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er223

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OPINIÃO<br />

Ideia de mim, 2<br />

(continuação)<br />

Penso que na primeira<br />

infância não tinha ainda<br />

muito bem os pés no<br />

chão. Vivia naquele limbo em que<br />

tudo é possível, em que se conseguem<br />

sentir as coisas bem longe<br />

das prisões do nosso raciocínio<br />

lógico e domesticado. Aquele<br />

raciocínio que a escola e a vida<br />

nos ensinam a desenvolver, esquecendo-nos<br />

nós das outras capacidades<br />

que entretanto se perdem<br />

pelo caminho. Lembro-me perfeitamente<br />

de estar ao lado do D.<br />

Afonso Henriques na Batalha de<br />

São Mamede, recordo-me detalhadamente<br />

de estar com João Gonçalves<br />

Zarco nas caravelas das<br />

descobertas, lembro-me de estar<br />

com a Alice no país das maravilhas<br />

e de coabitar a ilha dos cinco<br />

que voltam à ilha. Mas não<br />

me recordo de ter três meses e a<br />

minha mãe me cantar canções de<br />

embalar, só mais tarde soube que<br />

Lembro-me<br />

perfeitamente de<br />

estar ao lado do D.<br />

Afonso Henriques<br />

na Batalha de São<br />

Mamede, recordome<br />

detalhadamente<br />

de estar com João<br />

Gonçalves Zarco<br />

nas caravelas das<br />

descobertas, lembrome<br />

de estar com a Alice<br />

no país das maravilhas<br />

e de coabitar a ilha dos<br />

cinco que voltam à ilha.<br />

Mas não me recordo<br />

de ter três meses e a<br />

minha mãe me cantar<br />

canções de embalar,<br />

só mais tarde soube<br />

que as cantava e as<br />

decorei para as repetir<br />

às minhas bonecas e<br />

logo a seguir aos meus<br />

filhos bebés.<br />

as cantava e as decorei para as<br />

repetir às minhas bonecas e logo a<br />

seguir aos meus filhos bebés. Por<br />

isso é assim mesmo. A bem ver,<br />

não sei quando comecei. As coisas<br />

contadas pelas mães e tias baralharam-se<br />

na minha cabeça, não<br />

sabendo já eu hoje, de certeza, se<br />

estava lá ou não quando as histórias<br />

aconteceram. A verdade é que<br />

dessa altura não me lembro muito<br />

bem de mim. Até que os meus pais<br />

decidiram presentear-me com um<br />

irmão de carne e osso, tive como<br />

companheiro um irmão imaginário.<br />

Chamava-se Rino. Com ele<br />

vivia intensamente as aventuras do<br />

jardim, com ele olhava para o cimo<br />

das árvores e imaginava o país das<br />

maravilhas que ficava lá no alto.<br />

Com ele corria e jogava às escondidas,<br />

era ele o parceiro de jogos e<br />

de brincadeiras mil, com as bonecas,<br />

com os triciclos, com as bolas<br />

e os carrinhos, com os armários<br />

fechados que eram a entrada para<br />

países extraordinários como nos<br />

livros que me liam. Ficava ofendida<br />

com a minha mãe quando ela<br />

não punha um lugar para o Rino à<br />

mesa, e porque ela o ignorava sistematicamente.<br />

Os meus pais acharam<br />

que eu era uma criança estranha,<br />

e o melhor seria personalizar<br />

o Rino. Eles deviam estar certos,<br />

porque realmente depois do meu<br />

irmão nascer o Rino desapareceu.<br />

Aos poucos e poucos fui acordando<br />

para o mundo, pondo enfim os pés<br />

na terra e sentindo as coisas como<br />

as pessoas grandes queriam que eu<br />

as sentisse. É uma batalha perdida<br />

à nascença. Façamos o que fizermos,<br />

acabamos por ter de acordar.<br />

Ou então permanecemos no limbo<br />

e internam-nos como loucos. Mas<br />

há sempre aquela habilidade desse<br />

conservar teimosamente um pouco<br />

do limbo dentro de nós, sem deixar<br />

que os outros percebam. ><br />

Teresa Brazão<br />

Pintora<br />

10<br />

saber | Outubro | 2016

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