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OPINIÃO<br />
Ideia de mim, 2<br />
(continuação)<br />
Penso que na primeira<br />
infância não tinha ainda<br />
muito bem os pés no<br />
chão. Vivia naquele limbo em que<br />
tudo é possível, em que se conseguem<br />
sentir as coisas bem longe<br />
das prisões do nosso raciocínio<br />
lógico e domesticado. Aquele<br />
raciocínio que a escola e a vida<br />
nos ensinam a desenvolver, esquecendo-nos<br />
nós das outras capacidades<br />
que entretanto se perdem<br />
pelo caminho. Lembro-me perfeitamente<br />
de estar ao lado do D.<br />
Afonso Henriques na Batalha de<br />
São Mamede, recordo-me detalhadamente<br />
de estar com João Gonçalves<br />
Zarco nas caravelas das<br />
descobertas, lembro-me de estar<br />
com a Alice no país das maravilhas<br />
e de coabitar a ilha dos cinco<br />
que voltam à ilha. Mas não<br />
me recordo de ter três meses e a<br />
minha mãe me cantar canções de<br />
embalar, só mais tarde soube que<br />
Lembro-me<br />
perfeitamente de<br />
estar ao lado do D.<br />
Afonso Henriques<br />
na Batalha de São<br />
Mamede, recordome<br />
detalhadamente<br />
de estar com João<br />
Gonçalves Zarco<br />
nas caravelas das<br />
descobertas, lembrome<br />
de estar com a Alice<br />
no país das maravilhas<br />
e de coabitar a ilha dos<br />
cinco que voltam à ilha.<br />
Mas não me recordo<br />
de ter três meses e a<br />
minha mãe me cantar<br />
canções de embalar,<br />
só mais tarde soube<br />
que as cantava e as<br />
decorei para as repetir<br />
às minhas bonecas e<br />
logo a seguir aos meus<br />
filhos bebés.<br />
as cantava e as decorei para as<br />
repetir às minhas bonecas e logo a<br />
seguir aos meus filhos bebés. Por<br />
isso é assim mesmo. A bem ver,<br />
não sei quando comecei. As coisas<br />
contadas pelas mães e tias baralharam-se<br />
na minha cabeça, não<br />
sabendo já eu hoje, de certeza, se<br />
estava lá ou não quando as histórias<br />
aconteceram. A verdade é que<br />
dessa altura não me lembro muito<br />
bem de mim. Até que os meus pais<br />
decidiram presentear-me com um<br />
irmão de carne e osso, tive como<br />
companheiro um irmão imaginário.<br />
Chamava-se Rino. Com ele<br />
vivia intensamente as aventuras do<br />
jardim, com ele olhava para o cimo<br />
das árvores e imaginava o país das<br />
maravilhas que ficava lá no alto.<br />
Com ele corria e jogava às escondidas,<br />
era ele o parceiro de jogos e<br />
de brincadeiras mil, com as bonecas,<br />
com os triciclos, com as bolas<br />
e os carrinhos, com os armários<br />
fechados que eram a entrada para<br />
países extraordinários como nos<br />
livros que me liam. Ficava ofendida<br />
com a minha mãe quando ela<br />
não punha um lugar para o Rino à<br />
mesa, e porque ela o ignorava sistematicamente.<br />
Os meus pais acharam<br />
que eu era uma criança estranha,<br />
e o melhor seria personalizar<br />
o Rino. Eles deviam estar certos,<br />
porque realmente depois do meu<br />
irmão nascer o Rino desapareceu.<br />
Aos poucos e poucos fui acordando<br />
para o mundo, pondo enfim os pés<br />
na terra e sentindo as coisas como<br />
as pessoas grandes queriam que eu<br />
as sentisse. É uma batalha perdida<br />
à nascença. Façamos o que fizermos,<br />
acabamos por ter de acordar.<br />
Ou então permanecemos no limbo<br />
e internam-nos como loucos. Mas<br />
há sempre aquela habilidade desse<br />
conservar teimosamente um pouco<br />
do limbo dentro de nós, sem deixar<br />
que os outros percebam. ><br />
Teresa Brazão<br />
Pintora<br />
10<br />
saber | Outubro | 2016