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JUNHO 2016

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26 Lusitano de Zurique Língua Portuguesa<br />

Junho <strong>2016</strong><br />

Marcelo Rebelo de Sousa e o Acordo<br />

Ortográfico de 1990<br />

Francisco Miguel Valada (*)<br />

Há algumas semanas, soube<br />

que Marcelo Rebelo de Sousa,<br />

pouco depois de ter tomado<br />

posse como Presidente da<br />

República, decidira reabrir o<br />

debate sobre o Acordo Ortográfico<br />

de 1990 (doravante,<br />

AO90). De facto, a confirmar-<br />

-se tal informação, tratar-se-<br />

-ia de atitude, além de merecedora<br />

de várias ovações de<br />

pé, em absoluta harmonia<br />

com um episódio que não<br />

passara despercebido a quem<br />

sobre esta matéria se tem<br />

debruçado e pronunciado durante<br />

os últimos anos: dias<br />

antes da tomada de posse,<br />

em artigo publicado no Expresso,<br />

Rebelo de Sousa não<br />

adoptara o AO90. Entretanto,<br />

durante os últimos dias, notícias<br />

na comunicação social<br />

têm confirmado essa vontade<br />

de o Presidente da República<br />

reavaliar o ponto da situação<br />

ortográfica.<br />

Contudo, neste contexto,<br />

“reabrir o debate” não será a<br />

opção mais feliz, pois existe<br />

um prefixo a mais. Salvo<br />

iniciativas pontuais (uns colóquios<br />

aqui, umas audições<br />

ali, umas audiências acolá), o<br />

debate sobre o AO90 nunca<br />

foi aberto, por isso, é um erro<br />

mencionar-se uma reabertura.<br />

Aquilo que houve foi uma imposição.<br />

Aliás, a consequência<br />

imediata da escassez de<br />

sessões de esclarecimento e<br />

da abundância de propaganda<br />

é uma maior permeabilidade<br />

de leitores de português<br />

europeu em relação a<br />

opiniões, digamos, peculiares.<br />

Por exemplo, há quem<br />

afirme publicamente que «se<br />

disser Egito escreve sem ‘p’,<br />

mas se disser Egipto escreve<br />

com ‘p’» ([i])»; há quem divulgue<br />

a ideia de a “dupla grafia”<br />

ser “recorrente na história da<br />

língua portuguesa” e apresente<br />

exemplos tão sui generis<br />

como “regime”/“regímen”,<br />

“areia”/“arena”,<br />

“imprimido”/“impresso” ou<br />

“olho”/“óculo” ([ii]); há igualmente<br />

quem escreva “agora<br />

‘facto’ é igual a fato (de<br />

roupa)” ([iii]). Convém ter<br />

bastante cautela com estas<br />

opiniões e só um debate esclarecedor<br />

dará a possibilidade<br />

de explicar o que está em<br />

causa — além de permitir aos<br />

autores destas opiniões virem<br />

a terreiro defender-se ou<br />

retractar-se.<br />

Convém igualmente que haja,<br />

por fim, um órgão de soberania<br />

a pôr os pontos nos ii<br />

em relação a esta matéria<br />

e a tomar uma atitude responsável,<br />

sendo muito provavelmente<br />

o Presidente da<br />

República o mais indicado,<br />

porque se sente obrigado a<br />

praticar algo que não prega,<br />

isto é, adopta uma grafia para<br />

inglês ver. Depois da confidência<br />

de Cavaco Silva (com<br />

a agravante de ter culpas no<br />

cartório) – «Todos os meus<br />

discursos saem com o acordo<br />

ortográfico mas eu, quando<br />

estou a escrever em casa,<br />

tenho alguma dificuldade e<br />

mantenho aquilo que aprendi<br />

na escola» ([iv]) temos agora<br />

Rebelo de Sousa a afirmar: “o<br />

Presidente da República, nos<br />

documentos oficiais, tem de<br />

seguir o Acordo Ortográfico.<br />

Mas o cidadão Marcelo Rebelo<br />

de Sousa escrevia tal como<br />

escrevem os moçambicanos,<br />

que não é de acordo com o<br />

Acordo Ortográfico” ([v]).<br />

Na peça da RTP ([vi]), é perceptível<br />

que esta afirmação<br />

de Rebelo de Sousa provocou<br />

o riso de um dos interlocutores.<br />

Não percebi a piada. Isto<br />

é, o riso foi perceptível, mas a<br />

piada não foi: porque existe<br />

uma relação entre perceptível<br />

e perceber, porque perceptível<br />

é aquilo que pode ser percebido<br />

e percebido é o que se<br />

percebeu e perceber é ter a<br />

percepção (de algo). O mesmo<br />

acontece com o que pode ser<br />

recebido, pois pode receber-<br />

-se e receber é dar recepção.<br />

O mesmo acontece com concebido,<br />

conceber e concepção.<br />

Por isso existe aquele ‘p’,<br />

de -pç-, em concepção, per-

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