>s desta maneira a Pernambuco, <strong>em</strong> o mês de junho, começaram logo osre<strong>que</strong>rimentos <strong>do</strong> alcaide <strong>do</strong> forte, e Frutuoso Barbosa por ficar<strong>em</strong> faltos de mantimentos; e osinimigos por ficar<strong>em</strong> vitoriosos os molestaram tanto, <strong>que</strong> só os detinha a não levar<strong>em</strong> a fortalezanas unhas a fúria da artilharia, <strong>que</strong> achan<strong>do</strong>-os <strong>em</strong> descoberto os despedaçava, a cuja sombra oalcaide <strong>em</strong> algumas escaramuças, <strong>que</strong> com eles teve, lhes mostrou o valor da sua pessoa, e <strong>do</strong><strong>se</strong>spanhóis, e portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> o <strong>se</strong>guiam, apesar de <strong>se</strong>u capitão Frutuoso Barbosa, <strong>que</strong> não tinhapaciência com estas escaramuças, e com re<strong>que</strong>rimentos as estorvava quanto podia; e assimencontra<strong>do</strong>s ele, e o alcaide nos humores, tu<strong>do</strong> eram brigas, e ruins palavras, fazen<strong>do</strong> papeladas um<strong>do</strong> outro, <strong>que</strong> mandavam ao ouvi<strong>do</strong>r-geral, com re<strong>que</strong>rimentos <strong>do</strong> socorro <strong>do</strong>s mantimentos, <strong>que</strong>como conheci<strong>do</strong> por mais zeloso <strong>do</strong> <strong>se</strong>rviço de el-rei até isto batia nele, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> obrigação <strong>do</strong>prove<strong>do</strong>r Martim Carvalho, <strong>que</strong> pelo contrário <strong>se</strong> mostrava mui r<strong>em</strong>isso, e por esta causa <strong>se</strong>começaram entre ambos grandes desavenças; crescen<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>do</strong> forte os re<strong>que</strong>rimentos, por<strong>que</strong><strong>se</strong> viam nele tão aperta<strong>do</strong>s da guerra, e fome, <strong>que</strong> até os cavalos tinham comi<strong>do</strong>.Man<strong>do</strong>u-lhes Martim Leitão por mar 24 homens a cargo de um Nicolau Nunes com algunsmantimentos, <strong>que</strong> deu o prove<strong>do</strong>r, mas foram tão parcos, e cresciam tanto os rebates <strong>do</strong>s inimigosPotiguares, <strong>que</strong> o alcaide <strong>do</strong> forte <strong>se</strong> veio no mês de <strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro a Pernambuco a pedir socorro; ondeachou a Pedro Sarmento, <strong>que</strong> o general havia deixa<strong>do</strong> com o almirante Diogo da Ribeira no Rio deJaneiro para ir povoar o estreito de Magalhães, e governar a povoação, <strong>que</strong> fizes<strong>se</strong>, <strong>do</strong>nde já vinhadestroça<strong>do</strong>, e pedia também mantimento, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhe deu para poder passar à Espanha; mas o alcaideCastejon havia-<strong>se</strong> tão devagar, <strong>que</strong> andava impaciente; pelo <strong>que</strong> achan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> um dia / depois deoutros muitos / <strong>em</strong> casa de Martim Carvalho com os juízes e oficiais da Câmera, <strong>em</strong> pre<strong>se</strong>nça <strong>do</strong>bispo, vieram a muito ruins palavras, sobre as quais alguma gente da casa arrancou com os solda<strong>do</strong>s<strong>do</strong> alcaide <strong>em</strong> cima onde to<strong>do</strong>s estavam, e baralha<strong>do</strong>s assim saíram à rua com grande briga, a <strong>que</strong>acudiu muita gente com o ouvi<strong>do</strong>r-geral, <strong>que</strong> os apaziguou como pôde; por isto <strong>se</strong> tornou oalmirante para a Paraíba, no mês de outubro, mal-provi<strong>do</strong>, e com claras mostras de o <strong>se</strong>r cada vezmenos pelo ódio <strong>em</strong> <strong>que</strong> com eles ficava o prove<strong>do</strong>r.Mas foi de muito efeito a sua tornada, por<strong>que</strong> logo no nov<strong>em</strong>bro <strong>se</strong>guinte entraram duasnaus francesas na Paraíba, e reconhecen<strong>do</strong> o forte, e uma nau grande portuguesa com <strong>do</strong>is patachos,<strong>que</strong> lhe Diogo Flores tinha deixa<strong>do</strong>, <strong>se</strong> saíram, e foram surgir três léguas daí na boca da baía daTraição, e começan<strong>do</strong> trato com os Potiguares, vieram de lá por terra correr o forte, trazen<strong>do</strong> algunsberços, com <strong>que</strong> grand<strong>em</strong>ente o apertavam, fazen<strong>do</strong> grandes cavas, e bar<strong>do</strong>s de terra, e areia, pelosnão pescar a artilharia; com os quais, e outros ardis, como práticos nas nossas guerras, pu<strong>se</strong>ram oalcaide <strong>em</strong> termos de de<strong>se</strong>sperar de poder defender-<strong>se</strong>, e logo disso avisou ao ouvi<strong>do</strong>r-geral, comgrandes re<strong>que</strong>rimentos, assim <strong>se</strong>us como de Frutuoso Barbosa.O ouvi<strong>do</strong>r no <strong>primeiro</strong> dia <strong>que</strong> lhos deram <strong>se</strong> foi <strong>do</strong>rmir ao Recife, onde aprestou um naviode <strong>se</strong>tenta toneladas à sua custa com muitos homens brancos, e <strong>se</strong>tenta índios, e por capitão umGaspar Dias de Moraes, solda<strong>do</strong> antigo de Flandes, <strong>que</strong> por <strong>se</strong>u rogo aceitou sê-lo, e <strong>em</strong> <strong>do</strong>is dias,andan<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma rede por andar <strong>do</strong>ente, os deitou pela barra fora; este navio, e a galé de PedroLopes Lobo, capitão de Itamaracá, <strong>que</strong> também o ouvi<strong>do</strong>r forneceu, <strong>em</strong> <strong>que</strong> o mesmo Pedro Lopesfoi por capitão com cinqüenta homens, e alguns índios, chegaram a Paraíba, onde foram recebi<strong>do</strong>s,e estima<strong>do</strong>s como a própria vida.Os france<strong>se</strong>s ven<strong>do</strong> o socorro <strong>se</strong> recolheram às suas naus, <strong>que</strong> haviam deixa<strong>do</strong> na baía daTraição, e consultan<strong>do</strong> o caso o almirante com os capitães <strong>do</strong> socorro, as<strong>se</strong>ntaram <strong>que</strong> ficas<strong>se</strong> PedroLopes capitão da galé no forte, por respeito <strong>do</strong> muito gentio, <strong>que</strong> diziam passar de dez mil, os <strong>que</strong> otinham cerca<strong>do</strong> com suas cavas, e trincheiras, e <strong>que</strong> o alcaide na sua galé, e nau, <strong>que</strong> lá tinha, e a <strong>do</strong>socorro, foss<strong>em</strong> buscar os france<strong>se</strong>s, como logo foram, e toman<strong>do</strong>-lhes o mar os fizeram varar <strong>em</strong>


79terra com as naus, e lhas <strong>que</strong>imaram, e mataram alguns, <strong>que</strong> foi honra<strong>do</strong> feito por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> as nausgrandes, e estar<strong>em</strong> avisa<strong>do</strong>s; mas a nau <strong>do</strong> forte, por <strong>se</strong>r muito grande, e a costa ali ir já muitovoltan<strong>do</strong> para as Índias, arribou a elas, e nela foi a maior parte da artilharia, <strong>que</strong> haviam toma<strong>do</strong> dasfrancesas. O navio, e galé voltaram, e chegan<strong>do</strong> ao forte des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> de súbito, e com a gente dedentro, deram nos inimigos com tão grande ímpeto, <strong>que</strong> lhes ganharam as suas estâncias, matan<strong>do</strong>muitos, com o <strong>que</strong> <strong>se</strong> afastaram b<strong>em</strong> longe, e os nossos cobraram a água, <strong>que</strong> lhes tinham tomada, eassim fican<strong>do</strong> os <strong>do</strong> forte mais largos, <strong>que</strong> nunca; e to<strong>do</strong>s muito contentes, com grandes louvores aoouvi<strong>do</strong>r-geral <strong>se</strong> tornaram os de Pernambuco, e Itamaracá até lhe dar razão de tu<strong>do</strong>, e receber osparabéns da jornada, <strong>que</strong> fui de muito efeito, assim para o de<strong>se</strong>ngano <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> nabaía da Traição haviam de ter colheita, como <strong>do</strong>s Potiguares, <strong>que</strong> já com eles por nenhuma partepoderiam ter comércio.CAPÍTULO SEXTODe como o ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão foi a Paraíba a primeira vez, e da ord<strong>em</strong> da jornada, e<strong>primeiro</strong> rompimento, e cerca tomadaCom esta mágoa, e de<strong>se</strong>jo de vingança, <strong>que</strong> ficou <strong>do</strong>s Potiguares, no fim de janeiro de milquinhentos oitenta e cinco <strong>se</strong> ajuntaram mais <strong>que</strong> nunca, e fizeram três cercas mui fortes ao longo<strong>do</strong> forte a tiro de pedreiro, de troncos de palmeiras, <strong>que</strong> por muito grossos os defendiam daartilharia, e todas as noites as iam chegan<strong>do</strong>, e ganhan<strong>do</strong> terra, <strong>do</strong> <strong>que</strong> logo o almirante avisou aoouvi<strong>do</strong>r-geral, fican<strong>do</strong> muito receoso <strong>que</strong> por a<strong>que</strong>la via com as próprias cercas os viriamabordan<strong>do</strong>, até <strong>se</strong> abarbar<strong>em</strong>, e igualar<strong>em</strong> com o forte, s<strong>em</strong> <strong>se</strong> poder<strong>em</strong> valer da artilharia, n<strong>em</strong> dasmãos, por no forte haver muitas <strong>do</strong>enças por respeito <strong>do</strong> mau sítio, fomes, e ruim água, de qu<strong>em</strong>uita gente lhe era morta, e assim estava com muito perigo.Aos 8 de fevereiro <strong>do</strong>brou com mais força os re<strong>que</strong>rimentos, e encampações de logodespejar<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s; como também por avisos <strong>se</strong> soube ter<strong>em</strong> já para isto o melhor <strong>em</strong>barca<strong>do</strong> <strong>em</strong>uma nau, <strong>que</strong> lá tinham; pela qual nova todas as capitanias <strong>se</strong> meteram <strong>em</strong> grandes revoltas, e muitomais com <strong>se</strong> saber esta determinação, e por ter chega<strong>do</strong> de socorro aos Potiguares o famoso entre ogentio Braço de Peixe, ou por sua língua Pirágiba, de <strong>que</strong> tratamos <strong>em</strong> o capítulo vigésimo <strong>do</strong> <strong>livro</strong>próximo passa<strong>do</strong>.O ouvi<strong>do</strong>r-geral logo <strong>em</strong> lhe dan<strong>do</strong> os re<strong>que</strong>rimentos <strong>do</strong> alcaide os man<strong>do</strong>u ao capitão d.Filipe, <strong>que</strong> estava já alia<strong>do</strong> com Martim Carvalho, ao qual <strong>se</strong> levaram também outros re<strong>que</strong>rimentossobre mantimentos, vin<strong>do</strong> a isso o tenente <strong>do</strong> forte, a cuja instância to<strong>do</strong>s concordaram, ejuntamente o bispo, e oficiais da Câmera re<strong>que</strong>rer<strong>em</strong> ao ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão fos<strong>se</strong> <strong>em</strong>pessoa a esta guerra, de <strong>que</strong> fizeram autos, o <strong>que</strong> ele, vista a importância <strong>do</strong> caso, aceitou <strong>em</strong> 14 defevereiro com determinação de partir dentro dele no <strong>que</strong> <strong>se</strong> começou com incrível presteza <strong>em</strong> todaa parte, e era coisa notável ver a vontade com <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s <strong>se</strong> ofereciam a ir com ele; mas contu<strong>do</strong>, anão haver no porto passante de trinta navios com muitos mantimentos, <strong>que</strong> nunca tantos houve, n<strong>em</strong>fora possível aviar<strong>em</strong>-<strong>se</strong> com tanta brevidade, suprin<strong>do</strong> também a grande diligência de MartimLeitão, escreven<strong>do</strong> particularmente aos nobres convidan<strong>do</strong>-os com razões eficazes para a jornada, eavian<strong>do</strong> a muitos; por<strong>que</strong> no Brasil tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> compra fia<strong>do</strong>, e estes nestas coisas <strong>que</strong>r<strong>em</strong>superabundâncias, a <strong>que</strong> os merca<strong>do</strong>res já não acudiam, e era necessário fazê-los prover; e aviaruns, e outros era infinito; fez também duas capitanias para sua guarda, <strong>que</strong> depois man<strong>do</strong>u navanguarda, pela confiança <strong>que</strong> neles tinha, por <strong>se</strong>r toda gente solta, e muitos mamalucos, e filhos daterra, por<strong>que</strong> estes nisto são de muito efeito, e a estas duas companhias deu s<strong>em</strong>pre à sua custa decomer, e tu<strong>do</strong> o mais necessário, e prover de armas, ainda <strong>que</strong> nos re<strong>que</strong>rimentos, <strong>que</strong> lhe fizeram


80para ele haver de ir, dis<strong>se</strong> o prove<strong>do</strong>r Martim Carvalho <strong>que</strong> fos<strong>se</strong>, <strong>que</strong> ele o proveria à custa dafazenda de Sua Majestade.Além <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is capitães da guarda, <strong>que</strong> um era Gaspar Dias de Moraes, <strong>que</strong> de socorro anteshavia i<strong>do</strong> a Paraíba, e outro mister Hipólito, antigo, e mui prático capitão da terra, <strong>se</strong> elegeram maisde novo por capitães Ambrósio Fernandes Brandão, e Fernão Soares, <strong>que</strong> <strong>se</strong> chamavam capitães d<strong>em</strong>erca<strong>do</strong>res; foram mais os capitães das companhias da ordenança da terra, Simão Falcão, JorgeCamelo, João Paes, capitão <strong>do</strong> cabo de Santo Agostinho, muito rico, <strong>que</strong> o fez nesta jornada porcima de to<strong>do</strong>s, <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> levan<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre a retaguarda, e João Velho Rego, capitão de Iguaraçu, eto<strong>do</strong>s da ilha de Itamaracá, com <strong>se</strong>u capitão Pedro Lopes, e por<strong>que</strong> havia muita, e boa gente decavalo, <strong>que</strong> foram cento e noventa e cinco, ordenou três guiões de trinta cavalos cada um <strong>do</strong>smelhores para acudir<strong>em</strong> ao cumpris<strong>se</strong> (sic), de <strong>que</strong> eram capitães Cristóvão Paes Daltera, AntônioCavalcante, filho de Filipe Cavalcante, e Baltazar de Barros.Ia mais um filho <strong>do</strong> capitão Antônio de Carvalho com a sua bandeira por ele ficar <strong>do</strong>ente,<strong>que</strong> <strong>em</strong> todas as jornadas o fez muito b<strong>em</strong>; e era a <strong>se</strong>gunda pessoa deste exército, sobre qu<strong>em</strong>carregava o peso dele, Francisco Barreto, cunha<strong>do</strong> <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão, a <strong>que</strong>chamavam mestre de campo, e ele o pudera <strong>se</strong>r de outro de muitos milhares de solda<strong>do</strong>s, por <strong>se</strong>uesforço e destreza.Com tu<strong>do</strong> este exército, <strong>que</strong> foi a mais formosa coisa, <strong>que</strong> nunca Pernambuco viu, n<strong>em</strong> <strong>se</strong>i<strong>se</strong> verá, foi o general Martim Leitão / <strong>que</strong> assim lhe chamar<strong>em</strong>os nesta jornada / <strong>do</strong>rmir no campode Iguaraçu, no meio <strong>do</strong> qual man<strong>do</strong>u armar sua tenda de campo, com outras duas pegadas, umapara <strong>do</strong>is padres da Companhia de Jesus, <strong>que</strong> com ele iam; e outra de sua despensa, onde <strong>se</strong>agasalhava também a gente <strong>do</strong> <strong>se</strong>u <strong>se</strong>rviço. Aqui man<strong>do</strong>u deitar grandes ban<strong>do</strong>s, pon<strong>do</strong> gravespenas contra to<strong>do</strong>s a<strong>que</strong>les, <strong>que</strong> brigass<strong>em</strong>, ou arrancass<strong>em</strong>, encomendan<strong>do</strong> mui particularmente<strong>que</strong> houves<strong>se</strong> entre to<strong>do</strong>s muita amizade, e conformidade, e outras boas ordens necessárias, <strong>que</strong> <strong>se</strong><strong>se</strong> cá costumaram no Brasil não houvera tantas perdas, e desconcertos, como sab<strong>em</strong>os. Ali estevetrês dias esperan<strong>do</strong> <strong>se</strong> ajuntass<strong>em</strong> alguns, <strong>que</strong> faltavam; onde fez apo<strong>se</strong>nta<strong>do</strong>r, e mais oficiais decampo.Ao quarto dia / <strong>que</strong> foi o <strong>primeiro</strong> de março / da<strong>que</strong>le alojamento foram <strong>do</strong>rmir além <strong>do</strong> rioTapor<strong>em</strong>a, onde fez re<strong>se</strong>nha, e <strong>se</strong> achou com quinhentos e tantos homens brancos, e o general deuregimento a to<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>que</strong> haviam de fazer, repartiu as campanhas, e ordenou <strong>que</strong> um <strong>do</strong>s guiões decavalos aos dias por evitar competências fos<strong>se</strong> na vanguarda, outro na retaguarda, e o terceiro nabatalha, onde ele ia; e o capitão a <strong>que</strong> no <strong>se</strong>u dia tocava a retaguarda, tives<strong>se</strong> obrigação de uma horaant<strong>em</strong>anhã com alguns índios correr<strong>em</strong>, e descobrir<strong>em</strong> o campo, e assim como toda a ord<strong>em</strong>possível, e com ir<strong>em</strong> de contínuo alguns homens de confiança com mamalucos e índios pordescobri<strong>do</strong>res diante, e pelas ilhargas <strong>do</strong> exército meti<strong>do</strong>s pelo mato, e gasta<strong>do</strong>res abrin<strong>do</strong> ocaminho, foram por suas jornadas <strong>em</strong> cinco dias a grande campina da Paraíba, onde pela l<strong>em</strong>brançade <strong>que</strong> alguns ali <strong>em</strong> outras jornadas tinham visto, ia a gente tão apartada, <strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> o caminho dacampina largo, e raso, não andavam por mais reca<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong> passavam a vanguarda <strong>em</strong> <strong>que</strong>na<strong>que</strong>le dia, por <strong>se</strong>r de mais importância, ia Francisco Barreto; mas não sofren<strong>do</strong> tanto vagar tomouo general um galope, e foi ver o <strong>que</strong> era, e achan<strong>do</strong> <strong>que</strong> haviam já da<strong>do</strong> <strong>em</strong> mato, e <strong>se</strong> detinham osgasta<strong>do</strong>res <strong>em</strong> abrir caminho com as foices, os fez abreviar, e marchar a vanguarda com presteza ereca<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong> ele ali até <strong>se</strong> meter <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar.Marchan<strong>do</strong> pois a vanguarda, e o mestre de campo Francisco Barreto com ela, já qua<strong>se</strong> solposto deu <strong>em</strong> uma cerca mui grande de gentio, pegada <strong>do</strong> rio Tibiri, <strong>que</strong> prometia ter dentro mais detrês mil almas, o <strong>que</strong> não obstante, n<strong>em</strong> a escuridão da noite, <strong>que</strong> sobrevinha, n<strong>em</strong> <strong>se</strong>r a cerca muiforte, e com uma rede de madeira por fora, como uns leões r<strong>em</strong>eteram, e entraram nela, matan<strong>do</strong>muitos <strong>do</strong>s inimigos, e pon<strong>do</strong> os mais <strong>em</strong> fugida, fican<strong>do</strong> <strong>do</strong>s nossos muito pouco feri<strong>do</strong>s, por<strong>que</strong>


81foi tal a pressa e açodamento, <strong>que</strong> lhes não deram vagar, n<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po para despedir<strong>em</strong> muitasflechas, o <strong>que</strong> <strong>se</strong>ntin<strong>do</strong> o corpo <strong>do</strong> exército, e retaguarda, rebentavam to<strong>do</strong>s por chegar com osdianteiros à briga, e por mais pressa <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram, quan<strong>do</strong> já chegaram, era acabada.Entran<strong>do</strong> pois to<strong>do</strong> o exército dentro na cerca, <strong>que</strong> Francisco Barreto lhe tinha ran<strong>que</strong>adacom a gente da vanguarda, e aloja<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s nela, repousaram ali a<strong>que</strong>la noite, onde acharam farinhafeita, e armas, e pólvora, <strong>que</strong> tinham para ir cercar o forte, conforme os cativos dis<strong>se</strong>ram.CAPÍTULO SÉTIMODe como <strong>se</strong> tentaram as pazes com o Braço de Peixe, e por as não <strong>que</strong>rer <strong>se</strong> lhe deu guerraAo outro dia pela manhã ce<strong>do</strong> logo os índios <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram às pulhas / como é <strong>se</strong>u costume /<strong>em</strong> um teso alto defronte da nossa cerca, além de um grande alagadiço, <strong>que</strong> por a<strong>que</strong>la parte ficava,<strong>do</strong>nde foram conheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s nossos <strong>se</strong>r gente <strong>do</strong> Braço de Peixe, <strong>que</strong> não eram Potiguares, <strong>se</strong>nãoTabajaras <strong>se</strong>us contrários; mas por <strong>se</strong> t<strong>em</strong>er<strong>em</strong> <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> vingass<strong>em</strong> a morte de cento etantos, <strong>que</strong> com Gaspar Dias de Ataíde, e Francisco de Caldas / ainda <strong>que</strong> com razão / haviammortos / como diss<strong>em</strong>os no capítulo vigésimo <strong>do</strong> <strong>livro</strong> precedente/, <strong>se</strong> vieram a meter com osPotiguares, e assim por <strong>se</strong> reconciliar<strong>em</strong> com eles, como por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> mais industriosos, e valentes,nos faziam muito dano; o <strong>que</strong> entendi<strong>do</strong> pelo general Martim Leitão, e consideran<strong>do</strong> de quantaimportância <strong>se</strong>ria ter paz com eles, e apartá-los <strong>do</strong>s Potiguares, man<strong>do</strong>u por línguas fazer-lhepráticas, <strong>que</strong> estivess<strong>em</strong> <strong>se</strong>guros <strong>que</strong> só buscavam os Potiguares, com os quais nunca <strong>que</strong>ríamospaz, mas com eles sim, dizen<strong>do</strong>-lhes mais <strong>que</strong> o general era hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> reino, fora de malícias eenganos, <strong>que</strong> com eles usavam os <strong>do</strong> Brasil, e estava muito b<strong>em</strong> informa<strong>do</strong> da sua amizade anti g acom os brancos, pelos quais sabia <strong>que</strong> <strong>que</strong>brava a paz, e <strong>que</strong> <strong>se</strong> os capitães Ataíde e Caldas foramvivos os mandara el-rei castigar; com estas práticas, e vinho <strong>que</strong> lhes deram a beber, concertaram<strong>que</strong> dan<strong>do</strong> reféns mandaria o Braço <strong>se</strong>us <strong>em</strong>baixa<strong>do</strong>res depois de jantar as<strong>se</strong>ntar pazes com ogeneral, o qual neste meio t<strong>em</strong>po trabalhou com toda a dissimulação <strong>em</strong> mandar descobrir oalagadiço, <strong>se</strong> por cima ou por baixo daria vau à gente; mas não <strong>se</strong> achou nisto r<strong>em</strong>édio, pelagrandeza <strong>do</strong> alagadiço, e espessura <strong>do</strong> mato à roda.Ao meio-dia vieram três índios a tratar das pazes, <strong>que</strong> foram ouvi<strong>do</strong>s na tenda <strong>do</strong> general, eexamina<strong>do</strong>s por línguas, e feitas todas as diligências, e ostentações <strong>que</strong> foram necessárias, por oBraço e os <strong>se</strong>us ter<strong>em</strong> consigo muitos Potiguares, juntamente com o me<strong>do</strong> de suas culpas, nadabastou para os <strong>se</strong>gurar, e assim tornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> à tarde qui<strong>se</strong>ram lá matar os reféns, e ficou a guerrarota, <strong>que</strong> os inimigos estiman<strong>do</strong> pouco es<strong>que</strong>ntaram toda a<strong>que</strong>la tarde, com trinta e tanta<strong>se</strong>spingardas, e muitas flechas <strong>que</strong> tiraram. Ao <strong>que</strong> ainda <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> atalhar o general, para osde<strong>se</strong>nganar man<strong>do</strong>u sair por sua ord<strong>em</strong> todas as companhias, e gente por uma campina entre acerca, e o lago, <strong>que</strong> na<strong>que</strong>la manhã, para o <strong>que</strong> sucedes<strong>se</strong>, tinha manda<strong>do</strong> roçar; também lh<strong>em</strong>an<strong>do</strong>u dar mostra de <strong>do</strong>is berços, <strong>que</strong> trazia <strong>em</strong> carros, e varejar com eles uma caiçara, outran<strong>que</strong>ira, <strong>que</strong> para pelejar<strong>em</strong>, e <strong>se</strong> defender<strong>em</strong> no cume de um pico, no cabo de uma <strong>que</strong>imada, osinimigos haviam feito, e com outros assombros, nada bastou para <strong>que</strong>rer<strong>em</strong> paz: com isto <strong>se</strong>resolveu o general a lhes dar<strong>em</strong> ao outro dia batalha, mandan<strong>do</strong> a<strong>que</strong>la tarde fazer muitos feixes defaxina, <strong>que</strong> ao longo da cerca haviam corta<strong>do</strong>, para <strong>que</strong> com as pontes, <strong>que</strong> o gentio no alagadiçohavia feito, passag<strong>em</strong> da outra banda.Não foi nada aprazível ao arraial esta determinação <strong>do</strong> general, <strong>que</strong> <strong>se</strong> viu melhor noCon<strong>se</strong>lho, <strong>que</strong> na sua tenda <strong>se</strong> teve a<strong>que</strong>la noite, <strong>que</strong> foi assaz vário, e confuso, e a <strong>se</strong>us bra<strong>do</strong>s <strong>se</strong>as<strong>se</strong>ntou ficass<strong>em</strong> ali as duas partes <strong>do</strong> arraial, e Francisco Barreto com eles, com to<strong>do</strong> oprovimento, para o <strong>que</strong> sucedes<strong>se</strong>, e ele a pé com a terça parte ir dar nos inimigos no pico.


82Ouvin<strong>do</strong> missa ao outro dia pela manhã muito ce<strong>do</strong>, partiu o general com as companhias davanguarda somente, e o guião de cavalo de Antônio Cavalcante, <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u no roça<strong>do</strong>, e <strong>em</strong> uma<strong>que</strong>imada andar da nossa parte <strong>do</strong> alagadiço, para por ali não rebentar alguma cilada, e lhe tomar<strong>em</strong>as costas, e levan<strong>do</strong> o padre Jerônimo Macha<strong>do</strong>, da companhia, um crucifixo diante, acharam noalagadiço muito estorvo por de noite os inimigos cortar<strong>em</strong> muitas árvores, com <strong>que</strong> o atravessaram,e <strong>em</strong>baraçaram to<strong>do</strong>: com isto, e com andar<strong>em</strong> muitos solda<strong>do</strong>s pela <strong>que</strong>imada da outra banda àsflechadas, e arcabuzadas, <strong>se</strong> passava devagar, e com tanto receio, <strong>que</strong> foi necessário ao generalagastar-<strong>se</strong> com alguns, e mandan<strong>do</strong> ficar a companhia de Ambrósio Fernandes com ord<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>não bulis<strong>se</strong> <strong>do</strong> alagadiço até to<strong>do</strong>s <strong>se</strong>r<strong>em</strong> <strong>em</strong> cima, arrancou da espada juran<strong>do</strong> havia de escalar o<strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> falas<strong>se</strong>, <strong>se</strong>não obrar<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s como esforça<strong>do</strong>s; isto, e meter-<strong>se</strong> com o passo apressa<strong>do</strong>após os dianteiros, fez passar os mais, e tornar a ladeira acima b<strong>em</strong> depressa.Depois de <strong>se</strong> recolher<strong>em</strong> os inimigos na cerca, subiam os nossos <strong>em</strong> pés e mãos por ela, eferran<strong>do</strong>-a to<strong>do</strong>s não acabavam de a render, o <strong>que</strong> ven<strong>do</strong> o general tomou um inglês, <strong>que</strong> levavaconsigo arma<strong>do</strong>, e subin<strong>do</strong> às costas <strong>em</strong> cima da cerca com uma formosa lança de fogo fez taisfloreios, lançan<strong>do</strong> dela infinidade de foguetes, <strong>que</strong> despejaram os inimigos. Por ali, e derriban<strong>do</strong> osnossos duas ou três braças de cerca, <strong>que</strong> cortaram, entraram dentro, e os foram <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> um pedaço,ainda <strong>que</strong>, com o ruim caminho, e impedimentos <strong>que</strong> os inimigos tinham postos, e eles <strong>se</strong>r<strong>em</strong>bichos <strong>do</strong> mato, <strong>que</strong> foram por onde <strong>que</strong>r<strong>em</strong>, foi causa de escapar<strong>em</strong> muitos. O <strong>que</strong> ordenou Deuspara nos ficar<strong>em</strong>, como agora os t<strong>em</strong>os, por amigos.Corri<strong>do</strong>s assim, o mais <strong>que</strong> os nossos puderam, man<strong>do</strong>u o general <strong>que</strong>imar toda a caiçara, <strong>em</strong>adeira da cerca, e assola<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> tornou para <strong>se</strong>us companheiros, <strong>que</strong> haviam fica<strong>do</strong> na outracerca, os quais o vieram receber fora com Te-Deum Laudamus, e no mesmo dia a tarde houve umrebate da banda <strong>do</strong> Tibiri a <strong>que</strong> alguns capitães acudiram desordenadamente, e por <strong>se</strong>r a revoltagrande man<strong>do</strong>u o general a Francisco Barreto os fos<strong>se</strong> recolher, o <strong>que</strong> fez muito b<strong>em</strong>, e com muitaord<strong>em</strong>; por<strong>que</strong> na escaramuça <strong>que</strong> <strong>se</strong> travou foram mortos alguns Potiguares, s<strong>em</strong> <strong>do</strong>s nossos haverferi<strong>do</strong> algum, e por não <strong>se</strong>r já de efeito a estada ali, ao outro dia man<strong>do</strong>u o general pôr fogo à cerca,e com to<strong>do</strong> o exército pelo rio Tibiri abaixo foi <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> os inimigos, e foram <strong>do</strong>rmir dali a duasléguas, onde agora <strong>se</strong> chama as marés, e arranca<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os mantimentos, <strong>que</strong> acharam, <strong>que</strong> foi amaior guerra <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhes pôde fazer, e <strong>que</strong>imadas duas aldeias, <strong>que</strong> ali estavam despovoadas, <strong>se</strong>tornaram acima a buscar outra cerca nova, <strong>que</strong> havia feito um principal, chama<strong>do</strong> As<strong>se</strong>nto dePássaro, aonde, antes de chegar<strong>em</strong>, acharam tantos <strong>em</strong>baraços de ruim caminho, <strong>que</strong> <strong>se</strong> ia abrin<strong>do</strong>pelo mato, e brejos, e alguns inimigos corre<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> <strong>se</strong> atravessaram diante, <strong>que</strong> por mais <strong>que</strong> ogeneral <strong>se</strong> apressou, passan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> á vanguarda com o ouvi<strong>do</strong>r da capitania Francisco <strong>do</strong> Amaral, <strong>que</strong>s<strong>em</strong>pre o <strong>se</strong>guia, e marchan<strong>do</strong> com ela, já acharam a cerca, <strong>que</strong> era grande, e forte, despejada, ainda<strong>que</strong> <strong>em</strong> alguns velhos e fêmeas <strong>se</strong> vingou o nosso gentio; e ali pararam a<strong>que</strong>le dia, e o outro, <strong>do</strong>ndepelos muitos alagadiços, e diversidade de opiniões <strong>do</strong>s caminhos, <strong>que</strong> ninguém sabia, <strong>se</strong> resolveramtornar pelo rio da Paraíba abaixo, buscar o passo para o forte, onde <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntaria o <strong>que</strong> cumpris<strong>se</strong>.Parti<strong>do</strong>s desta cerca por outro caminho, <strong>que</strong> era a estrada, acharam nela tantos labirintos, <strong>que</strong>os inimigos tinham feitos, tantos fojos, árvores cortadas atravessadas, <strong>que</strong> era admiração, e a nãohaver grande cautela, poucos bastaram ali para desbaratar a muitos; mas de tu<strong>do</strong> Nosso Senhor osguar<strong>do</strong>u e desviou.Passa<strong>do</strong> <strong>em</strong>baixo o rio da Paraíba, <strong>em</strong> três dias chegaram ao forte, <strong>que</strong> estava coisa pie<strong>do</strong>sade ver, assim o danificamento, e ruinez dele, como as pessoas <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> b<strong>em</strong> mostravam asfomes, e misérias, <strong>que</strong> tinham passa<strong>do</strong>.CAPÍTULO OITAVO


83De como o general Martim Leitão chegan<strong>do</strong> ao forte man<strong>do</strong>u o capitão João Paes à baía da Traição,e depois <strong>se</strong> tornaram para PernambucoLogo na tarde <strong>que</strong> chegaram ao forte ordenou o general <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> o capitão João Paes comtrezentos homens de pé e de cavalo correr a baía da Traição, como foram o <strong>se</strong>guinte dia <strong>em</strong>amanhecen<strong>do</strong>. Procurou também muito com Frutuoso Barbosa qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> ir duas léguas <strong>do</strong> forte,junto das marés, onde havia muitos mantimentos da parte <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> rio da Paraíba, fazer povoação,para o <strong>que</strong> lhe juntava oitenta homens brancos, e índios os mais <strong>que</strong> pudes<strong>se</strong>, e <strong>se</strong> oferecia estar comele <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s, e outros <strong>se</strong>is <strong>se</strong>u cunha<strong>do</strong> Francisco Barreto, mas nunca <strong>se</strong> pôde acabar com ele, epor atos <strong>que</strong> disto <strong>se</strong> fizeram, desistiu de toda a pretensão da Paraíba, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> não estaria maisuma hora nela; contu<strong>do</strong> determinou o general fazer no dito sítio / <strong>que</strong> a to<strong>do</strong>s pareceu b<strong>em</strong> / apovoação, para o <strong>que</strong> cometeu a Pero Lopes, e a outros, mas não pôde concluir. Pelo <strong>que</strong> com assazpaixão <strong>se</strong> determinou ir pela praia com a gente, <strong>que</strong> lhe ficou, juntar-<strong>se</strong> na baía da Traição com JoãoPaes; por<strong>que</strong> assim, levan<strong>do</strong> um campo por cima outro por baixo, não fican<strong>do</strong> coisa <strong>em</strong> meio,<strong>se</strong>guiss<strong>em</strong> por alguns dias os inimigos até os encontrar<strong>em</strong>, ou enxotar<strong>em</strong> para longe, masdeterminan<strong>do</strong> partir na baixa-mar <strong>do</strong> outro dia, subitamente a<strong>que</strong>la noite a<strong>do</strong>eceram quarenta, eduas pessoas com estranhas <strong>do</strong>res de barriga e câmaras, entre os quais foi Francisco Barreto, e opadre Simão Tavares, da companhia, e outros de muita importância, com o <strong>que</strong> houve detença <strong>do</strong>isdias, e ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> não melhoravam pelos ruins ares, e águas da<strong>que</strong>le sítio, foi força<strong>do</strong> levantar oarraial, e tomar acima duas léguas <strong>em</strong> um campo muito formoso e aprazível, sítio de muitas boaságuas, a <strong>que</strong> pu<strong>se</strong>ram nome Campo das Hortas, onde <strong>em</strong> <strong>se</strong>is dias, <strong>que</strong> ali estiveram esperan<strong>do</strong> porJoão Paes, alguns <strong>se</strong> refizeram; chega<strong>do</strong> ele, e juntos outra vez to<strong>do</strong>s, e sabi<strong>do</strong> <strong>que</strong> na baía daTraição não ousaram os inimigos esperar, eles <strong>que</strong>imaram muitas aldeias, e arrancarammantimentos, fizeram-<strong>se</strong> <strong>do</strong>is ou três con<strong>se</strong>lhos, para <strong>se</strong> dar ordens no <strong>que</strong> <strong>se</strong> devia fazer, e porter<strong>em</strong> por certo <strong>que</strong> os Tabajaras, gentio <strong>do</strong> Braço de Peixe, estavam desavin<strong>do</strong>s com os Potiguares,e começavam a guerrear uns contra outros; <strong>se</strong> resolveram to<strong>do</strong>s era b<strong>em</strong> deixá-los, já <strong>que</strong> por si <strong>se</strong><strong>que</strong>riam gastar antes convir muito por alguma via avisar o Braço de Peixe, <strong>que</strong> lhe dariam socorrocontra os Potiguares, e <strong>que</strong> não <strong>se</strong> tornas<strong>se</strong> à <strong>se</strong>rra; com <strong>que</strong> <strong>em</strong> muito <strong>se</strong>gre<strong>do</strong> o general fez fugi<strong>do</strong>um índio <strong>se</strong>u parente com grandes promessas, <strong>se</strong> o quietas<strong>se</strong>, e fizes<strong>se</strong> tornar ao mar; com estaord<strong>em</strong>, e provi<strong>do</strong> o forte de mais vinte homens, e com lhe deixar o capitão Pero Lopes <strong>em</strong> lugar deFrutuoso Barbosa, e os prover <strong>do</strong> <strong>se</strong>u como melhor pôde, deixan<strong>do</strong>-lhes pipas de farinha, biscoito,vinho, e sardinhas, para <strong>do</strong>is me<strong>se</strong>s, <strong>se</strong> partiram to<strong>do</strong>s para a vila de Olinda com muita festa, ainda<strong>que</strong> o espírito <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão/ <strong>que</strong> já chamarei general / não <strong>se</strong> quietava n<strong>em</strong>contentava, dizen<strong>do</strong> não ter feito nada, pois não ficava levantada povoação na Paraíba, e tu<strong>do</strong> o daguerra concluí<strong>do</strong>, como <strong>se</strong> fora poderoso para tão grande <strong>em</strong>presa, <strong>em</strong> <strong>que</strong> nosso Senhor o tinha tãofavoreci<strong>do</strong>.Desta maneira entraram na vila de Olinda <strong>em</strong> som de guerra, postos <strong>em</strong> ord<strong>em</strong>,acompanhan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s ao ouvi<strong>do</strong>r-geral até sua casa, com a maior festa, e triunfo <strong>que</strong> Pernambuconunca teve, <strong>que</strong> foi a 6 de abril de 1585.CAPÍTULO NONODe como o capitão Castejon fugiu, e largou o forte, e o ouvi<strong>do</strong>r-geral o prendeu,e agasalhou os solda<strong>do</strong>sO <strong>primeiro</strong> de junho <strong>do</strong> mesmo ano de oitenta e cinco, chegou nova a Pernambuco erachega<strong>do</strong> a Itamaracá o capitão Pero Lopes, <strong>que</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão deixara com algunsportugue<strong>se</strong>s no forte da Paraíba <strong>em</strong> companhia <strong>do</strong> alcaide, o qual também <strong>se</strong> dizia o <strong>que</strong>riadesamparar com os espanhóis, e <strong>que</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>creto buscavam piloto, <strong>que</strong> de lá os levas<strong>se</strong> às Índias, e


84como o ouvi<strong>do</strong>r-geral andava tão pronto, e receoso destas coisas, logo pela posta man<strong>do</strong>u buscarPero Lopes, <strong>do</strong> qual informa<strong>do</strong>, <strong>em</strong> quatro dias concluiu com ele <strong>se</strong> tornas<strong>se</strong> a assistir no forte comoo deixava, com alguns filhos da terra, e gente, no qual estives<strong>se</strong> até janeiro, com obrigação de lhedar<strong>em</strong> cada mês cinqüenta cruza<strong>do</strong>s; por<strong>que</strong> não <strong>se</strong>ria possível deixar el-rei até então de avisar, eprover, por cuja falta <strong>se</strong> despovoava isto.Dificultosamente aceitou Pero Lopes, por<strong>que</strong> pela má condição <strong>do</strong> alcaide Castejon to<strong>do</strong>sfugiam dele; mas sobre isto rebentou outro maior inconveniente, <strong>que</strong> foi resolver-<strong>se</strong> o prove<strong>do</strong>rMartim Carvalho / <strong>que</strong> até então mal provia o forte / <strong>em</strong> não o <strong>que</strong>rer mais prover b<strong>em</strong> n<strong>em</strong> mal,n<strong>em</strong> nisso entender, e assim o respondeu por atos públicos, com o <strong>que</strong> ficou tu<strong>do</strong> desarma<strong>do</strong>, e <strong>se</strong>concluíra pior <strong>se</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral não tratara este negócio por via de <strong>em</strong>préstimo, com <strong>que</strong> logoman<strong>do</strong>u o capitão Pero Lopes fizes<strong>se</strong> rol <strong>do</strong> <strong>que</strong> havia mister para provimento de 100 homens <strong>em</strong><strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s, e feito, e soma<strong>do</strong> <strong>em</strong> três mil cruza<strong>do</strong>s, os man<strong>do</strong>u logo tomar, e repartir pelosmerca<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> tinham as coisas necessárias, aos quais <strong>se</strong> satisfazia com créditos de João Nunesmerca<strong>do</strong>r, e toma<strong>do</strong> navio, e avia<strong>do</strong>, por não suceder no forte fazer o alcaide com os espanhóisabalo, lhe fez escrever da Câmera com muitos mimos, e certeza de <strong>se</strong>r<strong>em</strong> agora muito melhorprovi<strong>do</strong>s; pois havia de correr por eles livres de Martim Carvalho, <strong>que</strong> muito deviam estimar.O mesmo lhe escreveu o ouvi<strong>do</strong>r-geral, e com estas cartas <strong>se</strong> foi Pero Lopes aviar a sua casaà ilha de Itamaracá, <strong>do</strong>nde havia o navio, e gente de o ir tomar de caminho, e ele entretanto avisariao alcaide; e ou o diabo o teces<strong>se</strong> ou não <strong>se</strong>i por<strong>que</strong>, Pero Lopes não avisou ao forte, n<strong>em</strong> man<strong>do</strong>u ascartas, in<strong>do</strong> disso tão encarrega<strong>do</strong>, e as teve <strong>em</strong> <strong>se</strong>u poder s<strong>em</strong> as mandar desde 8 de junho até 24,<strong>que</strong> estan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> a pi<strong>que</strong> para o outro dia partir o navio, e de caminho ir pela ilha, <strong>se</strong> começou adizer <strong>se</strong>r<strong>em</strong> chega<strong>do</strong>s a ela castelhanos <strong>do</strong> forte; dizen<strong>do</strong> vinha atrás o alcaide, e deixavam tu<strong>do</strong>arrasa<strong>do</strong>.A isto / <strong>que</strong> <strong>em</strong> breve <strong>se</strong> encheu a terra / <strong>se</strong> ajuntou toda a vila às aves-marias <strong>em</strong> casa <strong>do</strong>ouvi<strong>do</strong>r-geral, onde <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntou <strong>que</strong> <strong>se</strong> juntass<strong>em</strong> logo pela manhã no colégio; bispo, capitão d.Filipe, Câmera, prove<strong>do</strong>r Martim Carvalho; e ele, <strong>que</strong> nestas coisas não <strong>do</strong>rmia, na mesma noitedespediu os <strong>se</strong>us oficiais <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> buscar a Castejon, e lho trouxes<strong>se</strong> preso a bom reca<strong>do</strong>, comofizeram, e nas perguntas não deu outra razão <strong>se</strong>não da fome, <strong>que</strong> era assaz fraca, pois confessava<strong>que</strong> depois da guerra <strong>que</strong> havia da<strong>do</strong> não aparecer mais inimigo, e ir<strong>em</strong> os barcos, <strong>que</strong> lhe haviadeixa<strong>do</strong>, pelo rio acima buscar mantimentos, <strong>que</strong> era assaz provimento; mas deviam de estarenfada<strong>do</strong>s, e vingaram-<strong>se</strong> <strong>em</strong> deitar a artilharia ao mar, e uma nau <strong>que</strong> lá estava ao fun<strong>do</strong>, e pôr ofogo ao forte, e <strong>que</strong>brar o sino, e com isto <strong>se</strong> vieram à vila como qu<strong>em</strong> não tinha feito nada; e o qu<strong>em</strong>ais é <strong>que</strong> assim <strong>se</strong> julgou depois no reino aonde o ouvi<strong>do</strong>r-geral man<strong>do</strong>u o Castejon preso, <strong>que</strong> detu<strong>do</strong> <strong>se</strong> <strong>livro</strong>u e saiu b<strong>em</strong>.Ao outro dia pela manhã, juntos <strong>em</strong> mo<strong>do</strong> de con<strong>se</strong>lho no colégio, houve algumas dúvidascom o bispo, e outros, movi<strong>do</strong>s de quão mal <strong>se</strong> respondia <strong>do</strong> reino a tanta importância, dificultavama <strong>em</strong>presa, <strong>que</strong> na verdade estava mais duvi<strong>do</strong>sa <strong>que</strong> nunca, por <strong>se</strong>r sobre tantas <strong>que</strong>das, e láconsumir<strong>em</strong> tantas vezes os nossos, e <strong>se</strong> recear<strong>em</strong> france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> nunca ali faltavam.Pelas quais causas diziam <strong>que</strong> na terra s<strong>em</strong> grossa mão de el-rei haveria força para esta<strong>em</strong>presa, só o ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão, to<strong>do</strong> aceso <strong>em</strong> cólera, e fervor com <strong>que</strong> andava, commuitas razões o persuadiu a entre si eleger<strong>em</strong> um hom<strong>em</strong>, <strong>que</strong> com cento e cinqüenta, <strong>que</strong> <strong>se</strong>ofereceu a buscar, e gentio com a despesa, e vitualha, <strong>que</strong> estava buscada, tornas<strong>se</strong> logo a recuperaro perdi<strong>do</strong>, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> ele com os <strong>se</strong>us, e amigos <strong>que</strong> tives<strong>se</strong>, estava determina<strong>do</strong> ir a meter-<strong>se</strong> nonosso forte arruina<strong>do</strong>, antes <strong>que</strong> os inimigos <strong>se</strong> fortificass<strong>em</strong> nele, pois os <strong>que</strong> tinham obrigação deo defender o desampararam, e isto com tanta ve<strong>em</strong>ência, re<strong>que</strong>rimentos, protestos, e ameaças daparte de Sua Majestade, <strong>que</strong> os espertou e aviventou; e assim elegeram o capitão Simão Falcão, <strong>que</strong>pareceu pessoa para isso, por Frutuoso Barbosa <strong>em</strong> nenhuma maneira <strong>que</strong>rer aceitar, com estar a


85tu<strong>do</strong> pre<strong>se</strong>nte: <strong>do</strong> <strong>que</strong> Simão Falcão foi logo avisa<strong>do</strong>; e o ouvi<strong>do</strong>r-geral com alguns pregões,indústria, e suma diligência juntou to<strong>do</strong>s os espanhóis, <strong>que</strong> <strong>do</strong> forte vieram, e ao pre<strong>se</strong>nte na terrahavia, <strong>do</strong>s quais fez duas esquadras, de quarenta e <strong>do</strong>is, <strong>que</strong> ajuntou <strong>em</strong> umas casas, a <strong>que</strong> cada diafazia prover da tação ordinária de sua casa, e à sua custa, não <strong>se</strong> es<strong>que</strong>cen<strong>do</strong> de por via de religiososfazer encomendar este negócio a Deus.CAPÍTULO DÉCIMODe como o Braço de Peixe man<strong>do</strong>u cometer pazes, pedin<strong>do</strong> socorro contra os Potiguares, e oouvi<strong>do</strong>r-geral tornou à Paraíba, e começou a povoaçãoHaven<strong>do</strong> neste mês de julho alguma dilação por a<strong>do</strong>ecer Simão Falcão, tanto ao cabo comoesteve, no fim <strong>do</strong> mês chegaram <strong>do</strong>is índios <strong>do</strong> Braço de Peixe ao ouvi<strong>do</strong>r-geral, pedin<strong>do</strong>-lhesocorro contra os Potiguares, por<strong>que</strong> tornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> pelo <strong>se</strong>u reca<strong>do</strong> ao mar o cercaram por vezes, etinham posto <strong>em</strong> grande aperto.Neste próprio dia vestiu Martim Leitão os índios, e <strong>se</strong> foi <strong>do</strong>rmir ao Recife com JoãoTavares, escrivão da Câmera e juiz <strong>do</strong>s órfãos, ao qual por parecer de to<strong>do</strong>s encomen<strong>do</strong>u estesocorro, e ele por <strong>se</strong>us rogos, e por <strong>se</strong>rviço del-rei aceitou, e assim com 12 espanhóis b<strong>em</strong>concerta<strong>do</strong>s, e satisfeitos, e oito portugue<strong>se</strong>s, e uma caravela equipada, e concertada para tu<strong>do</strong> comalgumas dádivas, e bom regimento, partiu <strong>do</strong> porto de Pernambuco a 2 de agosto de 1585, e aos trêschegou pelo rio da Paraíba acima, onde <strong>se</strong> viu com o Braço de Peixe, e mais principais no porto,<strong>que</strong> agora é a nossa cidade, assombran<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> os Potiguares com alguns tiros, <strong>que</strong> presumin<strong>do</strong>mais força fugiram.As<strong>se</strong>ntadas as pazes, e dadas suas dádivas, e reféns, saiu o capitão João Tavares dia deNossa Senhora das Neves, por cujo respeito depois <strong>se</strong> pôs es<strong>se</strong> nome a povoação, e a tomaram porpatrona, e advogada, debaixo de cujo amparo <strong>se</strong> sustenta, e ordenaram um forte de madeira com ascostas no rio, onde <strong>se</strong> recolheram.Avisa<strong>do</strong> logo o ouvi<strong>do</strong>r-geral, <strong>se</strong> alvoroçou toda a vila, e mora<strong>do</strong>res destas capitanias,parecen<strong>do</strong>-lhes, e com razão, eram já to<strong>do</strong>s <strong>se</strong>us trabalhos acaba<strong>do</strong>s, e depois de muitas graças aDeus, sobre isto chegaram os línguas por terra com obra de 40 índios com a <strong>em</strong>baixada <strong>do</strong> Braço,aos quais to<strong>do</strong>s o ouvi<strong>do</strong>r-geral <strong>em</strong> sua casa agasalhou, vestiu, e festejou, e avisan<strong>do</strong> ao capitãoJoão Tavares <strong>do</strong> <strong>que</strong> havia de fazer, mandan<strong>do</strong>-lhe mais vinte e cinco homens de toda a sorte, pelo<strong>se</strong>spanhóis estar<strong>em</strong> ainda muito enfermos, e mandan<strong>do</strong> vesti<strong>do</strong>s finos para os principais, e outrosmimos, e to<strong>do</strong>s muito contentes os tornou a mandar, e com grandes defesas, <strong>que</strong> não houves<strong>se</strong>algum gênero de resgate, de <strong>que</strong> o ouvi<strong>do</strong>r como experimenta<strong>do</strong> era muito inimigo, e com razão,<strong>que</strong> isto é o <strong>que</strong> dana o Brasil, mormente quan<strong>do</strong> é de índios, pois com título de resgate os cativam.Para <strong>se</strong> aperfeiçoar<strong>em</strong> estas pazes pareceu necessário não <strong>se</strong> perder t<strong>em</strong>po, antes ir-<strong>se</strong> logofazer um forte, recuperar a artilharia <strong>do</strong> outro, e as<strong>se</strong>ntar a povoação; para o <strong>que</strong> por to<strong>do</strong>s foias<strong>se</strong>nta<strong>do</strong> <strong>que</strong> ninguém podia fazer todas estas coisas, <strong>se</strong>não o ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão, ao qualo pediram, e re<strong>que</strong>reram to<strong>do</strong>s, e ele o aceitou, por <strong>se</strong>rviço de Deus e de el-rei, e por b<strong>em</strong> destascapitanias, e assim <strong>se</strong> partiu para a Paraíba a 15 <strong>do</strong> mês de outubro <strong>do</strong> mesmo ano com algunsamigos <strong>se</strong>us, oficiais, e cria<strong>do</strong>s, faziam número de 25 de cavalo, e 40 de pé, levan<strong>do</strong> pedreiros ecarpinteiros, e to<strong>do</strong> o reca<strong>do</strong> necessário para fazer o forte, e o <strong>que</strong> mais cumpris<strong>se</strong>, e chegou lá aosvinte e nove, onde foi grand<strong>em</strong>ente recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s índios e brancos, <strong>que</strong> aí estavam; e aos principais<strong>do</strong>s índios, <strong>que</strong> vieram uma légua recebê-lo, abraçou um a um com grande festa, e fazen<strong>do</strong> apear osde sua casa os fez ir a cavalo, e alguns, pelo <strong>que</strong> tinham passa<strong>do</strong> com os brancos, iam tr<strong>em</strong>en<strong>do</strong> d<strong>em</strong>aneira, <strong>que</strong> era necessário i-los sustentan<strong>do</strong> na <strong>se</strong>la.


86Com este triunfo os levou pelo meio de suas aldeias, com <strong>que</strong> uns choravam, e outros riamde prazer, e logo nessa noite <strong>se</strong> informou <strong>do</strong>s sítios, <strong>que</strong> particularmente tinha encomenda<strong>do</strong> lhebuscass<strong>em</strong> com todas as comodidades necessárias para a povoação a Manuel Fernandes, mestre dasobras de el-rei; Duarte Gomes da Silveira, João Queixada, e ao capitão, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s estavam para issopreveni<strong>do</strong>s dele <strong>em</strong> <strong>se</strong>gre<strong>do</strong>, mas encontra<strong>do</strong>s nos pareceres <strong>do</strong>s sítios.Ao outro dia o ouvi<strong>do</strong>r-geral, ouvin<strong>do</strong> missa antes de sair o sol / <strong>que</strong> caminhan<strong>do</strong>, e andan<strong>do</strong>nestas jornadas s<strong>em</strong>pre a ouvia /, foi logo a pé ver alguns sítios, e à tarde a cavalo, até o ribeiro deJaguaripe, para o cabo Branco, e outras partes, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> recolheu à noite resoluto <strong>se</strong>r a<strong>que</strong>le <strong>em</strong><strong>que</strong> estavam o melhor, onde agora está a cidade, planície de mais de meia légua, muito chão, detodas as partes cerca<strong>do</strong> de água, <strong>se</strong>nhor <strong>do</strong> porto, <strong>que</strong> com um falcão <strong>se</strong> passa além, e tãoalcantila<strong>do</strong> <strong>que</strong> da proa de navios de <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta tonéis <strong>se</strong> salta <strong>em</strong> terra, <strong>do</strong>nde sai um formoso tornode água <strong>do</strong>ce para provimento das <strong>em</strong>barcações, <strong>que</strong> a natureza ali pôs com maravilhosa arte, <strong>em</strong>uita pedra de cal, onde logo man<strong>do</strong>u fazer um forno dela, e tirar pedra um pouco mais acima; como <strong>que</strong> visto tu<strong>do</strong> muito b<strong>em</strong>, e roça<strong>do</strong> o mato, a 4 de nov<strong>em</strong>bro <strong>se</strong> começou o forte de 150 palmos,deram <strong>em</strong> quadra com duas guaritas, <strong>que</strong> jogam oito peças grossas uma ao revés da outra, no qualedifico trabalhavam maus e bons com o <strong>se</strong>u ex<strong>em</strong>plo, <strong>que</strong> um e um os chamava de madrugada, erepartia uns na cal, outros no mato com os carpinteiros, e <strong>se</strong>rra<strong>do</strong>res, outros nas pedreiras, e os maisa pilar nos taipais; por<strong>que</strong> os alicerces, e cunhais só eram de pedra e cal, e o mais de taipa de pilãode quatro palmos de largo, para o <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u logo fazer oito taipais, para to<strong>do</strong>s trabalhar<strong>em</strong>, e eracoisa para ver a porfia e inveja, <strong>em</strong> <strong>que</strong> os metia, trabalhan<strong>do</strong> mais <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s, com o <strong>que</strong> duravamna obra de sol a sol, s<strong>em</strong> descansar mais <strong>que</strong> a hora de comer, e assim <strong>em</strong> duas s<strong>em</strong>anas de <strong>se</strong>rviçochegou a esta<strong>do</strong> de <strong>se</strong> lhe pôr artilharia, <strong>que</strong> neste meio t<strong>em</strong>po com muito trabalho, e indústria, porbúzios, <strong>que</strong> para isso levou, <strong>se</strong> havia tira<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar s<strong>em</strong> <strong>se</strong> perder peça, <strong>que</strong> foi coisa milagrosa, sóas Câmeras faltaram, mas com <strong>se</strong>is, <strong>que</strong> levou de Pernambuco, e <strong>do</strong>is falcões, <strong>que</strong> foram noscaravelões da matalotagens, <strong>se</strong> r<strong>em</strong>ediou tu<strong>do</strong>.As<strong>se</strong>ntada a artilharia ordenou, por <strong>se</strong> não perder t<strong>em</strong>po, e o nosso gentio confedera<strong>do</strong> <strong>se</strong>não esfriar, como já começava, foss<strong>em</strong> João Tavares, e Pero Lopes, com toda a gente dar uma boaguerra às fraldas de Copaoba, <strong>que</strong> é uma terra montuosa, e mui fértil, dezoito léguas <strong>do</strong> mar, <strong>do</strong>ndehá muito gentio Potiguar; e assim fican<strong>do</strong>-lhe somente os <strong>se</strong>us moços, e oficiais da obra, eCristóvão Lins, e Gregório Lopes de Abreu, foram to<strong>do</strong>s os mais, aonde por andar<strong>em</strong> treze ouquatorze dias somente não destruíram mais de quatro ou cinco aldeias, cuja vinda tão apressada oouvi<strong>do</strong>r-geral <strong>se</strong>ntiu muito, e determinan<strong>do</strong> ir <strong>em</strong> pessoa, concluiu com a maior brevidade <strong>que</strong> pôdea obra <strong>do</strong> forte, casa para o capitão, e armazém.CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRODe como o ouvi<strong>do</strong>r-geral foi à Baía da TraiçãoPosto isto <strong>em</strong> boa ord<strong>em</strong> até 20 de nov<strong>em</strong>bro, deixou aí Cristóvão Lins, fidalgo, al<strong>em</strong>ão denação, com os oficiais e gente necessária, e ele <strong>se</strong> partiu com 85 homens brancos, e 180 índios <strong>do</strong>nosso gentio, coisa assaz t<strong>em</strong>erária, e <strong>que</strong> muitos procuravam estorvar com roncas de estar<strong>em</strong> nausfrancesas na baía da Traição, e sobre isto alguns lhe começaram <strong>em</strong> palavras a perder o devi<strong>do</strong>acatamento, e respeito, particularmente um, <strong>que</strong> <strong>se</strong> soltou mais <strong>do</strong> necessário, <strong>que</strong> já também haviaposto o arcabuz nos peitos ao capitão João Tavares, o qual man<strong>do</strong>u o ouvi<strong>do</strong>r-geral tomar, e à porta<strong>do</strong> forte, <strong>em</strong> pre<strong>se</strong>nça de to<strong>do</strong>s açoutar, <strong>que</strong> foi gentil mesinha, por<strong>que</strong> não houve qu<strong>em</strong> maisfalas<strong>se</strong>, e assim parti<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s <strong>do</strong> forte foram <strong>do</strong>rmir ao Tibiri, e daí no dia <strong>se</strong>guinte ao Campo dasHortas, onde <strong>se</strong> juntaram com o nosso gentio, <strong>que</strong> não levava mais vianda para to<strong>do</strong> o caminho, <strong>que</strong>


87<strong>se</strong>is al<strong>que</strong>ires de farinha de guerra, n<strong>em</strong> os brancos levaram de comer mais <strong>que</strong> para <strong>do</strong>is dias, <strong>do</strong><strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> adverti<strong>do</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral respondeu alegr<strong>em</strong>ente <strong>que</strong> o iriam buscar entre os inimigos,<strong>que</strong> era gente viva, e havia de ter o <strong>que</strong> comer, e assim <strong>se</strong> partiram daí até a água <strong>que</strong> chamam deJorge Camelo, e depois <strong>do</strong> sol posto chegaram ao rio Mamanguape, <strong>que</strong> são grandes oito léguas, epor haver de ir dar <strong>em</strong> umas aldeias, <strong>que</strong> estavam da outra parte <strong>do</strong> rio, antes <strong>que</strong> os inimigos, <strong>que</strong>haviam acha<strong>do</strong> atrás na campina, lhes dess<strong>em</strong> aviso, e <strong>se</strong> aproveitar<strong>em</strong> da baixa-mar, o passarams<strong>em</strong> ceia à meia-noite, e moí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> dia, <strong>do</strong>nde <strong>em</strong> amanhecen<strong>do</strong> marcharam com boaord<strong>em</strong> e reca<strong>do</strong> até às dez horas, <strong>que</strong> deram <strong>em</strong> um grande golpe de gentio, o qual com o <strong>se</strong>ume<strong>do</strong>nho urro atroou a<strong>que</strong>la campina, e ribeira, mas os nossos muito contentes de os ver, ainda <strong>que</strong>fora por ponte de prata.CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDODe como da baía da Traição foram ao Tujucupapo, e tornaram para PernambucoAo terceiro dia, carrega<strong>do</strong>s os índios de despojos, e alguns mantimentos, partiram da baía daTraição, in<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre ao longo da costa com o língua <strong>do</strong>s índios cativos, <strong>em</strong> busca <strong>do</strong> Tujucupapo omor, principal <strong>do</strong>s Potiguares, por <strong>se</strong>r muito grande feiticeiro, e in<strong>do</strong> ao quarto dia depois da partidab<strong>em</strong> descuida<strong>do</strong>s, parecen<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> já não o achariam o inimigo, gritaram da vanguarda —Potiguares! Potiguares!, e não <strong>se</strong> espant<strong>em</strong> falar desta maneira <strong>se</strong>n<strong>do</strong> tão poucos, por<strong>que</strong> como asguerras destas partes são nos matos, s<strong>em</strong>pre vão enfia<strong>do</strong>s por o ruim caminho atrás <strong>do</strong>s outros, eassim, ainda <strong>que</strong> poucos, como não pod<strong>em</strong> ir <strong>em</strong> fileira n<strong>em</strong> ord<strong>em</strong> de guerra, ocupam muita terraao compri<strong>do</strong>; por esta causa à grita da vanguarda <strong>se</strong> concertou cada um <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar, e começarama marchar depressa, mas por neste t<strong>em</strong>po vir um solda<strong>do</strong> espanhol dizer a Martim Leitão acudis<strong>se</strong>,<strong>que</strong> recuava a vanguarda, e havia feri<strong>do</strong>s, <strong>em</strong> calças e <strong>em</strong> gibão, como ia, tomou uma r<strong>em</strong>issão aJoão Nunes, e uma rodela a um índio, e encomendan<strong>do</strong> a gente a Gregório Lopes de Abreu, e aAntônio de Barros Rego, pôs as pernas ao cavalo, e atravessan<strong>do</strong> o mato, <strong>que</strong> era baixo, chegou at<strong>em</strong>po <strong>que</strong> rebentavam <strong>do</strong> bos<strong>que</strong> três esquadrões de gente inimiga, e <strong>se</strong> tornaram a recolher <strong>em</strong>ondas ou r<strong>em</strong>eti<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> este é o <strong>se</strong>u pelejar; e o nosso gentio ven<strong>do</strong> tantos inimigos, qua<strong>se</strong> <strong>que</strong>ficou assombra<strong>do</strong>, e à pressa <strong>em</strong> corpo <strong>se</strong> andavam cercan<strong>do</strong> de rama para to<strong>do</strong>s <strong>se</strong> recolher<strong>em</strong> <strong>em</strong>qual<strong>que</strong>r fortuna; mas chegan<strong>do</strong> assim o ouvi<strong>do</strong>r-geral, os começou a afrontar de palavras, dizen<strong>do</strong>lhe<strong>se</strong> determinavam fazer ali casas para viver, e depois morrer como ovelhas, e <strong>que</strong> as suas casashaviam de <strong>se</strong>r as <strong>do</strong>s inimigos, e assim gritan<strong>do</strong> rijo a eles passou avante, mandan<strong>do</strong> João Tavarespor outra parte, e com isso pelejava com homens, mas aqui com os el<strong>em</strong>entos, <strong>que</strong> é mais.Passa<strong>do</strong>s assim da banda dalém, <strong>que</strong> <strong>se</strong>não duas horas ant<strong>em</strong>anhã, feito algum fogo, <strong>em</strong> <strong>que</strong>brev<strong>em</strong>ente enxugaram os arcabuzes, fez logo o ouvi<strong>do</strong>r-geral tomar a praia, <strong>que</strong> como até entãonão fos<strong>se</strong> sabida, e sobre tantos trabalhos, pareceu a to<strong>do</strong>s tão comprida como trabalhosa.Mas in<strong>do</strong> ele com Duarte Gomes, e Antônio Lopes de Oliveira, com três negros da terradescobrin<strong>do</strong> diante to<strong>do</strong>s, foram até <strong>em</strong> amanhecen<strong>do</strong>, aparta<strong>do</strong>s os de cavalo com algunsarcabuzeiros, para dar<strong>em</strong> da parte <strong>do</strong> norte, e os mais com o nosso gentio, <strong>do</strong> sul, r<strong>em</strong>eteram aoforte <strong>que</strong> ali tinham os inimigos, o <strong>que</strong> fizeram com grande grita, e mataram até vinte índios,tomaram vivo o <strong>se</strong>u principal, outros <strong>se</strong> deitaram ao mar por lhe ter<strong>em</strong> a terra tomada, e <strong>se</strong>acolheram à nau <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s estavam recolhi<strong>do</strong>s com sua artilharia <strong>do</strong> dia de antes,pelo aviso <strong>que</strong> lhes deu um índio, <strong>que</strong> fugiu a Duarte Gomes; e por<strong>que</strong> com a claridade da manhãcomeçou a varejar a praia, onde os nossos estavam com a artilharia, vararam to<strong>do</strong>s a aldeia, epovoação, <strong>que</strong> estava acima, a qual acharam toda despejada, mas com muitas farinhas feitas, efavas, <strong>que</strong> foi grande recreação, junto com os cajus <strong>do</strong> mato, fruta <strong>que</strong> já começava, e para lhe


88destruír<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os mantimentos, e assolar<strong>em</strong> a<strong>que</strong>la estalag<strong>em</strong> aos france<strong>se</strong>s, as<strong>se</strong>ntaram estar alitrês dias, e logo à tarde foram arrancar a mandioca; de noite man<strong>do</strong>u o ouvi<strong>do</strong>r-geral lançar ao martrês ferrarias, <strong>que</strong> ali havia de france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> foi coisa de importância tirá-las aos inimigos, <strong>que</strong> comelas os cevavam os france<strong>se</strong>s, reparan<strong>do</strong>-lhe estes três ferreiros, <strong>que</strong> ali já eram mora<strong>do</strong>res, suasferramentas.Acharam-<strong>se</strong> aqui mais de <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta caldeiras grandes, e pe<strong>que</strong>nas, fato, e muita ferramenta,de <strong>que</strong> <strong>se</strong> o nosso gentio carregou.Ao outro dia man<strong>do</strong>u o ouvi<strong>do</strong>r-geral 24 arcabuzeiros na baixa-mar dar-lhe uma surriadacom três ou quatro cargas, e ainda <strong>que</strong> lhes não fez dano, todavia t<strong>em</strong>en<strong>do</strong> <strong>que</strong> o viriam a receber,ou <strong>que</strong> viess<strong>em</strong> algumas <strong>em</strong>barcações da Paraíba, levaram âncora, e <strong>se</strong> foram, esbombardean<strong>do</strong> parao ar, levar estas novas à França, fican<strong>do</strong> os inimigos diante de si, deitan<strong>do</strong>-os de fora de millabirintos, <strong>que</strong> ali tinham feito e ordena<strong>do</strong>, e por extr<strong>em</strong>o fortifica<strong>do</strong>s, fican<strong>do</strong> todavia as sua<strong>se</strong>stâncias, e meadas de muitos corpos mortos, e mais foram <strong>se</strong> não houvera a detença <strong>do</strong>s nossos noabrir <strong>do</strong>s caminhos para to<strong>do</strong>s passar<strong>em</strong>, e assim tiveram os inimigos alguma guarida com o ruimcaminho, e grande alagadiço / <strong>que</strong> s<strong>em</strong>pre eles costumam tomar por reparo/, onde houve muitasgraças de muitos atolar<strong>em</strong> mais <strong>do</strong> <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ram, não <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> <strong>se</strong>guir o ouvi<strong>do</strong>r-geral <strong>se</strong>u capitão,<strong>que</strong> ainda <strong>que</strong> o cavalo caiu com ele, o levou pela rédea, e sain<strong>do</strong> fora muito gentil-hom<strong>em</strong>, eenloda<strong>do</strong> saltou <strong>em</strong> cima dele mui de<strong>se</strong>nvolto, e <strong>se</strong>guiu os inimigos por um caminho com outros<strong>do</strong>is de cavalo, e alguns índios, <strong>que</strong> s<strong>em</strong>pre foram derriban<strong>do</strong> neles, e o mesmo aconteceu por ondefoi o capitão João Tavares, e houveram de <strong>se</strong>r infinitos os mortos, <strong>se</strong> o nosso gentio ousara <strong>se</strong>guilos;mas ven<strong>do</strong> tantos, e eles tão poucos, o fizeram pesadamente, e só à sombra <strong>do</strong>s brancos; e comisto <strong>se</strong> recolheram depois das três da tarde à grande aldeia, <strong>que</strong> estava perto <strong>do</strong> alagadiço, ondedescansaram o <strong>que</strong> ficava <strong>do</strong> dia; dan<strong>do</strong> muitas graças a Deus por esta grande vitória, por<strong>que</strong> <strong>se</strong>afirmou haver ali mais de 20 mil portugue<strong>se</strong>s apercebi<strong>do</strong>s de dia <strong>do</strong> <strong>se</strong>u feiticeiro, <strong>que</strong> por desastre<strong>se</strong> acolheu <strong>em</strong> um cavalo, <strong>que</strong> lá tinha de brancos havia muitos anos, cura<strong>do</strong>s os feri<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> houvealguns, e nenhum morto, para a vitória ficar com <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> gosto, ali estiveram até ao outro dia, e por<strong>se</strong>r<strong>em</strong> 12 léguas aquém <strong>do</strong> Rio Grande, <strong>do</strong>nde tiveram novas <strong>se</strong>r já passa<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o gentio inimigoda outra banda ,<strong>que</strong> como <strong>se</strong>nhores de mais de quatrocentas léguas desta costa não era possívelesgotá-los, <strong>se</strong> tornaram ao forte, <strong>do</strong>nde foram recebi<strong>do</strong>s com muitas festas, e continuou o ouvi<strong>do</strong>rgeralas obras <strong>em</strong> <strong>que</strong> Cristóvão Lins com oficiais havia b<strong>em</strong> trabalha<strong>do</strong>, e de to<strong>do</strong> acabou o forte,torres, e casas de armazéns com <strong>se</strong>us sobra<strong>do</strong>s para morada <strong>do</strong> capitão e almoxarife, e feitostambém alguns reparos para a maior parte da artilharia, e fican<strong>do</strong>-<strong>se</strong> acaban<strong>do</strong> os mais, tomou ahomenag<strong>em</strong> ao capitão João Tavares, e o deixou com trinta e cinco homens de peleja, provi<strong>do</strong>s paraquatro me<strong>se</strong>s, e feito isto <strong>se</strong> tornaram para Pernambuco no fim de janeiro de mil quinhentos oitentae <strong>se</strong>is, <strong>que</strong> foi assaz breve t<strong>em</strong>po para tantas coisas, e obras; mas tu<strong>do</strong> nos homens honra<strong>do</strong>s ode<strong>se</strong>jo da honra faz possível.CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRODa vinda <strong>do</strong> capitão Morales <strong>do</strong> reino, e tornada <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>r-geral a ParaíbaNo fim de fevereiro <strong>se</strong>guinte vieram cartas ao ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão de haver porb<strong>em</strong> <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> no <strong>que</strong> fazia na povoação da Paraíba, e ord<strong>em</strong> para <strong>que</strong> <strong>se</strong> pagass<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os gastos, asquais trouxe um capitão espanhol coxo chama<strong>do</strong> Francisco de Morales, com cinqüenta solda<strong>do</strong>stambém espanhóis, e para recolher a si os <strong>que</strong> cá ficaram de Francisco Castejon, <strong>que</strong> foi grande b<strong>em</strong>ainda, <strong>que</strong> disso <strong>se</strong> não con<strong>se</strong>guiu efeito pelo capitão <strong>se</strong>r <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> de mui pouco, o qual <strong>se</strong> partiu dePernambuco a 2 <strong>do</strong> mês de abril <strong>se</strong>guinte para na Paraíba haver de estar a obediência de JoãoTavares, capitão <strong>do</strong> forte, conforme a sua patente, e to<strong>do</strong>s a <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>r-geral; mas o coxo tanto <strong>que</strong>


89lá chegou deitou João Tavares fora <strong>do</strong> forte, e os portugue<strong>se</strong>s, tratan<strong>do</strong>-os de maneira <strong>que</strong> alvoroçoutu<strong>do</strong>, e amotinou o gentio das aldeias, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s os dias <strong>se</strong> ia <strong>que</strong>ixar a Pernambuco, e sobre oavisar<strong>em</strong> <strong>que</strong> parecia mal tomar o forte a qu<strong>em</strong> tinha da<strong>do</strong> homenag<strong>em</strong> dele, e <strong>que</strong> lho tornas<strong>se</strong>, <strong>se</strong>de<strong>se</strong>ntoou <strong>em</strong> palavras com o ouvi<strong>do</strong>r-geral, es<strong>que</strong>ci<strong>do</strong> de sua obrigação, e de quanto gasalha<strong>do</strong> <strong>em</strong>imos lhe havia feito <strong>em</strong> Pernambuco; e assim <strong>se</strong> enfrestou logo com ele, e com a Câmera, e comto<strong>do</strong>s os portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> houve muitos re<strong>que</strong>rimentos o tirass<strong>em</strong> de lá, e o mandass<strong>em</strong> a el-rei, pormuitos excessos, <strong>que</strong> s<strong>em</strong>pre nele foram crescen<strong>do</strong>, ajuda<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ruins con<strong>se</strong>lhos, <strong>que</strong> lhe mandavamde Pernambuco inimigos <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>r-geral, <strong>que</strong> por inveja <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us bons sucessos o <strong>que</strong>riaminfamar, assim cá como no reino, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> o ouvi<strong>do</strong>r foi passan<strong>do</strong>, e dissimulan<strong>do</strong> até o fim de<strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro <strong>do</strong> dito ano, por<strong>que</strong> aos vinte e <strong>se</strong>te dias dele lhe vieram novas da Paraíba, e cartas <strong>que</strong>avisaram <strong>se</strong>r<strong>em</strong> chegadas à baía da Traição cinco naus francesas com muita gente, e munições,determina<strong>do</strong>s a <strong>se</strong> ajuntar<strong>em</strong> com os Potiguares para combater<strong>em</strong>, e assolar<strong>em</strong> o forte da Paraíba,com as quais cartas vinha um grande re<strong>que</strong>rimento <strong>do</strong> capitão Morales, e mora<strong>do</strong>res, e assim aomesmo ouvi<strong>do</strong>r, como ao capitão de Pernambuco, e Câmera os foss<strong>em</strong> socorrer.Recebi<strong>do</strong> este re<strong>que</strong>rimento, fez logo Martim Leitão ajuntar no colégio o capitão dePernambuco, Câmera, oficiais da Fazenda, e os mais nobres e ricos da terra, onde por to<strong>do</strong>s foias<strong>se</strong>nta<strong>do</strong> <strong>que</strong> por não crescer mais a<strong>que</strong>la ladroeira, e sair dali algum grande exército de france<strong>se</strong>s,<strong>que</strong> junto com os Potiguares destruíss<strong>em</strong> o <strong>que</strong> estava ganha<strong>do</strong> da Paraíba, convinha acudir-lhe, e<strong>que</strong> ninguém o podia fazer <strong>se</strong>não ele, como dantes tinha feito; e assim to<strong>do</strong>s juntos lho pediram, ere<strong>que</strong>reram <strong>em</strong> nome de el-rei, e ele aceitou, ordenan<strong>do</strong> logo <strong>que</strong> <strong>se</strong> aprestass<strong>em</strong> duas naus, <strong>que</strong> nãoestavam mais no porto, e alguns caravelões, <strong>em</strong> <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> 150 homens de peleja, fora os <strong>do</strong> mar, ealguma gente de cavalo por terra, <strong>que</strong> <strong>se</strong> ajuntariam com os <strong>que</strong> estavam na Paraíba, para <strong>que</strong> lhesdess<strong>em</strong> por terra, e por mar uma boa guerra, por<strong>que</strong> estan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> os navios concertan<strong>do</strong>, e as maiscoisas necessárias, chegou nova <strong>que</strong> Francisco de Morales <strong>se</strong> <strong>que</strong>ria vir da Paraíba, lhe escreveuMartim Leitão tal não fizes<strong>se</strong>, e <strong>que</strong> chegan<strong>do</strong> lá o acomodaria, e <strong>se</strong>rviria <strong>em</strong> tu<strong>do</strong>, como s<strong>em</strong>prefizera, e quan<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> <strong>em</strong> to<strong>do</strong> <strong>se</strong> qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> vir neste t<strong>em</strong>po não trouxes<strong>se</strong> os solda<strong>do</strong>s de el-rei;mas nada bastou para deixar de <strong>se</strong> vir, e trazer os solda<strong>do</strong>s de el-rei, e persuadi<strong>do</strong> de alguns dePernambuco, invejosos, e inimigos <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>r-geral, largou o forte, e <strong>se</strong> perdeu e estragou na vilade Olinda até <strong>se</strong> ir para o reino, e por<strong>que</strong> a 20 de outubro <strong>se</strong> soube haver<strong>em</strong> chega<strong>do</strong> mais à baía daTraição outras duas naus, <strong>que</strong> eram já <strong>se</strong>te. Pelo <strong>que</strong> <strong>se</strong> re<strong>que</strong>ria melhor reca<strong>do</strong> <strong>se</strong> tomou mais uma,<strong>que</strong> chegou <strong>do</strong> reino, e posta a monte, provida de xareta, e fortalecida para poder sofrer a artilhariacomo as outras até a entrada de dez<strong>em</strong>bro, <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram a pi<strong>que</strong> todas três naus mercantes, e <strong>do</strong>isbons caravelões ou zabras, de <strong>que</strong> eram capitães Pero de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, Lopo Soares, e Tomé daRocha, Pero Lopes Lobo, capitão da ilha de Itamaracá, e Álvaro Velho Barreto.Ordena<strong>do</strong> isto, foi o ouvi<strong>do</strong>r-geral até o engenho de Filipe Cavalcante, <strong>que</strong> é <strong>se</strong>te léguas davila de Olinda, com 25 homens de cavalo bons, e despedin<strong>do</strong>-os dali para a Paraíba <strong>se</strong> tornou para avila a <strong>em</strong>barcar, prometen<strong>do</strong>-lhes <strong>primeiro</strong> <strong>se</strong>ria com eles na s<strong>em</strong>ana <strong>se</strong>guinte; e assim <strong>se</strong> foi logoao Recife, onde estiveram <strong>em</strong>barca<strong>do</strong>s 13 dias, s<strong>em</strong> poder<strong>em</strong> partir com tão grande tormenta denordeste, <strong>que</strong> dentro <strong>do</strong> rio <strong>se</strong> desamarrou uma nau, e deu à costa; e t<strong>em</strong>en<strong>do</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral atardança, quis mandar um caravelão com aviso a Paraíba, e eram tais os nordestes, <strong>que</strong> o levarams<strong>em</strong> r<strong>em</strong>édio além <strong>do</strong> cabo de Santo Agostinho à ilha de Santo Aleixo.Com este trabalho e estan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s pasma<strong>do</strong>s, e o ouvi<strong>do</strong>r-geral atribula<strong>do</strong> de não poderfazer viag<strong>em</strong>, chegou Mauro de Re<strong>se</strong>nde com grandes re<strong>que</strong>rimentos; e protestos de largar<strong>em</strong> to<strong>do</strong>stu<strong>do</strong>, <strong>se</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral não era lá até o dia de S. Tomé, por estar<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s assombra<strong>do</strong>s da muitagente francesa, e Potiguares, <strong>que</strong> quatro dias havia tinha da<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma aldeia das nossas fronteiras,cujo principal era As<strong>se</strong>nto de Pássaro, o melhor índio <strong>do</strong>s nossos, onde mataram mais de oitentapessoas, e <strong>do</strong>is Castelhanos, com o <strong>que</strong> <strong>se</strong> davam to<strong>do</strong>s por perdi<strong>do</strong>s; pelo <strong>que</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral,


90ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> o t<strong>em</strong>po lhe não dava lugar a ir por mar, determinou ir por terra, dizen<strong>do</strong> aos mais <strong>que</strong> o<strong>se</strong>guiss<strong>em</strong>, <strong>se</strong> partiu qua<strong>se</strong> só de madrugada, e no rio Tapir<strong>em</strong>a, <strong>que</strong> são nove léguas de Olinda, <strong>se</strong>achou ao <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> dia com alguns trinta e <strong>do</strong>is homens, com os quais <strong>se</strong>guiu avante, <strong>que</strong> por irassim, e os homens desproposita<strong>do</strong>s para o acompanhar<strong>em</strong>, por terra o <strong>se</strong>guiram somente estes, ecom eles chegou à nossa povoação da Paraíba, a <strong>que</strong> os mora<strong>do</strong>res chamam cidade de NossaSenhora das Neves, aos 23 de dez<strong>em</strong>bro, véspera da véspera <strong>do</strong> Natal, onde <strong>se</strong> começou logo a pôr<strong>em</strong> ord<strong>em</strong>, e aviar para haver de partir no dia <strong>se</strong>guinte, como partiu, caminho da Copaíba, onde tevepor novas <strong>que</strong> estava to<strong>do</strong> o gentio, e alguns france<strong>se</strong>s fazen<strong>do</strong>-lhes pau-<strong>brasil</strong> para a carga dasnaus, por<strong>que</strong> estorvar-lha era a maior guerra, <strong>que</strong> podia fazer assim a uns como a outros.CAPÍTULO DÉCIMO QUARTODe como o ouvi<strong>do</strong>r-geral foi da Paraíba a CopaíbaDa cidade de Nossa Senhora das Neves, onde o ouvi<strong>do</strong>r-geral Martim Leitão deixou Pero deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> por capitão <strong>em</strong> quatro jornadas, chegou a grande cerca de Penacama, <strong>que</strong> era umgrande e principal Potiguar, aonde Duarte Gomes da Silveira havia i<strong>do</strong> o outubro atrás, e depois delhe suceder muito b<strong>em</strong>, ao recolher lhe mataram oito ou dez homens, <strong>que</strong> foi a maior perda <strong>que</strong> esta<strong>em</strong>presa da Paraíba teve depois de correr por Martim Leitão, e <strong>que</strong> ele <strong>em</strong> extr<strong>em</strong>o <strong>se</strong>ntiu; por<strong>que</strong>além das guerras, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s estes anos lhes dava por sua pessoa, s<strong>em</strong>pre lhe mandava dar outrosassaltos, assim pelo dito Duarte Gomes como pelo capitão João Tavares e outras pessoas nestajornada foi infinito o trabalho, principalmente o da água, <strong>que</strong> não havia <strong>se</strong>não de muito ruins poços,pouca, e tão fe<strong>do</strong>renta, <strong>que</strong> era necessário com uma mão tapar o nariz, com a outra beber.Desta cerca marcharam para a Copaíba direitos, onde ao <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> dia pela manhã deram comoutra <strong>do</strong>s inimigos, e por o nosso gentio dar o <strong>se</strong>u urro <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> entras<strong>se</strong>, fugiram alguns, ainda<strong>que</strong> <strong>se</strong> fez incrível matança, e <strong>se</strong> tomaram 70 ou 80 vivos; aos fugi<strong>do</strong>s foram dan<strong>do</strong> alcance por umaparte, e por outra mais de uma légua até outra grande cerca, <strong>que</strong> estava despejada, na qual quis onosso gentio descansar <strong>do</strong>is dias, e assim era necessário para o grande trabalho <strong>do</strong> caminho, <strong>que</strong>tinham passa<strong>do</strong>, e por achar<strong>em</strong> ali rio de água, ainda <strong>que</strong> logo sobre ela começou de haver briga poracudir<strong>em</strong> os inimigos a defendê-la, ajuda<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s sítios, por<strong>que</strong> esta Copaíba aonde estavam é todafeita <strong>em</strong> altibaixos de montes e abismos, e contu<strong>do</strong>, contra a regra geral <strong>do</strong> Brasil, é tu<strong>do</strong> massapés,e fertilíssima; pela qual causa havia nela cinqüenta aldeias de Potiguares, todas pegadas umas nasoutras: ao outro dia pela manhã começou de recrescer a briga sobre a água, ainda <strong>que</strong> os nossostinham ord<strong>em</strong> não foss<strong>em</strong> <strong>se</strong>não juntos, e a uma hora certa a buscá-la, e a dar de beber aos cavalos,acompanha<strong>do</strong>s s<strong>em</strong>pre com 10 ou 12 arcabuzeiros de guarda, todavia cresceram muitos inimigos, etinham já feito uma caiçara sobre dia, <strong>que</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral lhes man<strong>do</strong>u desmanchar por DuarteGomes com alguma gente: e por<strong>que</strong> começaram a flechar, e <strong>se</strong> recolheram, as<strong>se</strong>ntou com o Braço<strong>que</strong> à tarde lhes lanças<strong>se</strong> uma cilada por cima, tornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> <strong>primeiro</strong> a travar a briga, <strong>em</strong> <strong>que</strong> b<strong>em</strong>ceva<strong>do</strong>s lhes dess<strong>em</strong> nas costas, e sain<strong>do</strong> a isso o Braço à tarde <strong>se</strong> alvoroçou o arraial dizen<strong>do</strong>estavam muitos inimigos sobre a água, sain<strong>do</strong> fora o ouvi<strong>do</strong>r-geral, e ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> da outra parte <strong>do</strong>rio, na ladeira, andavam dez ou <strong>do</strong>ze nossos muito aperta<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> não ousavam virar as costas, ecarregavam sobre eles muitas flechas, e pelouros, man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> <strong>se</strong>te ou oito de cavalosocorrê-los com Francisco Pereira, <strong>que</strong> só passou, e Simão Tamares, e deitaram fora os inimigos, erecolheram os nossos com um já morto, e outro qua<strong>se</strong>, e to<strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s de flechas e espingardas, eFrancisco Pereira pior, <strong>que</strong> o fez aqui como bom cavaleiro, e João Tavares foi recolher o Braço dePeixe, <strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po man<strong>do</strong>u reca<strong>do</strong> lhe acudiss<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> in<strong>do</strong> para fazer cilada aos inimigos,caíra <strong>primeiro</strong> <strong>em</strong> uma sua, e o tinham posto <strong>em</strong> aperto; com isto começou a entrar um me<strong>do</strong>


91espantoso <strong>em</strong> to<strong>do</strong>s, e à noite foi avisa<strong>do</strong> o ouvi<strong>do</strong>r-geral <strong>em</strong> <strong>se</strong>gre<strong>do</strong> por João Tavares estavammais de 20 <strong>do</strong>s mais honra<strong>do</strong>s ajuramenta<strong>do</strong>s para fugir<strong>em</strong>, ao <strong>que</strong> acudiu o ouvi<strong>do</strong>r-geral fazen<strong>do</strong>lheuma fala de mil esforços, e outras diligências, com <strong>que</strong> lhes desfez a roda, e <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntou <strong>se</strong> des<strong>se</strong>pela manhã com boa ord<strong>em</strong> nos inimigos, para o <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u a<strong>que</strong>la noite das tábuas de algumascaixas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> acharam, fazer 10 pave<strong>se</strong>s, detrás das quais os medrosos pudess<strong>em</strong> ir <strong>se</strong>guros, com o<strong>que</strong> anima<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s / deixan<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong>ima<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, como s<strong>em</strong>pre fizeram a todas as cercas, ealdeias <strong>que</strong> tomaram /, foram pela manhã buscar os inimigos, os quais estavam à vista <strong>em</strong> trêstran<strong>que</strong>iras, <strong>que</strong> eles armaram nos piores passos, umas diante das outras; e por na primeiratran<strong>que</strong>ira ou caiçara <strong>do</strong> rio haver detença pela moita resistência <strong>que</strong> acharam, passou lá o ouvi<strong>do</strong>rgeral,e dan<strong>do</strong>-lhes muita pressa, como qu<strong>em</strong> entendia <strong>que</strong> nisto estava a importância, com suachegada <strong>se</strong> levou s<strong>em</strong> nos ferir<strong>em</strong> pessoa, e com a mesma fúria r<strong>em</strong>eteram a <strong>se</strong>gunda, <strong>que</strong> eraentulhada de terra <strong>em</strong> um vale, e lançan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> uma boa manga por um outeiro acima, fican<strong>do</strong> asoutras duas no baixo; ven<strong>do</strong> os inimigos três mangas, e os braços <strong>que</strong> a meneavam, <strong>se</strong> assombraramde to<strong>do</strong>, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> na terceira cerca pararam, ainda <strong>que</strong> não subiam os nossos a ela <strong>se</strong>não de pés <strong>em</strong>ãos, e s<strong>em</strong>pre lhes custava muito, a <strong>se</strong> não ter<strong>em</strong> lança<strong>do</strong> as mangas, <strong>que</strong> foi gentil ord<strong>em</strong> <strong>do</strong>ouvi<strong>do</strong>r-geral, <strong>que</strong> nesta ocasião trabalhou muito, e nesta manhã cansou três cavalos, por<strong>que</strong> <strong>que</strong>riaver, e estar pre<strong>se</strong>nte <strong>em</strong> toda a parte; e assim os aju<strong>do</strong>u Deus, e foram <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> os inimigos mais d<strong>em</strong>eia légua, até chegar<strong>em</strong> a uma aldeia, onde fizeram grande resistência, to<strong>do</strong> por salvar<strong>em</strong> asmulheres, e filhos <strong>que</strong> ali tinham, com <strong>que</strong> o negócio esteve <strong>em</strong> peso, por<strong>que</strong> três ou quatro vezes <strong>se</strong>viu a nossa vanguarda qua<strong>se</strong> vencida, até <strong>que</strong> chegou o corpo da nossa gente com o ouvi<strong>do</strong>r-geral, ecarregan<strong>do</strong> rijo os levaram venci<strong>do</strong>s, com mais três ou quatro aldeias, <strong>que</strong> no mesmo dia lhe foramdestruin<strong>do</strong>, até <strong>se</strong> ir<strong>em</strong> apo<strong>se</strong>ntar <strong>em</strong> um alto, <strong>do</strong>nde viam trinta e tantas <strong>em</strong> menos de uma légua,<strong>que</strong> os inimigos com me<strong>do</strong> tinham despeja<strong>do</strong>, e iam arden<strong>do</strong>, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> infinitos <strong>em</strong> número, e osnossos só 140, e 500 índios flecheiros.CAPÍTULO DÉCIMO QUINTODe como destruída a Copaíba foram ao TujucupapoDaqui <strong>se</strong> partiram <strong>em</strong> busca <strong>do</strong> Tujucupapo, <strong>que</strong> o ano atrás lhe havia fugi<strong>do</strong>, e caminhan<strong>do</strong><strong>do</strong>is dias, viran<strong>do</strong> abaixo ao mar ao terceiro dia pela manhã deu a vanguarda <strong>em</strong> uma mui poderosacerca, onde pela bandeira e tambor conheceram haver france<strong>se</strong>s com os Potiguares, <strong>do</strong> <strong>que</strong> logoavisaram ao ouvi<strong>do</strong>r-geral, o qual quan<strong>do</strong> chegou achou a bandeira <strong>do</strong> capitão João Tavares, <strong>que</strong> ofez aqui tão animosamente como s<strong>em</strong>pre, por<strong>que</strong> à sua ilharga tinham morto três homens compie<strong>do</strong>sas feridas de pelouros de cadeia, <strong>que</strong> os tinham escala<strong>do</strong>s, e contu<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre sustentou a suabandeira pega<strong>do</strong> à cerca <strong>em</strong> uma fronteira, na qual ele, e o sargento Diogo Arias, espantoso solda<strong>do</strong><strong>que</strong> nesta jornada tinha recebi<strong>do</strong> 14 flechadas, ganharam cada um sua <strong>se</strong>teira ou bombardeira aosinimigos, por onde umas vezes com as espadas, outras com os arcabuzes, os faziam despejar dali.O ouvi<strong>do</strong>r, não obstan<strong>do</strong> os grandes chuveiros, e nuvens de flechas, e pelouros, <strong>que</strong> <strong>do</strong>sinimigos nunca cessavam, toman<strong>do</strong> alguns consigo, <strong>que</strong> o qui<strong>se</strong>ram <strong>se</strong>guir, e agachan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> comopodiam, chegou à cerca pela banda de baixo, <strong>que</strong> por a<strong>que</strong>le confia<strong>do</strong>s os inimigos na espessura <strong>do</strong>mato era mui fraca, e entulhada de terra e palma, e a começaram a desfazer, ainda <strong>que</strong> os inimigoslogo ali acudiram de dentro com uma espingarda, e muita flecha, com <strong>que</strong> feriram o meirinho daalçada, a Heitor Fernandes, e outros; contu<strong>do</strong> Martim Leitão foi o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> rompeu a cerca,cortan<strong>do</strong> com a espada os cipós ou vimes com <strong>que</strong> estava liada, e fazen<strong>do</strong> buraco por onde s<strong>em</strong>eteu, e posto <strong>que</strong> de boa entrada com um pau feitiço lhe feriram uma mão, de <strong>que</strong> lhe rebentou osangue pelas unhas; à vista dele, como elefante indigna<strong>do</strong>, <strong>se</strong> lançou dentro com Manuel da Costa,


92natural de Ponte de Lima, <strong>que</strong> o acompanhava, o <strong>que</strong> ven<strong>do</strong> os inimigos, derrubaram de duas ruinsflechadas a Manuel da Costa, e com outras duas deitaram a carapuça de armas fora da cabeça aoouvi<strong>do</strong>r-geral, <strong>que</strong> só lhe ficou pendurada pelo rebuço de diante, e com muitas flechadas pregadasna adarga, pôs o joelho no chão para <strong>se</strong> des<strong>em</strong>baraçar das flechas, e cobrir a cabeça, ao <strong>que</strong> acudiugolpe de gentio para o tomar<strong>em</strong> às mãos, por<strong>que</strong> o não qui<strong>se</strong>ram matar pelo conhecer<strong>em</strong>, ede<strong>se</strong>jar<strong>em</strong> levá-lo vivo para test<strong>em</strong>unha de sua vitória, e triunfo, mas só o feriram a mão tente <strong>em</strong>uma coxa; ele ven<strong>do</strong> neste último tran<strong>se</strong> da vida <strong>se</strong> levantou man<strong>que</strong>jan<strong>do</strong>, mas furiosamente, echegan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a Manuel da Costa, <strong>se</strong>u amigo, para o defender, os fez afastar, por ver<strong>em</strong> também aeste t<strong>em</strong>po entrar já outros, <strong>do</strong>s quais o <strong>primeiro</strong> foi o alcaide de Pernambuco Bartolomeu Álvares,feitora <strong>do</strong> mesmo Martim Leitão, <strong>que</strong> b<strong>em</strong> lho pagou ali, e aju<strong>do</strong>u como mui valente, e esforça<strong>do</strong>solda<strong>do</strong> <strong>que</strong> era africano.O mesmo fizeram os mais, <strong>que</strong> entraram após ele com tanto valor e esforço <strong>que</strong> foram osinimigos despejan<strong>do</strong> a cerca, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> os france<strong>se</strong>s os <strong>primeiro</strong>s: com o <strong>que</strong> gritan<strong>do</strong> os nossos dedentro vitória, entraram os de fora, uns por uma parte, outros por outra, s<strong>em</strong> tratar<strong>em</strong> mais <strong>se</strong>não de<strong>se</strong> abraçar<strong>em</strong> uns aos outros com lágrimas de contentamento da mercê <strong>que</strong> lhe Deus fez, e não<strong>se</strong>guiram muito os inimigos, por<strong>que</strong> passada a fúria to<strong>do</strong>s tinham <strong>que</strong> curar, e fazer consigo assaz,por ficar<strong>em</strong> quarenta e <strong>se</strong>te feri<strong>do</strong>s, e três mortos <strong>do</strong> nosso arraial: <strong>do</strong> contrário também ficou mortoalgum gentio, <strong>que</strong> levavam às costas, como costumam, e o alferes francês, <strong>que</strong> na cerca ficouestira<strong>do</strong> com a sua bandeira e tambor, <strong>que</strong> <strong>se</strong> levaram para a Paraíba: porém apenas <strong>se</strong> começavam acurar os feri<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> foi necessário deixá-los, por <strong>se</strong> ouvir uma grande grita, e alari<strong>do</strong> dePotiguares, <strong>que</strong> vieram de socorro a estoutros, e a vir<strong>em</strong> mais ce<strong>do</strong> um pouco espaço não houverar<strong>em</strong>édio contra eles, os quais deram ainda <strong>em</strong> alguns da nossa retaguarda, mas ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> eramfugi<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>us da cerca, e os nossos <strong>que</strong> dela vinham acudin<strong>do</strong>, também fugiram.Eram tantas, e tais as feridas, mormente de pelouros, <strong>que</strong> os france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> com os negro<strong>se</strong>stavam na cerca, tiravam, <strong>que</strong> to<strong>do</strong> o restante <strong>do</strong> dia <strong>se</strong> gastou na cura <strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s: na qual oouvi<strong>do</strong>r an<strong>do</strong>u proven<strong>do</strong> com muita vigilância, e caridade, por<strong>que</strong> para tu<strong>do</strong> ia apercebi<strong>do</strong> de botica,e por respeito deles, falta de pólvora, e outros inconvenientes <strong>que</strong> havia, <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntou <strong>que</strong>imass<strong>em</strong> opau <strong>que</strong> ali <strong>se</strong> achou, voltass<strong>em</strong> por outro caminho o <strong>se</strong>guinte dia pela manhã, como fizeram comboa ordenança, buscan<strong>do</strong> a Paraíba com assaz trabalho, guia<strong>do</strong>s pelo sol, por<strong>que</strong> ninguém sabiaaonde estava, e assim <strong>se</strong> agasalharam ao longo de um ribeiro pe<strong>que</strong>no a<strong>que</strong>la primeira noite dajornada como cada um pôde.No <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> dia de caminho marchan<strong>do</strong>, <strong>em</strong> amanhecen<strong>do</strong> os salteou o gentio por duaspartes a provar como iam, mas rebaten<strong>do</strong>-os fugiram com <strong>se</strong>u dano, e os nossos s<strong>em</strong> algum por suasjornadas chegaram à Paraíba, onde to<strong>do</strong>s foram recebi<strong>do</strong>s como mereciam.CAPÍTULO DÉCIMO SEXTODe como despedida a gente o ouvi<strong>do</strong>r-geral fez o forte de S. SebastiãoLogo na<strong>que</strong>la s<strong>em</strong>ana <strong>se</strong> aviou o ouvi<strong>do</strong>r-geral para por mar ir à baía da Traição dar nasnaus francesas, <strong>que</strong> lá estavam, e para isto tinha manda<strong>do</strong> vir caravelões com <strong>que</strong> de noite, a r<strong>em</strong>os,os determinava saltear, por já ir<strong>em</strong> faltan<strong>do</strong> as munições para naus grandes ir<strong>em</strong> de Pernambuco àParaíba; porém <strong>se</strong>n<strong>do</strong> certifica<strong>do</strong> <strong>que</strong> os france<strong>se</strong>s, por lhe haver<strong>em</strong> <strong>que</strong>ima<strong>do</strong> a carga de pau-<strong>brasil</strong>,haviam já i<strong>do</strong> com as naus vazias, despediu a gente toda, fican<strong>do</strong> ele somente com os <strong>se</strong>us oficiais,e Pedro de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e Francisco Pereira, <strong>que</strong> ainda estava mal das feridas, e no fim <strong>do</strong> mês dejaneiro de mil quinhentos e oitenta e <strong>se</strong>te <strong>se</strong> foi ao rio Tibiri, duas léguas acima da cidade, ao longoda várzea da Paraíba, fazer um forte para o engenho de açúcar de el-rei, <strong>que</strong> já estava começa<strong>do</strong>, e


93para defender a aldeia <strong>do</strong> As<strong>se</strong>nto de Pássaro, e mais fronteiras, com o <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>se</strong>gurava tu<strong>do</strong>, e <strong>se</strong>povoaria a várzea, e assim o ordenou, e fez muito <strong>em</strong> breve de c<strong>em</strong> palmos de vão, de muito grossasvigas muito juntas, e forradas de entulho de cinco palmos de largo, e de altura de nove, <strong>do</strong>nde podiapelejar a gente amparada com o muro de fora, <strong>que</strong> era mais de vinte e <strong>do</strong>is <strong>em</strong> alto, de taipa <strong>do</strong>bradade mão muito forte, e <strong>do</strong> alto vinha o teto cobrin<strong>do</strong> o andaime, e casas <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizeram a roda paraagasalho da gente, com duas grandes guaritas <strong>em</strong> revés sobradadas, e uma torre no meio comgrandes portas para o rio Tibiri.Feito este forte, <strong>que</strong> por o haver começa<strong>do</strong> dia de S. Sebastião o chamou <strong>do</strong> <strong>se</strong>u nome, eas<strong>se</strong>ntada nele a artilharia, abertos os caminhos, e tu<strong>do</strong> acaba<strong>do</strong>, como <strong>se</strong> houvera de viver ali toda asua vida, ou o fizera para si, e <strong>se</strong>us filhos, <strong>se</strong> partiu na <strong>se</strong>gunda s<strong>em</strong>ana <strong>do</strong> mês de fevereiro paraPernambuco, já achaca<strong>do</strong> de algumas febres, <strong>que</strong> com <strong>se</strong>u fervor, e incansável espírito haviapassa<strong>do</strong> <strong>em</strong> pé, e chegan<strong>do</strong> à casa <strong>se</strong> não levantou mais de uma cama os três me<strong>se</strong>s <strong>se</strong>guintes, e nãofoi muito com tantas calmas, chuvas, guerras, e trabalhos como havia padeci<strong>do</strong>.CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMODe uma grande traição, <strong>que</strong> o gentio de Sergipe fez aos homens da Bahia, e a guerra <strong>que</strong> ogoverna<strong>do</strong>r fez aos AimorésGrande contentamento recebeu o governa<strong>do</strong>r geral Manuel Teles Barreto com as boas novas<strong>do</strong> sucesso destas guerras, e conquista, por ver a boa eleição <strong>que</strong> fizera <strong>em</strong> mandar a elas o ouvi<strong>do</strong>rgeralMartim Leitão: mas como to<strong>do</strong>s os contentamentos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> são agua<strong>do</strong>s, o foi também estecom uma grande traição, e engano, <strong>que</strong> lhe fez o gentio de Sergipe, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>riam vir paraesta Bahia à <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong>s padres da Companhia de Jesus, e toman<strong>do</strong>-os por isto por intercessores, eterceiros com o governa<strong>do</strong>r, para <strong>que</strong> lhes des<strong>se</strong> solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> os acompanhass<strong>em</strong>, e defendess<strong>em</strong>no caminho de <strong>se</strong>us inimigos, <strong>se</strong> lho qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> impedir; fez o governa<strong>do</strong>r sobre isto uma junta deoficiais da Câmera, e outras pessoas discretas, onde o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> votou foi Cristóvão de Barros,prove<strong>do</strong>r-mor da Fazenda, dizen<strong>do</strong>, como experimenta<strong>do</strong> nas traições <strong>do</strong>s gentios, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhesrespondes<strong>se</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>riam vir viess<strong>em</strong> <strong>em</strong>bora, e <strong>se</strong>riam b<strong>em</strong> recebi<strong>do</strong>s, e favoreci<strong>do</strong>s <strong>em</strong> tu<strong>do</strong>,mas <strong>que</strong> lhes não davam solda<strong>do</strong>s, por<strong>que</strong> lhes não fizess<strong>em</strong> alguns agravos, como costumam, e omesmo votaram os mais experimenta<strong>do</strong>s; porém pôde tanto a importunação, e autoridade <strong>do</strong>sterceiros, alegan<strong>do</strong> a importância da salvação da<strong>que</strong>las almas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>riam vir ao grêmio daSanta Madre Igreja, <strong>que</strong> o bom governa<strong>do</strong>r lhes veio a conceder o <strong>que</strong> pediam, e lhes deu cento etrinta solda<strong>do</strong>s brancos, e mamalucos, <strong>que</strong> os acompanhass<strong>em</strong>, com os quais, e com alguns índiosdas aldeias, e <strong>do</strong>utrinas <strong>do</strong>s padres <strong>se</strong> partiram mui contentes os <strong>em</strong>baixa<strong>do</strong>res, mandan<strong>do</strong> dianteaviso aos <strong>se</strong>us <strong>que</strong> os viess<strong>em</strong> esperar ao rio Real, como vieram, e os passaram <strong>em</strong> jangadas a outraparte, onde estavam com tijupares feitos ou cabanas, <strong>em</strong> <strong>que</strong> os agasalharam, vin<strong>do</strong> as velhas àpranteá-los, <strong>que</strong> é o <strong>se</strong>u sinal de paz e amizade, e o pranto acaba<strong>do</strong> lhes administraram os nossos<strong>se</strong>us guisa<strong>do</strong>s de legumes, caças, e pesca<strong>do</strong>s, não <strong>se</strong> negan<strong>do</strong> também elas aos <strong>que</strong> as <strong>que</strong>riam, n<strong>em</strong>lho proibin<strong>do</strong> <strong>se</strong>us pais, e mari<strong>do</strong>s, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> aliás muito ciosos, <strong>que</strong> foi mui ruim sinal, e assim osignificaram alguns escravos <strong>do</strong>s brancos a <strong>se</strong>us <strong>se</strong>nhores, mas n<strong>em</strong> isto bastou para <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhes nãoentregass<strong>em</strong> de mo<strong>do</strong> como <strong>se</strong> foram suas legítimas mulheres, e nesta forma caminharam por suasjornadas mui breves, e descansa<strong>do</strong>s até Sergipe, e <strong>se</strong> po<strong>se</strong>ntaram nas suas aldeias reparti<strong>do</strong>s porsuas casas e ranchos com tanta confiança, como <strong>se</strong> estiveram nesta cidade <strong>em</strong> suas próprias casas,deixan<strong>do</strong> as armas às concubinas, e in<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a pas<strong>se</strong>ar de umas aldeias para as outras com um bordãona mão, as quais lhe entupiram os arcabuzes de pedras e betume, e toman<strong>do</strong>-lhes a pólvora <strong>do</strong>sfrascos lhos encheram de pó de carvão, e feito isto vieram uma madrugada gritan<strong>do</strong> aos nossos <strong>que</strong>


94<strong>se</strong> armass<strong>em</strong>, <strong>que</strong> vinha outro gentio <strong>se</strong>u contrário, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>que</strong> eles mesmos eram os contrários, ecomo os nossos estivess<strong>em</strong> tão descuida<strong>do</strong>s, e <strong>se</strong> não pudess<strong>em</strong> valer das armas, ali foram to<strong>do</strong>smortos como ovelhas ou cordeiros, s<strong>em</strong> ficar<strong>em</strong> vivos mais <strong>que</strong> alguns índios <strong>do</strong>s padres, <strong>que</strong>trouxeram a nova, a qual o governa<strong>do</strong>r <strong>se</strong>ntiu tanto, <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ra ir logo pessoalmente tomarvingança, e para, este efeito escreveu a Pernambuco ao capitão-mor, <strong>que</strong> então era d. Filipe deMoura, e a Pero Lopes Lobo, capitão-mor de Itamaracá, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizess<strong>em</strong> prestes com toda a gente,<strong>que</strong> pudess<strong>em</strong> trazer, para por uma parte, e por outra os combater<strong>em</strong>, posto <strong>que</strong> depois, impedi<strong>do</strong> dasua muita idade, e indisposição, lhes rescreveu <strong>que</strong> não viess<strong>em</strong>, antes foss<strong>em</strong> socorrer a Paraíba.Também neste t<strong>em</strong>po <strong>se</strong> levantou outro gentio chama<strong>do</strong> os Aimorés na capitania <strong>do</strong>s Ilhéus,<strong>que</strong> a pôs <strong>em</strong> muito aperto, <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> avisa<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r, ordenou <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> Diogo Corrêade Sande e Fernão Cabral de Ataíde, <strong>que</strong> possuíam muitos escravos, e tinham aldeias de índiosforros, a ver <strong>se</strong> lhes podiam dar com eles alguns assaltos, dan<strong>do</strong>-lhes mais os solda<strong>do</strong>s das suasguardas com <strong>se</strong>us cabos Diogo de Miranda, e Lourenço de Miranda, ambos irmãos, e castelhanos,os quais foram to<strong>do</strong>s de Juguaripe por terra ao Camamuré Tinharé, e lhes armaram muitas ciladas,mas como nunca saíam a campo a pelejar <strong>se</strong>não à traição, escondi<strong>do</strong>s pelos matos, mui poucos lhesmataram, e eles flecharam também alguns <strong>do</strong>s nossos índios.CAPÍTULO DÉCIMO OITAVODa morte <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Manuel Teles Barreto, e como ficaram <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar governan<strong>do</strong> o bispo d.Antônio Barreiros, o prove<strong>do</strong>r-mor Cristóvão de Barros, e o ouvi<strong>do</strong>r-geralComo o governa<strong>do</strong>r Manuel Teles Barreto era tão velho ainda antes de ver b<strong>em</strong> o fim destasguerras, enfermou e passou desta vida, <strong>que</strong> também é uma contínua guerra, como diz o Santo Job,<strong>que</strong>reria Deus <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> para a triunfante, <strong>do</strong>nde tu<strong>do</strong> é uma suma paz, gloria, e b<strong>em</strong>-aventurança;foi este governa<strong>do</strong>r mui amigo, e favorável aos mora<strong>do</strong>res, e o <strong>que</strong> mais esperas lhe concedeu, para<strong>que</strong> os merca<strong>do</strong>res os não executass<strong>em</strong> nas fábricas de suas fazendas, e quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> lhes iam <strong>que</strong>ixardisso os despedia asperamente, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> eles vinham a destruir a terra, levan<strong>do</strong> dela <strong>em</strong> três ouquatro anos, <strong>que</strong> cá estavam, quanto podiam, e os mora<strong>do</strong>res eram os <strong>que</strong> a con<strong>se</strong>rvavam, eacrescentavam com <strong>se</strong>u trabalho, e haviam conquista<strong>do</strong> à custa <strong>do</strong> <strong>se</strong>u sangue.Morto pois Manuel Teles, cuja morte foi no ano de mil quinhentos oitenta e <strong>se</strong>te, <strong>se</strong> abriulogo a via de el-rei, <strong>que</strong> ele próprio havia trazi<strong>do</strong>, na qual <strong>se</strong> continha <strong>que</strong> governass<strong>em</strong> por suamorte o bispo d. Antônio Barreiros, o Prove<strong>do</strong>r-mor Cristóvão de Barros, e o ouvi<strong>do</strong>r-geral; epor<strong>que</strong> este último então estava au<strong>se</strong>nte, começaram de governar os <strong>do</strong>is, toman<strong>do</strong> por <strong>se</strong>cretário oconta<strong>do</strong>r-mor da fazenda Antônio de Faria, e foi próspero o t<strong>em</strong>po <strong>do</strong> <strong>se</strong>u governo, assim pelasvitórias, <strong>que</strong> <strong>se</strong> alcançaram contra os inimigos, de <strong>que</strong> far<strong>em</strong>os menção nos capítulos <strong>se</strong>guintes,como por este t<strong>em</strong>po <strong>se</strong> abrir o comércio <strong>do</strong> rio da Prata, mandan<strong>do</strong> o bispo de Tucuman otesoureiro-mor da sua Sé a esta Bahia a buscar estudantes para ordenar, e coisas pertencentes aigreja, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> levou, e daí por diante não houve ano <strong>em</strong> <strong>que</strong> não foss<strong>em</strong> alguns navios depermissão real, ou de arribada com fazendas, <strong>que</strong> lá muito estimam, e cá o preço universal <strong>que</strong> porelas traz<strong>em</strong>.Também neste t<strong>em</strong>po e era <strong>do</strong> Senhor de mil quinhentos oitenta e <strong>se</strong>te vieram ao Brasilfundar conventos os religiosos da nossa província capucha de Santo Antônio, com o irmão <strong>frei</strong>Melchior de Santa Catarina, religioso de muita autoridade, e bom púlpito, por comissário por umbreve <strong>do</strong> <strong>se</strong>nhor Papa Xisto Quinto, e patente <strong>do</strong> nosso Reverendíssimo padre geral <strong>frei</strong> FranciscoGonzaga, <strong>que</strong> faz <strong>do</strong> breve relação no fim <strong>do</strong> <strong>livro</strong> <strong>que</strong> fez da nossa <strong>se</strong>ráfica ord<strong>em</strong>, e por vir<strong>em</strong> ainstância de Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>se</strong>nhor de Pernambuco, fizeram lá o <strong>primeiro</strong> convento, pela


95qual causa, e por termos na<strong>que</strong>la capitania quatro conventos, <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> nela os nossos capítulos, econgregações custudiais.CAPÍTULO DÉCIMO NONODe três naus inglesas, <strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po vieram à BahiaPouco t<strong>em</strong>po depois de começar<strong>em</strong> a governar o bispo, e Cristóvão de Barros, entraramsubitamente nesta Bahia duas naus, e uma zabra de ingle<strong>se</strong>s com um patacho toma<strong>do</strong>, <strong>que</strong> haviadela saí<strong>do</strong> para o rio da Prata, <strong>em</strong> <strong>que</strong> ia um merca<strong>do</strong>r espanhol chama<strong>do</strong> Lopo Vaz; tanto <strong>que</strong>chegaram, tomaram também os navios <strong>que</strong> estavam no porto, entre os quais estava uma urca deDuarte Os<strong>que</strong>r, merca<strong>do</strong>r flamengo, <strong>que</strong> aqui residia, com marinheiros flamengos, <strong>que</strong>voluntariamente lha entregaram, e <strong>se</strong> passaram aos ingle<strong>se</strong>s, e logo to<strong>do</strong>s começaram asbombardadas à cidade tão fort<strong>em</strong>ente <strong>que</strong> desanima<strong>do</strong>s, e cheios de me<strong>do</strong>, os mora<strong>do</strong>res fugiramdela para os matos; e posto <strong>que</strong> o bispo pôs guardas, e capitães nas saídas, <strong>que</strong> eram muitas, por<strong>que</strong>não estava murada, para <strong>que</strong> detivess<strong>em</strong> os homens, e deixass<strong>em</strong> sair as mulheres, muitos saíramentre elas de noite, e algum com manto mulheril, e es<strong>se</strong>s poucos <strong>que</strong> ficaram pediram ao bispofizes<strong>se</strong> o mesmo; ao <strong>que</strong> acudiu um venerável, e rico cidadão chama<strong>do</strong> Francisco de Araújo,re<strong>que</strong>ren<strong>do</strong>-lhe da parte de Deus, e de el-rei não deixas<strong>se</strong> a terra, pois não só era bispo, masgoverna<strong>do</strong>r dela, e <strong>que</strong> <strong>se</strong> a gente era fugida, ele com a sua <strong>se</strong> atrevia a defendê-la.Também veio uma mulher a cavalo, com lança e adarga, da Itapoã, repreenden<strong>do</strong> aos <strong>que</strong>encontrava, por<strong>que</strong> fugiam de suas casas, e exortan<strong>do</strong>-os para <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornass<strong>em</strong> para elas, <strong>do</strong> <strong>que</strong>eles zombavam.Neste t<strong>em</strong>po não estava Cristóvão de Barros na cidade, <strong>que</strong> andava pelos engenhos <strong>do</strong>recôncavo, tiran<strong>do</strong> uma esmola para a casa da Mi<strong>se</strong>ricórdia, de <strong>que</strong> era prove<strong>do</strong>r a<strong>que</strong>le ano, maslogo acudiu ao som das bombardadas, trazen<strong>do</strong> consigo to<strong>do</strong>s os <strong>que</strong> achava, com os quais, e comos <strong>que</strong> na cidade achou, a fortificou, repartin<strong>do</strong>-os por suas estâncias, castigan<strong>do</strong> alguns <strong>do</strong>sfugitivos por<strong>que</strong> não tornass<strong>em</strong> a fugir, e para ex<strong>em</strong>plo <strong>do</strong>s outros pôs um à vergonha no pelourinhometi<strong>do</strong> no cesto com uma roca na cinta; e por<strong>que</strong> os ingle<strong>se</strong>s <strong>se</strong> não atreveram a entrar na cidade,mas contentaram-<strong>se</strong> de balraventear pela Bahia, <strong>que</strong> é larguíssima, e de muito fun<strong>do</strong>, e onde não eratanto <strong>que</strong> pudess<strong>em</strong> chegar os navios grandes, mandaram a zabra, e as lanchas à pilhag<strong>em</strong>, ordenouCristóvão de Barros uma armada de cinco barcas, das <strong>que</strong> levam cana e lenha aos engenhos, asquais ainda <strong>que</strong> s<strong>em</strong> coberta são mui fortes e veleiras, mandan<strong>do</strong>-as <strong>em</strong>pavesar, e meter <strong>em</strong> cadauma <strong>do</strong>is berços, e solda<strong>do</strong>s arcabuzeiros com <strong>se</strong>us capitães, <strong>que</strong> eram André Fernandes Margalho,Pantaleão Barbosa, Gaspar de Freitas, Antônio Álvares Portilho, e Pedro de Carvalhaes, e porcapitania uma galé, <strong>em</strong> <strong>que</strong> ia por capitão-mor Sebastião de Faria, para <strong>que</strong> onde <strong>que</strong>r <strong>que</strong>des<strong>em</strong>barcass<strong>em</strong> os ingle<strong>se</strong>s dess<strong>em</strong> sobre eles; e assim saben<strong>do</strong> <strong>que</strong> eram i<strong>do</strong>s a Jaguará a tomarcarnes ao curral de André Fernandes Morgalho, e por os achar<strong>em</strong> já <strong>em</strong>barca<strong>do</strong>s à zabra acombateram, <strong>do</strong>nde houve mortos, e feri<strong>do</strong>s de parte a parte, e entre os mais foi um Duarte de Goesde Men<strong>do</strong>nça, <strong>que</strong> ia na galé, a qu<strong>em</strong> passaram o capacete, <strong>que</strong> tinha na cabeça, com um pelouro, elhe fez nela tão grande ferida, <strong>que</strong> esteve a perigo de morte.Também saíram outra vez na ilha de Itaparica. Donde Antônio Álvares Capara, e outrosportugue<strong>se</strong>s com muito gentio os fizeram <strong>em</strong>barcar com morte de alguns, e no mar lhe tomoutambém uma das nossas barcas um batel com quatro ingle<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> o r<strong>em</strong>avam, e mataram três, pelo<strong>que</strong> visto o pouco ganho <strong>que</strong> tinham, e <strong>que</strong> Lopo Vaz, de qu<strong>em</strong> esperavam resgate, lhes haviafugi<strong>do</strong> a na<strong>do</strong> para a cidade, levantaram as âncoras e <strong>se</strong> foram ao Chamamu, para fazer aguada,onde também o Capara lha não deixou fazer, e lhes matou oito, de <strong>que</strong> trouxe as cabeças aos


96governa<strong>do</strong>res e assim <strong>se</strong> tornaram os ingle<strong>se</strong>s para a sua terra, depois de haver<strong>em</strong> aqui esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>isme<strong>se</strong>s.CAPÍTULO VIGÉSIMODa guerra, <strong>que</strong> Cristóvão de Barros foi dar ao gentio de SergipeMuito estimou Cristóvão de Barros entrar nu governo <strong>do</strong> Brasil para poder ir vingar assim atraição, <strong>que</strong> o gentio de Sergipe fez aos homens da Bahia, de <strong>que</strong> tratamos no capítulo dezoito deste<strong>livro</strong>, como a morte de <strong>se</strong>u pai Antônio Car<strong>do</strong>so de Barros, <strong>que</strong> ali mataram, e comeram, in<strong>do</strong> parao reino com o <strong>primeiro</strong> bispo desta Bahia, como tenho conta<strong>do</strong> no capítulo terceiro <strong>do</strong> terceiro <strong>livro</strong>,e assim apeli<strong>do</strong>u por isso muitos homens desta terra, e alguns de Pernambuco, e uns e outros oacompanharam com muita vontade, por<strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> guerra tão justa, dada com licença de el-rei,esperaram trazer muitos escravos.Fez capitão da vanguarda a Antônio Fernandes, e da retaguarda a Sebastião de Faria, edeterminan<strong>do</strong> ir ao longo <strong>do</strong> mar, man<strong>do</strong>u <strong>primeiro</strong> pelo <strong>se</strong>rtão Rodrigo Martins, e ÁlvaroRodrigues, <strong>se</strong>u irmão, com 150 homens brancos, e mamalucos, e mil índios, para <strong>que</strong> levass<strong>em</strong>to<strong>do</strong>s os tapuias <strong>que</strong> de caminho pudess<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua ajuda, como de feito levaram perto de três milflecheiros e assim ven<strong>do</strong>-<strong>se</strong> com tanta gente, s<strong>em</strong> esperar por Cristóvão de Barros cometeram asaldeias <strong>do</strong>s inimigos, <strong>que</strong> tinham por a<strong>que</strong>la parte <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão, os quais foram fugin<strong>do</strong> até <strong>se</strong>ajuntar<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s, e fazer<strong>em</strong> um corpo com <strong>que</strong> lhe resistiram, e pu<strong>se</strong>ram <strong>em</strong> cerco mui estreito,<strong>do</strong>nde mandaram quatro índios dar conta a Cristóvão de Barros <strong>do</strong> perigo <strong>em</strong> <strong>que</strong> estavam, com qu<strong>em</strong>an<strong>do</strong>u apertar mais o passo, e chegan<strong>do</strong> a um alto viram um fumo, a <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u Ama<strong>do</strong>r deAguiar com alguns homens, e trouxeram quatro espias, <strong>que</strong> tomaram aos inimigos, <strong>do</strong>s quaisguia<strong>do</strong>s os nossos chegaram aos cerca<strong>do</strong>s véspera da véspera <strong>do</strong> Natal, às duas horas depois <strong>do</strong>meio-dia, os quais vistos pelos contrários fugiram logo, e levantaram o cerco, mas não tanto a <strong>se</strong>usalvo, <strong>que</strong> lhes não matass<strong>em</strong> 600, e eles a nós <strong>se</strong>is.Dali desceram a cerca de Baepeba, <strong>que</strong> era o rei, e príncipe de to<strong>do</strong> este gentio, e tinhajuntas da sua mais duas cercas, nas quais todas haveria 20 mil almas; os nossos fizeram suastrincheiras, e lhes tomaram a água, <strong>que</strong> bebiam, sobre <strong>que</strong> houve mortos, e feri<strong>do</strong>s de parte a parte,mas da sua mais.Também lhes abalroaram o lanço de uma cerca, <strong>que</strong> eles logo refizeram, e por onde estavaSebastião de Faria abalroaram outra, da qual saíram, e nos mataram um hom<strong>em</strong>, e feriram muitos,mas os nossos os fizeram retirar, matan<strong>do</strong>-lhes 300.Finalmente determinou o Baepeba concluir o negócio, e para este efeito man<strong>do</strong>u avisar osdas outras cercas, <strong>que</strong> saíss<strong>em</strong> contra os nossos para ele também sair, e colhen<strong>do</strong>-os <strong>em</strong> meio osmatar<strong>em</strong>, o qual aviso levaram três índios aventureiros por meio <strong>do</strong> nosso arraial, por<strong>que</strong> nãotinham outro caminho, às quatro horas da tarde, s<strong>em</strong> <strong>que</strong> lho pudess<strong>em</strong> impedir, mais <strong>que</strong> um deles<strong>que</strong> mataram.Ouvi<strong>do</strong> pois o mandamento <strong>se</strong> saíram das cercas, e o nosso general lhes saiu só com os decavalo, <strong>que</strong> eram 60 homens, e o pôs <strong>em</strong> fugida, não con<strong>se</strong>ntin<strong>do</strong> <strong>que</strong> os nossos os <strong>se</strong>guiss<strong>em</strong>, como<strong>que</strong>riam, por<strong>que</strong> os da cerca principal <strong>do</strong> Baepeba não lhes dess<strong>em</strong> nas costas, <strong>do</strong>nde à noite <strong>do</strong> AnoBom de mil quinhentos e noventa, ven<strong>do</strong>-<strong>se</strong> s<strong>em</strong> os das outras cercas, e s<strong>em</strong> a água, começaramtambém a fugir, in<strong>do</strong> os mais valentes diante despedin<strong>do</strong> nuvens de flechas, com <strong>que</strong> forçaram osnossos por a<strong>que</strong>la parte estavam não só a dar-lhes caminho, mas ainda <strong>em</strong> lhes ir<strong>em</strong> fugin<strong>do</strong>; porémo general atravessan<strong>do</strong>-<strong>se</strong>-lhes diante, a bra<strong>do</strong>s, e com o conto da lança os fez parar, e voltar aosinimigos até os fazer tornar à cerca, onde entran<strong>do</strong> os nossos após eles, lhes mataram 1.600, ecativaram quatro mil.


97Alcançada a vitória, e cura<strong>do</strong>s os feri<strong>do</strong>s, armou Cristóvão de Barros alguns caravelões,como faz<strong>em</strong> na África, por provisão de el-rei, <strong>que</strong> para isso tinha, e fez repartição <strong>do</strong>s cativos, e dasterras, fican<strong>do</strong>-lhe de uma coisa, e outra muito boa porção, com <strong>que</strong> fez ali uma grande fazenda decurrais de ga<strong>do</strong>, e outros a <strong>se</strong>u ex<strong>em</strong>plo fizeram o mesmo, com <strong>que</strong> veio a crescer tanto pelabondade <strong>do</strong>s pastos, <strong>que</strong> dali <strong>se</strong> provêm de bois os engenhos da Bahia e Pernambuco, e os açouguesde carne.Está Sergipe na altura de 11º graus e <strong>do</strong>is terços, por cuja barra com os batéis diantecostumam entrar os france<strong>se</strong>s com naus de mais de c<strong>em</strong> toneladas, e vinham acabar de carregar dabarra para fora, por ela não ter mais de três braças de baixa-mar; e assim ficou Cristóvão de Barrosnão só castigan<strong>do</strong> os homicidas de <strong>se</strong>u pai, mas tiran<strong>do</strong> esta colheita aos france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> ali iamcarregar suas naus de pau-<strong>brasil</strong>, algodão, e pimenta da terra, e sobretu<strong>do</strong> fran<strong>que</strong>an<strong>do</strong> o caminho dePernambuco, e mais capitanias <strong>do</strong> norte, para esta Bahia, e daqui para elas, <strong>que</strong> dantes ninguémcaminhava por terra, <strong>que</strong> o não matass<strong>em</strong>, e comess<strong>em</strong> os gentios, e o mesmo faziam aosnavegantes, por<strong>que</strong> ali começa a en<strong>se</strong>ada de Vasa-barris, onde <strong>se</strong> perd<strong>em</strong> muitos navios, por causa<strong>do</strong>s recifes <strong>que</strong> lança muito ao mar, e os <strong>que</strong> escapavam <strong>do</strong> naufrágio não escapavam, de suas mãos,e dentes, <strong>do</strong>nde hoje <strong>se</strong> caminha por terra com muita facilidade, e <strong>se</strong>gurança, e v<strong>em</strong>, e vão cada diacom suas apelações, e o mais <strong>que</strong> lhes importa, s<strong>em</strong> esperar<strong>em</strong> <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s para monção, comodantes faziam, <strong>que</strong> muitas vezes <strong>se</strong> tinha <strong>primeiro</strong> resposta de Portugal <strong>que</strong> daqui ou dePernambuco, e com <strong>se</strong>r tão boa obra esta, e digna de galardão, o <strong>que</strong> achou Cristóvão de Barros,quan<strong>do</strong> tornou para a cidade, foi achar o <strong>se</strong>u lugar ocupa<strong>do</strong> não só da prove<strong>do</strong>ria-mor da FazendaReal, de <strong>que</strong> ele havia pedi<strong>do</strong> a el-rei o tiras<strong>se</strong> para poder assistir na sua, <strong>que</strong> tinha quatro engenhosde açúcar, mas também <strong>do</strong> governo, por<strong>que</strong> estan<strong>do</strong> na dita guerra chegou Baltazar Rodrigues Soracom provisão para <strong>se</strong>rvir o cargo de prove<strong>do</strong>r-mor, <strong>em</strong> <strong>que</strong> logo o bispo o admitiu; porém <strong>que</strong>ren<strong>do</strong>logo entrar no governo, não lho con<strong>se</strong>ntiu, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> a sua provisão não falava nisto, e a outra poronde Cristóvão de Barros governava não dizia só <strong>que</strong> governas<strong>se</strong> o prove<strong>do</strong>r, como dizia a <strong>do</strong>ouvi<strong>do</strong>r-geral, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> o nomeas<strong>se</strong> por <strong>se</strong>u nome, e era graça pessoal; contu<strong>do</strong> insistiu o prove<strong>do</strong>rBaltazar Rodrigues Sora, pedin<strong>do</strong> ao bispo pu<strong>se</strong>s<strong>se</strong> o caso <strong>em</strong> disputa, como o pôs, ajuntan<strong>do</strong>-<strong>se</strong>com outros letra<strong>do</strong>s, teólogos, e juristas no Colégio da Companhia, <strong>do</strong>nde s<strong>em</strong> valer<strong>em</strong> as razões <strong>do</strong>bispo saiu Baltazar Rodrigues com a sua pela maior parte <strong>do</strong>s pareceres, e entrou na mesa <strong>do</strong>governo. Porém tu<strong>do</strong> desfez Cristóvão de Barros com sua chegada, por <strong>se</strong>r contraparte não ouvida,<strong>que</strong> estava atualmente <strong>em</strong> <strong>se</strong>rviço de el-rei, para o qual agravou Baltazar Rodrigues, e <strong>se</strong> foi com o<strong>se</strong>u agravo para o reino, <strong>do</strong>nde nunca mais tornou.CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRODe uma entrada, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fez ao <strong>se</strong>rtão <strong>em</strong> busca <strong>do</strong>s gentios,<strong>que</strong> fugiram das guerras de Sergipe e outrasAlcançada a vitória, <strong>que</strong> t<strong>em</strong>os dito no capítulo precedente, partiu-<strong>se</strong> o governa<strong>do</strong>r Cristóvãode Barros para a Bahia, e deixou Rodrigues Martins <strong>em</strong> Sergipe, para acabar de recolher o gentio,<strong>que</strong> da guerra havia fugi<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s quais <strong>se</strong> haviam passa<strong>do</strong> muitos para a outra parte <strong>do</strong> rio de S.Francisco, <strong>que</strong> é da capitania de Pernambuco, <strong>do</strong>nde também vieram logo muitos à caça deles: o<strong>primeiro</strong> foi Francisco Barbosa da Silva, <strong>do</strong> qual diss<strong>em</strong>os no capítulo vigésimo <strong>se</strong>xto <strong>do</strong> <strong>livro</strong>precedente, <strong>que</strong> veio desbarata<strong>do</strong> de outra entrada <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão, e desta lhe sucedeu pior, por<strong>que</strong> lhecustou a vida, e a quantos com ele vinham, <strong>que</strong> não sofren<strong>do</strong> os aflitos uma aflição sobre outra, e


98neles <strong>se</strong> vingaram. Outro foi Cristóvão da Rocha, <strong>que</strong> veio com quarenta homens <strong>em</strong> um caravelão,o qual com con<strong>se</strong>ntimento de Tomé da Rocha, capitão de Sergipe, <strong>se</strong> concertou com RodrigoMartins para entrar<strong>em</strong> pelo <strong>se</strong>rtão <strong>em</strong> busca deste gentio, e <strong>do</strong> mais <strong>que</strong> achas<strong>se</strong>.Haven<strong>do</strong> anda<strong>do</strong> alguns dias, e passa<strong>do</strong> o sumi<strong>do</strong>uro <strong>do</strong> rio de S. Francisco, <strong>se</strong> alojaram <strong>em</strong>casa de um <strong>se</strong>lvag<strong>em</strong> chama<strong>do</strong> Tuman, onde começaram a ter dúvidas, dizen<strong>do</strong> Cristóvão da Rocha<strong>que</strong> ele vinha com licença <strong>do</strong>s Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> de Pernambuco, s<strong>em</strong> a qual os mora<strong>do</strong>res da Bahia nãopodiam conquistar n<strong>em</strong> fazer resgates na<strong>que</strong>le <strong>se</strong>rtão, e assim haviam de melhorar nos quinhões porrazão da licença os pernambucanos, posto <strong>que</strong> eram menos <strong>em</strong> número, no <strong>que</strong> Rodrigo Martins nãoquis con<strong>se</strong>ntir, e <strong>se</strong> tornou <strong>do</strong> caminho; mas aceitou o parti<strong>do</strong> um Antônio Rodrigues de Andrade,<strong>que</strong> levava c<strong>em</strong> negros, e alguns outros brancos da Bahia, com os quais <strong>se</strong> partiu dali o capitãoCristóvão da Rocha, e por ter ouvi<strong>do</strong> <strong>que</strong> a gente <strong>do</strong> Porquinho matara quatro ou cinco homens, <strong>que</strong>lá foram com <strong>do</strong>is padres da companhia, <strong>se</strong> foi direito às suas aldeias, onde chegan<strong>do</strong> a primeira,entrou um mamaluco chama<strong>do</strong> Domingos Fernandes Nobre, pregan<strong>do</strong> <strong>que</strong> iam tomar vingança damorte <strong>do</strong>s brancos, e isto bastou para os alborotar, e pôr a to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> fugida, o <strong>que</strong> também fizerampor ver<strong>em</strong> no nosso exército cavalos, por<strong>que</strong> os t<strong>em</strong><strong>em</strong> muito.Visto isto pelo capitão, man<strong>do</strong>u reca<strong>do</strong> a outro gentio contrário, para <strong>que</strong> o viess<strong>em</strong> ajudarcontra estoutro, como o fizeram; e não hei de deixar de contar aqui o <strong>que</strong> me contou um solda<strong>do</strong>desta companhia, <strong>que</strong> fez um principal destes <strong>que</strong> vieram, o qual diz-<strong>se</strong> foi à estrebaria onde estavaum cavalo <strong>do</strong>s nossos, e as<strong>se</strong>ntan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> pôs-<strong>se</strong> a falar com ele, e dizer-lhe <strong>que</strong> o tomava porcompadre, por<strong>que</strong> tinha ouvi<strong>do</strong> dizer <strong>que</strong> os cavalos eram mui valentes na guerra, e um era tê-loshom<strong>em</strong> por amigos, para <strong>que</strong> nela o conheçam, e lhe não façam mal. Estava ali um mamaluco, <strong>que</strong>tinha cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong> cavalo, e quan<strong>do</strong> o viu tão triste, por<strong>que</strong> lhe não respondia, <strong>se</strong> lhe ofereceu paraintérprete, e fingin<strong>do</strong> <strong>que</strong> lhe falava à orelha, lhe tornou por resposta <strong>que</strong> folgava muito com suaamizade, e <strong>que</strong> ele o conheceria quan<strong>do</strong> fos<strong>se</strong> t<strong>em</strong>po; com esta resposta <strong>se</strong> afeiçoou mais o rústico, eperguntou <strong>que</strong> comia <strong>se</strong>u compadre, ou o <strong>que</strong> de<strong>se</strong>java, por<strong>que</strong> de tu<strong>do</strong> o proveria.Respondeu o mamaluco <strong>que</strong> o <strong>se</strong>u mantimento ordinário era erva e milho, mas <strong>que</strong> tambémcomia carne, e peixe, e mel, e de tu<strong>do</strong> o man<strong>do</strong>u prover abundant<strong>em</strong>ente, andan<strong>do</strong> os <strong>se</strong>us uns a<strong>se</strong>gar erva, outros a caçar, e pescar, e tirar mel <strong>do</strong>s paus, com <strong>que</strong> o intérprete <strong>se</strong> sustentava, e ocavalo engor<strong>do</strong>u tanto, <strong>que</strong> abafou, e morreu de gor<strong>do</strong>, cuja morte o rústico muito <strong>se</strong>ntiu, e oman<strong>do</strong>u prantear por sua mulher, e parentes, como costumam fazer aos defuntos <strong>que</strong> amam.Este era um <strong>do</strong>s principais, <strong>que</strong> o capitão Cristóvão da Rocha convocou para dar caça aos <strong>do</strong>Porquinho, <strong>que</strong> pela pregação <strong>do</strong> outro mamaluco andavam fugi<strong>do</strong>s com me<strong>do</strong> pelos matos.Porém um veio falar <strong>se</strong>cretamente a Diogo de Castro, solda<strong>do</strong> nosso, por <strong>se</strong>r <strong>se</strong>u amigo, econheci<strong>do</strong>, e lhe dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> espantava muito <strong>que</strong> vin<strong>do</strong> ele ali lhe qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> fazer guerra, poissabia quão amigos eram <strong>do</strong>s brancos, e <strong>se</strong> haviam mortos os <strong>que</strong> vieram com os padres dacompanhia, fora por eles dizer<strong>em</strong> mal <strong>do</strong>s mesmos padres, <strong>que</strong> não ouviss<strong>em</strong> sua pregação, por<strong>que</strong>os vinham enganar, n<strong>em</strong> es<strong>se</strong>s foram to<strong>do</strong>s, <strong>se</strong>não alguns, e não era b<strong>em</strong> <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s pagass<strong>em</strong>.Respondeu-lhe Diogo de Castro <strong>que</strong> b<strong>em</strong> inteira<strong>do</strong> estava da sua amizade, e paz antiga, n<strong>em</strong>eles vinham a <strong>que</strong>brá-la, como o mamaluco mal dis<strong>se</strong>ra, mas <strong>que</strong> só vinham <strong>em</strong> <strong>se</strong>guimento <strong>do</strong>s <strong>que</strong>lhes haviam fugi<strong>do</strong> da guerra de Sergipe, e assim lhes acon<strong>se</strong>lhava <strong>que</strong> tornass<strong>em</strong> para suas aldeias,<strong>que</strong> ele os <strong>se</strong>gurava de lhes não fazer<strong>em</strong> agravo; contu<strong>do</strong> não <strong>se</strong> deu o índio por <strong>se</strong>guro s<strong>em</strong> <strong>que</strong> opu<strong>se</strong>s<strong>se</strong> com o capitão, e lho prometes<strong>se</strong> de sua boca. E com isto foi pregar aos <strong>se</strong>us, e os reduziu<strong>em</strong> poucos dias.Vinha entre eles o Porquinho, já muito velho, e enfermo, pediu o Sacramento <strong>do</strong> Batismo, eDiogo de Castro o catequizou, e batizou, pon<strong>do</strong>-lhe por nome Manuel. N<strong>em</strong> eu <strong>se</strong>i outro b<strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>tiras<strong>se</strong> desta jornada, posto <strong>que</strong>, morto ele, <strong>se</strong> contrataram os contrários de vender os mais aosbrancos, e eles lhos compraram a troco <strong>do</strong>s resgates, <strong>que</strong> levavam, e os trouxeram amarra<strong>do</strong>s até


99certa parag<strong>em</strong> <strong>do</strong> rio de S. Francisco, onde fizeram deles partilha, levan<strong>do</strong> o capitão Cristóvão daRocha com os pernambucanos uma parte, e Antônio Rodrigues de Andrade com os da Bahia outra.Estes fizeram <strong>se</strong>u caminho pela <strong>se</strong>rra <strong>do</strong> Salitre, e trouxeram algum <strong>em</strong> cabaços para mostra,dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> era muito <strong>em</strong> quantidade, mas havia na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po ali muito gentio, e tinham mortosatraiçoadamente a Manuel de Padilha com 40 homens, <strong>que</strong> iam desta Bahia para a <strong>se</strong>rra, e por outravez a Braz Pires Meira com 70, <strong>que</strong> foram por manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Manuel Teles Barreto, e omesmo qui<strong>se</strong>ram fazer a estes, <strong>que</strong> vinham, <strong>se</strong> lhes não valera a grande vigilância com <strong>que</strong>passaram.N. B. — Este capítulo vigésimo <strong>primeiro</strong> foi copia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s aditamentos, e <strong>em</strong>endas a estaHistória <strong>do</strong> Brasil, <strong>que</strong> exist<strong>em</strong> neste Real Arquivo da Torre <strong>do</strong> Tombo.CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDODe como <strong>se</strong> continuaram as guerras da Paraíba com os Potiguares, e france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> os ajudavamFican<strong>do</strong> a capitania da Paraíba, na forma <strong>que</strong> diss<strong>em</strong>os no capítulo décimo <strong>se</strong>xto deste <strong>livro</strong>,entregue ao capitão João Tavares, começou logo a fazer um engenho não longe <strong>do</strong> de el-rei, com<strong>que</strong> corria um Diogo Correa Nunes, e pelo con<strong>se</strong>guinte os mora<strong>do</strong>res mui contentes começaramlogo a plantar as canas, <strong>que</strong> nele <strong>se</strong> haviam de moer, e a fazer suas roças / <strong>que</strong> assim chamam cá asgranjas ou quintas <strong>do</strong>s mantimentos, frutas, e mais coisas, <strong>que</strong> a terra dá.Chegou neste t<strong>em</strong>po d. Pedro de la Cueva, espanhol, <strong>que</strong> havia i<strong>do</strong> ao reino por manda<strong>do</strong> deFrutuoso Barbosa, re<strong>que</strong>rer <strong>que</strong> lhe entregass<strong>em</strong> a povoação da Paraíba, pois lhe fora dada por SuaMajestade, o qual trouxe uma provisão, para <strong>que</strong> lha entregass<strong>em</strong>, e ele ficas<strong>se</strong> por capitão dainfantaria de to<strong>do</strong>s os espanhóis, <strong>que</strong> cá haviam fica<strong>do</strong>, assim <strong>do</strong> alcaide Francisco de Castejon,como <strong>do</strong> capitão Francisco de Morales, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> logo <strong>se</strong> cumpriu, fican<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r FrutuosoBarbosa na povoação, e d. Pedro <strong>em</strong> um forte, <strong>que</strong> tinha feito Diogo Nunes Correa nas fronteiras,porém estes <strong>do</strong>is capitães / como <strong>se</strong> só o foram para <strong>se</strong> fazer<strong>em</strong> guerra um ao outro / começaramlogo a ter contendas entre si, deixan<strong>do</strong> os inimigos andar livr<strong>em</strong>ente saltean<strong>do</strong> as roças, e fazendas<strong>do</strong>s brancos, e as aldeias <strong>do</strong>s índios amigos, <strong>em</strong> tal mo<strong>do</strong>, <strong>que</strong> já não ousavam ir a pescar, n<strong>em</strong>mariscar, por<strong>que</strong> a qual<strong>que</strong>r hora <strong>que</strong> iam achavam inimigos, <strong>que</strong> os matavam, s<strong>em</strong> estes capitãesporém nisto r<strong>em</strong>édio, mais <strong>que</strong> escrever<strong>em</strong> a d. Filipe de Moura, capitão-mor de Pernambuco, e aPedro Lopes Lobo, da ilha de Itamaracá, <strong>que</strong> os socorress<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> de Itamaracá fez levan<strong>do</strong> agente, e munições, <strong>que</strong> pôde, e tanto <strong>que</strong> foi na Paraíba <strong>se</strong> ordenaram mais duas companhias, uma<strong>do</strong> capitão d. Pedro de la Cueva, com os <strong>se</strong>us solda<strong>do</strong>s espanhóis fican<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar no forteDiogo de Paiva com 15 /, outra de portugue<strong>se</strong>s, de <strong>que</strong> ia por capitão Diogo Nunes Correa; com osquais, e com a gente <strong>do</strong> Braço de Peixe, e <strong>do</strong> As<strong>se</strong>nto de Pássaro, e <strong>do</strong>is padres nossos, <strong>que</strong> os<strong>do</strong>utrinavam, <strong>se</strong> partiu Pedro Lopes Lobo a correr todas a<strong>que</strong>las fronteiras, mandan<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre sua<strong>se</strong>spias, e corre<strong>do</strong>res diante, até dar<strong>em</strong> numa aldeia grande, <strong>do</strong>nde fizeram grande matança, por osachar<strong>em</strong> descuida<strong>do</strong>s, e cativaram perto de 900 pessoas, as mais delas fêmeas, e moços, o <strong>que</strong>sabi<strong>do</strong> pelas outras comarcas <strong>se</strong> vigiavam melhor, não para <strong>se</strong> defender<strong>em</strong> mas para fugir<strong>em</strong>, eassim quan<strong>do</strong> os nossos chegavam, as achavam despovoadas, e <strong>que</strong>imaram mais de vinte aldeias,<strong>que</strong> eram as <strong>que</strong> faziam mal a gente da Paraíba, e os apertavam na forma <strong>que</strong> está conta<strong>do</strong>: e vin<strong>do</strong>por diante discorren<strong>do</strong> a uma parte, e a outra, toparam os nossos corre<strong>do</strong>res com uma cerca muitogrande, e forte por uma parte, e como a não viram b<strong>em</strong> <strong>que</strong> pela outra <strong>se</strong> encobria com o mato,vieram tão medrosos a dar a nova, <strong>que</strong> pegaram me<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s; porém Pedro Lopes, <strong>que</strong> andava játão versa<strong>do</strong> nestas guerras, depois de os exortar, e animar com muitas razões toda a noite, o dia<strong>se</strong>guinte pela manhã os repartiu <strong>em</strong> três esquadrões iguais, e man<strong>do</strong>u marchar à vista da cerca,


100<strong>do</strong>nde ven<strong>do</strong> o vagar e t<strong>em</strong>or, com <strong>que</strong> iam, <strong>se</strong> adiantou, e <strong>em</strong>braçan<strong>do</strong> a adarga, e a espada na mão<strong>se</strong> partiu para a cerca, dizen<strong>do</strong> «Siga-me qu<strong>em</strong> qui<strong>se</strong>r, e qu<strong>em</strong> não qui<strong>se</strong>r fi<strong>que</strong>, <strong>que</strong> eu só basto »,com o <strong>que</strong> tomaram to<strong>do</strong>s os mais tanto ânimo, <strong>que</strong> s<strong>em</strong> mais esperar, cometeram a cerca, e aentraram, matan<strong>do</strong>, e cativan<strong>do</strong> muitos <strong>do</strong>s inimigos s<strong>em</strong> da nossa gente perigar pessoa, posto <strong>que</strong>foram muitos flecha<strong>do</strong>s, particularmente uns moços naturais de Itamaracá, <strong>que</strong> entraram <strong>primeiro</strong>com alguns negros pela parte <strong>do</strong> mato, <strong>do</strong>nde a cerca era fraca, e feita de ramos, e esta foi também acausa de <strong>se</strong> alcançar a vitória com tanta facilidade, por<strong>que</strong> andan<strong>do</strong> os de dentro trava<strong>do</strong>s com estes,e deverti<strong>do</strong>s, não tiveram tanto encontro aos mais, <strong>que</strong> abalroaram pelas outras partes.Nesta cerca <strong>se</strong> detiveram três dias, curan<strong>do</strong> os feri<strong>do</strong>s, na qual acharam muitos mantimentosde farinha, e legumes, e muitas armas, arcos, flechas, e rodelas, e algumas espadas francesas, earcabuzes, <strong>que</strong> deixaram 15 france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> de dentro fugiram.Ao quarto dia pela manhã, <strong>se</strong> partiram para a praia, e caminharam por ela até a baía daTraição, <strong>do</strong>nde tornaram a tomar o caminho por dentro da terra até a Paraíba s<strong>em</strong> achar<strong>em</strong> encontroalgum de inimigos, <strong>que</strong> achá-lo, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> o ânimo, <strong>que</strong> levavam da vitória passada, nenhum lhepudera resistir.Chega<strong>do</strong>s à Paraíba <strong>se</strong> apo<strong>se</strong>ntou o capitão Pero Lopes Lobo na aldeia <strong>do</strong> As<strong>se</strong>nto com osnossos frades, <strong>do</strong>nde ele, e eles trataram de fazer amigo o governa<strong>do</strong>r Frutuoso Barbosa, com d.Pero de la Cueva, e enfim os fizeram abraçar, mas in<strong>do</strong>-<strong>se</strong> Pero Lopes à sua capitania de Itamaracáos ódios, e diferenças foram por diante, e pelo con<strong>se</strong>guinte a guerra <strong>do</strong>s Potiguares, s<strong>em</strong> haver qu<strong>em</strong>os reprimis<strong>se</strong>, até <strong>que</strong> el-rei man<strong>do</strong>u ir a d. Pedro para o reino, e Frutuoso Barbosa <strong>se</strong> foi por suavontade, e posto <strong>que</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar ficou André de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, estavam as coisas <strong>em</strong> tal esta<strong>do</strong>,<strong>que</strong> não pôde r<strong>em</strong>ediá-las es<strong>se</strong> pouco t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> <strong>se</strong>rviu o cargo.CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIROComo Francisco Giraldes vinha por governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil, e por não chegar, e morrer,veio d. Francisco de Souza, <strong>que</strong> foi o sétimo governa<strong>do</strong>rSaben<strong>do</strong> Sua Majestade da morte <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Manuel Teles Barreto, man<strong>do</strong>u <strong>em</strong> <strong>se</strong>ulugar Francisco Giraldes, filho de Lucas Giraldes, <strong>que</strong> no <strong>livro</strong> <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> capítulo <strong>se</strong>xto diss<strong>em</strong>os <strong>se</strong>r<strong>se</strong>nhor <strong>do</strong>s Ilhéus, e <strong>se</strong> chegara ao Brasil alguma coisa importara ao b<strong>em</strong> da<strong>que</strong>la capitania, mas pord<strong>em</strong>andar a costa mais ce<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>que</strong> convinha, e as águas da Paraíba para trás correr<strong>em</strong> muito paraas Antilhas, arribou a elas, e delas tornou para o reino, onde morreu s<strong>em</strong> entrar neste governo; comele vinha casa da relação, <strong>que</strong> era para o Brasil coisa nova na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po, mas também quis Deus<strong>que</strong> não chegass<strong>em</strong> <strong>se</strong>não quatro ou cinco des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> vinham <strong>em</strong> outros navios, <strong>do</strong>squais um <strong>se</strong>rviu de ouvi<strong>do</strong>r-geral, outro de prove<strong>do</strong>r-mor <strong>do</strong>s defuntos, e au<strong>se</strong>ntes, e por não vir ochanceler, e mais colegas, <strong>se</strong> não armou o tribunal, n<strong>em</strong> el-rei <strong>se</strong> curou então disso, <strong>se</strong>não só d<strong>em</strong>andar governa<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> foi d. Francisco de Souza, o qual chegou no ano de mil quinhentos enoventa, <strong>em</strong> <strong>do</strong>mingo da Santíssima Trindade, e com ele veio por inquisi<strong>do</strong>r ou visita<strong>do</strong>r <strong>do</strong> santoofício Heitor Furta<strong>do</strong> de Men<strong>do</strong>nça, <strong>que</strong> chegou mui enfermo com toda a mais gente da nau, excetoo governa<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> os veio curan<strong>do</strong>, e proven<strong>do</strong> <strong>do</strong> necessário, mas depois <strong>que</strong> des<strong>em</strong>barcou, e foirecebi<strong>do</strong> com as cerimônias costumadas a<strong>do</strong>eceu, e <strong>se</strong> foi curar ao Colégio <strong>do</strong>s Padres daCompanhia, onde haven<strong>do</strong> chega<strong>do</strong> ao último da vida, lhe quis Deus fazer mercê dela, e a primeirasaída <strong>que</strong> fez, ainda mal convaleci<strong>do</strong>, foi para assistir <strong>em</strong> o <strong>primeiro</strong> ato da Fé, <strong>em</strong> <strong>que</strong> o visita<strong>do</strong>r,<strong>que</strong> já estava são, publicava na Sé suas patentes, e concedia t<strong>em</strong>po de graça, e neste chegou umacaravela de Lisboa, <strong>que</strong> trouxe cartas ao governa<strong>do</strong>r da morte de sua mulher, com o <strong>que</strong> ele <strong>se</strong>resolveu <strong>em</strong> não tornar ao reino, mas ficar cá até à morte, e assim o publicava, n<strong>em</strong> o dizia


101ociosamente <strong>se</strong>não <strong>que</strong> como era prudente, e por isso chama<strong>do</strong> já de muito t<strong>em</strong>po d. Francisco dasManhas, entendeu <strong>que</strong> era boa esta para cariciar as vontades <strong>do</strong>s cidadãos, e naturais da terra fazer<strong>se</strong>cidadão, e natural com eles, e pouco aproveitara dizê-lo de palavra, <strong>se</strong> não pu<strong>se</strong>ra por obra, eassim foi o mais benquisto governa<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> houve no Brasil, junto com o <strong>se</strong>r mais respeita<strong>do</strong>, evenera<strong>do</strong>; por<strong>que</strong> com <strong>se</strong>r mui benigno, e afável con<strong>se</strong>rvara a sua autoridade, e majestadeadmiravelmente, e sobre tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> o fez mais famoso foi sua liberalidade, e magnificência, por<strong>que</strong>tratan<strong>do</strong> os mais <strong>do</strong> <strong>que</strong> hão de levar, e guardar, ele só tratava <strong>do</strong> <strong>que</strong> havia de dar, e gastar, e tãoinimigo era <strong>do</strong> infame vício da avareza, <strong>que</strong> <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> fugir dele passava muitas vezes o meio <strong>em</strong><strong>que</strong> a virtude da liberalidade consiste, e inclinava para o extr<strong>em</strong>o da prodigalidade, dava a bons, <strong>em</strong>aus, pobres, e ricos, s<strong>em</strong> lhes custar mais <strong>que</strong> pedi-lo, <strong>do</strong>nde costumava dizer <strong>que</strong> era ladrão qu<strong>em</strong>lhe pedia a capa, por<strong>que</strong> pelo mesmo caso lha levava <strong>do</strong>s ombros.Não houve igreja <strong>que</strong> não pintas<strong>se</strong>, aceitan<strong>do</strong> todas as confrarias, <strong>que</strong> lhe ofereciam, muroua cidade de taipa de pilão, <strong>que</strong> depois caiu com o t<strong>em</strong>po, e fez três ou quatro fortalezas de pedra ecal, <strong>que</strong> hoje duram; as principais, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> presídios de solda<strong>do</strong>s, e capitães pagos da Fazenda Real,são a de Santo Antônio na boca da barra e a de S. Filipe na ponta de Tapuípe, uma légua da cidade,<strong>que</strong> mais são para terror <strong>que</strong> para efeito; por<strong>que</strong> n<strong>em</strong> a cidade n<strong>em</strong> o porto defend<strong>em</strong>, por <strong>se</strong>r aBahia tão larga, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> na boca três léguas, e no recôncavo muitas; e tu<strong>do</strong> então podia fazerpor<strong>que</strong> tinha provisão de el-rei, para <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> não bastas<strong>se</strong> o dinheiro <strong>do</strong>s dízimos, <strong>que</strong> é só o<strong>que</strong> cá <strong>se</strong> gasta a el-rei, o pudes<strong>se</strong> tomar de <strong>em</strong>préstimo de qual<strong>que</strong>r outra parte, e assim houveocasião <strong>em</strong> <strong>que</strong> tomou um cruza<strong>do</strong> à conta <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia de pagar <strong>do</strong>s direitos de cada caixão deaçúcar nas alfândegas de Portugal, e algum dinheiro <strong>do</strong>s defuntos, <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia de passar por letraaos herdeiros au<strong>se</strong>ntes; e de uma nau <strong>que</strong> aqui arribou in<strong>do</strong> para a Índia, chamada S. Francisco,tomou a Diogo Dias Queri<strong>do</strong>, merca<strong>do</strong>r, 30 mil cruza<strong>do</strong>s, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> el-rei man<strong>do</strong>u pagar <strong>em</strong>Portugal de sua Real Fazenda: porém a nenhum outro governa<strong>do</strong>r a passou depois tão ampla, antesos apertou tanto, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> dividas velhas de el-rei pod<strong>em</strong> pagar s<strong>em</strong> nova provisão, n<strong>em</strong> fazeralguma despesa extraordinária; o motivo <strong>que</strong> el-rei teve para alargar tanto a mão a d. Francisco foias guerras da Paraíba, e pelos muitos corsários <strong>que</strong> então cursavam esta costa <strong>do</strong> Brasil, comover<strong>em</strong>os nos capítulos <strong>se</strong>guintes.CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTODa jornada, <strong>que</strong> Gabriel Soares de Souza fazia às minas <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão, <strong>que</strong> a morte lhe atalhouEra Gabriel Soares de Souza um hom<strong>em</strong> nobre <strong>do</strong>s <strong>que</strong> ficaram casa<strong>do</strong>s nesta Bahia, dacompanhia de Francisco Barreto quan<strong>do</strong> ia à conquista de Menopotapa, de qu<strong>em</strong> tratei no capítulodécimo terceiro <strong>do</strong> <strong>livro</strong> terceiro. Este teve um irmão, <strong>que</strong> an<strong>do</strong>u pelo <strong>se</strong>rtão <strong>do</strong> Brasil três anos,<strong>do</strong>nde trouxe algumas mostras de ouro, prata, e pedras preciosas, com <strong>que</strong> não chegou por morrer àtornada, c<strong>em</strong> léguas desta Bahia, mas enviou-as a <strong>se</strong>u irmão, <strong>que</strong> com elas <strong>se</strong> foi depois de passa<strong>do</strong>salguns anos à Corte, e nela gastou outros muitos <strong>em</strong> <strong>se</strong>us re<strong>que</strong>rimentos, até <strong>que</strong> el-rei o despachou,e <strong>se</strong> partiu de Lisboa <strong>em</strong> uma urca flamenga chamada Grifo Doura<strong>do</strong> a 7 de abril de 1590 comtrezentos e <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta homens, e quatro religiosos carmelitas, um <strong>do</strong>s quais era <strong>frei</strong> Jerônimo deCanavazes, <strong>que</strong> depois foi <strong>se</strong>u Provincial.Avistaram esta costa <strong>em</strong> 15 de junho, e por não conhecer<strong>em</strong> a parag<strong>em</strong>, <strong>que</strong> era a en<strong>se</strong>ada deVasa-barris, lançaram ferro, mas era tão forte o vento sul, e corr<strong>em</strong> ali tanto as águas, <strong>que</strong> <strong>se</strong><strong>que</strong>braram duas amarras, e <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> entrar por con<strong>se</strong>lho de um francês chama<strong>do</strong> Honorato, <strong>que</strong>veio à terra com <strong>do</strong>is índios <strong>em</strong> uma jangada, e lhes facilitou a entrada, tocou a nau e deu tantaspancadas, <strong>que</strong> lhe saltou o l<strong>em</strong>e fora, e arrombou, pelo <strong>que</strong> alguns <strong>se</strong> lançaram a nadar, e <strong>se</strong>


102afogaram nas ondas; os mais saíram <strong>em</strong> uma <strong>se</strong>tia, <strong>que</strong> lhes man<strong>do</strong>u Tomé da Rocha, capitão deSergipe, e tiraram alguma fazenda sua, e de el-rei, a qual man<strong>do</strong>u Gabriel Soares de Souza trazer aesta Bahia <strong>em</strong> a mesma <strong>se</strong>tia com <strong>do</strong>ze solda<strong>do</strong>s, de <strong>que</strong> veio por cabo Francisco Vieira, e por pilotoPero de Paiva, e Antônio Apeba, vin<strong>do</strong> ele por terra com os mais <strong>em</strong> cinco companhias, de <strong>que</strong> fezcapitães a Rui Boto de Souza, Pedro da Cunha de Andrade, Gregório Pinheiro, sobrinho <strong>do</strong> bispo d.Antônio Pinheiro, Lourenço Varela, e João Peres Galego. Fez também <strong>se</strong>u mestre de campo a Juliãoda Costa, e sargento maior a Julião Coelho.Chegaram a esta cidade, e foram b<strong>em</strong> recebi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r d. Francisco de Souza, <strong>que</strong>lhe fez dar a execução as provisões, <strong>que</strong> trazia de Sua Majestade para levar das aldeias <strong>do</strong>s padresda companhia 200 índios flecheiros, e os brancos <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> ir, com os quais <strong>se</strong> partiu para suafazenda de Jaguaripe, e aí reformou duas companhias, por Pero da Cunha, e Gregório Pinheiro não<strong>que</strong>rer ir na jornada, e deu uma a João Hom<strong>em</strong>, filho de Gracia da Vila, outra a Francisco Zorrilha.Foram por capelães o cônego Jacome de Queiroz, e Manuel Álvares, <strong>que</strong> depois foi vigário deNossa Senhora <strong>do</strong> Socorro.Partiram de Jaguaripe, e chegaram a <strong>se</strong>rra de Quareru, <strong>que</strong> são 50 léguas, onde fizeram umafortaleza de <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta palmos de vão com suas guaritas nos cantos, como el-rei mandava <strong>que</strong> <strong>se</strong>fizes<strong>se</strong> a cada 50 léguas.Aqui fizeram os mineiros fundição de pedra de uma beta, <strong>que</strong> <strong>se</strong> achou na <strong>se</strong>rra, e <strong>se</strong> tirouprata, mas o general a man<strong>do</strong>u <strong>se</strong>rrar; e deixan<strong>do</strong> ali 12 solda<strong>do</strong>s com um Luiz Pinto Africano porcabo deles, <strong>se</strong> foi com os mais outras 50 léguas, onde nasce o Rio de Paraguaçu, a fazer outrafortaleza, na qual pelas águas <strong>se</strong>r<strong>em</strong> ruins, e os mantimentos piores, <strong>que</strong> eram cobras, e lagartos,a<strong>do</strong>eceram muitos, e entre eles o mesmo Gabriel Soares, <strong>que</strong> morreu <strong>em</strong> poucos dias no mesmolugar, pouco mais ou menos, onde <strong>se</strong>u irmão havia faleci<strong>do</strong>.Foi <strong>se</strong>pulta<strong>do</strong> na fortaleza, <strong>que</strong> fazia, com muito <strong>se</strong>ntimento <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us, e dela <strong>se</strong> vieram paraprimeira, <strong>que</strong> tinha melhores ares, e águas, <strong>do</strong>nde avisou o mestre de campo Julião da Costa aogoverna<strong>do</strong>r d. Francisco de Souza <strong>do</strong> <strong>que</strong> havia sucedi<strong>do</strong>, e ele os man<strong>do</strong>u recolher a esta cidade.Vieram pela cachoeira, <strong>do</strong>nde os foi Diogo Lopes Ulhoa buscar, e depois de os ter nos <strong>se</strong>u<strong>se</strong>ngenhos oito dias mui regala<strong>do</strong>s, os man<strong>do</strong>u nas suas barcas ao governa<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> os não recebeu, eproveu com menos liberalidade, gastan<strong>do</strong> com eles de sua fazenda mais de <strong>do</strong>is mil cruza<strong>do</strong>s.O intento <strong>que</strong> Gabriel Soares levava nesta jornada era chegar ao Rio de S. Francisco, edepois por ele até a lagoa Dourada, <strong>do</strong>nde diz<strong>em</strong> <strong>que</strong> t<strong>em</strong> <strong>se</strong>u nascimento, e para isto levava porguia um índio por nome Guaraci, <strong>que</strong> <strong>que</strong>r dizer Sol, o qual também <strong>se</strong> lhe pôs, e morreu nocaminho, fican<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> as minas obscuras, até <strong>que</strong> Deus verdadeiro Sol <strong>que</strong>ira manifestá-las.Os ossos de Gabriel Soares man<strong>do</strong>u <strong>se</strong>u sobrinho Bernar<strong>do</strong> Ribeiro buscar, e estão<strong>se</strong>pulta<strong>do</strong>s <strong>em</strong> S. Bento com um título na <strong>se</strong>pultura, <strong>que</strong> declarou <strong>em</strong> <strong>se</strong>u testamento pu<strong>se</strong>s<strong>se</strong>, e otítulo é:Aqui jaz um peca<strong>do</strong>r.E não <strong>se</strong>i eu <strong>que</strong> outra mina ele nos pudera descobrir de mais verdade, <strong>se</strong> vivera, pois comoafirma o Evangelista S. João, <strong>se</strong> dis<strong>se</strong>rmos <strong>que</strong> não t<strong>em</strong>os peca<strong>do</strong>, mentimos, e não há <strong>em</strong> nósverdade.N. B. — Este capítulo vigésimo quarto foi copia<strong>do</strong> das adições, e <strong>em</strong>endas desta História <strong>do</strong>Brasil de <strong>frei</strong> Salva<strong>do</strong>r, porém o capítulo vigésimo quarto da dita História, é o <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>se</strong>gue; <strong>que</strong> nas<strong>em</strong>endas é o vigésimo quinto.


103CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTODe como veio Feliciano Coelho de Carvalho governar a Paraíba,e foi continuan<strong>do</strong> com as guerras delaNo ano de 1591 no mês de maio chegou a Pernambuco Feliciano Coelho de Carvalho, fidalgo, <strong>que</strong> <strong>se</strong> criou d<strong>em</strong>oço na África, bom cavalheiro, e de bom con<strong>se</strong>lho, o qual mandan<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u fato por mar, <strong>se</strong> partiu por terra ao <strong>se</strong>ugoverno da Paraíba, e achou a cidade posta <strong>em</strong> tanto aperto com os contínuos assaltos, <strong>que</strong> os Potiguares faziam nassuas roças e arrebaldes, <strong>que</strong> determinou de correr a terra, e enxotá-los dela, e para isto pediu a Pero Lopes, capitão-morda ilha de Itamaracá, <strong>que</strong> o ajudas<strong>se</strong> com sua pessoa, e gente, como fez como cinqüenta homens brancos de pé e decavalo, e trezentos negros, e assim <strong>se</strong> partiram ambos <strong>em</strong> muita conformidade, levan<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r da Paraíba ogentio Tobajar, e os mais brancos, <strong>que</strong> pôde, reparti<strong>do</strong>s uns, e outros <strong>em</strong> companhias, com suas caixas e bandeiras, elogo deram com uma aldeia grande, <strong>que</strong> levavam espiada, onde posto <strong>que</strong> acharam os inimigos descuida<strong>do</strong>s, nãodeixaram de fazer rosto aos da nossa vanguarda, travan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> entre uns e outros uma grande escaramuça, por<strong>que</strong> oscontrários cuidavam <strong>que</strong> não era a gente mais, porém, depois <strong>que</strong> viram os de cavalo, e mais de pé, <strong>que</strong> iam chegan<strong>do</strong>,começaram a virar as costas, posto <strong>que</strong> tarde, por<strong>que</strong> o nosso exército estava já to<strong>do</strong> junto, e mataram tantos, <strong>que</strong> erapiedade ver depois tantos corpos mortos, e aos mais <strong>que</strong> fugiram foi <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> a nossa vanguarda, não s<strong>em</strong> resistência d<strong>em</strong>uitas flechadas, <strong>que</strong> iam tiran<strong>do</strong>, por<strong>que</strong> tinham costas <strong>em</strong> outra aldeia, <strong>que</strong> distava destoutra um quarto de légua, paraa qual <strong>se</strong> iam retiran<strong>do</strong>, <strong>do</strong>nde saíram muitos a socorrê-los, e fizeram parar os nossos, jogan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> de parte a parte muitasflechadas, e ferin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> muitos, até <strong>que</strong> chegou o capitão Martim Lopes Lobo, filho de Pero Lopes, com <strong>do</strong>is homensmais de cavalo, e 20 arcabuzeiros, e alguns negros, com <strong>que</strong> os nossos cobran<strong>do</strong> ânimo r<strong>em</strong>eteram com fúria, e oscontrários com me<strong>do</strong> <strong>se</strong> espalharam pelos matos, dan<strong>do</strong>-lhes lugar <strong>que</strong> entrass<strong>em</strong> na aldeia, e fizess<strong>em</strong> tal matança nasmulheres, meninos, e velhos, <strong>que</strong> nela ficaram, <strong>que</strong> só um foi toma<strong>do</strong> vivo, por <strong>se</strong> meter debaixo <strong>do</strong> cavalo <strong>do</strong> capitãoMartim Lopes, e ele o defender, para <strong>se</strong> saber da determinação <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, e gentio, e neste t<strong>em</strong>po...N. B. — O resto deste capítulo vigésimo quarto não está concluí<strong>do</strong>, pois lhe faltam folhas,como <strong>se</strong> vê na página <strong>se</strong>guinte <strong>do</strong> Msc., a qual parece <strong>se</strong>r parte <strong>do</strong> capítulo trigésimo, visto o <strong>que</strong> <strong>se</strong><strong>se</strong>gue <strong>se</strong>r o capítulo trigésimo <strong>primeiro</strong>, haven<strong>do</strong> portanto um salto de <strong>se</strong>is capítulos.Parte <strong>do</strong> capítulo <strong>que</strong> parece <strong>se</strong>r o trigésimo... manda<strong>do</strong> pedir socorro, trazen<strong>do</strong> <strong>em</strong> sua companhia a d. Jerônimo de Almeida, <strong>que</strong> poucos diashavia chega<strong>do</strong> de Angola, e outros muitos cavaleiros, <strong>que</strong> havia na capitania, os quais ficaram to<strong>do</strong>sadmira<strong>do</strong>s de ouvir <strong>que</strong> tão poucos <strong>se</strong> defendess<strong>em</strong> de tantos, e os ofendess<strong>em</strong> de maneira, <strong>que</strong> estádito, e por não <strong>se</strong>r<strong>em</strong> já necessários daí a alguns dias <strong>se</strong> tornaram para Pernambuco, mas não deixoude resultar grande proveito deste socorro; por<strong>que</strong> ven<strong>do</strong> uma índia Potiguar de um solda<strong>do</strong> casa<strong>do</strong>,<strong>que</strong> andava já <strong>do</strong>méstica entre os nossos, tanta gente de cavalo, o foi com grande espanto contar à<strong>se</strong>nhora, a qual lhe respondeu: «Isto <strong>que</strong> tu vês é nada, sabe <strong>que</strong> ainda há de vir muita mais, parair<strong>em</strong> matar to<strong>do</strong>s teus parentes, e a quantos france<strong>se</strong>s andam entre eles, <strong>se</strong>não olha tu quão poucossolda<strong>do</strong>s no Cabedelo desbarataram a gente de tantos navios, e por aqui verás <strong>se</strong> estes, <strong>que</strong> vês,for<strong>em</strong> à <strong>se</strong>rra, e os mais, <strong>que</strong> hão de vir, <strong>se</strong> deixaram lá coisa viva.» Esta Potiguar ouvin<strong>do</strong> istofugiu para os <strong>se</strong>us, ainda antes <strong>que</strong> Manuel Mascarenhas <strong>se</strong> partis<strong>se</strong> da Paraíba, e os achouaperceben<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para vir<strong>em</strong> dar sobre os nossos com ajuda de Monsieur Rifot, de qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong>osconta<strong>do</strong> o mal <strong>que</strong> fez por esta costa, o qual escreveu uma carta de desafio a Feliciano Coelho, <strong>em</strong>etida <strong>em</strong> um cabaço lha man<strong>do</strong>u pôr <strong>em</strong> um caminho, <strong>do</strong>nde os nossos espias a trouxeram, e posto<strong>que</strong> Feliciano Coelho lho man<strong>do</strong>u pôr outra vez no mesmo posto onde foi acha<strong>do</strong> s<strong>em</strong> outraresposta mais <strong>que</strong> pólvora e pelouros dentro, significan<strong>do</strong> <strong>que</strong> com isto <strong>se</strong> havia de defender, <strong>em</strong>an<strong>do</strong>u outra vez pedir socorro <strong>em</strong> Pernambuco melhor foi desviá-los a negra <strong>que</strong> não viess<strong>em</strong>,dizen<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> <strong>se</strong>riam to<strong>do</strong>s mortos; por<strong>que</strong> eram inumeráveis os portugue<strong>se</strong>s de pé, e de cavalo,<strong>que</strong> vieram de Pernambuco, o <strong>que</strong> ouvi<strong>do</strong> por Rifot, man<strong>do</strong>u pôr <strong>em</strong> esquadrão to<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>us


104france<strong>se</strong>s, e Potiguares, <strong>que</strong> eram infinitos, e lhe perguntou <strong>se</strong> <strong>se</strong>riam os portugue<strong>se</strong>s tantos comoa<strong>que</strong>les, e a negra respondeu <strong>que</strong> mais eram, e toman<strong>do</strong> <strong>se</strong>is ou <strong>se</strong>te punha<strong>do</strong>s de areia a lançou parao ar, dizen<strong>do</strong>-lhe <strong>que</strong> ainda eram mais <strong>que</strong> a<strong>que</strong>les grãos de areia, com <strong>que</strong> os parentes <strong>se</strong>começaram a acobardar de mo<strong>do</strong>, <strong>que</strong> o Rifot lhes dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> para tanta gente era necessário irbuscar mais à França e assim <strong>se</strong> despediu com os <strong>se</strong>us para o rio Grande, onde tinha as naus, e <strong>se</strong><strong>em</strong>barcaram nelas para sua terra, e os Potiguares <strong>se</strong> espalharam pelas suas mui cheios de me<strong>do</strong>,como tu<strong>do</strong> constou por dito de três, <strong>que</strong> os nossos corre<strong>do</strong>res tomaram <strong>em</strong> uma roça.CAPÍTULO TRIGÉSIMO PRIMEIRODe como Manuel Mascarenhas Hom<strong>em</strong> foi fazer a fortaleza <strong>do</strong> rio Grande,e <strong>do</strong> socorro <strong>que</strong> lhe deu Feliciano Coelho de CarvalhoInforma<strong>do</strong> Sua Majestade das coisas da Paraíba, e <strong>que</strong> to<strong>do</strong> o dano lhe vinha <strong>do</strong> rio Grande, onde os france<strong>se</strong>siam comerciar com os Potiguares, e dali saíam também a roubar os navios, <strong>que</strong> iam, e vinham de Portugal, toman<strong>do</strong>lhesnão só as fazendas, mas as pessoas, e venden<strong>do</strong>-as aos gentios, para <strong>que</strong> as comess<strong>em</strong>, <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> atalhar a tãograndes males, escreveu a Manuel Mascarenhas Hom<strong>em</strong>, capitão-mor <strong>em</strong> Pernambuco, encomendan<strong>do</strong>-lhe muito <strong>que</strong>logo fos<strong>se</strong> lá fazer uma fortaleza, e povoação, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> fizes<strong>se</strong> com con<strong>se</strong>lho e ajuda de Feliciano Coelho, a qu<strong>em</strong>também escreveu, e ao governa<strong>do</strong>r geral d. Francisco de Souza, <strong>que</strong> para isto lhe des<strong>se</strong> provisões, e poderes necessáriospara gastar da sua Real Fazenda tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> lhe fos<strong>se</strong> necessário, como <strong>em</strong> efeito o governa<strong>do</strong>r lhe passou, e lhe pôslogo tu<strong>do</strong> <strong>em</strong> execução com muita diligência, e cuida<strong>do</strong>, mandan<strong>do</strong> uma armada de <strong>se</strong>is navios e cinco caravelões, <strong>que</strong>o foss<strong>em</strong> esperar à Paraíba, na qual ia por capitão-mor Francisco de Barros Rego, por almirante Antônio da CostaValente, e por capitães <strong>do</strong>s outros navios João Paes Barreto, Francisco Camelo, Pero Lopes Camelo, e Manuel da CostaCalheiros.Por terra com o capitão-mor Manuel Mascarenhas foram três companhias de gente de pé, de<strong>que</strong> eram capitães Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>se</strong>u irmão, e Antônio LeitãoMirim, e uma de cavalo, <strong>que</strong> guiava Manuel Leitão: os quais chega<strong>do</strong>s uns e outros à Paraíba, <strong>se</strong>ordenou <strong>que</strong> Manuel Mascarenhas fos<strong>se</strong> por mar ao rio Grande, na armada <strong>que</strong> veio dePernambuco, e levas<strong>se</strong> consigo o Padre Gaspar de S. João Peres, da companhia, por <strong>se</strong>r grandearquiteto, e engenheiro, para traçar a fortaleza, com <strong>se</strong>u companheiro o padre L<strong>em</strong>os, e o nossoirmão <strong>frei</strong> Bernardino das Neves, por <strong>se</strong>r muito perito na língua brasílica, e mui respeita<strong>do</strong> <strong>do</strong>sPotiguares, assim por essa causa, como por respeito de <strong>se</strong>u pai o capitão João Tavares, <strong>que</strong> entreeles por <strong>se</strong>u esforço havia si<strong>do</strong> mui t<strong>em</strong>i<strong>do</strong>, o qual levou por companheiro outro sacer<strong>do</strong>te da nossaprovíncia chama<strong>do</strong> <strong>frei</strong> João de S. Miguel; e <strong>que</strong> Feliciano Coelho fos<strong>se</strong> por terra com os quatrocapitães, e companhias da gente de Pernambuco, e com outra da Paraíba, de <strong>que</strong> ia por capitãoMiguel Álvares Lobo, <strong>que</strong> por to<strong>do</strong>s faziam soma de 188 homens de pé e de cavalo, fora o nossogentio, <strong>que</strong> eram das aldeias de Pernambuco 90 flecheiros, e das da Paraíba 730, com <strong>se</strong>usprincipais, <strong>que</strong> os guiavam, o Braço de Peixe, o As<strong>se</strong>nto de Pássaro, o Pedra Verde, o Mangue, e oCar<strong>do</strong> Grande, e este exército começou a marchar das fronteiras da Paraíba a 17 de dez<strong>em</strong>bro de1597, in<strong>do</strong> as espias, e corre<strong>do</strong>res diante <strong>que</strong>iman<strong>do</strong> algumas aldeias, <strong>que</strong> os Potiguares despejavamcom me<strong>do</strong>, como confessaram alguns, <strong>que</strong> foram toma<strong>do</strong>s, mas aos <strong>que</strong> fugiam os inimigos nãofugiu a <strong>do</strong>ença das bexigas, <strong>que</strong> é a peste <strong>do</strong> Brasil, antes deu tão fort<strong>em</strong>ente <strong>em</strong> os nossos índios, ebrancos naturais da terra, <strong>que</strong> cada dia morriam de dez a <strong>do</strong>ze, pelo <strong>que</strong> foi força<strong>do</strong> ao governa<strong>do</strong>rFeliciano Coelho fazer volta à Paraíba para <strong>se</strong> curar<strong>em</strong>, e os capitães para Pernambuco com a suagente, <strong>que</strong> pôde andar, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> cessan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>ença tornariam, para <strong>se</strong>guir<strong>em</strong> a viag<strong>em</strong>, exceto ocapitão Jerônimo da Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> um caravelão, e foi ter ao rio Grande com<strong>se</strong>u capitão-mor Manuel de Mascarenhas, o qual havia i<strong>do</strong> na armada, como já diss<strong>em</strong>os, e naviag<strong>em</strong> teve vista de <strong>se</strong>te naus de france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> estavam no porto <strong>do</strong>s Búzios contratan<strong>do</strong> com os


105Potiguares, os quais como viram a armada picaram as amarras, e <strong>se</strong> furam, e a nossa não a <strong>se</strong>guiupor <strong>se</strong>r tarde, e não perder a viag<strong>em</strong>.No dia <strong>se</strong>guinte pela manhã man<strong>do</strong>u Manuel Mascarenhas <strong>do</strong>is caravelões descobrir o rio, oqual descoberto, e <strong>se</strong>guro entrou a armada à tarde guiada pelos marinheiros <strong>do</strong>s caravelões, <strong>que</strong> otinham sonda<strong>do</strong>, ali des<strong>em</strong>bacaram, e <strong>se</strong> trincheiraram de varas de mangues para começar<strong>em</strong> a fazero forte, e <strong>se</strong> defender<strong>em</strong> <strong>do</strong>s Potiguares, <strong>que</strong> não tardaram muitos dias <strong>que</strong> não viess<strong>em</strong> umamadrugada infinitos, acompanha<strong>do</strong>s de 50 france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> haviam fica<strong>do</strong> das naus <strong>do</strong> porto <strong>do</strong>sBúzios, e outros <strong>que</strong> aí estavam casa<strong>do</strong>s com potiguares, os quais, rodean<strong>do</strong> a nossa cerca, ferirammuitos <strong>do</strong>s nossos com pelouros e flechas, <strong>que</strong> tiravam por entre as varas, entre os quais foi umcapitão Rui de Aveiro no pescoço com uma flecha, e o <strong>se</strong>u sargento, e outros, com o <strong>que</strong> nãodesmaiaram antes como elefantes à vista de sangue mais <strong>se</strong> assanharam, e <strong>se</strong> defenderam, eofenderam os inimigos tão animosamente <strong>que</strong> levantaram o cerco, e <strong>se</strong> foram, depois veio um índiochama<strong>do</strong> Surupiba pelo rio abaixo <strong>em</strong> uma jangada de juncos, apregoan<strong>do</strong> paz, o qual prenderam<strong>em</strong> ferros, e com estar preso mostrava tanta arrogância, <strong>que</strong> ven<strong>do</strong> o aparato com <strong>que</strong> Manuel deMascarenhas <strong>se</strong> tratava, e comia, dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> o não haviam de tratar menos, e assim lhe dava umtratamento, e por persuasão <strong>do</strong>s padres da companhia, posto <strong>que</strong> contradizen<strong>do</strong> o nosso irmão <strong>frei</strong>Bernardino, <strong>que</strong> conhecia b<strong>em</strong> suas traições e enganos, enfim o soltou, e man<strong>do</strong>u, prometen<strong>do</strong>-lhe oíndio de trazer to<strong>do</strong> o gentio de paz, para o <strong>que</strong> lhe deu vesti<strong>do</strong>s, e outras coisas <strong>que</strong> pudes<strong>se</strong> dar aos<strong>se</strong>us, não só quan<strong>do</strong> foi, mas ainda depois por duas vezes, <strong>que</strong> lhas man<strong>do</strong>u pedir, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> já ostinha apazigua<strong>do</strong>s, e vinham por caminho a entregar-<strong>se</strong>, porém in<strong>do</strong> <strong>do</strong>is batéis nossos com 20homens, de <strong>que</strong> ia por cabo Bento da Rocha, a cortar uns mangues, estan<strong>do</strong> meti<strong>do</strong>s <strong>em</strong> umaen<strong>se</strong>ada, e começan<strong>do</strong> a fazer a madeira, os cercaram por entre os mangues, para os tomar<strong>em</strong> nabaixa-mar, quan<strong>do</strong> os batéis ficass<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>co, onde houveram de <strong>se</strong>r to<strong>do</strong>s mortos, <strong>se</strong> um <strong>do</strong>sbatéis, <strong>que</strong> era maior, <strong>se</strong> não fora pôr de largo, aonde os descobriu, e deu aviso ao outro para <strong>que</strong> <strong>se</strong><strong>em</strong>barcas<strong>se</strong> a nossa gente à pressa, e <strong>se</strong> alargas<strong>se</strong> <strong>do</strong>s inimigos, os quais <strong>em</strong> continente <strong>se</strong> saíram da<strong>em</strong>boscada, e <strong>se</strong> foram meten<strong>do</strong> pela água a tomar-lhes uma restinga, <strong>que</strong> estava no meio <strong>do</strong> rio,<strong>do</strong>nde <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram a ralhar, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> já os tinham na rede, entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong> o batel ficaria <strong>em</strong><strong>se</strong>co, mas quis Deus dar-lhe um canal por onde saíram, e foram dar aviso ao Mascarenhas, <strong>que</strong> <strong>se</strong>acabou de de<strong>se</strong>nganar de suas traições, e enganos, e muito mais depois <strong>que</strong> viu daí a poucos dias osmontes cobertos de infinidade deles, <strong>que</strong> desciam com mão armada a combater outra vez a nossacerca, na qual os não quis esperar, n<strong>em</strong> <strong>que</strong> chegass<strong>em</strong> a pôr-lhe cerco, antes os foi esperar aocaminho, e lançan<strong>do</strong> uma manga por entre o mato, os entrou com tanto ânimo, <strong>que</strong> fez fugir os daretaguarda, e <strong>se</strong>guiu os da vanguarda até o rio, e ainda a na<strong>do</strong> pela água os foram os nossos índiosTabajaras matan<strong>do</strong>, s<strong>em</strong> deixar algum com vida, amaran<strong>do</strong>-<strong>se</strong> tanto nesta pescaria, <strong>que</strong> foinecessário ir<strong>em</strong> os nossos batéis a buscá-los já fora da barra; mas n<strong>em</strong> isto bastou, para <strong>que</strong> nãocontinuass<strong>em</strong> depois com contínuos assaltos, com <strong>que</strong> pu<strong>se</strong>ram os nossos <strong>em</strong> tanto aperto, <strong>que</strong>escassamente podiam ir buscar água para beber<strong>em</strong> a uns poçosinhos, <strong>que</strong> tinham perto da cerca, eessa muito ruim, e tantas outras necessidades, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não chegar a Francisco Dias de Paiva, amo <strong>do</strong>capitão-mor, <strong>que</strong> o criou, <strong>em</strong> uma urca <strong>do</strong> reino, <strong>que</strong> el-rei man<strong>do</strong>u com artilharia, munições, ealguns outros provimentos para o forte, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fazia, e as esperanças <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> sustentavam de lhesvir ce<strong>do</strong> socorro da Paraíba, houvera-lhes de <strong>se</strong>r força<strong>do</strong> deixar o edifício, pelo <strong>que</strong>, tanto <strong>que</strong> os<strong>do</strong>entes começaram a convalecer, logo Feliciano Coelho man<strong>do</strong>u reca<strong>do</strong> aos capitães dePernambuco, e ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> não vinham sé aprestou com a sua gente, e tornou a partir da Paraíba aeste socorro a 30 de março de 1598, só com uma companhia de 24 homens de cavalo, e duas de pé,de 30 arcabuzeiros cada uma, das quais eram capitães Antônio de Valadares, e Miguel ÁlvaresLobo, e 350 índios flecheiros com <strong>se</strong>us principais.


106Não acharam <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o caminho <strong>se</strong>não aldeias despejadas, e alguns espias, <strong>que</strong> os nossostambém espiaram, e tomaram, pelos quais <strong>se</strong> soube <strong>que</strong> uma légua <strong>do</strong> forte, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fazia, estava umaaldeia grande, e fort<strong>em</strong>ente cercada, <strong>do</strong>nde saíam a dar os assaltos nos nossos, pelo <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u ogoverna<strong>do</strong>r apressar o passo, para <strong>que</strong> os pudes<strong>se</strong> tomar descuida<strong>do</strong>s, e contu<strong>do</strong> a achou despejada,e capaz para <strong>se</strong> alojar o nosso arraial.Ali veio o dia <strong>se</strong>guinte Manuel Mascarenhas a visitá-lo, e trataram sobre o mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> haviade haver para <strong>se</strong> acabar o forte, por<strong>que</strong> tinha ainda grandes entulhos, e outros <strong>se</strong>rviços para fazer, edis<strong>se</strong> Feliciano Coelho <strong>que</strong> ele com a sua companhia de cavalo, e com a gente <strong>do</strong> Braço,trabalhariam um dia, e Antônio de Valadares com a gente <strong>do</strong> As<strong>se</strong>nto outro dia <strong>se</strong>guinte, e MiguelÁlvares Lobo com a gente <strong>do</strong> Pedra Verde outro; e esta ord<strong>em</strong> guardariam enquanto a obra duras<strong>se</strong>,dan<strong>do</strong> também a cada companhia <strong>do</strong> gentio um branco perito na sua língua, <strong>que</strong> os exortas<strong>se</strong> aotrabalho, e estes eram Francisco Barbosa, Antônio <strong>do</strong> Poço, e José Afonso Pamplona, mas nãodeixaram por isto de re<strong>se</strong>rvar alguns, <strong>que</strong> corress<strong>em</strong> o campo <strong>em</strong> companhia de alguns brancosfilhos da terra, os quais foram dar <strong>em</strong> uma aldeia, onde mataram mais de 400 Potiguares, ecativaram 80, pelos quais souberam <strong>que</strong> estava muita gente junta, assim Potiguares como france<strong>se</strong>s,<strong>em</strong> <strong>se</strong>is cercas muito fortes, para vir<strong>em</strong> dar sobre os nossos, e os matar<strong>em</strong>, e <strong>se</strong> já o não tinham feitoera por<strong>que</strong> a<strong>do</strong>eciam, e morriam muitos <strong>do</strong> mal de bexigas.Neste mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>que</strong> a obra <strong>do</strong> forte durava, chegou um barco da Paraíba com refrescosde vitelas, galinhas, e outras vitualhas, <strong>que</strong> mandava a Feliciano Coelho Pero Lopes Lobo, <strong>se</strong>u locotenente, e deu novas o arrais, <strong>que</strong> no porto <strong>do</strong>s Búzios estava surta uma nau francesa, lançan<strong>do</strong>gente <strong>em</strong> terra, ao qual acudiu logo Manuel Mascarenhas com toda a gente de cavalo, <strong>que</strong> havia, e30 solda<strong>do</strong>s arcabuzeiros e muitos índios, e deu nas choupanas, <strong>em</strong> <strong>que</strong> os Potiguares estavam jácomercian<strong>do</strong> com eles, onde mataram 13, e cativaram <strong>se</strong>te, e três france<strong>se</strong>s, por<strong>que</strong> os mais<strong>em</strong>barcaram, e fugiram no batel, e outros a na<strong>do</strong>; e ven<strong>do</strong> o capitão-mor Manuel Mascarenhas <strong>que</strong>não tinha <strong>em</strong>barcações para poder cometer a nau, ordenou uma cilada fingin<strong>do</strong> <strong>que</strong> tinha i<strong>do</strong>, edeixan<strong>do</strong> na praia um francês feri<strong>do</strong>, para <strong>que</strong> o viess<strong>em</strong> tomar da nau no batel, como de feitovieram, mas os da cilada tanto <strong>que</strong> viram des<strong>em</strong>barca<strong>do</strong> o <strong>primeiro</strong> saíram tão desordenadamente<strong>que</strong> só este tomaram, e os outros tornaram à nau, e largan<strong>do</strong> as velas <strong>se</strong> foram.CAPÍTULO TRIGÉSIMO SEGUNDODe como acaba<strong>do</strong> o forte <strong>do</strong> Rio Grande, e entregue ao capitão Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>se</strong>tornaram os capitães-mor de Pernambuco, e Paraíba, e batalhas,<strong>que</strong> no caminho tiveram com os PotiguaresAcaba<strong>do</strong> o forte <strong>do</strong> rio Grande, <strong>que</strong> <strong>se</strong> intitula <strong>do</strong>s reis, o entregou Manuel Mascarenhas aJerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> dia de S. João Batista, era de mil quinhentos noventa e oito, toman<strong>do</strong>-lhehomenag<strong>em</strong>, como <strong>se</strong> costuma, e deixan<strong>do</strong>-lho muito b<strong>em</strong> forneci<strong>do</strong> de gente, artilharia, munições,mantimentos, e tu<strong>do</strong> o mais necessário, <strong>se</strong> veio no mesmo dia com a sua gente <strong>do</strong>rmir na aldeia <strong>do</strong>Camarão, onde Feliciano Coelho estava com o <strong>se</strong>u arraial apo<strong>se</strong>nta<strong>do</strong>, e no <strong>se</strong>guinte <strong>se</strong> partiramto<strong>do</strong>s para a Paraíba com muita paz e amizade, <strong>que</strong> é o melhor petrecho contra os inimigos, e assimo experimentaram os <strong>primeiro</strong>s, <strong>que</strong> acharam <strong>em</strong> uma grande e forte cerca <strong>se</strong>is dias depois dapartida, a qual mandaram espiar por um índio mui esforça<strong>do</strong> da nossa <strong>do</strong>utrina chama<strong>do</strong> Tavira, <strong>que</strong>com só 14 companheiros, <strong>que</strong> consigo levava, matou mais de 30 espias <strong>do</strong>s inimigos s<strong>em</strong> ficar umsó, <strong>que</strong> levas<strong>se</strong> reca<strong>do</strong>, e assim os nossos subitamente na cerca deram ao meio-dia, e contu<strong>do</strong>pelejaram mais de duas horas s<strong>em</strong> a poder<strong>em</strong> entrar, exceto o Tavira, <strong>que</strong> t<strong>em</strong>erariamente trepan<strong>do</strong>por dia <strong>se</strong> lançou dentro com uma espada, e rodela, e nomean<strong>do</strong>-<strong>se</strong> começou a matar, e ferir os


107inimigos, até lhe <strong>que</strong>brar a espada, e ficar com só a rodela, toman<strong>do</strong> nela as flechas, o <strong>que</strong> visto pelocapitão Rui de Aveiro, e Bento da Rocha, <strong>se</strong>u solda<strong>do</strong>, tiraram por uma <strong>se</strong>teira duas arcabuzadas,com <strong>que</strong> os inimigos <strong>se</strong> afastaram, e lhe deram lugar de tornar a subir pela cerca, e sair-<strong>se</strong> dela comtanta ligeireza como <strong>se</strong> fora um pássaro; e com este, e outros s<strong>em</strong>elhantes feitos tanto nome haviaganha<strong>do</strong> este índio entre os inimigos, <strong>que</strong> só com <strong>se</strong> nomear, dizen<strong>do</strong> eu sou Tavira, acobardava eat<strong>em</strong>orizava a to<strong>do</strong>s; e assim at<strong>em</strong>oriza<strong>do</strong>s com isto os da cerca, e os nossos anima<strong>do</strong>s, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong><strong>se</strong> a noite os tomava de fora com o inimigo tão vizinho, e outros, <strong>que</strong> podiam sobrevir de outraspartes, ficavam mui arrisca<strong>do</strong>s.R<strong>em</strong>eteram outra vez a cerca com tanto ânimo, disparan<strong>do</strong> tantas arcabuzadas e flechadas,<strong>que</strong> pu<strong>se</strong>ram os de dentro <strong>em</strong> aperto, e <strong>se</strong> deixou b<strong>em</strong> conhecer pelos muitos gritos, e choros, <strong>que</strong> <strong>se</strong>ouviam das mulheres e crianças; e o capitão Miguel Álvares Lobo com o <strong>se</strong>u sargento João dePadilha, espanhol, e <strong>se</strong>us solda<strong>do</strong>s, r<strong>em</strong>eteu a uma porta da cerca, e a levou, por onde logo entraramoutros, e o mesmo fez o capitão Rui de Aveiro, e outros capitães por outras partes, com <strong>que</strong>forçaram os Potiguares a largar a praça, e fugiram por outras portas, <strong>que</strong> abriram por riba daestacada, e por onde podiam, mas contu<strong>do</strong> não deixaram de ficar mortos, e cativos mais de 1.500,s<strong>em</strong> <strong>do</strong>s nossos morrer<strong>em</strong> mais de três índios Tabajaras, posto <strong>que</strong> ficaram outros feri<strong>do</strong>s, e algunsbrancos, <strong>do</strong>s quais foi o sargento João de Padilha.Dali a 14 dias deram <strong>em</strong> outra cerca, e aldeia, não tão grande como estoutra, mas mais forte, e de genteescolhida, onde não havia mulheres, n<strong>em</strong> crianças, <strong>que</strong> chorass<strong>em</strong>, <strong>se</strong>não to<strong>do</strong>s homens de peleja, e entre eles 10 ou 12bons arcabuzeiros, os quais não atiravam pelouros, <strong>que</strong> não acertass<strong>em</strong> nos nossos, o mesmo faziam os flecheiros, com<strong>que</strong> nos feriam muita gente, e não fora possível sustentar o cerco, <strong>se</strong> um solda<strong>do</strong> natural da <strong>se</strong>rra da Estrela, chama<strong>do</strong>Henri<strong>que</strong> Duarte, não lançara uma alcanzia de fogo dentro, com <strong>que</strong> lhes <strong>que</strong>imou uma casa, e ven<strong>do</strong> eles o fogo,cuidan<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>riam to<strong>do</strong>s abrasa<strong>do</strong>s, <strong>se</strong> foram sain<strong>do</strong> da cerca, não fugin<strong>do</strong> ou dan<strong>do</strong> as costas, mas retiran<strong>do</strong>-<strong>se</strong>, edefenden<strong>do</strong>-<strong>se</strong> valorosamente contra os nossos, <strong>que</strong> os <strong>se</strong>guiam, e assim ainda <strong>que</strong> lhes mataram cento e cinqüenta,também eles nos mataram <strong>se</strong>is brancos, <strong>em</strong> <strong>que</strong> entrou Diogo de Se<strong>que</strong>ira, alferes <strong>do</strong> capitão Rui de Aveiro Falcão, comum pelouro, <strong>que</strong> <strong>primeiro</strong> havia passa<strong>do</strong> a carapuça a Bento da Rocha, <strong>que</strong> estava junto dele, o qual quan<strong>do</strong> o viu morto,e a bandeira derribada, a levantou, e <strong>se</strong> pôs a florear com ela no campo entre as flechadas e pelouros, pelo <strong>que</strong> o <strong>se</strong>ucapitão-mor Manuel Mascarenhas lha deu, e lhe passou depois uma certidão, com <strong>que</strong> pudera re<strong>que</strong>rer um hábito decavaleiro com grande tença, mas ele o quis antes <strong>do</strong> nosso <strong>se</strong>ráfico padre São Francisco, com a tença da pobreza ehumildade, <strong>em</strong> <strong>que</strong> viveu, e morreu nesta custódia santamente.Também feriram o capitão Miguel Álvares Lobo de duas flechadas, e a Diogo de Miranda,sargento da Companhia de Manuel da Costa Calheiros, deu um índio agiganta<strong>do</strong> tal golpe com umalfanje, <strong>que</strong> lhe fendeu a rodela até a <strong>em</strong>braçadura, e o feriu no braço, e ele lhe correu umaestocada, meten<strong>do</strong>-lhe a espada pelos peitos até a cruz, a qual não bastou para <strong>que</strong> o índio <strong>se</strong> nãoabraças<strong>se</strong> com ele tão rijamente, <strong>que</strong> s<strong>em</strong> falta o levara debaixo, <strong>se</strong> não acudira JerônimoFernandes, cabo de esquadra da sua companhia, dan<strong>do</strong>-lhe um golpe pelo pescoço, com <strong>que</strong> o fezlargar, e enterra<strong>do</strong>s os mortos, e cura<strong>do</strong>s os feri<strong>do</strong>s, tornou o campo a marchar até chegar àsfronteiras da Paraíba, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> despediu Manuel Mascarenhas de Feliciano Coelho, e <strong>se</strong> foi com os<strong>se</strong>us para Pernambuco.CAPÍTULO TRIGÉSIMO TERCEIRODe com Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> fez pazes com os Potiguares,e <strong>se</strong> começou a povoar o Rio GrandeJerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, depois <strong>que</strong> os mais <strong>se</strong> partiram, <strong>se</strong> acon<strong>se</strong>lhou com o padreGaspar de Samperes, da Companhia de Jesus, <strong>que</strong> tornou ao forte, por <strong>se</strong>r o engenheiro <strong>que</strong> otraçou, sobre <strong>que</strong> traça haveria para <strong>se</strong> fazer<strong>em</strong> pazes com os Potiguares, deram <strong>em</strong> uma facilíssima,


108<strong>que</strong> foi soltar<strong>em</strong> um <strong>que</strong> eles tinham preso, chama<strong>do</strong> ilha Grande, principal e feiticeiro, e mandá-lo<strong>que</strong> as tratas<strong>se</strong> com os parentes.Foi o índio b<strong>em</strong> instruí<strong>do</strong> no <strong>que</strong> lhes havia de dizer, e chegan<strong>do</strong> á primeira aldeia foialegr<strong>em</strong>ente recebi<strong>do</strong>, mormente depois de saber<strong>em</strong> ao <strong>que</strong> ia. Mandaram logo reca<strong>do</strong> às maisaldeias assim da Ribeira <strong>do</strong> Mar, como da <strong>se</strong>rra, onde estava o Pau Seco, e o Zorobabe, <strong>que</strong> eram osmaiores principais, e to<strong>do</strong>s juntos lhes dis<strong>se</strong> o mensageiro:“Vós irmãos, filhos, e parentes, mui b<strong>em</strong> conheceis, e sabeis, qu<strong>em</strong> eu sou, e a conta <strong>que</strong>s<strong>em</strong>pre de mim fizestes assim ria paz, como guerra; e isto é o <strong>que</strong> agora me obrigou a vir dentre osbrancos a dizer-vos <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>reis ter vida, e quietação, e estar <strong>em</strong> vossas casas e terras com vossosfilhos e mulheres, é necessário s<strong>em</strong> mais outro con<strong>se</strong>lho ires logo comigo ao forte <strong>do</strong>s brancos afalar com Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, capitão dele, e com os padres, e fazer com eles pazes, as quais<strong>se</strong>rão s<strong>em</strong>pre fixas, como foram as <strong>que</strong> fizeram com o Braço de Peixe, e com os mais Tabajaras, e ocostumam fazer <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o Brasil, <strong>que</strong> os <strong>que</strong> <strong>se</strong> met<strong>em</strong> na igreja não os cativam, antes os<strong>do</strong>utrinam, e defend<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> os france<strong>se</strong>s nunca nos fizeram, e menos nos farão agora, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> oporto impedi<strong>do</strong> com a fortaleza, <strong>do</strong>nde não pod<strong>em</strong> entrar s<strong>em</strong> <strong>que</strong> os mat<strong>em</strong>, e lhes metam com aartilharia no fun<strong>do</strong> os navios.”Estas, e outras tantas razões lhe soube dizer este índio, e com tanta energia de palavras, <strong>que</strong>to<strong>do</strong>s aceitaram o con<strong>se</strong>lho, e liso agradeceram, muito principalmente as fêmeas, <strong>que</strong> enfadadas deandar com o fato continuamente às costas, fugin<strong>do</strong> pelos matos s<strong>em</strong> <strong>se</strong> poder<strong>em</strong> gozar de suascasas, n<strong>em</strong> <strong>do</strong>s legumes, <strong>que</strong> plantavam, traziam os mari<strong>do</strong>s ameaça<strong>do</strong>s <strong>que</strong> <strong>se</strong> haviam de ir para osbrancos, por<strong>que</strong> antes <strong>que</strong>riam <strong>se</strong>r suas cativas, <strong>que</strong> viver <strong>em</strong> tantos receios de contínuas guerras erebates.Com isto <strong>se</strong> vieram os principais logo ao forte a tratar das pazes; houve pouco <strong>que</strong> fazernelas, pelas razões já ditas, <strong>do</strong>nde daí por diante começaram a entrar com <strong>se</strong>us resgates<strong>se</strong>guramente, e foi de tu<strong>do</strong> avisa<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r d. Francisco de Souza pelo capitão-mor dePernambuco Manuel Mascarenhas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> foi ver com ele a Bahia, e lhe deu a nova, o qual man<strong>do</strong>u<strong>que</strong> as ditas pazes <strong>se</strong> fizess<strong>em</strong> com solenidade de direito, como <strong>em</strong> efeito <strong>se</strong> fizeram na Paraíba aos11 dias <strong>do</strong> mês de junho de 1599, estan<strong>do</strong> pre<strong>se</strong>ntes o governa<strong>do</strong>r da Paraíba, Feliciano Coelho deCarvalho, com os oficiais da Câmera, e o dito Manuel Mascarenhas Hom<strong>em</strong> com Alexandre deMoura, <strong>que</strong> lhe havia suceder na capitania-mor de Pernambuco, o ouvi<strong>do</strong>r-geral Braz de Almeida, eoutras pessoas; e o nosso irmão <strong>frei</strong> Bernardino das Neves foi o intérprete, por <strong>se</strong>r mui perito nalíngua brasílica, e mui respeita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s índios Potiguares, e Tabajaras, como já diss<strong>em</strong>os; pelo <strong>que</strong> ocapitão-mor Manuel Mascarenhas <strong>se</strong> acompanhava com ele, e nunca nestas ocasiões o largava.Feitas as pazes cons os Potiguares, como fica dito, <strong>se</strong> começou logo a fazer uma povoaçãono Rio Grande uma légua <strong>do</strong> forte, a <strong>que</strong> chamam a cidade <strong>do</strong>s reis, a qual governa também ocapitão <strong>do</strong> forte, <strong>que</strong> el-rei costuma mandar cada três anos. Cria-<strong>se</strong> na terra muito ga<strong>do</strong> vacum, e detodas as sortes, por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> para isto as terras melhores <strong>que</strong> para engenhos de açúcar, e assim não <strong>se</strong>hão feito mais <strong>que</strong> <strong>do</strong>is, n<strong>em</strong> <strong>se</strong> puderam fazer, por<strong>que</strong> as canas-de-açúcar re<strong>que</strong>r<strong>em</strong> terra massapê<strong>se</strong> de barro, e estas são de areia solta, e assim pod<strong>em</strong>os dizer <strong>se</strong>r a pior <strong>do</strong> Brasil, e contu<strong>do</strong> <strong>se</strong> oshomens t<strong>em</strong> indústria, e <strong>que</strong>r<strong>em</strong> trabalhar nela, <strong>se</strong> faz<strong>em</strong> ricos.Logo <strong>em</strong> <strong>se</strong>u princípio veio ali ter um hom<strong>em</strong> degrada<strong>do</strong> pelo bispo de Leiria, o qual ouzomban<strong>do</strong>, ou pelo entender assim, pôs na <strong>se</strong>ntença: Vá degrada<strong>do</strong> por três anos para o Brasil,<strong>do</strong>nde tornara rico e honra<strong>do</strong>», e assim foi, <strong>que</strong> o homens <strong>se</strong> casou com uma mulher, <strong>que</strong> tambémveio <strong>do</strong> reino ali ter, não por <strong>do</strong>te algum, <strong>que</strong> lhe dess<strong>em</strong> com ela, <strong>se</strong>não por não haver ali outra, ede tal maneira souberam grangear a vida, <strong>que</strong> nos três anos adquiriram <strong>do</strong>is ou três mil cruza<strong>do</strong>s,com <strong>que</strong> foram para sua terra <strong>em</strong> companhia <strong>do</strong> capitão-mor <strong>do</strong> Rio Grande, João RodriguesColasso, e de sua mulher d. Beatriz de Menezes, comen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s a uma mesa, pas<strong>se</strong>an<strong>do</strong> ele ombro


109com ombro com o capitão, as<strong>se</strong>ntan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a mulher no mesmo estra<strong>do</strong> <strong>que</strong> a fidalga, como eu as vi<strong>em</strong> Pernambuco, onde foram tomar navio para <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcar<strong>em</strong>; e toda esta honra lhe faziam, por<strong>que</strong>,como na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po não havia ainda outra mulher branca no Rio Grande, acertou de parir a mulher<strong>do</strong> capitão, e a tomaram por comadre, e como tal a tratavam da<strong>que</strong>le mo<strong>do</strong>, e o mari<strong>do</strong> como ocompadre, cumprin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> a <strong>se</strong>ntença <strong>do</strong> bispo, <strong>que</strong> tornaria <strong>do</strong> Brasil rico e honra<strong>do</strong>.N<strong>em</strong> foi este só <strong>que</strong> no Rio Grande enri<strong>que</strong>ceu, mas outros muitos, por<strong>que</strong> ainda <strong>que</strong> oterritório é o pior <strong>do</strong> Brasil, como t<strong>em</strong>os dito, nele <strong>se</strong> dão muitas criações, e outras granjearias, de<strong>que</strong> <strong>se</strong> tira muito proveito, e <strong>do</strong> mar muitas e boas pescarias.Nens estão muito longe daí as salinas, onde naturalmente <strong>se</strong> coalha o sal <strong>em</strong> tantaquantidade <strong>que</strong> pod<strong>em</strong> carregar grandes <strong>em</strong>barcações to<strong>do</strong>s os anos; por<strong>que</strong> assim como <strong>se</strong> tira um,<strong>se</strong> coalha e cresce continuamente outro, n<strong>em</strong> obsta <strong>que</strong> não vão ali navios de Portugal / <strong>se</strong>não éalgum de arribada /, pois basta <strong>que</strong> vão à Paraíba, <strong>do</strong>nde dista somente vinte e cinco léguas, e dePernambuco cinqüenta, por<strong>que</strong> destas partes <strong>se</strong> provejam <strong>do</strong> <strong>que</strong> lhe é necessário, como faz<strong>em</strong> <strong>em</strong><strong>se</strong>us caravelões, e sobre to<strong>do</strong>s estes cômo<strong>do</strong>s foi de muita importância povoar-<strong>se</strong>, e fortificar-<strong>se</strong> oRio Grande para tirar dali a<strong>que</strong>la ladroeira aos france<strong>se</strong>s.CAPÍTULO TRIGÉSIMO QUARTODe como foi o governa<strong>do</strong>r geral às minas de São Vicente, e ficou governan<strong>do</strong> a Bahia Álvaro deCarvalho, e <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s <strong>que</strong> a ela vieramMuitos anos havia <strong>que</strong> voava a fama de haver minas de ouro, e de outros metais na terra dacapitania de São Vicente, <strong>que</strong> el-rei d. João o Terceiro <strong>do</strong>ou a Martim Afonso de Souza, e já poralgumas partes voava com asas <strong>do</strong>uradas, e havia mostras de ouro; o <strong>que</strong> visto pelo governa<strong>do</strong>r d.Francisco de Souza, avisou a Sua Majestade oferecen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para esta <strong>em</strong>presa, e ele lha encarregou,e man<strong>do</strong>u para ficar entretanto governan<strong>do</strong> esta cidade da Bahia a Álvaro de Carvalho; ogoverna<strong>do</strong>r <strong>se</strong> partiu para baixo no mês de outubro de 1598, levan<strong>do</strong> consigo o des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>rCustódio de Figueire<strong>do</strong>, <strong>que</strong> era um <strong>do</strong>s <strong>que</strong> vinham com Francisco Giraldes, e <strong>se</strong>rvia de prove<strong>do</strong>rmorde defuntos e au<strong>se</strong>ntes.O ano <strong>se</strong>guinte de mil quinhentos noventa e nove, véspera da véspera <strong>do</strong> Natal, entrou nestaBahia uma armada de <strong>se</strong>te naus holandesas, cuja capitania <strong>se</strong> chamava Jardim de Holanda, por umjardim de ervas e flores, <strong>que</strong> trazia dentro <strong>em</strong> si; esta armada <strong>se</strong> <strong>se</strong>nhoreou <strong>do</strong> porto, e <strong>do</strong>s navios,<strong>que</strong> nele estavam, <strong>que</strong>iman<strong>do</strong> e desbaratan<strong>do</strong> os <strong>que</strong> lhe qui<strong>se</strong>ram resistir, como foi um galeão deBailio de Lessa, <strong>que</strong> veio freta<strong>do</strong> por merca<strong>do</strong>res para levar açúcar; pôs Álvaro de Carvalho a gentepor suas estâncias na praia e na cidade para a defender<strong>em</strong> <strong>se</strong> qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> des<strong>em</strong>barcar; mas eles não<strong>se</strong> atreven<strong>do</strong>, trataram de concerto, pedin<strong>do</strong> <strong>em</strong> reféns uma pessoa equivalente ao <strong>se</strong>u general, <strong>que</strong><strong>que</strong>ria vir pessoalmente a este negócio, e assim foi para a sua capitania <strong>em</strong> reféns Estevão de BritoFreire, e ele <strong>se</strong> veio meter no Colégio <strong>do</strong>s Padres da Companhia, onde o capitão-mor Álvaro deCarvalho o esperava, e <strong>se</strong> tratou sobre o concerto quatro dias, <strong>que</strong> ali esteve assaz regala<strong>do</strong>.Porém fui-lhe respondi<strong>do</strong> no fim deles <strong>que</strong> puxas<strong>se</strong> pela carta, por<strong>que</strong> não podia haver outroconcerto, com o <strong>que</strong> ele <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou colérico, e <strong>se</strong> des<strong>em</strong>barcou Estevão de Brito; com esta cóleraman<strong>do</strong>u uma caravela, <strong>que</strong> tinha toma<strong>do</strong> no porto, e alguns patachos, e lanchas, <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> pelorecôncavo roubar e assolar quanto pudess<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> logo fizeram no engenho de Bernar<strong>do</strong> Pimentelde Almeida, <strong>que</strong> dista desta cidade quatro léguas, e não achan<strong>do</strong> resistência lhe <strong>que</strong>imaram casas, eigreja, da qual tiraram até o sino <strong>do</strong> campanário, mas soou, e logo foram castiga<strong>do</strong>s por AndréFernandes Morgalho, <strong>que</strong> Álvaro de Carvalho havia manda<strong>do</strong> com 300 homens por terra, e achan<strong>do</strong>ainda ali os inimigos brigaram com eles animosamente até os fazer<strong>em</strong> <strong>em</strong>barcar, fican<strong>do</strong>-lhes


110muitos mortos na briga <strong>em</strong> terra, e alguns no mar ao <strong>em</strong>barcar, entre os quais <strong>se</strong> matou um capitão,<strong>que</strong> eles muito <strong>se</strong>ntiram.Dali <strong>se</strong> tornaram às suas naus, <strong>do</strong>nde reforma<strong>do</strong>s de mais gente, e munições <strong>se</strong> foram a ilha<strong>do</strong>s Frades para tomar<strong>em</strong> aguada, de <strong>que</strong> estavam faltos, o qual entendi<strong>do</strong> por André Fernandes, <strong>que</strong>os tinha <strong>em</strong> espreita, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou com a sua gente <strong>em</strong> <strong>se</strong>is lanchas, e entran<strong>do</strong> por outro bo<strong>que</strong>irão,<strong>que</strong> está entre a ilha de Cururupiba, e a terra firme, e <strong>se</strong> não navega <strong>se</strong> não de maré cheia, por não<strong>se</strong>r<strong>em</strong> <strong>se</strong>nti<strong>do</strong>s, des<strong>em</strong>barcaram da outra parte da ilha <strong>do</strong>s Frades, a t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> também ali chegavaÁlvaro Rodrigues da Cachoeira com o <strong>se</strong>u gentio, e assim foram to<strong>do</strong>s juntos, atravessan<strong>do</strong> a ilhapelos matos até perto de uma légua junto a praia, aonde havia saí<strong>do</strong> uma batelada de holande<strong>se</strong>s apovoar a água, e por achar<strong>em</strong> salobra <strong>se</strong> tornaram, e os nossos os deixaram ir, fican<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong>sna cilada, entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong> iam por mais gente para tornar<strong>em</strong> a buscar outra fonte, o <strong>que</strong> eles nãofizeram, antes a foram buscar à ilha de Itaparica, e des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> <strong>em</strong> terra pu<strong>se</strong>ram fogo <strong>em</strong> umengenho, <strong>que</strong> ali estava de Duarte Osquis, s<strong>em</strong> lhe valer <strong>se</strong>r também flamengo, posto <strong>que</strong> casa<strong>do</strong>com portuguesa, e antigo na terra, mas logo chegaram os nossos capitães André FernandesMargalho, e Álvaro Rodrigues, e os cometeram com tanto ânimo, <strong>que</strong> mataram cinqüenta, e fizeram<strong>em</strong>barcar os mais, e recolher<strong>em</strong>-<strong>se</strong> à sua armada, <strong>que</strong> também logo <strong>se</strong> fez à vela, e despejou o porto,<strong>que</strong> havia cinqüenta e cinco dias tinha ocupa<strong>do</strong>.Ao sair pela barra tomaram uma nau de Francisco de Araújo, <strong>que</strong> vinha <strong>do</strong> Rio de Janeirocom <strong>se</strong>te ou oito mil quintais de pau-<strong>brasil</strong>, e depois de o descarregar nas suas <strong>do</strong> pau, e da gente<strong>que</strong> trazia, a <strong>que</strong>imaram lançan<strong>do</strong> só <strong>em</strong> terra umas mulheres, <strong>que</strong> na nau vinham.CAPÍTULO TRIGÉSIMO QUINTODa guerra <strong>do</strong>s gentios Aimorés, e como <strong>se</strong> fizeram as pazes com eles <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po <strong>do</strong>capitão-mor Álvaro de CarvalhoNão só por mar foi esta Bahia neste t<strong>em</strong>po contrastada de inimigo, mas também, e muitomais por terra <strong>do</strong>s gentios Aimorés, <strong>que</strong> são uns Tapuias <strong>se</strong>lvagens, de <strong>que</strong> fiz<strong>em</strong>os menção nocapítulo décimo quinto <strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> <strong>livro</strong>, os quais como não tenham casas n<strong>em</strong> lugar certo onde osbusqu<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> saiam a pelejar <strong>em</strong> campo, mas and<strong>em</strong> como leões e tigres pelos matos, e dali saiama saltear pelos caminhos, ou ainda s<strong>em</strong> sair detrás das árvores, <strong>em</strong>pregu<strong>em</strong> suas flechas, poucosbastam para destruír<strong>em</strong> muitas terras; e assim haven<strong>do</strong> já destruí<strong>do</strong> as de Porto Seguro, e <strong>do</strong>s Ilhéus,entraram nas da Bahia, e haviam feito despejar as <strong>do</strong> rio de Jaguaripe, e Paraguaçu, posto <strong>que</strong> nãopassaram este da parte <strong>do</strong> norte, <strong>que</strong> a passá-lo não ficara coisa, <strong>que</strong> não assolaram até a cidade,por<strong>que</strong> como até ela haja matos, e to<strong>do</strong>s caminhos <strong>se</strong> façam entre eles, ninguém pudera entrar n<strong>em</strong>sair s<strong>em</strong> <strong>se</strong>r morto ou saltea<strong>do</strong> por estes <strong>se</strong>lvagens.De<strong>se</strong>josos d. Francisco e Álvaro de Carvalho de r<strong>em</strong>ediar este dano o consultaram comManuel Mascarenhas, <strong>que</strong> aqui veio a tratar sobre as coisas <strong>do</strong> Rio Grande com o governa<strong>do</strong>r antes<strong>que</strong> <strong>se</strong> partis<strong>se</strong>, e to<strong>do</strong>s acordaram <strong>que</strong> <strong>se</strong> não foss<strong>em</strong> com outro gentio, bicho-<strong>do</strong>-mato como eles,não <strong>se</strong> lhe poderia fazer guerra, para o <strong>que</strong> <strong>se</strong> ofereceu Manuel Mascarenhas a mandar-lhos <strong>do</strong>gentio Potiguar da Paraíba, <strong>que</strong> já estava de paz, e para <strong>que</strong> também diverti<strong>do</strong>s com isto osPotiguares, e tira<strong>do</strong>s da pátria, não tornass<strong>em</strong> a rebelar-<strong>se</strong>, e assim tanto <strong>que</strong> chegou a Pernambucodeu ord<strong>em</strong> a vir um grande golpe deles, e por <strong>se</strong>u principal, e guia um mais revoltoso, e de <strong>que</strong>havia mais suspeitas, chama<strong>do</strong> Darobabe, estes man<strong>do</strong>u Álvaro de Carvalho com o capitãoFrancisco da Costa aos Ilhéus, para <strong>que</strong> de lá viess<strong>em</strong> dan<strong>do</strong> caça aos Aimorés, <strong>que</strong> assim <strong>se</strong> podechamar a sua guerra, mas posto <strong>que</strong> os amedrontaram e fizeram muito, não ficou de to<strong>do</strong> o malr<strong>em</strong>edia<strong>do</strong>, n<strong>em</strong> deixara de ir muito avante depois de torna<strong>do</strong>s os Potiguares, <strong>que</strong> <strong>em</strong> breve t<strong>em</strong>povoltaram para a Paraíba <strong>se</strong> Deus não s<strong>em</strong> outro mais fácil, e eficaz r<strong>em</strong>édio, por meio de uma fêmea


111Aimoré, <strong>que</strong> Álvaro Rodrigues da Cachoeira a tomou com o <strong>se</strong>u gentio <strong>em</strong> um assalto, à qualensinou a língua <strong>do</strong>s nossos Tupinambás, e aprendeu, e fez a alguns nossos aprender a sua, fez-lhebom tratamento, praticou-lhe os mistérios da nossa santa fé católica, <strong>que</strong> é necessário crer umcristão, batizou-a, e chamou-lhe Margarida, depois de b<strong>em</strong> instruída, e afeta a nós vestiu-a de suacamisa, ou saco de pano de algodão, <strong>que</strong> é o traje das nossas índias, deu-lhe rede <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>do</strong>rmis<strong>se</strong>,espelhos, pentes, facas, vinho, e o mais, <strong>que</strong> ela pôde carregar, e man<strong>do</strong>u-a <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> de<strong>se</strong>nganar os<strong>se</strong>us, como fez, mostran<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le era o vinho, <strong>que</strong> bebíamos, e não o <strong>se</strong>u sangue, comoeles cuidavam, e a carne <strong>que</strong> comíamos era de vaca, e outros animais, e não humana, <strong>que</strong> nãoandávamos nus, n<strong>em</strong> <strong>do</strong>rmíamos pela terra, como eles, <strong>se</strong>não na<strong>que</strong>las redes, <strong>que</strong> logo armou <strong>em</strong>duas árvores, e nenhum ficou, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não deitas<strong>se</strong> nela, e <strong>se</strong> não penteas<strong>se</strong>, e vis<strong>se</strong> no espelho: como <strong>que</strong> certifica<strong>do</strong>s <strong>que</strong> <strong>que</strong>ríamos sua amizade, <strong>se</strong> atreveram alguns mancebos a vir com ela à casa<strong>do</strong> dito Álvaro Rodrigues na cachoeira <strong>do</strong> rio Paraguaçu, <strong>do</strong>nde ele os trouxe a esta cidade aocapitão-mor Álvaro de Carvalho, <strong>que</strong> logo os man<strong>do</strong>u vestir de pano vermelho, e mostrar-lhes acidade, onde não havia casa de venda ou taverna <strong>em</strong> <strong>que</strong> não os convidass<strong>em</strong>, e brindass<strong>em</strong>; com o<strong>que</strong> mui certifica<strong>do</strong>s foram acabar de de<strong>se</strong>nganar os companheiros, e <strong>se</strong> fez com os Aimorés <strong>em</strong>toda esta costa, <strong>que</strong>ira Nosso Senhor con<strong>se</strong>rvá-la, e <strong>que</strong> não d<strong>em</strong>os ocasião a outra vez <strong>se</strong>rebelar<strong>em</strong>.CAPÍTULO TRIGÉSIMO SEXTODo <strong>que</strong> fez o governa<strong>do</strong>r nas minasDespedi<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r desta Bahia, <strong>em</strong> poucos dias chegou à capitania <strong>do</strong> Espírito Santo,onde por lhe dizer<strong>em</strong> <strong>que</strong> havia metais na <strong>se</strong>rra de mestre Álvaro, e <strong>em</strong> outras partes, as tentou <strong>em</strong>an<strong>do</strong>u cavar, e fazer ensaio, de <strong>que</strong> <strong>se</strong> tirou alguma prata. Também man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> a<strong>se</strong>smeraldas, a <strong>que</strong> já da Bahia havia manda<strong>do</strong> por Diogo Martins Cão, e as tinha descobertas; fezum forte pe<strong>que</strong>no de pedra e cal, <strong>em</strong> <strong>que</strong> pôs duas peças de artilharia para defender a entrada davila, e feito isto <strong>se</strong> partiu para o Rio de Janeiro, <strong>do</strong>nde foi recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> capitão-mor, <strong>que</strong> então eraFrancisco de Men<strong>do</strong>nça, e <strong>do</strong> povo to<strong>do</strong> com muito aplauso, por <strong>se</strong>r parte onde nunca vão osgoverna<strong>do</strong>res gerais; e assim achou tantos pleitos cíveis, e crimes indícios, <strong>que</strong> para os haver dejulgar lhe fora necessário deter-<strong>se</strong> ali muito t<strong>em</strong>po: pelo <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u chamar o ouvi<strong>do</strong>r-geralGaspar de Figueire<strong>do</strong> Hom<strong>em</strong>, <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia casa<strong>do</strong> <strong>em</strong> Pernambuco, para o deixar ali.Chega<strong>do</strong> o ouvi<strong>do</strong>r, e estan<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r para <strong>se</strong> partir, lhe tomaram a barra quatrogaleões de corsários, o qual entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong> haviam de sair à terra a tomar água na ribeira deCarioca, lhe man<strong>do</strong>u pôr gente <strong>em</strong> ciladas junto dela; e assim aconteceu <strong>que</strong> in<strong>do</strong> quatro lanchas, esain<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> a gente só de uma, e ten<strong>do</strong> já a água tomada para <strong>se</strong> tornar<strong>em</strong> a <strong>em</strong>barcar, lhessaíram os nossos, e os mataram to<strong>do</strong>s, exceto <strong>do</strong>is, <strong>que</strong> levaram malferi<strong>do</strong>s ao governa<strong>do</strong>r, e os dasoutras lanchas ven<strong>do</strong> isto <strong>se</strong> tornaram às galés, nas quais saben<strong>do</strong> de um mamaluco, <strong>que</strong> haviamtoma<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma canoa, <strong>que</strong> estava ali o governa<strong>do</strong>r d. Francisco de Souza, e determinava mandarlhes<strong>que</strong>imar os navios, os fizeram logo a vela, e lhe deixaram a barra livre para <strong>se</strong>guir a suaviag<strong>em</strong>, como <strong>se</strong>guiu, e chegou a São Vicente, onde daí a pouco t<strong>em</strong>po entrou outro galeão <strong>em</strong> <strong>que</strong>ia por capitão um holandês chama<strong>do</strong> Lourenço Bicar, o qual fez petição ao governa<strong>do</strong>r, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong>ele era bom cristão, e nunca fizera dano aos cristãos, n<strong>em</strong> ia a a<strong>que</strong>le porto com es<strong>se</strong> intento, <strong>se</strong>nãoa vender suas merca<strong>do</strong>rias, pelo <strong>que</strong> pedia a Sua Senhoria licença para as poder descarregar, evender com pagar os direitos a Sua Majestade, e o governa<strong>do</strong>r lha despachou, <strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> assimcomo dizia, e não haven<strong>do</strong> outra coisa, lhe dava licença, porém tiran<strong>do</strong> depois inquirição, e achan<strong>do</strong>


112<strong>que</strong> tinha i<strong>do</strong> por general de uma grossa armada ao estreito de Magalhães, e por não o poder<strong>em</strong>bocar com tormenta, e <strong>se</strong> apartar <strong>do</strong>s mais companheiros, os vinha ali aguardar, man<strong>do</strong>u <strong>em</strong> umacanoa <strong>se</strong>is aventureiros arma<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> com dissimulação de <strong>que</strong>rer<strong>em</strong> ver a nau <strong>se</strong> <strong>se</strong>nhoreass<strong>em</strong> dapólvora, e praça de armas, e logo atrás desta outras moitas com solda<strong>do</strong>s e índios flecheiros, <strong>que</strong>brev<strong>em</strong>ente a abordaram, e tomaram, s<strong>em</strong> <strong>que</strong> os de dentro pudess<strong>em</strong> defendê-la n<strong>em</strong> pôr-lhe ofogo, como qui<strong>se</strong>ram, por lhe ter<strong>em</strong> os nossos toma<strong>do</strong> a pólvora e armas.Importaria a fazenda <strong>que</strong> esta nau trazia mais de 100 mil cruza<strong>do</strong>s, os quais com a mesmafacilidade <strong>se</strong> gastaram, <strong>que</strong> <strong>se</strong> adquiriram, e o governa<strong>do</strong>r <strong>se</strong> foi de São Vicente à vila de São Paulo,<strong>que</strong> é mais chegada às minas, onde até então os homens e mulheres <strong>se</strong> vestiam de pano de algodãotinto, e <strong>se</strong> havia alguma capa de baeta e manto de sarja <strong>se</strong> <strong>em</strong>prestava aos noivos e noivas para ir<strong>em</strong>à porta da igreja; porém depois <strong>que</strong> chegou d. Francisco de Souza, e viram suas galas, e de <strong>se</strong>uscria<strong>do</strong>s e criadas, houve logo tantas librés, tantos periquitos, e mantos de soprilhos, <strong>que</strong> já pareciaoutra coisa; com isto <strong>se</strong> havia paga<strong>do</strong> d. Francisco da Bahia muito, muito mais <strong>se</strong> pagou de SãoPaulo; por<strong>que</strong> são ali os campos como os de Portugal, férteis de trigo, e uvas, rosas, e açucenas,rega<strong>do</strong>s de frescas ribeiras, onde ele umas vezes caçan<strong>do</strong> outras pescan<strong>do</strong> entretinha o t<strong>em</strong>po, <strong>que</strong>lhe restava <strong>do</strong> trabalho das minas, <strong>que</strong> era mui grande, e muito maior não <strong>se</strong>r s<strong>em</strong>pre de proveito,por<strong>que</strong> como é ouro de lavag<strong>em</strong>, umas vezes <strong>se</strong> levava pouco, ou nenhuma, mas outras <strong>se</strong> achavamgrãos de peso, e de preço, e de <strong>que</strong> ele enfiou um rosário, assim como saíam re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>s, quadra<strong>do</strong>sou compri<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u a Sua Majestade com outras mostras de pérolas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> achavam noesparcel da Canané, e <strong>em</strong> outras partes, mandan<strong>do</strong>-lhe pedir provisão para fazer descer gentio <strong>do</strong><strong>se</strong>rtão, <strong>que</strong> trabalhass<strong>em</strong> neste ministério, e outras coisas a ele necessárias, a <strong>que</strong> lhe não deferirampor morrer neste t<strong>em</strong>po el-rei Filipe Primeiro, <strong>que</strong> o havia envia<strong>do</strong>, e lhe sucedeu <strong>se</strong>u filho FilipeSegun<strong>do</strong>, <strong>que</strong> o man<strong>do</strong>u ir para o reino, haven<strong>do</strong> 13 anos <strong>que</strong> governava este esta<strong>do</strong>, e lhe envioupor sucessor no governo Diogo Botelho.CAPÍTULO TRIGÉSIMO SÉTIMODo oitavo governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil, e o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> veio por Pernambuco,<strong>que</strong> foi Diogo Botelho; e como veio aí ter a gente de uma nau da Índia,<strong>que</strong> <strong>se</strong> perdeu na ilha de Fernão de NoronhaO oitavo governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil foi Diogo Botelho, o qual veio <strong>em</strong> direitura a Pernambuco,no ano de mil <strong>se</strong>iscentos e três; e foi o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> isto fez, a qu<strong>em</strong> depois s<strong>em</strong>pre foram <strong>se</strong>guin<strong>do</strong><strong>se</strong>us sucessores. A ocasião, <strong>que</strong> teve / <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> alguns diziam /, foi induzi-lo Antônio da Rocha,escrivão da fazenda, <strong>que</strong> ali era casa<strong>do</strong>, e vinha com ele <strong>do</strong> reino, aonde havia i<strong>do</strong> com um agravocontra o capitão-mor Manuel de Mascarenhas, o qual lhe diria das larguezas de Pernambuco, e <strong>que</strong>pedia dele tirar muito interes<strong>se</strong>, ou o mais certo é <strong>que</strong> o fez por ver a terra, e as fortalezas, de <strong>que</strong>havia toma<strong>do</strong> homenag<strong>em</strong>, e cuja defensão e governo estava por sua conta, n<strong>em</strong> eu <strong>se</strong>i, quan<strong>do</strong> adetença ali não <strong>se</strong>ja muita, <strong>que</strong> inconveniências há para <strong>que</strong> os governa<strong>do</strong>res não visit<strong>em</strong> decaminho a<strong>que</strong>la praça.Trouxe o governa<strong>do</strong>r consigo <strong>do</strong>is religiosos graves de Nossa Senhora da Graça, da Ord<strong>em</strong>de Santo Agostinho, onde tinha um filho, para fundar<strong>em</strong> casa <strong>em</strong> Pernambuco, mas o povo o nãocon<strong>se</strong>ntiu, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> não era capaz a terra de sustentar tantos religiosos graves, por<strong>que</strong> tinham jácá os da Companhia de Jesus, de Nossa Senhora <strong>do</strong> Carmo, <strong>do</strong> oatriarca São Bento, e de nosso<strong>se</strong>ráfico padre São Francisco; e assim dan<strong>do</strong>-lhes uma muito boa esmola, <strong>que</strong> com o favor <strong>do</strong>governa<strong>do</strong>r <strong>se</strong> tirou pelos engenhos, <strong>se</strong> tornaram para Lisboa.


113Neste t<strong>em</strong>po lançaram os holande<strong>se</strong>s na ilha de Fernão de Noronha a gente de uma nau daÍndia, <strong>em</strong> <strong>que</strong> vinha d. Pedro Manuel, irmão <strong>do</strong> conde da Atalaia, e por capitão Antônio de Mello,dali no batel da nau, e <strong>em</strong> uma caravela <strong>que</strong> lhes man<strong>do</strong>u o governa<strong>do</strong>r Diogo Botelho foramaportar nus, e famintos ao Rio Grande, s<strong>em</strong> trazer<strong>em</strong> mais <strong>que</strong> alguma mui pouca pedraria, e aindaessa não guardada por <strong>se</strong>us <strong>do</strong>nos, <strong>se</strong>não por alguns índios escravos, os quais <strong>se</strong>n<strong>do</strong> busca<strong>do</strong>s pelosholande<strong>se</strong>s a engoliam por não lha tomar<strong>em</strong>.Não estava o capitão <strong>do</strong> Rio Grande, <strong>que</strong> era João Rodrigues Colasso, aí quan<strong>do</strong> chegaram,<strong>que</strong> era i<strong>do</strong> a Pernambuco a dar ao governa<strong>do</strong>r as boas-vindas; porém não fez falta aosnaufragantes, por<strong>que</strong> d. Beatriz de Menezes, sua mulher, filha de Henri<strong>que</strong> Moniz Teles, da Bahia,os hospe<strong>do</strong>u, e ban<strong>que</strong>teou a to<strong>do</strong>s os dias <strong>que</strong> aí estiveram, e para o caminho, <strong>que</strong> é despovoa<strong>do</strong> atéà Paraíba, man<strong>do</strong>u <strong>se</strong>us escravos com canastras cheias de to<strong>do</strong> o necessário; chega<strong>do</strong>s a Paraíba osagasalhou o capitão-mor Francisco Pereira de Souza como pôde, e deu um vesti<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>se</strong>u dechamalote roxo a d. Pedro Manuel, <strong>que</strong> lhe aceitou, e agradeceu, pela necessidade <strong>que</strong> tinha.Dali vieram caminhan<strong>do</strong> até Guaiena, <strong>que</strong> é da capitania de Itamaracá, onde um filho deAntônio Cavalcante, <strong>que</strong> estava no engenho <strong>do</strong> pai os agasalhou e ban<strong>que</strong>teou esplendidamente, eos acompanhou até a vila de Iguaraçu, na qual acharam o almoxarife de Pernambuco FranciscoSoares, <strong>que</strong> de manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r os foi aguardar com <strong>do</strong>ces, e água fria, o governa<strong>do</strong>rtambém os foi esperar um quarto de légua fora da vila de Olinda, oferecen<strong>do</strong> a casa a d. PedroManuel, <strong>que</strong> não a quis aceitar, e <strong>se</strong> foi agasalhar no Colégio <strong>do</strong>s Padres da Companhia, <strong>do</strong>nde o foitirar com forçosos rogos Manuel Mascarenhas, e o levou para a sua, <strong>que</strong> para isso tinha mui ornada,largan<strong>do</strong>-lha com to<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u <strong>se</strong>rviço, e passan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para outra defronte; ao dia <strong>se</strong>guinte man<strong>do</strong>uManuel Mascarenhas trazer muitas peças de <strong>se</strong>da, e panos de casa <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>res à sua custa, ealfaiates <strong>que</strong> cortass<strong>em</strong> vesti<strong>do</strong>s para os <strong>que</strong> os qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong>, e não houve algum <strong>que</strong> enjeitas<strong>se</strong>,por<strong>que</strong> to<strong>do</strong>s tinham necessidade, <strong>se</strong>não d. Pedro Manuel, <strong>que</strong> contente com o <strong>que</strong> lhe havia da<strong>do</strong> ocapitão da Paraíba, dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> por qu<strong>em</strong> havia tanto perdi<strong>do</strong> na<strong>que</strong>le naufrágio, a<strong>que</strong>le lhe bastavaaté o reino, como qu<strong>em</strong> sabia <strong>que</strong> <strong>em</strong> pon<strong>do</strong> lá os pés a pessoa <strong>que</strong>riam ver, e não os panos, e assimcasou logo com uma sobrinha <strong>do</strong> arcebispo de Braga d. Aleixo de Menezes, <strong>que</strong> o conhecia b<strong>em</strong> daÍndia, onde foi arcebispo de Goa, e lhe deu grande <strong>do</strong>te, e Sua Majestade lhe fez muitas mercês.CAPÍTULO TRIGÉSIMO OITAVODa entrada, <strong>que</strong> fez Pero Coelho de Souza da Paraíba com licença <strong>do</strong>governa<strong>do</strong>r a <strong>se</strong>rra de BoapabaQueren<strong>do</strong> Pero Coelho de Souza ver <strong>se</strong> podia recuperar a perda <strong>em</strong> parte, <strong>que</strong> com <strong>se</strong>ucunha<strong>do</strong> Frutuoso Barbosa recebera na Paraíba, e entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong>, pois el-rei lha tomara por elesnão poder<strong>em</strong> conquistá-la, podia correr com a conquista de outros rios, e terras adiante,especialmente da <strong>se</strong>rra de Boapaba, <strong>que</strong> era mais povoada de gentio, pediu licença ao governa<strong>do</strong>rgeral Diogo Botelho, e haven<strong>do</strong>-a alcança<strong>do</strong> man<strong>do</strong>u três barcos com mantimentos, pólvora, <strong>em</strong>unições, <strong>que</strong> o foss<strong>em</strong> aguardar ao rio de Jaguaribe, e ele <strong>se</strong> partiu da Paraíba por terra est<strong>em</strong>esmo ano de <strong>se</strong>iscentos e três, <strong>em</strong> o mês de julho, com <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta e cinco solda<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s quais osprincipais eram: Manuel Miranda, Simão Nunes, Martim Soares Moreno, João Cid, João VazTataperica, Pedro Congatan, língua, e mais outro língua francês chama<strong>do</strong> Tuim Mirim, e comduzentos índios flecheiros, de <strong>que</strong> eram principais Mandiopuba, Batatão, Caragatim, Tabajaras, eGaraguinguira, Potiguar, caminhan<strong>do</strong> por suas jornadas, chegaram ao rio Jaguaribe, onde acharamos barcos de mantimentos; dali man<strong>do</strong>u o capitão Pero Coelho um solda<strong>do</strong> com 70 índios adescobrir campo, os quais tomaram um <strong>que</strong> andava a comedia, <strong>do</strong> qual <strong>se</strong> soube <strong>que</strong> os <strong>se</strong>us


114estavam <strong>em</strong> arma, e <strong>em</strong> nenhum mo<strong>do</strong> <strong>que</strong>riam pazes com os brancos; contu<strong>do</strong> o contentou ocapitão com foices, macha<strong>do</strong>s, e facas, com <strong>que</strong> o man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> os fos<strong>se</strong> apaziguar, como foi, e aodia <strong>se</strong>guinte tornou <strong>em</strong> busca de um nosso língua, com qu<strong>em</strong> <strong>se</strong> entendess<strong>em</strong>, o qual lhe soube dizertais coisas, e era gentio tão fácil, e desapropria<strong>do</strong>, <strong>que</strong> deixan<strong>do</strong> suas casas e lavouras <strong>se</strong> vieramcom mulheres, e filhos, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> não <strong>que</strong>riam <strong>se</strong>não pazes com os brancos cristãos, eacompanhá-los por onde <strong>que</strong>r <strong>que</strong> foss<strong>em</strong>; o mesmo fizeram depois os da outra aldeia, à imitaçãodestoutros, e foram to<strong>do</strong>s marchan<strong>do</strong> até o Ceará, onde depois de alguns dias de descanso por causada gente miúda, tornaram a marchar até um outeiro, a <strong>que</strong> depois chamaram <strong>do</strong>s Cocos, por<strong>que</strong> uns<strong>se</strong>te ou oito, <strong>que</strong> plantaram, à tornada os viram nasci<strong>do</strong>s com muito viço; e dali foram à en<strong>se</strong>adagrande <strong>do</strong> âmbar, e à mata <strong>do</strong> pau de cores, <strong>que</strong> chamam iburá quatiara, depois ao Camoci, <strong>que</strong> é abarra da <strong>se</strong>rra da Boapaba, para a qual marcharam o <strong>se</strong>guinte dia, véspera de S. Sebastião, dezenovede janeiro de mil <strong>se</strong>iscentos e quatro, ant<strong>em</strong>anhã, e clarean<strong>do</strong> o dia foram logo vistos <strong>do</strong>s inimigos,s<strong>em</strong> haver mais lugar <strong>que</strong> para formar <strong>do</strong>is esquadrões, e a bagag<strong>em</strong> no meio, e outro esquadram departe com vinte solda<strong>do</strong>s à ord<strong>em</strong> de Manuel de Miranda, para dali lançar mangas por onde fos<strong>se</strong>necessário, 16 solda<strong>do</strong>s na retaguarda, e nove na vanguarda, <strong>em</strong> companhia <strong>do</strong> capitão-mor PeroCoelho de Souza; nesta ord<strong>em</strong> foram recebi<strong>do</strong>s meia légua ao pé da <strong>se</strong>rra com muita flechada, ecom <strong>se</strong>te mos<strong>que</strong>tes, <strong>que</strong> disparavam <strong>se</strong>te france<strong>se</strong>s, e faziam muito dano, contu<strong>do</strong> não deixaram delargar o campo com alguns mortos, por<strong>que</strong> os nossos o fizeram com muito ânimo e esforço, e comduas horas de sol <strong>se</strong> sitiou o nosso arraial até ao pé da <strong>se</strong>rra, e <strong>se</strong> fez um reparo de pedras por faltade madeiras, <strong>que</strong> pelo fogo <strong>se</strong> não achava, por <strong>se</strong>r to<strong>do</strong> escalva<strong>do</strong>, e menos havia <strong>que</strong> cozinhar como fogo, n<strong>em</strong> água para beber, pelo <strong>que</strong> começavam já a morrer algumas crianças, e sobretu<strong>do</strong> vin<strong>do</strong>à noite tornaram os inimigos <strong>do</strong> alto a tirar muitas flechadas, e pedradas de fundas, com <strong>que</strong> feriamos nossos, ralhan<strong>do</strong> <strong>que</strong> festejavam a sua vinda, por<strong>que</strong> <strong>se</strong>não <strong>se</strong>nhores de cativos brancos, e outrascoisas desta sorte; mas quis Nosso Senhor <strong>que</strong> às três horas da noite veio um grande chuveiro deágua, com <strong>que</strong> cessou o das flechas, e pedras <strong>do</strong>s inimigos, e os nossos aplacaram a <strong>se</strong>de, e para <strong>se</strong>ra mercê maior viram <strong>em</strong> amanhecen<strong>do</strong> uma gruta <strong>do</strong>nde procedia um ribeiro de água, <strong>que</strong> os nossosíndios cristãos tiveram por milagre, e <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram to<strong>do</strong>s de joelhos a dar graças a Deus, e o capitãocom esta alegria man<strong>do</strong>u matar um cavalo, <strong>que</strong> ainda levava, para confortar os solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> aosmais era impossível chegar, por<strong>que</strong> entre grandes e pe<strong>que</strong>nos eram mais de cinco mil almas.Das dez horas por diante começaram os da <strong>se</strong>rra a tocar uma trombeta bastarda, à qualrespondeu o nosso francês Tuim Mirim com outra, e pedin<strong>do</strong> licença ao capitão <strong>se</strong> foi a um outeiroa falar com os france<strong>se</strong>s, onde logo desceram três, e depois de <strong>se</strong> abraçar<strong>em</strong>, e saudar<strong>em</strong>, dis<strong>se</strong>ram<strong>que</strong> o principal Diabo Grande <strong>que</strong>ria paz <strong>se</strong> lhe dess<strong>em</strong> Manuel de Miranda, e Pero Cangatá, e opetitório era de uns mulatos e mamalucos crioulos da Bahia, maiores diabos <strong>que</strong> o principal comqu<strong>em</strong> andavam.O Tuim Mirim lhe respondeu <strong>que</strong> não havia o capitão fazer tal aleivosia, por<strong>que</strong> lhe <strong>se</strong>riamal conta<strong>do</strong> de <strong>se</strong>u rei, com a qual resposta <strong>se</strong> tornaram, e às duas horas depois <strong>do</strong> meio-dia desceuto<strong>do</strong> o gentio da <strong>se</strong>rra, e batalharam até a noite, <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornaram à sua cerca ao alto, deixan<strong>do</strong>muitos mortos <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us, e <strong>do</strong>s nossos dezes<strong>se</strong>te, e alguns feri<strong>do</strong>s.Pela manhã man<strong>do</strong>u o capitão marchar o exército pela <strong>se</strong>rra acima, in<strong>do</strong> ele por uma partecom a mais gente, e Manuel Miranda por outra com 25 homens; quan<strong>do</strong> chegaram à cerca <strong>se</strong>riameio-dia, e logo <strong>se</strong> começou a batalha cruelmente, por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> os de dentro ajuda<strong>do</strong>s por 16france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> com <strong>se</strong>us mos<strong>que</strong>tes pelejavam detrás de um parapeito de pedra, mas ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> osnossos os combatiam por outras partes, e lhes matavam e feriam muita gente, abriram a cerca efugiram, morren<strong>do</strong> somente <strong>do</strong>is solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s nossos, e os outros <strong>se</strong> recolheram nas casas da cerca,<strong>que</strong> acharam muito b<strong>em</strong> providas de mantimentos, carnes, legumes, de <strong>que</strong> tinham assaznecessidade, por<strong>que</strong> n<strong>em</strong> castanhas tinham já, <strong>que</strong> era o com <strong>que</strong> até ali <strong>se</strong> vieram sustentan<strong>do</strong>; ali


115estiveram 20 dias, e no fim deles foram fazer guerra a outra cerca muito forte, <strong>que</strong> o Diabo Grande,com ajuda de outro principal mui poderoso chama<strong>do</strong> o Mel Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, fez um quarto de léguadestoutra, onde posto <strong>que</strong> acharam grande resistência, também a ganharam, e pu<strong>se</strong>ram o inimigo <strong>em</strong>fugida até a cerca <strong>do</strong> Mel Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, a <strong>que</strong> <strong>se</strong> acolheram por <strong>se</strong>r fortíssima, com duas redes d<strong>em</strong>adeiros mui grossos, e fortes, uma por dentro, outra por fora, e três guaritas, onde pelejavam osfrance<strong>se</strong>s; o <strong>que</strong> visto pelo capitão Pero Coelho de Souza, man<strong>do</strong>u fazer uns pave<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> cada umocupava 20 negros <strong>em</strong> levar, e in<strong>do</strong> detrás deles a bagag<strong>em</strong>, e alguma gente, <strong>se</strong> chegaram a ajustarcom a cerca, e a combateram <strong>do</strong>is dias, onde nos mataram três solda<strong>do</strong>s brancos, e feriram 14, foramuitos índios; mas enfim foi tomada, e dez france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> estavam dentro, <strong>que</strong> os mais fugiram como gentio, e os nossos lhe foram no alcance quatro jornadas até um rio chama<strong>do</strong> Arabé, onde <strong>se</strong>alojou o nosso arraial, e daí man<strong>do</strong>u o capitão dar alguns assaltos, e <strong>em</strong> poucos dias lhe trouxerammuito gentio, e entre os mais um principal chama<strong>do</strong> Ubaúna, o qual era na<strong>que</strong>la <strong>se</strong>rra tão estima<strong>do</strong>,<strong>que</strong> sabi<strong>do</strong> pelos outros mandaram cometer pazes, com condição <strong>que</strong> lho dess<strong>em</strong>, e o capitão lhoprometeu, e deu aos <strong>em</strong>baixa<strong>do</strong>res fouces e macha<strong>do</strong>s, com <strong>que</strong> ao dia <strong>se</strong>guinte vieram muitosprincipais já de paz, e levaram o <strong>se</strong>u <strong>que</strong>ri<strong>do</strong> Ubaúna.Ultimamente daí a três dias veio o Mel Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, e o Diabo Grande com to<strong>do</strong> o gentio, eantes <strong>que</strong> entras<strong>se</strong> no arraial largaram suas armas <strong>em</strong> sinal de paz, da qual man<strong>do</strong>u o capitão-morPero Coelho fazer um ato por um escrivão, prometen<strong>do</strong> uns e outros de s<strong>em</strong>pre a con<strong>se</strong>rvar<strong>em</strong> dali<strong>em</strong> diante.Daqui foram to<strong>do</strong>s juntos ao Punaré, e quis Pero Coelho marchar mais 40 léguas até oMaranhão, o <strong>que</strong> os solda<strong>do</strong>s não con<strong>se</strong>ntiram por<strong>que</strong> andavam já nus, e sobre isso o qui<strong>se</strong>ramalguns matar; pelo <strong>que</strong> lhe foi necessário retirar-<strong>se</strong> ao Ceará, onde deixou Simão Nunes por capitãocom 45 solda<strong>do</strong>s, e <strong>se</strong> veio à Paraíba buscar sua mulher, e família para <strong>se</strong> tornar a povoar a<strong>que</strong>lasterras, <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>em</strong> chegan<strong>do</strong> deu conta ao governa<strong>do</strong>r geral Diogo Botelho, e lhe man<strong>do</strong>u de pre<strong>se</strong>nteos 10 france<strong>se</strong>s, e muito gentio, pedin<strong>do</strong> juntamente ajuda e socorro para pros<strong>se</strong>guir a conquista,<strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r lhe prometeu mandar, e não man<strong>do</strong>u por depois <strong>se</strong>r informa<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> cativavampor esta via os índios injustamente, e os traziam a vender, e <strong>que</strong> <strong>se</strong>ria melhor reduzi-los por via depregação e <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong>s padres da companhia, como depois tratou com o <strong>se</strong>u provincial na Bahia, enós tratar<strong>em</strong>os outra vez deste sucesso nos capítulos quarenta e <strong>do</strong>is, e quarenta e três deste <strong>livro</strong>.CAPÍTULO TRIGÉSIMO NONODo zelo, <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r Diogo Botelho teve da conversão <strong>do</strong>s gentios,e <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizes<strong>se</strong> por ministério de religiososÉ tão necessário ao bom governo <strong>do</strong> Brasil zelar<strong>em</strong> os governa<strong>do</strong>res a conversão <strong>do</strong>s gentiosnaturais, e a assistência <strong>do</strong>s religiosos com eles, <strong>que</strong> <strong>se</strong> isto vies<strong>se</strong> a faltar <strong>se</strong>ria grande mal, por<strong>que</strong>como estes índios não tenham bens <strong>que</strong> perder, por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> pobríssimos, e desapropria<strong>do</strong>s, einconstantes, <strong>que</strong> os leva qu<strong>em</strong> <strong>que</strong>r facilmente, <strong>se</strong> espalham <strong>do</strong>nde não pod<strong>em</strong> acudir aos rebates<strong>do</strong>s inimigos, como acod<strong>em</strong> das <strong>do</strong>utrinas <strong>em</strong> <strong>que</strong> os religiosos os t<strong>em</strong> juntos, e principalmentecontra os negros de Guiné, escravos <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> cada dia <strong>se</strong> lhe rebelam, e andamsaltean<strong>do</strong> pelos caminhos, e <strong>se</strong> o não faz<strong>em</strong> pior é com me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ditos índios, <strong>que</strong> com um capitãoportuguês os buscam, e os traz<strong>em</strong> presos a <strong>se</strong>us <strong>se</strong>nhores.Entenden<strong>do</strong> isto b<strong>em</strong> o governa<strong>do</strong>r Diogo Botelho apertou muito com o nosso custódio, <strong>que</strong>então era, <strong>que</strong> pois <strong>do</strong>utrinávamos os Tabajaras / <strong>do</strong> <strong>que</strong> os Potiguares estavam mui invejosos /,des<strong>se</strong> também ord<strong>em</strong>, e ministros, <strong>que</strong> os <strong>do</strong>utrinass<strong>em</strong>, pois essa foi a principal condição com <strong>que</strong>aceitaram as pazes na Paraíba, e havia cinco anos <strong>que</strong> os entretínhamos dizen<strong>do</strong>-lhes <strong>que</strong> fizess<strong>em</strong>


116<strong>primeiro</strong> igrejas, ornamentos, sinos, e o mais, <strong>que</strong> era necessário, e ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> o custódio <strong>se</strong>escusava por não ter frades peritos na língua brasílica, escreveu a Sua Majestade, e ao nossoministro provincial grandes; pelo <strong>que</strong> vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> reino o irmão custódio <strong>frei</strong> Antônio da Estrela, veiosobre isto muito encarrega<strong>do</strong>, e ordenou três <strong>do</strong>utrinas para os Potiguares da Paraíba, além das duas<strong>que</strong> tínhamos <strong>do</strong>s Tabajaras, onde já também havia alguns Potiguares casa<strong>do</strong>s, pon<strong>do</strong> quatroreligiosos <strong>em</strong> cada uma, por<strong>que</strong> como era tanto o gentio, além das aldeias <strong>em</strong> <strong>que</strong> residiam os fradestinham outras muitas de visita, era necessário andar<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>do</strong>is por elas, <strong>do</strong>utrinan<strong>do</strong>-os ebatizan<strong>do</strong> os enfermos, <strong>que</strong> estavam in extr<strong>em</strong>is, <strong>que</strong> foram mais de <strong>se</strong>te mil, fora as crianças, eadultos catecúmenos, <strong>que</strong> foram quarenta e cinco mil, como consta <strong>do</strong>s <strong>livro</strong>s <strong>do</strong>s batiza<strong>do</strong><strong>se</strong>nquanto os tiv<strong>em</strong>os a nosso cargo, confesso <strong>que</strong> é trabalho labutar com este gentio com a suainconstância, por<strong>que</strong> no princípio era gosto ver o fervor e devoção, com <strong>que</strong> acudiam à igreja, equan<strong>do</strong> lhes tanjiam o sino à <strong>do</strong>utrina ou a missa corriam com um ímpeto e estrépito, <strong>que</strong> pareciamcavalos mas <strong>em</strong> breve t<strong>em</strong>po começaram a esfriar de mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> era necessário levá-los à força, e <strong>se</strong>iam morar nas suas roças, e lavouras, fora da aldeia, por não os obrigar<strong>em</strong> a isto; só acod<strong>em</strong> to<strong>do</strong>scom muita vontade nas festas <strong>em</strong> <strong>que</strong> há alguma cerimônia por<strong>que</strong> são mui amigos de novidades,como dia de S. João Batista, por causa das fogueiras, e capelas, dia da com<strong>em</strong>oração geral <strong>do</strong>sdefuntos, para ofertar<strong>em</strong> por ele, dia de Cinza, e de Ramos, e principalmente pelas En<strong>do</strong>enças, para<strong>se</strong> disciplinar<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> o t<strong>em</strong> por valentia, e tanto é isto assim, <strong>que</strong> um principal chama<strong>do</strong> Iniaoba,e depois de cristão Jorge de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, estan<strong>do</strong> au<strong>se</strong>nte na S<strong>em</strong>ana Santa, chegan<strong>do</strong> a aldeia nasOitavas da Páscoa, e dizen<strong>do</strong>-lhe os outros <strong>que</strong> <strong>se</strong> haviam disciplina<strong>do</strong> grandes e pe<strong>que</strong>nos, <strong>se</strong> foiter comigo, <strong>que</strong> então ali presidia, dizen<strong>do</strong> «como havia de haver no mun<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> disciplinass<strong>em</strong>até os meninos, e ele <strong>se</strong>n<strong>do</strong> tão grande valente / como de feito era / ficas<strong>se</strong> com o <strong>se</strong>u sangue nocorpo s<strong>em</strong> o derramar, respondi-lhe eu <strong>que</strong> todas as coisas tinham <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po, e <strong>que</strong> nas En<strong>do</strong>enças<strong>se</strong> haviam disciplina<strong>do</strong>s <strong>em</strong> m<strong>em</strong>ória <strong>do</strong>s açoutes <strong>que</strong> Cristo Senhor Nosso por nós havia padeci<strong>do</strong>,mas <strong>que</strong> já agora <strong>se</strong> festejava sua gloriosa Ressurreição com alegria, e n<strong>em</strong> com isto <strong>se</strong> aquietou,antes me pôs tantas instâncias dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> ficaria desonra<strong>do</strong> e ti<strong>do</strong> por fraco, <strong>que</strong> foi necessáriodizer-lhe fizes<strong>se</strong> o <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong>, com o <strong>que</strong> logo <strong>se</strong> foi açoutar rijamente por toda a aldeia,derraman<strong>do</strong> tanto sangue das suas costas quanto os outros estavam por festa meten<strong>do</strong> de vinho nasilhargas.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMODe como o governa<strong>do</strong>r veio de Pernambuco para a Bahia, e man<strong>do</strong>u o Zorobabe, <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornavacom os <strong>se</strong>us Potiguares para Paraíba, des<strong>se</strong> de caminho nos negros de Guiné fugi<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> estavamnos palmares <strong>do</strong> rio Itapucuru, e de como <strong>se</strong> começaram as pescarias das baleiasDepois de estar o governa<strong>do</strong>r Diogo Botelho um ano ou mais <strong>em</strong> Pernambuco, <strong>se</strong> veio paraesta Bahia, e com a sua chegada <strong>se</strong> partiu Álvaro de Carvalho para o reino. Estão as casas de el-rei,<strong>em</strong> <strong>que</strong> os governa<strong>do</strong>res moram, defronte da praça, no meio da qual estava o pelourinho, <strong>do</strong>nde ogoverna<strong>do</strong>r o man<strong>do</strong>u logo tirar para o passar a outra parte onde o não vis<strong>se</strong>, por<strong>que</strong> dizia <strong>que</strong> <strong>se</strong>entristecia com a sua vista, l<strong>em</strong>bran<strong>do</strong>-<strong>se</strong> <strong>que</strong> estivera já ao pé de outro para <strong>se</strong>r degola<strong>do</strong> por <strong>se</strong>guiras partes <strong>do</strong> <strong>se</strong>nhor d. Antônio, culpa <strong>que</strong> Sua Majestade lhe per<strong>do</strong>ou por casar com uma irmã dePedro Álvares Pereira, <strong>que</strong> era <strong>se</strong>cretário na Corte; e não só ele, <strong>que</strong> tinha este ódio ao pelourinho,mas nenhum de <strong>se</strong>us sucessores o levantou mais, n<strong>em</strong> o há nesta cidade, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> assim <strong>que</strong> mel<strong>em</strong>bra haver li<strong>do</strong> um terr<strong>em</strong>oto, e tormenta de fogo <strong>que</strong> houve <strong>em</strong> Baçaim, <strong>que</strong> não ficou t<strong>em</strong>plon<strong>em</strong> casa, <strong>que</strong> não caís<strong>se</strong>, <strong>se</strong>não o pelourinho, e no capítulo <strong>do</strong>s frades a parede <strong>em</strong> <strong>que</strong> estavam as


117varas com <strong>que</strong> açoutam, para mostrar <strong>que</strong> <strong>primeiro</strong> dev<strong>em</strong> faltar os povos e cidades, <strong>que</strong> o castigodas culpas.Á sua chegada estavam já de partida o Zorobabe com os <strong>se</strong>us Potiguares para a Bahia, <strong>do</strong>ndehaviam vin<strong>do</strong> à guerra <strong>do</strong>s Aimorés, como diss<strong>em</strong>os no capítulo trinta e três deste <strong>livro</strong>, einforma<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r de um mocambo ou magote de negros de Guiné fugi<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> estavam nospalmares <strong>do</strong> rio Itapucuru, quatro léguas <strong>do</strong> rio Real para cá, man<strong>do</strong>u-lhes <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> de caminhodar neles, e os apanhass<strong>em</strong> às mãos, como fizeram, <strong>que</strong> não foi pe<strong>que</strong>no b<strong>em</strong> tirar dali a<strong>que</strong>laladroeira, e colheita, <strong>que</strong> ia <strong>em</strong> grande crescimento; mas poucos tornaram a <strong>se</strong>us <strong>do</strong>nos, por<strong>que</strong> osgentios mataram muitos, e o Zorobabe levou alguns, <strong>que</strong> foi venden<strong>do</strong> pelo caminho para compraruma bandeira de campo, tambor, cavalo, e vesti<strong>do</strong>s, com <strong>que</strong> entras<strong>se</strong> triunfante na sua terra, comodir<strong>em</strong>os <strong>em</strong> outro capítulo, <strong>que</strong> agora neste <strong>se</strong>rá tratarmos de como <strong>se</strong> começou nesta Bahia apescaria das baleias.Era grande a falta <strong>que</strong> <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil havia de graxa ou azeite de peixe, assimpara rebo<strong>que</strong> <strong>do</strong>s barcos e navios, como para <strong>se</strong> alumiar<strong>em</strong> os engenhos, <strong>que</strong> trabalham toda a noite,e <strong>se</strong> houveram de alumiar-<strong>se</strong> com azeite <strong>do</strong>ce, conforme o <strong>que</strong> <strong>se</strong> gasta, e os negros lhe são muitoafeiçoa<strong>do</strong>s, não bastara to<strong>do</strong> o azeite <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Algum vinha <strong>do</strong> cabo vender, e de Biscaia por viade Viana, mas era tão caro, e tão pouco, <strong>que</strong> muitas vezes era necessário usar<strong>em</strong> <strong>do</strong> azeite <strong>do</strong>ce,misturan<strong>do</strong>-lhe destoutro amargoso, e fe<strong>do</strong>rento, para <strong>que</strong> os negros não lambess<strong>em</strong> os candeeiros, eera uma pena como a de Tântalo padecer esta falta, ven<strong>do</strong> andar as baleias, <strong>que</strong> são a mesma graxa,por toda esta Bahia, s<strong>em</strong> haver qu<strong>em</strong> as pescas<strong>se</strong>, ao <strong>que</strong> acudiu Deus, <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> rege, e prova,moven<strong>do</strong> a vontade a um Pedro de Orecha, Biscainho, <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> vir fazer esta pescaria; este veiocom o governa<strong>do</strong>r Diogo Botelho <strong>do</strong> reino no ano de mil <strong>se</strong>iscentos e três, trazen<strong>do</strong> duas naus a <strong>se</strong>ucargo de Biscainhos, com os quais começou a pescar, e ensina<strong>do</strong>s os portugue<strong>se</strong>s, <strong>se</strong> tornou comdias carregadas, s<strong>em</strong> da pescaria pagar direito algum, mas já hoje <strong>se</strong> paga, e <strong>se</strong> arrenda cada ano porparte de Sua Majestade a uma só pessoa, por 600 mil-réis pouco mais ou menos, para lustro d<strong>em</strong>inistros: e por<strong>que</strong> o mo<strong>do</strong> desta pescaria é para ver mais <strong>que</strong> as justas todas e torneios, a <strong>que</strong>roaqui descrever por extenso.No mês de junho entra nesta Bahia grande multidão de baleias, nela par<strong>em</strong>, e cada baleiapare um só, tão grande como um cavalo, no fim de agosto <strong>se</strong> tornam para o mar largo, e no dia de S.João Batista começam a pescaria, dizen<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> uma missa na ermida de Nossa Senhora deMont<strong>se</strong>rrate, na ponta de Tapuípe, a qual acabada o padre revesti<strong>do</strong> benze as lanchas, e to<strong>do</strong>s osinstrumentos, <strong>que</strong> nesta pescaria <strong>se</strong>rv<strong>em</strong>, e com isto <strong>se</strong> vão <strong>em</strong> busca das baleias, e a primeira coisa<strong>que</strong> faz<strong>em</strong> é arpoar o filho, a <strong>que</strong> chamam baleato, o qual anda s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> cima da água brincan<strong>do</strong>,dan<strong>do</strong> saltos como golfinhos, e assim com facilidade o arpoam com um arpéu de esgalhos posto <strong>em</strong>uma haste, como de um dar<strong>do</strong>, e <strong>em</strong> o ferin<strong>do</strong> e prenden<strong>do</strong> com os galhos puxam por ele com acorda <strong>do</strong> arpéu, e o amarram, e atracam <strong>em</strong> uma das lanchas, <strong>que</strong> são três as <strong>que</strong> andam nest<strong>em</strong>inistério, e logo da outra arpoam a mãe, <strong>que</strong> não <strong>se</strong> aparta <strong>do</strong> filho, e como a baleia não t<strong>em</strong> ussosmais <strong>que</strong> no espinhaço, e o arpéu é pesa<strong>do</strong>, e despedi<strong>do</strong> de bom braço, entra-lhe até o meio da haste,<strong>se</strong>ntin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> ela ferida corre, e foge uma légua, às vezes mais, por cima da água, e o arpoa<strong>do</strong>r lhelarga a corda, e a vai <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> até <strong>que</strong> can<strong>se</strong>, e chegu<strong>em</strong> as duas lanchas, <strong>que</strong> chegadas <strong>se</strong> tornamtodas três a pôr <strong>em</strong> esquadrão, fican<strong>do</strong> a <strong>que</strong> traz o baleato no meio, o qual a mãe <strong>se</strong>ntin<strong>do</strong> <strong>se</strong> v<strong>em</strong>para ele, e neste t<strong>em</strong>po da outra lancha outro arpoa<strong>do</strong>r lhe despede com a mesma força o arpéu, eela dá outra corrida como a primeira, da qual fica já tão cansada, <strong>que</strong> de todas as três lanchas alanceiam com lanças de ferros agu<strong>do</strong>s a mo<strong>do</strong> de meias-luas, e a fer<strong>em</strong> de maneira <strong>que</strong> dá muitosbrami<strong>do</strong>s com a <strong>do</strong>r, e quan<strong>do</strong> morre bota pelas ventas tanta quantidade de sangue para o ar, <strong>que</strong>cobre o sol, e faz uma nuv<strong>em</strong> vermelha, com <strong>que</strong> fica o mar vermelho, e este é o sinal <strong>que</strong> acabou, <strong>em</strong>orreu, logo com muita presteza <strong>se</strong> lançam ao mar cinco homens com cordas de linho grossas, e lhe


118apertam os <strong>que</strong>ixos e boca, por<strong>que</strong> não lhe entre água, e a atracam, e amarram a uma lancha, e todastrês vão vogan<strong>do</strong> <strong>em</strong> fileira até a ilha de Itaparica, <strong>que</strong> está três léguas fronteira a esta cidade, ondea met<strong>em</strong> no porto chama<strong>do</strong> da Cruz, e a espostejam, e faz<strong>em</strong> azeite.Gasta-<strong>se</strong> de soldadas com a gente <strong>que</strong> anda neste ministério, os <strong>do</strong>is me<strong>se</strong>s <strong>que</strong> dura apescaria, oito mil cruza<strong>do</strong>s, por<strong>que</strong> a cada arpoa<strong>do</strong>r <strong>se</strong> dá quinhentos cruza<strong>do</strong>s, e a menor soldada<strong>que</strong> <strong>se</strong> paga aos outros é de 30 mil-réis, fora comer, e beber de toda a gente; porém também é muitoo proveito, <strong>que</strong> <strong>se</strong> tira, por<strong>que</strong> de ordinário <strong>se</strong> matam 30 ou 40 baleias, e cada uma dá 20 pipas deazeite pouco mais ou menos, conforme é a sua grandeza, e <strong>se</strong> vende cada uma das pipas a 18 ou 20mil-réis, além <strong>do</strong> proveito <strong>que</strong> <strong>se</strong> tira da carne magra da baleia, a qual faz<strong>em</strong> <strong>em</strong> cobros, e tassalhos,e a salgam e põ<strong>em</strong> a <strong>se</strong>car ao sol, e <strong>se</strong>ca a met<strong>em</strong> <strong>em</strong> pipas, e vend<strong>em</strong> cada uma por 12 ou 15cruza<strong>do</strong>s, e nisto <strong>se</strong> não ocupa a gente <strong>do</strong> azeite, <strong>que</strong> são de ordinário 60 homens entre brancos enegros, os quais lhe são mais afeiçoa<strong>do</strong>s <strong>que</strong> a nenhum outro peixe, e diz<strong>em</strong> <strong>que</strong> os purga, e fazsarar de boubas, e de outras enfermidades, e frialdades, e os <strong>se</strong>nhores, quan<strong>do</strong> eles vêm feri<strong>do</strong>s dasbrigas, <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas bebedices, com este azeite <strong>que</strong>nte os curam, e saram melhor <strong>que</strong> combálsamos.Mas com <strong>se</strong> haver morto tanta multidão de baleias, <strong>em</strong> nenhuma <strong>se</strong> achou âmbar, <strong>que</strong> diz<strong>em</strong><strong>se</strong>r o <strong>se</strong>u mantimento, n<strong>em</strong> era <strong>do</strong> mesmo talho, e espécie, outra <strong>que</strong> saiu murta há poucos anosnesta Bahia, <strong>em</strong> cujo bucho e tripas <strong>se</strong> acharam 12 arrobas de âmbar gris finíssimo, fora outro <strong>que</strong>tinha vomita<strong>do</strong> na praia.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO PRIMEIRODe como Zorobabe chegou a Paraíba, e por suspeito de rebelião foi preso,e manda<strong>do</strong> ao reinoJá no capítulo trigésimo nono deste <strong>livro</strong> dis<strong>se</strong> como Zorobabe in<strong>do</strong> da guerra <strong>do</strong>s Aimoréspara a Paraíba deu de caminho, por manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r, no mocambo <strong>do</strong>s negros fugi<strong>do</strong>s,matou alguns, e prendeu outros, de <strong>que</strong> levou os <strong>que</strong> quis, e os foi vender aos brancos, com <strong>que</strong>comprou bandeira de campo, tambor, cavalo, e vesti<strong>do</strong>s para entrar triunfante <strong>em</strong> a sua terra, daqual o vieram esperar ao caminho alguns Potiguares 40 léguas, outros a vinte, e a dez, abrin<strong>do</strong>-lho,e limpan<strong>do</strong>-lho a enxada. Só o Braço de Peixe, <strong>que</strong> era gentio Tabajara, <strong>se</strong> deixou estar com os <strong>se</strong>usna sua aldeia, e por<strong>que</strong> o Zorobobe determinou passar por ela lhe man<strong>do</strong>u dizer <strong>que</strong> saís<strong>se</strong> a esperáloà entrada, pois os mais o haviam feito tão longe, ao <strong>que</strong> respondeu o velho, ainda <strong>que</strong> jácentenário, <strong>que</strong> fora de guerra nunca fora esperar ao caminho <strong>se</strong>não damas, e pois ele não era dama,n<strong>em</strong> vinha dar-lhe guerra, não <strong>se</strong> levantaria da sua rede, com a qual resposta o Zorobabe passou delargo, e foi jantar ao rio Niobi, meia légua da sua aldeia, por onde caminhava.Dali man<strong>do</strong>u também reca<strong>do</strong> aos nossos religiosos, <strong>que</strong> nela assistiam, <strong>que</strong> lhe mandass<strong>em</strong>uma dança de corumins, <strong>que</strong> eram os meninos da escola, e lhe enramass<strong>em</strong> a igreja, e abriss<strong>em</strong> aporta, por<strong>que</strong> havia de entrar nela.O presidente <strong>do</strong>s religiosos respondeu ao <strong>em</strong>baixa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> os meninos com o alvoroço da suavinda andavam to<strong>do</strong>s espalha<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> a igreja não <strong>se</strong> enramava <strong>se</strong>não a festa <strong>do</strong>s santos, mas <strong>que</strong> aporta estava aberta: entrou ele à tarde a cavalo, b<strong>em</strong> vesti<strong>do</strong>, e acompanha<strong>do</strong> com sua bandeira, etambor, e um índio valente com espada nua esgrimin<strong>do</strong> diante, e fazen<strong>do</strong> afastar a gente, <strong>que</strong> erainumerável.Com este triunfo passou pelo terreiro da igreja, e s<strong>em</strong> entrar nela <strong>se</strong> foi, meter <strong>em</strong> casa, maslogo veio um parente <strong>se</strong>u, <strong>que</strong> já era cristão, e <strong>se</strong> chamava Diogo Botelho, e até então havia


119governa<strong>do</strong> a aldeia, <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar, a desculpá-lo com os religiosos, <strong>que</strong> não entrara na igreja por virbêba<strong>do</strong>, porém <strong>que</strong> viria o dia <strong>se</strong>guinte, como fez, mandan<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> pôr no cruzeiro cincocadeiras, e a <strong>do</strong> meio, <strong>em</strong> <strong>que</strong> ele <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntou, estava coberta de alto a baixo com um lambel grandede lã listra<strong>do</strong>, nas outras <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntaram o dito <strong>se</strong>u parente, e os principais das outras aldeias, <strong>que</strong>vieram receber, <strong>do</strong>s quais era um o Mequiguaçu, principal <strong>em</strong> outra aldeia, <strong>que</strong> já era cristão, e <strong>se</strong>chamava d. Filipe, ali lhe foram os religiosos dar as boas-vindas, e o levaram para dentro, à escolaonde <strong>se</strong> ensinam os meninos, <strong>em</strong> <strong>que</strong> os as<strong>se</strong>ntos eram uns rolos, e pedaços de paus, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>as<strong>se</strong>ntaram, mas logo o Zorobabe <strong>se</strong> enfa<strong>do</strong>u, e qui<strong>se</strong>ra ir-<strong>se</strong> <strong>se</strong> o presidente o não detivera,dizen<strong>do</strong>-lhe <strong>que</strong> via ali junto to<strong>do</strong> o gentio da Paraíba, e muitos portugue<strong>se</strong>s, e <strong>que</strong> não iam a outracoisa, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s diziam, <strong>se</strong>não a saber sua determinação, pelo <strong>que</strong> ele <strong>que</strong>ria o dia <strong>se</strong>guinte, <strong>que</strong>era <strong>do</strong>mingo, pregar-lhes, e por<strong>que</strong> na pregação <strong>se</strong> não podia dizer <strong>se</strong>não a verdade, a <strong>que</strong>ria saberdele neste particular, por isso <strong>que</strong> não lha negas<strong>se</strong>; ao <strong>que</strong> respondeu <strong>que</strong> sua determinação era irdar guerra ao Milho Verde, <strong>que</strong> era um principal <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão, <strong>que</strong> lhe havia morto um sobrinho cristãochama<strong>do</strong> Francisco, e pelo <strong>se</strong>u nome antigo Aratibá, <strong>que</strong> <strong>se</strong>u irmão o Pau Seco havia manda<strong>do</strong> adar-lhe guerra, e pois ele por morte <strong>do</strong> pai, e filho entrava agora no governo, a <strong>que</strong>ria continuar, etomar a vingança; o presidente lhe dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> já eram vassalos de el-rei, e não podiam fazer guerrajusta s<strong>em</strong> ord<strong>em</strong> sua, e <strong>do</strong> <strong>se</strong>u governa<strong>do</strong>r geral nestes esta<strong>do</strong>s; e além disso, <strong>que</strong> b<strong>em</strong> sabia acondição <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us, <strong>que</strong> tanto <strong>que</strong> a guerra fos<strong>se</strong> apregoada haviam de largar a agricultura, e como àguerra não haviam de ir as mulheres, n<strong>em</strong> os velhos, e meninos, ficariam morren<strong>do</strong> de fome, pelo<strong>que</strong> <strong>se</strong> lhe pareces<strong>se</strong> pregaria <strong>que</strong> roçass<strong>em</strong>, e plantass<strong>em</strong> <strong>primeiro</strong>, e <strong>que</strong> esta fos<strong>se</strong> também a suafala, para <strong>que</strong> <strong>se</strong> aquietass<strong>em</strong>, no <strong>que</strong> ele con<strong>se</strong>ntiu, e assim <strong>se</strong> tornaram às suas aldeias quietos.O Zorobabe foi também visita<strong>do</strong> de muitos brancos da Paraíba, com boas peroleiras devinho, e outros pre<strong>se</strong>ntes, ou por <strong>se</strong>us interes<strong>se</strong>s de índios, por <strong>se</strong>us <strong>se</strong>rviços, e <strong>em</strong>preitadas, ou port<strong>em</strong>or <strong>que</strong> tinham da sua rebelião, por o ver<strong>em</strong> tão pujante, o qual t<strong>em</strong>or era tão grande <strong>que</strong> ocapitão da Paraíba, excita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s de Itamaracá, e Pernambuco, não cessava de escrever ao presidente<strong>que</strong> vigias<strong>se</strong>, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> dizia estar o gentio rebela<strong>do</strong> com a ida deste principal, o <strong>que</strong> os religiososnão <strong>se</strong>ntiam <strong>em</strong> algum mo<strong>do</strong>, por<strong>que</strong> o achavam mui obediente, só <strong>se</strong> <strong>que</strong>ixou uma vez <strong>que</strong> não iamà sua casa, como faziam os mais mora<strong>do</strong>res da Paraíba, ao <strong>que</strong> responderam os religiosos <strong>que</strong> nãoiam lá por<strong>que</strong> não era cristão, e tinha muitas mulheres, e ele dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> ce<strong>do</strong> as largaria, e fican<strong>do</strong>com só uma <strong>se</strong> batizaria, <strong>que</strong> já para isto tinha manda<strong>do</strong> criar muitas galinhas, por<strong>que</strong> ele não eravilão como os outros, <strong>que</strong> comiam nas suas bodas, e batismo carne de vaca, e caças <strong>do</strong> mato, mas<strong>que</strong> o <strong>se</strong>u ban<strong>que</strong>te havia de <strong>se</strong>r de galinhas, e aves de pena: contu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> <strong>em</strong>bebedava erainquieto e revoltoso, e foi crescen<strong>do</strong> tanto o me<strong>do</strong> nos portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> o prenderam e mandaram aAlexandre de Moura, capitão-mor de Pernambuco, e daí ao governa<strong>do</strong>r, os quais na prisão lhederam por muitas vezes peçonha na água e vinho, s<strong>em</strong> lhe fazer algum dano, por<strong>que</strong> diz<strong>em</strong> <strong>que</strong>receoso dela bebia de madrugada a sua própria câmara, e <strong>que</strong> com esta triaga <strong>se</strong> pre<strong>se</strong>rvava edefendia <strong>do</strong> veneno; finalmente o mandaram para Lisboa, <strong>do</strong>nde por <strong>se</strong>r porto de mar, <strong>do</strong> qual cadadia v<strong>em</strong> navios para o Brasil, <strong>em</strong> <strong>que</strong> podia tornar-<strong>se</strong>, o mandaram apo<strong>se</strong>ntar <strong>em</strong> Évora Cidade, e aíacabou a vida, e com ela as suspeitas da sua rebelião.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SEGUNDODo <strong>que</strong> aconteceu a uma nau flamenga, <strong>que</strong> por mercancia ia à capitania <strong>do</strong> Espírito Santocarregar de pau-<strong>brasil</strong>Costumavam ir ao Brasil urcas flamengas despachadas, e fretadas <strong>em</strong> Lisboa, Porto, e Vianacom fazendas da sua terra, e de merca<strong>do</strong>res portugue<strong>se</strong>s, para levar<strong>em</strong> açúcar, entre as quais foi


120uma a capitania <strong>do</strong> Espírito Santo, e pediu o capitão dela ao superior da casa <strong>do</strong>s padres dacompanhia, <strong>que</strong> ali t<strong>em</strong> <strong>do</strong>utrina de índios a <strong>se</strong>u cargo, <strong>que</strong> lhe mandass<strong>em</strong> fazer por eles uma cargade pau-<strong>brasil</strong> na aldeia de Reritiba, onde há muito, e t<strong>em</strong> um porto, e o ano <strong>se</strong>guinte tornaria abuscá-lo, e lhes trariam a paga <strong>em</strong> ornamentos para a igreja, ou no <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong>; deu o padre contadisto ao procura<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> ali estava, <strong>do</strong>s contrata<strong>do</strong>res <strong>do</strong> pau, e com o <strong>se</strong>u beneplácito <strong>se</strong> fez na ditaaldeia, porém <strong>se</strong>n<strong>do</strong> el-rei informa<strong>do</strong> <strong>que</strong> por essas urcas <strong>se</strong>r<strong>em</strong> mais fortes, e artilhadas, to<strong>do</strong>s<strong>que</strong>riam carregar antes nelas, e cessava a navegação <strong>do</strong>s navios portugue<strong>se</strong>s, e quan<strong>do</strong> os qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong>para armadas não os teria, n<strong>em</strong> homens <strong>que</strong> soubess<strong>em</strong> a arte de navegar, parecen<strong>do</strong>-lhe b<strong>em</strong> estarazão a el-rei, e outras <strong>que</strong> o moveriam, escreveu ao governa<strong>do</strong>r Diogo Botelho, e aos mais capitães,não con<strong>se</strong>ntiss<strong>em</strong> mais <strong>em</strong> suas capitanias entrar navio algum de estrangeiros por via de mercancia,n<strong>em</strong> por outra alguma, mas os metess<strong>em</strong> no fun<strong>do</strong>, e per<strong>se</strong>guiss<strong>em</strong> como a inimigos.Depois desta proibição chegou o flamengo a barra <strong>do</strong> Espírito Santo, e não achou já o padresuperior, por <strong>se</strong>r muda<strong>do</strong> para o Rio de Janeiro, <strong>se</strong>não outro, <strong>que</strong> lhe não falou a propósito, foi-<strong>se</strong> àaldeia onde o pau estava junto, e por<strong>que</strong> também os padres, <strong>que</strong> lá estavam, lho não deixaramcarregar, tomou quatro índios, e <strong>se</strong> foi ao Cabo Frio des<strong>em</strong>barcar, e dali por terra disfarça<strong>do</strong> a falarcom o padre no Colégio <strong>do</strong> Rio de Janeiro, o qual lhe dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> não tratas<strong>se</strong> disso, por<strong>que</strong> el-rei otinha proibi<strong>do</strong>, antes <strong>se</strong> tornas<strong>se</strong> com toda a cautela, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> Martim de Sá, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Rio, osabia, lhe custaria a vida; não <strong>se</strong> tornou com tanto <strong>se</strong>gre<strong>do</strong> o flamengo, <strong>que</strong> Martim de Sá o nãosoubes<strong>se</strong>, e assim man<strong>do</strong>u logo cinco canoas grandes com muitos homens brancos, e índiosflecheiros, e <strong>se</strong>u tio Manuel Corrêa por capitão, o qual chegou ao Cabo Frio a t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> os achou<strong>em</strong> terra com alguns flamengos, carregan<strong>do</strong> a lancha de pau-<strong>brasil</strong>, <strong>que</strong> ali estava feito, e lha tomou,e prendeu a to<strong>do</strong>s, voltan<strong>do</strong> outra vez para o Rio de Janeiro, onde não achou o sobrinho, <strong>que</strong> era i<strong>do</strong>por terra ao mesmo Cabo Frio, e quan<strong>do</strong> lá chegou, e não achou as canoas para ir tomar a nau, <strong>que</strong>estava ao pego, <strong>se</strong> tornou com muita cólera, e aprestou brev<strong>em</strong>ente quatro navios, <strong>que</strong> estavam àcarga, e saiu <strong>em</strong> busca da nau <strong>do</strong>s flamengos, <strong>que</strong> já andava à vela, man<strong>do</strong>u-lhes falar pelo <strong>se</strong>umesmo capitão, <strong>que</strong> levava preso, <strong>que</strong> não atirass<strong>em</strong>, e <strong>se</strong> deixass<strong>em</strong> abalroar, e eles assim ofizeram meti<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s debaixo da xareta, s<strong>em</strong> aparecer algum; houve portugue<strong>se</strong>s <strong>que</strong> a qui<strong>se</strong>ramde<strong>se</strong>nxarciar, ou cortar-lhe os mastros; respondeu Martim de Sá <strong>que</strong> a nau era já sua, e não a <strong>que</strong>rias<strong>em</strong> mastros e enxárcia.Era isto já de noite, e os nossos passavam por cima da xareta como por sua casa, quan<strong>do</strong> osflamengos e índios, <strong>que</strong> com eles iam, começaram a picá-los debaixo com os pi<strong>que</strong>s, e da proa, epopa dispararam duas ro<strong>que</strong>iras cheias de pedras, pregos, e pelouros, com <strong>que</strong> fizeram grandeespalhafato, mataram alguns, e feriram tantos, <strong>que</strong> os obrigaram deixar-lhe a nau, e ir<strong>em</strong>-<strong>se</strong> curar àcidade. Os flamengos, <strong>que</strong> <strong>se</strong> viram livres, <strong>se</strong> foram à ilha de Santa Anna quinze léguas <strong>do</strong> CaboFrio para o norte, a tomar água, de <strong>que</strong> estavam faltos, e há ali boas fontes, e bom surgi<strong>do</strong>uro paranaus, e por<strong>que</strong> não tinham batel fizeram uma prancha <strong>em</strong> <strong>que</strong> foram cinco com os barris à terra, epon<strong>do</strong> um no pico da ilha a vigiar o mar, os quatro enchiam os barris, e os iam levan<strong>do</strong> poucos epoucos.Não ficavam na nau mais <strong>que</strong> outros quatro homens, e <strong>do</strong>is moços, por<strong>que</strong> a mais gente lheshaviam leva<strong>do</strong> as canoas, o <strong>que</strong> considera<strong>do</strong> pelos índios, <strong>que</strong> também eram quatro, r<strong>em</strong>eteu cadaum a <strong>se</strong>u com facas e traça<strong>do</strong>s, e como estavam descuida<strong>do</strong>s facilmente foram mortos, os <strong>do</strong>ismoços grumetes re<strong>se</strong>rvaram flechan<strong>do</strong>-os na câmera, por<strong>que</strong> não avisass<strong>em</strong> aos da água, quan<strong>do</strong>viess<strong>em</strong>, e por<strong>que</strong> depois os ajudass<strong>em</strong> na navegação; e assim <strong>em</strong> chegan<strong>do</strong> os da água a bor<strong>do</strong> osmataram, e cortadas as amarras largaram as velas ao vento sul, <strong>que</strong> então ventava e era <strong>em</strong> popa,para a sua aldeia, mas como não sabiam navegar aos bor<strong>do</strong>s, e estan<strong>do</strong> já perto dela <strong>se</strong> virou o ventoao nordeste, tornaram a voltar para o Cabo Frio, passaram-no, e iam perto da barra <strong>do</strong> Rio deJaneiro, quan<strong>do</strong> outra vez lhe ventou o sul, e como <strong>do</strong> Cabo Frio ao Rio corre a costa de leste a


121oeste, e o sul lhe fica travessam, ali deu a nau através, e <strong>se</strong> fez <strong>em</strong> pedaços, salvan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> todavia osíndios a na<strong>do</strong>, <strong>que</strong> levaram a nova a Martim de Sá, o qual posto <strong>que</strong> já tinha acaba<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u governo,por<strong>que</strong> na<strong>que</strong>le mesmo dia entrou <strong>se</strong>u sucessor Afonso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, ainda com <strong>se</strong>u beneplácitofoi ver <strong>se</strong> podia salvar algumas fazendas das <strong>que</strong> saíam pela costa, mas poucas <strong>se</strong> aproveitaram, porvir<strong>em</strong> todas <strong>do</strong>s mares danadas e desfeitas.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO TERCEIRODa <strong>se</strong>gunda jornada, <strong>que</strong> fez Pero Coelho de Souza à <strong>se</strong>rra de Boapaba, e ruim sucesso <strong>que</strong> teveO capitão Pero Coelho de Souza, de qu<strong>em</strong> tratamos <strong>em</strong> o capítulo trinta e <strong>se</strong>te, <strong>se</strong> partiu commulher e filhos <strong>em</strong> uma caravela, e foi des<strong>em</strong>barcar <strong>em</strong> Ceará, onde havia deixa<strong>do</strong> o capitão SimãoNunes com os solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> ali estiveram ano e meio, <strong>em</strong> um forte de taipa, <strong>que</strong> fizeramaguardan<strong>do</strong> o socorro <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r, o qual como não chegas<strong>se</strong>, e houves<strong>se</strong> já muita falta deroupas, e mantimentos, re<strong>que</strong>reram os solda<strong>do</strong>s <strong>que</strong> <strong>se</strong> retirass<strong>em</strong> ao rio de Jaguaribe, <strong>do</strong>nde, por <strong>se</strong>rmais perto de povoa<strong>do</strong>, poderiam ir pedir o socorro, o <strong>que</strong> porventura fizeram, para de lá lhe ficarmais perto, e fácil a fugida, <strong>que</strong> fizeram, por<strong>que</strong> logo Simão Nunes pediu licença ao capitão-morpara passar da outra banda <strong>do</strong> rio a comer fruta, e como lá <strong>se</strong> viram não <strong>se</strong> curaram de colher fruta<strong>se</strong>não de <strong>se</strong> acolher<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> visto pelo capitão, e <strong>que</strong> lhe não ficavam mais <strong>que</strong> 18 solda<strong>do</strong>smancos, e por isso não foram com os outros, e <strong>do</strong>s índios só um chama<strong>do</strong> Gonçalo, por<strong>que</strong> tambémos mais fugiram, determinou tornar-<strong>se</strong> para sua casa, e com este, e com alguns solda<strong>do</strong>s menosmancos ordenou uma jangada de raízes de mangues, <strong>em</strong> <strong>que</strong> poucos e poucos passaram to<strong>do</strong>s o rio,e como o tiveram passa<strong>do</strong>, man<strong>do</strong>u marchar cinco filhos diante, <strong>do</strong>s quais o mais velho não passavade 18 anos, logo os solda<strong>do</strong>s, e detrás ele e sua mulher, to<strong>do</strong>s a pé, logo nesta primeira jornada a<strong>se</strong>ntir o trabalho, por<strong>que</strong>, tanto <strong>que</strong> a calma começou a cair, não havia qu<strong>em</strong> pudes<strong>se</strong> pôr o pé naareia de <strong>que</strong>nte, começava já o choro das crianças, os g<strong>em</strong>i<strong>do</strong>s da mulher, e lástima <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, eo capitão fazen<strong>do</strong> <strong>se</strong>u ofício, animan<strong>do</strong>, e dan<strong>do</strong> corag<strong>em</strong> a to<strong>do</strong>s.No <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> dia já o capitão carregava <strong>do</strong>is filhos pe<strong>que</strong>nos às costas por não poder<strong>em</strong>andar, e começavam as <strong>que</strong>ixas de <strong>se</strong>de, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não r<strong>em</strong>ediou <strong>se</strong>não ao terceiro dia por noite <strong>em</strong>uma cacimba, ou. poço de água <strong>do</strong>ce junto de outras duas salgadas, mas não haven<strong>do</strong> mais espaçodentre elas <strong>que</strong> de duas braças; ali <strong>se</strong> detiveram <strong>do</strong>is dias, e encheu o índio Gonçalo <strong>do</strong>is cabaços deágua, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> partiram, e caminharam algum t<strong>em</strong>po, com muito trabalho, e risco de Tapuiasinimigos, <strong>que</strong> por ali andam, e lhes viam os fumos; mas o pior inimigo era a fome e <strong>se</strong>de, com <strong>que</strong>começaram a morrer os solda<strong>do</strong>s; o <strong>primeiro</strong> foi um carpinteiro, com o qual os <strong>que</strong> já não podiamandar dis<strong>se</strong>ram ao capitão <strong>que</strong> os deixas<strong>se</strong> ficar, <strong>que</strong> com morrer acabariam <strong>se</strong>us trabalhos, comoacabava a<strong>que</strong>le, mas o capitão os animou, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> por diante, <strong>que</strong> Deus lhe daria forçaspara chegar aonde houves<strong>se</strong> água, e de comer, com isto <strong>se</strong> levantaram, e caminharam até morreroutro, ali <strong>se</strong> pôs d. Tomázia, mulher <strong>do</strong> capitão, a dizer tantas lástimas, <strong>que</strong> parece <strong>se</strong> lhe desfazia ocoração, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> tinha to<strong>do</strong>s <strong>se</strong>us filhos ao re<strong>do</strong>r de si, e pegan<strong>do</strong> dela <strong>do</strong> menor, até o maior,diziam <strong>que</strong> até ali bastavam caminhar <strong>que</strong> também <strong>que</strong>riam morrer com a<strong>que</strong>le hom<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> jánão podiam sofrer tanta <strong>se</strong>de, e ela derraman<strong>do</strong> de <strong>se</strong>us <strong>do</strong>is olhos <strong>do</strong>is rios de lágrimas, <strong>que</strong> b<strong>em</strong>puderam matar-lhe a <strong>se</strong>de, <strong>se</strong> não foram salgadas, dis<strong>se</strong> ao mari<strong>do</strong> fos<strong>se</strong> e salvas<strong>se</strong> a vida, por<strong>que</strong>ela não <strong>que</strong>ria já outra <strong>se</strong>não morrer <strong>em</strong> companhia de <strong>se</strong>us filhos, os solda<strong>do</strong>s uns rebentaram achorar, outros a pedir-lhe <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> caminhar; o capitão dissimulan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r o mais <strong>que</strong> pôde,dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> dali a pouco espaço estava uma cacimba de água, e com esta esperança tornaram acaminhar para a água amargosa, <strong>que</strong> assim <strong>se</strong> chamava a<strong>que</strong>la cacimba pelo amargor da água, pelo<strong>que</strong> chegan<strong>do</strong> a ela não houve qu<strong>em</strong> a bebes<strong>se</strong>, e foram caminhan<strong>do</strong> para outra, <strong>que</strong> chamam a boa


122maré, passan<strong>do</strong> meia légua de mangues com lo<strong>do</strong> até a cinta, onde acharam uns caranguejoschama<strong>do</strong>s oratus, e como até ali <strong>se</strong> não sustentavam <strong>se</strong>não <strong>em</strong> raízes de árvores; e de ervas, pegan<strong>do</strong><strong>do</strong>s caranguejos os comiam crus, com tanto gosto como <strong>se</strong> fora algum guisa<strong>do</strong> muito saboroso, <strong>em</strong>uito mais depois <strong>que</strong> chegaram à cacimba de água, onde descansaram alguns dias.Dali marcharam para as salinas muitos dias, e estan<strong>do</strong> nelas viram passar o barco, <strong>em</strong> <strong>que</strong>iam os padres da companhia, <strong>que</strong> era o socorro <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r lhes mandava, mas não lhepuderam falar, mas caminhan<strong>do</strong> avante da salina, morreu o filho mais velho <strong>do</strong> capitão, <strong>que</strong> era olume de <strong>se</strong>us olhos, e de sua mãe; o <strong>que</strong> cada qual deles fez neste passo deixo à consideração <strong>do</strong>s<strong>que</strong> ler<strong>em</strong>; aqui eram já os solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> parecer das crianças, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> até ali bastava, e s<strong>em</strong>dúvida o fizeram, <strong>se</strong> a mulher <strong>do</strong> capitão, esforçan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para os animar, lhe não pedira <strong>que</strong>qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> caminhar, pois também as crianças, o <strong>que</strong> eles começavam a fazer por <strong>se</strong>us rogos, ma<strong>se</strong>stavam tão fracos <strong>que</strong> o vento os derribava, e assim <strong>se</strong> iam deitan<strong>do</strong> pela praia até <strong>que</strong> o capitão,<strong>que</strong> <strong>se</strong> havia adianta<strong>do</strong> cinco ou <strong>se</strong>is léguas com <strong>do</strong>is solda<strong>do</strong>s mais valentes a buscar água, tornoucom <strong>do</strong>is cabaços dela, com <strong>que</strong> os refrigerou para poder<strong>em</strong> andar mais um pouco, <strong>do</strong>nde virampela praia vir uns vultos de pessoas, e era o padre vigário <strong>do</strong> Rio Grande, o qual pelo <strong>que</strong> lhedis<strong>se</strong>ram os solda<strong>do</strong>s fugi<strong>do</strong>s os vinha esperar com muitos índios, e redes para os levar<strong>em</strong>, muitaágua e mantimentos, e um crucifixo na mão, <strong>que</strong> <strong>em</strong> chegan<strong>do</strong> deu a beijar ao capitão, e aos mais, o<strong>que</strong> fizeram com muita devoção, e alegria, com muitas lágrimas, não derraman<strong>do</strong> menos o vigário,ven<strong>do</strong> a<strong>que</strong>le espetáculo, <strong>que</strong> não pareciam mais <strong>que</strong> caveiras sobre ossos, como <strong>se</strong> soube pintar amorte, e com muita caridade os levou, e teve no Rio Grande, até <strong>que</strong> <strong>se</strong> foram para a Paraíba, <strong>do</strong>ndePero Coelho de Souza <strong>se</strong> foi ao reino re<strong>que</strong>rer <strong>se</strong>us <strong>se</strong>rviços, e depois de gastar na Corte de Madrialguns anos s<strong>em</strong> haver despacho, <strong>se</strong> veio viver <strong>em</strong> Lisboa, s<strong>em</strong> tornar mais à sua casa.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO QUARTODa missão, e jornada, <strong>que</strong> por ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Diogo Botelho fizeram <strong>do</strong>is padres dacompanhia a mesma <strong>se</strong>rra de Boapaba, e como deferia aos rogos <strong>do</strong>s religiososNão só zelou o governa<strong>do</strong>r a conversão <strong>do</strong>s gentios, <strong>que</strong> já estavam de paz na Paraíba, epediam <strong>do</strong>utrina, como diss<strong>em</strong>os, mas também <strong>do</strong>s <strong>que</strong> ainda estavam na cegueira de suainfidelidade, e assim logo depois <strong>que</strong> veio para a Bahia pediu ao padre provincial da companhiaFernão Cardim mandas<strong>se</strong> <strong>do</strong>is padres a pregar-lhes à <strong>se</strong>rra da Boapaba, onde o capitão Pero Coelhode Souza andava, por<strong>que</strong> com isso <strong>se</strong> escusariam as guerras, <strong>que</strong> lhes faziam, e o custo delas, e <strong>se</strong>con<strong>se</strong>guiria o fim, <strong>que</strong> <strong>se</strong> pretendia, <strong>que</strong> era sua paz, e amizade, para <strong>se</strong> poder<strong>em</strong> povoar as terras, o<strong>que</strong> provincial logo fez, envian<strong>do</strong> os padres Francisco Pinto, varão verdadeiramente religioso, e d<strong>em</strong>uita oração, e trato familiar com Deus, entenden<strong>do</strong> nos costumes, e línguas <strong>do</strong> Brasil, e LuizFigueira, a<strong>do</strong>rna<strong>do</strong> de letras, e de <strong>do</strong>ns da natureza, e de graça.Estes <strong>se</strong> partiram de Pernambuco o ano de mil <strong>se</strong>iscentos e <strong>se</strong>te, no mês de janeiro, comalguns gentios das suas <strong>do</strong>utrinas, ferramenta, e vesti<strong>do</strong>s com <strong>que</strong> os aju<strong>do</strong>u o governa<strong>do</strong>r paradar<strong>em</strong> aos bárbaros. Começaram <strong>se</strong>u caminho por mar, e pros<strong>se</strong>guiram ao longo da costa 120 léguaspara o norte até o rio de Jagaribe, onde des<strong>em</strong>barcaram: daí caminharam por terra, e com muitotrabalho outras tantas léguas, até os montes de Ibiapana, <strong>que</strong> <strong>se</strong>rá outras tantas aquém <strong>do</strong> Maranhão,perto <strong>do</strong>s bárbaros, <strong>que</strong> buscavam, mas acharam o passo impedi<strong>do</strong> de outros mais bárbaros e cruéis<strong>do</strong> gentio Tapuia, aos quais tentearam os padres pelos índios <strong>se</strong>us companheiros com dádivas, para<strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> sua amizade, e os deixass<strong>em</strong> passar adiante, porém não qui<strong>se</strong>ram, mas antesmataram os <strong>em</strong>baixa<strong>do</strong>res, re<strong>se</strong>rvan<strong>do</strong> somente um moço de 18 anos, <strong>que</strong> os guias<strong>se</strong> aonde estavamos padres, como o fez, e <strong>se</strong>guin<strong>do</strong>-os muito número deles, sain<strong>do</strong> o padre Francisco Pereira da sua


123tenda, onde estava rezan<strong>do</strong>, a ver o <strong>que</strong> era, por mais <strong>que</strong> com palavras cheias de amor, ebenevolência os quis quietar, e os <strong>se</strong>us poucos índios com as flechas pretendiam defendê-los, elescom a fúria com <strong>que</strong> vinham mataram o mais valente, com <strong>que</strong> os mais não puderam resistir-lhe,n<strong>em</strong> defender o padre, <strong>que</strong> lhe não dess<strong>em</strong> com um pau roliço tais e tantos golpes na cabeça, <strong>que</strong>lha <strong>que</strong>braram, e o deixaram. morto, o mesmo qui<strong>se</strong>ram fazer ao padre Luiz Figueira, <strong>que</strong> nãoestava longe <strong>do</strong> companheiro, mas um moço da sua companhia <strong>se</strong>ntin<strong>do</strong> o ruí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s bárbaros oavisou, dizen<strong>do</strong> <strong>em</strong> língua portuguesa: «Padre, Padre, guarda a vida,» e o padre <strong>se</strong> meteu à pressanos bos<strong>que</strong>s, onde guarda<strong>do</strong> da Divina Providência o não puderam achar, por mais <strong>que</strong> o buscaram,e <strong>se</strong> foram contentes com os despojos, <strong>que</strong> acharam <strong>do</strong>s ornamentos, <strong>que</strong> os padres levavam paradizer missa, e alguns outros vesti<strong>do</strong>s, e ferramentas para dar<strong>em</strong>, com o <strong>que</strong> teve lugar o padre LuizFigueira de recolher <strong>se</strong>us poucos companheiros, espalha<strong>do</strong>s com me<strong>do</strong> da morte, e de chegar aolugar da<strong>que</strong>le ditoso sacrifício, onde acharam o corpo estendi<strong>do</strong>, a cabeça <strong>que</strong>brada, e desfigura<strong>do</strong> orosto, cheio de sangue e lo<strong>do</strong>, limpan<strong>do</strong>-o, e lavan<strong>do</strong>-o, e composto o defunto <strong>em</strong> uma rede, <strong>em</strong>lugar de ataúde, lhe deram <strong>se</strong>pultura ao pé de um monte, <strong>que</strong> não permetia então outro aparatomaior o aperto <strong>em</strong> <strong>que</strong> estavam: porém n<strong>em</strong> Deus permitiu <strong>que</strong> estives<strong>se</strong> assim muito t<strong>em</strong>po, antesme dis<strong>se</strong> Martim Soares, <strong>que</strong> agora é capitão da<strong>que</strong>le distrito, <strong>que</strong> o tinham já posto <strong>em</strong> uma igreja,onde não só <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, e cristãos, <strong>que</strong> ali moram, é venera<strong>do</strong>, mas ainda <strong>do</strong>s mesmos gentios.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO QUINTODe como o governa<strong>do</strong>r d. Diogo de Menezes veio governar a Bahia, e presidiu no tribunal,<strong>que</strong> veio, da relaçãoSó um ano <strong>se</strong> deteve o governa<strong>do</strong>r d. Diogo de Menezes <strong>em</strong> Pernambuco, por<strong>que</strong> teve avisode um galeão, <strong>que</strong> arribou a esta Bahia, in<strong>do</strong> para a Índia, e posto <strong>que</strong> logo man<strong>do</strong>u o sargento-mor<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> Diogo de Campos Moreno, com ord<strong>em</strong> de <strong>se</strong> concertar e prover de mantimentos, e <strong>do</strong>mais <strong>que</strong> lhe fos<strong>se</strong> necessário, como <strong>em</strong> efeito <strong>se</strong> fez, gastan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> no apresto dela da fazenda de SuaMajestade nove mil cruza<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> deu o contrata<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s dízimos, <strong>que</strong> então era Francisco Tinocode vila Nova, e contu<strong>do</strong> não quis o governa<strong>do</strong>r faltar com sua pre<strong>se</strong>nça, por<strong>que</strong> nada faltas<strong>se</strong> ao ditogaleão, para <strong>se</strong>guir sua viag<strong>em</strong>, como <strong>se</strong>guiu, mas por ir tarde, e achar ventos contrários deu à costana terra <strong>do</strong> Natal, salvan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> só a gente <strong>que</strong> coube no batel, <strong>em</strong> <strong>que</strong> foram à Índia, <strong>do</strong>nde tornaramos marinheiros <strong>em</strong> outra nau, <strong>que</strong> o ano <strong>se</strong>guinte <strong>se</strong> veio perder nesta Bahia, de <strong>que</strong> dir<strong>em</strong>os <strong>em</strong>outro capítulo.Tratan<strong>do</strong> agora <strong>do</strong> Tribunal da Relação, <strong>que</strong> este ano veio <strong>do</strong> reino, <strong>em</strong> <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>rpresidiu, e depois os mais governa<strong>do</strong>res <strong>se</strong>us sucessores; veio por chanceler desta casa Gaspar daCosta, <strong>que</strong> <strong>em</strong> breve t<strong>em</strong>po morreu, e lhe sucedeu no cargo Rui Mendes de Abreu, e como era coisanova esta no Brasil, e até este t<strong>em</strong>po <strong>se</strong> administrava a justiça só pelos juízes ordinários da terra, eum ouvi<strong>do</strong>r-geral, <strong>que</strong> vinha <strong>do</strong> reino de três <strong>em</strong> três anos, e quan<strong>do</strong> a gravidade <strong>do</strong> caso o pedia <strong>se</strong>lhe ajuntava o governa<strong>do</strong>r com o prove<strong>do</strong>r-mor <strong>do</strong>s defuntos, <strong>que</strong> era letra<strong>do</strong>, e os mais <strong>que</strong> lheparecia, não deixou de haver pareceres no povo / coisa mui anexa a novidades /, dizen<strong>do</strong> uns <strong>que</strong>foss<strong>em</strong> b<strong>em</strong>-vin<strong>do</strong>s os des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>res, outros <strong>que</strong> eles nunca cá vieram; porém depois <strong>que</strong>tiveram experiência da sua inteireza no julgar, e expediência nos negócios, <strong>que</strong> dantes um só nãopodia ter, não <strong>se</strong>i eu qu<strong>em</strong> pudes<strong>se</strong> <strong>que</strong>ixar-<strong>se</strong> com razão, <strong>se</strong>não o juízo eclesiástico, por<strong>que</strong> eramnesta matéria d<strong>em</strong>asiadamente nímios, e a conta de defender<strong>em</strong> a jurisdição de el-rei, totalmenteextinguiam a da igreja, o <strong>que</strong> Deus não <strong>que</strong>r, n<strong>em</strong> o próprio rei, antes el-rei d. Sebastião, <strong>que</strong> Deustenha no céu, man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u reino <strong>se</strong> guardas<strong>se</strong> o Concílio Tridentino, o qual manda


124aos bispos <strong>que</strong> na execução de suas <strong>se</strong>ntenças contra clérigos, e leigos, não us<strong>em</strong> facilmente deexcomunhões, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> <strong>primeiro</strong> prendam e procedam por outras penas, pelos <strong>se</strong>us ministros, oupor outros, e quan<strong>do</strong> já sobre isto haja algum <strong>do</strong>utor <strong>que</strong> escreves<strong>se</strong> o contrário, parece <strong>que</strong> não ébastante enquanto outro rei, ou outro concílio / <strong>que</strong> b<strong>em</strong> necessário era juntar-<strong>se</strong> sobre isto / o nãorevogue, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> hão de julgar agrava<strong>do</strong>s os amanceba<strong>do</strong>s, alcoviteiros, onzeneiros, e os mais <strong>que</strong>por eles agravam <strong>do</strong>s juízes eclesiásticos, e <strong>que</strong> não obedeçam a suas penas, ainda <strong>que</strong> <strong>se</strong>jamcensuras? de <strong>que</strong> efeito é logo a jurisdição eclesiástica? ou por<strong>que</strong> chamam a estes casos misti fori,<strong>se</strong> ainda depois de preventa <strong>se</strong> hão de entr<strong>em</strong>eter a perturbar esta, e defender os culpa<strong>do</strong>s, para <strong>que</strong><strong>se</strong> fiqu<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas culpas; não foi por certo esta a razão por<strong>que</strong> <strong>se</strong> chamaram misti fori, <strong>se</strong>nãopor<strong>que</strong> andass<strong>em</strong> à porfia a qu<strong>em</strong> <strong>primeiro</strong> os pudes<strong>se</strong> castigar, <strong>em</strong>endar, e extirpar da terra; nãonego <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> os juízes eclesiásticos proced<strong>em</strong> contra as regras de Direito, deve o <strong>se</strong>culardesagravar o réu, mas fora daí não deve, n<strong>em</strong> el-rei <strong>se</strong> <strong>se</strong>rve, n<strong>em</strong> Deus, <strong>que</strong> pelo <strong>que</strong> não importa<strong>se</strong> estorve a correição <strong>do</strong>s males, e <strong>se</strong> perturbe a paz entre os <strong>que</strong> a dev<strong>em</strong> zelar, como <strong>se</strong> fez depois<strong>que</strong> veio a relação ao Brasil, e particularmente na Bahia, onde ela residia, e custava tão pouco aosagravantes com razão, e s<strong>em</strong> ela, <strong>se</strong>guir<strong>em</strong> <strong>se</strong>us agravos, e o eclesiástico t<strong>em</strong> o r<strong>em</strong>édio tão longepara <strong>se</strong>us <strong>em</strong>prazamentos quanto há daqui ao reino, <strong>que</strong> são 1.500 léguas ou mais; e assim chegou obispo deste esta<strong>do</strong> d. Constantino de Barradas a termo de não ter qu<strong>em</strong> qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> <strong>se</strong>rvir de vigáriogeral.Uma coisa vi nesta matéria com a qual concluirei o capítulo / posto <strong>que</strong> <strong>em</strong> outro me há de<strong>se</strong>r força<strong>do</strong> tornar a ela /, e foi <strong>que</strong> ten<strong>do</strong> o dito bispo declara<strong>do</strong> por excomunga<strong>do</strong> nominatim a umhom<strong>em</strong>, agravou para a relação, e saiu, <strong>que</strong> era agrava<strong>do</strong>, e não <strong>se</strong> obedeces<strong>se</strong> à excomunhãomenor, <strong>que</strong> <strong>se</strong> incorre por tratar com os tais, e fugiam por não <strong>se</strong> encontrar, e falar com ele,man<strong>do</strong>u-<strong>se</strong> lançar ban<strong>do</strong> <strong>que</strong> sob pena de 20 mil cruza<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s lhe falass<strong>em</strong>, coisa <strong>que</strong> antes daexcomunhão não faziam, <strong>se</strong>não os <strong>que</strong> <strong>que</strong>riam, por<strong>que</strong> era um hom<strong>em</strong> particular.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SEXTODe como d. Francisco de Souza tornou ao Brasil a governar as capitanias <strong>do</strong> sul, e da sua morteMuito <strong>se</strong> receava no Brasil, pelo muito dinheiro <strong>que</strong> d. Francisco de Souza havia gasta<strong>do</strong> dafazenda de Sua Majestade, <strong>que</strong> lhe tomass<strong>em</strong> no reino estreita conta; porém como nada tornou paraentesourar, antes <strong>do</strong> <strong>se</strong>u próprio gastou, como o outro grão capitão, não tratou el-rei <strong>se</strong>não de lhefazer mercês, e por<strong>que</strong> ele não pediu mais <strong>que</strong> o mar<strong>que</strong>sa<strong>do</strong> de Minas de São Vicente o tornou amandar a elas, com o governo <strong>do</strong> Espírito Santo, Rio de Janeiro, e mais capitanias <strong>do</strong> sul, fican<strong>do</strong>nas <strong>do</strong> norte governan<strong>do</strong> d. Diogo de Menezes, como no t<strong>em</strong>po <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Luiz de Brito deAlmeida <strong>se</strong> havia concedi<strong>do</strong> a Antônio Sal<strong>em</strong>a.Trouxe d. Francisco consigo <strong>se</strong>u filho d. Antônio de Souza, <strong>que</strong> também já cá havia esta<strong>do</strong>para capitão-mor desta costa, e outro filho menino chama<strong>do</strong> d. Luiz; e Sebastião Parvi de Brito porouvi<strong>do</strong>r-geral da sua repartição, com apelação e agravo para relação desta Bahia; partiram <strong>em</strong> duascaravelas de Lisboa, e chegaram a Pernambuco <strong>em</strong> vinte e oito dias, onde ainda <strong>que</strong> não era <strong>do</strong> <strong>se</strong>ugoverno, e jurisdição, lhe fizeram muitas festas.Dali <strong>se</strong> foi para o Rio de Janeiro, e começou a entender no <strong>se</strong>u governo da terra, e o filho nomar, onde dizia Afonso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> então ali era capitão-mor, <strong>que</strong> lhe ficava para governar<strong>se</strong>não o ar, mas presto o deixaram, por<strong>que</strong> d. Francisco foi para as Minas, e d. Antônio para o reinocom as mostras <strong>do</strong> ouro delas, de <strong>que</strong> levava feita uma cruz e uma espada a Sua Majestade, o <strong>que</strong>tu<strong>do</strong> os corsários no mar lhe tomaram, n<strong>em</strong> o governa<strong>do</strong>r teve lugar de mandar outra com umaenfermidade grande, <strong>que</strong> teve na vila de São Paulo, da qual morreu estan<strong>do</strong> tão pobre, <strong>que</strong> me


125afirmou um padre da companhia, <strong>que</strong> <strong>se</strong> achava com ele à sua morte, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> uma vela tinha paralhe meter<strong>em</strong> na mão, <strong>se</strong> a não mandara levar <strong>do</strong> <strong>se</strong>u convento; mas <strong>que</strong>reria Deus alumiá-lo na<strong>que</strong>letenebroso tran<strong>se</strong>, por outras muitas <strong>que</strong> havia leva<strong>do</strong> diante, de muitas esmolas, e obras de piedade,<strong>que</strong> s<strong>em</strong>pre fez.Seu filho d. Luiz de Souza ainda <strong>que</strong> de pouca idade ficou governan<strong>do</strong> por eleição <strong>do</strong> povoaté <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou para o reino, tomou de caminho Pernambuco, e ali ficou casa<strong>do</strong> com uma filhade João Paes; e assim cessou o negócio das minas, posto <strong>que</strong> não deixam alguns particulares de ir aelas, cada vez <strong>que</strong> <strong>que</strong>r<strong>em</strong>, a tirar ouro, de <strong>que</strong> pagam os quintos a Sua Majestade, e não só <strong>se</strong> tirade lavag<strong>em</strong>, mas da própria terra, <strong>que</strong> botam fora depois de lavada, <strong>se</strong> tira também com artifício deazougue.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SÉTIMODa nova invenção de engenhos de açúcar, <strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po <strong>se</strong> fezComo o trato e negócio principal <strong>do</strong> Brasil é de açúcar, <strong>em</strong> nenhuma outra coisa <strong>se</strong> ocupamos engenhos, e habilidades <strong>do</strong>s homens tanto como <strong>em</strong> inventar artifícios com <strong>que</strong> o façam, eporventura por isso lhe chamam engenhos.L<strong>em</strong>bra-me haver li<strong>do</strong> <strong>em</strong> um <strong>livro</strong> antigo das propriedades das coisas <strong>que</strong> antigamente <strong>se</strong>não usava de outro artifício mais <strong>que</strong> picar, ou golpear as canas com uma faca, e o licor <strong>que</strong> pelosgolpes corria, e <strong>se</strong> coalhava ao sol, este era o açúcar, e tão pouco <strong>que</strong> só <strong>se</strong> dava por mesinha;depois <strong>se</strong> inventaram muitos artifícios, e engenhos para <strong>se</strong> fazer <strong>em</strong> maior quantidade, <strong>do</strong>s quaisto<strong>do</strong>s <strong>se</strong> usou no Brasil, como foram os <strong>do</strong>s pilões, de mós, e os de eixos, e estes últimos foram osmais usa<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> eram <strong>do</strong>is eixos postos um sobre o outro, movi<strong>do</strong>s com uma roda de água, ou debois, <strong>que</strong> andava com uma muito campeira chamada bolandeira, a qual ganhan<strong>do</strong> vento movia, efazia andar outras quatro, e os eixos <strong>em</strong> <strong>que</strong> a cana <strong>se</strong> moía; e além desta máquina havia outra deduas ou três gangorras de paus compri<strong>do</strong>s, mais grossos <strong>do</strong> <strong>que</strong> tonéis, com <strong>que</strong> a<strong>que</strong>la cana, depoisde moída nos eixos, <strong>se</strong> espr<strong>em</strong>ia, para o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong>, e para as fornalhas <strong>em</strong> <strong>que</strong> o cal<strong>do</strong> <strong>se</strong> coze, eincorpora o açúcar, era necessário uma casa de 150 palmos de compri<strong>do</strong> e 50 de largo, e era muitot<strong>em</strong>po e dinheiro o <strong>que</strong> na fábrica dela, e <strong>do</strong> engenho <strong>se</strong> gastava.Ultimamente, governan<strong>do</strong> esta terra d. Diogo de Menezes, veio a ela um clérigo espanholdas partes <strong>do</strong> Peru, o qual ensinou outro mais fácil e de menos fabrica e custo, <strong>que</strong> é o <strong>que</strong> hoje <strong>se</strong>usa, <strong>que</strong> é somente três paus postos de por alto muito justos, <strong>do</strong>s quais o <strong>do</strong> meio com uma roda deágua, ou com uma almanjarra de bois ou cavalos <strong>se</strong> move, e faz mover os outros; passada a cana poreles duas vezes larga to<strong>do</strong> o sumo s<strong>em</strong> ter necessidade de gangorras, n<strong>em</strong> de outra coisa, mais <strong>que</strong>cozer-<strong>se</strong> nas caldeiras, <strong>que</strong> são cinco <strong>em</strong> cada engenho, e leva cada uma duas pipas pouco mais oumenos de mel, além de uns tachos grandes, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> ponto de açúcar, e <strong>se</strong> deita <strong>em</strong>formas de barro no tendal, <strong>do</strong>nde as levam à casa de purgar, <strong>que</strong> é mui grande, e postas <strong>em</strong> andainaslhes lançam um bolo de barro bati<strong>do</strong> na boca, e depois da<strong>que</strong>le outro, com o açúcar <strong>se</strong> purga, e fazalvíssimo, o <strong>que</strong> <strong>se</strong> fez por experiência de uma galinha, <strong>que</strong> acertou de saltar <strong>em</strong> uma forma com ospés cheios de barro, e fican<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o mais açúcar par<strong>do</strong>, viram só o lugar da pegada ficou branca.Por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> estes engenhos <strong>do</strong>s três paus, a <strong>que</strong> chamam entrosas, de menos fabrica e custo,<strong>se</strong> desfizeram as outras máquinas, e <strong>se</strong> fizeram to<strong>do</strong>s desta invenção, e outros muitos de novo; pelo<strong>que</strong> no Rio de Janeiro, onde até a<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po <strong>se</strong> tratava mais de farinha para Angola <strong>que</strong> açúcar,agora há já 40 engenhos.Na Bahia 50, <strong>em</strong> Pernambuco 100, <strong>em</strong> Itamaracá 18 ou 20, e na Paraíba outros tantos; mas<strong>que</strong> aproveita fazer-<strong>se</strong> tanto açúcar <strong>se</strong> a cópia lhe tira o valor, e dão tão pouco preço por ele, <strong>que</strong>n<strong>em</strong> o custo <strong>se</strong> tira.


126A figura das entrosas, e engenhos de açúcar, <strong>que</strong> agora <strong>se</strong> usam assim de água, como debois, é a <strong>se</strong>guinte.Neste mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>que</strong> governava a Bahia d. Diogo de Menezes, entrou nela por fazermuita água uma nau da Índia, da qual era capitão Antônio Barroso, vin<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> <strong>em</strong> um batel ar<strong>em</strong>os o mestre, <strong>que</strong> havia i<strong>do</strong> no galeão o ano passa<strong>do</strong>, chama<strong>do</strong> Antônio Fernandes, o mau, apedir socorro, por<strong>que</strong> vinha a nau por três partes rachada, e já com 14 palmos de água dentro, e ogoverna<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u logo duas caravelas com pilotos práticos, <strong>que</strong> a trouxess<strong>em</strong> ao porto, o <strong>que</strong> nãobastou para <strong>que</strong> com a corrente da maré, <strong>que</strong> vazava, não <strong>se</strong> encostas<strong>se</strong> <strong>em</strong> uma baixa, onde porevitar maior dano lhe cortaram os mastros, e descarregaram com muita brevidade, e depois <strong>que</strong> deto<strong>do</strong> esteve descarregada, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> não tinha con<strong>se</strong>rto, lhe man<strong>do</strong>u d. Diogo pôr o fogo, chegan<strong>do</strong>quanto puderam à terra para <strong>se</strong> aproveitar a pregadura, como <strong>se</strong> aproveitou muita, a fazenda <strong>se</strong>entregou ao prove<strong>do</strong>r-mor, <strong>que</strong> então era o des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>r Pero de Cascais, o qual sobre isso foimanda<strong>do</strong> <strong>do</strong> reino <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> preso, como foi, e pelejan<strong>do</strong> no mar com um corsário o feriram <strong>em</strong> umpé, de <strong>que</strong> ficou manco, mas no <strong>que</strong> toca à fazenda, <strong>livro</strong>u-<strong>se</strong> b<strong>em</strong>, a qual man<strong>do</strong>u el-rei cá buscar<strong>em</strong> <strong>se</strong>te naus da armada por Feliciano Coelho de Carvalho, capitão-mor <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> da Paraíba, ea levou a salvamento.LIVRO QUINTODA HISTÓRIA DO BRASILDO TEMPO QUE O GOVERNOU GASPAR DE SOUZAATÉ A VINDA DO GOVERNADOR DIOGO LUIZ DE OLIVEIRACAPÍTULO PRIMEIRODa vinda <strong>do</strong> décimo governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil Gaspar de Souza, e como veio por Pernambuco a darord<strong>em</strong> à conquista <strong>do</strong> MaranhãoSabida por Sua Majestade a nova da morte de d. Francisco de Souza, tornou a juntar ogoverno <strong>do</strong> Brasil to<strong>do</strong> <strong>em</strong> um, e o deu a Gaspar de Souza, e por<strong>que</strong> os france<strong>se</strong>s no ano de mil<strong>se</strong>iscentos e <strong>do</strong>ze tinham (sic) a povoar o Maranhão, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> não tinham os reis de Portugalmais direito nele <strong>que</strong> eles, pois Adão o não deixara <strong>em</strong> testamento mais a uns <strong>que</strong> a outros, com estepretexto trouxeram 12 religiosos da nossa Ord<strong>em</strong> Capuchinhos para converter<strong>em</strong> os gentios, meioeficacíssimo para com muita facilidade os pacificar<strong>em</strong>, e povoar<strong>em</strong> a terra; man<strong>do</strong>u Sua Majestadeao governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> vies<strong>se</strong> por Pernambuco para daí dar ord<strong>em</strong> a lançar os france<strong>se</strong>s <strong>do</strong> Maranhão, eo povoar e fortificar, pois era da sua conquista pela Coroa de Portugal, e <strong>que</strong> d. Diogo de Menezes,<strong>se</strong>u antecessor, <strong>se</strong> fos<strong>se</strong> para o reino, pois tinha acaba<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u triênio, e ficass<strong>em</strong> governan<strong>do</strong> aBahia enquanto ele a ela não vinha o chanceler Rui Mendes de Abreu, e o prove<strong>do</strong>r-mor da fazendaSebastião Borges, os quais por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> ambos muito velhos e enfermos, ajuntou o governa<strong>do</strong>r por suaprovisão Baltazar de Aragão, aqui mora<strong>do</strong>r, por capitão-mor da guerra por terra, por ter aviso <strong>que</strong>vinham inimigos à terra, e <strong>em</strong> Pernambuco, para a <strong>do</strong> Maranhão a Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, qu<strong>em</strong>an<strong>do</strong>u com c<strong>em</strong> homens por mar cm quatro barcos descobrir os portos, e o <strong>que</strong> neles havia; o qualdiscorren<strong>do</strong> a costa avante <strong>do</strong> Ceará foi até o Buraco das Tartarugas, e aí fez uma cerca, e deixou


127um presídio, <strong>do</strong>nde mandan<strong>do</strong> o capitão Martim Soares Moreno <strong>em</strong> um barco a descobrir oMaranhão, <strong>se</strong> tornou a Pernambuco a dar conta ao governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>que</strong> tinha feito, e pedir mais gente,e cabedal para a conquista, <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r dilatou até a vinda de Martim Soares, e suainformação, ocupan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> entretanto no governo político, e administração da justiça, s<strong>em</strong> nesta fazerexceção de pessoas, pelo <strong>que</strong> era ama<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pe<strong>que</strong>nos, e t<strong>em</strong>i<strong>do</strong> <strong>do</strong>s grandes; fez também fazeralgumas obras importantes, como foi uma formosa casa para a alfândega sobre o vara<strong>do</strong>uro, onde <strong>se</strong>des<strong>em</strong>barcam as fazendas das barcas, e algumas calçadas nas ruas da vila, e uma mui comprida nocaminho de Jaboatão, onde com a muita lama atolavam os bois e carros, e não podiam trazer ascaixas de açúcar <strong>do</strong>s engenhos.Neste interim foi Martim Soares <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> sua viag<strong>em</strong>, descobrin<strong>do</strong> e reconhecen<strong>do</strong> a baía,rios e portos <strong>do</strong> Maranhão, e por via de índios levou reca<strong>do</strong> ao reino <strong>que</strong> estavam ali france<strong>se</strong>s <strong>em</strong>comércio, com o qual aviso man<strong>do</strong>u Sua Majestade ord<strong>em</strong> ao governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> tornas<strong>se</strong> a enviar aeste descobrimento o dito Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>.CAPÍTULO SEGUNDODe como man<strong>do</strong>u o governa<strong>do</strong>r a Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> a conquistar o MaranhãoEleito Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> por capitão-mor da conquista <strong>do</strong> Maranhão, como t<strong>em</strong>osdito, <strong>se</strong> foi logo às aldeias <strong>do</strong> nosso gentio pacífico, e por lhes saber falar b<strong>em</strong> a língua, e o mo<strong>do</strong>com <strong>que</strong> <strong>se</strong> levam, ajuntou quantos quis: um contarei só <strong>do</strong> <strong>que</strong> houve <strong>em</strong> uma aldeia, para <strong>que</strong> <strong>se</strong>veja a facilidade com <strong>que</strong> <strong>se</strong> leva este gentio de qu<strong>em</strong> os entende e conhece, e foi <strong>que</strong> pôs a umaparte bom feixe de arcos, e flechas, a outra outro de rocas, e fusos, e mostran<strong>do</strong>-lhos lhes dis<strong>se</strong>:“Sobrinhos, eu vou à guerra, estas são as armas <strong>do</strong>s homens esforça<strong>do</strong>s e valentes, <strong>que</strong> me hão de<strong>se</strong>guir; estas das mulheres fracas, e <strong>que</strong> hão de ficar <strong>em</strong> casa fian<strong>do</strong>; agora <strong>que</strong>ro ouvir qu<strong>em</strong> éhom<strong>em</strong>, ou mulher”. As palavras não eram ditas, quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> começaram to<strong>do</strong>s a des<strong>em</strong>punhar, epegar <strong>do</strong>s arcos, e flechas, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> eram homens, e <strong>que</strong> partiss<strong>em</strong> logo para a guerra; ele osquietou, escolhen<strong>do</strong> os <strong>que</strong> havia de levar, e <strong>que</strong> fizess<strong>em</strong> mais flechas, e foss<strong>em</strong> esperar a armadaao Rio Grande, onde de passag<strong>em</strong> os iria tomar.Não ajuntou com tanta facilidade o governa<strong>do</strong>r os solda<strong>do</strong>s brancos <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria mandar,por<strong>que</strong> exceto alguns, <strong>que</strong> por sua vontade <strong>se</strong> ofereceram a ir, os mais n<strong>em</strong> com prisões podiam <strong>se</strong>rtrazi<strong>do</strong>s, por<strong>que</strong> como os traziam de longe, e por matos <strong>do</strong>s engenhos e fazendas de noite, fugiam, ede 10 não chegavam quatro; porém caiu <strong>em</strong> uma traça mui boa, <strong>que</strong> foi obrigar aos homens ricos, eafazenda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> tinham mais de um filho, <strong>que</strong> dess<strong>em</strong> outro, com o <strong>que</strong> lhe sobejou gente; por<strong>que</strong>nenhum hom<strong>em</strong> destes man<strong>do</strong>u <strong>se</strong>u filho, s<strong>em</strong> ao menos mandar com eles um cria<strong>do</strong> branco, e <strong>do</strong>isnegros.Também pediu <strong>do</strong>is religiosos da nossa ord<strong>em</strong>, e o prela<strong>do</strong> lhe deu o irmão <strong>frei</strong> Cosme de S.Damião, varão prudente, e ob<strong>se</strong>rvantíssimo da sua regra, e <strong>frei</strong> Manuel da Piedade, mui perito nalíngua <strong>do</strong> Brasil, e respeita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s índios Potiguares, e Tabajaras, assim por <strong>se</strong>u pai João Tavares,como por <strong>se</strong>u irmão <strong>frei</strong> Bernardino das Neves, <strong>do</strong>s quais t<strong>em</strong>os trata<strong>do</strong> no <strong>livro</strong> precedente epor<strong>que</strong> a guerra não havia de <strong>se</strong>r só contra os índios, <strong>se</strong>não também contra france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> estavamcom a fortaleza feita, e já preveni<strong>do</strong>s, deu o governa<strong>do</strong>r a Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> porcompanheiro o sargento-mor <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> Diogo de Campos Moreno, solda<strong>do</strong> experimenta<strong>do</strong> nasguerras de França, e Flandres, e <strong>que</strong> sabia b<strong>em</strong> formar um campo, e os ardis e tretas da peleja.Feito isto <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram to<strong>do</strong>s dia de S. Bartolomeu, 24 de agosto da era de 1614 anos, <strong>em</strong>uma caravela, <strong>do</strong>is patachos e cinco caravelões; na caravela ia o capitão-mor, e <strong>se</strong>u filho Antônio deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> por capitão de uma companhia de 50 arcabuzeiros, de <strong>que</strong> era alferes Cristóvão Vaz


128Moniz, e sargento João Gonçalves Baracho; <strong>em</strong> um <strong>do</strong>s patachos ia o sargento-mor <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> Diogode Campos Moreno com 40 homens, no outro o capitão Gregório Fragoso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> iapor almirante, com 50 solda<strong>do</strong>s também arcabuzeiros, e <strong>se</strong>u alferes Conra<strong>do</strong> Lino, e sargentoFrancisco de Navaes.Dos caravelões eram capitães Martim Calla<strong>do</strong> com 25 homens, o sargento de Antônio deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> com 12, Luis Macha<strong>do</strong> com 15, Luis de Andrade com 12, e Manuel Vaz de Oliveiracom outros 12, e além desta gente branca, iam mais 200 índios de peleja, <strong>que</strong> Jerônimo deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> tinha escolhi<strong>do</strong> nas aldeias da Paraíba, e o estavam esperan<strong>do</strong> no Rio Grande os maisdeles com suas mulheres e famílias, onde os foi tomar, e os repartiu pelas <strong>em</strong>barcações, lhere<strong>que</strong>reram os religiosos mandas<strong>se</strong> ficar as índias, <strong>que</strong> iam s<strong>em</strong> mari<strong>do</strong>s, e algumas outras, <strong>que</strong> já dePernambuco iam amancebadas, e assim <strong>se</strong> fez.Dali foram ao Buraco das Tartarugas, onde havia deixa<strong>do</strong> o presídio, no qual <strong>se</strong> havia jáprova<strong>do</strong> a mão com os france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> ali foram aportar na nau regente, e des<strong>em</strong>barcaram duzentoscom o <strong>se</strong>u capitão às duas horas da tarde, onde lhes saíram o capitão Manuel de Souza e Sá com 18arcabuzeiros, e matan<strong>do</strong>-lhes alguns os fez <strong>em</strong>barcar, fican<strong>do</strong> também <strong>do</strong>s nosso um morto, e <strong>se</strong>isferi<strong>do</strong>s, e deu por causa o monsieur a qu<strong>em</strong> lhe perguntou por<strong>que</strong> <strong>se</strong> retirava, <strong>que</strong> viram muita gentena trincheira <strong>do</strong>nde os nossos saíram, e t<strong>em</strong>era <strong>que</strong> vin<strong>do</strong> de socorro lhes não poderiam escapar, nãoten<strong>do</strong> por possível <strong>que</strong> tão poucos homens houvess<strong>em</strong> cometi<strong>do</strong> a tantos, <strong>se</strong>não com as costas<strong>que</strong>ntes (como diziam), e confia<strong>do</strong>s nos muitos <strong>que</strong> atrás eles saíram, e os muitos eram vintesolda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> haviam fica<strong>do</strong> por não ter<strong>em</strong> pólvora, e munição, e <strong>se</strong> assomavam por cima datrincheira a ver de palan<strong>que</strong> a briga, <strong>que</strong> na praia <strong>se</strong> fazia, mas melhor causa dera <strong>se</strong> dis<strong>se</strong>ra <strong>que</strong> oquis assim Deus; e foi esta vitória como um presságio da <strong>que</strong> havia de con<strong>se</strong>guir no Maranhão, paraonde <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou também Manuel de Sousa com os <strong>se</strong>us solda<strong>do</strong>s, e Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> ofez capitão da vanguarda de to<strong>do</strong> o exército.CAPÍTULO TERCEIRODa guerra <strong>do</strong> Maranhão, e vitória <strong>que</strong> <strong>se</strong> alcançouDo Buraco das Tartarugas <strong>se</strong> partiu a nossa armada aos 28 de <strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro da dita era, enavegan<strong>do</strong> três dias inteiros foi ao quarto surgir a uma barra de um rio chama<strong>do</strong> a Parca, ondehouve opiniões <strong>se</strong> fariam algum forte, dizen<strong>do</strong> Diogo de Campos <strong>que</strong> não foss<strong>em</strong> logo buscardiretamente o inimigo aonde estava com toda a força, mas <strong>que</strong> lhe foss<strong>em</strong> pouco a pouco ganhan<strong>do</strong>terra, contu<strong>do</strong> Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> isso era infinito, e man<strong>do</strong>u ao piloto-morSebastião Martins com o capitão Francisco de Palhares, e treze solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> sondar o rio, ereconhecer a terra, como foram, e ten<strong>do</strong> anda<strong>do</strong> vinte léguas pouco mais ou menos deram na baía<strong>do</strong> Maranhão da banda <strong>do</strong> sul <strong>em</strong> um bom porto, <strong>que</strong> lhes pareceu capaz para estar a armada surta,com a qual informação <strong>se</strong> fez toda à vela, e navegan<strong>do</strong> cinco dias por onde o batel tornou, e chegoua este porto aos 28 <strong>do</strong> mês de outubro, dia <strong>do</strong>s b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong>s apóstolos S. Simão e Judas, <strong>do</strong>ndedes<strong>em</strong>barcaram na terra firme, e começaram a fazer um forte a <strong>que</strong> chamaram de Santa Maria, noqual ainda <strong>que</strong> de faxina e matéria fraca, materiam suparabat opus, pela boa traça <strong>que</strong> lhe deu ocapitão Francisco de Frias, arquiteto-mor de Sua Majestade nestas partes <strong>do</strong> Brasil, e este forte <strong>se</strong>fez ao leste da ilha de S. Luiz, onde estavam os france<strong>se</strong>s, os quais ven<strong>do</strong> as nossas <strong>em</strong>barcações, esaben<strong>do</strong> pelos índios, <strong>que</strong> trazi<strong>do</strong> (sic) por espias a pouca gente, <strong>que</strong> nelas estava, deram nelas umanoite e as tomaram com alguns marinheiros, <strong>que</strong> ainda <strong>se</strong> não haviam des<strong>em</strong>barca<strong>do</strong>, e dali a oitodias, <strong>que</strong> era o de Santa Isabel rainha de Portugal, nelas mesmas, e nas suas, com mais 46 canoas,<strong>em</strong> <strong>que</strong> iam três mil índios flecheiros, <strong>se</strong> passaram da ilha, e foram surgir espaço de <strong>do</strong>is tiros de


129mos<strong>que</strong>te, abaixo <strong>do</strong> nosso forte, onde logo começaram a des<strong>em</strong>barcar os das canoas, e das outras<strong>em</strong>barcações maiores, fican<strong>do</strong> o <strong>se</strong>u general Daniel de Lancé (de la Touché), <strong>que</strong> era monsieur deReverdière (sic), e Calvinista, nas maiores ao pego, esperan<strong>do</strong> <strong>que</strong> enches<strong>se</strong> a maré para sair com osmais, o <strong>que</strong> visto pelos nossos, e <strong>que</strong> <strong>se</strong> deixavam fortificar <strong>em</strong> terra, e pôr-nos cerco, não era onosso forte bastante para lhes resistir, n<strong>em</strong> havia nele mantimentos bastantes para resistir à fome,determinaram sair logo a eles, como fizeram, in<strong>do</strong> Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> com 80 arcabuzeiros e100 flecheiros pela montanha, e Diogo de Campos pela praia com o resto da gente, <strong>que</strong> era aindamenos, <strong>que</strong> ficavam no forte 60 solda<strong>do</strong>s e alguns índios a cargo <strong>do</strong> capitão Salva<strong>do</strong>r de Mello, para<strong>que</strong> <strong>se</strong> fos<strong>se</strong> necessário socorro o des<strong>se</strong>, e in<strong>do</strong> assim marchan<strong>do</strong> o sargento-mor pela praia, chegouum francês trombeta, <strong>em</strong> uma canoinha, <strong>que</strong> r<strong>em</strong>avam quatro índios, e lhe deu uma carta <strong>do</strong> <strong>se</strong>ugeneral monsieur de Reverdière, de grandes ameaças, <strong>se</strong> lhe qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> resistir, e <strong>que</strong> lavava asmãos <strong>do</strong> sangue, <strong>que</strong> <strong>se</strong> derramas<strong>se</strong>, por<strong>que</strong> tinha por si o direito da guerra, e muito maior força, aqual carta o sargento-mor meteu entre o véu <strong>do</strong> chapéu, e man<strong>do</strong>u o porta<strong>do</strong>r com outro véu nosolhos ao forte, para <strong>que</strong> o tivess<strong>em</strong> preso entretanto, por<strong>que</strong> não havia já t<strong>em</strong>po para mais outraresposta <strong>que</strong> esperar o sinal, <strong>que</strong> Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> havia de dar para r<strong>em</strong>eter<strong>em</strong>, o qualda<strong>do</strong> com um grande urro, <strong>que</strong> deu o nosso gentio ao sair da brenha, <strong>do</strong>nde o inimigo <strong>se</strong> nãoreceava, r<strong>em</strong>eteram também os da praia, in<strong>do</strong> <strong>em</strong> meio deles os nossos <strong>do</strong>is frades, <strong>frei</strong> Manuel, e<strong>frei</strong> Cosme, cada um com uma cruz na mão, animan<strong>do</strong>-os, e exortan<strong>do</strong>-os a vitória, <strong>que</strong> NossoSenhor foi <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> dar-lhes, <strong>em</strong> tal mo<strong>do</strong>, <strong>que</strong> pouco mais de meia hora mataram 70 france<strong>se</strong>s, eentre eles o tenente <strong>do</strong> <strong>se</strong>u general, tomaram vivos nove, e pu<strong>se</strong>ram os mais <strong>em</strong> fugida, morren<strong>do</strong><strong>do</strong>s nossos somente quatro, e alguns feri<strong>do</strong>s, entre os quais foi um o capitão Antônio deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, filho <strong>do</strong> capitão, com <strong>do</strong>is pelouros de arcabuz <strong>em</strong> uma coxa.Visto pelo general francês este destroço <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, e <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us índios, <strong>que</strong> ficaram muitosmortos, e os mais fugi<strong>do</strong>s, e <strong>que</strong> esta fora a resposta da sua arrogante carta, <strong>se</strong> tornou para a ilhacom a sua armada, e menos arrogância.CAPÍTULO QUARTODas tréguas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizeram entre os nossos e os france<strong>se</strong>s no MaranhãoAo dia <strong>se</strong>guinte man<strong>do</strong>u o general <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s outra carta a Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>em</strong><strong>que</strong> lhe fazia cargo <strong>do</strong> mal <strong>que</strong> havia guarda<strong>do</strong> as leis da guerra <strong>em</strong> lha dar s<strong>em</strong> <strong>primeiro</strong> responderà outra sua carta, antes lhe prender o porta<strong>do</strong>r, ameaçan<strong>do</strong>-o <strong>que</strong> <strong>se</strong> lho não mandava com os mais<strong>que</strong> lá tinha, havia de enforcar a sua vista os portugue<strong>se</strong>s <strong>que</strong> tinha na ilha, <strong>que</strong> haviam leva<strong>do</strong> comos navios, e não <strong>se</strong> enganas<strong>se</strong> pela vitória alcançada, cuidan<strong>do</strong> alcançaria outra, por<strong>que</strong> lhe haviamfica<strong>do</strong> ainda muitos e bons solda<strong>do</strong>s, fora outros <strong>que</strong> esperava de França, e muitos milhares degentios, com <strong>que</strong> lhes havia fazer cruel guerra, e tomar vingança das crueldades, <strong>que</strong> haviam usa<strong>do</strong>com os <strong>se</strong>us, e assinou-<strong>se</strong> ao pé da carta “Este <strong>se</strong>u mortal inimigo de Reverdière.” A esta respondeuJerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>que</strong> ele <strong>se</strong>nhor de Reverdière fora o <strong>que</strong> <strong>que</strong>brara as leis, e prática daguerra, mandan<strong>do</strong>-lhe tomar os navios, <strong>que</strong> estavam com quatro pobres marinheiros, desarma<strong>do</strong>s noporto da conquista de Sua Majestade, s<strong>em</strong> lhe escrever <strong>primeiro</strong>, <strong>se</strong>não depois de ter lança<strong>do</strong> <strong>em</strong>terra junto ao <strong>se</strong>u forte trezentos france<strong>se</strong>s, e três mil índios arma<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong> começavam a fortificar<strong>do</strong>nde já não havia outra resposta <strong>se</strong>não a <strong>que</strong> dá o direito, <strong>que</strong> é com uma força desfazer outra, e<strong>que</strong> <strong>se</strong> ele lá enforcas<strong>se</strong> os portugue<strong>se</strong>s cativos, mal <strong>se</strong>ria, <strong>que</strong> faria aos <strong>se</strong>us, <strong>que</strong> cá tinham; estas, eoutras razões continha a carta, a <strong>que</strong> logo o francês respondeu com outra já mais branda e cortês, eassim foram as <strong>que</strong> dali por diante <strong>se</strong> escreveram de parte a parte, e por fim sucedeu como ajoga<strong>do</strong>res de cartas, <strong>que</strong> depois de grandes invites e revides, de restos vieram a parti<strong>do</strong>, e concerto,


130sobre o qual (havi<strong>do</strong> salvo-conduto <strong>do</strong>s generais) vieram ao nosso forte de Santa Maria o capitãoMalharte, e um cavaleiro da ord<strong>em</strong> de S. João, e foi aos <strong>se</strong>us navios, onde o general então estava,Diogo de Campos Moreno, colega <strong>do</strong> capitão-mor, e o capitão Gregório Fragoso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>,<strong>se</strong>u sobrinho, e depois de declarar<strong>em</strong> uns e outros o <strong>que</strong> <strong>que</strong>riam, e as<strong>se</strong>ntar<strong>em</strong> <strong>que</strong> o generalfrancês, pois cometia as pazes, fizes<strong>se</strong> os capítulos delas, <strong>se</strong> vieram os nossos mensageiros, e <strong>se</strong>foram os <strong>se</strong>us, e ao dia <strong>se</strong>guinte tornou o capitão Malharte com os capítulos por escrito, <strong>que</strong> eram os<strong>se</strong>guintes:FORMA DAS TRÉGUASArtigos acorda<strong>do</strong>s entre os <strong>se</strong>nhores Daniel de Lancé (La Touché), <strong>se</strong>nhor de lá Raverdière,Lugar tenente general <strong>do</strong> Brasil pelo cristianíssimo rei de França e de Navarra, agente de MicerNicolas de Harley, <strong>se</strong>nhor de Sansy, <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho de Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> dito <strong>se</strong>nhor rei, e <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lhoPriva<strong>do</strong>, barão de Molé, e Grosbués; e por Micer de Rasilli, entre ambos lugar tenentes generais porel-rei cristianíssimo nas terras <strong>do</strong> Brasil com c<strong>em</strong> (sic) léguas de costa com to<strong>do</strong>s os meridianosnelas inclusos; e Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, capitão mor pela Majestade de el-rei Filipe Segun<strong>do</strong> dajornada <strong>do</strong> Maranhão, e assim o capitão e sargento-mor de to<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil, Diogo deCampos, colega, e colateral <strong>do</strong> dito capitão-mor, et cetera.It<strong>em</strong> — Primeiramente a paz <strong>se</strong> acor<strong>do</strong>u entre os ditos <strong>se</strong>nhores <strong>do</strong> dia de hoje até o fim denov<strong>em</strong>bro (sic) <strong>do</strong> ano de mil <strong>se</strong>iscentos e quinze, durante o qual t<strong>em</strong>po cessaram entre eles to<strong>do</strong>sos atos de inimizade, <strong>que</strong> hão dura<strong>do</strong> de 28 (sic) de outubro até hoje, por falta de saber as tenções deuns e outros, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> <strong>se</strong>guia grande perda <strong>do</strong> sangue cristão de ambas as partes, e grandesdesgostos entre os ditos <strong>se</strong>nhores.It<strong>em</strong> — Se acorda entre os ditos <strong>se</strong>nhores <strong>que</strong> enviaram às Suas Majestades Cristianíssima, eCatólica, <strong>do</strong>is fidalgos para saber suas vontades tocantes a qu<strong>em</strong> deve ficar nestas terras <strong>do</strong>Maranhão.It<strong>em</strong> — Durante o t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> os ditos mensageiros tardar<strong>em</strong> <strong>em</strong> tornar da Europa e trazer deSuas Majestades o acor<strong>do</strong>, e ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> deve <strong>se</strong>guir, nenhum português passará a ilha, n<strong>em</strong>francês a terra firme de leste s<strong>em</strong> passaporte <strong>do</strong>s <strong>se</strong>nhores generais, exceto eles e <strong>se</strong>us cria<strong>do</strong>ssomente, <strong>que</strong> puderam ir, e vir aos fortes da ilha, e terra firme todas as vezes <strong>que</strong> lhes parecer.It<strong>em</strong> — Que os portugue<strong>se</strong>s não trataram coisa alguma com os índios <strong>do</strong> Maranhão, a qualnão <strong>se</strong>ja tratada pelos línguas <strong>do</strong> <strong>se</strong>nhor Reverdière, e n<strong>em</strong> eles con<strong>se</strong>ntiram pôr os pés <strong>em</strong> terra amenos de duas léguas de suas fortalezas, n<strong>em</strong> de <strong>se</strong>us portos, s<strong>em</strong> permissão <strong>do</strong> dito <strong>se</strong>nhor.It<strong>em</strong> — Que tanto <strong>que</strong> o reca<strong>do</strong> vier de Suas Majestades, a nação <strong>que</strong> <strong>se</strong> mandar ir <strong>se</strong>aprestará dentro de três me<strong>se</strong>s para deixar ao outro a terra.It<strong>em</strong> — Se acorda <strong>que</strong> os prisioneiros, <strong>que</strong> foram toma<strong>do</strong>s de uma parte, e da outra, assimcristãos como gentios, fiqu<strong>em</strong> livres, e s<strong>em</strong> alguma lesão; mas <strong>se</strong> alguns deles por algum t<strong>em</strong>poqui<strong>se</strong>r<strong>em</strong> ficar na parte <strong>que</strong> <strong>se</strong> acham, lhes <strong>se</strong>rá permiti<strong>do</strong>.It<strong>em</strong> — Que o <strong>se</strong>nhor de Reverdière deixara o mar livre aos <strong>se</strong>nhores Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> eCampos, para <strong>que</strong> possam nos <strong>se</strong>us navios fazer vir todas as sortes de vitualhas, <strong>que</strong> houver<strong>em</strong>mister, com toda a <strong>se</strong>guridade, e <strong>se</strong> suceder <strong>que</strong> lhes venha socorro de gente de guerra, n<strong>em</strong> por issohaverá alteração alguma enquanto durar o t<strong>em</strong>po da paz, da maneira <strong>que</strong> está as<strong>se</strong>nta<strong>do</strong>.It<strong>em</strong> — Que nenhum acidente <strong>em</strong> controvérsia <strong>do</strong> <strong>que</strong> está as<strong>se</strong>nta<strong>do</strong> por estes <strong>se</strong>nhores terácapacidade de fazer romper este contrato de paz, a causa das grandes alianças, <strong>que</strong> hoje há entreSuas Majestades, e o prejuízo <strong>que</strong> pode vir <strong>em</strong> alterar-<strong>se</strong>; e <strong>se</strong> suceder algum caso de agravo entreos cristãos ou gentios de uma e outra parte, a nação agravada fará a sua <strong>que</strong>ixa ao <strong>se</strong>u general paralhe dar r<strong>em</strong>édio, e quanto a outras coisas de menos importância os ditos <strong>se</strong>nhores não as


131especificam, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> confiam <strong>em</strong> suas palavras, nas quais não faltaram jamais, como gente dehonra, e para <strong>se</strong>guridade, e firmeza de tu<strong>do</strong> o atrás declara<strong>do</strong> mandaram fazer estas, <strong>em</strong> <strong>que</strong> to<strong>do</strong>strês os ditos <strong>se</strong>nhores <strong>se</strong> assinaram, e <strong>se</strong>laram com os <strong>se</strong>los de suas armas, feita <strong>em</strong> armada francesa,diante o forte <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s no rio Maranhão, 27 de nov<strong>em</strong>bro de 1614 anos.»Depois de apre<strong>se</strong>nta<strong>do</strong>s estes capítulos, e vistos pelos nossos capitães, ao dia <strong>se</strong>guintevieram monsieur de Reverdière, e monsieur del Prate (du Prat), e <strong>frei</strong> Angelo, comissário <strong>do</strong>sCapuchinhos, com três frades companheiros, e outros fidalgos france<strong>se</strong>s com mostras de muitaalegria, a <strong>que</strong> da nossa parte <strong>se</strong> respondeu com a mesma, e <strong>se</strong> assinaram as pazes no nosso forte deSanta Maria, onde estiveram to<strong>do</strong> o dia, e à tarde <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram com grande salva de artilharia, e<strong>se</strong> foram para a ilha.Os <strong>que</strong> levaram esta <strong>em</strong>baixada a Espanha foram o sargento-mor Diogo de Campos, e comele como <strong>em</strong> reféns o capitão Malharte francês, e da mesma maneira foi como <strong>em</strong>baixa<strong>do</strong>r francês ocapitão Gregório Fragoso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> lá morreu, e também <strong>se</strong> foram logo os fradesfrance<strong>se</strong>s, ven<strong>do</strong> o pouco fruto <strong>que</strong> faziam na <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong>s gentios, por lhe não saber<strong>em</strong> a língua,deixan<strong>do</strong> aos <strong>do</strong>is da nossa custódia, <strong>que</strong> a entendiam, e sabiam <strong>se</strong>us mo<strong>do</strong>s, e não foram poucoadmira<strong>do</strong>s de ver <strong>que</strong> nestas partes tão r<strong>em</strong>otas houves<strong>se</strong> religiosos tão ob<strong>se</strong>rvantes da regra <strong>do</strong>nosso <strong>se</strong>ráfico padre S. Francisco, não menos o ficaram os nossos de ver <strong>que</strong> religiosos de tantavirtude, e autoridade viess<strong>em</strong> <strong>em</strong> companhia de hereges, posto <strong>que</strong> n<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s o eram, <strong>que</strong> muito<strong>se</strong>ram católicos romanos, <strong>que</strong> ouviam missa, confessavam-<strong>se</strong>, e comungavam-<strong>se</strong>; também <strong>se</strong> partiuManuel de Souza de Sá <strong>em</strong> um caravelão com a nova ao governa<strong>do</strong>r geral Gaspar de Souza, masarribou às Índias, e de lá a Lisboa, <strong>do</strong>nde com a nova lhe trouxe juntamente cartas de SuaMajestade, e ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> <strong>que</strong> havia de fazer.CAPÍTULO QUINTODo socorro, <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r Gaspar de Souza man<strong>do</strong>u por Francisco Caldeira de Castelo Brancoao MaranhãoEntenden<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r a necessidade <strong>que</strong> haveria no Maranhão de socorro assim de gentecomo de munições e mantimentos, logo no ano <strong>se</strong>guinte de mil <strong>se</strong>iscentos e quinze, ordenou outraarmada, de <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u por capitão-mor Francisco Caldeira de Castelo Branco, por almiranteJerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> de Mello <strong>em</strong> uma caravela, o capitão Francisco Tavares <strong>em</strong> outra, e Joãode Souza <strong>em</strong> um caravelão grande.Partiram <strong>do</strong> Recife, porto de Pernambuco, <strong>em</strong> 10 dias <strong>do</strong> mês de junho da dita era, e aosquatorze chegaram à en<strong>se</strong>ada de Mucuripe, <strong>que</strong> dista da fortaleza <strong>do</strong> Ceará três léguas, ondeancoraram, e saiu a gente <strong>em</strong> terra a <strong>se</strong> lavar e refrescar, por<strong>que</strong> iam alguns <strong>do</strong>entes de sarampo, <strong>que</strong>com isto guareceram, e os sãos pescaram com uma rede, <strong>que</strong> lhe deu o tenente da fortaleza, etomaram muito peixe.Aqui achou o capitão Francisco Caldeira três homens, <strong>que</strong> Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>,capitão-mor <strong>do</strong> Maranhão, mandava por terra pedir socorro ao governa<strong>do</strong>r, e estes eram SebastiãoVieira, Sebastião de Amorim, e Francisco de Palhares, <strong>do</strong>s quais os <strong>do</strong>is <strong>primeiro</strong>s não deixaram decontinuar <strong>se</strong>u caminho com as cartas, <strong>que</strong> levavam <strong>do</strong> Maranhão, e outras <strong>que</strong> daqui <strong>se</strong> escreveram,mas o Palhares <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou na armada assim pelo socorro, <strong>que</strong> já nela ia, como por dizer o tenente<strong>que</strong> havia poucos dias <strong>se</strong> partira da<strong>que</strong>le porto um patacho, <strong>que</strong> também el-rei mandara de Lisboacom munições e pólvora, e mais coisas necessárias, aos dezes<strong>se</strong>te <strong>se</strong> tornou a nossa armada a fazer àvela, e foi ancorar ao Buraco das Tartarugas aos dezoito, <strong>do</strong>nde man<strong>do</strong>u o capitão-mor um línguacom alguns índios a uma aldeia da gente <strong>do</strong> Diabo Grande, <strong>que</strong> era um principal <strong>do</strong>s Tabajarasassim chama<strong>do</strong>, fican<strong>do</strong> entretanto os mais pescan<strong>do</strong> na praia, e comen<strong>do</strong> abóboras e melancias,


132<strong>que</strong> acharam ali muitas, das plantas <strong>que</strong> havia deixa<strong>do</strong> Manuel de Souza de Sá quan<strong>do</strong> ali esteve, eJerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> quan<strong>do</strong> passou; e depois de tomar língua com os nossos índios, e maisquatro, <strong>que</strong> <strong>se</strong> ofereceram <strong>do</strong> Diabo Grande para a viag<strong>em</strong>, a tornaram a <strong>se</strong>guir até a barra <strong>do</strong> rioApereá, onde surgiram dia de S. João Batista, e ao entrar tocou o patacho, <strong>em</strong> <strong>que</strong> ia o capitão-mor,<strong>em</strong> um, banco de areia, de <strong>que</strong> escapou milagrosamente, por<strong>que</strong> haven<strong>do</strong> só cinco palmos de água, ed<strong>em</strong>andan<strong>do</strong> o capitão 10, in<strong>do</strong> com as velas todas enfunadas o cortou, ou saltou como qu<strong>em</strong> salta afogueira de S. João, e <strong>se</strong> pôs da outra parte <strong>do</strong> banco onde era fun<strong>do</strong>: dali man<strong>do</strong>u um barco com<strong>se</strong>is homens <strong>do</strong> mar, e três solda<strong>do</strong>s, de <strong>que</strong> ia por capitão Francisco de Palhares, para <strong>que</strong> foss<strong>em</strong>dar nova a Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> de como ali estavam, e lhes mandas<strong>se</strong> pilotos <strong>que</strong> os levass<strong>em</strong>pelo rio adentro, ou ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> <strong>que</strong> haviam de fazer, como logo lhes man<strong>do</strong>u <strong>do</strong>is pilotos, os quaisforam de parecer <strong>que</strong> não foss<strong>em</strong> por dentro, por causa de <strong>se</strong>r o rio de pouco vento, e muitos baixos,por con<strong>se</strong>guinte a viag<strong>em</strong> arriscada, e quan<strong>do</strong> menos detençosa, e assim tornaram a des<strong>em</strong>barcar, eforam por fora <strong>em</strong> <strong>do</strong>is dias surgir ao nosso porto da nossa fortaleza de Santa Maria véspera daVisitação da Senhora, <strong>que</strong> não foi pe<strong>que</strong>no contentamento <strong>do</strong> capitão-mor Jerônimo deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e <strong>do</strong>s mais <strong>que</strong> ali estavam sofren<strong>do</strong> grandes necessidades, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> os visitava o<strong>se</strong>nhor na<strong>que</strong>le dia com tão grande socorro, e assim <strong>se</strong> festejou com salva de toda a artilharia earcabuzaria de parte a parte, como pelo contrário <strong>se</strong> entristeceram os france<strong>se</strong>s, entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong>alterariam os nossos as pazes, <strong>que</strong> com eles tinham feito; e assim sucedeu, <strong>que</strong> acaba<strong>do</strong> dedescarregar os navios da fazenda, mantimentos, pólvora, e munições, <strong>que</strong> levavam, feita entrega detu<strong>do</strong> ao almoxarife, e <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s ao capitão-mor, com <strong>que</strong> reformou as companhias, <strong>que</strong> tinha, efez mais duas de novo de <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta homens cada uma, <strong>que</strong> entregou a Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> deMello, <strong>se</strong>u sobrinho, e a Francisco Tavares.Logo man<strong>do</strong>u chamar o general <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s monsieur Raverdière, e depois de lhe fazeruma formosa mostra da sua soldadesca da praia, onde o foi receber com Francisco Caldeira até afortaleza, <strong>se</strong> recolheram to<strong>do</strong>s três para dentro, e lhe dis<strong>se</strong> o capitão-mor como Francisco Caldeirade Castelo Branco levava ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r geral Gaspar de Souza para por armas, quan<strong>do</strong> nãoqui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> por vontade, lhe fazer despejar o Maranhão, e as fortalezas, <strong>que</strong> tinha na ilha de S. Luiz,por<strong>que</strong> não havia con<strong>se</strong>nti<strong>do</strong> nas tréguas, n<strong>em</strong> ainda sabia delas; ao <strong>que</strong> o Raverdière respondeu <strong>que</strong>conforme o concerto <strong>que</strong> tinham feito, <strong>se</strong> devia esperar resposta de <strong>se</strong>us reis, a qu<strong>em</strong> tinham escrito,e não inovar n<strong>em</strong> alterar coisa alguma; mas contu<strong>do</strong> <strong>que</strong> iria dar conta aos <strong>se</strong>us <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> tratava, ebrev<strong>em</strong>ente responderia, o <strong>que</strong> fez daí a quatro dias, pedin<strong>do</strong> <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> lá o capitão Caldeira, e opadre <strong>frei</strong> Manuel da Piedade, propor aos <strong>se</strong>us o <strong>que</strong> <strong>se</strong> havia trata<strong>do</strong>, e <strong>que</strong> eles levariam a últimaresolução, e resposta <strong>do</strong> negócio, os quais <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram na mesma lancha francesa, <strong>que</strong> havialeva<strong>do</strong> a carta, e des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> na ilha de S. Luiz <strong>se</strong> foram à fortaleza <strong>do</strong> nome <strong>do</strong> mesmo santo,onde os france<strong>se</strong>s estavam, e <strong>se</strong> detiveram lá <strong>em</strong> altercação 13 dias, da qual dilação presumin<strong>do</strong> malJerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> começava já aperceber para levar o negócio à força, e lhe fora muito fácilpor ter já to<strong>do</strong> o gentio <strong>do</strong> Maranhão inclina<strong>do</strong> ao ajudar<strong>em</strong> contra os france<strong>se</strong>s; porém eles <strong>se</strong>resolveram <strong>em</strong> largar tu<strong>do</strong> s<strong>em</strong> mais contenda, dan<strong>do</strong>-lhes <strong>em</strong>barcações, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> foss<strong>em</strong> paraFrança, pelo <strong>que</strong> <strong>se</strong> passaram os nossos para a ilha, a um forte e cerca, <strong>que</strong> fizeram, a <strong>que</strong> pu<strong>se</strong>ram onome de S. Jo<strong>se</strong>ph, e ali os deix<strong>em</strong>os por ora, por<strong>que</strong> importa tratar de outras coisas.CAPÍTULO SEXTODe como o capitão Baltazar de Aragão saiu da Bahia com uma armada contra os france<strong>se</strong>s,e <strong>se</strong> perdeu


133Receben<strong>do</strong> Baltazar de Aragão a provisão de capitão-mor da guerra desta Bahia, junto como aviso da vinda <strong>do</strong>s inimigo france<strong>se</strong>s, como diss<strong>em</strong>os no capítulo <strong>primeiro</strong>, logo começou aperceber e fortificar assim a cidade como a praia, cercan<strong>do</strong>-as de suas cercas de pau a pi<strong>que</strong>, comtanta diligência <strong>que</strong> a to<strong>do</strong> o instante trabalhava com os <strong>se</strong>us escravos, e cria<strong>do</strong>s s<strong>em</strong> ocupar aoutros, <strong>se</strong>não era a oficiais de carpinteiros, e pedreiros, com <strong>que</strong> fez de pedra e cal o muro e portalda barda <strong>do</strong> Carmo, <strong>que</strong> até então era de terra de pilão, reformou e fortificou as portas, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong>pagou da sua bolsa, e até os paus para a cerca da praia man<strong>do</strong>u vir qua<strong>se</strong> to<strong>do</strong>s nas barcas <strong>do</strong>s <strong>se</strong>u<strong>se</strong>ngenhos; estan<strong>do</strong> assim prestes aguardan<strong>do</strong> os inimigos, soube <strong>que</strong> andavam na barra para a parte<strong>do</strong> morro de São Paulo <strong>se</strong>is naus francesas, e aprestan<strong>do</strong> das portuguesas, <strong>que</strong> estavam à cargaoutras tantas, ele <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> uma sua, <strong>que</strong> já tinha dentro 300 caixas de açúcar, levan<strong>do</strong>consigo suas charamelas, baixela de prata, e as mais ricas alfaias de sua casa, por<strong>que</strong> determinavalevar logo de lá a presa ao governa<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> estava <strong>em</strong> Pernambuco.Das outras naus deu a melhor a Vasco de Brito Freire, <strong>que</strong> fez <strong>se</strong>u almirante, e as outras aGonçalo Bezerra, e Bento de Araújo, <strong>que</strong> eram capitães de el-rei, e comiam <strong>se</strong>u sol<strong>do</strong> nesta cidade,e ao alferes Francisco <strong>do</strong> Amaral, e a outro chama<strong>do</strong> Queirós; no dia <strong>se</strong>guinte depois <strong>que</strong> partiram,e foi o <strong>do</strong> b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong> Apóstolo S. Mathias, encontraram com os france<strong>se</strong>s, e pelejaram de partea parte animosamente, e os nossos com muita vantag<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> lhes tomaram uma nau, e lhestrataram a almeiranta tão mal, <strong>que</strong> ao outro dia <strong>se</strong>guinte <strong>se</strong> foi ao fun<strong>do</strong>, só a capitania quis Baltazarde Aragão poupar, não <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> <strong>que</strong> lhe tirass<strong>em</strong> <strong>se</strong>não abalroar com ela, e tomá-la Sá e inteirapara a levar por troféu <strong>em</strong> <strong>se</strong>u triunfo, mas não <strong>se</strong>i <strong>se</strong> com este vento <strong>se</strong> com outro, <strong>que</strong> lhe deu nasvelas, quan<strong>do</strong> ia já para a ferrar pendeu tanto a sua nau, <strong>que</strong> tomou água pelas portinholas daartilharia, e calan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> pelas escotilhas, <strong>que</strong> iam abertas, foi entran<strong>do</strong> tanta, <strong>que</strong> <strong>em</strong> continenti <strong>se</strong> foiao fun<strong>do</strong> com <strong>se</strong>u <strong>do</strong>no, o qual quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> fazia, diz<strong>em</strong> <strong>que</strong> dizia “Faço o meu ataúde”, e com ele <strong>se</strong>afogaram mais de 200 homens assim dentro na nau, como nadan<strong>do</strong> no mar, <strong>do</strong>nde não houve qu<strong>em</strong>os tomas<strong>se</strong>, por<strong>que</strong> a Almeiranta <strong>se</strong> recolheu, e os mais com ele, poden<strong>do</strong> <strong>se</strong>guir a vitória com muitafacilidade, e <strong>se</strong> alguns <strong>se</strong> salvaram foi nadan<strong>do</strong> até às naus <strong>do</strong>s inimigos, <strong>que</strong> os tomaram, como foiFrancisco Ferraz, filho <strong>do</strong> des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>r Baltazar Ferraz, <strong>que</strong> era sobrinho da mulher <strong>do</strong> Aragão, oqual depois deitaram os france<strong>se</strong>s <strong>em</strong> terra 60 léguas <strong>do</strong> Rio Grande para o Maranhão com outros<strong>do</strong>is ou três homens, onde de fome e cansaço <strong>do</strong> caminho morreu ao passar de um rio a puramíngua, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>que</strong> tinha de patrimônio nesta Bahia mais de 50 mil cruza<strong>do</strong>s, por<strong>que</strong> também <strong>se</strong>upai morreu logo de desgosto; e publicamente <strong>se</strong> dis<strong>se</strong> <strong>se</strong>r justo juízo de Deus por um casoexorbitante, <strong>que</strong> pouco antes havia aconteci<strong>do</strong>, e foi o <strong>se</strong>guinte.Tinha Baltazar Ferraz aqui um sobrinho, o qual <strong>se</strong> enamorou de uma moça casada com ummancebo honra<strong>do</strong>, e chegou a tirar-lha de casa, e trazê-la de sua mão por onde <strong>que</strong>ria, e finalment<strong>em</strong>andá-la para Viana <strong>do</strong>nde era natural; <strong>que</strong>relou dele o mari<strong>do</strong>, diante <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>r-geral Pero deCascais, <strong>que</strong> o prendeu valorosamente, e preso na cadeia <strong>se</strong> <strong>livro</strong>u até final <strong>se</strong>ntença, trabalhan<strong>do</strong> otio tanto <strong>em</strong> desviar test<strong>em</strong>unhas, recusar a parte, e outras astúcias, <strong>que</strong> os des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>res ojulgaram por solto, e livre, e <strong>se</strong> os prega<strong>do</strong>res o estranhavam no púlpito, diziam <strong>que</strong> eram unsignorantes, e <strong>que</strong> nunca outra mais justa <strong>se</strong>ntença <strong>se</strong> dera no mun<strong>do</strong>, e assim não havia maisr<strong>em</strong>édio <strong>que</strong> apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual como reto juiz permitiu <strong>que</strong> o réu <strong>se</strong><strong>em</strong>barcas<strong>se</strong> com o primo e parente, e to<strong>do</strong>s acabass<strong>em</strong> desastradamente, e o tio <strong>que</strong> <strong>se</strong> não<strong>em</strong>barcou também com eles.Outro mancebo chama<strong>do</strong> Agostinho de Paredes foi a na<strong>do</strong> até a almeiranta <strong>do</strong>s inimigos,mas como estavam coléricos por lhe ter<strong>em</strong> a nau tão maltratada, não o qui<strong>se</strong>ram recolher, antes in<strong>do</strong>subin<strong>do</strong> o feriram com um pi<strong>que</strong> <strong>em</strong> um ombro, de <strong>que</strong> depois de escapar <strong>do</strong> naufrágio, e <strong>do</strong>stubarões, <strong>que</strong> o iam <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> pelo sangue, nadan<strong>do</strong> mais de uma légua para a terra, esteve a pontode morte <strong>em</strong> mãos de cirurgiões, mas sarou, e viveu depois muitos anos.


134CAPÍTULO SÉTIMODa vinda <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Gaspar de Souza de Pernambuco à Bahia, e <strong>do</strong> <strong>que</strong> nela fezDepois <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u o capitão Francisco Caldeira de Castelo Branco com osocorro ao Maranhão, e soube o sucesso da morte <strong>do</strong> capitão Baltazar de Aragão na Bahia, pela qualnela sua pre<strong>se</strong>nça mais necessária, deu uma chegada, e não esperou <strong>que</strong> o foss<strong>em</strong> receber com pálioe solenidade, como <strong>se</strong> soe fazer aos governa<strong>do</strong>res quan<strong>do</strong> v<strong>em</strong>, mas <strong>se</strong>cretamente, com só umcria<strong>do</strong> <strong>se</strong> foi meter <strong>em</strong> casa, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> o fazia por <strong>se</strong>ntimento da morte de Baltazar Aragão.O dia <strong>se</strong>guinte foi à Sé. O <strong>primeiro</strong> dia <strong>que</strong> foi presidir a relação fez uma prática aosdes<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>res à cerca das <strong>que</strong>ixas, <strong>que</strong> deles tinha ouvi<strong>do</strong>, de <strong>que</strong> não ficaram mui contentes, e<strong>se</strong> as de ouvi<strong>do</strong> lhes não ficaram no tinteiro, menos lhe ficou depois alguma, <strong>se</strong> a viu, <strong>que</strong> logo anão repreendes<strong>se</strong>.É incrível o cuida<strong>do</strong> com <strong>que</strong> Gaspar de Souza vigiava sobre to<strong>do</strong>s os ministros, e ofícios dejustiça, e fazenda, da milícia e da República, s<strong>em</strong> lhe escapar o erro ou descui<strong>do</strong> <strong>do</strong> almotacé, ou dealgum outro, <strong>que</strong> não <strong>em</strong>endas<strong>se</strong>. Esta era a sua ocupação, não jogos e passat<strong>em</strong>pos, com <strong>que</strong> outrosgoverna<strong>do</strong>res diz<strong>em</strong> evitam a ociosidade, os quais ele desculpava, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> teriam mais talento,pois com lidar, e trabalhar de dia, e de noite, nas coisas <strong>do</strong> governo confessava de si, <strong>que</strong> nãoacabava de r<strong>em</strong>ediá-las, mas foi pouco venturosa a Bahia <strong>em</strong> não o gozar muito t<strong>em</strong>po, por<strong>que</strong> nãohavia esta<strong>do</strong> nela quatro me<strong>se</strong>s, quan<strong>do</strong> foi chama<strong>do</strong> a Pernambuco, pelo reca<strong>do</strong> de el-rei, <strong>que</strong> lheveio à cerca <strong>do</strong> Maranhão, e assim fez uma junta, ou vistoria na Sé com os des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>res, eoficiais da fazenda, da Câmera, e da arquitetura, sobre <strong>se</strong> a derribariam, e fariam de novo, oureparariam somente o <strong>que</strong> estava arruina<strong>do</strong> <strong>que</strong> era um arco da nave, uma parede, e o portalprincipal, e posto <strong>que</strong> o <strong>se</strong>u voto era <strong>que</strong> só <strong>se</strong> reparass<strong>em</strong> as ruínas, acrescentas<strong>se</strong> a capela-mor, e<strong>se</strong> fizes<strong>se</strong> um coro alto, <strong>que</strong> ainda não havia; contu<strong>do</strong> os mais votos foram <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizes<strong>se</strong> de novo,como <strong>se</strong> começou a fazer, para tarde ou nunca <strong>se</strong> acabar; com isto <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou o governa<strong>do</strong>r paraPernambuco, e ficaram governan<strong>do</strong> a Bahia o chanceler Rui Mendes de Abreu, e o prove<strong>do</strong>r-mor dafazenda Sebastião Borges, como dantes.CAPÍTULO OITAVODe como o governa<strong>do</strong>r tornou para Pernambuco, e man<strong>do</strong>u Alexandre de Moura ao MaranhãoO governa<strong>do</strong>r <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> uma caravela de castelhanos, <strong>que</strong> nesta Bahia estavainvernan<strong>do</strong> para no verão ir ao rio da Prata, e esta viag<strong>em</strong> acertei de ir a Pernambuco com ele, efomos <strong>em</strong> poucos dias, mas um antes de chegarmos houve tão grande tormenta <strong>do</strong> Sul, <strong>que</strong> t<strong>em</strong>en<strong>do</strong>o governa<strong>do</strong>r de <strong>se</strong> sossobrar a caravela com as grandes marés, man<strong>do</strong>u soltar <strong>do</strong>s ferros os presos,<strong>que</strong> levava condena<strong>do</strong>s à conquista <strong>do</strong> Maranhão, e me man<strong>do</strong>u pedir alguma relíquia, para deitarao mar, e <strong>que</strong> fizéss<strong>em</strong>os as nossas deprecações a Deus Nosso Senhor, como fiz<strong>em</strong>os, e meucompanheiro lhe man<strong>do</strong>u o cordão com <strong>que</strong> estava cingi<strong>do</strong>, o qual penduraram <strong>do</strong> bor<strong>do</strong> até o mar,e quis Nosso Senhor <strong>que</strong> a caravela <strong>em</strong> continente <strong>se</strong> quietas<strong>se</strong>, e moderas<strong>se</strong> o vento, e os mares, d<strong>em</strong>o<strong>do</strong> <strong>que</strong> ao dia <strong>se</strong>guinte entramos com bonança.O <strong>que</strong> visto pelos castelhanos não qui<strong>se</strong>ram tornar o cordão, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> por ele esperavamir <strong>se</strong>guros de t<strong>em</strong>pestades ao rio da Prata, n<strong>em</strong> foi esta só a vez, mas infinitas as <strong>que</strong> Deus por meio<strong>do</strong> cordão <strong>do</strong> nosso <strong>se</strong>ráfico padre São Francisco há livra<strong>do</strong> a muitos de naufrágios, e feitas outrasmuitas maravilhas, pelo <strong>que</strong> lhe <strong>se</strong>jam dadas infinitas graças, e louvores.


135O governa<strong>do</strong>r achou a Manuel de Souza de Sá, <strong>que</strong> o estava aguardan<strong>do</strong> com cartas de el-rei<strong>em</strong> Pernambuco sobre o negócio <strong>do</strong> Maranhão, <strong>em</strong> cujo cumprimento aprestou logo nove navios,quatro grandes e cinco pe<strong>que</strong>nos, com mais de 900 homens entre brancos e índios, com plantas, ega<strong>do</strong>s para povoar<strong>em</strong> a terra, e armas para a fazer<strong>em</strong> despejar aos france<strong>se</strong>s, quan<strong>do</strong> não qui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong>de outro mo<strong>do</strong>, por<strong>que</strong> assim o mandava el-rei, e por<strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po era já vin<strong>do</strong> Vasco de Souzapara capitão-mor de Pernambuco, e vagava Alexandre de Moura, <strong>que</strong> o havia si<strong>do</strong>, lhe encarregou ogoverna<strong>do</strong>r esta <strong>em</strong>presa, dan<strong>do</strong>-lhe to<strong>do</strong>s os <strong>se</strong>us poderes para prover nos ofícios da república <strong>em</strong>ilícia como lhe pareces<strong>se</strong>.Foi por almirante desta frota Paio Coelho de Carvalho, <strong>que</strong> também havia acaba<strong>do</strong> de <strong>se</strong>rcapitão-mor de Itamaracá, e depois de <strong>se</strong> ir <strong>do</strong> Maranhão para o reino, <strong>se</strong> fez religioso da ord<strong>em</strong> <strong>do</strong>nosso padre São Francisco na província da Arrabida. Os capitães <strong>do</strong>s outros navios eram JerônimoFragoso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, Manuel de Souza de Sá, Manuel Pires, Bento Maciel, Ambrósio Soares,Miguel Carvalho, André Corrêa; o capitão-mor Alexandre de Moura levou consigo <strong>do</strong>is Padres daCompanhia de Jesus, e com este santíssimo nome <strong>se</strong> partiram <strong>do</strong> Recife a 5 de outubro da era de1615.O governa<strong>do</strong>r n<strong>em</strong> por andar ocupa<strong>do</strong> nestas coisas deixava de entender nas <strong>do</strong> governo daterra, como fez <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po de Alexandre de Moura, de <strong>que</strong> Vasco de Souza menos sofri<strong>do</strong> <strong>se</strong>enfa<strong>do</strong>u muito, e man<strong>do</strong>u <strong>se</strong>u irmão religioso da ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> nosso padre, <strong>que</strong> consigo trouxe, comre<strong>que</strong>rimento a el-rei <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>se</strong>rvis<strong>se</strong> dele <strong>em</strong> outra coisa, por<strong>que</strong> ali estava ocioso, e só ogoverna<strong>do</strong>r fazia tu<strong>do</strong>, pelo <strong>que</strong> el-rei, ouvidas suas razões, lhe man<strong>do</strong>u provisão para <strong>que</strong> vies<strong>se</strong>por capitão-mor da Bahia, e a governas<strong>se</strong>, como o fez.CAPÍTULO NONODe uma armada de holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> passou pelo Rio de Janeiro para o estreito de Magalhães, e deoutra de france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> foi carregar de pau-<strong>brasil</strong> ao Cabo Frio, et coeteraNeste t<strong>em</strong>po <strong>se</strong>n<strong>do</strong> capitão-mor <strong>do</strong> Rio de Janeiro Constantino de Menelau, <strong>que</strong> sucedeu aAfonso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, foi aportar à en<strong>se</strong>ada <strong>do</strong> rio da Marambaia, <strong>que</strong> dista nove léguas abaixo<strong>do</strong> Rio de Janeiro, uma armada de <strong>se</strong>is naus holandesas, cujo general <strong>se</strong> chamava Jorge: soube-oMartim de Sá, <strong>que</strong> tinha um engenho ali perto na Tijuca, e entenden<strong>do</strong> como experimenta<strong>do</strong> <strong>que</strong> pornecessidade de água iam ali, e <strong>que</strong> haviam de des<strong>em</strong>barcar com o beneplácito <strong>do</strong> capitão-mor, aqu<strong>em</strong> escreveu, <strong>se</strong> foi lá uma noite com <strong>do</strong>ze canoas de gente, <strong>em</strong> <strong>que</strong> iriam 300 homensportugue<strong>se</strong>s, e Índios, os quais deixan<strong>do</strong>-as escondidas no rio, <strong>se</strong> des<strong>em</strong>barcaram delas, econjeturan<strong>do</strong> por três batéis, <strong>que</strong> viram na praia da en<strong>se</strong>ada, <strong>que</strong> andavam holande<strong>se</strong>s <strong>em</strong> terra,como de feito andavam uns à água, outros às frutas, b<strong>em</strong> descuida<strong>do</strong>s, os cercaram, e deram sobreeles tão subitamente, <strong>que</strong> ainda <strong>que</strong> <strong>se</strong> qui<strong>se</strong>ram defender trinta e <strong>se</strong>is holande<strong>se</strong>s <strong>que</strong> eram, nãopuderam, antes lhes mataram 22, e cativaram 14 com as lanchas, s<strong>em</strong> <strong>que</strong> das naus lhes pudess<strong>em</strong>valer, por<strong>que</strong> ficavam longe, e logo <strong>se</strong> fizeram à vela para <strong>se</strong>guir sua viag<strong>em</strong>, <strong>que</strong> era para o estreitode Magalhães, e por ele ao mar <strong>do</strong> Sul, e costa <strong>do</strong> Peru, onde passaram, e meteram no fun<strong>do</strong>algumas naus, <strong>que</strong> encontraram, as quais parece <strong>que</strong> não eram de tão boa madeira, como outras, <strong>que</strong>depois encontraram de Manilha, <strong>que</strong> é uma das ilhas Filipinas, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> combateram tambémfort<strong>em</strong>ente, mas enfim não as puderam levar, por<strong>que</strong> <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> me dis<strong>se</strong> um holandês, <strong>que</strong> <strong>se</strong> achoupre<strong>se</strong>nte, e era cirurgião de ofício, era tal a madeira da<strong>que</strong>las naus de Manilha, <strong>que</strong> a passava opelouro, e logo <strong>se</strong> <strong>se</strong>rrava o buraco por si mesmo s<strong>em</strong> ungüentos, n<strong>em</strong> outra coisa, o <strong>que</strong> não tinhamas suas holandesas, antes lhe meteram duas no fun<strong>do</strong>, e fugiu uma, e tomaram as outras, cativan<strong>do</strong> agente, <strong>que</strong> ficou com vida, meten<strong>do</strong>-os a rogar nas galés com tanta fome e trabalho, <strong>que</strong> tomaramantes a morte, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> este cirurgião dizia.


136Os outros, <strong>que</strong> tomaram no Rio de Janeiro, qui<strong>se</strong>ra Martim de Sá tomar a sua conta, para <strong>que</strong>andass<strong>em</strong> soltos, e levou para sua casa um chama<strong>do</strong> Francisco, e o regalou....NB. O resto deste capítulo nono não esta no manuscrito, n<strong>em</strong> nas <strong>em</strong>endas; além disto saltadeste capítulo para o décimo oitavo, haven<strong>do</strong> portanto uma falta de oito capítulos: o capítulodécimo oitavo é o <strong>se</strong>guinte.CAPÍTULO DÉCIMO OITAVODe como estan<strong>do</strong> provi<strong>do</strong> Henri<strong>que</strong> Corrêa da Silva por governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil, não veio; a causapor<strong>que</strong>; e como veio <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar Diogo de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>Ten<strong>do</strong> d. Luiz de Souza acaba<strong>do</strong> o triênio <strong>do</strong> <strong>se</strong>u governo <strong>do</strong> Brasil, e sua mulher a condessade Medelim na Corte, <strong>que</strong> re<strong>que</strong>ria sua ida, proveu Sua Majestade o cargo <strong>em</strong> Henri<strong>que</strong> Correa daSilva, <strong>que</strong> o aceitou de boa vontade, e bom zelo, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> alcancei algumas vezes <strong>que</strong> com ele falei<strong>em</strong> Lisboa, onde me achei na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po, no qual determinou Duarte de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> Coelho d<strong>em</strong>andar <strong>se</strong>u irmão Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> a governar a sua capitania: por<strong>que</strong> os maisgoverna<strong>do</strong>res, depois <strong>que</strong> Diogo Botelho a encetou, <strong>se</strong> vinham ali <strong>em</strong> direitura, por <strong>se</strong> nãoencontrar<strong>em</strong> <strong>em</strong> pontos de pre<strong>em</strong>inências, <strong>que</strong> como são pontos são indivisíveis, e cada um os <strong>que</strong>rto<strong>do</strong>s para si. Alcançou uma provisão de Sua Majestade, <strong>que</strong> <strong>se</strong> notificou ao governa<strong>do</strong>r Henri<strong>que</strong>Correa, para <strong>que</strong> <strong>se</strong> vies<strong>se</strong> <strong>em</strong> direitura à Bahia s<strong>em</strong> tocar Pernambuco, e <strong>se</strong> de arribada, ou dequal<strong>que</strong>r outro mo<strong>do</strong> lá fos<strong>se</strong> lhe não obedecess<strong>em</strong>; ao <strong>que</strong> ele respondeu <strong>que</strong> n<strong>em</strong> a Pernambuco,n<strong>em</strong> ao Brasil viria, por<strong>que</strong> não havia de dar homenag<strong>em</strong> das terras, <strong>que</strong> não podia ver comoestavam fortificadas, e o <strong>que</strong> haviam mister para <strong>se</strong>r<strong>em</strong> defendidas, e governadas como convém.Pelo <strong>que</strong> Sua Majestade, <strong>se</strong> havia de <strong>se</strong>r com a<strong>que</strong>la condição, podia prover o cargo <strong>em</strong> outr<strong>em</strong>,como de feito proveu logo <strong>em</strong> Diogo de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>, <strong>que</strong> havia vin<strong>do</strong> da Índia onde estavacasa<strong>do</strong>, e andava re<strong>que</strong>ren<strong>do</strong> na Corte a satisfação de <strong>se</strong>us <strong>se</strong>rviços.Diogo de Men<strong>do</strong>nça <strong>se</strong> aprestou o mais breve, <strong>que</strong> pôde; e por<strong>que</strong> os des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>res, <strong>que</strong>vieram com d. Diogo de Menezes, uns eram mortos, outros i<strong>do</strong>s para o reino com licença de el-rei, eoutros lha tinham pedida para <strong>se</strong> ir<strong>em</strong>, man<strong>do</strong>u <strong>se</strong>te com o governa<strong>do</strong>r, para <strong>que</strong> com <strong>do</strong>is, <strong>que</strong> cáestavam casa<strong>do</strong>s, <strong>se</strong> inteiras<strong>se</strong> outra vez a casa, e Tribunal da Relação.To<strong>do</strong>s partiram de Lisboa no mês de agosto de 1621, e chegan<strong>do</strong> à altura de Pernambuco,onde os navios, <strong>que</strong> para lá vinham <strong>se</strong> apartaram <strong>do</strong>s da Bahia, man<strong>do</strong>u o governa<strong>do</strong>r a eles umcria<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Gregório da Silva provi<strong>do</strong> na capitania <strong>do</strong> Recife, <strong>que</strong> estava vaga pela ausência deVicente Campello, posto <strong>que</strong> Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> o admitiu só na capitania da fortaleza de elrei,<strong>se</strong>paran<strong>do</strong>-lhe a <strong>do</strong> lugar ou povoação, <strong>que</strong> ali está, e dan<strong>do</strong>-a a um <strong>se</strong>u cria<strong>do</strong>, e assim andam já<strong>se</strong>paradas.CAPÍTULO DÉCIMO NONODa chegada <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Diogo de Men<strong>do</strong>nça à Bahia, e ida de <strong>se</strong>u antecessord. Luiz de Souza para o reinoEm 12 de outubro de 1621, a uma terça-feira, <strong>que</strong> o vulgo t<strong>em</strong> por dia aziago, chegou ogoverna<strong>do</strong>r Diogo de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>, <strong>que</strong> foi o duodécimo governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil, à Bahia, edes<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> foi leva<strong>do</strong> a Sé com acompanhamento solene, e daí a sua casa, <strong>do</strong>nde antes de subira escada, foi ver o armazém das armas, e pólvora, <strong>que</strong> estava na sua loja, d<strong>em</strong>onstração de <strong>se</strong> prezarmais de solda<strong>do</strong> e capitão, <strong>que</strong> de outra coisa, e na verdade esta era na<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po a maisimportante de todas, por <strong>se</strong> haver<strong>em</strong> acaba<strong>do</strong> as pazes ou tréguas entre Espanha, e os holande<strong>se</strong>s, e


137<strong>se</strong> esperar<strong>em</strong> novas guerras nestas partes transmarinas, <strong>que</strong> estas são s<strong>em</strong>pre as <strong>que</strong> pagam pornossos peca<strong>do</strong>s, e ainda pelos alheios, e assim é necessário <strong>que</strong> as ilhas e costas <strong>do</strong> mar estejams<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> arma.Isto parece <strong>que</strong> proveu o governa<strong>do</strong>r Diogo de Men<strong>do</strong>nça, quan<strong>do</strong> antes <strong>que</strong> entras<strong>se</strong> <strong>em</strong>casa, e <strong>se</strong> de<strong>se</strong>njoas<strong>se</strong>, e descansas<strong>se</strong> da viag<strong>em</strong>, quis ver o armazém de armas. Com <strong>se</strong>u antecessorenquanto <strong>se</strong>n<strong>do</strong> partiu para o reino correu com muita amizade, visitas de cumprimentos, assim <strong>em</strong>público nas igrejas, como <strong>em</strong> sua casa, a <strong>que</strong> d. Luiz respondia como bom cortesão; e aprestan<strong>do</strong>-<strong>se</strong>os navios, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> um patacho de Viana, chama<strong>do</strong> Manja Léguas, por <strong>se</strong>r bom navio devela, deixan<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s sau<strong>do</strong>sos com a sua ausência, por<strong>que</strong> nunca por obra, n<strong>em</strong> por palavra fezmal algum, e foi mui rico s<strong>em</strong> tomar o alheio, <strong>se</strong>não pelo grande cabedal <strong>que</strong> trouxe <strong>se</strong>u, e retorno<strong>que</strong> s<strong>em</strong>pre lhe vinha, antes fez alguns <strong>em</strong>préstimos, <strong>que</strong> lhe ficaram deven<strong>do</strong>, os quais não <strong>se</strong>idepois como <strong>se</strong> lhe pagariam.Fez <strong>em</strong> <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po uma formosa casa contígua com as suas para <strong>se</strong> fazer nela relação, <strong>que</strong> atéentão <strong>se</strong> fazia <strong>em</strong> casas de aluguel; e por<strong>que</strong> um s<strong>em</strong>inário, <strong>que</strong> el-rei havia manda<strong>do</strong> fazer comrenda para quatro órfãos estudar<strong>em</strong>, <strong>se</strong> havia desfeito, pelas casas <strong>se</strong>r<strong>em</strong> de taipa de terra, e caír<strong>em</strong>,começou outras de pedra e cal, mas n<strong>em</strong> por <strong>se</strong>r obra tão pia, n<strong>em</strong> por deixar já para ela <strong>se</strong>is milcruza<strong>do</strong>s consigna<strong>do</strong>s, houve qu<strong>em</strong> lhe pu<strong>se</strong>s<strong>se</strong> mão até agora, e <strong>que</strong>ira Deus <strong>que</strong> alguma hora ohaja.Levou d. Luiz <strong>em</strong> sua companhia Pero Gouvea de Mello, <strong>que</strong> fora prove<strong>do</strong>r-mor daFazenda, e o des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>r Francisco da Fon<strong>se</strong>ca Leitão; e tomou de caminho Pernambuco, para ir<strong>em</strong> companhia da frota, da qual não quis ir por capitão, por <strong>se</strong>r de navios mercantes, ou por não terocasião de entender com Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, capitão-mor de Pernambuco, com qu<strong>em</strong> nãoestava corrente.CAPÍTULO VIGÉSIMODe como Antônio Barreiros, filho <strong>do</strong> prove<strong>do</strong>r-mor da fazenda, foi por provisão <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>rgeral Diogo de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong> governar o Maranhão, Bento Maciel o Grão-Pará, e o capitãoLuiz Aranha a descobri-lo pelo cabo <strong>do</strong> Norte por manda<strong>do</strong> de Sua MajestadeSaben<strong>do</strong> Sua Majestade da morte de Jerônimo de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, capitão-mor <strong>do</strong> Maranhão,proveu na capitania com título de governa<strong>do</strong>r, independente <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil, a d. Diogo deCarcome, espanhol, casa<strong>do</strong> <strong>em</strong> Lisboa, o qual <strong>se</strong> deteve tanto t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> <strong>se</strong>us re<strong>que</strong>rimentos, epretensões, ou os ministros de el-rei no despachar, <strong>que</strong> <strong>primeiro</strong> o despachou a morte, e morreu <strong>em</strong>sua casa antes <strong>que</strong> de Lisboa <strong>se</strong> partis<strong>se</strong>. Pelo <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r determinou prover a <strong>se</strong>rventia,enquanto el-rei não mandava outro, e por<strong>que</strong> Sua Majestade tinha da<strong>do</strong> a prove<strong>do</strong>ria-mor de suafazenda a Antônio Barreiros por <strong>se</strong>is anos, com condição <strong>que</strong> <strong>se</strong> dentro neles fizes<strong>se</strong> <strong>do</strong>is engenhosde açúcar no Maranhão lhe faria mercê <strong>do</strong> ofício por toda a vida; proveu o governa<strong>do</strong>r na capitania<strong>do</strong> dito Maranhão a Antônio Moniz Barreiros, filho <strong>do</strong> dito prove<strong>do</strong>r, para com o poder <strong>do</strong> <strong>se</strong>ucargo melhor poder fazer os engenhos.Também proveu na <strong>do</strong> rio das Amazonas a Bento Maciel Parente, por <strong>se</strong>r morto JerônimoFragoso de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> o <strong>se</strong>rvia como fica dito, e neste mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>que</strong> foi no ano <strong>do</strong>Senhor de mil <strong>se</strong>iscentos e vinte e três, man<strong>do</strong>u Sua Majestade o capitão Luiz Aranha deVasconcelos <strong>em</strong> uma caravela de Lisboa a descobrir e sondar o dito rio pelo cabo <strong>do</strong> Norte, pordizer<strong>em</strong> <strong>que</strong> por ali podia tirar a sua prata <strong>do</strong> Potuci, com menos gasto, e para este efeito lhe deuprovisão para os capitães de Pernambuco, Rio Grande, Maranhão, e Pará lhe dar<strong>em</strong> tu<strong>do</strong> o <strong>que</strong> fos<strong>se</strong>necessário; <strong>em</strong> virtude das quais lhe deu Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>em</strong> Pernambuco uma lancha com17 solda<strong>do</strong>s, e o piloto Antônio Vicente, mui experimenta<strong>do</strong> na<strong>que</strong>la navegação, e lhe carregou na


138caravela oito mil cruza<strong>do</strong>s de diversas sortes de fazendas por conta de Sua Majestade para afortaleza <strong>do</strong> Pará, <strong>que</strong> havia <strong>do</strong>is anos <strong>se</strong> não provia com pagas, n<strong>em</strong> algum socorro, pelo <strong>que</strong>estava mui necessitada, e André Pereira Timu<strong>do</strong>, capitão-mor <strong>do</strong> Rio Grande, lhe deu quatrosolda<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s quais era um Pero Gomes de Gouvea <strong>se</strong>u alferes, <strong>que</strong> o capitão Luiz Aranha fezcapitão da lancha.Os outros eram o sargento Sebastião Pereira, Pero Fernandes Godinho, e um carpinteiro, <strong>que</strong>também foi importante à jornada. Antônio Moniz Barreiros no Maranhão lhe deu quinze solda<strong>do</strong>s,<strong>em</strong> <strong>que</strong> entrava um flamengo chama<strong>do</strong> Nicolau, <strong>que</strong> os índios haviam toma<strong>do</strong> no Pará sain<strong>do</strong>-<strong>se</strong> deum forte <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s lá tinham, com outros <strong>do</strong>is, e <strong>se</strong>te negros de Guiné, a uma roça a plantartabaco, e era prático na<strong>que</strong>le grande Rio.Para o qual <strong>se</strong> partiram os nossos <strong>do</strong> Maranhão, e chegaram à fortaleza a 14 de maio da ditaera de 1623, onde o capitão dela Bento Maciel, por dizer<strong>em</strong> <strong>que</strong> a caravela não poderia navegarcontra a corrente <strong>do</strong> rio, lhes deu outra lancha, e algumas canoas de índios, e lhes dava tambémtrinta solda<strong>do</strong>s brancos com <strong>se</strong>u capitão sinala<strong>do</strong>, <strong>que</strong> Luiz Aranha não quis aceitar, por <strong>que</strong>rer <strong>se</strong>rele o <strong>que</strong> lho sinalas<strong>se</strong>, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> Sua Majestade lhe mandava dar solda<strong>do</strong>s, e não capitães; mascontentou-<strong>se</strong> com os índios, e com o comissário <strong>que</strong> ali estava da nossa ord<strong>em</strong> e província <strong>frei</strong>Antônio da Merciana lhe dar o irmão <strong>frei</strong> Cristóvão de São José por capelão desta jornada, o qualera tão respeita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s índios, <strong>que</strong> <strong>em</strong> poucos dias de navegação pelo rio acima lhe ajuntou quarentacanoas com mais de mil flecheiros amigos, <strong>que</strong> de boa vontade <strong>se</strong>guiram ao capitão, movi<strong>do</strong>stambém das muitas dádivas, <strong>que</strong> ele dava aos principais, e a outros, <strong>que</strong> lhe traziam suas ofertas decaça, frutas, e legumes, as quais não aceitava s<strong>em</strong> pagar-lhes com ferramentas, velório, pentes,espelhos, anzóis, e outras coisas, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> assim lho mandava el-rei.Com esta multidão de índios, e os poucos solda<strong>do</strong>s brancos, <strong>que</strong> havia trazi<strong>do</strong> das outrascapitanias, <strong>se</strong>guiu sua viag<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong> algumas grandes tormentas, principalmente uma com <strong>que</strong>lhe <strong>que</strong>brou o l<strong>em</strong>e da lancha maior, e os obrigou a tomar terra, onde o carpinteiro, <strong>que</strong> haviatrazi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Grande, fez outro de um madeiro, <strong>que</strong> cortaram, com o qual, posto <strong>que</strong> as fêmea<strong>se</strong>ram de cordas, e era necessário renová-las cada três dias, todavia governava muito b<strong>em</strong>, e assimforam to<strong>do</strong>s navegan<strong>do</strong> até certa parag<strong>em</strong>, onde o flamengo Nicolau, <strong>que</strong> traziam <strong>do</strong> Maranhão,lhes dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> estava perto um forte de holande<strong>se</strong>s, os quais não esperan<strong>do</strong> <strong>que</strong> os nossoschegass<strong>em</strong>, mandaram mais de <strong>se</strong>tecentos índios <strong>se</strong>us confedera<strong>do</strong>s a salteá-los no rio, comofizeram à meia-noite, e <strong>se</strong> travou entre uns e outros uma batalha, <strong>que</strong> durou duas horas, mas foiDeus <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> de dar aos nossos vitória com morte de 200 contrários, fora 30 <strong>que</strong> tomaram vivos <strong>em</strong>duas canoas, <strong>do</strong>s quais <strong>se</strong> soube haver <strong>se</strong>is ou <strong>se</strong>te <strong>que</strong> eram amigos, e compadres <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>spor dádivas, <strong>que</strong> deles recebiam, quan<strong>do</strong> vinham navios de Holanda, mas <strong>que</strong> na<strong>que</strong>la ocasiãonenhum estava no porto, n<strong>em</strong> havia na fortaleza mais de trinta solda<strong>do</strong>s, e alguns escravos deGuiné, com qu<strong>em</strong> lavravam tabaco.Ouvi<strong>do</strong> isto pelo capitão man<strong>do</strong>u r<strong>em</strong>ar até <strong>se</strong> porém leste a oeste com o forte, e <strong>em</strong>amanhecen<strong>do</strong> man<strong>do</strong>u lá um solda<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma canoa pe<strong>que</strong>na, <strong>que</strong> r<strong>em</strong>avam quatro r<strong>em</strong>eiros, e suabandeira branca, a dizer <strong>que</strong> <strong>se</strong> entregass<strong>em</strong> dentro de uma hora primeira, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> os poria to<strong>do</strong>sa cutelo, por<strong>que</strong> assim lho mandava o <strong>se</strong>u rei de Espanha, cujas eram a<strong>que</strong>las terras e conquistas.Ao <strong>que</strong> responderam <strong>que</strong> a<strong>que</strong>la fortaleza era, e <strong>se</strong> sustentava pelo conde Maurício, pelo <strong>que</strong><strong>se</strong> não podiam entregar s<strong>em</strong> ord<strong>em</strong> sua, e para esta vir era pouco t<strong>em</strong>po o <strong>que</strong> lhes dava.Mas depois <strong>se</strong> soube <strong>que</strong> o <strong>se</strong>u intento não era este, <strong>se</strong>não esperar <strong>que</strong> lhe vies<strong>se</strong> socorro deoutra fortaleza, <strong>que</strong> distava desta 10 léguas, <strong>do</strong> <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> de<strong>se</strong>nganaram com lhe responder LuizAranha <strong>que</strong> ele tinha já ord<strong>em</strong>, <strong>que</strong> havia de <strong>se</strong>guir, e não tinha <strong>que</strong> aguardar outra, e mais quan<strong>do</strong> avantag<strong>em</strong> <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us solda<strong>do</strong>s era tão conhecida, e por<strong>que</strong> assim o cuidass<strong>em</strong> man<strong>do</strong>u pôr entre osbrancos, assim nas lanchas como nas canoas, muitos índios com roupetas, chapéus, ou carapuças,


139com <strong>que</strong> ao longe pareciam to<strong>do</strong>s brancos, e bastou este ardil, e outros de <strong>que</strong> usou, para <strong>que</strong> logolevantass<strong>em</strong> bandeira de paz, e <strong>se</strong> entregass<strong>em</strong> com a artilharia, mos<strong>que</strong>tes, arcabuzes, munições,escravos, e fazendas, <strong>que</strong> tinham na fortaleza, a qual os nossos <strong>que</strong>imaram, e arrasaram; e o dia<strong>se</strong>guinte, <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> ir dar <strong>em</strong> outra fortaleza, man<strong>do</strong>u uma canoa com 40 romeiros to<strong>do</strong>s índiosflecheiros, e três homens brancos muito animosos, <strong>que</strong> eram Pero da Costa, Jerônimo Correa deSe<strong>que</strong>ira, e Antônio Teixeira, a descobrir o caminho, aos quais saíram 12 canoas de gentiocontrário, chama<strong>do</strong>s Haruans, e toman<strong>do</strong> a nossa <strong>em</strong> meio s<strong>em</strong> <strong>que</strong>rer<strong>em</strong> admitir a paz, e amizade,<strong>que</strong> lhes denunciavam, começaram a disparar muita flecharia, os nossos já como de<strong>se</strong>spera<strong>do</strong>s davida, por<strong>que</strong> não podiam <strong>se</strong>r socorri<strong>do</strong>s tão b<strong>em</strong> depressa <strong>do</strong>s mais, <strong>que</strong> ficavam longe,encomendan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a Deus, <strong>se</strong> defenderam, e pelejaram tão animosamente, <strong>que</strong> já quan<strong>do</strong> chegaramos companheiros tinham mortos muitos, e muitos mais <strong>se</strong> mataram depois da sua chegada, esocorro, e <strong>se</strong> tomaram quatro canoas de cativos, s<strong>em</strong> <strong>do</strong>s nossos morrer<strong>em</strong> mais de <strong>se</strong>te, masficaram 25 feri<strong>do</strong>s, e Jerônimo Correa de Se<strong>que</strong>ira com duas flechadas, uma no peito, outra <strong>em</strong> umaperna, de <strong>que</strong> esteve mal, e ficou assim ele, como os <strong>do</strong>is companheiros, <strong>que</strong> iam na primeira canoa,com as mãos tão <strong>em</strong>poladas da <strong>que</strong>ntura <strong>do</strong>s canos <strong>do</strong>s arcabuzes, <strong>que</strong> mais de 20 dias não puderampegar <strong>em</strong> coisa alguma, por<strong>que</strong> cada um deles disparou mais de 40 tiros.Cura<strong>do</strong>s os feri<strong>do</strong>s, e descansan<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho da peleja a<strong>que</strong>la noite, na manhã <strong>se</strong>guint<strong>em</strong>an<strong>do</strong>u um capitão um cabo de esquadra com reca<strong>do</strong> aos holande<strong>se</strong>s <strong>que</strong> <strong>se</strong> entregass<strong>em</strong>, por<strong>que</strong>assim o haviam feito os da outra fortaleza de Muturu / <strong>que</strong> era o nome <strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> sítio /, e ali ostraziam consigo, <strong>do</strong> <strong>que</strong> certifica<strong>do</strong>s por um <strong>que</strong> lá lhe man<strong>do</strong>u, <strong>se</strong> vieram a entregar assim aspessoas, <strong>que</strong> eram 35, como toda a fábrica da fortaleza, artilharia, escravos, e o mais <strong>que</strong> nelatinham.Aqui perguntou o capitão aos holande<strong>se</strong>s <strong>se</strong> havia mais alguma fortaleza, ou estância degente da sua nação na<strong>que</strong>le rio, e certifica<strong>do</strong> <strong>que</strong> não, <strong>se</strong>não duas de ingle<strong>se</strong>s, e essas lhe ficavam jáabaixo, <strong>se</strong> tornou à nossa fortaleza <strong>do</strong> Pará; e não achan<strong>do</strong> nela o capitão Bento Maciel, <strong>que</strong> o haviai<strong>do</strong> buscar para o ajudar, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> sua caravela, e foi pela banda <strong>do</strong> norte da Barra Grandeoutra vez ao rio arriba até o achar, depois de ter navega<strong>do</strong> um mês por entre um labirinto de ilhas, eao dia <strong>se</strong>guinte, depois de estar<strong>em</strong> juntos, viram vir um nau, e surgir uma légua <strong>do</strong>nde estavam, àqual foi Bento Maciel com quatro canoas ao socairo da caravela <strong>em</strong> <strong>que</strong> ia Luiz Aranha, parar<strong>em</strong>eter<strong>em</strong> à nau, e pon<strong>do</strong>-<strong>se</strong> debaixo dela a desfazer<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> <strong>se</strong> não pôde fazer com tantapresteza, <strong>que</strong> <strong>primeiro</strong> não alcançass<strong>em</strong> da nau com um pelouro de oito libras a uma canoa, com<strong>que</strong> nos mataram <strong>se</strong>te homens brancos, e feriram 20 negros, porém as outras <strong>se</strong> meteram debaixo <strong>do</strong>bojo da nau, e ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> a não <strong>que</strong>riam dar a furaram ao lume da água com macha<strong>do</strong>s, com <strong>que</strong> <strong>se</strong>foi a pi<strong>que</strong>, e sobre isto pu<strong>se</strong>ram os inimigos ainda fogo à pólvora, para <strong>que</strong> nenhuma coisaescapas<strong>se</strong>, e contu<strong>do</strong> escaparam algumas pipas de vinho, e cerveja, barris de <strong>que</strong>ijos, e manteiga, euma caixa grande de botica, de <strong>que</strong> os nossos <strong>se</strong> aproveitaram; porém os holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> eramcento e vinte cinco, to<strong>do</strong>s foram mortos a fogo e a ferro.Com estas vitórias e boas informações <strong>do</strong> grande rio das Amazonas, <strong>que</strong> s<strong>em</strong>pre o pilotoAntônio Vicente foi sondan<strong>do</strong>, <strong>se</strong> partiu Luiz Aranha de Vasconcelos, na sua caravela, a dar a novaa el-rei, levan<strong>do</strong> por test<strong>em</strong>unhas quatro <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> havia toma<strong>do</strong>, e um índio principal,<strong>que</strong> o havia guia<strong>do</strong>, e também alguns escravos, para de caminho vender nas Índias, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> partiu<strong>em</strong> companhia da frota da prata, mas apartan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> dela junto a Belmuda (sic), daí a 15 dias foitoma<strong>do</strong> <strong>do</strong>s corsários holande<strong>se</strong>s, os quais por ir<strong>em</strong> muitos <strong>do</strong>entes das gengivas, a <strong>que</strong> chamammal de Luanda, o lançaram <strong>em</strong> um pe<strong>que</strong>no bote com quatro marinheiros portugue<strong>se</strong>s na Iliceira,para <strong>que</strong> lhe foss<strong>em</strong> buscar alguns limões, e outra <strong>em</strong>barcação mais capaz <strong>em</strong> <strong>que</strong> levass<strong>em</strong> oscompanheiros, e por não tornar<strong>em</strong> / coisa mui ordinária de qu<strong>em</strong> <strong>se</strong> vê livre / levaram os mais


140cativos a Salé, <strong>do</strong>nde saíram por resgate, exceto o índio, e os quatro holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> levaram livresà Holanda.CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRODas fortificações, e outras boas obras, <strong>que</strong> fez o governa<strong>do</strong>r Diogo de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong> na Bahia, e dúvidas, <strong>que</strong>houve entre eles e o bispo, e outras pessoasEra o governa<strong>do</strong>r Diogo de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>, liberal, e gastava muito <strong>em</strong> esmolas.Acrescentou a igreja de S. Bento, <strong>que</strong> lhe custou <strong>do</strong>is mil cruza<strong>do</strong>s, e a to<strong>do</strong>s os mais mosteirosaju<strong>do</strong>u, e fez as esmolas <strong>que</strong> pôde. Fortificou a cidade, cercan<strong>do</strong>-a pela parte da terra de vala detorrões; e por<strong>que</strong> a casa <strong>que</strong> <strong>se</strong>rvia de armazém, junto a da alfândega, estava caída, começou a fazeroutra no cabo da sua, para <strong>que</strong> o alto lhe ficas<strong>se</strong> <strong>se</strong>rvin<strong>do</strong> de galeria, e o baixo de armazém, comotu<strong>do</strong> <strong>se</strong> fez com muita perfeição, posto <strong>que</strong> a outros não pareceu b<strong>em</strong> depois o armazém, por não <strong>se</strong>rboa tanta vizinhança com a pólvora.Também começou a fazer a fortaleza <strong>do</strong> porto <strong>em</strong> um recife, <strong>que</strong> fica um pouco aparta<strong>do</strong> dapraia, haven<strong>do</strong> provisão de Sua Majestade para <strong>se</strong> fazer não só da imposição <strong>do</strong> vinho, <strong>que</strong> estavaposta nesta Bahia, mas também da de Pernambuco, e Rio de Janeiro, e <strong>que</strong> <strong>do</strong> dinheiro <strong>que</strong> receb<strong>em</strong>os mestres, não <strong>do</strong>s fretes, <strong>se</strong>não de outro, <strong>que</strong> eles introduziram chama<strong>do</strong> de avarias, <strong>que</strong>ordinariamente são duas patacas por caixa, des<strong>se</strong> quatro vinténs cada um para a obra da fortaleza,<strong>que</strong> não deixou de <strong>se</strong>r contrariada de alguns, porém realmente era mui necessária para defensão <strong>do</strong>porto, e <strong>do</strong>s navios <strong>que</strong> ali surg<strong>em</strong> à sombra dela, e de <strong>que</strong> não <strong>se</strong> pôde tirar o louvor também aoarquiteto Francisco de Frias, <strong>que</strong> a traçou.Um <strong>do</strong>s contraditores, <strong>que</strong> houve da fortaleza sobredita, foi o bispo d. Marcos Teixeira, oqual <strong>se</strong>n<strong>do</strong> roga<strong>do</strong> <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> ir benzer a primeira pedra, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lançou no cimento <strong>do</strong> forte, nãoquis ir, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> lá fos<strong>se</strong> <strong>se</strong>ria antes amaldiçoá-la, pois fazen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> o dito forte cessaria a obrada Sé, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fazia <strong>do</strong> dinheiro da imposição; mas não foi este o mal, <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r lhe re<strong>se</strong>rvou<strong>se</strong>is mil cruza<strong>do</strong>s para correr a obra da Sé, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> <strong>do</strong> dia, <strong>que</strong> chegou o bispo a esta cidade, <strong>que</strong>foi a 8 de dez<strong>em</strong>bro de 1622, desconcordaram estas cabeças, não <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r achar-<strong>se</strong>no ato <strong>do</strong> recebimento, e entrada <strong>do</strong> bispo, <strong>se</strong>não <strong>se</strong> houves<strong>se</strong> de ir debaixo <strong>do</strong> pálio pratican<strong>do</strong> comele, no <strong>que</strong> o bispo não quis con<strong>se</strong>ntir, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> havia de ir revesti<strong>do</strong> da capa de asperges, mitrae báculo, lançan<strong>do</strong> bênçãos ao povo, como manda o cerimonial romano, e não era decente irpratican<strong>do</strong>.Por isto não foi o governa<strong>do</strong>r, mas man<strong>do</strong>u o chanceler, e des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>res, e depois o foivisitar à casa, e <strong>se</strong> visitaram pessoalmente, e de pre<strong>se</strong>ntes muitas vezes. Logo <strong>se</strong> levantou outradúvida acerca <strong>do</strong>s lugares da igreja, <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> também <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntass<strong>em</strong> ambos deuma parte, e ali estivess<strong>em</strong> ambos conversan<strong>do</strong>, ao <strong>que</strong> o bispo respondeu não podia <strong>se</strong>r conformeao mesmo cerimonial, por razão <strong>do</strong>s círculos e outras cerimônias, <strong>que</strong> mandam <strong>se</strong> façam com elenas missas solenes; e n<strong>em</strong> isto bastou, n<strong>em</strong> uma <strong>se</strong>ntença, e provisão de el-rei, <strong>que</strong> lhe man<strong>do</strong>umostrar, <strong>em</strong> <strong>que</strong> por evitar dúvidas / quais as houve entre o governa<strong>do</strong>r e bispo de Cabo Verde /declara para os <strong>do</strong> Brasil, e to<strong>do</strong>s os mais, <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r <strong>se</strong> as<strong>se</strong>nte à parte da epístola, e<strong>primeiro</strong> <strong>se</strong> incensas<strong>se</strong> o bispo, e depois o governa<strong>do</strong>r.N<strong>em</strong> isto bastou, antes respondeu <strong>que</strong> <strong>se</strong> ele <strong>se</strong> achas<strong>se</strong> <strong>em</strong> alguma igreja com o bispo, <strong>se</strong>cumpris<strong>se</strong> o <strong>que</strong> o cerimonial, e el-rei manda, funda<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>que</strong> nunca iria onde o outro fos<strong>se</strong>, eassim o cumpriu.Os des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> não podiam contender com ele sobre o lugar material da igreja,contenderam sobre o espiritual, e jurisdição <strong>que</strong> t<strong>em</strong> para a correição <strong>do</strong>s vícios, e neste t<strong>em</strong>po mais


141<strong>que</strong> <strong>em</strong> nenhum outro, por<strong>que</strong> lhe tiraram de um navio <strong>do</strong>is homens casa<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u fazer vidacom suas mulheres a Portugal, por estar<strong>em</strong> cá abarrega<strong>do</strong>s com outras havia muito t<strong>em</strong>po, e istos<strong>em</strong> os homens agravar<strong>em</strong>, antes re<strong>que</strong>ren<strong>do</strong> <strong>que</strong> os deixass<strong>em</strong> ir, pois já estavam <strong>em</strong>barca<strong>do</strong>s; pelo<strong>que</strong> o bispo excomungou o procura<strong>do</strong>r da Coroa, <strong>que</strong> foi o autor disto, e houve sobre o caso muitosdebates, enfim estas eram as guerras civis, <strong>que</strong> havia entre as cabeças, e não eram menos as <strong>que</strong>havia entre os cidadãos, prognóstico certo da dissolução da cidade, pois o dis<strong>se</strong> a suma verdade,Cristo Senhor Nosso, <strong>que</strong> to<strong>do</strong> o reino onde as houves<strong>se</strong>, entre os naturais e mora<strong>do</strong>res, <strong>se</strong>riaassola<strong>do</strong> e destruí<strong>do</strong>.Outro prognóstico houve também, <strong>que</strong> foi arruinar<strong>em</strong>-<strong>se</strong> as casas de el-rei, <strong>em</strong> <strong>que</strong> ogoverna<strong>do</strong>r morava, de tal maneira, <strong>que</strong> <strong>se</strong> as não sustentaram com espe<strong>que</strong>s, <strong>se</strong> vieram todas aochão, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> assim <strong>que</strong> eram de pedra e cal, fortes, e antigas, s<strong>em</strong> nunca até este t<strong>em</strong>po fazer<strong>em</strong>alguma ruína.CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDODe como os holande<strong>se</strong>s tomaram a BahiaA 21 de dez<strong>em</strong>bro de 1623 partiu de Holanda uma armada de vinte e <strong>se</strong>is naus grandes, treze<strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, e treze fretadas de merca<strong>do</strong>res, da qual avisou Sua Majestade ao governa<strong>do</strong>r Diogo deMen<strong>do</strong>nça <strong>que</strong> <strong>se</strong> apercebes<strong>se</strong> na Bahia, e avisas<strong>se</strong> os capitães das outras capitanias fizess<strong>em</strong> omesmo, por<strong>que</strong> <strong>se</strong> dizia vir<strong>em</strong> sobre o Brasil. O governa<strong>do</strong>r avisou logo a Martim de Sá, capitãomor<strong>do</strong> Rio de Janeiro, o qual entrincheirou toda a cidade, concertou a fortaleza da barra, e fez ir oshomens <strong>do</strong> recôncavo para os repartir por suas estâncias, companhias e bandeiras e por<strong>que</strong> muitosnão apareciam, por andar<strong>em</strong> descalços, e não ter<strong>em</strong> com <strong>que</strong> lançar librés, ordenou uma companhiade descalços, de <strong>que</strong> ele quis <strong>se</strong>r o capitão, e assim ia diante deles nos alar<strong>do</strong>s descalço, e com umasceroulas de linho, e o <strong>se</strong>guiam com tanta confiança, e presunção de suas pessoas, <strong>que</strong> não davamvantag<strong>em</strong> aos <strong>que</strong> nas outras companhias militavam ricamente vesti<strong>do</strong>s, e calça<strong>do</strong>s.S<strong>em</strong> esta, foram muitas as preparações de guerra, <strong>que</strong> fez Martim de Sá nesta ocasião. Asmesmas fariam nas outras capitanias / <strong>que</strong> a todas <strong>se</strong> deu aviso, até o rio da Prata /, mas façomenção <strong>do</strong> Rio de Janeiro como test<strong>em</strong>unha de vista, por<strong>que</strong> ainda então lá estava. Da mesmamaneira <strong>se</strong> apercebeu o governa<strong>do</strong>r nesta Bahia, mandan<strong>do</strong> vir toda a gente <strong>do</strong> recôncavo; e poralguns <strong>se</strong> não tornass<strong>em</strong> logo por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> pobres, e não ter<strong>em</strong> <strong>que</strong> comer na cidade, man<strong>do</strong>u a ummerca<strong>do</strong>r <strong>se</strong>u priva<strong>do</strong> <strong>que</strong> des<strong>se</strong> a cada um des<strong>se</strong>s três vinténs para cada dia, por sua conta; porémcomo não haja moeda de três vinténs, dizia-lhes <strong>que</strong> levass<strong>em</strong> um tostão, e lhes daria uma de oitovinténs, e <strong>se</strong> os pobres lhe levavam o tostão, lhes dizia <strong>que</strong> o gastass<strong>em</strong> <strong>primeiro</strong>, e depois lhe dariaos três vinténs, por<strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r lhos não mandava dar <strong>se</strong>não aos pobres, <strong>que</strong> nenhuma coisatinham, n<strong>em</strong> lhes aproveitava replicar <strong>que</strong> haviam pedi<strong>do</strong> o tostão <strong>em</strong>presta<strong>do</strong>, e <strong>que</strong> não era <strong>se</strong>u,n<strong>em</strong> outra alguma razão <strong>que</strong> dess<strong>em</strong>.Não <strong>se</strong> passaram muitos dias, quan<strong>do</strong> vieram ao governa<strong>do</strong>r novas de Baepeba, <strong>que</strong> andavalá uma nau grande, a qual tomara um navio, <strong>que</strong> vinha de Angola com negros. Quis sair ou mandara ela, cuidan<strong>do</strong> <strong>que</strong> não <strong>se</strong>ria da armada, por<strong>que</strong> passava de quatro me<strong>se</strong>s era partida de Holanda, e<strong>se</strong> entendia haveria aporta<strong>do</strong> <strong>em</strong> outra parte: e esta era a nau Holanda, <strong>em</strong> <strong>que</strong> vinha o coronel paragovernar a terra, chama<strong>do</strong> d. João Van<strong>do</strong>rt, a qual não pôde tomar a ilha de S. Vicente, <strong>que</strong> é umadas de Cabo Verde, onde as outras naus <strong>se</strong> detiveram dez s<strong>em</strong>anas a tomar água, e carnes, e levantaroito chalupas, <strong>que</strong> traziam <strong>em</strong> peças; e por esta causa chegou <strong>primeiro</strong> a esta costa, e andava aosbor<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s Ilhéus para o morro, esperan<strong>do</strong> as mais para entrar com elas, o <strong>que</strong> não fez, por<strong>que</strong> nãoas viu quan<strong>do</strong> entraram, <strong>que</strong> foi a 9 de maio da era de 1624; mas vistas pelo governa<strong>do</strong>r Diogo deMen<strong>do</strong>nça repartiu logo as estâncias pelos capitães, e gente das freguesias de fora, <strong>que</strong> ainda aqui


142estavam, e da cidade; e deixan<strong>do</strong> a companhia de. <strong>se</strong>u filho, <strong>que</strong> era de solda<strong>do</strong>s pagos, e recebiamsol<strong>do</strong> da fazenda de el-rei, para acudir, aonde fos<strong>se</strong> necessário, man<strong>do</strong>u a outra companhia com <strong>se</strong>ucapitão Gonçalo Bezerra ao porto da Vila Velha, <strong>que</strong> é meia légua da cidade; e o escrivão daCâmera Rui Carvalho com mais de c<strong>em</strong> arcabuzeiros <strong>do</strong> povo, além de <strong>se</strong>s<strong>se</strong>nta índios flecheiros deAfonso Rodrigues, da Cachoeira, <strong>que</strong> os capitaneava.Fez a Lourenço de Brito capitão <strong>do</strong>s aventureiros, e a Vasco Carneiro encomen<strong>do</strong>u afortaleza nova, da qual posto <strong>que</strong> não acabada jogava já alguma artilharia. Não trato das outra<strong>se</strong>stâncias, por<strong>que</strong> só nestas duas partes des<strong>em</strong>barcaram os holande<strong>se</strong>s a<strong>que</strong>la mesma tarde.Os <strong>do</strong> porto da Vila Velha estavam com os <strong>se</strong>us arcabuzes feitos detrás <strong>do</strong> mato, para osdisparar<strong>em</strong> ao des<strong>em</strong>barcar <strong>do</strong>s batéis; porém ven<strong>do</strong> <strong>se</strong>r muito maior o número <strong>do</strong>s inimigos não osqui<strong>se</strong>ram esperar, quis detê-los Francisco de Barros na Vila Velha animan<strong>do</strong>-os, ainda <strong>que</strong> velho ealeija<strong>do</strong>, mas iam tão resolutos, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> bastou esta adamoestação, n<strong>em</strong> outra <strong>que</strong> lhe fez o padreJerônimo Peixoto, prega<strong>do</strong>r da companhia, o qual os foi esperar a cavalo, dizen<strong>do</strong>-lhes por<strong>que</strong>fugiam, pois tinham por to<strong>do</strong> a<strong>que</strong>le caminho de uma parte e de outra matos <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> podiam<strong>em</strong>brenhar, e a <strong>se</strong>u salvo fazer a sua batalha s<strong>em</strong> os inimigos saber<strong>em</strong> <strong>do</strong>nde lhes vinham.Nada disto bastou para tirar-lhes o me<strong>do</strong>, <strong>que</strong> traziam, antes como mal contagioso o vierampegar aos da cidade, ou lho tinham já pega<strong>do</strong> os <strong>primeiro</strong>s núncios, pois de quanta gente estava nelanão houve outro socorro <strong>que</strong> saís<strong>se</strong> <strong>se</strong>não um padre prega<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> então pregava <strong>em</strong> de<strong>se</strong>rto, etodavia <strong>se</strong> fora um socorro, <strong>que</strong> lançaram duas mangas de gente por entre o mato, e rebentaram da<strong>se</strong>ncruzilhadas, <strong>que</strong> há no caminho, ainda <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s eram mil e duzentos, não lhes deixaramde fazer muito dano.Melhor o fizeram os da fortaleza nova, a qual o almirante Petre Petrijans (sic), ou como osportugue<strong>se</strong>s lhe chamamos Pero Peres, com o resto da sua soldadesca valorosamente combateu, enão com menos valor, e ânimo lha defendeu Vasco Carneiro, e Antônio de Men<strong>do</strong>nça, <strong>que</strong> o aju<strong>do</strong>ucom mui poucos <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> já os mais lhe haviam fugi<strong>do</strong>; também os socorreu commuito ânimo Lourenço de Brito, capitão <strong>do</strong>s aventureiros, porém como eram muitos os holande<strong>se</strong>s,e o forte não estava acaba<strong>do</strong>, n<strong>em</strong> com os reparos necessários, foi força<strong>do</strong> largar-lho, estan<strong>do</strong> jáLourenço de Brito feri<strong>do</strong>, e treze homens mortos, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong>s últimos <strong>que</strong> <strong>se</strong> saiu o nosso irmão <strong>frei</strong>Gaspar <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> os esteve exortan<strong>do</strong>, e confessan<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> abaixou para entender o<strong>que</strong> lhe dizia um castelhano, a qu<strong>em</strong> um pelouro havia leva<strong>do</strong> uma perna, o <strong>livro</strong>u Deus de outro,<strong>que</strong> lhe passou por cima da cabeça, haven<strong>do</strong>-lhe já outro leva<strong>do</strong> um pedaço de túnica: e osholande<strong>se</strong>s por <strong>se</strong>r já noite, e <strong>se</strong> t<strong>em</strong>er<strong>em</strong> <strong>que</strong> os rebatess<strong>em</strong> da parte de terra <strong>se</strong> contentaram só comcravar as peças de artilharia, e o deixaram, tornan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para as suas naus, não deixan<strong>do</strong> delas de dian<strong>em</strong> de noite de esbombardear para a cidade, e para toda a praia, na qual mataram a Pero Garcia no<strong>se</strong>u balcão, onde <strong>se</strong> pôs com <strong>se</strong>us cria<strong>do</strong>s, e chegan<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r a perguntar-lhe como estava /por<strong>que</strong> andava ele na<strong>que</strong>le (sic) <strong>do</strong>ente / lhe respondeu “Senhor, já estou bom, <strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>po o<strong>se</strong>nfermos saram, e tiram forças da fra<strong>que</strong>za”, ânimo por certo, a <strong>que</strong> os próprios inimigos deveramter respeito, e assim depois <strong>que</strong> o souberam, mostraram pesar, pon<strong>do</strong> a culpa à diabólica arma <strong>do</strong>fogo, <strong>que</strong> aos mais valentes mata <strong>primeiro</strong>, e como raio onde mais fortaleza acha faz mais dano.O pelouro lhe deu pelas <strong>que</strong>ixadas, e ainda lhe deu lugar a <strong>se</strong> confessar, e de <strong>se</strong> reconciliarcom alguns <strong>se</strong>us inimigos, <strong>que</strong> ali <strong>se</strong> acharam. um <strong>do</strong>s quais era Henri<strong>que</strong> Álvares, a qu<strong>em</strong> tambémoutro pelouro matou pouco depois. Os mais <strong>que</strong> haviam des<strong>em</strong>barca<strong>do</strong> na Vila Velha <strong>se</strong> alojarama<strong>que</strong>la noite <strong>em</strong> S. Bento, para combater<strong>em</strong> no dia <strong>se</strong>guinte a cidade, na qual o governa<strong>do</strong>rdeterminou de <strong>se</strong> defender, mas como <strong>se</strong> não pôs <strong>em</strong> um cavalo corren<strong>do</strong>, e discorren<strong>do</strong> por toda acidade <strong>que</strong> não lhe fugis<strong>se</strong> a gente, to<strong>do</strong>s <strong>se</strong> foram sain<strong>do</strong>: o <strong>que</strong> não podia <strong>se</strong>r s<strong>em</strong> <strong>que</strong> os capitãesdas portas, e mais saídas da cidade foss<strong>em</strong> os <strong>primeiro</strong>s; e o bispo, <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le dia <strong>se</strong> fez amigo como governa<strong>do</strong>r, e <strong>se</strong> lhe foi oferecer com uma companhia de clérigos, e <strong>se</strong>us cria<strong>do</strong>s, pedin<strong>do</strong> estância


143onde estives<strong>se</strong>, e a qu<strong>em</strong> o governa<strong>do</strong>r agradecen<strong>do</strong>-lhe muito o oferecimento dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> <strong>em</strong>nenhuma parte podia estar melhor <strong>que</strong> na sua Sé, também a desamparou, consumin<strong>do</strong> o SantíssimoSacramento, e deixan<strong>do</strong> a prata e ornamentos, e tu<strong>do</strong> o mais, o mesmo fizeram clérigos e frades e<strong>se</strong>culares, <strong>que</strong> só trataram de livrar as pessoas, e algumas coisas manuais, deixan<strong>do</strong> as casas com omais, <strong>que</strong> tinham adquiri<strong>do</strong> <strong>em</strong> muitos anos: tanto pôde o receio de perder a vida, e enfim <strong>se</strong> perdetarde ou ce<strong>do</strong>, e às vezes <strong>em</strong> ocasião de menos honra.CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRODe como o governa<strong>do</strong>r Diogo de Men<strong>do</strong>nça foi preso <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, e o <strong>se</strong>u coronel d. JoãoVan<strong>do</strong>rt ficou governan<strong>do</strong> a cidadeO governa<strong>do</strong>r ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> a gente era toda fugida, ainda <strong>que</strong> não faltou qu<strong>em</strong> lhe dis<strong>se</strong>s<strong>se</strong> <strong>que</strong>fizes<strong>se</strong> o mesmo, respondeu <strong>que</strong> nunca lhe estava b<strong>em</strong> dizer-<strong>se</strong> dele <strong>que</strong> fugira, e antes <strong>se</strong> poria ofogo, e <strong>se</strong> abrasaria, e ven<strong>do</strong> passar <strong>do</strong>is religiosos nossos pela praça os chamou, e confessan<strong>do</strong>-<strong>se</strong>com um deles <strong>se</strong> recolheu dentro de sua casa só com <strong>se</strong>u filho Antônio de Men<strong>do</strong>nça, Lourenço deBrito, o sargento-mor Francisco de Almeida de Brito, e Pero Cas<strong>que</strong>iro da Rocha.Pela manhã chegaram os holande<strong>se</strong>s à porta da cidade, e a outras entradas, <strong>que</strong> ficamda<strong>que</strong>la parte de S. Bento, onde <strong>se</strong> haviam aloja<strong>do</strong> de noite, e não achan<strong>do</strong> qu<strong>em</strong> lho contradis<strong>se</strong>s<strong>se</strong>,entraram, e tomaram dela pos<strong>se</strong> pacífica, subiram alguns à casa <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> neste t<strong>em</strong>poquis pôr fogo a uns barris de pólvora para abrasar-<strong>se</strong>, <strong>se</strong> Pero Cas<strong>que</strong>iro lhe não tirara o morrão damão, e ven<strong>do</strong>-os entrar levou da espada, e r<strong>em</strong>eteu a eles, mas enfim o prenderam, e aos <strong>que</strong> comele estavam, e os repartiram pelas naus.Daí a <strong>do</strong>is dias chegou o coronel d. João Van<strong>do</strong>rt, <strong>que</strong> como diss<strong>em</strong>os no capítulo passa<strong>do</strong>não havia entra<strong>do</strong> com os mais, e começou a governar as coisas da terra, por<strong>que</strong> o general, <strong>que</strong> eraum hom<strong>em</strong> velho chama<strong>do</strong> Jacob Vilguis, nunca, ou rarissimamente saiu da nau: o coronel erahom<strong>em</strong> pacífico, e <strong>se</strong> mostrava pesaroso <strong>do</strong> dano feito aos portugue<strong>se</strong>s, e de<strong>se</strong>joso da sua paz eamizade, e assim aos <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ram tornar passou passaportes, e lhes man<strong>do</strong>u dar quanto qui<strong>se</strong>ram,não s<strong>em</strong> os <strong>se</strong>us lho estranhar<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> o princípio <strong>que</strong> levava lhe houveram de levartu<strong>do</strong>; porém a não <strong>se</strong>r<strong>em</strong> os portugue<strong>se</strong>s tão firmes na fé da Santa Igreja Católica Romana, e tãoleais aos <strong>se</strong>us reis como são, não lhes fizera menos guerra com estas dádivas, sujeitan<strong>do</strong> os ânimos<strong>do</strong>s <strong>que</strong> as recebiam, <strong>do</strong> <strong>que</strong> os <strong>se</strong>us a faziam por outra parte com as armas, toman<strong>do</strong> quanto podiampelas roças circunvizinhas da cidade, e isto com tanto atrevimento como <strong>se</strong> foram <strong>se</strong>nhores de tu<strong>do</strong>,e assim <strong>se</strong> atreveram só três ou quatro a ir ao tan<strong>que</strong> <strong>do</strong>s padres da companhia, <strong>que</strong> dista da cidadeum terço de légua, e <strong>em</strong> sua pre<strong>se</strong>nça falan<strong>do</strong>-lhes um deles latim, e dizen<strong>do</strong>-lhes: «Quidexistimabatis quan<strong>do</strong> vidisti class<strong>em</strong> nostram»; fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s calções alforjes, e enchen<strong>do</strong>-os de pratada igreja, e de outra <strong>que</strong> ali acharam, os pu<strong>se</strong>ram aos ombros, e <strong>se</strong> foram mui contentes; porémquatro negros <strong>do</strong>s padres, <strong>que</strong> não tinham tanta paciência, os foram aguardar ao caminho com <strong>se</strong>usarcos e flechas, e matan<strong>do</strong> o latino, fizeram fugir os outros, e largar a prata <strong>que</strong> levavam.Da mesma maneira foram onde a várzea de Tapuípe, <strong>que</strong> dista pouco mais de meia légua, <strong>em</strong>ataram uma vaca, mas estan<strong>do</strong> esfolan<strong>do</strong>-a deu sobre eles Francisco de Castro, George de Aguiar,e outros cinco homens brancos, e <strong>do</strong>ze índios, e mataram cinco <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, e logo chegoutambém Manuel Gonçalves, e <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> os outros <strong>que</strong> fugiam matou quatro, e feriu <strong>do</strong>is feri<strong>do</strong>s, <strong>que</strong>levaram a nova, deixan<strong>do</strong> a vaca morta e esfolada aos índios, <strong>que</strong> a comeram, e as suas armas aosnossos solda<strong>do</strong>s.N<strong>em</strong> só andavam os holande<strong>se</strong>s insolentes por estes caminhos, mas muito mais os negros,<strong>que</strong> <strong>se</strong> meteram com eles, entre os quais houve um escravo de um <strong>se</strong>rralheiro <strong>que</strong> prendeu <strong>se</strong>u


144<strong>se</strong>nhor na roça de Pero Garcia, onde <strong>se</strong> havia acolhi<strong>do</strong>, e depois de o esbofetear, dizen<strong>do</strong>-lhe <strong>que</strong> jánão era <strong>se</strong>u <strong>se</strong>nhor, <strong>se</strong>não <strong>se</strong>u escravo, não contente só com isto lhe cortou a cabeça, ajuda<strong>do</strong> deoutros negros, e de quatro holande<strong>se</strong>s, e a levou ao coronel, o qual lhe deu duas patacas, e o man<strong>do</strong>ulogo enforcar, <strong>que</strong> qu<strong>em</strong> fizera aquilo a <strong>se</strong>u <strong>se</strong>nhor, também o faria a ele <strong>se</strong> pudes<strong>se</strong>.Melhor o fez outro negro, <strong>que</strong> nos <strong>se</strong>rvia na horta, chama<strong>do</strong> Bastião, o qual também<strong>se</strong> meteu com os holande<strong>se</strong>s, mas por<strong>que</strong> lhe qui<strong>se</strong>ram tomar um facão, <strong>que</strong> levava na cinta, e oameaçaram <strong>que</strong> o enforcariam, <strong>se</strong> saiu da cidade com outros <strong>do</strong>is ou três negros, os quai<strong>se</strong>ncontraram à fonte nova, <strong>que</strong> é logo a saída, <strong>se</strong>is holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> lhe começaram a buscar asalgibeiras, mas como o Bastião levava ainda o <strong>se</strong>u facão, t<strong>em</strong>en<strong>do</strong>-<strong>se</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> lho viss<strong>em</strong> o <strong>que</strong>reriamoutra vez enforcar, o escondeu no peito de um, e matan<strong>do</strong>-o lançou a correr pelo caminho, <strong>que</strong> vaipara o rio Vermelho, onde encontrou uns cria<strong>do</strong>s de Antônio Car<strong>do</strong>so de Barros, os quaisinforma<strong>do</strong>s <strong>do</strong> caso fingiram também <strong>que</strong> fugiam com o negro, e <strong>se</strong> foram to<strong>do</strong>s <strong>em</strong>brenhar adiante,<strong>do</strong>nde depois <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s passaram lhes saíram nas costas, e os foram levan<strong>do</strong> até umlameiro, e atoleiro, onde mataram quatro, e cativaram um, e <strong>se</strong>rá b<strong>em</strong> saber-<strong>se</strong> para glória <strong>do</strong>svalentes, <strong>que</strong> o era tanto um <strong>do</strong>s mortos hom<strong>em</strong> já velho, <strong>que</strong> meti<strong>do</strong> no atoleiro qua<strong>se</strong> até a cintaali aguardava as flechas tão destramente com a espada, <strong>que</strong> todas as desviava, e cortava no ar, o <strong>que</strong>visto por Bastião <strong>se</strong> meteu também no lo<strong>do</strong>, e lhe deu com um pau nos braços, atormentan<strong>do</strong>-lhosde mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> não pôde mais manear a espada.CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTODe como o bispo foi eleito <strong>do</strong> povo por <strong>se</strong>u capitão-mor enquanto <strong>se</strong> avisava a Pernambuco a Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>,<strong>que</strong> era governa<strong>do</strong>rTanto <strong>que</strong> a cidade foi tomada, e o governa<strong>do</strong>r preso, <strong>se</strong> juntaram daí a alguns dias osoficiais da Câmera na aldeia <strong>do</strong> Espírito Santo, <strong>que</strong> é de índios <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s padres dacompanhia, e ali abriram a via de sucessão <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Diogo de Men<strong>do</strong>nça, <strong>em</strong> <strong>que</strong> SuaMajestade mandava <strong>que</strong> por sua morte ou ausência lhe sucederia no governo Mathias deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> atualmente estava governan<strong>do</strong> Pernambuco por <strong>se</strong>u irmão Duarte de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>Coelho, <strong>se</strong>nhor da<strong>que</strong>la terra, <strong>do</strong> <strong>que</strong> logo avisaram, mas por<strong>que</strong> a distância é grande, e de ida evinda são mais de 200 léguas de caminho, e os holande<strong>se</strong>s não contentes com estar<strong>em</strong> <strong>se</strong>nhores dacidade, <strong>se</strong> <strong>que</strong>riam as<strong>se</strong>nhorear <strong>do</strong> <strong>que</strong> havia fora, como vimos no precedente capítulo, elegeu opovo, e aclamou por <strong>se</strong>u capitão-mor, <strong>que</strong> os governas<strong>se</strong> o bispo d. Marcos Teixeira, o qual aprimeira coisa <strong>que</strong> intentou foi recuperar a cidade <strong>se</strong> pudes<strong>se</strong>, e para este efeito nomeou porcoronéis a Lourenço Cavalcanti de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e a Melchior Brandão, e escrever a muitos homens<strong>que</strong> já estavam to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> <strong>se</strong>us engenhos, e fazendas, e como os teve juntos determinou entrar nacidade no dia <strong>do</strong> b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong> Santo Antônio, de madrugada, e por<strong>que</strong> no mosteiro <strong>do</strong> Carmo,<strong>que</strong> está fora defronte dela, <strong>se</strong> haviam agasalha<strong>do</strong> <strong>do</strong>is portugue<strong>se</strong>s com suas mulheres e família, s<strong>em</strong>urmurava deles <strong>que</strong> <strong>se</strong>rviam de espias aos holande<strong>se</strong>s, e lhes davam sinal, e aviso com o sino;para <strong>que</strong> então lho não dess<strong>em</strong> man<strong>do</strong>u diante Francisco Dias de Ávila com índios flecheiros ealguns arcabuzeiros <strong>que</strong> os prendess<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> os índios fizeram com tanta desord<strong>em</strong>, <strong>que</strong> antes elesforam os <strong>que</strong> deram aviso e sinal, por<strong>que</strong> <strong>em</strong> chegan<strong>do</strong> ao dito mosteiro, e não lhes <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> os dedentro abrir, entraram por força, dan<strong>do</strong> um urro de vozes tão grande, <strong>que</strong> ouvi<strong>do</strong> pelos holande<strong>se</strong>s,tiveram t<strong>em</strong>po de <strong>se</strong> aperceber, de sorte <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> os qui<strong>se</strong>ram cometer, <strong>que</strong> era já sol saí<strong>do</strong>, evieram descen<strong>do</strong> a ladeira <strong>do</strong> Carmo, e alguns já subin<strong>do</strong> a da cidade para entrar<strong>em</strong> pela porta ondeestava uma fortaleza, lhe tiraram dela tantas bombardadas, e mos<strong>que</strong>tadas, <strong>que</strong> os fizeram tornar por


145onde vieram, e ainda os foram <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> um grande espaço, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>que</strong> eram os portugue<strong>se</strong>s mais <strong>em</strong>número, e <strong>se</strong> <strong>se</strong> dividiram <strong>em</strong> algumas mangas, <strong>que</strong> cometess<strong>em</strong> juntamente por outras partes dacidade, <strong>que</strong> ainda não estavam fortificadas, porventura a recuperaram.E por<strong>que</strong> até este t<strong>em</strong>po entravam e saíam alguns portugue<strong>se</strong>s na cidade compassaporte <strong>do</strong> coronel, houve licença Lourenço de Brito para ir visitar a Diogo de Men<strong>do</strong>nça a nau,e concertou com ele <strong>que</strong> lhe mandaria uma jangada, e outra para <strong>se</strong>u filho. Antônio de Men<strong>do</strong>nça,com <strong>do</strong>is índios r<strong>em</strong>eiros, <strong>que</strong> de noite mui <strong>se</strong>cretamente os levass<strong>em</strong> à terra, como de feitoman<strong>do</strong>u, e estan<strong>do</strong> já para descer<strong>em</strong> a elas deu o urro, <strong>que</strong> t<strong>em</strong>os dito no Carmo, com <strong>que</strong>espertaram os da nau, <strong>que</strong> lha estorvaram, e os das jangadas <strong>se</strong> acolheram mui ligeiramente para aterra, não s<strong>em</strong> <strong>se</strong>r<strong>em</strong> <strong>se</strong>nti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> daí por diante entenden<strong>do</strong> o <strong>que</strong> podia <strong>se</strong>r nela, enas mais, pu<strong>se</strong>ram grandessíssima vigia, e os <strong>do</strong>s passaportes, com t<strong>em</strong>or <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s <strong>se</strong>alterass<strong>em</strong> com estas contas, <strong>se</strong> saíram da cidade s<strong>em</strong> tornar<strong>em</strong> mais a ela, só ficaram <strong>do</strong>is ou trêsmerca<strong>do</strong>res casa<strong>do</strong>s por con<strong>se</strong>rvar<strong>em</strong> sua fazenda, com outros tantos oficiais mecânicos, e algunspobres velhos, e enfermos, <strong>que</strong> por sua pobreza e enfermidade não puderam sair.CAPÍTULO VIGÉSIMO QUINTODe como foi morto o coronel <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s d. João Van<strong>do</strong>rt, e lhe sucedeu Alberto Escutis, e obispo as<strong>se</strong>ntou o <strong>se</strong>u arraial, e estâncias para os assaltarDesta desordenada vinda, e cometimento da cidade ficaram os nossos portugue<strong>se</strong>sde<strong>se</strong>ngana<strong>do</strong>s de mais poder<strong>em</strong> cometer; mas ordenou o bispo <strong>que</strong> andass<strong>em</strong> ao re<strong>do</strong>r dela pelosmatos algumas companhias, por<strong>que</strong> quan<strong>do</strong> alguns holande<strong>se</strong>s saíss<strong>em</strong> fora como costumavam, ouos negros de Guiné, <strong>que</strong> com eles <strong>se</strong> haviam meti<strong>do</strong> a buscar frutas, e mantimentos pelos pomares, eroças circunvizinhas, os prendess<strong>em</strong>, sucedeu <strong>se</strong>r o coronel o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> saiu a cavalo a ver afortaleza de S. Filipe, <strong>que</strong> dista uma légua da cidade, e à tornada <strong>se</strong> adiantou <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, enegros, <strong>que</strong> trazia <strong>em</strong> sua guarda, levan<strong>do</strong> só <strong>em</strong> sua companhia um trombeta <strong>em</strong> outro cavalo, ondelhes saiu Francisco de Padilha com Francisco Ribeiro, <strong>se</strong>u primo, cada um com a sua escopeta, eacertan<strong>do</strong> melhor os tiros <strong>que</strong> acertou o coronel com um pistolete, <strong>que</strong> disparou, lhes mataram oscavalos, e depois de os ver<strong>em</strong> derriba<strong>do</strong>s, e com os pés ainda nos estribos debaixo <strong>do</strong>s cavalos,matou o Padilha ao coronel, e o Ribeiro ao trombeta, e logo chegaram os índios <strong>se</strong>lvagens deAfonso Rodrigues da Cachoeira, <strong>que</strong> ali andavam perto, e cortan<strong>do</strong>-lhes os pés e mãos e cabeças,conforme o <strong>se</strong>u gentílico costume, e os deixaram, <strong>do</strong>nde os holande<strong>se</strong>s levaram o corpo <strong>do</strong> <strong>se</strong>ucoronel, e o dia <strong>se</strong>guinte o enterraram na Sé com a pompa, <strong>que</strong> costumam, muito diferente da nossa,por<strong>que</strong> não levaram cruzes, música, n<strong>em</strong> água benta, <strong>se</strong>não o corpo <strong>em</strong> um caixão coberto de baetade dó.Os capitães, <strong>que</strong> o levaram aos ombros, e um filho <strong>do</strong> defunto, um cavalo à destra, <strong>que</strong>também ia, e as caixas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> tocaram dest<strong>em</strong>peradas, tu<strong>do</strong> isto ia coberto de dó, e adiante ascompanhias, to<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mos<strong>que</strong>teiros, com os mos<strong>que</strong>tes debaixo <strong>do</strong> braço, e as forquilhasarrastan<strong>do</strong>, os quais, entran<strong>do</strong> na igreja o defunto, <strong>se</strong> ficaram de fora ao re<strong>do</strong>r dela, e ao t<strong>em</strong>po <strong>que</strong>o enterraram, os dispararam to<strong>do</strong>s três vezes, não <strong>se</strong> meten<strong>do</strong> entre uma surriada e outra mai<strong>se</strong>spaço <strong>que</strong> enquanto carregam, o <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> com muita ligeireza; e logo deixadas as armas <strong>do</strong>defunto penduradas <strong>em</strong> um pilar <strong>do</strong>s da igreja junto à sua <strong>se</strong>pultura, <strong>se</strong> tornaram à sua casa, ondeantes de entrar<strong>em</strong> <strong>se</strong> leu a via <strong>do</strong> sucessor, <strong>que</strong> era Alberto Escutis, o qual já quan<strong>do</strong> <strong>se</strong> tomou acidade havia <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> o cargo <strong>do</strong>is dias, <strong>que</strong> estoutro tar<strong>do</strong>u, e li<strong>do</strong> o papel <strong>se</strong> fez pergunta aoscapitães e solda<strong>do</strong>s <strong>se</strong> o reconheciam por <strong>se</strong>u coronel, e governa<strong>do</strong>r, para lhe obedecer<strong>em</strong> <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> o<strong>que</strong> lhes mandas<strong>se</strong>, e respondi<strong>do</strong> <strong>que</strong> sim os despediu, feitas suas cortesias, e <strong>se</strong> recolheu com os <strong>do</strong>


146Con<strong>se</strong>lho, e alguns, e por<strong>que</strong> de to<strong>do</strong> os portuguê<strong>se</strong>s perdess<strong>em</strong> as esperanças de poder<strong>em</strong> recuperara cidade, a cercou, e fortificou por todas as partes represan<strong>do</strong> o ribeiro, <strong>que</strong> corre ao longo dela pelabanda da terra, com <strong>que</strong> cresceu a água sobre as hortas, <strong>que</strong> por ali havia, muitos palmos, e assimpor esta banda como pela <strong>do</strong> mar fez muitos baluartes, e fortes de artilharia.O bispo também as<strong>se</strong>ntou <strong>se</strong>u arraial uma légua da cidade, no chão de um monte a <strong>que</strong> <strong>se</strong>não podia subir <strong>se</strong>não por três partes, nas quais man<strong>do</strong>u fazer três trincheiras com suas peças, e duasro<strong>que</strong>iras cada uma, e a <strong>que</strong> estava para a banda da cidade, entregue ao coronel Melchior Brandãocom a gente de Paraguaçu, a outra, <strong>que</strong> estava para Tapuípe, ao capitão Pero Coelho, e a terceira,por onde <strong>se</strong> <strong>se</strong>rvia para o <strong>se</strong>rtão, ao capitão Diogo Moniz Teles, e o corpo da guarda <strong>se</strong> fazia junto àtenda, ou casa palhaça <strong>do</strong> capitão-mor pelos solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> presídio, e outros, <strong>que</strong> <strong>se</strong>riam to<strong>do</strong>sduzentos.A este arraial <strong>se</strong> trazia a vender carne, peixe, frutas, farinhas, e o mais <strong>que</strong> havia por to<strong>do</strong> orecôncavo, e algum pouco vinho, e azeite, <strong>que</strong> <strong>se</strong> trazia de Pernambuco <strong>em</strong> barcos até a terra deFrancisco Dias de Ávila, e daí por terra ao arraial, fora <strong>do</strong> qual havia também outras estâncias paraos capitães <strong>do</strong>s assaltos, convém a saber, <strong>em</strong> Tapegipe defronte da fortaleza de S. Filipe, <strong>que</strong>ocupavam os holande<strong>se</strong>s, estava uma trincheira com duas peças de bronze, onde assistiam oscapitães Vasco Carneiro, e Gabriel da Costa com uma companhia <strong>do</strong> presídio com quarentasolda<strong>do</strong>s, e não muito longe desta estava outra <strong>em</strong> outro caminho com cinco falcões, e duasro<strong>que</strong>iras, <strong>em</strong> <strong>que</strong> assistiam os capitães Manuel Gonçalves, e Luiz Pereira de Aguiar, e Jorge deAguiar, e junto ao mar, e porto outra, <strong>do</strong>nde estava o capitão Jordão de Salazar da ermida de S.Pedro, para a vigia estavam os capitães Francisco de Castro, e Agostinho de Paredes com <strong>se</strong>s<strong>se</strong>ntahomens da vigia. Para o Rio Vermelho com quarenta homens na roça de Gaspar de Almeida,Francisco de Padilha, e Luiz de Si<strong>que</strong>ira.Fora estes foram também capitães <strong>em</strong> alguns assaltos Pero de Campos, Diogo MendesBarradas, Antônio Freire, e outros; os cabos destes capitães <strong>do</strong>s assaltos eram da banda <strong>do</strong> norte dacidade, onde fica o mosteiro de Nossa Senhora <strong>do</strong> Carmo, Manuel Gonçalves, e da banda <strong>do</strong> sul,onde fica o de S. Bento, Francisco de Padilha; posto <strong>que</strong> s<strong>em</strong>pre <strong>se</strong> ajudavam uns aos outros,quan<strong>do</strong> a necessidade o re<strong>que</strong>ria, e Lourenço de Brito como capitão <strong>do</strong>s aventureiros acudia a todasas partes.CAPÍTULO VIGÉSIMO SEXTODos assaltos, <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram enquanto governou o bispoOrdenadas as coisas pelo bispo, na maneira <strong>que</strong> fica dito, saben<strong>do</strong> os capitães Francisco dePadilha, e Jorge de Aguiar, <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s faziam poste na casa de Cristóvão Vieira, escrivão<strong>do</strong>s agravos, a qual está um pouco mais de um tiro de pedra fora <strong>do</strong> muro, e porta da cidade,entraram nela uma noite com mais dez companheiros, e à espada mataram quatro holande<strong>se</strong>s, pelo<strong>que</strong> depois derribaram e pu<strong>se</strong>ram fogo à casa, e a todas as mais <strong>que</strong> havia nos arrebaldes, e roçaramos matos, <strong>que</strong> lhe podiam <strong>se</strong>r impedimento, e aos portugue<strong>se</strong>s abrigo, mas sobre este roçar d<strong>em</strong>atos, e derribar casas houve alguns encontros, <strong>em</strong> <strong>que</strong> os capitães Lourenço de Brito, e AntônioMacha<strong>do</strong> com a sua gente mataram uma vez quatro, e por outra o mesmo Lourenço de Brito, e Luizde Si<strong>que</strong>ira mataram muitos, e aqui testificou o capitão Lourenço de Brito <strong>do</strong> negro Bastião, de <strong>que</strong>atrás fiz<strong>em</strong>os menção, <strong>que</strong> <strong>se</strong> adiantou a to<strong>do</strong>s dizen<strong>do</strong>, <strong>que</strong> a sua flecha não chegava tão longecomo o pelouro <strong>do</strong>s arcabuzes, e assim lhe era necessário para <strong>em</strong>pregá-la nos inimigos chegar-s<strong>em</strong>ais perto deles, o <strong>que</strong> também fez <strong>em</strong> outros encontros, e uma vez andan<strong>do</strong> já com eles à espada,dizen<strong>do</strong>-lhes os nossos negros <strong>que</strong> <strong>se</strong> retiras<strong>se</strong>, respondeu «Não retira, não, sipanta, sipanta,»


147<strong>que</strong>ren<strong>do</strong> nisto dizer <strong>que</strong> não era t<strong>em</strong>po de retirar quan<strong>do</strong> andavam já à espada; por<strong>que</strong> tinhaexperimenta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s <strong>que</strong> não eram tão destros nesta arma, como nas de fogo, e assimvin<strong>do</strong> à espada tinha já o pleito por venci<strong>do</strong>; outros holande<strong>se</strong>s foram até a casa de Jorge deMagalhães, <strong>que</strong> dista mais de uma légua da cidade, <strong>que</strong>iman<strong>do</strong> as <strong>que</strong> havia pelo caminho, erouban<strong>do</strong> quanto achavam; por<strong>que</strong> os mora<strong>do</strong>res <strong>se</strong> saíam fugin<strong>do</strong> para os matos, e a uma mulher,<strong>que</strong> não pôde fugir, qui<strong>se</strong>ram romper as orelhas para lhe tirar<strong>em</strong> os cercilhos, e pendentes de ouro,<strong>se</strong> ela não lhos dera, e ainda fizeram outras coisas piores <strong>se</strong> não acudira Francisco de Padilha com asua gente, o qual matou quatro, e foi <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> os mais, <strong>que</strong> lhe fugiram até o Rio Vermelho; outravez foram muitos ao pomar de Diogo Sodré, <strong>que</strong> <strong>se</strong> chama da vigia, por<strong>que</strong> dali a faz<strong>em</strong> aos navios<strong>que</strong> aparec<strong>em</strong> na costa, e <strong>se</strong> dá aviso na cidade antes <strong>que</strong> entr<strong>em</strong> na barra, e levaram muitos negrosconsigo <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us confedera<strong>do</strong>s para carregar<strong>em</strong> de laranjas, limas <strong>do</strong>ces, limões, e cidras, <strong>que</strong> há alimuitas, mas saíram-lhe os capitães Antônio Macha<strong>do</strong>, e Antônio de Moraes com 50 homens cadaum, e depois de batalhar<strong>em</strong> animosamente, e lhes matar<strong>em</strong> nove holande<strong>se</strong>s, todavia <strong>se</strong> retiraramcom <strong>do</strong>is portugue<strong>se</strong>s mortos, e alguns feri<strong>do</strong>s; mas a este t<strong>em</strong>po acudiu o capitão Padilha com 20solda<strong>do</strong>s <strong>se</strong>us, e in<strong>do</strong> após eles, <strong>que</strong> já <strong>se</strong> iam para a cidade, lhe fizeram rosto, e <strong>se</strong> tornou a travaroutra batalha, a <strong>que</strong> tornaram os <strong>do</strong>is <strong>primeiro</strong>s capitães, <strong>que</strong> <strong>se</strong> haviam retira<strong>do</strong>, e os foram levan<strong>do</strong>até ter<strong>em</strong> vista <strong>do</strong> socorro, <strong>que</strong> ia aos holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> então os deixaram, por não ter<strong>em</strong> maispólvora, n<strong>em</strong> munição, mas ainda nesta <strong>se</strong>gunda batalha lhe mataram muitos mais, e cativaram umvivo, chama<strong>do</strong> Rodrigo Mateus, <strong>que</strong> levaram ao bispo.Não <strong>se</strong> haviam com menos ânimo e esforço Manuel Gonçalves, e os mais capitães, <strong>que</strong>ficavam da banda <strong>do</strong> Carmo, vigian<strong>do</strong> continuadamente <strong>se</strong> saíam para a<strong>que</strong>la parte algunsholande<strong>se</strong>s, e assim junto ao mesmo mosteiro <strong>do</strong> Carmo mataram uma vez <strong>se</strong>is, e outra três; esain<strong>do</strong> <strong>do</strong> forte de S. Filipe a pescar a umas camboas, <strong>que</strong> ficam perto, deram sobre eles, e ospescaram, antes <strong>que</strong> eles pescass<strong>em</strong>; mataram um, e cativan<strong>do</strong> três, <strong>que</strong> levaram ao bispo, <strong>do</strong>s quaisum era o cabo <strong>do</strong> forte; e ven<strong>do</strong> os holande<strong>se</strong>s <strong>que</strong> os nossos <strong>se</strong> ajudavam por estes assaltos, deumas casas <strong>que</strong> ali estavam, onde no t<strong>em</strong>po da paz morava o capitão <strong>do</strong> forte com sua família,foram uma manhã cinco com picões para derribá-las, mas Manuel Gonçalves, Jorge de Aguiar, ePero <strong>do</strong> Campo, <strong>que</strong> já estavam esperan<strong>do</strong> <strong>em</strong>bosca<strong>do</strong>s no mato, tanto <strong>que</strong> os viram subi<strong>do</strong>s paradestelhar<strong>em</strong> a casa, saíram com os <strong>se</strong>us, mataram <strong>do</strong>is, e <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> os outros até a porta da fortaleza,e s<strong>em</strong> falta a entraram da<strong>que</strong>la vez, <strong>se</strong> na mesma porta não pu<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> os de dentro uma peça deartilharia, <strong>que</strong> dispararam com muita munição miúda, e os fizeram tornar.Outra vez haven<strong>do</strong>-lhe um negro <strong>do</strong> capitão Pero de Campo toma<strong>do</strong> o batel <strong>do</strong> pé <strong>do</strong> forte, eleva<strong>do</strong> aos nossos, s<strong>em</strong> <strong>em</strong>bargo de muitas peças, <strong>que</strong> lhe atiraram s<strong>em</strong> lhe acertar alguma,entenden<strong>do</strong> o dito capitão Manuel Gonçalves <strong>que</strong> pois não tinham batel iriam por terra dar aviso acidade <strong>do</strong> <strong>que</strong> passava, os foi esperar ao caminho, e ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> iam <strong>do</strong>is <strong>em</strong> uma jangada man<strong>do</strong>u aeles a na<strong>do</strong>, mas não os tomaram, por<strong>que</strong> lhes acudiu uma lancha sua, <strong>que</strong> ia da cidade.CAPÍTULO VIGÉSIMO SÉTIMODe outros assaltos, <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram à beira-mar aos holande<strong>se</strong>sVen<strong>do</strong> os holande<strong>se</strong>s <strong>que</strong> por terra ganhavam mui pouco, e os não deixavam chegar àsfazendas de fora, determinaram ir a elas por mar, socapa / como eles diziam / de buscar algumrefresco por <strong>se</strong>u dinheiro, ou a troco de outras merca<strong>do</strong>rias; e para isto levavam às vezes algunsportugue<strong>se</strong>s consigo, <strong>do</strong>s <strong>que</strong> entre si tinham, para <strong>que</strong> <strong>se</strong>gurass<strong>em</strong> aos outros da paz, e quan<strong>do</strong> nãoqui<strong>se</strong>ss<strong>em</strong> lhes fariam guerra, mas também disto <strong>se</strong> preveniu o bispo, mandan<strong>do</strong> <strong>que</strong> os <strong>que</strong> tinhamengenhos, e fazendas junto a praia <strong>se</strong> fortificass<strong>em</strong>, e assistiss<strong>em</strong> nelas, e por esta causa mandava


148sair de cada freguesia 20 homens a assistir no arraial, e com esta prevenção <strong>se</strong> defenderam <strong>do</strong>sinimigos <strong>em</strong> algumas partes, e ainda <strong>em</strong> outras os ofenderam, como fez Bartolomeu Pires, mora<strong>do</strong>rna boca <strong>do</strong> rio de Matuim, o qual ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> de um patacho <strong>que</strong> ali <strong>se</strong> pôs saíam os holande<strong>se</strong>s àsvezes ao engenho de Simão Nunes de Mattos, <strong>que</strong> está defronte na ilha de Maré, a comer com ofeitor, por<strong>que</strong> <strong>se</strong>u <strong>do</strong>no não estava aí, <strong>se</strong> foi meter com eles, e os convi<strong>do</strong>u para uma merenda no dia<strong>se</strong>guinte, avisan<strong>do</strong> a Antônio Car<strong>do</strong>so de Barros lhe mandas<strong>se</strong> gente para o ajudar, como man<strong>do</strong>u, ea pôs <strong>em</strong> cilada da outra parte <strong>do</strong> engenho, e mortas as galinhas, postas a assar para maisdissimulação, tanto <strong>que</strong> os teve juntos deu sinal aos da <strong>em</strong>boscada, os quais saíram, e mataramalguns, <strong>em</strong> <strong>que</strong> entrou um merca<strong>do</strong>r holandês; e fugin<strong>do</strong> os mais para o batel, cativaram só três, <strong>que</strong>depois daí a <strong>se</strong>is me<strong>se</strong>s tornaram a fugir de casa de Antônio Car<strong>do</strong>so de Barros para os <strong>se</strong>us.Outros foram <strong>em</strong> uma nau à ponta da ilha de Itaparica, chamada a ponta da Cruz, e depois dea carregar<strong>em</strong> de azeite, ou graxa de baleia, <strong>que</strong> aí havia / por<strong>que</strong> a<strong>que</strong>le é o lugar onde <strong>se</strong> faz /, <strong>se</strong>foram ao engenho de Gaspar de Azeve<strong>do</strong>, <strong>que</strong> está na praia uma légua atrás da ponta, onde lhe nãotomaram açúcar n<strong>em</strong> fizeram algum dano, antes lhe escreveram <strong>que</strong> vies<strong>se</strong> para o <strong>se</strong>u engenho, <strong>em</strong>oes<strong>se</strong> cana, e lhe dariam para isso negros, e toda a fábrica necessária, e somente a uma cruz depau alta, <strong>que</strong> estava no terreiro <strong>do</strong> engenho, deram algumas cutiladas, a qual milagrosamente <strong>se</strong>torceu, e virou logo para outra parte, para a qual caminhan<strong>do</strong> depois os holande<strong>se</strong>s acharam algunsmora<strong>do</strong>res da ilha com Afonso Rodrigues da Cachoeira, <strong>que</strong> então ali chegou com o <strong>se</strong>u gentio, <strong>em</strong>ortos oito à flechadas, e arcabuzadas, lhes tomaram uma lancha com três ro<strong>que</strong>iras, e fizeram<strong>em</strong>barcar os mais com a água pela barba, e muitos mui malferi<strong>do</strong>s; pelo <strong>que</strong> <strong>se</strong> ficou ten<strong>do</strong> a<strong>que</strong>lacruz <strong>em</strong> tanta veneração e estima <strong>do</strong>s católicos, <strong>que</strong> faz<strong>em</strong> dela relíquias, com <strong>que</strong> saram muito<strong>se</strong>nfermos de maleitas, e outras enfermidades.O capitão Francisco holandês foi <strong>em</strong> outra nau a ilha de Boipeba, <strong>que</strong> é de fora da barra, eentran<strong>do</strong> pelo rio dentro até a vila <strong>do</strong> Cairu, <strong>que</strong> <strong>se</strong>rá de 20 vizinhos, com duas lanchas d<strong>em</strong>os<strong>que</strong>teiros; man<strong>do</strong>u o português <strong>que</strong> consigo levava à terra, e de lá veio com ele Antônio deCouros, <strong>se</strong>nhor ali de um engenho, por <strong>se</strong>r amigo <strong>do</strong> dito capitão holandês Francisco, <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po <strong>que</strong>nesta cidade esteve preso, como diss<strong>em</strong>os no capítulo nono deste <strong>livro</strong>; o qual Antônio de Couros,depois de <strong>se</strong> saudar<strong>em</strong> com as palavras, e cerimônias devidas, <strong>se</strong> virou ao português medianeiro,chaman<strong>do</strong>-lhe tre<strong>do</strong> a el-rei, e parcial <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, e logo dis<strong>se</strong> ao capitão <strong>que</strong> não <strong>que</strong>ria comele paz <strong>se</strong>não guerra, e para ela o ia esperar <strong>em</strong> terra, e foi tão honra<strong>do</strong> o holandês <strong>que</strong>, ou pelo<strong>se</strong>guro da paz <strong>que</strong> lhe havia da<strong>do</strong>, ou pela amizade e conhecimento <strong>que</strong> tinham dantes, ou pelo <strong>que</strong>fos<strong>se</strong>, n<strong>em</strong> por palavras, n<strong>em</strong> por obras lhe deu ruim resposta, antes <strong>se</strong> tornou para a nau, <strong>que</strong> haviadeixa<strong>do</strong> no morro de S. Paulo, <strong>que</strong> é a barra da<strong>que</strong>le rio, e daí para a cidade, depois tornou aoCamamu com outra nau, e com mais lanchas e solda<strong>do</strong>s, e outro português, <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> <strong>se</strong>ucarcereiro no t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> esteve preso, e com muitos negros <strong>do</strong>s <strong>que</strong> haviam toma<strong>do</strong> <strong>do</strong>s navios deAngola, para ver <strong>se</strong> lhos <strong>que</strong>riam trocar por vacas, porcos, e galinhas, e também por lhe nãoresponder<strong>em</strong> ao <strong>se</strong>u propósito, <strong>se</strong> tornou só com 12 bois, <strong>que</strong> tomou <strong>do</strong> pasto <strong>do</strong> engenho <strong>do</strong>spadres da companhia, e ainda estes lhes custaram oito holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> os índios mataram àflechadas, e por haver leva<strong>do</strong> as lanchas de vela perderam cá a presa de um navio de Viana, <strong>que</strong>vinha da ilha da Madeira carrega<strong>do</strong> de vinhos, e mui <strong>em</strong>bandeira<strong>do</strong>, ao qual estan<strong>do</strong> já junto dasnaus holandesas para tomar a vala, e deitar âncora, tiraram de uma delas duas bombardadas, o <strong>que</strong>visto pelos portugue<strong>se</strong>s <strong>do</strong> navio conheceram pelos pelouros <strong>que</strong> levavam <strong>se</strong>r de guerra, e largan<strong>do</strong>to<strong>do</strong> o pano ao vento, <strong>que</strong> era largo, foram corren<strong>do</strong> pela Bahia dentro, in<strong>do</strong> também a holandesa,<strong>que</strong> era a nau Tigre, após ela, porém como <strong>se</strong> deteve <strong>em</strong> <strong>se</strong> desamarrar, e largar as velas, s<strong>em</strong>pre onavio lhe levou esta vantag<strong>em</strong>, a qual bastou para a <strong>se</strong>u salvo <strong>se</strong> pôr na boca <strong>do</strong> rio de Matuim, ondea nau, por <strong>se</strong>r grande, <strong>que</strong> era de 350 toneladas, e não levar lanchas, não pôde chegar n<strong>em</strong> fazer-lhedano.


149O dia <strong>se</strong>guinte chegadas as lanchas <strong>do</strong> Camamu as mandaram logo ao dito rio, onde por nãoachar<strong>em</strong> o navio, <strong>que</strong> <strong>se</strong> foi meter dali a uma légua na Petinga, deram na fazenda de ManuelMendes Mesas, lavra<strong>do</strong>r, e lhe tomaram algumas ovelhas, <strong>que</strong> viram andar no pasto, com <strong>que</strong>tornaram para as suas naus.O bispo man<strong>do</strong>u logo o capitão Francisco de Castro, e outros ao rio da Petinga, paradefender<strong>em</strong> o navio <strong>se</strong> lá foss<strong>em</strong> os holande<strong>se</strong>s enquanto <strong>se</strong> descarregava, e dele levaram <strong>se</strong>is peçasde artilharia para o arraial, e saben<strong>do</strong> <strong>que</strong> uma nau <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ra entre a ilha <strong>do</strong>s Frades, e a de Maré,para daí com a sua lancha tomar os barcos, <strong>que</strong> por a<strong>que</strong>les bo<strong>que</strong>irões navegavam, encarregou aocapitão Agostinho de Paredes <strong>que</strong> andas<strong>se</strong> por aí <strong>em</strong> uma barca para lhe impedir as presas, e ver <strong>se</strong>podia tomar-lhes a lancha, porém eles <strong>se</strong> guardaram disso, por<strong>que</strong> estan<strong>do</strong> ali 20 dias, e sain<strong>do</strong> nelaqua<strong>se</strong> cada dia o capitão, <strong>que</strong> <strong>se</strong> chamava Cornélio Corneles, com 25 mos<strong>que</strong>teiros, ou quan<strong>do</strong> elenão ia o piloto, a qual<strong>que</strong>r barco <strong>que</strong> passava, tanto <strong>que</strong> o barco encalhava <strong>em</strong> terra, ou <strong>se</strong> metiapelos bo<strong>que</strong>irões o deixavam, e <strong>se</strong> tornavam à nau, o <strong>que</strong> eu <strong>se</strong>i como test<strong>em</strong>unha de vista, por<strong>que</strong>neste t<strong>em</strong>po ainda estava cativo nesta nau, e um dia lhes dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> de<strong>se</strong>nganass<strong>em</strong> de poder fazerpresa alguma; por<strong>que</strong> estava defronte uma fortaleza, mostran<strong>do</strong>-lhe uma igreja de Nossa Senhora <strong>do</strong>Socorro de muitos milagres, a qual defendia to<strong>do</strong> a<strong>que</strong>le circuito, <strong>do</strong> <strong>que</strong> muito <strong>se</strong> riram, mas enfim<strong>se</strong> tornaram para o porto da cidade s<strong>em</strong> pilhag<strong>em</strong> alguma.CAPÍTULO VIGÉSIMO OITAVODos navios, <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s tomaram na Bahia, e o <strong>que</strong> fizeram da gente <strong>que</strong> cativaramQuan<strong>do</strong> os holande<strong>se</strong>s tomaram a Bahia acharam trinta navios ancora<strong>do</strong>s, alguns ainda carrega<strong>do</strong>s com asfazendas, <strong>que</strong> trouxeram <strong>do</strong> reino, outros de açúcar, já para partir<strong>em</strong>, outros de farinha da terra, e outros mantimentospara Angola, os quais to<strong>do</strong>s tomaram descarregan<strong>do</strong>-os nos <strong>se</strong>us, e <strong>em</strong> suas lojas, escolheram os melhores para osarmar<strong>em</strong>, e <strong>se</strong>rvir<strong>em</strong> deles, e aos mais meteram no fun<strong>do</strong>, e fora estes lhes vieram depois a cair nas mãos alguns vinte;por<strong>que</strong> como este porto é de tanto comércio, e v<strong>em</strong> a ele de partes tão r<strong>em</strong>otas, <strong>que</strong> n<strong>em</strong> daí a quatro me<strong>se</strong>s <strong>se</strong> pôdenelas saber como estava impedi<strong>do</strong> por si <strong>se</strong> vinham entregar, e ancorar entre os inimigos, com quanto lhes eranecessário de farinha de trigo, biscoito, azeite, vinho, <strong>se</strong>das, e outras ricas merca<strong>do</strong>rias, e por r<strong>em</strong>ate lhes veio um <strong>do</strong> rioda Prata carrega<strong>do</strong> dela, <strong>em</strong> <strong>que</strong> vinha d. Francisco Sarmento, <strong>que</strong> havia <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> <strong>em</strong> Potosi de correge<strong>do</strong>r, e traziamulher e filhos, e um genro e neto, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s recolheu o coronel <strong>em</strong> sua casa depois de rouba<strong>do</strong>s, e lhes deu mesa evesti<strong>do</strong>s.Entre estes navios toma<strong>do</strong>s foi logo <strong>do</strong>s <strong>primeiro</strong>s um o <strong>do</strong>s padres da companhia, <strong>em</strong> <strong>que</strong>costumam visitar os colégios e casas, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> por esta costa, e nesta ocasião vinha ao Rio deJaneiro o padre Domingos Coelho, <strong>se</strong>u provincial, <strong>que</strong> ia já acaban<strong>do</strong>, e o padre Antônio de Mattos,<strong>que</strong> lhe havia de suceder, e outros padres e irmãos da companhia, <strong>que</strong> por to<strong>do</strong>s eram 10.Vinham também quatro religiosos de S. Bento, e eu, e meu companheiro da ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> nossopadre S. Francisco: amanhec<strong>em</strong>os aos 28 de maio da dita era de 1624 na ponta <strong>do</strong> morro de S.Paulo, <strong>que</strong> é por onde <strong>se</strong> entra na primeira boca da Bahia, onde vimos duas lanchas, e uma nau, <strong>que</strong><strong>se</strong> vieram a nós, e brev<strong>em</strong>ente ferraram <strong>do</strong> navio por vir desarma<strong>do</strong>, e <strong>se</strong> <strong>se</strong>nhorearam dele, e dequanto trazia, <strong>que</strong> eram caixões de açúcar, marmeladas, dinheiro, e outras coisas de encomendas, ede passageiros, <strong>que</strong> nele vinham e nos trouxeram para o porto, <strong>do</strong>nde nos repartiram pelas suas nausde <strong>do</strong>is <strong>em</strong> <strong>do</strong>is, e de quatro <strong>em</strong> quatro, e assim estiv<strong>em</strong>os até o fim de julho, <strong>que</strong> o <strong>se</strong>u general <strong>se</strong>partiu com 11 naus para as salinas, e o almirante com cinco, e <strong>do</strong>is patachos para Angola, ejuntamente partiram quatro <strong>em</strong> direitura carregadas de açúcar para Holanda, <strong>em</strong> <strong>que</strong> mandaram ogoverna<strong>do</strong>r Diogo de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>, com <strong>se</strong>u filho, e o ouvi<strong>do</strong>r-geral Pero Cas<strong>que</strong>iro daRocha, e o sargento-mor, e também os padres da companhia, e os de S. Bento, e a nós deixarampara nos trocar<strong>em</strong> pelos <strong>se</strong>us, <strong>que</strong> estavam cativos <strong>do</strong>s assaltos, sobre o <strong>que</strong> andava um português,mora<strong>do</strong>r na terra, <strong>que</strong> falava a língua flamenga, o qual depois acharam <strong>que</strong> lhe era tre<strong>do</strong>, e o<strong>se</strong>nganava, pelo <strong>que</strong> o prenderam, e enforcaram com um irmão <strong>se</strong>u, e um mulato, <strong>que</strong> os


150acompanhava, e a nós <strong>se</strong> ficaram dilatan<strong>do</strong> as esperanças da nossa liberdade, de tal sorte <strong>que</strong> meucompanheiro por melhor arriscar-<strong>se</strong> a ir a na<strong>do</strong>, o <strong>que</strong> eu ainda <strong>que</strong> qui<strong>se</strong>ra não podia fazer, por<strong>que</strong>qu<strong>em</strong> não sabe nadar vai-<strong>se</strong> ao fun<strong>do</strong>, e assim estive na prisão <strong>do</strong> mar quatro me<strong>se</strong>s, os quaispassa<strong>do</strong>s me pediu Manuel Fernandes de Azeve<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> ficaram nacidade, e concederam <strong>que</strong> vies<strong>se</strong> para sua casa, e pudes<strong>se</strong> andar <strong>em</strong> sua companhia pela cidade,contanto <strong>que</strong> não chegas<strong>se</strong> aos muros e fortificações, <strong>do</strong>nde me ocupei <strong>em</strong> confessar os portugue<strong>se</strong>s,<strong>em</strong> forma <strong>que</strong> n<strong>em</strong> um morreu s<strong>em</strong> confissão, como até este t<strong>em</strong>po morriam, mas não eram muitos,por<strong>que</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>que</strong> <strong>se</strong> qui<strong>se</strong>ram ir deram licença, e três navios, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> foram um paraPernambuco, e <strong>do</strong>is para o Rio de Janeiro, nos quais foram trezentas pessoas, os mais deles gente <strong>do</strong>mar, e passageiros <strong>do</strong>s navios, <strong>que</strong> tomaram, também fugiram muitos para o nosso arraial, paraonde lhes não <strong>que</strong>riam dar licença, e de lá <strong>se</strong> veio para eles uma mulher casada fugin<strong>do</strong> a <strong>se</strong>umari<strong>do</strong> com uma filha formosa, <strong>que</strong> o coronel casou com um merca<strong>do</strong>r holandês, e lhes fez grandesfestas <strong>em</strong> <strong>se</strong>u recebimento de músicas, danças, e ban<strong>que</strong>tes, <strong>que</strong> duraram três dias.Aos mais portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> ficamos, davam ração como aos <strong>se</strong>us de pão, vinho, azeite, carne,peixe cada s<strong>em</strong>ana; e as obras <strong>que</strong> lhe faziam alguns, <strong>que</strong> eram alfaiates e sapateiros, e camisas, <strong>que</strong>as mulheres faziam pagavam muito b<strong>em</strong>.CAPÍTULO VIGÉSIMO NONODe como Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, depois <strong>que</strong> recebeu a provisão <strong>do</strong> governo, tratou <strong>do</strong> socorro daBahia, e fortificação de Pernambuco, onde deteve a Francisco Coelho de Carvalho, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong>MaranhãoRecebida por Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>em</strong> Pernambuco a provisão <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> Brasil navagante de Diogo Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>, fez logo uma junta <strong>do</strong>s oficiais da Câmera, capitães, prela<strong>do</strong>sda religião, e outras pessoas qualificadas sobre <strong>se</strong> viria <strong>em</strong> pessoa socorrer a Bahia, o <strong>que</strong> por to<strong>do</strong>slhe foi contradito; assim por<strong>que</strong> não bastaria o socorro, <strong>que</strong> de lá podia trazer para recuperá-la,como pelo perigo <strong>em</strong> <strong>que</strong> deixava estoutra capitania, de cuja fortificação e defensa <strong>se</strong> devia tambémtratar, pois viam arder as barbas <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us vizinhos, com a qual resolução man<strong>do</strong>u Antônio deMoraes, <strong>que</strong> de cá havia i<strong>do</strong>, e acha<strong>do</strong> no caminho um grande pedaço de âmbar, tornas<strong>se</strong> por terracom socorro de alguns solda<strong>do</strong>s com suas armas, e munições, fazen<strong>do</strong> também tornar outros, <strong>que</strong>encontras<strong>se</strong> pelo caminho, e assim chegou ao arraial uma boa companhia.O governa<strong>do</strong>r <strong>se</strong> ficou fortifican<strong>do</strong> na vila de Olinda com muita diligência, cercan<strong>do</strong> toda apraia, e pon<strong>do</strong> nela solda<strong>do</strong>s com <strong>se</strong>us capitães nas estâncias necessárias, como também fez no rioTapa<strong>do</strong> um terço de légua da vila, e o Pau Amarelo, <strong>que</strong> dista dela três léguas, e é porto ondepod<strong>em</strong> entrar lanchas, e patachos; e por<strong>que</strong> o <strong>do</strong> Recife é o principal onde estão os nossos navios, eduas fortalezas, <strong>que</strong> são as chaves de to<strong>do</strong> o Pernambuco, pediu a Francisco Coelho de Carvalho,governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Maranhão, <strong>que</strong> pouco havia ali chegara <strong>do</strong> reino, não qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> <strong>em</strong> a<strong>que</strong>la ocasião<strong>se</strong>guir sua viag<strong>em</strong> para o Maranhão, encarregan<strong>do</strong>-lhe o dito porto e povo <strong>do</strong> Recife, e o governodele, sobre o qual ambos escreveram a. Sua Majestade <strong>que</strong> <strong>se</strong> houves<strong>se</strong> disso por b<strong>em</strong> <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong>, e poresta causa <strong>se</strong> ficou ali Francisco Coelho de Carvalho com três companhias de solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>do</strong>reino levava, e juntamente com ele <strong>se</strong>u filho Feliciano Coelho de Carvalho, Manuel Soares, <strong>se</strong>usargento-mor, Jacome de Reimonde, prove<strong>do</strong>r-mor da fazenda <strong>do</strong> Maranhão, e Manuel de SouzaDeça, capitão-mor <strong>do</strong> Pará, e man<strong>do</strong>u só um barco ao Maranhão com alguns velhos, e mulheres, noqual <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou nosso irmão <strong>frei</strong> Cristóvão Severim, <strong>que</strong> ia por custódio com 15 frades, <strong>que</strong> traziada província, e cinco <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhe ajuntaram desta custódia <strong>do</strong> Brasil, a qu<strong>em</strong> também o administra<strong>do</strong>rde Pernambuco, <strong>que</strong> então era o dr. Bartolomeu Ferreira, deu poderes de vigário-geral, e provisor,


151como os trazia <strong>do</strong> Santo Ofício para rever e qualificar os <strong>livro</strong>s, o <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> era mui necessáriona<strong>que</strong>las partes.Partiram <strong>do</strong> Recife a 12 de julho de 1624, e aportaram aos dezoito <strong>do</strong> mês na en<strong>se</strong>ada deMocaripe, três léguas <strong>do</strong> Ceará, <strong>do</strong>nde os veio buscar o capitão-mor Martim Soares Moreno para oforte, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> detiveram 15 dias, sacramentan<strong>do</strong> os brancos, e <strong>do</strong>utrinan<strong>do</strong> os índios de duasaldeias, <strong>que</strong> ali estavam, com os quais o custódio deixou <strong>do</strong>is religiosos, por re<strong>que</strong>rimento, <strong>que</strong> ocapitão lhe fez, para quietação <strong>do</strong>s índios, <strong>que</strong> com esperanças de alcançá-los os haviam até alisustenta<strong>do</strong>.Os mais chegaram ao Maranhão <strong>em</strong> <strong>se</strong>is de agosto, onde começaram a edificar uma casa, eigreja de taipa, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> dis<strong>se</strong> a primeira missa no ano <strong>se</strong>guinte dia de Nossa Senhora dasCandeias, ajudan<strong>do</strong> Deus a obra como sua com algumas maravilhas, e milagres notáveis; um foi<strong>que</strong> dizen<strong>do</strong> os pedreiros <strong>que</strong> para <strong>se</strong> rebocar<strong>em</strong> as paredes eram necessárias 60 pipas de cal, e nãohaven<strong>do</strong> mais <strong>que</strong> 25 com elas <strong>se</strong> rebocaram, e sobejaram ainda 17 pipas, não s<strong>em</strong> grandeadmiração <strong>do</strong>s oficiais, <strong>que</strong> com juramento afirmaram era milagre.Outro foi <strong>que</strong> trazen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> para a obra <strong>em</strong> um carro uma mui grande e pesada trave, caiu ocarreiro <strong>que</strong> ia diante, e passan<strong>do</strong> a roda <strong>do</strong> carro por cima dele com to<strong>do</strong> a<strong>que</strong>le peso, não lhe fezdano algum, mas logo <strong>se</strong> levantou são, e pros<strong>se</strong>guiu sua carreira, fican<strong>do</strong>-lhe só o sinal da rodaimpresso no peito por onde passou para prova <strong>do</strong> milagre.N<strong>em</strong> trabalhou menos o padre custódio no edifício espiritual das almas, <strong>que</strong> na visita achouestragadas, e na conversão <strong>do</strong>s índios. O mesmo fez no Pará, onde reduziu a paz <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s osgentios Tocantins, <strong>que</strong> escandaliza<strong>do</strong>s de agravos, <strong>que</strong> lhe haviam feito, estavam qua<strong>se</strong> rebela<strong>do</strong>s, elevou consigo os filhos <strong>do</strong>s principais para os <strong>do</strong>utrinar, e <strong>do</strong>mesticar, proibiu com excomunhãovender<strong>em</strong>-<strong>se</strong> os índios forros, como faziam, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> só lhe vendiam o <strong>se</strong>rviço.Queimou muitos <strong>livro</strong>s, <strong>que</strong> achou <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s hereges, e muitas cartas de tocar, e oraçõessupersticiosas, de <strong>que</strong> muitos usavam, apartou os amanceba<strong>do</strong>s das concubinas, e fez outras muitasobras <strong>do</strong> <strong>se</strong>rviço de Nosso Senhor, e b<strong>em</strong> das almas, não s<strong>em</strong> muito trabalho, e per<strong>se</strong>guições, <strong>que</strong>por isto padeceu, saben<strong>do</strong> <strong>que</strong> são b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong>s os <strong>que</strong> padec<strong>em</strong> pela justiça.CAPÍTULO TRIGÉSIMODe como o governa<strong>do</strong>r geral Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> man<strong>do</strong>u de Pernambuco por capitão-mor daBahia a Francisco Nunes Marinho, e da morte <strong>do</strong> bispoInforma<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r geral Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>em</strong> Pernambuco de algumas dúvidas, e diferenças, <strong>que</strong>havia entre o bispo e o ouvi<strong>do</strong>r-geral Antão de Mesquita de Oliveira sobre o governo <strong>do</strong> arraial, e da mais gente daBahia, por<strong>que</strong> também haviam para isto eleito o mesmo ouvi<strong>do</strong>r-geral, antes <strong>que</strong> elegess<strong>em</strong>, e aclamass<strong>em</strong> o bispo, paraatalhar a estas dúvidas, e diferenças, man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> vies<strong>se</strong> por capitão-mor Francisco Nunes Marinho, <strong>que</strong> o havia já si<strong>do</strong>na Paraíba, e <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> a el-rei na Índia e <strong>em</strong> outras partes com muita satisfação, e para isto lhe deu <strong>do</strong>is caravelões, deum <strong>do</strong>s quais veio ele por capitão, e de outro Antônio Carneiro Falcato com trinta solda<strong>do</strong>s, pólvora, munições, evitualhas de vinho, azeite, e outras coisas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhe puderam dar <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po tão necessita<strong>do</strong> delas.No mar tiveram uma grande tormenta, <strong>que</strong> os obrigou a entrar no rio de Sergipe del-rei comvergas e mastros <strong>que</strong>bra<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>nde depois <strong>que</strong> os refez, para <strong>se</strong>guir<strong>em</strong> sua viag<strong>em</strong>, e ele <strong>se</strong> foi comalguns solda<strong>do</strong>s por terra, e chegou a muito bom t<strong>em</strong>po, por<strong>que</strong> daí a poucos dias a<strong>do</strong>eceu o bispoda <strong>do</strong>ença, de <strong>que</strong> morreu aos 8 de outubro da dita era, deixan<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s assaz sau<strong>do</strong>sos, edesconsola<strong>do</strong>s com a falta de sua pre<strong>se</strong>nça, por <strong>se</strong>r ela tal, <strong>que</strong> ainda a natural agradava a to<strong>do</strong>s, s<strong>em</strong>as muitas graças sobrenaturais, <strong>que</strong> Deus a esmaltou, por<strong>que</strong> era mui esmoler, e liberal, devotíssimo<strong>do</strong> Santíssimo Sacramento, o qual levava ele próprio aos enfermos, ou ao menos o acompanhava


152com um brandão aceso, todas as vezes <strong>que</strong> o levavam fora de dia, ou de noite. Celebrava cada diaderraman<strong>do</strong> na missa muitas lagrimas de devoção.Pregava s<strong>em</strong> <strong>se</strong>r teólogo, posto <strong>que</strong> grande canonista, melhor <strong>que</strong> muitos teólogos, commuito zelo da salvação das almas: enfim dele <strong>se</strong> podia dizer aquilo <strong>do</strong> sábio Sapientiae, <strong>que</strong> o levouDeus deste mun<strong>do</strong>, e <strong>em</strong> tão pouca idade, <strong>que</strong> ainda não chegava a 50 anos, por<strong>que</strong> não era o mun<strong>do</strong>digno de tanto b<strong>em</strong>, e <strong>se</strong> isto <strong>se</strong> pode dizer <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us merecimentos para com Deus, não menos paracom el-rei, como b<strong>em</strong> <strong>se</strong> viu nesta ocasião, <strong>em</strong> <strong>que</strong> o <strong>se</strong>rviu de capitão-mor e governa<strong>do</strong>r depois daBahia tomada; por<strong>que</strong> ele foi o <strong>que</strong> andan<strong>do</strong> os homens espalha<strong>do</strong>s pelos matos morren<strong>do</strong> de fome,e n<strong>em</strong> eles <strong>se</strong> ten<strong>do</strong> por <strong>se</strong>guros, os fez ajuntar <strong>em</strong> um arraial, como já diss<strong>em</strong>os, e ali deu ord<strong>em</strong> a<strong>que</strong> <strong>se</strong> levass<strong>em</strong> mantimentos de todas as partes a vender, sustentan<strong>do</strong> ele os pobres à sua custa, <strong>que</strong>o não podiam comprar.Dali ordenou os capitães e companhias para os assaltos, <strong>em</strong> <strong>que</strong> reprimiu a insolência <strong>do</strong>sholande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong> isto não fora houveram de assolar todas as fazendas de fora, e quan<strong>do</strong> iam aosassaltos os animava, e exortava de mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> até os gentios <strong>se</strong>lvagens, <strong>que</strong> de princípio andavamalguns nestas companhias, obrigava a ir<strong>em</strong> com muita vontade, e esforço; logo <strong>se</strong> punha <strong>em</strong> oraçãopedin<strong>do</strong> a Deus lhe des<strong>se</strong> vitória, e quan<strong>do</strong> com ela tornavam lhe dava graças, abraçava os solda<strong>do</strong>s,e gratificava-lhes não só com palavras, mas com dádivas, com <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s andavam à porfia a qu<strong>em</strong>melhor havia de pelejar; e assim pu<strong>se</strong>ram s<strong>em</strong> o ter sitia<strong>do</strong> <strong>em</strong> tanto aperto, <strong>que</strong> não <strong>se</strong> atreviam asair 50 passos da cidade a buscar um limão, <strong>se</strong>não com muita gente, e ord<strong>em</strong>, e n<strong>em</strong> essa bastava, o<strong>que</strong> tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> pode atribuir também às orações <strong>do</strong> santo bispo, <strong>que</strong> não só governava estas guerrascom sua indústria, con<strong>se</strong>lho, e agencia, como Josué, e outros famosos capitães, mas com lágrimas eorações como Moisés: e entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong> a tomada da cidade fora castigo <strong>do</strong> céu por vícios, epeca<strong>do</strong>s, depois <strong>se</strong> castigava a si mesmo, e fazia tão áspera penitência, <strong>que</strong> nunca mais fez a barba,n<strong>em</strong> vestiu camisa, <strong>se</strong>não uma sotaina de burel, <strong>do</strong>rmia mui pouco, e jejuava muito, pregava eexortava a to<strong>do</strong>s à <strong>em</strong>enda de suas culpas, para <strong>que</strong> aplacass<strong>em</strong> a divina ira, até <strong>que</strong> destes trabalhoso tirou Deus para o descanso da b<strong>em</strong>-aventurança, como <strong>se</strong> pode confiar <strong>em</strong> sua divinami<strong>se</strong>ricórdia.CAPÍTULO TRIGÉSIMO PRIMEIRODos encontros, <strong>que</strong> houve com os holande<strong>se</strong>s no t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> governou o nosso arraial o capitão-mor Francisco NunesMarinhoAinda <strong>que</strong> o capitão-mor Francisco Nunes Marinho era velho, e enfermou gravissimamente chegan<strong>do</strong> à Bahia,n<strong>em</strong> por isso enfra<strong>que</strong>ceu <strong>do</strong> ânimo, ou faltou bom ponto <strong>do</strong> <strong>que</strong> era <strong>do</strong> <strong>se</strong>u ofício, e governo, antes tinha dito a JoãoBarbosa, <strong>que</strong> o acompanhou, e <strong>se</strong>rviu desde a Paraíba, <strong>que</strong> por mal <strong>que</strong> estives<strong>se</strong> nunca o dis<strong>se</strong>s<strong>se</strong> aos solda<strong>do</strong>s, mastoman<strong>do</strong>-lhe o reca<strong>do</strong>, dis<strong>se</strong>s<strong>se</strong> <strong>que</strong> lho ia dar, e tornas<strong>se</strong> com a resposta <strong>em</strong> <strong>se</strong>u nome, <strong>que</strong> lhe pareces<strong>se</strong>, o <strong>que</strong> o ditoJoão Barbosa fazia com tanta prudência e cortesia, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s iam contentes, e depois <strong>que</strong> sarou usava de outra cautela,<strong>que</strong> ten<strong>do</strong> mui pouca pólvora, mostrava botijas cheias de areia, fazen<strong>do</strong> entender aos solda<strong>do</strong>s <strong>que</strong> eram de pólvora, equan<strong>do</strong> <strong>se</strong> lhe <strong>que</strong>ixavam por<strong>que</strong> dava tão pouca, e pediam mais, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> deixavam muitas vezes de <strong>se</strong>guir osinimigos nos assaltos, por<strong>que</strong> no melhor lhes faltavam as cargas, respondia <strong>que</strong> bastava aquilo, <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> antes <strong>se</strong>rnota<strong>do</strong> de escasso, ou de qual<strong>que</strong>r outra nota, <strong>que</strong> descobrir a falta da pólvora, para <strong>que</strong> de to<strong>do</strong> não desmaiass<strong>em</strong>, edeixass<strong>em</strong> a guerra; assim foi continuan<strong>do</strong> com os assaltos na forma, <strong>que</strong> o bispo havia ordena<strong>do</strong>, e era a melhor <strong>que</strong>podia <strong>se</strong>r, acrescentan<strong>do</strong> mais duas trincheiras, uma <strong>em</strong> Tapuípe, e outra da banda de S. Bento, para os nossos <strong>que</strong> nelesandavam.Ordenou também <strong>que</strong> andass<strong>em</strong> <strong>do</strong>is barcos de vigia um <strong>em</strong> Itapoã, outro no morro, paraavisar os navios <strong>que</strong> vinham de Portugal, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> salvaram três ou quatro, e s<strong>em</strong> mudar o arraiallhe abreviou o caminho para a cidade um terço de légua, para com mais presteza poder<strong>em</strong> acudiraos assaltos; e no <strong>se</strong>u t<strong>em</strong>po soube o capitão Manuel Gonçalves pelas espias, <strong>que</strong> trazia, <strong>que</strong>


153estavam alguns holande<strong>se</strong>s meti<strong>do</strong>s no mosteiro <strong>do</strong> Carmo, e deu sobre eles com os mais capitãesde <strong>que</strong> era cabo, onde pelejaram uns e outros valorosamente, e ficaram <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s e <strong>do</strong>s nossos<strong>do</strong>is. Outra vez encontrou o mesmo Manuel Gonçalves uns holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> saíram da fortaleza deSão Filipe, e matou <strong>do</strong>is, fazen<strong>do</strong> recolher os outros: <strong>que</strong>imou-lhes um batel, e enfim os tinha tãoaperta<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong>não era por mar poucos passos <strong>se</strong> atreviam a sair da fortaleza.Alguns assaltos foram também dar por mar os holande<strong>se</strong>s, como foi um no engenho deManuel Rodrigues Sanches, onde lhe tomaram cinqüenta caixas de açúcar, <strong>que</strong>iman<strong>do</strong>-lhe as casas,e a igreja s<strong>em</strong> lho poder<strong>em</strong> impedir, posto <strong>que</strong> acudiram Manuel Gonçalves, e André de Padilha, pai<strong>do</strong> capitão Francisco de Padilha, e depois o coronel Lourenço Cavalcanti com quarenta homens, eos fizeram <strong>em</strong>barcar, matan<strong>do</strong>-lhes, e ferin<strong>do</strong>-lhes alguns. Outro assalto deram no engenho deEstevão de Brito Freire, <strong>do</strong>nde ao des<strong>em</strong>barcar lhe resistiu o capitão da freguesia Agostinho deParedes com alguns arcabuzeiros, os quais por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> poucos, e os inimigos muitos, foi força<strong>do</strong>retirar<strong>em</strong>-<strong>se</strong> ao alto às casas de um lavra<strong>do</strong>r fora <strong>do</strong>s pastos <strong>do</strong> engenho, no qual os holande<strong>se</strong>smataram alguns bois, e chegaram a estar às arcabuzadas, e ainda às pulhas com os nossos; mas denoite <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram à pressa, deixan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is bois mortos s<strong>em</strong> os levar<strong>em</strong>, e só levaram 20 caixas deaçúcar, <strong>que</strong> acharam no engenho, haven<strong>do</strong> já de caminho toma<strong>do</strong> 12 de retame de um engenho d<strong>em</strong>el, e alguns porcos de um chi<strong>que</strong>iro, e <strong>se</strong> não <strong>se</strong> houveram assim <strong>em</strong>barca<strong>do</strong> não o puderamdepois fazer tanto a <strong>se</strong>u salvo, por<strong>que</strong> no dia <strong>se</strong>guinte acudiu o capitão <strong>do</strong>s assaltos Francisco dePadilha, e Melchior Brandão, e capitão de Paraguaçu com muita gente; e por<strong>que</strong> uma nau <strong>do</strong>sholande<strong>se</strong>s havia fica<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>co, e <strong>se</strong> detiveram três ou quatro dias <strong>em</strong> tomar uma água, <strong>que</strong> abrira,e aliviá-la da artilharia nas lanchas, os ditos capitães <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram com o Paredes, cuidan<strong>do</strong> <strong>que</strong>saíss<strong>em</strong> <strong>em</strong> terra, o <strong>que</strong> não fizeram, mas concertada e aliviada a nau <strong>se</strong> foram para o porto dacidade.Tinha mais o dito capitão-mor Francisco Nunes ordenadas, e feitas <strong>se</strong>tenta escadas paraescalar a fortaleza de S. Filipe <strong>em</strong> Tapuipe, e à força <strong>se</strong> <strong>se</strong>nhorear dela, e da pólvora <strong>do</strong>s inimigospara os assaltos, o <strong>que</strong> não pôs <strong>em</strong> execução, por<strong>que</strong> lhe veio sucessor, e trouxe pólvora, e tu<strong>do</strong> omais necessário.CAPÍTULO TRIGÉSIMO SEGUNDODe como veio d. Francisco de Moura por manda<strong>do</strong> de Sua Majestade socorrer a Bahia,e governar o arraialSabida pelo nosso rei católico Filipe Terceiro a nova da perda da Bahia, a <strong>se</strong>ntiugrand<strong>em</strong>ente, não tanto pela perda quanto por sua reputação, por entender <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s poresta via determinavam diverti-lo das guerras, <strong>que</strong> atualmente lhes fazia na Holanda, ou <strong>que</strong> porsustentá-la, e acudir aos assaltos, <strong>que</strong> continuamente lhe faziam pela costa de Espanha, não poderiaacudir a estoutro, como eles diziam, e assim para de<strong>se</strong>nganá-los destes de<strong>se</strong>nhos man<strong>do</strong>u com muitabrevidade aprestar suas armadas, e <strong>que</strong> entretanto <strong>se</strong> mandas<strong>se</strong> de Lisboa to<strong>do</strong> o socorro possível,não só à Bahia, mas às outras partes <strong>do</strong> Brasil, para <strong>que</strong> os rebeldes não tomass<strong>em</strong> pé no esta<strong>do</strong>,n<strong>em</strong> ainda o lançass<strong>em</strong> fora <strong>do</strong>s limites da cidade, <strong>que</strong> tinham tomada, por<strong>que</strong> nisso podiam perigaras fazendas <strong>do</strong>s engenhos de açúcar, <strong>que</strong> estão no recôncavo, de <strong>que</strong> tanto proveito receb<strong>em</strong> as suasalfândegas.O <strong>que</strong> visto pelos governa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> reino d. Diogo de Castro, conde de Basto, e d. Diogo daSilva, conde mor<strong>do</strong>mo-mor, mandaram logo <strong>em</strong> 8 de agosto de 1624 duas caravelas <strong>em</strong> direitura aPernambuco, para dali <strong>se</strong>guir na ord<strong>em</strong> <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> lhes des<strong>se</strong> <strong>em</strong>


154socorro da Bahia; eram os capitães Francisco Gomes de Mello, e Pero Cadena, um e outro b<strong>em</strong>vistos na costa <strong>do</strong> Brasil.Traziam de socorro o <strong>que</strong> <strong>em</strong> tão poucos navios podia <strong>se</strong>r, 120 homens de guerra, 50quintais de pólvora, 1.100 pelouros de ferro de toda a sorte, 20 quintais de chumbo <strong>em</strong> pão, 1.300arcabuzes de Biscaia aparelha<strong>do</strong>s, 14 quintais de chumbo <strong>em</strong> pelouros, duzentas lanças e pi<strong>que</strong>s decampo, quatro arrobas de morrão.Chegou Francisco Gomes de Mello a Pernambuco nos últimos de <strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro, onde foirecebi<strong>do</strong> com extraordinário alvoroço, e repi<strong>que</strong>s da vila, saben<strong>do</strong> por ele ficar<strong>em</strong> ferven<strong>do</strong>Portugal, e Castela <strong>em</strong> socorro <strong>do</strong> Brasil. O capitão Cadena chegou mais tarde, por dar de caminhoaviso na ilha da Madeira.Mandaram também os <strong>se</strong>nhores governa<strong>do</strong>res <strong>em</strong> 19 de agosto da dita era Salva<strong>do</strong>r Corrêa eSá de Benevides no navio Nossa Senhora da Penha de França com oitenta homens, arma<strong>do</strong>s com<strong>se</strong>us arcabuzes de Biscaia, 14 quintais de pólvora, oito de chumbo, e <strong>do</strong>is de morrão, ao Rio deJaneiro, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>u pai Martim de Sá estava atualmente governan<strong>do</strong>. E à Bahia mandaram porcapitão-mor d. Francisco de Moura, <strong>que</strong> já havia si<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r de Cabo Verde, com 150 homensde guerra, 300 arcabuzes aparelha<strong>do</strong>s, 50 quintais de pólvora, 10 de morrão, 29 de chumbo <strong>em</strong> pão,150 formas de fazer pelouros.Com este socorro chegou d. Francisco de Moura a Pernambuco, pátria sua, <strong>em</strong> trêscaravelas, das quais ele capitaneava a sua, e as outras duas Jerônimo Serrão, e Francisco Pereira deVargas, aos quais <strong>se</strong> ajuntaram <strong>em</strong> Pernambuco Manuel de Souza de Sá, capitão-mor <strong>do</strong> Pará, eFeliciano Coelho de Carvalho, filho <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Maranhão, <strong>que</strong> <strong>se</strong> ofereceram para osacompanhar<strong>em</strong>, e o governa<strong>do</strong>r Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> lhes deu <strong>se</strong>is caravelões, e 80 mil cruza<strong>do</strong>smais de novos provimentos, e nos caravelões <strong>se</strong> meteu to<strong>do</strong> o socorro, <strong>que</strong> vinha nas caravelas, o<strong>que</strong> tu<strong>do</strong> <strong>se</strong> fez dentro de oito dias, no fim <strong>do</strong>s quais <strong>se</strong> partiram <strong>do</strong> Recife, e foram des<strong>em</strong>barcar àtorre de Francisco Dias de Ávila, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> vieram por terra ao arraial, e <strong>em</strong> chegan<strong>do</strong> a ele aos 3 dedez<strong>em</strong>bro de 1624 lhe fizeram salva de <strong>se</strong>is peças de artilharia, o <strong>que</strong> aos holande<strong>se</strong>s na cidade deu<strong>que</strong> entender, por<strong>que</strong> até a<strong>que</strong>le t<strong>em</strong>po não tinham dali ouvi<strong>do</strong> outras, e assim de<strong>se</strong>javam muitosaber o <strong>que</strong> era, e colher alguém <strong>que</strong> lho dis<strong>se</strong>s<strong>se</strong>, para o <strong>que</strong> fizeram uma saída a S. Bento, onde <strong>se</strong>encontraram com o capitão Lourenço de Brito <strong>em</strong> uma <strong>em</strong>boscada, e lhe mataram o sargento, eprenderam outro hom<strong>em</strong> muito malferi<strong>do</strong>, <strong>do</strong> qual souberam <strong>se</strong>r d. Francisco de Moura, capitãomor,<strong>que</strong> sucedera a Francisco Nunes Marinho, e este ao bispo, <strong>que</strong> era morto, das quais coisasnenhuma até então sabiam <strong>se</strong>não por dito <strong>do</strong>s negros, a <strong>que</strong> não davam crédito.Outra saída fizeram ao Carmo, a qual não lhes sucedeu tanto a <strong>se</strong>u gosto por <strong>se</strong>r a t<strong>em</strong>po <strong>que</strong>d. Francisco mandava o arquiteto Francisco de Frias reconhecer a<strong>que</strong>le sítio, e como nele <strong>se</strong>pudess<strong>em</strong> os nossos fortificar, e iam <strong>em</strong> <strong>se</strong>u resguar<strong>do</strong> o capitão Manuel Gonçalves, Gabriel daCosta, e os mais, <strong>que</strong> da<strong>que</strong>la parte militavam, os quais pelejaram com tanto esforço neste encontro,e lhes mataram, e feriram tantos com morte de um só <strong>do</strong>s nossos, <strong>que</strong> o arquiteto foi dizer a d.Francisco <strong>que</strong> para tão valentes, e animosos solda<strong>do</strong>s não havia mister fazer fortificações artificiais,pois s<strong>em</strong> elas r<strong>em</strong>etiam aos inimigos como leões. Ia-lhes também faltan<strong>do</strong> já o conduto da carne, epesca<strong>do</strong>, e por lhes dizer<strong>em</strong> <strong>que</strong> na ilha de Itaparica, três léguas da cidade, havia muitos currais devacas, e boas pescarias, determinaram <strong>se</strong>nhorear-<strong>se</strong> dela, e para este efeito <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram <strong>em</strong> duasnaus, e algumas lanchas 400 solda<strong>do</strong>s com o capitão Quife, e o capitão Francisco, e in<strong>do</strong> já nosbatéis para des<strong>em</strong>barcar na ilha no engenho de Sebastião Pacheco, estava Paulo Coelho, capitão dailha, detrás de uma cava ou bar<strong>do</strong> da bagaceira da cana, com outros portugue<strong>se</strong>s, <strong>do</strong>nde àsarcabuzadas lhe feriram alguns, e impediram <strong>que</strong> não des<strong>em</strong>barcass<strong>em</strong>. E por<strong>que</strong> <strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os mai<strong>se</strong>ngenhos houves<strong>se</strong> a mesma resistência, man<strong>do</strong>u d. Francisco de Moura por Manuel de Souza Deçaver as fortificações, <strong>que</strong> tinham, e <strong>que</strong> onde não as houves<strong>se</strong> <strong>se</strong> fizess<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> fez com grande


155cuida<strong>do</strong>. Fez também cabo a João de Salazar de dez barcas para defender<strong>em</strong> <strong>do</strong> inimigo as <strong>que</strong>trouxess<strong>em</strong> mantimentos, ou gente <strong>do</strong> recôncavo ao arraial. Com isto cessaram os assaltos por mar,e também por chegar um navio de Holanda pela festa <strong>do</strong> Natal, <strong>que</strong> tomou de caminho outro nosso,<strong>que</strong> vinha de Lisboa para Pernambuco com cartas de el-rei, e aviso da nossa armada, <strong>que</strong> vinha.N. B. — Este capítulo foi copia<strong>do</strong> das adições e <strong>em</strong>endas a esta História <strong>do</strong> Brasil.CAPÍTULO TRIGÉSIMO TERCEIRODa morte <strong>do</strong> coronel Alberto Scutis, e como lhe sucedeu <strong>se</strong>u irmão Guilhelmo Scutis, e <strong>se</strong>continuaram os assaltosMuito solícito an<strong>do</strong>u o coronel Alberto Scutis, depois <strong>que</strong> teve estas novas, <strong>em</strong> fortificar acidade e o porto, entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong> por uma parte e outra lhe convinha defender-<strong>se</strong>, e principalment<strong>em</strong>an<strong>do</strong>u acabar, e perfeiçoar o forte da praia, <strong>que</strong> Diogo de Men<strong>do</strong>nça começou, e não tinha aindaacaba<strong>do</strong>, mas n<strong>em</strong> por isto deixava de andar <strong>em</strong> festas, e ban<strong>que</strong>tes, assim na terra como nas naus, a<strong>que</strong> levava o <strong>se</strong>u prisioneiro d. Francisco Sarmento com toda a sua família, e porventura daqui <strong>se</strong>lhe originou dar <strong>em</strong> uma enfermidade, de <strong>que</strong> morreu <strong>em</strong> poucos dias.Logo o dia <strong>em</strong> <strong>que</strong> o coronel Alberto Scutis morreu, <strong>que</strong> foi a vinte e quatro de janeiro d<strong>em</strong>il <strong>se</strong>iscentos e vinte e cinco, foi levanta<strong>do</strong> por coronel <strong>se</strong>u irmão Guilhelmo Scutis, <strong>que</strong> eracapitão-mor ou mestre de campo, fican<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar o capitão Quife; no dia <strong>se</strong>guinte <strong>se</strong> deu<strong>se</strong>pultura ao defunto na Sé e com as mesmas cerimônias, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizeram na <strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> coronel, de<strong>que</strong> tratamos no capítulo undécimo, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> deram mais duas surriadas <strong>que</strong> ao outro, ou fos<strong>se</strong> por<strong>se</strong>r irmão <strong>do</strong> coronel, ou por neste mesmo dia lhe haver chega<strong>do</strong> uma nau de Holanda com 60solda<strong>do</strong>s a 13 de março chegou outra, <strong>que</strong> por o vento lhe <strong>se</strong>r escasso, e os <strong>que</strong> a governavamduvidar<strong>em</strong> <strong>se</strong> o porto <strong>se</strong>ria ainda <strong>se</strong>u, an<strong>do</strong>u <strong>do</strong>is dias aos bor<strong>do</strong>s s<strong>em</strong> entrar, n<strong>em</strong> menos duvida, ereceio houve com isto na cidade, suspeitan<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>ria da armada de Espanha, e andaria esperan<strong>do</strong>pelas mais; e assim <strong>se</strong> apercebeu o coronel com todas as prevenções necessárias; porém quietaram<strong>se</strong>com a chegada da nau, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> era sua, e vinha carregada de ladrilho, <strong>que</strong> muito estimaram,para uma torre <strong>que</strong> tinham começada à porta <strong>do</strong> muro, <strong>que</strong> vai para o Carmo, para a qual iamtiran<strong>do</strong> a pedra já da capela nova da Sé, e por<strong>que</strong> lhes faltava cal, foram aos dezes<strong>se</strong>te <strong>do</strong> mesmomês pela manhã ce<strong>do</strong> a uma casa <strong>do</strong>nde a havia além <strong>do</strong> Carmo, junto da ermida de Santo Antônio,buscá-la com muitos negros, e sacos para a trazer<strong>em</strong>, e cento e vinte solda<strong>do</strong>s mos<strong>que</strong>teiros deresguar<strong>do</strong>, os quais meti<strong>do</strong>s na casa da cal, e <strong>em</strong> outras ali vizinhas, por<strong>que</strong> chovia, saíam algunspoucos a vigiar, a <strong>que</strong> saiu o capitão Jordão de Salazar, <strong>que</strong> estava na ermida, e logo o capitãoFrancisco de Padilha, e Jorge de Aguiar, e os mais capitães <strong>do</strong>s assaltos, <strong>que</strong> por ali andavam perto,e <strong>se</strong> travou entre to<strong>do</strong>s uma rija batalha, na qual por chover, e não poder<strong>em</strong> usar das armas de fogoas largaram, e vieram às espadas, com <strong>que</strong> nos mataram <strong>do</strong>is homens, e feriram 12, e os nossosmataram nove holande<strong>se</strong>s, um <strong>do</strong>s quais era tenente-coronel, e feriram muitos; tomaram-lhe 18mos<strong>que</strong>tes, duas alabardas, um tambor, e algumas espadas, assim <strong>do</strong>s mortos, como <strong>do</strong>s <strong>que</strong>fugiram; mas ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> lhes vinha socorro da cidade <strong>se</strong> retiraram os nossos, dan<strong>do</strong>-lhes lugar <strong>que</strong>levass<strong>em</strong> os <strong>se</strong>us mortos e feri<strong>do</strong>s, posto <strong>que</strong> s<strong>em</strong> a cal, <strong>que</strong> iam buscar.Não trato <strong>do</strong>s assaltos, <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram aos negros <strong>se</strong>us confedera<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> algumas vezes saíamfora pelas roças como qu<strong>em</strong> b<strong>em</strong> as sabia, e os caminhos, a buscar frutas para lhes vender<strong>em</strong>, <strong>do</strong>squais foram alguns toma<strong>do</strong>s, e a um destes cortou o capitão Padilha ambas as mãos, e o tornou amandar para a cidade com um escrito pendura<strong>do</strong> ao pescoço, <strong>em</strong> <strong>que</strong> desafiava o capitão Francisco,<strong>que</strong> era o mais conheci<strong>do</strong>, por<strong>que</strong> este / como já dis<strong>se</strong>/ é o <strong>que</strong> tomou Martim de Sá no Rio de


156Janeiro, e o man<strong>do</strong>u o capitão-mor Constantino Menelau de lá a esta cidade, onde esteve presomuito t<strong>em</strong>po. O qual saiu ao desafio com duzentos mos<strong>que</strong>teiros, e alguns negros flecheiros, masquan<strong>do</strong> viu a confiança com <strong>que</strong> o estavam aguardan<strong>do</strong> além de S. Bento, junto a ermida de S.Pedro, e <strong>se</strong>ntiu um rumor no mato, <strong>que</strong> imaginou <strong>se</strong>r manga de índios, para lhe tomar<strong>em</strong> as costas,posto <strong>que</strong> realmente não eram <strong>se</strong>não uns negros, <strong>que</strong> iam carrega<strong>do</strong>s de tábuas da ermida de SantoAntônio da Vila Velha para o arraial, isto bastou para não ousar a cometer, n<strong>em</strong> ainda a esperar, e <strong>se</strong>tornou para a cidade.Outra fineza fez o capitão Francisco Padilha com <strong>se</strong>u primo Antônio Ribeiro, <strong>que</strong> <strong>se</strong> foram aum bergantim <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s uma noite, e junto da fortaleza nova, e <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us navios, <strong>que</strong> tinhamcontinua vigia, o levaram dali à vista da sua nau, <strong>que</strong> estava vigian<strong>do</strong> na barra, a meter no rioVermelho com duas peças pe<strong>que</strong>nas de bronze, e quatro ro<strong>que</strong>iras, <strong>que</strong> tinha dentro, in<strong>do</strong> por terra ocapitão Francisco de Castro, com a sua companhia, e a <strong>do</strong> Padilha de resguar<strong>do</strong>, para <strong>que</strong> <strong>se</strong> osholande<strong>se</strong>s foss<strong>em</strong> atrás <strong>do</strong> bergantim o encalhass<strong>em</strong> <strong>em</strong> terra, e lho defendess<strong>em</strong>, o <strong>que</strong> eles nãofizeram por <strong>se</strong> não poder<strong>em</strong> persuadir / <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> diziam / <strong>que</strong> lho levaram os portugue<strong>se</strong>s, <strong>se</strong>não <strong>que</strong><strong>se</strong> desamarrara, e o vento, e a maré o levara.CAPÍTULO TRIGÉSIMO QUARTODa armada <strong>que</strong> Sua Majestade man<strong>do</strong>u a socorrer e recuperar a Bahia,e <strong>do</strong>s fidalgos portugue<strong>se</strong>s <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaramCom muita brevidade man<strong>do</strong>u Sua Majestade aprestar suas armadas, assim <strong>em</strong> Castela, como <strong>em</strong> Portugal eBiscaia para socorrer, e recuperar a Bahia <strong>do</strong> poder <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, dizen<strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhe fora possível ele mesmo houverade vir <strong>em</strong> pessoa, o <strong>que</strong> foi causa de to<strong>do</strong>s <strong>se</strong>us vassalos <strong>se</strong> oferecer<strong>em</strong> à jornada com muita vontade, e só na armada dePortugal <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram mais de c<strong>em</strong> fidalgos, para o <strong>que</strong> foi também grande motivo d. Afonso de Noronha, Fidalgovelho, <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> eleito viso-rei da Índia, e foi o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> alistou por solda<strong>do</strong>, a qu<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os outros<strong>se</strong>guiram, para passar este grande oceano, como os filhos de Israel a Aminadab, para a passag<strong>em</strong> <strong>do</strong> mar Vermelho.Partiu esta armada de Lisboa a 22 de nov<strong>em</strong>bro de 1624, dia de Santa Cecília, por general dela d. Manuel deMenezes no galeão S. João, <strong>do</strong> qual vinha por capitão <strong>se</strong>u filho d. João Teles de Menezes, e juntamente de umacompanhia de solda<strong>do</strong>s, e d. Álvaro de Abranches, neto <strong>do</strong> conde de vila Franca, e Gonçalo de Souza, filho herdeiro deFernão de Souza, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> reino de Angola, de outras duas, <strong>que</strong> por to<strong>do</strong>s eram <strong>se</strong>iscentos solda<strong>do</strong>s.Almeiranta, <strong>que</strong> era o galeão Santa Anna, vinha por almirante e mestre de campo de umterço d. Francisco de Almeida, por capitão da sua infantaria Simão de Mascarenhas, <strong>do</strong> hábito de S.João.No galeão Conceição vinha por capitão e mestre de campo de outro terço Antônio MonizBarreto; por capitão da infantaria d. Antônio de Menezes, filho único de d. Carlos de Noronha. Nogaleão S. José vinha por capitão d. Rodrigo Lobo, e da infantaria d. Sancho Faro, filho <strong>do</strong> conde deVimieiro.Na nau Caridade vinha por capitão dela e da infantaria Lancerote de França. Na naveta SantaCruz vinha por capitão dela e da infantaria Constantino de Mello. Na nau Sol Doura<strong>do</strong>, capitãoManuel Dias de Andrade. Na nau Penha de França, capitão Diogo Vaião.Na nau Nossa Senhora <strong>do</strong> Rosário, capitânia da esquadra <strong>do</strong> Porto e Viana, por capitão-mordela e de toda a esquadra Tristão de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>, e por capitão da infantaria AntônioÁlvares. Na almeiranta chamada S. Bartolomeu, almirante Domingos da Câmara, e capitão dainfantaria d. Manuel de Moraes.Na nau Nossa Senhora da Ajuda, capitão dela e da infantaria Gregório Soares. Na nau NossaSenhora <strong>do</strong> Rosário Maior, capitão dela e de arcabuzeiros Rui Barreto de Moura.Na nau Nossa Senhora <strong>do</strong> Rosário Menor, capitão Cristóvão Cabral, <strong>do</strong> hábito de S. João.Na nau Nossa Senhora das Neves Maior, capitão Domingos Gil da Fon<strong>se</strong>ca. Na nau Nossa Senhora


157das Neves Menor, capitão Gonçalo Lobo Barreto. Na nau S. João Evangelista, capitão DiogoFerreira. Na nau Nossa Senhora da Boa Viag<strong>em</strong>, capitão Bento <strong>do</strong> Rego Barbosa. Na nau S. BomHom<strong>em</strong>, capitão João Casa<strong>do</strong> Jacome.Os mais navios eram patachos e caravelas, <strong>que</strong> por to<strong>do</strong>s eram vinte e <strong>se</strong>is, dez <strong>do</strong> Porto eViana, e os mais de Lisboa.Os fidalgos <strong>que</strong> neles vinham <strong>em</strong>barca<strong>do</strong>s por solda<strong>do</strong>s, <strong>se</strong>guin<strong>do</strong> a ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> alfabeto,eram: o já nomea<strong>do</strong> d. Afonso de Noronha, <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho de Esta<strong>do</strong>. d. Afonso de Portugal, conde deVimioso. d. Afonso de Menezes, herdeiro da casa de <strong>se</strong>u pai, d. Fradi<strong>que</strong>. d. Álvaro Coutinho,<strong>se</strong>nhor de Almourol. Álvaro Pires de Távora, filho herda<strong>do</strong> de Rui Lourenço de Távora, governa<strong>do</strong>r<strong>que</strong> foi <strong>do</strong> Algarve, e viso-rei da Índia. Álvaro de Souza, filho herdeiro da casa de Gaspar de Souza,<strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho de Esta<strong>do</strong>, e governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> foi <strong>do</strong> Brasil. Álvaro de Souza, filho de Simão de Souza.d. Antônio de Castelo, <strong>se</strong>nhor de Pombeiro. Antônio Corrêa, <strong>se</strong>nhor de Belas. Antônio Luiz deTávora, filho herdeiro <strong>do</strong> conde de S. João. Antônio Teles da Silva, <strong>do</strong> hábito de S. João, filho deLuiz da Silva, <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho de Sua Majestade, ve<strong>do</strong>r de sua fazenda. Antônio da Silva, filho dePedro da Silva. Antônio Carneiro de Aragão. Antônio de S. Paio, filho de Manuel de S. Paio, <strong>se</strong>nhorde vila Flor. Antônio Pinto Coelho, <strong>se</strong>nhor das Figueiras. Antônio Taveira de Avelar. d. Antônio deMello. Antônio Freitas da Silveira, filho de João Rodrigues de Freitas, da ilha da Madeira. BrazSoares de Souza. d. Duarte de Menezes, conde de Tarouca. Duarte de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>se</strong>nhor dePernambuco. d. Diogo da Silveira, filho herdeiro de d. Álvaro da Silveira, e neto <strong>do</strong> conde deSortelha. d. Diogo Lobo, filho de d. Pedro Lobo. d. Diogo de Noronha. d. Diogo de Vasconcellos eMenezes, e d. Sebastião, filhos de d. Afonso de Vasconcellos, da casa de Penela. Duarte de MelloPereira. Duarte Peixoto da Silva. Estevão Soares de Mello, <strong>se</strong>nhor da casa de Mello. Estevão deBrito Freire. d. Francisco de Portugal, comenda<strong>do</strong>r da fronteira. Francisco de Mello de Castro, filhode Antônio de Mello de Castro. d. Francisco de Faro, filho <strong>do</strong> conde d. Estevão de Faro, <strong>do</strong>Con<strong>se</strong>lho de Esta<strong>do</strong> de Sua Majestade, e ve<strong>do</strong>r de sua fazenda. Francisco Moniz d. Francisco deTole<strong>do</strong>, e Antônio de Abreu, <strong>se</strong>u irmão. d. Francisco de Sá, filho de Jorge de Sá. Francisco deMen<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>, e Cristóvão de Men<strong>do</strong>nça Furta<strong>do</strong>, <strong>se</strong>u irmão. Garcia Veles de Castelo Branco.Gaspar de Paiva de Magalhães. Jorge de Mello, filho de Manuel de Mello, monteiro-mor. JorgeMexia. Gonçalo de Souza, filho herdeiro de <strong>se</strong>u pai Fernão de Souza, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> reino deAngola. Gonçalo Tavares de Souza, filho de Bernardim de Távora, <strong>do</strong> Algarve. d. Henri<strong>que</strong> deMenezes, <strong>se</strong>nhor de Louriçal. Jerônimo de Mello de Castro. d. Henri<strong>que</strong> Henri<strong>que</strong>s, <strong>se</strong>nhor dasAlcaçovas. Henri<strong>que</strong> Corrêa da Silva. Henri<strong>que</strong> Henri<strong>que</strong>s. d. João de Souza, alcaide-mor deThomar. João da Silva Tello de Menezes, coronel de Lisboa. João de Mello. d. João de Lima, filho<strong>se</strong>gun<strong>do</strong> <strong>do</strong> visconde d. João de Portugal, filho de d. Nuno Álvares de Portugal, governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> foi<strong>do</strong> reino. d. João de Menezes, filho herdeiro de d. Diogo de Menezes. João Mendes deVasconcellos, filho de Luiz Mendes de Vasconcellos, governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> foi <strong>do</strong> reino de Angola. JoãoMacha<strong>do</strong> de Brito. Jo<strong>se</strong>ph de Souza de S. Paio. Luiz Álvares de Távora, conde de S. João, <strong>se</strong>nhor dacasa de Moga<strong>do</strong>uro. d. Lopo da Cunha, <strong>se</strong>nhor de Sentar. Luiz. Cesar de Menezes, filho de VascoFernandes Cesar, prove<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s armazéns de Sua Majestade. Lourenço Pires Carvalho, filhoherdeiro da casa de Gonçalo Pires Carvalho, prove<strong>do</strong>r das obras de Sua Majestade. d. Lourenço deAlmada, filho de d. Antão de Almada. Lopo de Souza, filho de Aires de Souza. Martim Afonso deOliveira de Miranda, morga<strong>do</strong> de Oliveira. Martim Afonso de Távora, filho de Rui Pires de Távora,reposteiro-mor de Sua Majestade. Manuel de Souza Coutinho, filho de Cristóvão de SouzaCoutinho, guarda-mor das naus da Índia, <strong>se</strong>nhor da casa de Baião. d. Manuel Lobo, filho de d.Francisco Lobo. Manuel de Souza Mascarenhas. Martim Afonso de Mello, e Jo<strong>se</strong>ph de Mello, <strong>se</strong>uirmão. d. Manuel Coutinho, e <strong>do</strong>is filhos <strong>do</strong> marechal d. Fernan<strong>do</strong> Coutinho. Nuno da Cunha, filhoherdeiro de João Nunes da Cunha. d. Nuno Mascarenhas da Costa, filho de d. João Mascarenhas.


158Nuno Gonçalves de Faria, filho de Nicolau de Faria, almotacé-mor. Pedro da Silva, governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong>foi da Mina. Pedro Cesar de Eça, filho de Luiz Cesar. Pero da Silva da Cunha, filho de Duarte daCunha. Pero Lopes Lobo, filho de Luiz Lopes Lobo. Pero Car<strong>do</strong>so Coutinho. Pero Corrêa da Silva.Paulo Soares. Pero da Costa Travassos, filho de João Travassos da Costa, <strong>se</strong>cretário da mesa <strong>do</strong>Paço. Rui de Moura Teles, <strong>se</strong>nhor da Póvoa. d. Rodrigo da Costa, filho de d. Julianes da Costa,governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> foi de Tangere, presidente da Câmera de Lisboa, e <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho <strong>do</strong> Paço. d. RodrigoLobo. Rui Corrêa Locas. Rodrigo de Miranda Henri<strong>que</strong>s. Rui de Figueire<strong>do</strong>, herdeiro da casa de <strong>se</strong>upai Jorge de Figueire<strong>do</strong>. Luiz Gomes de Figueire<strong>do</strong>, e Antônio de Figueire<strong>do</strong>, <strong>se</strong>us irmãos. d.Rodrigo da Silveira, e Fernão da Silveira, <strong>se</strong>u irmão, filhos de d. Luiz Lobo da Silveira, <strong>se</strong>nhor dasSargedas. Rui Dias da Cunha. Sebastião de Sá de Menezes, filho herdeiro de Francisco de Sá deMenezes, irmão <strong>do</strong> conde de Matosinhos. Simão de Miranda. Simão Freire de Andrade, e muitosoutros homens nobres, <strong>que</strong> parece <strong>se</strong> não tinham por tais os <strong>que</strong> <strong>se</strong> não <strong>em</strong>barcavam nesta ocasião; eassim aconteceu <strong>em</strong> Viana entre três irmãos, <strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> necessário ficar um com o cuida<strong>do</strong> de suafamília, e <strong>do</strong>s mais, nenhum deles o quis ter, por não faltar na <strong>em</strong>presa, e por entender o conde deMiranda Diogo Lopes de Souza <strong>que</strong> importava ficar algum, por sorte de da<strong>do</strong>s resolveu a contenda.A mesma houve entre um pai, e um filho, <strong>que</strong>ren<strong>do</strong> cada qual vir por solda<strong>do</strong>, e foi o casoao. conde governa<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> resolveu tocar mais a jornada ao filho, <strong>que</strong> ao pai, e os deixou conformesna pretensão da honra, <strong>que</strong> cada um para si <strong>que</strong>ria.CAPÍTULO TRIGÉSIMO QUINTODa ajuda de custa, <strong>que</strong> deram os vassalos de Sua Majestade portugue<strong>se</strong>s para sua armadaE <strong>se</strong> tão liberais <strong>se</strong> mostraram de suas pessoas os portugue<strong>se</strong>s nesta ocasião, não o forammenos de suas fazendas, não somente os <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram, <strong>que</strong> estes claro está <strong>que</strong> aonde davamo mais haviam de dar o menos, e aonde arriscavam as vidas não haviam de poupar o dinheiro, eassim fizeram grandíssimas despesas; mas também os <strong>que</strong> <strong>se</strong> não puderam <strong>em</strong>barcar deram umgrande subsídio pecuniário para o apresto da armada.O presidente da Câmera da cidade de Lisboa deu da renda dela 100 mil cruza<strong>do</strong>s. Oexcelentíssimo du<strong>que</strong> de Bragança d. Teodósio Segun<strong>do</strong> deu da sua fazenda e 20 mil cruza<strong>do</strong>s. Odu<strong>que</strong> de Caminha d. Miguel de Menezes, 16 mil e 500 cruza<strong>do</strong>s. O du<strong>que</strong> de vila Hermosa,presidente <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho de Portugal, d. Carlos de Borja, <strong>do</strong>is mil e 400 cruza<strong>do</strong>s, com <strong>que</strong> <strong>se</strong>pagaram 200 solda<strong>do</strong>s.O marquês de Castelo Rodrigo, d. Manuel de Moura Corte Real, três mil 350 cruza<strong>do</strong>s, <strong>que</strong><strong>em</strong> tanto <strong>se</strong> estimou o frete da nau Nossa Senhora <strong>do</strong> Rosário Maior, e a companhia <strong>que</strong> nela veio àsua custa. d. Luiz de Souza, alcaide-mor de Beja, <strong>se</strong>nhor de Bringel, e governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> foi <strong>do</strong> esta<strong>do</strong><strong>do</strong> Brasil, três mil e 300 cruza<strong>do</strong>s, e 30 moios de trigo para biscoitos.O conde da Castanheira, d. João de Ataíde, <strong>do</strong>is mil e 500 cruza<strong>do</strong>s. d. Pedro Coutinho,governa<strong>do</strong>r <strong>que</strong> foi de Ormuz, <strong>do</strong>is mil cruza<strong>do</strong>s. d. Pedro de Alcaçova, mil e 500 cruza<strong>do</strong>s.Antônio Gomes da Matta, correio-mor, <strong>do</strong>is mil cruza<strong>do</strong>s. Francisco Soares, mil cruza<strong>do</strong>s. Os filhosde Heitor Mendes, quatro mil cruza<strong>do</strong>s. Contribuíram também os prela<strong>do</strong>s eclesiásticos.O ilustríssimo e reverendíssimo arcebispo de Lisboa d. Miguel de Castro com <strong>do</strong>is milcruza<strong>do</strong>s. O ilustríssimo arcebispo primaz d. Afonso Furta<strong>do</strong> de Men<strong>do</strong>nça, 10 mil cruza<strong>do</strong>s. Oilustríssimo arcebispo de Évora d. Jo<strong>se</strong>ph de Mello, quatro mil cruza<strong>do</strong>s. O bispo de Coimbra d.João Manuel, quatro mil cruza<strong>do</strong>s. O bispo da guarda d. Francisco de Castro, <strong>do</strong>is mil cruza<strong>do</strong>s. Obispo <strong>do</strong> Porto d. Rodrigo da Cunha, mil e 500 cruza<strong>do</strong>s. O bispo <strong>do</strong> Algarve d. João Coutinho, milcruza<strong>do</strong>s.


159Finalmente deram os merca<strong>do</strong>res portugue<strong>se</strong>s de Lisboa e reino 34 mil cruza<strong>do</strong>s. Ositalianos 500 cruza<strong>do</strong>s, e os al<strong>em</strong>ães <strong>do</strong>is mil e c<strong>em</strong> cruza<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>em</strong> tanto <strong>se</strong> estimaram 150quintais de pólvora, <strong>que</strong> deram; montou tu<strong>do</strong> 220 mil cruza<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> foi o gasto da armada, s<strong>em</strong>entrar nele a fazenda de Sua Majestade, e assim veio provida abundantissimamente de to<strong>do</strong> onecessário para a viag<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> além das matalotagens, <strong>que</strong> os particulares traziam de suas casas,<strong>se</strong> carregaram para a campanha <strong>se</strong>te mil e 500 quintais de biscoito, 854 pipas de vinho, mil 368 deágua, quatro mil 190 arrobas de carne, três mil 739 de peixe, mil 782 de arroz, 122 quartos deazeite, 93 pipas de vinagre, fora outro muito provimento de <strong>que</strong>ijos, passas, figos, legumes,amên<strong>do</strong>as, açúcar, <strong>do</strong>ces, especiarias, e sal; vinte e duas boticas, <strong>do</strong>is médicos, e qua<strong>se</strong> <strong>em</strong> to<strong>do</strong>s osnavios cirurgiões; 200 camas para os enfermos, e muitas meias, sapatos e camisas; 310 peças deartilharia, pelouros re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>s e de cadeia, <strong>do</strong>is mil e 500; mos<strong>que</strong>tes, e arcabuzes, <strong>do</strong>is mil 710;chumbo <strong>em</strong> pelouros, 209 quintais; pi<strong>que</strong>s e meios pi<strong>que</strong>s, mil 355. De morrão 202 quintais. Depólvora 500 quintais, e muitas palan<strong>que</strong>tas de ferro, lanternetas, pés-de-cabra, colheres,carrega<strong>do</strong>res, guarda-cartuchos, e to<strong>do</strong>s os mais petrechos necessários para o <strong>se</strong>rviço da artilharia, epara o de fortificações e cerco; vieram muitas pás, enxadas, alviões, picões, foices roçadeiras,macha<strong>do</strong>s, <strong>se</strong>rras, <strong>se</strong>iras de esparto, e carretas de terra; e para o con<strong>se</strong>rto <strong>do</strong>s navios veio muitobreu, alcatrão, cevo, pregadeiras sorteadas, estopa, chumbo <strong>em</strong> pasta, enxárcia, lona, pano de treu(sic), fio, e outras muitas miudezas, e para uma necessidade 20 mil cruza<strong>do</strong>s <strong>em</strong> reais.CAPÍTULO TRIGÉSIMO SEXTOComo a armada de Portugal veio ao Cabo Verde esperar a real de Espanha,e daí vieram juntas à BahiaAos 19 de dez<strong>em</strong>bro da dita era de 1624 tomou a nossa armada de Portugal as ilhas de CaboVerde, <strong>do</strong>nde levava ord<strong>em</strong> de Sua Majestade, <strong>que</strong> não passas<strong>se</strong> s<strong>em</strong> a armada da coroa de Castela;aos quatorze havia derrota<strong>do</strong> da mais armada o galeão Conceição, de <strong>que</strong> era capitão AntônioMoniz Barreto, mestre de campo; e aos vinte deu à costa com tormenta nos baixos de Santa Annana ilha de Maio, das onze para a meia-noite, morreram cento e 50 solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lançaram ao mar,ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> não iam com os fidalgos na primeira batelada, e ainda <strong>se</strong> houveram de lançar a perdermais, <strong>se</strong> não acudira d. Antônio de Menezes, capitão de infantaria, filho único de d. Carlos deNoronha, mancebo de 22 anos, exortan<strong>do</strong>-os <strong>que</strong> tivess<strong>em</strong> paciência até tornar o batel, e esperança<strong>em</strong> Deus, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s <strong>se</strong> haviam de salvar, n<strong>em</strong> ele os havia de desacompanhar até os ver to<strong>do</strong>ssalvos, postos <strong>em</strong> terra; o mesmo lhes dis<strong>se</strong> d. Francisco Deça, filho de d. Jorge Deça, e com oex<strong>em</strong>plo destes <strong>do</strong>is fidalgos <strong>se</strong> deliberaram to<strong>do</strong>s a passar ou no batel, ou <strong>em</strong> outros mo<strong>do</strong>s, <strong>que</strong>cada um inventava, de jangadas, e pranchas de paus e tábuas, entre os quais <strong>se</strong> salvaram também<strong>do</strong>is frades da nossa província de Santo Antônio, <strong>frei</strong> Antônio, e <strong>frei</strong> Francisco, <strong>que</strong> vinham porcapelães <strong>do</strong> galeão, um no batel, outro <strong>em</strong> uma cruz, <strong>que</strong> engenhou de duas tábuas, figura da<strong>que</strong>la<strong>em</strong> <strong>que</strong> esteve, e está toda a nossa salvação, e r<strong>em</strong>édio; chegan<strong>do</strong> reca<strong>do</strong> ao general d. Manuel deMenezes da desgraça <strong>do</strong> naufrágio, avisou logo ao governa<strong>do</strong>r de Cabo Verde Francisco deVasconcellos, e a João Coelho da Cunha, <strong>se</strong>nhor da ilha de Maio, onde o naufrágio sucedera, para<strong>que</strong> mandass<strong>em</strong> socorrer aos perdi<strong>do</strong>s, o <strong>que</strong> eles fizeram com tanto cuida<strong>do</strong> <strong>que</strong> não só os curaram,e regalaram, mas com sua ajuda, de <strong>se</strong>us escravos, e cria<strong>do</strong>s <strong>se</strong> tirou a artilharia, munições,enxárcias <strong>do</strong> galeão, e outras causas tocantes assim à fazenda de Sua Majestade como departiculares, <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram a <strong>se</strong>us <strong>do</strong>nos, e com isto <strong>se</strong> entreteve ali a armada 50 dias, até chegar a deCastela, <strong>que</strong> esperavam, a qual era de 32 naus; na capitania real vinha por generalíssimo <strong>do</strong> mar eterra d. Fadri<strong>que</strong> de Tole<strong>do</strong>, por almirante d. João Fajar<strong>do</strong>, general <strong>do</strong> estreito, na sua.


160Na capitania de Nápoles, capitão o marquês de Cropani, mestre de campo general da<strong>em</strong>presa. Na almeiranta o marquês de Torrecusa, mestre de campo <strong>do</strong> Terço de Nápoles. Nacapitania de Biscaia, general Valezilha. Na almeiranta <strong>se</strong>u irmão. Na capitania de Quatro Vilasgeneral d. Francisco de Azeve<strong>do</strong>. No galeão Santa Anna, <strong>que</strong> era também desta esquadra de QuatroVilas, capitão d. Francisco de Andruca (?); e neste vinha o mestre de campo <strong>do</strong> Terço da ArmadaReal de Orelhana, <strong>em</strong> outro d. Pedro Osório, mestre de campo <strong>do</strong> Terço <strong>do</strong> Estreito, e <strong>em</strong> outros detodas as esquadras outros capitães, sargentos, e oficiais de guerra, a <strong>que</strong> não <strong>se</strong>i os nomes, mas nostrata<strong>do</strong>s particulares, <strong>que</strong> <strong>se</strong> imprimiram da jornada, <strong>se</strong> poderão ver, e neste nos capítulos <strong>se</strong>guintes<strong>se</strong> verão as obras, das quais, mais <strong>que</strong> <strong>do</strong>s nomes, <strong>se</strong> colige a verdadeira nobreza.Juntas pois estas armadas no Cabo Verde, e feitas suas salvas militares, e cortesãoscumprimentos, <strong>se</strong> partiram daí <strong>em</strong> 11 de fevereiro de 1625 <strong>em</strong> dia de entru<strong>do</strong> para esta Bahia, à qualchegaram <strong>em</strong> 29 de março, véspera de Páscoa, a salvamento, somente <strong>se</strong> perdeu a nau Caridade, de<strong>que</strong> era capitão Lançarote de Franca, <strong>em</strong> os recifes da Paraíba, mas acudiu-lhe logo <strong>se</strong>u tio Afonsode Franca, <strong>que</strong> era capitão-mor da Paraíba, com barcos e marinheiros, e quatro caravelões, qu<strong>em</strong>an<strong>do</strong>u o governa<strong>do</strong>r de Pernambuco, com <strong>que</strong> salvaram não só a gente toda, exceto <strong>do</strong>is homens,<strong>que</strong> aceleradamente <strong>se</strong> haviam lança<strong>do</strong> ao mar, mas depois o casco da nau com to<strong>do</strong> o massame,armas, artilharia, munições, e o capitão Lançarote de Franca, deixan<strong>do</strong> a nau, para <strong>que</strong> amastreass<strong>em</strong>, por<strong>que</strong> lhe haviam corta<strong>do</strong> os mastros, <strong>se</strong> foi com os <strong>se</strong>us solda<strong>do</strong>s a Pernambuco, edaí <strong>em</strong> <strong>se</strong>te caravelões, <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r lhes deu, a Bahia, onde chegou no mesmo dia <strong>que</strong> aarmada.CAPÍTULO TRIGÉSIMO SÉTIMODe como Salva<strong>do</strong>r Correa, <strong>do</strong> Rio de Janeiro, e Jerônimo Cavalcanti, de Pernambuco vieram <strong>em</strong> socorro à Bahia, e o<strong>que</strong> lhes aconteceu com os holande<strong>se</strong>s no caminhoNo capítulo vigésimo oitavo deste <strong>livro</strong> diss<strong>em</strong>os como depois da Bahia tomada pelosholande<strong>se</strong>s foi o <strong>se</strong>u almirante Pedro Peres com cinco naus de força, e <strong>do</strong>is patachos, para Angola; ofim, e intento, <strong>que</strong> os levou foi para a tomar<strong>em</strong>, e dela poder<strong>em</strong> trazer negros para os engenhos, parao qual diziam <strong>que</strong> <strong>se</strong> haviam contrata<strong>do</strong> com el-rei de Congo, e na barra de Luanda andavam jáoutras naus suas, e tinham <strong>que</strong>ima<strong>do</strong>s alguns navios portugue<strong>se</strong>s, e feitas outras presas <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po<strong>que</strong> o bispo governava pela fugida <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r João Correa de Souza, porém como lhe sucedeuno governo Fernão de Souza, e teve disto notícia, <strong>se</strong> aprestou, e fortificou de mo<strong>do</strong> <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> osholande<strong>se</strong>s chegaram não puderam con<strong>se</strong>guir o <strong>se</strong>u intento, n<strong>em</strong> fazer mais dano <strong>que</strong> tomar umanau de Sevilha, <strong>que</strong> ia entran<strong>do</strong>, e <strong>do</strong>is navios pe<strong>que</strong>nos, e assim <strong>se</strong> tornaram à costa <strong>do</strong> Brasil, eentraram no rio <strong>do</strong> Espírito Santo a 10 de março de 1625, onde havia poucos dias era chega<strong>do</strong>Salva<strong>do</strong>r Correa de Sá e Benevides com 250 homens brancos e índios <strong>em</strong> quatro canoas e umacaravela, <strong>que</strong> <strong>se</strong>u pai Martim de Sá, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Rio de Janeiro, mandava <strong>em</strong> socorro da Bahia, oqual aju<strong>do</strong>u a Francisco de Aguiar Coutinho, governa<strong>do</strong>r e <strong>se</strong>nhor da<strong>que</strong>la terra <strong>do</strong> Espírito Santo, atrincheirar a vila, pon<strong>do</strong> nas trincheiras quatro ro<strong>que</strong>iras, <strong>que</strong> na terra havia, e des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> osholande<strong>se</strong>s lhes tiraram com uma delas, e lhes mataram um hom<strong>em</strong>; e depois de entra<strong>do</strong>s na vila lhesaíram os nossos por todas as partes, com grande urro <strong>do</strong> gentio, e lhes mataram 35, e cativaram<strong>do</strong>is, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> r<strong>em</strong>eteu à espada com um capitão, <strong>que</strong> ia diante, Francisco de AguiarCoutinho, dizen<strong>do</strong>-lhe «Se vós sois capitão conhecei-me, <strong>que</strong> também eu o sou,» e com isto lhe deuuma grande cutilada, com <strong>que</strong> o derribou <strong>em</strong> terra; também o guardião da casa <strong>do</strong> nosso padre S.Francisco <strong>frei</strong> Manuel <strong>do</strong> Espírito Santo, <strong>que</strong> andava com os <strong>se</strong>us religiosos animan<strong>do</strong> os nossosportugue<strong>se</strong>s, ven<strong>do</strong> já os inimigos junto às trincheiras, <strong>se</strong> assomou por cima delas com um crucifixo


161dizen<strong>do</strong> «Sabei, luteranos, <strong>que</strong> este Senhor vos há de vencer», e com isto ven<strong>do</strong>-<strong>se</strong> livre de umchuveiro de pelouros, <strong>se</strong> foi ao sino da igreja Matriz, <strong>que</strong> ali estava perto, e o começou a repicarpublican<strong>do</strong> vitória, com <strong>que</strong> a gente <strong>se</strong> animou mais a alcançá-la, de sorte <strong>que</strong> o general <strong>do</strong>sholande<strong>se</strong>s <strong>se</strong> retirou para as naus com perto de 100 feri<strong>do</strong>s, de 300 <strong>que</strong> haviam des<strong>em</strong>barca<strong>do</strong>, ealguns. mortos, entre os quais foi um o <strong>se</strong>u almirante Guilherme Ians, e outro o trai<strong>do</strong>r RodrigoPedro, <strong>que</strong> na mesma vila havia si<strong>do</strong> mora<strong>do</strong>r, e casa<strong>do</strong> com mulher portuguesa, e <strong>se</strong>n<strong>do</strong> trazi<strong>do</strong> porculpas a esta Bahia, fugiu <strong>do</strong> cárcere para Holanda, e vinha por capitão <strong>em</strong> uma nau nesta jornada, ecom esta raiva man<strong>do</strong>u o general uma nau, e. quatro lanchas a <strong>que</strong>imar a caravela de Salva<strong>do</strong>rCorrea, <strong>que</strong> havia manda<strong>do</strong> meter pelo rio acima, <strong>em</strong> um estreito, mas ele acudiu nas suas canoas, elhes matou quarenta homens, e tomou uma das lanchas.O dia <strong>se</strong>guinte escreveu o general a Francisco de Aguiar neste mo<strong>do</strong>: “Vossa Senhoria estarátão contente <strong>do</strong> sucesso passa<strong>do</strong>, quanto eu estou <strong>se</strong>nti<strong>do</strong>, mas são sucessos da guerra; <strong>se</strong> me qui<strong>se</strong>rmandar os meus, <strong>que</strong> lá t<strong>em</strong> cativos, resgatá-los-ei, quan<strong>do</strong> não, caber-nos-á mais mantimento aos<strong>que</strong> cá estamos».Isto lhe escreveu o general cuidan<strong>do</strong> <strong>que</strong> ficaram na terra menos mortos, e mais cativos, masn<strong>em</strong> es<strong>se</strong>s poucos lhe quis mandar o governa<strong>do</strong>r, e assim <strong>se</strong> fez o holandês à vela <strong>em</strong> 18 de março, e<strong>se</strong> partia com muito pouca gente, <strong>do</strong>nde <strong>em</strong> sain<strong>do</strong> topou com o navio <strong>do</strong>s padres da companhia, <strong>em</strong><strong>que</strong> nos haviam toma<strong>do</strong>, e os mesmos holande<strong>se</strong>s haviam da<strong>do</strong> a Antônio Maio, mestre <strong>do</strong> navio ded. Francisco Sarmento, <strong>em</strong> troco <strong>do</strong> <strong>se</strong>u, e vinha já outra vez <strong>do</strong> Rio de Janeiro carrega<strong>do</strong> de açúcarpara a ilha Terceira, o qual trouxeram até a barra da Bahia, e daí mandaram um patacho de noitereconhecer o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> porto, e das naus <strong>que</strong> nele estavam, e por dizer<strong>em</strong> <strong>que</strong> era a armada deEspanha, descarregan<strong>do</strong> nas suas, e pon<strong>do</strong> fogo ao navio, <strong>se</strong> foram por defronte de Olinda, <strong>em</strong>Pernambuco, <strong>do</strong>nde tomaram um negro de João Guteres, <strong>que</strong> andava pescan<strong>do</strong> <strong>em</strong> uma jangada, elhe perguntaram <strong>se</strong> estava a Bahia recuperada, o qual não só lhes dis<strong>se</strong> <strong>que</strong> sim, <strong>se</strong>não também qu<strong>em</strong>andara o general d. Fadri<strong>que</strong> de Tole<strong>do</strong> matar as flamengos to<strong>do</strong>s: e eles / ainda <strong>que</strong> era mentira /o creram, dizen<strong>do</strong> não <strong>se</strong>ria ele castelhano, e descendente <strong>do</strong> du<strong>que</strong> de Alba; pelo <strong>que</strong> <strong>se</strong> foram àilha de Fernão de Noronha a fazer aguada, e chacinas, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornaram para Holanda levan<strong>do</strong> onegro consigo; e aos mais negros e brancos, <strong>que</strong> haviam toma<strong>do</strong> no navio <strong>do</strong>s padres, deram umpatachinho, <strong>em</strong> <strong>que</strong> foram cair a Paraíba, e contaram estas novas. E Salva<strong>do</strong>r Correa, <strong>que</strong> ficouvitorioso no Espírito Santo, <strong>se</strong> partia nas suas canoas com a sua gente para a Bahia, onde <strong>se</strong> meteuentre a armada, e foi <strong>do</strong>s generais, e de todas a<strong>que</strong>les fidalgos b<strong>em</strong> recebi<strong>do</strong>.Da mesma maneira saben<strong>do</strong> Jerônimo Cavalcanti de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>em</strong> Pernambuco, deLaçarote de Franca, <strong>que</strong> <strong>se</strong> perdeu na nau Caridade, na Paraíba, <strong>que</strong> a armada era passada para aBahia, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> um navio por ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, com <strong>do</strong>isirmãos <strong>se</strong>us, e outros parentes, e amigos, e 130 solda<strong>do</strong>s, todas sustenta<strong>do</strong>s à sua custa, e vin<strong>do</strong>encontrou-<strong>se</strong> no mar com o patacho, <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s haviam manda<strong>do</strong> vigiar antes da vinda danossa armada, com cuja vinda ficou de fora; este cometeu o de Jerônimo Cavalcanti, e depois de <strong>se</strong>tirar<strong>em</strong> um, e outro muitas bombardadas, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> mortos cinco <strong>do</strong>s nossos, um <strong>do</strong>s quais foi EstevãoFerreira, capitão da proa, <strong>que</strong> com estar feri<strong>do</strong> <strong>se</strong> não quis recolher até o não matar<strong>em</strong> osholande<strong>se</strong>s, e <strong>se</strong> foram, <strong>que</strong> não devia de <strong>se</strong>r s<strong>em</strong> ter<strong>em</strong> também muitos mortos, ou recebi<strong>do</strong> algumdano, e os Cavalcantis entraram na Bahia. <strong>do</strong>nde foram b<strong>em</strong> recebi<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s, particularmente <strong>do</strong>capitão-mor d. Francisco de Moura, <strong>se</strong>u primo, e <strong>do</strong> <strong>se</strong>nhor de Pernambuco Duarte de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>,<strong>que</strong> havia vin<strong>do</strong> na armada por solda<strong>do</strong>, e Sua Majestade <strong>se</strong> deu <strong>do</strong> feito por b<strong>em</strong> <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong>, como omanifestou <strong>em</strong> uma carta, <strong>que</strong> escreveu ao mesmo Jerônimo Cavalcanti.


162CAPÍTULO TRIGÉSIMO OITAVOComo des<strong>em</strong>barcaram os da armada, e os holande<strong>se</strong>s lhes foram dar um assalto a S. Bento,<strong>do</strong>nde <strong>se</strong> começou a dar a primeira bateriaMelhor Páscoa cuidaram os holande<strong>se</strong>s <strong>que</strong> tivess<strong>em</strong>, quan<strong>do</strong> a véspera dela pela manhã, ahora <strong>que</strong> na igreja <strong>se</strong> costuma cantar Aleluia, tiveram vista da armada imaginan<strong>do</strong> <strong>se</strong>r a sua, <strong>que</strong>esperavam, por<strong>em</strong> tanto <strong>que</strong> a viram por de largo <strong>em</strong> fileira e meia-lua, <strong>que</strong> qua<strong>se</strong> cercava da pontade Santo Antônio até a de Tapuípe toda a en<strong>se</strong>ada <strong>em</strong> <strong>que</strong> está a cidade, e vir<strong>em</strong>-<strong>se</strong> os barcos <strong>do</strong>sportugue<strong>se</strong>s <strong>do</strong> recôncavo meter entre ela, conheceram <strong>se</strong>r de Espanha, e <strong>se</strong> começaram aparelharcom muito cuida<strong>do</strong>, chegaram as suas naus à terra junto das fortalezas, e meteram três dasmercantis, <strong>que</strong> tinham tomadas, no fun<strong>do</strong> diante das suas, para entupir<strong>em</strong> o passo às da nossaarmada, <strong>que</strong> lhes não pudes<strong>se</strong> chegar , tiraram os marinheiros portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> tinham a bor<strong>do</strong>, e ostrouxeram para a cidade, notifican<strong>do</strong> a eles, e aos mais, <strong>que</strong> nela estávamos <strong>que</strong> não saíss<strong>em</strong>os decasa; trouxeram algumas peças de artilharia para o colégio, e outras partes, per onde lhes pareceu<strong>que</strong> os poderiam entrar. Despejaram o forte de São Filipe, <strong>que</strong> esta uma légua da cidade,entenden<strong>do</strong> <strong>que</strong> lhes não eram 60 homens, <strong>que</strong> lá tinham, de tanto efeito coma nela.Os da nossa armada neste t<strong>em</strong>po iam-<strong>se</strong> des<strong>em</strong>barcan<strong>do</strong> junto ao forte de Santo Antônio<strong>do</strong>is mil castelhanos, 1500 portugue<strong>se</strong>s, e 500 neopolitanos com <strong>se</strong>us mestres de campo, <strong>que</strong> eram<strong>do</strong>s castelhanos d. Pedro Osório, e d. João de Orelhana; <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s d. Francisco de Almeida eAntônio Moniz Barreto, e <strong>do</strong>s neopolitanos o marquês de Torrecusa, <strong>do</strong>s quais deixou o general noquartel de S. Bento a d. Pedro Osório, d. Francisco de Almeida, e o marquês, cada um com o <strong>se</strong>uterço, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s continham <strong>do</strong>is mil solda<strong>do</strong>s, e ele <strong>se</strong> passou ao <strong>do</strong> Carmo com os mais, e logo <strong>se</strong>foi trazen<strong>do</strong> a artilharia para pôr <strong>em</strong> ambos, por<strong>que</strong> ambos estão <strong>em</strong> montes, e são qua<strong>se</strong> os últimosde outros, <strong>que</strong> t<strong>em</strong> a cidade da banda da terra por padrastos. O <strong>que</strong> pres<strong>se</strong>ntin<strong>do</strong> os holande<strong>se</strong>s, erecean<strong>do</strong> o dano, <strong>que</strong> dali lhes podiam fazer, saíram aos <strong>que</strong> estavam aloja<strong>do</strong>s <strong>em</strong> São Bentotrezentos mos<strong>que</strong>teiros à terceira oitava da Páscoa às 10 horas <strong>do</strong> dia, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> começou umabatalha, <strong>que</strong> durou duas horas, na qual foram mortas <strong>do</strong>s nossos 80, por<strong>que</strong> como os vieramretiran<strong>do</strong> até os fazer<strong>em</strong> recolher à cidade, da porta dela, e de outras fortalezas lhes tiraram tantasbombardadas com cargas de munição miúda, e de pregos, <strong>que</strong> puderam fazer toda esta matança, eferir a muitos, <strong>do</strong> <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s vieram mui contentes, e trouxeram por troféu uma coura de umcapitão castelhano, cujo corpo, com cobiça dela, <strong>que</strong> era toda apassamanada de ouro, trouxeramarrastan<strong>do</strong> até ao pé da ladeira onde <strong>do</strong> muro podiam chegar com qual<strong>que</strong>r arcabuz, e muito melhorcom os mos<strong>que</strong>tes, de <strong>que</strong> eles usam, e assim vin<strong>do</strong> os nossos a buscá-lo de noite para lhe dar<strong>em</strong><strong>se</strong>pultura, lhes tiraram algumas mos<strong>que</strong>tadas, mas contu<strong>do</strong> o levaram, e o enterraram <strong>em</strong> sagra<strong>do</strong>com os mais, <strong>que</strong> neste assalto morreram pelejan<strong>do</strong> animosamente <strong>que</strong> foram os de mais conta d.Pedro Osório, mestre de campo <strong>do</strong> Terço <strong>do</strong> Estreito, o capitão d. Diogo de Espinosa, o capitão d.Pedro de Santo Estevão, sobrinho <strong>do</strong> marquês de Cropani, João de Orejo, <strong>se</strong>cretário <strong>do</strong> mestre decampo, d. Fernan<strong>do</strong> Gracian, d. João de Torreblanca Francisco Manuel de Aguilar, d. Lucas deSegura, e d. Alonso de Agana, junta ao qual <strong>se</strong> achou na batalha d. Francisco de Faro, filho <strong>do</strong>conde de Faro, com um holandês a braços, e o matou, como também foram outros mortos e feri<strong>do</strong>s,posto <strong>que</strong> poucos <strong>em</strong> comparação aos nossos, os quais com esta cólera s<strong>em</strong> mais aguardaras<strong>se</strong>ntaram logo a artilharia, e no dia <strong>se</strong>guinte, <strong>que</strong> foi quinta-feira 3 de abril, começaram com ela abater a cidade, por<strong>que</strong> (sic) a<strong>que</strong>la parte fronteira a São Bento, abrin<strong>do</strong>-lhe grandes buracos nomuro, <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s tornavam a tapar de noite com sacos de terra, <strong>que</strong> para isto fizeram, masnão tanta a <strong>se</strong>u salvo, <strong>que</strong> cada noite lhes não matass<strong>em</strong> e feriss<strong>em</strong> alguns, com o <strong>que</strong> eles nãodesmaiavam, ten<strong>do</strong> esperança <strong>que</strong> viria ce<strong>do</strong> a sua armada, como um inglês feiticeiro lhes haviacertifica<strong>do</strong>, e por esta causa pu<strong>se</strong>ram uma grande bandeira com as suas armas no pináculo da torre


163da Sé, <strong>que</strong> está no mais alto lugar da cidade, para <strong>que</strong> vin<strong>do</strong> os <strong>se</strong>us a viss<strong>em</strong>, e pudess<strong>em</strong> entrarconfiadamente conhecen<strong>do</strong> <strong>que</strong> estava a terra por sua. E a esta conta <strong>se</strong> defendiam, e nos ofendiampor todas os mo<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> podiam, entre os quais foi um, <strong>que</strong> largaram duas naus de fogo uma noitecom vento <strong>em</strong> popa, e maré para <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> abalroar às nossas, e <strong>que</strong>imá-las, uma das quais pôs <strong>em</strong>risco a nossa almeiranta de Portugal, e s<strong>em</strong> falta <strong>se</strong> <strong>que</strong>imara <strong>se</strong> não ficara amarra, e largara otra<strong>que</strong>te, com <strong>que</strong> quis nosso Senhor <strong>que</strong> <strong>se</strong> livras<strong>se</strong> <strong>do</strong> perigo.A outra investiu com a almeiranta <strong>do</strong> estreito com tanto ímpeto, <strong>que</strong> <strong>se</strong> começava a derretero breu, e chamuscar alguns solda<strong>do</strong>s, mas também foi livre pela diligência e indústria de d. JoãoFajar<strong>do</strong>, a cujo cargo estava a armada, e a canoa <strong>em</strong> <strong>que</strong> cuidaram escapar três holande<strong>se</strong>s,<strong>que</strong> governavam o fogo, foi tomada com um deles por uma chalupa de Ro<strong>que</strong> Centena.N<strong>em</strong> deixavam com toda esta ocupação os holande<strong>se</strong>s to<strong>do</strong>s os dias, manhã e tarde, de <strong>se</strong>ajuntar<strong>em</strong> à Sé a cantar salmos, e fazer deprecações a Deus <strong>que</strong> os ajudass<strong>em</strong>: <strong>do</strong>nde um <strong>do</strong>mingopela manhã deu um pelouro, <strong>que</strong> vinha da nossa bateria de S. Bento, e passan<strong>do</strong> a parede da capelade S. José levou as pernas a quatro, <strong>que</strong> estavam as<strong>se</strong>nta<strong>do</strong>s <strong>em</strong> um banco, ouvin<strong>do</strong> a sua pregação,de <strong>que</strong> morreram <strong>do</strong>is.Assistiam neste quartel de S. Bento, <strong>do</strong>nde esta boiada <strong>se</strong> fez, e outras muitas, d. Franciscode Almeida, mestre de campo de um terço português e almirante da Armada Real da Coroa dePortugal, e com ele militaram d. João de Souza, alcaide-mor de Thomar, Antônio Correa, <strong>se</strong>nhor daCasa de Belas, d. Antônio de Castelo Branco, <strong>se</strong>nhor de Pombeiro, Rui de Moura Teles, <strong>se</strong>nhor daPóvoa, d. Francisco Portugal, comenda<strong>do</strong>r da fronteira, d. Álvaro Coutinho, <strong>se</strong>nhor de Almourol,Pedro Correa Gama, sargento-mor deste terço. O capitão Gonçalo de Souza, o capitão Manuel Diasde Andrade, o capitão Salva<strong>do</strong>r Correa de Sá e Benevides, o capitão Jerônimo Cavalcanti deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>se</strong>us irmãos, e outros nobres portugue<strong>se</strong>s.Assistia também com o <strong>se</strong>u terço de neopolitanos Carlos Caraciolos, marquês de Torrecusa,enquanto <strong>se</strong> não mu<strong>do</strong>u a outro sítio. E <strong>do</strong> terço <strong>do</strong> estreito muitos fidalgos e capitães, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>suns, e outros a inveja no cavar da terra para os valos pareciam cava<strong>do</strong>res de ofício, no carregar dafaxina para as trincheiras mariolas, mas no disparar <strong>do</strong>s mos<strong>que</strong>tes, e muito mais <strong>em</strong> esperar os <strong>do</strong>sinimigos, valorosos solda<strong>do</strong>s.N. B. — Este capítulo trigésimo oitavo foi copia<strong>do</strong> das adições e <strong>em</strong>endas a esta História <strong>do</strong>Brasil, <strong>que</strong> exist<strong>em</strong> no Real Arquivo da Torre <strong>do</strong> Tombo.CAPÍTULO TRIGÉSIMO NONODa <strong>se</strong>gunda bateria, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fez <strong>do</strong> mosteiro <strong>do</strong> Carmo, onde assistiu o general d. Fadri<strong>que</strong> deTole<strong>do</strong>, e outras duas, <strong>que</strong> dela <strong>se</strong> derivaramNão trabalharam menos os <strong>que</strong> militaram na bateria <strong>do</strong> Carmo com o general d. Fadri<strong>que</strong>,mas como os de São Bento foram pica<strong>do</strong>s da<strong>que</strong>le assalto <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, não houve rédea, <strong>que</strong> ostives<strong>se</strong>, a não <strong>se</strong>r<strong>em</strong> os <strong>primeiro</strong>s; além de <strong>que</strong> acharam um pedaço de muro <strong>do</strong> próprio mosteiro de<strong>que</strong> <strong>se</strong> ajudaram para a trincheira, e os <strong>do</strong> Carmo a fizeram toda de novo, assim para a banda dacidade, a cuja porta fica este monte fronteiro da parte <strong>do</strong> norte, como para as naus inimigas, <strong>que</strong> lheficavam ao pé da banda <strong>do</strong> poente, às quais começaram de tirar <strong>em</strong> 9 de abril, tratan<strong>do</strong>-as mui malcom os pelouros, e a maior delas, <strong>que</strong> era <strong>do</strong> capitão Sansão, e tinha duas andainas de artilhariameteram no fun<strong>do</strong>, posto <strong>que</strong> ali o fun<strong>do</strong> é pouco por estar muito chegada à terra, e a nau <strong>se</strong>rgrande, ainda ficou com grande parte sobre a água, mas perderam-<strong>se</strong>-lhe alguns mantimentos, ecoisas <strong>que</strong> estavam no porão, e mataram-lhe quatro homens, e feriram 12.


164Não foi menos o dano, <strong>que</strong> desta bateria fizeram na cidade furan<strong>do</strong>-lhe o muro e a porta, ederriban<strong>do</strong> muitas casas, pelo <strong>que</strong> prometeu o coronel a to<strong>do</strong>s os holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> de noitetrabalhass<strong>em</strong> no reparo <strong>do</strong>s muros e trincheiras, duas patacas a cada um; par<strong>que</strong> de dia s<strong>em</strong>estipêndio o faziam, e assim era contínuo o trabalho, e sabre este fazer e desfazer, romper, e repararde muros era também contínua a bateria de peças, e mos<strong>que</strong>tes, e <strong>se</strong> matava de parte a parte algumagente; entre outros foi mui notável um tiro, <strong>que</strong> tiraram desta bateria <strong>do</strong> Carmo à outra, <strong>que</strong> tinhamos holande<strong>se</strong>s à porta da Sé, onde deu o pelouro na terra debaixo <strong>do</strong>s pés de um sargento, e s<strong>em</strong> lhefazer mais dano, <strong>que</strong> fazê-lo saltar como qu<strong>em</strong> dançan<strong>do</strong> faz uma cabriola, varou ao hospital, erompen<strong>do</strong> a parede matou a <strong>do</strong>is cirurgiões, <strong>que</strong> estavam curan<strong>do</strong> a <strong>se</strong>us feri<strong>do</strong>s, e feriu de novo aum <strong>do</strong>s feri<strong>do</strong>s.Da mesma maneira foram mortos alguns <strong>do</strong>s nossos, como foi Martim Afonso, Morga<strong>do</strong> deOliveira, <strong>que</strong> recolhen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a casa a vestir uma camisa, sua<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho de carregar faxina, ecarregar e descarregar mos<strong>que</strong>tes, as<strong>se</strong>ntan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> à janela a tomar um pouco de ar, o feriu uma peça<strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s <strong>em</strong> uma perna, de <strong>que</strong> <strong>em</strong> três dias morreu com tanto valor e cristandade como <strong>se</strong>esperava de tão qualificada pessoa, o qual <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou enfermo de Lisboa, e advertin<strong>do</strong>-o parente<strong>se</strong> amigos <strong>que</strong> não tratas<strong>se</strong> da jornada, respondeu <strong>que</strong> ungi<strong>do</strong> havia de ir nela, tanto era o de<strong>se</strong>jo, <strong>que</strong>tinha <strong>do</strong> <strong>se</strong>rviço <strong>do</strong> <strong>se</strong>u rei, não só nesta ocasião, mas <strong>em</strong> outras muitas ia b<strong>em</strong> mostra<strong>do</strong>; o qual SuaMajestade lhe soube b<strong>em</strong> gratificar depois de sua morte nas mercês <strong>que</strong> fez a <strong>se</strong>us filhos, comoadiante ver<strong>em</strong>os.Este foi um <strong>do</strong>s fidalgos portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> militava neste quartel <strong>do</strong> Carmo, de <strong>que</strong> hav<strong>em</strong>ostrata<strong>do</strong>, e vamos tratan<strong>do</strong>, com Sua Excelência; os outros eram d. Afonso de Noronha; o conde deSão João Luiz Álvares de Távora, cunha<strong>do</strong> <strong>do</strong> dito Morga<strong>do</strong> de Oliveira; o conde de Vimioso D.Afonso de Portugal; o conde de Tarouca d. Duarte de Menezes ; Duarte de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>; Franciscode Mello de Castro; Álvaro Pires de Távora; João da Silva Tello; Lourenço Pires de Carvalho; d.João de Portugal; Martim Afonso de Távora; Antônio Teles da Silva; o capitão d. João Teles deMenezes; o capitão Cristóvão Cabral; o capitão d. Álvaro de Abranches; o capitão d. Antônio deMenezes; o capitão d. Sancho de Faro, e outros.Desta estância <strong>do</strong> Carmo ordenou o general d. Fadri<strong>que</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizess<strong>em</strong> outras duas, umanas palmeiras, <strong>em</strong> <strong>que</strong> estiveram os mestres de campo d. João de Orelhana, e Antônio MonizBarreto, e Tristão de Men<strong>do</strong>nça, capitão-mor da esquadra <strong>do</strong> Porto, com <strong>do</strong>is sobrinhos <strong>se</strong>usFrancisco e Cristóvão de Men<strong>do</strong>nça, d. Henri<strong>que</strong> de Menezes, <strong>se</strong>nhor de Louriçal; Rui CorreaLocas, Nuno da Cunha, Antônio Taveira de Avelar, o capitão Lançarote de Franca, o capitão DiogoFerreira, e outros; e foi esta estância de muita importância, por <strong>se</strong>r mais alta <strong>que</strong> todas, e nãoestar<strong>em</strong> as <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s por a<strong>que</strong>la fronteira tão fortificadas, e assim lhe descavalgaram as suaspeças, e lhes mataram e feriram muitos homens, posta <strong>que</strong> também nos mataram alguns, e entre eleso capitão Diogo Ferreira, <strong>que</strong> foi um <strong>do</strong>s três irmãos viane<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> ganhou por sorte de da<strong>do</strong>s o virna jornada, <strong>que</strong> diss<strong>em</strong>os na capítulo trinta e três, e também outro a <strong>que</strong> chamavam João Ferreira,<strong>que</strong> vinha por prove<strong>do</strong>r-mor da fazenda deste esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil com um navio arma<strong>do</strong>, freta<strong>do</strong> à suacusta, morreu <strong>em</strong> Lisboa de uma febre aguda, fican<strong>do</strong> o <strong>que</strong> perdeu na sorte <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s com vida, efazenda <strong>em</strong> sua casa e pátria, ainda choran<strong>do</strong> por<strong>que</strong> não foi um deles.A outra estância e bateria foi de d. Francisco de Moura com a gente da Bahia, e capitães <strong>do</strong>sassaltos, <strong>do</strong>nde assistiram também alguns cria<strong>do</strong>s de Duarte de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> Coelho, capitão,governa<strong>do</strong>r, e <strong>se</strong>nhor de Pernambuco; e esta foi muito arriscada bateria, por<strong>que</strong> estava diante da ded. Fadri<strong>que</strong> um tiro de arcabuz, mui chegada à cidade, e fronteira ao Colégio <strong>do</strong>s Padres daCompanhia, <strong>do</strong>nde os holande<strong>se</strong>s batiam com <strong>se</strong>is peças, e de parte a parte <strong>se</strong> fazia muito dano.


165CAPÍTULO QUADRAGÉSIMODe outras trincheiras, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizeram da parte de S. Bento, e como <strong>se</strong> começaram a dividir osfrance<strong>se</strong>s <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>sTambém / e ainda antes das duas estâncias sobreditas / fizeram as suas d. Manuel deMenezes, e d. João Fajar<strong>do</strong> à parte de S. Bento, <strong>em</strong> um morro junto ao mar, sobre a ribeira <strong>que</strong>chamam de Gabriel Soares, <strong>do</strong>nde fizeram muito dano com cinco peças de artilharia não só aosnavios holande<strong>se</strong>s, e às fortalezas da praia, <strong>que</strong> toda dali <strong>se</strong> descobria, mas também a algumas dacidade.Entre esta estância, e a de S. Bento fez também o marquês de Torrecusa, mestre de campo<strong>do</strong> terço <strong>do</strong>s napolitanos, os quais ainda <strong>que</strong> ficavam b<strong>em</strong> fronteiros à porta da cidade, e tão pertodela, <strong>que</strong> não só com a artilharia grossa, mas com a miúda podiam fazer dano, de<strong>se</strong>josos / parece /de vir<strong>em</strong> às mãos com cólera de italianos, foram fazen<strong>do</strong> uma cava, com <strong>que</strong> chegaram ao pé <strong>do</strong>muro. Estas <strong>se</strong>te estâncias, <strong>que</strong> estão ditas nestes três capítulos, são <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> fez bateria à cidade,s<strong>em</strong> <strong>se</strong> deixar de ouvir estron<strong>do</strong> de bombardas, esmerilhões, e mos<strong>que</strong>tes de parte a parte, umquarto de hora, de dia n<strong>em</strong> de noite, <strong>em</strong> 23 dias <strong>que</strong> durou o cerco, e eram tantos os pelouros peloar, <strong>que</strong> milagrosamente escapavam as pessoas assim nas casas, como nas ruas, e caminhos; n<strong>em</strong>faltou curioso <strong>que</strong> contas<strong>se</strong>, e diz <strong>que</strong> foram as balas grossas <strong>que</strong> os inimigos tiraram 2.510, e as <strong>que</strong>os nossos lhe tiraram 4.168. O qual para <strong>que</strong> melhor <strong>se</strong> entenda porei aqui a descrição da cidade, esítio das fortalezas, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> tirava de dentro, e de fora dela, <strong>que</strong> é a <strong>se</strong>guinte.B<strong>em</strong> entenderam por estas vésperas os inimigos qual <strong>se</strong>ria a festa quan<strong>do</strong> os nosso<strong>se</strong>ntrass<strong>em</strong> na cidade, e com este receio <strong>se</strong> começaram já os france<strong>se</strong>s a dividir <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>sdeterminan<strong>do</strong> fugir para os nossos, da qual ocasião <strong>se</strong> quis aproveitar também um solda<strong>do</strong>português indiático, <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s haviam toma<strong>do</strong> vinda de Angola, e <strong>se</strong> havia alistada comsol<strong>do</strong>, entran<strong>do</strong>, e sain<strong>do</strong> com eles da guarda, o qual saben<strong>do</strong> a determinação <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s <strong>se</strong>concertou com quatro para pôr fogo à pólvora, e alegan<strong>do</strong> este <strong>se</strong>rviço, <strong>que</strong> não era pe<strong>que</strong>no,alcançar perdão da vida, porém um o descobriu ao coronel, o qual man<strong>do</strong>u logo prender, e enforcaro português, e um <strong>do</strong>s france<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> os outros <strong>do</strong>is lhe fugiram para os nossos; pela <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u ocoronel lançar ban<strong>do</strong> pelas ruas, a som de dez ou <strong>do</strong>ze tambores, <strong>que</strong> to<strong>do</strong> o <strong>que</strong> soubes<strong>se</strong> de outro,<strong>que</strong> qui<strong>se</strong>s<strong>se</strong> fugir, e lho fos<strong>se</strong> denunciar lhe daria quatrocentos cruza<strong>do</strong>s, e daí avante <strong>se</strong> teve muitavigia sabre os france<strong>se</strong>s na poste <strong>que</strong> faziam.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO PRIMEIRODe como <strong>se</strong> levantaram os solda<strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s contra o <strong>se</strong>u coronel Guilhelmo Scutis,e depon<strong>do</strong>-o <strong>do</strong> cargo elegeram outro <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugarAos 26 dias <strong>do</strong> mês de abril, <strong>que</strong> era um sába<strong>do</strong>, dia dedica<strong>do</strong> à Virg<strong>em</strong> SacratíssimaSenhora Nossa, <strong>em</strong> <strong>que</strong> costuma fazer particulares mercês a <strong>se</strong>us devotos, favoreceu sinaladamenteaos <strong>que</strong> estavam na sua bateria, e trincheira <strong>do</strong> Carmo, dan<strong>do</strong>-lhes este dia tanto ânimo e corag<strong>em</strong>,<strong>que</strong> alguns s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>or da artilharia e mos<strong>que</strong>tes, <strong>que</strong> disparavam os inimigos, chegaram até à portada cidade, e um solda<strong>do</strong> aragonês chama<strong>do</strong> João Vidal, da companhia de d. Afonso de Alencastre,chegou a tomar a bandeira, <strong>que</strong> estava sobre a porta, e por entre as balas, <strong>que</strong> os inimigos lhetiravam a levou ao <strong>se</strong>u capitão, e dele ao general, <strong>que</strong> inda <strong>que</strong> repreendeu a sorte, por <strong>se</strong> fazer s<strong>em</strong>ord<strong>em</strong> sua, recebeu o caso como o merecia o valor dele, e fez acrescentar ao solda<strong>do</strong> oito escu<strong>do</strong>sde vantag<strong>em</strong>.


166Sucedeu também <strong>que</strong> sacudin<strong>do</strong>, no mesmo t<strong>em</strong>po, o morrão um holandês, <strong>que</strong> estava deguarda na<strong>que</strong>la parte, deram as faíscas <strong>em</strong> um barril de pólvora, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> chamuscaram 25 de talmaneira, <strong>que</strong> não puderam mais manear as armas, coisa <strong>que</strong> eles diziam na<strong>que</strong>la ocasião <strong>se</strong>ntir mais<strong>que</strong> a própria morte, por<strong>que</strong> morren<strong>do</strong>, só os mortos faltavam na peleja, mas <strong>se</strong>n<strong>do</strong> lesos e feri<strong>do</strong>s,faltavam também os cirurgiões, e enfermeiros, <strong>que</strong> com sua cura <strong>se</strong> ocupavam, tão de<strong>se</strong>jososandavam da vitória, <strong>que</strong> a antepunham às suas próprias vidas; e por<strong>que</strong> a <strong>se</strong>u coronel acudiu tarde aeste rebate, e já <strong>em</strong> outras ocasiões o haviam nota<strong>do</strong> de descuida<strong>do</strong>, e tratava de cometer concerto,<strong>se</strong>gun<strong>do</strong> o descobriu a uma sua amiga portuguesa, <strong>se</strong> conjuraram trinta solda<strong>do</strong>s, e foram para omatar dentro <strong>em</strong> sua casa, e a Estevão Ra<strong>que</strong>te, capitão da Companhia de Merca<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> com eleestava, mas este fugiu, e feriram o coronel com uma alabarda na cabeça e nas mãos, o <strong>que</strong> diz<strong>em</strong> <strong>se</strong>fez com con<strong>se</strong>ntimento <strong>do</strong>s capitães, cuja prova é não <strong>se</strong> prender alguns <strong>do</strong>s ditos solda<strong>do</strong>s, e logoas <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho privar<strong>em</strong> o feri<strong>do</strong> <strong>do</strong> cargo, e eleger<strong>em</strong> por coronel o capitão-mor chama<strong>do</strong> Quife, e<strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar por capitão-mor, ou mestre de campo o capitão Buste.Incrível é a insolência com <strong>que</strong> nisto <strong>se</strong> houveram estes solda<strong>do</strong>s, pois não bastou o novocoronel mandar prender a Estevão Ra<strong>que</strong>te na cadeia pública para <strong>se</strong> quietar<strong>em</strong>, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> ainda láforam <strong>do</strong>is para o matar<strong>em</strong>, e o houveram de fazer <strong>se</strong> lhe não acudiram outros presas, e o própriocoronel, o qual os man<strong>do</strong>u prender; os outros <strong>se</strong> foram à casa da portuguesa também para a matar <strong>se</strong>lhes não fugira para casa de um português casa<strong>do</strong>, <strong>que</strong> a escondeu e vingaram-<strong>se</strong> <strong>em</strong> lhe roubar<strong>em</strong>quanta lhe acharam, <strong>que</strong> não era pouco o <strong>que</strong> o coronel lhe havia da<strong>do</strong>.Não é menos incrível a vigilância e cuida<strong>do</strong>, com <strong>que</strong> a novo coronel de dia e de noitetrabalhava recolhen<strong>do</strong>-<strong>se</strong> com as trincheiras para dentro, para as<strong>se</strong>star nela a artilharia, quan<strong>do</strong> as defora foss<strong>em</strong> de to<strong>do</strong> rotas, e traçan<strong>do</strong> outros ardis, e invenções de guerra, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> pudess<strong>em</strong>entreter até lhes vir o socorro da sua armada, <strong>que</strong> esperavam, e <strong>em</strong> <strong>que</strong> tinham toda a sua confiança.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SEGUNDODe como <strong>se</strong> entregaram os holande<strong>se</strong>s a concertoQuão engana<strong>do</strong>s viv<strong>em</strong> os homens, <strong>que</strong> põ<strong>em</strong> a sua confiança nas forças e indústria humanas, experimentarambrev<strong>em</strong>ente os holande<strong>se</strong>s nesta cidade da Bahia, cuja guarda e defensão cuidavam estar <strong>em</strong> tirar<strong>em</strong> um capitão, epor<strong>em</strong> outro mais diligente e industrioso, <strong>se</strong>nda certo o <strong>que</strong> diz David <strong>que</strong> <strong>se</strong> a Senhor não guarda a cidade, <strong>em</strong> vãovigiam os <strong>que</strong> a guardam. E assim não passaram três dias inteiros, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não de<strong>se</strong>nganass<strong>em</strong> <strong>do</strong> <strong>se</strong>u intento, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong>já não podiam reparar o dano, <strong>que</strong> das nossas baterias lhes faziam, e enfim vieram a entender <strong>que</strong> lhes convinha fazerconcerto, <strong>que</strong> ao outro coronel haviam estranha<strong>do</strong>, mas ainda o fizeram palea<strong>do</strong> com uma capa de honra, mandan<strong>do</strong> porum tambor uma carta ao general d. Fadri<strong>que</strong> ao Carmo, <strong>em</strong> <strong>que</strong> lhe diziam <strong>que</strong> a<strong>que</strong>la manhã haviam ouvi<strong>do</strong> umatrombeta nossa, <strong>que</strong> <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> <strong>se</strong>u parecer os chamava, e convidava a paz, a qual também eles <strong>que</strong>riam, e para tratar delahouves<strong>se</strong> entretanto tréguas. Ao <strong>que</strong> respondeu d. Fadri<strong>que</strong> <strong>que</strong> ele não chamava a sitia<strong>do</strong>s, e cerca<strong>do</strong>s com trombetas,<strong>se</strong>não com vozes de artilharia, mas <strong>se</strong> eles a estas acudiam, e <strong>que</strong>riam causa <strong>que</strong> não fos<strong>se</strong> contrária à honra de Deus, edel-rei, estava prestes para os ouvir, com o <strong>que</strong> logo <strong>se</strong> começou a tratar das pazes, e estavam as holande<strong>se</strong>s tãode<strong>se</strong>josos delas, <strong>que</strong> na mesma hora os <strong>que</strong> ficavam fronteiras à bateria das palmeiras, a qual estava à ord<strong>em</strong> de d. Joãode Orelhana, e Antônio Moniz Barreto, mestre de campo, e de Tristão de Men<strong>do</strong>nça, capitão-mor da esquadra <strong>do</strong> Porto,<strong>se</strong> foram para eles levantan<strong>do</strong> as mãos <strong>em</strong> sinal de rendi<strong>do</strong>s, aos quais desceu a falar o dito Tristão de Men<strong>do</strong>nça, eLançarote de Franca, capitão da infantaria, <strong>que</strong> <strong>se</strong> foi com eles a falar ao coronel, e <strong>do</strong> quartel <strong>do</strong> Carmo, por ord<strong>em</strong> deSua Excelência, João Vicente de S. Felix, e Diogo Ruiz, tenente <strong>do</strong> mestre de campo general, e depois outros reca<strong>do</strong>s departe até <strong>se</strong> concluir o concerto, o qual <strong>se</strong> fez por escritura pública <strong>em</strong> pre<strong>se</strong>nça de pessoas <strong>do</strong> Con<strong>se</strong>lho, <strong>que</strong> foram daparte <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s Guilhelmo Stop, Hugo Antônio, e Francisco Duchs.Da parte de Sua Majestade o marquês d. Fadri<strong>que</strong>, o marquês de Cropani, d. Francisco deAlmeida, e Antônio Moniz Barreto, mestres de campo de <strong>do</strong>is terços de portugue<strong>se</strong>s: d. João deOrelhana, mestre de campo de um terço castelhano: d. Jerônimo Quexada, auditor-geral da armadacastelhana, Diogo Ruiz, tenente <strong>do</strong> mestre de campo general, e João Vicente de S. Felix, as quais


167to<strong>do</strong>s, depois de suas conferências, as<strong>se</strong>ntaram <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s entregariam a cidade ao general d.Fadri<strong>que</strong> de Tole<strong>do</strong> <strong>em</strong> nome de Sua Majestade, no esta<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> achava a<strong>que</strong>le dia 30 de abrilde 1625, a saber, com toda a artilharia, armas, bandeiras, munições, petrechos, bastimentos, navios,dinheiro, ouro, prata, jóias, mercancias, negros escravos, cavalos, e tu<strong>do</strong> o mais, <strong>que</strong> <strong>se</strong> achas<strong>se</strong> nacidade de Salva<strong>do</strong>r, com todas os presos <strong>que</strong> tivess<strong>em</strong>, e <strong>que</strong> não tomariam armas contra SuaMajestade até <strong>se</strong> ver<strong>em</strong> <strong>em</strong> Holanda. E o general <strong>em</strong> nome de Sua Majestade lhes concedeu <strong>que</strong>to<strong>do</strong>s pudess<strong>em</strong> sair da cidade livr<strong>em</strong>ente com sua roupa de vestir e cama, os capitães e oficiaiscada um <strong>em</strong> <strong>se</strong>u baú ou caixa, e os solda<strong>do</strong>s <strong>em</strong> suas mochilas, e não outra coisa, e <strong>que</strong> lhes dariapassaporte para os navios de Sua Majestade, não os achan<strong>do</strong> fora da derrota da sua terra, e<strong>em</strong>barcações <strong>em</strong> <strong>que</strong> comodamente pudess<strong>em</strong> ir, e mantimentos necessários para três me<strong>se</strong>s e meio,e <strong>que</strong> lhes dariam os instrumentos náuticos para sua navegação, e os tratariam s<strong>em</strong> agravo, e lhesdariam armas para sua defesa na viag<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> as quais sairiam até os navios, salvo os capitães, <strong>que</strong>poderiam sair com suas espadas.Assinaram-<strong>se</strong> estas capitulações no quartel <strong>do</strong> Carmo a 30 de abril de 1625, por d. Fadri<strong>que</strong>de Tole<strong>do</strong> Osório. Guilhelmo Stop. Hugo Antônio. Francisco Duchs.NB. Este capítulo foi copia<strong>do</strong> das adições e <strong>em</strong>endas a esta História <strong>do</strong> Brasil.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO TERCEIRODe como <strong>se</strong> tomou entrega da cidade, e despojos: graças, <strong>que</strong> <strong>se</strong> deram a Deus pela vitória,e aviso, <strong>que</strong> <strong>se</strong> man<strong>do</strong>u à EspanhaNo <strong>primeiro</strong> de maio da dita era, dia <strong>do</strong>s b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong>s Apóstolos S. Filipe e Santiago, <strong>se</strong>abriram as portas da cidade, e entran<strong>do</strong> por elas o nosso exército b<strong>em</strong> ordena<strong>do</strong>, <strong>se</strong> pu<strong>se</strong>ram logopostas nas partes <strong>que</strong> era necessário. E os holande<strong>se</strong>s / <strong>que</strong> ainda eram mil novecentos e dezenove /<strong>se</strong> recolheram nas casas da praia com boa guarda de soldadas espanhóis; e depois nas suas naus,com encargo de as concertar<strong>em</strong>, e calafetar<strong>em</strong> os <strong>se</strong>us carpinteiros e calafates. Também foram logopresos os portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong> ficaram com eles, e <strong>se</strong> lhes fez inventário da sua fazenda, comotambém <strong>se</strong> fez de toda a <strong>que</strong> foi achada <strong>em</strong> poder <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, e das mais coisas <strong>que</strong> entregaram,<strong>que</strong> foram 600 negros, uns fugi<strong>do</strong>s de <strong>se</strong>us <strong>se</strong>nhores para o inimigo com amor da liberdade, outrasde presas <strong>que</strong> tomaram <strong>em</strong> navios, <strong>que</strong> vinham de Angola.Entregaram mais <strong>se</strong>is navios e duas lanchas, por<strong>que</strong> ainda <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> entrou a nossa armadana Bahia tinham 21, já as outras eram <strong>que</strong>ima<strong>do</strong>s, ou meti<strong>do</strong>s no fun<strong>do</strong>.It<strong>em</strong> — entregaram 16 bandeiras de companhias, e o estandarte, <strong>que</strong> estava na torre da Sé:216 peças de artilharia, 40 de bronze, e as mais de ferro. E 35 pedreiros, 500 quintais de pólvora<strong>em</strong>barrila<strong>do</strong>s: balas, bombas, granadas, e outros artifícios de fogo <strong>em</strong> abundância, 1.578 mos<strong>que</strong>tes,133 escopetas, e arcabuzes, grande quantidade de cobre <strong>em</strong> pasta; 870 morriões; 84 peitos fortes,grande número de outros, e espaldares; 21 quintal de morrão; e todas as fazendas, <strong>que</strong> haviamtomadas, assim das lojas <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>res, e casas da cidade, como de navios, e muitas <strong>que</strong>trouxeram de sua terra, as mais das quais tinham metidas no colégio <strong>do</strong>s Padres da Companhia,onde os merca<strong>do</strong>res moravam, para as vender<strong>em</strong> quan<strong>do</strong> achass<strong>em</strong> compra<strong>do</strong>res, e <strong>se</strong> o Colégio lhe<strong>se</strong>rvia de loja de mercancias, e morada de merca<strong>do</strong>res, a igreja lhes <strong>se</strong>rvia de adega. E depois <strong>que</strong> osvinhos <strong>se</strong> acabaram, de enfermaria.Da mesma maneira estavam profanadas todas as outras igrejas da cidade, por<strong>que</strong> a <strong>do</strong> nosso<strong>se</strong>ráfico padre <strong>se</strong>rvia de armazém de pólvora e armas, e no <strong>do</strong>rmitório morava um capitão, ecompanhia de solda<strong>do</strong>s. A ermida de Nossa Senhora da Ajuda era outro armazém de pólvora. AMi<strong>se</strong>ricórdia também era sua enfermaria: e só na Sé pregavam, e enterravam os capitães defuntos,


168<strong>que</strong> para os mais fizeram c<strong>em</strong>itério <strong>do</strong> Rocio, <strong>que</strong> fica defronte <strong>do</strong>s padres da companhia. E assimnão houve outra igreja, <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> necessária desviolar-<strong>se</strong> <strong>se</strong>não a Sé, causa <strong>que</strong> as hereges <strong>se</strong>ntirammuito, ver <strong>que</strong> de<strong>se</strong>nterraram <strong>do</strong>is <strong>se</strong>us coronéis, e outros capitães, <strong>que</strong> ali estavam enterra<strong>do</strong>s, echamaram alguns para <strong>que</strong> mostrass<strong>em</strong> as <strong>se</strong>pulturas, e os levass<strong>em</strong> a enterrar ao campo, para <strong>se</strong>haver de celebrar a primeira missa in gratiarum actian<strong>em</strong>, a qual cantou solen<strong>em</strong>ente o vigáriogeral<strong>do</strong> bispa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil, o cônego Francisco Gonçalves, aos cinco dias <strong>do</strong> mês de maio.Foram diácono e subdiácono <strong>do</strong>is clérigos castelhanos capelães da armada. Pregou o padre<strong>frei</strong> Gaspar da sagrada Ord<strong>em</strong> das Prega<strong>do</strong>res, <strong>que</strong> d. Afonso de Noronha trazia por <strong>se</strong>u confessor.Nela <strong>se</strong> ajuntaram os generais da <strong>em</strong>presa com todas os fidalgos, <strong>que</strong> nela <strong>se</strong> acharam de Portugal eCastela.Depois <strong>se</strong> fez o mesmo nas outras igrejas, pela mercê da vitória alcançada, e <strong>se</strong> fizeramofícios pelos católicos <strong>que</strong> nela morreram. Aqui confesso eu minha insuficiência para poder relataros júbilos, a consolação, a alegria, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s <strong>se</strong>ntíamos <strong>em</strong> ver <strong>que</strong> nos púlpitos, onde <strong>se</strong> haviamprega<strong>do</strong> heresias, <strong>se</strong> tornava a pregar a verdade de nossa fé católica, e nos altares, <strong>do</strong>nde <strong>se</strong> haviamtira<strong>do</strong> ignominiosamente as imagens <strong>do</strong>s santos, as víamos já com reverência restituídas, esobretu<strong>do</strong> víamos já o nosso Deus no Santíssimo Sacramento <strong>do</strong> altar, <strong>do</strong> qual estávamos havia umano priva<strong>do</strong>s, <strong>se</strong>rvin<strong>do</strong>-nos as lágrimas de pão de dia, e de noite, como a David quan<strong>do</strong> lhe diziamos inimigos cada dia “Onde esta o teu Deus”? E depois de lhe darmos por isto as graças, as dávamostambém ao nosso católico rei por haver si<strong>do</strong> por meio de suas armas o instrumento deste b<strong>em</strong>.E daqui enten<strong>do</strong> eu <strong>que</strong> <strong>se</strong> o <strong>se</strong>u reino de Espanha <strong>se</strong> pinta <strong>em</strong> figura de uma <strong>do</strong>nzela muiformosa com a espada <strong>em</strong> uma mão, e espigas de trigo na outra, não é só para denotar sua fortaleza,e fertilidade, mas para significar como pelas armas de <strong>se</strong>us exércitos <strong>se</strong> goza este divino trigo <strong>em</strong>to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>.O aviso deste sucesso venturoso <strong>se</strong> encarregou por particular a d. Henri<strong>que</strong> de Alagon, <strong>que</strong>no assalto <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s deram a São Bento, foi feri<strong>do</strong> de <strong>do</strong>is pelouros, a qu<strong>em</strong> acompanhou ocapitão d. Pedro Gomes de Porrez, <strong>do</strong> hábito de Calatrava, no patacho de <strong>que</strong> era capitão Martim deLano. O tresla<strong>do</strong> da carta, <strong>que</strong> levou de d. Fadri<strong>que</strong> para Sua Majestade é o <strong>se</strong>guinte.“Senhor: eu hei trazi<strong>do</strong> a meu cargo as armas de Vossa Majestade a esta província <strong>do</strong> Brasil,e nosso Senhor há venci<strong>do</strong> com elas, <strong>se</strong> hei acerta<strong>do</strong> a <strong>se</strong>rvir a Vossa Majestade, com isto estousobejamente pr<strong>em</strong>ia<strong>do</strong>. As ocupações de dar cobro a cidade restituir a Nosso Senhor <strong>se</strong>us t<strong>em</strong>plos,tratar <strong>do</strong>s negócios da justiça, <strong>que</strong> Vossa Majestade me encarregou, e castigo <strong>do</strong>s culpa<strong>do</strong>s, carenade algumas naus, bastimento para a armada, <strong>em</strong> <strong>que</strong> há b<strong>em</strong> <strong>que</strong> fazer: aviamento, e despacho <strong>do</strong>srendi<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> hão de tornar a sua terra, e o deste aviso, e outras mil coisas me t<strong>em</strong> s<strong>em</strong> hora det<strong>em</strong>po: o <strong>que</strong> faltar na relação <strong>em</strong>endarei no <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> aviso. d. João Fajar<strong>do</strong> há <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> a VossaMajestade melhor <strong>que</strong> eu, por<strong>que</strong> há assisti<strong>do</strong> no apresto <strong>do</strong> <strong>que</strong> há des<strong>em</strong>barca<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar comgrande cuida<strong>do</strong>, <strong>que</strong> não há si<strong>do</strong> menos es<strong>se</strong>ncial <strong>que</strong> o das armas; também esteve na <strong>se</strong>gundabateria, <strong>que</strong> <strong>se</strong> fez aos navios, e <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> há procura<strong>do</strong> <strong>se</strong>rvir a Vossa Majestade, e ajudar-me comopessoa de tantas obrigações.”“O mesmo há feito d. Manuel de Menezes. O marquês de Cropani há trabalha<strong>do</strong>, ainda <strong>que</strong>velho, como moço, com o fervor, e zelo <strong>que</strong> outras vezes, dan<strong>do</strong> a Vossa Majestade obrigação defazer-lhe mercê, e honra, e a mim de suplicá-lo a Vossa Majestade, etc.”E assim pros<strong>se</strong>guiu depois <strong>em</strong> outras o louvor de to<strong>do</strong>s <strong>em</strong> geral com a liberalidade, <strong>que</strong> émui própria na nobreza castelhana. Foi feita a dita carta a <strong>do</strong>ze de maio, e chegou brev<strong>em</strong>ente aMadri, onde Sua Majestade fez dar solen<strong>em</strong>ente as graças a Nossa Senhor pela mercê recebida,sobre outras mui grandes, <strong>que</strong> este ano de mil <strong>se</strong>iscentos e vinte e cinco recebeu, como foi livrar-lheCadiz de uma poderosa armada de 130 navios ingle<strong>se</strong>s, da qual <strong>livro</strong>u também milagrosamente afrota de Índias, <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le ano trazia 17 milhões <strong>em</strong> ouro, prata e frutos da terra. E o milagre foi


169<strong>que</strong> tanta <strong>que</strong> os ingle<strong>se</strong>s aportaram <strong>em</strong> Cadiz, man<strong>do</strong>u S. Majestade despachar <strong>se</strong>is caravelas comgrandes prêmios a frota para <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> aportar a Lisboa ou Galiza, por não <strong>se</strong>r presa <strong>do</strong>s inimigos;caiu uma das caravelas nas mãos <strong>do</strong>s ingle<strong>se</strong>s, os quais, tenda por certo <strong>que</strong> esperan<strong>do</strong> a frota <strong>em</strong>quarenta graus <strong>se</strong> fariam <strong>se</strong>nhores dela, partiram logo de Cadiz a pôr-<strong>se</strong> na<strong>que</strong>la altura, mas foiDeus <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> <strong>que</strong> nenhuma caravela das nossas acertou com a frota, e assim veio direita a Cadiz,vinte dias depois da inglesa a estar esperan<strong>do</strong> na parag<strong>em</strong> por onde houvera de vir <strong>se</strong> lhe deram oreca<strong>do</strong> de Sua Majestade.N<strong>em</strong> aqui parou a sua desgraça, e ventura nossa, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> a sua armada <strong>se</strong> perdeu depoiscom t<strong>em</strong>pestades, e tormentas, de sorte <strong>que</strong> a menor parte dela tornou a sua terra. Em Flandres foitomada aos hereges a poderosa cidade de Breda. E no Brasil / coma t<strong>em</strong>os dito / recuperada deoutros a Bahia, <strong>que</strong> o ano dantes a tinham ocupada. B<strong>em</strong> parece <strong>que</strong> foi a<strong>que</strong>le bis<strong>se</strong>xto e estoutrode Jubileu, <strong>em</strong> <strong>que</strong> o vigário de Cristo <strong>em</strong> Roma tão liberalmente abre, e comunica aos fiéis otesouro da igreja, para <strong>que</strong> confessan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> <strong>se</strong>jam absolutos de culpas, e censuras, <strong>que</strong> são muitasvezes as <strong>que</strong> imped<strong>em</strong> as mercês e benefícios divinos, e nos acarretam os castigos. E principalmente<strong>se</strong> pode atribuir a felicidade deste ano a Espanha, <strong>em</strong> <strong>se</strong>r nele celebrada a canonização de SantaIsabel, rainha de Portugal, e natural <strong>do</strong> reino de Aragão, por cuja intercessão e merecimentospod<strong>em</strong>os crer <strong>que</strong> fez, e fará Deus muitas mercês a estes reinos.NB. Este capítulo foi copia<strong>do</strong> das <strong>em</strong>endas a esta História <strong>do</strong> Brasil.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO QUARTODa guerra <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> man<strong>do</strong>u dar ao gentio da Serra da Copaoba, <strong>que</strong> <strong>se</strong> rebelou naocasião <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>sNão só o gentio da beira-mar <strong>se</strong> rebelou nesta ocasião <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s contra os portugue<strong>se</strong>s,mas também os <strong>do</strong> <strong>se</strong>rtão e <strong>se</strong>rra de Copaoba, e a esta conta mataram logo 18 vizinhos <strong>se</strong>us, e lhescativaram <strong>se</strong>is filhas moças <strong>do</strong>nzelas, e alguns meninos; pelo <strong>que</strong> o capitão-mor da Paraíba, Afonsode Franca, tanto <strong>que</strong> Francisco Coelho <strong>se</strong> partiu, man<strong>do</strong>u a capitão Antônio Lopes de Oliveira, e àsua ard<strong>em</strong> os capitães Antônio de Valadares e João Afonso Pinheiro com muita gente branca, e opadre Gaspar da Cruz com os índios Tabajaras, nossos amigos, e inimigos antigos <strong>do</strong>s Potiguaresrebela<strong>do</strong>s, para <strong>que</strong> lhes foss<strong>em</strong> fazer guerra, e os castigass<strong>em</strong> como mereciam: os quais os nãoacharam já na <strong>se</strong>rra, por<strong>que</strong> pres<strong>se</strong>ntin<strong>do</strong> isto / coisa mui natural nos <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>se</strong>nt<strong>em</strong> culpa<strong>do</strong>s /,pon<strong>do</strong> fogo às aldeias e igrejas, <strong>que</strong> nelas tinham,/ por<strong>que</strong> já muitos haviam recebi<strong>do</strong> o Sacramento<strong>do</strong> Batismo /, <strong>se</strong> haviam i<strong>do</strong> meter com os Tapuias, dali mais de 100 léguas, para <strong>que</strong> os ajudass<strong>em</strong>,e defendess<strong>em</strong> <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, levan<strong>do</strong>-lhe de pre<strong>se</strong>nte as <strong>do</strong>nzelas e meninos, <strong>que</strong> haviam toma<strong>do</strong>na Paraíba, <strong>do</strong> <strong>que</strong> tu<strong>do</strong> informa<strong>do</strong> o governa<strong>do</strong>r Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, man<strong>do</strong>u suster najornada Antônio Lopes de Oliveira, e os mais capitães <strong>que</strong> iam da Paraíba, até <strong>se</strong> informar melhor<strong>do</strong> caso, e tomar con<strong>se</strong>lho sobre a justiça da guerra; para o <strong>que</strong> fez ajuntar <strong>em</strong> sua casa os prela<strong>do</strong>sdas religiões, teólogos, e outros letra<strong>do</strong>s, canonistas e legistas, e concluin<strong>do</strong>-<strong>se</strong> entre eles <strong>se</strong>r a causada guerra justa, e pelo con<strong>se</strong>guinte os <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> nela toma<strong>do</strong>s escravos, <strong>que</strong> são no Brasil osdespojos <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, e ainda o sol<strong>do</strong>, por<strong>que</strong> o gentio não possui outros bens, n<strong>em</strong> os <strong>que</strong> vão aestas guerras receb<strong>em</strong> outro sol<strong>do</strong>.Logo o governa<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u os capitães Simão Fernandes Jacome e Gomes de Abreu Soares,e por cabo deles Gregório Lopes de Abreu, com suas companhias; os quais chegan<strong>do</strong> a Paraíba, einforma<strong>do</strong>s de Antônio Lopes de Oliveira <strong>do</strong> lugar para onde o gentio tinha fugi<strong>do</strong>, mandaram osmantimentos, e alguma gente até o Rio Grande por mar, e <strong>se</strong> partiram por terra para daí levar<strong>em</strong>outra companhia, <strong>que</strong> por manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r geral lhe deu o capitão Francisco Gomes de


170Mello, e foi por capitão dela Pero Vaz Pinto a ord<strong>em</strong> também de Gregório Lopes de Abreu, os quaiscomeçaram to<strong>do</strong>s a marchar pelo <strong>se</strong>rtão, onde padeceram grandes fomes, e <strong>se</strong>des, e aconteceuandar<strong>em</strong> três dias s<strong>em</strong> achar<strong>em</strong> água para beber, pelo <strong>que</strong> de<strong>se</strong>spera<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong> o r<strong>em</strong>édio humano,e esperan<strong>do</strong> só nos merecimentos e intercessão <strong>do</strong> b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong> Santo Antônio, cuja imag<strong>em</strong>levavam consigo, o começaram a invocar uma tarde, e cavar na terra <strong>se</strong>ca pedin<strong>do</strong> <strong>que</strong> lhes des<strong>se</strong>água, e foi coisa maravilhosa, <strong>que</strong> a poucas enxadadas saiu <strong>em</strong> tanta quantidade, <strong>que</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>alojamento muito <strong>se</strong> abastaram a<strong>que</strong>la noite, e o dia <strong>se</strong>guinte, enchen<strong>do</strong> suas vasilhas paracaminhar<strong>em</strong>, a água <strong>se</strong> <strong>se</strong>cou.Dali a três jornadas deram com uns poucos <strong>do</strong>s índios, e os tomaram para lhes <strong>se</strong>rvir<strong>em</strong> deguias, posto <strong>que</strong> fugiu um, <strong>que</strong> levou aviso aos mais; pelo <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> chegaram os nossos osacharam já postos <strong>em</strong> arma; mas n<strong>em</strong> isso bastou, para <strong>que</strong> os não cometess<strong>em</strong> com tanto ímpeto, eânimo, <strong>que</strong> lhes mataram muitos, não per<strong>do</strong>an<strong>do</strong> os nossos Tabajaras a mulheres n<strong>em</strong> meninos, pelavontade <strong>que</strong> levavam aos rebeldes, o <strong>que</strong> visto pelos Tapuias, depois de haver<strong>em</strong> sustenta<strong>do</strong> a briga<strong>do</strong>is dias, mandaram perguntar a Gregório Lopes, cabo das nossas companhias, <strong>que</strong> vinda foraa<strong>que</strong>la às suas terras, <strong>do</strong>nde nunca foram brancos a fazer-lhes guerra, não lhes ten<strong>do</strong> eles da<strong>do</strong> causaa ela? O qual respondeu <strong>que</strong> não o haviam com eles, <strong>se</strong>não enquanto eram fautores e defensores <strong>do</strong>sPotiguares, <strong>que</strong> <strong>se</strong> haviam rebela<strong>do</strong> contra o <strong>se</strong>u rei, haven<strong>do</strong>-lhe prometi<strong>do</strong> vassalag<strong>em</strong>, e <strong>se</strong>haviam confedera<strong>do</strong> com os holande<strong>se</strong>s, e morto os portugue<strong>se</strong>s <strong>se</strong>us vizinhos contra as pazes, <strong>que</strong>tinham celebradas, e assim <strong>se</strong> de<strong>se</strong>nganass<strong>em</strong> <strong>que</strong>, <strong>se</strong>não, iria s<strong>em</strong> os levar cativos ao governa<strong>do</strong>r,ou lhes custaria a vida, com o qual de<strong>se</strong>ngano lhe trouxe o principal <strong>do</strong>s Tapuias, <strong>do</strong>is principais<strong>do</strong>s rebeldes, chama<strong>do</strong> um Cipoúna, e outro Tiquaruçu, para <strong>que</strong> tratass<strong>em</strong> de pazes, e concerto,como trataram; e <strong>em</strong> resolução foi <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>que</strong>riam entregar com toda a sua gente da <strong>se</strong>rra deCopaoba ao governa<strong>do</strong>r, para <strong>que</strong> dispu<strong>se</strong>s<strong>se</strong> deles como lhe pareces<strong>se</strong> justiça, dan<strong>do</strong>-lhe para istoum mês de espera; o <strong>que</strong> o capitão Gregório Lopes aceitou pela necessidade <strong>em</strong> <strong>que</strong> os <strong>se</strong>u<strong>se</strong>stavam de mantimento, trazen<strong>do</strong> logo consigo muitos <strong>do</strong>s filhos <strong>em</strong> reféns, e as moças brancas, <strong>em</strong>eninos, <strong>que</strong> tinham presos.N<strong>em</strong> este concerto aceitou, e fez com o principal Tiquaruçu, <strong>que</strong> era mais culpa<strong>do</strong>, antes oman<strong>do</strong>u matar logo <strong>em</strong> pre<strong>se</strong>nça de to<strong>do</strong>s às cutiladas. Não com Cipoúna, o qual cumpriu depois àrisca, trazen<strong>do</strong> toda a sua gente, no t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> ficou, para <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r dispu<strong>se</strong>s<strong>se</strong> dela à suavontade, e o governa<strong>do</strong>r, s<strong>em</strong> tomar nenhum por si, cometeu ao des<strong>em</strong>barga<strong>do</strong>r João de SousaCardines <strong>que</strong> os repartis<strong>se</strong> pelos solda<strong>do</strong>s e outros mora<strong>do</strong>res, para <strong>que</strong> os <strong>se</strong>rviss<strong>em</strong> <strong>em</strong> pena de suaculpa, e rebelião, mas muitos <strong>se</strong> acolheram a sagra<strong>do</strong> das <strong>do</strong>utrinas <strong>do</strong>s padres da companhia, ondeforam b<strong>em</strong> acolhi<strong>do</strong>s, por<strong>que</strong> ali <strong>se</strong> <strong>do</strong>utrinam, e con<strong>se</strong>rvam melhor, <strong>que</strong> nas casas <strong>do</strong>s <strong>se</strong>culares,como já outras vezes tenho dito.NB. Este capítulo quadragésimo quarto foi copia<strong>do</strong> desta História <strong>do</strong> Brasil por <strong>frei</strong> Vicente<strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r; porém o capítulo quadragésimo quarto <strong>que</strong> está nas adições e <strong>em</strong>endas a esta Históriaé o <strong>que</strong> <strong>se</strong> <strong>se</strong>gue.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO QUARTODa armada, <strong>que</strong> veio de Holanda a Bahia <strong>em</strong> socorro <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us, e <strong>do</strong> mais,<strong>que</strong> sucedeu até a partida da nossaNão <strong>se</strong> podia dizer <strong>que</strong> a guerra era acabada, por <strong>se</strong> haver recuperada a cidade <strong>do</strong>sholande<strong>se</strong>s, pois ainda <strong>se</strong> esperava pela sua armada <strong>do</strong> socorro. E assim chegou logo um navio deAngola, <strong>que</strong> deu por nova andar no morro uma nau, e um patacho, <strong>que</strong> tinham toma<strong>do</strong> <strong>do</strong>is naviosnossos, um de mantimentos para a armada de Portugal, <strong>que</strong> vinha de Lisboa, outro da ilha daMadeira, com vinhos, <strong>que</strong> também <strong>se</strong> mandava à armada, e ao conde de Vimioso da sua capitania


171de Machico; saiu-lhes Tristão de Men<strong>do</strong>nça, e o capitão Gregório Soares, por manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>se</strong>ugeneral d. Manuel de Menezes, e tomaram o <strong>do</strong>s mantimentos com os holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> dentroestavam. Também man<strong>do</strong>u d. João Fajar<strong>do</strong> um patacho, <strong>que</strong> tomou o <strong>do</strong>s vinhos, e <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s,<strong>que</strong> tomaram destes <strong>do</strong>is navios, constou <strong>que</strong> vinha já a sua armada <strong>do</strong> socorro, a qual poucos diasdepois, aos 26 de maio pela manhã, apareceu na barra; eram 34 naus, 15 grandes <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, e asmais de frete, e assim eram duas capitanias. Às duas horas depois <strong>do</strong> meio-dia entraram toda<strong>se</strong>nfiadas umas traz outras para dentro com tanta confiança <strong>que</strong> provavelmente <strong>se</strong> entendeu deviamainda cuidar <strong>que</strong> estava a cidade por sua, e <strong>que</strong> fora bom o con<strong>se</strong>lho, <strong>que</strong> o marquês de Copranihavia da<strong>do</strong>, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não abalas<strong>se</strong> a nossa armada, por<strong>que</strong> eles viriam surgir junto dela, acrescentan<strong>do</strong><strong>que</strong> <strong>se</strong>ria bom tirar-<strong>se</strong> a bandeira real, <strong>que</strong> haviam posto na torre da Sé, e pôr <strong>em</strong> <strong>se</strong>u lugar aholandesa, <strong>que</strong> haviam tira<strong>do</strong>, e disparar<strong>em</strong> da nossa armada alguns tiros à cidade, e da cidade àarmada, para <strong>que</strong> <strong>se</strong> confirmass<strong>em</strong> os holande<strong>se</strong>s no <strong>que</strong> cuidavam, e lhes viess<strong>em</strong> a cair nas mãos:porém d. Fadri<strong>que</strong> respondeu o <strong>que</strong> refer<strong>em</strong> de Alexandre Magno <strong>que</strong> não era honra alcançar vitóriacom enganos, e man<strong>do</strong>u sair os navios mais pe<strong>que</strong>nos logo pela manhã com ord<strong>em</strong> <strong>que</strong> nãopelejass<strong>em</strong>, até não chegar<strong>em</strong> as capitânias, as quais <strong>se</strong> desamarraram tão tarde, <strong>que</strong> haven<strong>do</strong> i<strong>do</strong> os<strong>primeiro</strong>s <strong>em</strong> vento e maré favorável, acharam já tu<strong>do</strong> contrário, o dia <strong>que</strong> <strong>se</strong> ia acaban<strong>do</strong>, e osinimigos retiran<strong>do</strong>-<strong>se</strong>, pelo <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u tirar um tiro de recolher, e também por ver <strong>que</strong> havia umgaleão nosso, chama<strong>do</strong> Santa Tereza, da<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>se</strong>co nos baixos da parte da Itaparica, o qualcortan<strong>do</strong>-lhe o mastro grande, na<strong>do</strong>u, e saiu <strong>do</strong> perigo. E os holande<strong>se</strong>s, posto <strong>que</strong> alguns tocaram obaixo, saíram, e <strong>se</strong> foram to<strong>do</strong>s a <strong>se</strong>u salvo a<strong>que</strong>la noite na volta <strong>do</strong> mar, s<strong>em</strong> perder<strong>em</strong> mais <strong>que</strong><strong>do</strong>is batéis, <strong>que</strong> <strong>se</strong> desamarraram, ou largaram por mão, e uma bandeira <strong>que</strong> a almeiranta deNápoles levou com um pelouro a um deles da quadra: onde <strong>se</strong> perdeu a mais gloriosa <strong>em</strong>presa, <strong>que</strong><strong>se</strong> podia ganhar, com a qual, junta a <strong>que</strong> haviam alcança<strong>do</strong> na cidade, <strong>se</strong> ficavam <strong>que</strong>bran<strong>do</strong> osbraços aos inimigos, para nos não poder<strong>em</strong> tão ce<strong>do</strong> fazer dano, mas parece <strong>que</strong> os quis Deus deixarainda no Brasil / como deixou os cananeus aos filhos de Israel / para <strong>frei</strong>o de nossos peca<strong>do</strong>s; eassim <strong>se</strong> foram logo desta Bahia à da Traição, <strong>do</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>n<strong>do</strong> avisa<strong>do</strong> d. Fadri<strong>que</strong> por via dePernambuco, man<strong>do</strong>u à pressa aprestar a armada para ver <strong>se</strong> de caminho, <strong>em</strong> caso <strong>que</strong> ainda aíestivess<strong>em</strong>, os podia levar. E para este efeito man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> João Vincêncio Sanfeliche, de qu<strong>em</strong> <strong>se</strong>valia nas coisas de mais consideração, e o general Francisco de Vallecilha, como tão experimenta<strong>do</strong>na náutica, <strong>se</strong> adiantas<strong>se</strong> a Pernambuco com instrução <strong>que</strong> <strong>em</strong> companhia <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Mathias deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, e das pessoas mais práticas o informas<strong>se</strong> <strong>do</strong> sítio da baía da Traição, suasparticularidades, e capacidade, para ver <strong>se</strong> achan<strong>do</strong>-<strong>se</strong> a armada inimiga nela, poderia entrar a deEspanha a desalojá-la, e não poden<strong>do</strong>, <strong>que</strong> conviria fazer <strong>em</strong> resolução de não perder t<strong>em</strong>po quan<strong>do</strong>chegas<strong>se</strong> a Pernambuco, <strong>se</strong>não <strong>que</strong> pudes<strong>se</strong> executar o <strong>que</strong> tivess<strong>em</strong> determina<strong>do</strong>, pelo <strong>que</strong> fez logoo governa<strong>do</strong>r juntar to<strong>do</strong>s os pilotos <strong>em</strong> sua casa, e com <strong>se</strong>u parecer as<strong>se</strong>ntaram <strong>que</strong> na boca da ditabaía não havia mais <strong>que</strong> 15 ou 16 palmos de água, com <strong>que</strong> era impossível entrar a armada deEspanha, além de <strong>que</strong> a parte <strong>que</strong> tinha mais fun<strong>do</strong> estava ocupada com os navios de Holanda; eassim o melhor <strong>se</strong>ria surgir a nossa armada defronte da barra, e saltear<strong>em</strong> os inimigos por terra atéos forçar a sair; e para isto haviam preveni<strong>do</strong> c<strong>em</strong> juntas de bois, e carros para tirar a artilharia, milíndios da Paraíba, e mil homens brancos de Pernambuco, <strong>que</strong> com os mais, <strong>que</strong> d. Fadriqu<strong>em</strong>andaria des<strong>em</strong>barcar <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us, <strong>se</strong>ria bastante para con<strong>se</strong>guir <strong>se</strong>u intento, o qual por esta causa deuconclusão às coisas da Bahia.Man<strong>do</strong>u enforcar <strong>do</strong>s portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> estavam presos por voluntariamente <strong>se</strong> haver<strong>em</strong>fica<strong>do</strong> com os holande<strong>se</strong>s, quatro, e <strong>do</strong>s negros, <strong>que</strong> <strong>se</strong> confederaram com eles, <strong>se</strong>is, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong>uns e outros ouvi<strong>do</strong>s, e julga<strong>do</strong>s pelo auditor-geral. Repartiu os despojos das merca<strong>do</strong>rias, efazendas, <strong>que</strong> os holande<strong>se</strong>s haviam toma<strong>do</strong> aos mora<strong>do</strong>res, pelos solda<strong>do</strong>s da armada. Dondetrouxe um prega<strong>do</strong>r, pregan<strong>do</strong> na<strong>que</strong>la ocasião muito a propósito aquilo <strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> capítulo <strong>do</strong>


172profeta Joel / Residuum erucae comedit locusta/, por<strong>que</strong> o <strong>que</strong> haviam deixa<strong>do</strong> os inimigos lheslevaram os amigos, <strong>que</strong> vieram para os socorrer, e r<strong>em</strong>ediar. E <strong>se</strong> ainda destes restou alguma coisa /residuum locustae comedit bruchus /, <strong>que</strong> foi o presídio de mil solda<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> o dito general deixouda armada na cidade, no qual deixou por sargento-mor Pedro Correa, <strong>que</strong> o havia si<strong>do</strong> de um <strong>do</strong>sterços de Portugal, solda<strong>do</strong> velho, experimenta<strong>do</strong> nas guerras de Flandres.Fez capitães da infantaria a Francisco Padilha, Manuel Gonçalves, Antônio de Moraes, ePero Mendes, <strong>que</strong> o haviam si<strong>do</strong> <strong>do</strong>s assaltos, e capitão-mor e governa<strong>do</strong>r da terra a d. Francisco deMoura, <strong>que</strong> já de antes o era. Despediu-<strong>se</strong> <strong>do</strong>s conventos dan<strong>do</strong> a cada um de esmola 200 cruza<strong>do</strong>spara ajuda de reparar<strong>em</strong> as paredes, <strong>que</strong> como <strong>se</strong>rviram de baluartes e trincheiras, ficaram muidanifica<strong>do</strong>s.E com isto pedin<strong>do</strong> <strong>que</strong> lhe encomendass<strong>em</strong> a Nosso Senhor a viag<strong>em</strong>, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou a vintee cinco de julho, dia <strong>do</strong> b<strong>em</strong>-aventura<strong>do</strong> Apóstolo Santiago, patrão de Espanha, posto <strong>que</strong> pelovento <strong>se</strong>r contrário, não pôde sair da barra <strong>se</strong>não a quatro de agosto, no qual t<strong>em</strong>po o tiveram três<strong>do</strong>s navios, <strong>em</strong> <strong>que</strong> iam <strong>em</strong>barca<strong>do</strong>s os holande<strong>se</strong>s rendi<strong>do</strong>s, para <strong>se</strong> apartar<strong>em</strong> <strong>do</strong>s mais, e <strong>se</strong> ir<strong>em</strong>.NB. Segue-<strong>se</strong> o capítulo quadragésimo quinto <strong>do</strong> sucesso da nossa armada para o reino, e<strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s para a sua terra; porém nas adições e <strong>em</strong>endas a esta História <strong>do</strong> Brasil é oquadragésimo sétimo.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SÉTIMODo sucesso da nossa armada para o reino, e <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s para a sua terraCom tormenta partiu a nossa armada da Bahia, pelo <strong>que</strong> logo abriu muita água um galeão deEspanha, e lhe foi força<strong>do</strong> tornar para dentro, para depois de tomada ir <strong>em</strong> companhia de outro <strong>que</strong>também, por <strong>se</strong> não poder concertar a t<strong>em</strong>po, não foi com a armada, à qual depois de partirsobreveio outra tormenta, tão grande, <strong>que</strong> não pôde tomar Pernambuco, onde a estavam esperan<strong>do</strong>com muito alvoroço, não já para pelejar com a holandesa, <strong>que</strong> era ida, <strong>se</strong>não para regalar<strong>em</strong> a SuaExcelência, e mais <strong>se</strong>nhores, para cujo recebimento tinham ordenadas muitas festas, especialmente<strong>se</strong>ntiram não poder ver o <strong>se</strong>nhor da terra Duarte de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> Coelho, e não devia ele de <strong>se</strong>nti-lomenos, pois padecia a pena de Tântalo, não poden<strong>do</strong> gozar <strong>do</strong> <strong>que</strong> apetecia, e via, n<strong>em</strong> a vinda paraa Bahia, n<strong>em</strong> a ida. Daqui começaram logo os navios a apartar-<strong>se</strong>, cada um para onde a força dat<strong>em</strong>pestade o levava, e muito mais depois <strong>que</strong> lhes sobrevieram outras na altura das ilhas, com <strong>que</strong><strong>se</strong> perdeu a almeiranta de Portugal na ilha de S. Jorge, mas salvou-<strong>se</strong> o almirante d. Francisco deAlmeida, e os <strong>que</strong> com ele iam, com muito trabalho, e dar<strong>em</strong> continuamente à bomba, s<strong>em</strong> comer,por<strong>que</strong> a matalotag<strong>em</strong> apodreceu com a água, <strong>do</strong>nde depois na mesma ilha a<strong>do</strong>eceram, e morrerammuitos, e entre eles d. Antônio de Castelo Branco, <strong>se</strong>nhor de Pombeiro, <strong>que</strong> Nosso Senhor tenha <strong>em</strong>sua glória, como confio <strong>em</strong> sua divina Mi<strong>se</strong>ricórdia, e pelo <strong>que</strong> <strong>se</strong>i dele no t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> esteve nestaBahia, <strong>que</strong> <strong>se</strong> confessava, e comungava cada s<strong>em</strong>ana, ouvia to<strong>do</strong>s os dias missa, junto com <strong>se</strong>rmuito esmoler, e outras virtudes, <strong>que</strong> como pedras preciosas, engastadas <strong>em</strong> fino ouro de suanobreza, davam de si muito lustre.O galeão <strong>em</strong> <strong>que</strong> ia d. Afonso de Alencastre, por fazer muita água, e não a poder<strong>em</strong> tomar,tomaram a gente <strong>em</strong> outro, e o mais <strong>que</strong> puderam, e pu<strong>se</strong>ram-lhe fogo. Constantino de Mello, eDiogo Varejão encontraram <strong>se</strong>is navios holande<strong>se</strong>s, com qu<strong>em</strong> pelejaram, e <strong>se</strong>n<strong>do</strong> rendida a nau <strong>do</strong>Varejão, ficou só o Mello na sua naveta continuan<strong>do</strong> a briga com tanto valor, <strong>que</strong> já o deixavam, <strong>se</strong>não sobrevieram três naus de esta<strong>do</strong>, a <strong>que</strong> também resistiu, mas enfim o tomaram, e levaram aHolanda, rouban<strong>do</strong>-lhe quanto levava, <strong>se</strong>não a fama <strong>do</strong> capitão, <strong>que</strong> foram publican<strong>do</strong>, e é b<strong>em</strong> <strong>se</strong>publi<strong>que</strong> por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>.


173D. Manuel de Menezes, general da armada de Portugal, chegou à Lisboa a 14 de outubro,haven<strong>do</strong> briga<strong>do</strong> na parag<strong>em</strong> da ilha de S. Miguel com <strong>do</strong>is galeões de holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> iam de minacarrega<strong>do</strong>s, o qual depois de ter feito amainar um o deixou ao galeão Sant’Anna das Quatro Vilas,<strong>que</strong> ia na sua esteira, no qual ia o mestre de campo d. João de Orelhana, e <strong>se</strong> foi <strong>em</strong> <strong>se</strong>guimento <strong>do</strong>outro, <strong>que</strong> lhe ia fugin<strong>do</strong>, e porventura o tomara, <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> a sua nau era forte, e ligeira, <strong>se</strong> não foranecessário tornar atrás acudir ao galeão Sant’Anna, <strong>que</strong> ardia; por<strong>que</strong> haven<strong>do</strong> aborda<strong>do</strong> e rendi<strong>do</strong> o<strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, e passa<strong>do</strong>s já muitos ao nosso, tira<strong>do</strong> alguns, <strong>que</strong> <strong>se</strong> não qui<strong>se</strong>ram sair, não <strong>se</strong>i <strong>se</strong>por estes, ou <strong>se</strong> acaso <strong>se</strong> pegou fogo ao <strong>se</strong>u, e in continenti dele ao nosso, com <strong>que</strong> <strong>se</strong> abrasaramambos, s<strong>em</strong> <strong>se</strong> salvar mais <strong>que</strong> 148 pessoas, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lançaram a nadar, a <strong>que</strong> d. Manuel acudiuquan<strong>do</strong> viu o fogo, deixan<strong>do</strong> o galeão, <strong>que</strong> ia fugin<strong>do</strong>, e largan<strong>do</strong>-lhes a fragata, cabos, jangadas,tábuas, e outras coisas, de <strong>que</strong> <strong>se</strong> pudess<strong>em</strong> valer, os <strong>livro</strong>u <strong>do</strong> perigo da água, morren<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s osmais abrasa<strong>do</strong>s com o mestre de campo d. João de Orelhana, d. Antônio de Luna de Menezes, eoutros muitos.D. Fadri<strong>que</strong> de Tole<strong>do</strong> com grande parte da armada derrotou com o rigor <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po avante<strong>do</strong> estreito ao porto de Málaga, e fazen<strong>do</strong> dali alguns fidalgos sua jornada a Portugal souberam deum correio de Sua Majestade junto a Sevilha <strong>se</strong>r aporta<strong>do</strong> a Cadiz uma armada inglesa de 130 velas,per onde logo voltaram desandan<strong>do</strong> o caminho, <strong>que</strong> já tinham anda<strong>do</strong>, julgan<strong>do</strong> <strong>se</strong>r a<strong>que</strong>le o maispróprio de qu<strong>em</strong> eles eram, <strong>que</strong> o <strong>que</strong> depois de tão larga jornada levavam a suas casas: eram os <strong>que</strong>fizeram esta volta João da Silva Tello, d. Duarte de Menezes, conde de Tarouca, Francisco de Mellode Castro, d. Lopo da Cunha, <strong>se</strong>nhor de Santar, d. Francisco Luiz de Faro, filho <strong>do</strong> conde d. Estevãode Faro, Antônio Taveira de Avelar, e d. Nuno Mascarenhas. Levaram <strong>se</strong>u caminho de Sevilha aXeres onde o du<strong>que</strong> de Medina Sidônia, neto de Rui Gomes da Silva, pelo <strong>que</strong> tinha de português,lhes fez singulares d<strong>em</strong>onstrações de agasalho, e estimação, <strong>que</strong> valia tão primoroso valor.Trataram logo <strong>do</strong> fim da sua vinda, <strong>que</strong> era meter<strong>em</strong>-<strong>se</strong> <strong>em</strong> Cadiz, para <strong>que</strong> a ajudass<strong>em</strong> adefender, pedin<strong>do</strong> ao du<strong>que</strong> uma galé para nela passar<strong>em</strong>, e pelas dificuldades, <strong>que</strong> o du<strong>que</strong>repre<strong>se</strong>ntou, não puderam então levar avante esta sua deliberação, e assim <strong>se</strong> foram à defensão daponte de Suasso, onde assistiam quatro mil homens, mas chegan<strong>do</strong> depois reca<strong>do</strong> de Cadiz de d.Fernan<strong>do</strong> Girão, para <strong>que</strong> de noite lhe metess<strong>em</strong> na cidade trezentos homens escolhi<strong>do</strong>s, foram osfidalgos os <strong>primeiro</strong>s, <strong>que</strong> na vanguarda com <strong>se</strong>us pi<strong>que</strong>s partiram a este socorro, caminhan<strong>do</strong> trêsléguas a pé, com chuva, e água <strong>em</strong> muitas partes pelos joelhos, até entrar<strong>em</strong> na cidade às 11 horasda noite, onde d. Fernan<strong>do</strong> Girão os foi buscar a suas pousadas, significan<strong>do</strong> com palavras, e comabraços, <strong>que</strong> <strong>se</strong>ntiria muito fazer o inimigo leva da sua armada, pois com o favor de tais cavaleirospodia esperar desbaratá-lo. Em Cadiz assistiram como valorosos a to<strong>do</strong> o trabalho e perigo militaraté o inimigo <strong>se</strong> ir. Não mereceram menos estimação d. Afonso de Noronha, Antônio MonizBarreto, Henri<strong>que</strong> Henri<strong>que</strong>s, e d. Afonso de Alencastre, por<strong>que</strong> ainda <strong>que</strong> quan<strong>do</strong> chegaram aCadiz estavam já os inimigos retira<strong>do</strong>s, diz<strong>em</strong> os teólogos <strong>que</strong> a vontade eficaz é equivalente à obra,<strong>se</strong> não pode pôr-<strong>se</strong> <strong>em</strong> efeito, e por tal a estimou Sua Majestade, escreven<strong>do</strong> ao Con<strong>se</strong>lho <strong>que</strong>por<strong>que</strong> estava informa<strong>do</strong> <strong>do</strong> valor com <strong>que</strong> os portugue<strong>se</strong>s o <strong>se</strong>rviram nesta ocasião, e <strong>que</strong> paramorrer por <strong>se</strong>u <strong>se</strong>rviço lhes não faltava vontade, e sobejava o ânimo, mandava <strong>que</strong> a cada um <strong>se</strong>des<strong>se</strong> o <strong>que</strong> tives<strong>se</strong> da Coroa para filhos ou herdeiros, e lhes fizess<strong>em</strong> todas as mais mercês, <strong>que</strong> elepor outro decreto <strong>se</strong>u tinha concedi<strong>do</strong> aos <strong>que</strong> morress<strong>em</strong> nesta <strong>em</strong>presa da Bahia, s<strong>em</strong> <strong>se</strong>rnecessário a nenhum fazer sobre isto mais diligências. O teor da carta é o <strong>se</strong>guinte:«Governa<strong>do</strong>res amigos. Eu el-rei, vos envio muito saudar, como a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> amo. Haven<strong>do</strong><strong>se</strong>entendi<strong>do</strong> o <strong>que</strong> os fidalgos portugue<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> foram cobrar a Baía de To<strong>do</strong>s os Santos, t<strong>em</strong><strong>se</strong>rvi<strong>do</strong>, e de<strong>se</strong>jan<strong>do</strong> <strong>que</strong> conheçam quão agradável me foi <strong>se</strong>u <strong>se</strong>rviço, e quão satisfeito me acho desuas pessoas, rei por b<strong>em</strong>, <strong>em</strong> <strong>primeiro</strong> lugar, <strong>que</strong> <strong>se</strong> execut<strong>em</strong> as mercês gerais, <strong>que</strong> fiz para os qu<strong>em</strong>orress<strong>em</strong> nesta jornada nos filhos de Martim Afonso de Oliveira, e <strong>que</strong> <strong>se</strong> me consulta <strong>em</strong> <strong>que</strong>


174outra poderia eu mostrar-lhes meu agradecimento, e <strong>se</strong>ntimento da morte de <strong>se</strong>u pai, por <strong>se</strong>r tãohonra<strong>do</strong> fidalgo, e tão zeloso <strong>do</strong> meu <strong>se</strong>rviço, não reparan<strong>do</strong> para o fazer <strong>em</strong> nenhum particular <strong>se</strong>u,fican<strong>do</strong>, <strong>se</strong> pode <strong>se</strong>r, tão satisfeito <strong>do</strong> <strong>se</strong>u mo<strong>do</strong> de <strong>se</strong>rvir, como de <strong>se</strong>us mesmos <strong>se</strong>rviços. E aosmais fidalgos me pareceu <strong>se</strong> lhes declar<strong>em</strong>, e dê<strong>em</strong> por feitas todas a<strong>que</strong>las mercês, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhesfizeram pelo caso <strong>que</strong> morress<strong>em</strong> na jornada, pois da sua parte não lhes ficou mais <strong>que</strong> fazer.De<strong>se</strong>jan<strong>do</strong> eu infinito <strong>que</strong> saibam os <strong>que</strong> me <strong>se</strong>rv<strong>em</strong> <strong>que</strong> gratifico o ânimo de fazê-lo, como amesma obra, e <strong>que</strong> não hão mister mais solicitação, negociação, recor<strong>do</strong>, n<strong>em</strong> passos, <strong>que</strong> da<strong>do</strong>s <strong>em</strong>meu <strong>se</strong>rviço, e por esta razão s<strong>em</strong> consulta nenhuma o quis resolver assim. Escrita <strong>em</strong> Madri a 18de <strong>se</strong>t<strong>em</strong>bro de 1625. Rei.”Não <strong>se</strong> poderá ver maior d<strong>em</strong>onstração <strong>do</strong> amor de Sua Majestade à Coroa de Portugal; poiss<strong>em</strong> consulta <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, só pela <strong>do</strong> amor, foi <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> de <strong>se</strong>u moto próprio formar um real decreto tãofavorável a esta Coroa. N<strong>em</strong> menos grato <strong>se</strong> mostrou aos <strong>que</strong> vieram pela Coroa de Castela, fazen<strong>do</strong>a uns e outros grandes mercês; mas muito maiores as recebeu de Deus este mesmo ano, <strong>que</strong> foi o d<strong>em</strong>il <strong>se</strong>iscentos e vinte e cinco, e b<strong>em</strong> parece <strong>que</strong> era o <strong>do</strong> Jubileu geral, <strong>em</strong> <strong>que</strong> o vigário de Cristo<strong>em</strong> Roma tão liberalmente abre, e comunica aos fiéis o tesouro da igreja.(A) Da<strong>que</strong>la armada inglesa tão poderosa, da qual <strong>livro</strong>u também tão milagrosamente a frotadas Índias, <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le ano trazia dezes<strong>se</strong>te milhões <strong>em</strong> ouro, prata, e frutos da terra, e o milagre foi,<strong>que</strong> tanto <strong>que</strong> os ingle<strong>se</strong>s aportaram <strong>em</strong> Cadiz, man<strong>do</strong>u Sua Majestade despachar <strong>se</strong>is caravelas comgrandes prêmios à frota, para <strong>que</strong> fos<strong>se</strong> aportar a Lisboa ou Galiza por não <strong>se</strong>r presa <strong>do</strong>s inimigos.Caiu uma das caravelas nas mãos <strong>do</strong>s ingle<strong>se</strong>s, os quais ten<strong>do</strong> por certo <strong>que</strong> esperan<strong>do</strong> a frota <strong>em</strong>quarenta graus <strong>se</strong> fariam <strong>se</strong>nhores dela, partiram logo de Cadiz a pôr-<strong>se</strong> na<strong>que</strong>la altura; mas foiDeus <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> <strong>que</strong> nenhuma caravela das nossas acertou com a frota, e assim veio direita a Cadizvinte dias depois da inglesa a estar esperan<strong>do</strong> na parag<strong>em</strong> por onde houveram de vir <strong>se</strong> lhe deram oreca<strong>do</strong> de Sua Majestade; pelo <strong>que</strong> reconheci<strong>do</strong> el-rei de tão grande mercê, deu graças a NossoSenhor, e muito mais depois <strong>que</strong> soube <strong>se</strong>r qua<strong>se</strong> toda a armada inimiga com t<strong>em</strong>pestades, etormentas, de sorte <strong>que</strong> a menor parte dela tornou à sua terra. Em Flandres foi tomada aos hereges apoderosa cidade de Buda. No Brasil recuperada de outros a Bahia, <strong>que</strong> o ano dantes a tinhamocupada. Mas <strong>que</strong> havia de <strong>se</strong>r, <strong>se</strong> neste ano foi celebrada a canonização de Santa Isabel Rainha dePortugal, natural <strong>do</strong> reino de Aragão, por cuja intercessão e merecimentos pod<strong>em</strong>os crer <strong>que</strong> fez, efará Deus muitas mercês a estes reinos.Também padeceram grandes tormentas no mar os holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> foram da Bahia, ainda<strong>que</strong> levavam os navios mais descarrega<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> é um b<strong>em</strong> só nas tormentas conheci<strong>do</strong>; e não foimenor a <strong>que</strong> padeceram <strong>em</strong> terra depois <strong>que</strong> chegaram à Holanda, por<strong>que</strong> logo foram to<strong>do</strong>s presospelos <strong>se</strong>us, e <strong>se</strong>ntencia<strong>do</strong>s à morte por <strong>se</strong> haver<strong>em</strong> entregues a parti<strong>do</strong> tão ce<strong>do</strong> com a cidade, e omais <strong>que</strong> tinham, e haviam ganha<strong>do</strong> na Bahia, s<strong>em</strong> esperar<strong>em</strong> pela sua armada <strong>do</strong> socorro, ao <strong>que</strong>acudiram as mulheres, filhos, e parentes com <strong>em</strong>bargos, alegan<strong>do</strong> <strong>que</strong> não fora possível deixar<strong>em</strong>de <strong>se</strong> entregar<strong>em</strong>, ou morrer<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s, pela muita tardança <strong>do</strong> <strong>se</strong>u socorro, e grande aperto <strong>em</strong> <strong>que</strong>os nossos os tinham postos: e outras coisas, pelas quais enfim os soltaram, e lhes concederam asvidas, condenan<strong>do</strong>-os somente <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhes não pagass<strong>em</strong> os sol<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> <strong>se</strong> lhes devia.Os outros <strong>que</strong> haviam vin<strong>do</strong> de socorro, <strong>se</strong> foram da baía da Traição a Porto Rico, <strong>que</strong> é <strong>em</strong>Índias de Castela, onde achan<strong>do</strong> a gente descuidada des<strong>em</strong>barcaram, e sa<strong>que</strong>aram o lugar, depoisacudiu o capitão da fortaleza da barra, <strong>que</strong> por <strong>se</strong>r estreita e como porta da<strong>que</strong>le porto, lho cerrou d<strong>em</strong>o<strong>do</strong> <strong>que</strong> não puderam sair como entraram, antes <strong>se</strong> viram <strong>em</strong> tanto aperto, <strong>que</strong> já de concertolargaram quanto tinham rouba<strong>do</strong>, e ainda alguma coisa <strong>do</strong> <strong>se</strong>u, por<strong>que</strong> os deixass<strong>em</strong> sair, o <strong>que</strong> o(A) Es<strong>se</strong> parágrafo v<strong>em</strong> incluí<strong>do</strong> no Capítulo Quadragésimo Terceiro das Adições e Emendas a esta História <strong>do</strong> Brasil, oqual já está copia<strong>do</strong>; contu<strong>do</strong> não <strong>se</strong> pode deixar de repetir aqui, para não truncar este Capítulo.


175capitão lhes não quis conceder, assim por entender <strong>que</strong> os tinha venci<strong>do</strong>s, como por recear <strong>que</strong> elreilho estranhas<strong>se</strong>, e <strong>em</strong> ambas as coisas <strong>se</strong> enganou, por<strong>que</strong> os inimigos estavam mui fortes <strong>em</strong>suas naus, com tu<strong>do</strong> quanto sa<strong>que</strong>a<strong>do</strong>, ensaca<strong>do</strong>, e meti<strong>do</strong> dentro nelas, esperan<strong>do</strong> só uma noiteescura de tormenta, e vento, <strong>que</strong> lhes <strong>se</strong>rvis<strong>se</strong> para saír<strong>em</strong>, como lhes sucedeu <strong>em</strong> uma <strong>em</strong> <strong>que</strong>saíram, e <strong>se</strong> foram, s<strong>em</strong> lho poder<strong>em</strong> impedir n<strong>em</strong> fazer-lhes algum dano, mais <strong>que</strong> <strong>em</strong> uma nãovelha, <strong>que</strong> pu<strong>se</strong>ram por... (sic), e Sua Majestade man<strong>do</strong>u cortar a cabeça ao capitão da fortaleza, enão por aceitar o concerto, <strong>que</strong> lhe cometiam os holande<strong>se</strong>s, no <strong>que</strong> ele só cuidava <strong>que</strong> estava toda aculpa.N. B — Nas adições e <strong>em</strong>endas v<strong>em</strong> este capítulo, porém onde no fim dele diz: “e SuaMajestade man<strong>do</strong>u cortar a cabeça ao capitão da fortaleza, e não por aceitar o concerto, <strong>que</strong> lhecometiam os holande<strong>se</strong>s, no <strong>que</strong> ele só cuidava <strong>que</strong> estava toda a culpa.» nas <strong>em</strong>endas só diz o<strong>se</strong>guinte: “E Sua Majestade não <strong>se</strong> houve por tão b<strong>em</strong> <strong>se</strong>rvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> capitão da fortaleza como eleimaginou.”CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SEXTODe como o governa<strong>do</strong>r Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> man<strong>do</strong>u buscar a carga de uma nau da Índia, <strong>que</strong> <strong>se</strong>perdeu na ilha de Santa HelenaProvidência divina foi ficar<strong>em</strong> na Bahia os <strong>do</strong>is galeões <strong>que</strong> diss<strong>em</strong>os no capítuloprecedente, um <strong>do</strong>s quais era da esquadra de Biscaia, chama<strong>do</strong> Nossa Senhora da Atalaia, de <strong>que</strong>era capitão João Martins de Arteagoa, outro da esquadra <strong>do</strong> estreito, chama<strong>do</strong> S. Miguel, e o capitãoFrancisco Cestim, por<strong>que</strong> foram depois mui úteis e necessários para ir<strong>em</strong> buscar a carga da nauConceição, <strong>que</strong> por <strong>se</strong> ir ao fun<strong>do</strong> com água descarregou na ilha de Santa Helena; vinha esta daÍndia <strong>em</strong> companhia de outras quatro, das quais vinha por capitão-mor d. Antônio Tello, o qual nãopoden<strong>do</strong> deixar de <strong>se</strong>guir a sua viag<strong>em</strong>, tomou dela a fazenda <strong>que</strong> pôde, e a gente com o <strong>se</strong>u capitãod. Francisco de Sá, e deixou a Antônio Gonçalves pousa<strong>do</strong> com 120 homens brancos, e algunscafres <strong>em</strong> guarda <strong>do</strong> mais, escreven<strong>do</strong> por um batel ao governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil <strong>que</strong> lhe mandas<strong>se</strong>navios; chegou o batel a Pernambuco, onde o governa<strong>do</strong>r Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, <strong>que</strong> estava <strong>em</strong>18 de agosto de 1625, o qual avisou logo a d. Fadri<strong>que</strong>, pedin<strong>do</strong>-lhe para isto quatro urcas, <strong>que</strong> aí oestavam aguardan<strong>do</strong> com mantimentos para a armada, <strong>do</strong>s quais era cabo João Luiz Camarena, e d.Fadri<strong>que</strong> <strong>do</strong> mar, onde achou o reca<strong>do</strong>, man<strong>do</strong>u <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> os ditos galeões da Bahia, por<strong>que</strong> dasurcas <strong>do</strong>s mantimentos tinha necessidade a sua armada, pelo <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u logo <strong>em</strong>direitura aos de Santa Helena uma caravela de refresco, e por capitão dela Mateus Ro<strong>do</strong>valho, eduas naus pela Bahia, uma chamada S. Bom Hom<strong>em</strong>, capitão Antônio Teixeira, outra Churrião,capitão Custódio Favacho, providas da fazenda de Sua Majestade, pelo contrata<strong>do</strong>r JerônimoDomingues, para <strong>que</strong> daqui foss<strong>em</strong> com os ditos galeões, como logo foram, e com outra nãochamada a Rata, <strong>que</strong> man<strong>do</strong>u d. Francisco de Moura, da qual era capitão Rodrigo Álvares.Chegaram a Santa Helena a 27 de dez<strong>em</strong>bro de 1626, acharam os indiáticos entrincheira<strong>do</strong>scom os far<strong>do</strong>s, e com três baluartes feitos, <strong>em</strong> <strong>que</strong> tinham <strong>se</strong>is peças de artilharia, <strong>do</strong>nde haviampeleja<strong>do</strong> <strong>primeiro</strong> com uma nau holandesa, e depois com quatro de holande<strong>se</strong>s e ingle<strong>se</strong>s, tãovalorosamente, <strong>que</strong> não <strong>se</strong> atreveram a sair à terra, e <strong>se</strong> foram com muita gente morta.Depois de começar<strong>em</strong> os nossos navios a tomar carga, estan<strong>do</strong> já qua<strong>se</strong> carrega<strong>do</strong>s, chegouuma nau holandesa, maior <strong>que</strong> a nau da Índia, com 40 peças de artilharia, a qual surgiu entre os <strong>do</strong>isgaleões, e eles abalroaram com ela, e saltan<strong>do</strong> a gente no convés, <strong>que</strong> acharam despeja<strong>do</strong>, <strong>se</strong><strong>se</strong>nhorearam dele, rompen<strong>do</strong> a enxárcia, e velas, e dizen<strong>do</strong> aos <strong>que</strong> estavam debaixo da xareta <strong>que</strong><strong>se</strong> rendess<strong>em</strong>, respondiam <strong>que</strong> não, por<strong>que</strong> já o diabo estava <strong>em</strong> <strong>se</strong>us corações, e assim pelejaram


176como end<strong>em</strong>oninha<strong>do</strong>s, matan<strong>do</strong>, e ferin<strong>do</strong> com os pi<strong>que</strong>s, por entre a xareta, e com ro<strong>que</strong>iras amuitos <strong>do</strong>s nossos, entre os quais foi morto o capitão Arteagoa, pelo <strong>que</strong>, e por <strong>se</strong> t<strong>em</strong>er<strong>em</strong> <strong>do</strong> fogo,<strong>que</strong> por algumas vezes lhe lançaram, a desabalroaram, e a nau <strong>se</strong> foi com todas as ri<strong>que</strong>zas, <strong>que</strong>trazia de Ternate.Os nossos acabaram de carregar, deixan<strong>do</strong> ainda na ilha o mapam (sic) de âncoras, eamarras, <strong>que</strong> não couberam.Partiram <strong>em</strong> 7 de fevereiro da dita era de 1626, vin<strong>do</strong> por capitão-mor Filipe de Chaverria,<strong>em</strong> lugar <strong>do</strong> <strong>que</strong> morreu na batalha: chegaram a Pernambuco a <strong>primeiro</strong> de março, onde ogoverna<strong>do</strong>r os proveu de to<strong>do</strong> o necessário para a viag<strong>em</strong>, por ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> sobredito contrata<strong>do</strong>r, e <strong>do</strong>almoxarife João de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> de Mello, e <strong>se</strong> fizeram à vela com outros navios mercantes para oreino aos dezoito <strong>do</strong> mesmo mês, e chegaram a Lisboa a salvamento <strong>em</strong> quinze de maio.CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SÉTIMODos holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> andavam por esta costa da Bahia até á Paraíba no ano de mil <strong>se</strong>iscentos e vintee <strong>se</strong>is, e da ida <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Francisco Coelho de Carvalho para o MaranhãoEm 19 de abril desta era de 1626 apareceram na boca desta barra da Bahia, junto ao morro,três naus holandesas de força, uma das quais trazia 30 peças de artilharia grossa e 104 homens deguerra: meteu no fun<strong>do</strong> uma caravela, <strong>que</strong> vinha de Angola, de <strong>que</strong> era mestre Antônio Farinha,vizinho de Sezimbra, por não <strong>que</strong>rer amainar, mas salvaram-lhe toda a gente branca, e algunsnegros, de 170 <strong>que</strong> trazia, e os trouxeram 11 dias consigo, fazen<strong>do</strong>-lhes boa companhia, por otrazer<strong>em</strong> / <strong>se</strong>gun<strong>do</strong> ao depois dis<strong>se</strong>ram / assim por ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> <strong>se</strong>u príncipe de Orange, <strong>em</strong> respeito <strong>do</strong>bom tratamento <strong>que</strong> o general d. Fadri<strong>que</strong> de Tole<strong>do</strong> deu aos holande<strong>se</strong>s na recuperação destacidade, e depois os foram lançar to<strong>do</strong>s no rio das Contas, <strong>do</strong>nde feita sua aguada, <strong>se</strong> foram ajuntarcom outra esquadra de quatro naus, e um patacho, <strong>que</strong> vinha para Pernambuco, e aí ancoraram todasjuntas defronte da barra aos 20 de maio, exceto o patacho, o qual por <strong>se</strong>r mui ligeiro andava com 10peças de artilharia, discorren<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre pela costa de uma parte para outra, e este fez encalhar naPoripuera, 30 léguas de Pernambuco para a Bahia, uma lancha, <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r mandava de aviso,e tomou um navio de Viana, <strong>que</strong> havia saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> Recife com 600 caixas de açúcar, e assim por ir tãocarrega<strong>do</strong>, e com caixas por entre as peças de artilharia, não pôde jogar delas, e <strong>se</strong> deixou tomar deum patacho, coisa <strong>em</strong> <strong>que</strong> os ministros de Sua Majestade deviam vigiar muito nestas partes, por<strong>que</strong>não foi este o <strong>primeiro</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> perdeu por esta causa, n<strong>em</strong> <strong>se</strong>rá o derradeiro, <strong>se</strong>não <strong>se</strong> fizer muitavigia para <strong>que</strong> não vão sobrecarrega<strong>do</strong>s.Tomou também outro, <strong>que</strong> ia para Angola, e uma caravela, <strong>que</strong> vinha da ilha da Madeira,carregada de vinhos, lançan<strong>do</strong> a gente de to<strong>do</strong>s na ilha de Santo Aleixo.Deu caça a uma caravela <strong>que</strong> vinha <strong>do</strong>s rios de Congo, a qual <strong>se</strong> lhe acolheu ao porto <strong>do</strong> PauAmarelo, e a outra de Sezimbra, <strong>que</strong> <strong>se</strong> meteu na en<strong>se</strong>ada <strong>do</strong> cabo de Santo Agostinho, <strong>do</strong>ndedepois ao longo <strong>do</strong> Recife foram meter no porto, como também fizeram três navios de Lisboa, e<strong>do</strong>is das Canárias, por aviso <strong>que</strong> lhes deram de um barco <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u para este efeitoda banda <strong>do</strong> cabo, <strong>que</strong> é a parag<strong>em</strong> por onde no mês de maio, e nos mais de inverno, navegam paraPernambuco.Também man<strong>do</strong>u o mesmo governa<strong>do</strong>r geral Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> <strong>do</strong>is índios da terra, eum mulato, cada um <strong>em</strong> sua jangada com artifício de fogo para o por<strong>em</strong> às naus <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong>estavam mais de quatro léguas da barra ao mar, <strong>do</strong>s quais chegou um chama<strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r, e o pegouà popa da capitânia, mas foi <strong>se</strong>nti<strong>do</strong> de um cachorro da nau, <strong>que</strong> despertou a gente, e o apagaram,tiran<strong>do</strong> logo as mais um tiro de rebate, com a qual raiva <strong>que</strong>imaram o dia <strong>se</strong>guinte a caravela, <strong>que</strong>


177haviam toma<strong>do</strong>, e também por<strong>que</strong> o mestre lhes não havia <strong>que</strong>ri<strong>do</strong> dar por ela 50 cruza<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> lhepediram, e feito isto levantaram ferro, e <strong>se</strong> foram.Também <strong>se</strong> foi Francisco Coelho de Carvalho, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Maranhão, o qual passava jáde <strong>do</strong>is anos <strong>que</strong> estava <strong>em</strong> Pernambuco s<strong>em</strong> poder partir-<strong>se</strong>, assim pela cobrança de 20 milcruza<strong>do</strong>s, <strong>que</strong> el-rei ali lhe man<strong>do</strong>u dar, como por causa <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s da Bahia, e destoutros, epor isto, tanto <strong>que</strong> os viu i<strong>do</strong>s, e desimpedi<strong>do</strong> o passo, <strong>se</strong> partiu <strong>em</strong> 13 de julho da dita era de 1626,com cinco barcos, <strong>que</strong> lhe deu o governa<strong>do</strong>r Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, o qual o veio despedir aoRecife, e lhe man<strong>do</strong>u fazer salvas das fortalezas.Ele ia <strong>em</strong> um <strong>do</strong>s barcos com <strong>se</strong>u filho Feliciano Coelho de Carvalho, e o sargento-morManuel Soares de Almeida. Dos outros eram capitães Manuel de Souza Deça, capitão-mor <strong>do</strong> Pará;Jacome de Reymonde, prove<strong>do</strong>r-mor da fazenda, e João Maciel.Gastaram na viag<strong>em</strong> 15 dias até o Ceará, por<strong>que</strong> não navegavam de noite; ali <strong>se</strong> detiveramoutros 15 dias, nos quais proveu o governa<strong>do</strong>r o forte de pólvora, e de mais artilharia, e fez paga aossolda<strong>do</strong>s, e ao capitão Martim Soares Moreno lançou o hábito de Santiago, de <strong>que</strong> el-rei lhe fezmercê por <strong>se</strong>us <strong>se</strong>rviços, <strong>que</strong> não foram poucos os <strong>que</strong> lhe fez, não só no descobrimento <strong>do</strong>Maranhão, como fica dito no <strong>primeiro</strong> capítulo deste <strong>livro</strong>, mas depois de estar por capitão <strong>do</strong>Ceará, onde os corsários o t<strong>em</strong><strong>em</strong> tanto, <strong>que</strong> haven<strong>do</strong> ali aporta<strong>do</strong> algumas vezes, nenhuma <strong>se</strong>atreveram a des<strong>em</strong>barcar, de<strong>se</strong>jan<strong>do</strong>-o ele tanto, <strong>que</strong> chegou a meter-<strong>se</strong> entre os índios nós, nu etinto da sua cor, parecen<strong>do</strong>-lhe <strong>que</strong> como estes foram <strong>se</strong>us compadres, e amigos, não <strong>se</strong> t<strong>em</strong>en<strong>do</strong>deles, des<strong>em</strong>barcariam, e assim os colheria, e n<strong>em</strong> isto bastou. Feito foi este de subrogação, poisparece não obrigar <strong>se</strong>u ofício a tanto, e assim foi b<strong>em</strong> <strong>em</strong>pregada a mercê, <strong>que</strong> Sua Majestade lhefez <strong>do</strong> hábito, e <strong>se</strong> lhe deu com ele pouca tença, por isso lhe dá Deus muito âmbar por a<strong>que</strong>la praia,com <strong>que</strong> pode muito b<strong>em</strong> matar la hambre.Estava no Ceará a esta sazão o padre <strong>frei</strong> Cristóvão Severim, custódio <strong>do</strong> Maranhão,chega<strong>do</strong> de poucos dias depois de haver passa<strong>do</strong>s muitos no caminho, por<strong>que</strong> veio por terra,padecen<strong>do</strong> grandes fomes, e <strong>se</strong>des, e guerras <strong>do</strong>s gentios Tapuias, Arechis, e Uruatins, <strong>que</strong> duasvezes o saltearam, e lhe mataram um índio <strong>do</strong>s <strong>que</strong> trazia <strong>em</strong> sua companhia, e lhe feriram treze,com mais três brancos portugue<strong>se</strong>s mas com <strong>se</strong>r<strong>em</strong> os inimigos <strong>em</strong> número muitos mais, s<strong>em</strong>comparação, os poucos nossos, e <strong>se</strong>is brancos arcabuzeiros, ajuda<strong>do</strong>s e anima<strong>do</strong>s pelo padrecustódio, lhes tiveram os encontros tão valorosamente, <strong>que</strong> enfim <strong>se</strong> livraram deles, deixan<strong>do</strong>-lhetambém alguns <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us mortos, e feri<strong>do</strong>s, e chegaram ao Ceará, onde o custódio e <strong>se</strong>u companheiroagasalharam com muito respeito e caridade a <strong>do</strong>is Padres da Companhia de Jesus, <strong>que</strong> iam com ogoverna<strong>do</strong>r Francisco Coelho de Carvalho, e dali <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcaram, e partiram to<strong>do</strong>s para oMaranhão, na qual viag<strong>em</strong>, depois de haver<strong>em</strong> passa<strong>do</strong> o Buraco das Tartarugas, por não levar<strong>em</strong>pilotos práticos na costa, foram dar <strong>em</strong> uns baixos com uma grande tormenta <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> viramperdi<strong>do</strong>s, mas quis Nosso Senhor <strong>que</strong> iam as águas de lançamento, com o <strong>que</strong>, e com alijar<strong>em</strong>alguma carga <strong>do</strong>s barcos, puderam nadar, e <strong>se</strong>guir sua viag<strong>em</strong> até o Maranhão, onde o governa<strong>do</strong>r, eos <strong>que</strong> com ele iam, foram b<strong>em</strong> recolhi<strong>do</strong>s, e onde os deixar<strong>em</strong>os a outros historia<strong>do</strong>res, <strong>que</strong>escrevam suas obras. Assim por<strong>que</strong> Sua Majestade t<strong>em</strong> já aparta<strong>do</strong> a<strong>que</strong>le governo deste <strong>do</strong> Brasil,de <strong>que</strong> escrevo, como por<strong>que</strong> eu também vou dan<strong>do</strong> fim a esta História.CAPÍTULO ÚLTIMODe como Diogo Luiz de Oliveira veio governar o Brasil, e <strong>se</strong> foi <strong>se</strong>u antecessor Mathias deAlbu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> para o reino


178Aos 25 de agosto de 1626 partiu de Lisboa Diogo Luiz de Oliveira, <strong>que</strong> havia si<strong>do</strong> mestre decampo <strong>em</strong> Flandres, para vir governar este esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil; chegou a Pernambuco a 7 denov<strong>em</strong>bro, onde deixan<strong>do</strong> as urcas de fora da barra, por<strong>que</strong> não trazia licença para <strong>se</strong> deter aí muitot<strong>em</strong>po, des<strong>em</strong>barcou <strong>em</strong> uma lancha, e foi <strong>se</strong> recolher <strong>em</strong> casa <strong>do</strong> nosso Padre Santo Antônio, <strong>que</strong>t<strong>em</strong>os no Recife, até dia de S. Martinho Bispo, <strong>que</strong> é aos onze, <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> foi para a vilaacompanha<strong>do</strong> com 80 cavaleiros.A entrada dela na porta da alfândega estava um arco triunfal de muito boa arquitetura,orna<strong>do</strong> de bons versos, <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>as, e epigramas <strong>em</strong> <strong>se</strong>u louvor. Dali <strong>se</strong> estendiam duas fileiras desolda<strong>do</strong>s arcabuzeiros ao longo das paredes até a porta da Mi<strong>se</strong>ricórdia, onde estava outro arco nãocom menos perfeição lavra<strong>do</strong>, e orna<strong>do</strong>; neste <strong>se</strong> apeou, e feita a fala por André de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>,verea<strong>do</strong>r mais velho, o levaram debaixo <strong>do</strong> pálio até a igreja Matriz, in<strong>do</strong> diante o mestre de campo,general deste esta<strong>do</strong>, d. Vasco Mascarenhas / ofício novamente cria<strong>do</strong> para o Brasil /, e o capitãomorde Pernambuco André Dias de Franca, e o de Itamaracá Pero da Motta Leite, to<strong>do</strong>s novamentevin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> reino com o mesmo governa<strong>do</strong>r, e o povo to<strong>do</strong> de Olinda com muito aplauso; <strong>do</strong>ndedepois de feita oração, e as cerimônias costumadas, o levaram à casa <strong>do</strong> <strong>se</strong>u antecessor, <strong>que</strong> já lhatinha para isso desocupada, visitaram-<strong>se</strong> ambos muitas vezes com sinais de grande amizade, ot<strong>em</strong>po <strong>que</strong> o governa<strong>do</strong>r ali <strong>se</strong> deteve, <strong>que</strong> foi até aos 20 de dez<strong>em</strong>bro <strong>do</strong> dito ano de 1626; e por<strong>que</strong>lhe veio reca<strong>do</strong> <strong>que</strong> estava na barra de Guiena um navio holandês com duas lanchas, e <strong>que</strong> tomaraum barco de Pero Pires carrega<strong>do</strong> de açúcar, e dera caça a um navio, <strong>que</strong> <strong>se</strong> foi meter na Paraíba, e aoutro <strong>do</strong> Biscainho, <strong>que</strong> vinha carrega<strong>do</strong> de vinhos da ilha da Madeira, determinou ver <strong>se</strong> decaminho podia fazer esta presa, mas o ladrão, quan<strong>do</strong> viu tantos navios, fugiu, e o governa<strong>do</strong>rchegou com os <strong>se</strong>us a salvamento à Bahia, onde a primeira coisa <strong>que</strong> fez foi ordenar <strong>que</strong> <strong>se</strong> fizes<strong>se</strong>um solene ofício pela alma de <strong>se</strong>u irmão, o Morga<strong>do</strong> de Oliveira, na igreja de Nossa Senhora <strong>do</strong>Carmo, onde foi enterra<strong>do</strong>.Dois me<strong>se</strong>s passa<strong>do</strong>s depois da sua chegada, aos 3 de março de 1627 entraram treze naviosholande<strong>se</strong>s, e tomaram 21 nossos, <strong>que</strong> estavam no porto já com três mil caixas de açúcar dentro,eles perderam <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s <strong>se</strong>us, um <strong>do</strong>s quais era a sua capitânia, <strong>em</strong> <strong>que</strong> vinha por general Pero Peres,inglês, <strong>que</strong> na tomada da Bahia viera por almirante.Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong>, ven<strong>do</strong> <strong>que</strong> as urcas, <strong>em</strong> <strong>que</strong> determinava ir-<strong>se</strong> para o reino, eramtomadas <strong>do</strong>s holande<strong>se</strong>s na Bahia, escolheu uma caravela ligeira, na qual depois <strong>que</strong> outros trêsnavios holande<strong>se</strong>s, <strong>que</strong> andaram na barra de Pernambuco, a desocuparam, <strong>se</strong> <strong>em</strong>barcou, e partiu a18 de junho da dita era, e levou <strong>em</strong> sua companhia o <strong>do</strong>utor Bartolomeu Ferreira Lagarto, vigário daParaíba, e administra<strong>do</strong>r, <strong>que</strong> foi destas partes, antes de <strong>se</strong> reunir a jurisdição delas à Mitra, e umreligioso da nossa custódia sacer<strong>do</strong>te.Foi Mathias de Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong> to<strong>do</strong> o t<strong>em</strong>po <strong>que</strong> <strong>se</strong>rviu, assim de capitão-mor de Pernambuco,como de governa<strong>do</strong>r geral <strong>do</strong> Brasil, <strong>que</strong> foram <strong>se</strong>te anos, s<strong>em</strong>pre muito limpo de mãos, nãoaceitan<strong>do</strong> coisa alguma a alguém, n<strong>em</strong> tiran<strong>do</strong> ofícios para dar a <strong>se</strong>us cria<strong>do</strong>s. Nas ocasiões deguerra, e <strong>do</strong> <strong>se</strong>rviço de Sua Majestade foi mui diligente, não <strong>se</strong> poupan<strong>do</strong> de dia, n<strong>em</strong> de noite aotrabalho: nunca quis andar <strong>em</strong> rede, como no Brasil <strong>se</strong> costuma, <strong>se</strong>não a cavalo, ou <strong>em</strong> barcos, equan<strong>do</strong> nestes entrava não <strong>se</strong> as<strong>se</strong>ntava, mas <strong>em</strong> pé os ia ele próprio governan<strong>do</strong>. Tinha grand<strong>em</strong><strong>em</strong>ória, e conhecimento <strong>do</strong>s homens, ainda <strong>que</strong> só uma vez os vis<strong>se</strong>, e ainda <strong>do</strong>s navios, <strong>que</strong> umavez vinham à<strong>que</strong>le porto, tornan<strong>do</strong> outra daí a muito t<strong>em</strong>po, antes de chegar o mestre, dizia cujo<strong>se</strong>ram, e vez houve <strong>que</strong> vin<strong>do</strong> um com o mastro muda<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> o de mui longe com o óculo, dis<strong>se</strong>:a<strong>que</strong>le é tal navio, <strong>que</strong> aqui veio há um ano, mas traz já outro mastro; e assim o afirmou o mestredepois <strong>que</strong> chegou, <strong>se</strong>n<strong>do</strong> pergunta<strong>do</strong>.Teve boa fortuna <strong>em</strong> <strong>se</strong>u governo, por <strong>se</strong>r<strong>em</strong> os t<strong>em</strong>pos tão infortúnios e calamitosos, e naviag<strong>em</strong> o <strong>livro</strong>u Deus de inumeráveis corsários, de <strong>que</strong> o mar estava povoa<strong>do</strong>, levan<strong>do</strong>-o s<strong>em</strong>pre a


179salvamento <strong>em</strong> 52 dias a Caminha, onde achou o du<strong>que</strong> dela, e marquês de vila Real d. Miguel deMenezes, <strong>se</strong>u parente, onde os deixar<strong>em</strong>os, e darei fim a esta História, por<strong>que</strong> sou de 63, e é ját<strong>em</strong>po de tratar só da minha vida, e não das alheias.FIM

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