Chicos 47 21.12.2016
e-zine literária de Cataguases - MG
e-zine literária de Cataguases - MG
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21 de dezembro 2016<br />
<strong>47</strong><br />
Prosa e Verso<br />
em<br />
Cataguases
N. <strong>47</strong><br />
21 de dezembro de 2016<br />
e-zine de literatura e ideias<br />
de Cataguases – MG<br />
Um dedo de prosa<br />
Esta é a nossa edição <strong>47</strong>.<br />
<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos<br />
meios digitais. Envie-nos teu e-mail e teremos<br />
prazer em enviar-te nossas edições.<br />
A linha editorial é fundamentalmente voltada para<br />
a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu<br />
entorno. Procura, manter em cada um dos seus<br />
números uma diversidade temática.<br />
Ronaldo Werneck é o poeta que homenageamos<br />
nesta edição. Publicamos alguns poemas de sua<br />
bela obra.<br />
Seguimos homenageando Álvaro Antunes e seus<br />
amigos de Além Paraíba. Publicamos a tradução<br />
feita cem anos após Ezra Pound lavrar os versos.<br />
Em Clips - Tem o escultor José Heitor e os livros<br />
lançados pelos amigos da e-zine têm espaço.<br />
Esta edição de início de verão, é a última de<br />
2016. Um feliz natal para todos! E até 2017.<br />
Capa: Foto Vicente Costa<br />
Divirtam-se!<br />
Os <strong>Chicos</strong><br />
Editores:<br />
Emerson Teixeira Cardoso<br />
José Antonio Pereira<br />
Colaboradores:<br />
Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />
Fotografia - Vicente Costa<br />
Ilustrações - Altamir Soares<br />
cataletras.chicos@gmail.com<br />
http://chicoscataletras.blogspot.com/
Sumário<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
RONALDO WERNECK<br />
Alguma poesia 05<br />
FLAUSINA MÁRCIA<br />
Dor 24<br />
LUIZ LOPEZ<br />
Mariana e outros poemas 26<br />
ÁLVARO ANTUNES<br />
Ezra Pound - De meia idade 35<br />
VERA INBERN<br />
Cinco noites e dias 39<br />
CLÁUDIO SESÍN<br />
A eternidade do outono e outros poemas 41<br />
MANUEL BANDEIRA<br />
Orestes 44<br />
EMERSON TEIXEIRA CARDOSO<br />
O vitoriano implacável 46<br />
RONALDO WERNECK<br />
Slotti: o traço interrompido 48<br />
JOSÉ ANTONIO PEREIRA<br />
Nem soberana nem vidente, apenas Miriã a sorridente 52<br />
ANTÔNIO JAIME SOARES<br />
Laranjal era uma farra 53<br />
LUIZ RUFFATO<br />
Lendo os clássicos 55<br />
RONALDO CAGIANO<br />
Catarse do luto, exorcismo da perda 57<br />
ADELTO GONÇALVES<br />
Um romance da alma uruguaia 59<br />
W. J. SOLHA<br />
Para fugir dos vivos - romance de Eltânia André 62<br />
CLIPS<br />
José Heitor e livros... 63
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Ronaldo Werneck<br />
Nasceu em Cataguases - MG, onde mora atualmente.<br />
Ronaldo Werneck nasceu em<br />
Cataguases-MG, morou um ano em Salvador<br />
(Bahia) por mais de 30 anos no<br />
Rio de Janeiro e voltou a viver na cidade<br />
natal desde 1998.<br />
Poeta, jornalista e crítico, colaborou<br />
com vários jornais e revistas cariocas:<br />
Jornal do Brasil, Pasquim, Diário de Notícias,<br />
Última Hora, Revista Vozes, Revista<br />
Poesia Sempre e Revista História,<br />
ambas da Biblioteca Nacional. Editor de<br />
Suplementos Literários, ensaísta, tradutor<br />
e crítico de literatura, cinema e artes<br />
plásticas, tem textos e artigos publicados<br />
em vários veículos da mídia. Desde<br />
os anos 1990, assina a coluna "Há Controvérsias",<br />
publicada em vários blogs e<br />
no Jornal O Liberal, de Cabo Verde. É<br />
membro do Pen Clube do Brasil.<br />
Co-editor/fundador, junto com o poeta<br />
Joaquim Branco, de O Muro (1962), SLD<br />
(1968), Totem (1974) e Cataguarte (anos<br />
80/90), jornais do movimento de renovação/experimentação<br />
literária de Cataguases.<br />
Nos anos 60, integrou o grupo<br />
do Poema Processo e foi um dos organizadores<br />
do Festival Audiovisual de Cataguases<br />
(música & poemas visuais) em<br />
suas duas versões (1969-1970).<br />
Participou de várias antologias poéticas,<br />
sendo as mais recentes A Poesia Mineira<br />
no Século XX (1998) e Poemas Cariocas<br />
(2000).<br />
Publicou os livros de poesias: Selva Selvaggia<br />
(1976), Pomba Poema (1977), Minas<br />
em mim e o mar esse trem azul<br />
(1999), Noite Americana / Doris: Day by<br />
Night (2006), Minerar O Branco (2008),<br />
Cataminas Pomba e Outros Rios (2012)<br />
O Mar de Outrora e Poemas de Agora<br />
(2014) os de prosa: Há Controvérsias 1<br />
1987—2003 (2009) e Há controvérsias 2<br />
(2011)<br />
Em 1997, lançou Cataguases é Cachoeira,<br />
homenagem aos 100 Anos de Humberto<br />
Mauro.<br />
Foto de Andrea Motta
A Estrada<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
como a faca<br />
o corpo<br />
a estrada penetra<br />
o sertão e corta<br />
seus intestinos<br />
como a faca<br />
o morto<br />
como a faca<br />
a estrada se estende<br />
como a faca<br />
e seu desígnio<br />
como o corpo<br />
e seu signo<br />
como o corpo<br />
e seu signo<br />
a estrada<br />
é construção do silêncio<br />
e compõe a paisagem<br />
como o corpo<br />
no sertão<br />
como o morto<br />
no chão<br />
como a faca<br />
a estrada brilha<br />
ao sol argamassado<br />
como a faca<br />
no silêncio<br />
de seus gumes prateados<br />
a estrada o morto a faca o sertão<br />
são palavras planas<br />
habitadas por sol
23-10-68<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
hoje tenho 25 anos<br />
e queria escrever ócio<br />
mas minhas palavras são de aço<br />
hoje tenho 25 anos<br />
e a poesia é difícil<br />
mas o poema é meu ofício<br />
hoje tenho 25 anos<br />
e a poesia me chama<br />
faço o poema como quem ama<br />
Matinal<br />
o rosto contra o espelho<br />
gilete ávida percorrendo<br />
áspera<br />
a face marcada<br />
olhos gastos, óculos castos<br />
mergulho no dia claro<br />
aventura recomeçada<br />
agora e a cada hora
Classroom<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
comment ça va vôtre anglais, ma chérie?<br />
do you remember, my darling?<br />
trocávamos as línguas<br />
lúdico logro<br />
como se trocam as<br />
línguas lúbrico jogo<br />
mais oui, I love you!<br />
nossas bocas estrangeiras<br />
nossas bocas<br />
p e r c o r r e n d o<br />
de um lance<br />
todo o midi-de-france<br />
nossas bocas<br />
p e r c o r r e n d o<br />
úmidas<br />
the british plains<br />
nossas bocas<br />
túmidas<br />
p e r c o r r e n d o<br />
espelho convexo<br />
toda a geografia<br />
do sexo<br />
mais oui<br />
that<br />
pour toujours<br />
I´ll never forget
Círculo<br />
e surge teu dorso dourado<br />
e vem com a aurora teu rosto<br />
e agora e ainda uma vez e outra mais<br />
aqui estamos<br />
no fragor de lençóis<br />
emaranhados<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
alvos<br />
nus<br />
abandonados<br />
aqui estamos<br />
mar de arranhões<br />
lentas mordidas<br />
e o relógio tique-<br />
tapeando o tempo<br />
alvos<br />
nus emaranhados<br />
aqui estamos<br />
mar de arranhões<br />
lentas mordidas<br />
e o amor truquetruncando<br />
o tédio<br />
e o corpo assimilado<br />
e surge teu dorso dourado<br />
e vem com a aurora teu rosto<br />
e ainda e ainda uma vez e
Construção<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
é com meus dentes<br />
o longo lento<br />
ardentes<br />
lânguido lamento<br />
que vou te morder<br />
AMOR<br />
é com minha unha<br />
morto motor<br />
afiada<br />
lambEND<br />
c corte feito espada<br />
o AMOR<br />
é com minhas coxas<br />
e com minha língua<br />
entre tuas coxas<br />
e lavra o grito<br />
o jorro<br />
larva na garganta<br />
o jogo<br />
rito ritual<br />
v´entre<br />
tua ávida fruta<br />
a lavra a palavra<br />
boca maçã<br />
amor lambEND<br />
triângulo<br />
O AMOR<br />
selvagem<br />
luscofuscando a manhã<br />
penetrada/consumida<br />
é com meu braço<br />
amor ROMÃ<br />
lasso o abraço<br />
o longo lamento<br />
laço<br />
e tuas coxas<br />
onde me desfaço<br />
lasso entre meus dentes<br />
é com minha língua<br />
e unha afiada<br />
que mordo<br />
arranho o espanto<br />
é com minhas coxas<br />
entre tuas coxas<br />
que construo a manhã<br />
e o prazer de meu canto
Trem de natal<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
tudo tem tudo trem<br />
do ano que vai e vem<br />
pra você: este brilho<br />
viajor, andarilho<br />
ano que vem e cai<br />
agora: berço-embalo<br />
tudo sim tudo claro<br />
tudo que vem e vai<br />
nada neste natal<br />
nada nada fará<br />
nada bem nada mal<br />
nada ao tudo faltar<br />
tudo improvisar
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
tudo novo janeiros<br />
tudo ao deus dará<br />
tudo de novo: ei-los<br />
os dias sem estepe<br />
um sambinha de breque<br />
tudo salamaleques
Vem da Mata o menino<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
vem da mata o menino<br />
de mim das minas claras<br />
de miniminas raras<br />
vem da mata o menino<br />
no alto-gerais traços<br />
tontos trecos e trapos<br />
vem da mata o menino<br />
solta-se das gerais<br />
de si minas não mais<br />
vem da mata o menino<br />
marilumina a lua<br />
que blue e bamba atua
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
vem da mata o menino<br />
dobra a noite a montanha<br />
sobre o céu sol de antanho<br />
vem da mata o menino<br />
degredado vem veloz<br />
trensloucado empós<br />
vem da mata o menino<br />
vem-vai-vai-vem agora<br />
verde mato de outrora<br />
vem da mata o menino<br />
vem trem-do-mato tralhas<br />
de minas imantadas
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
vem da mata o menino<br />
alto mato seu trem<br />
trem-do-mato trem-trem<br />
vem da mata o menino<br />
e do mato no asfalto<br />
mata angústia mato
Pomba poema<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
(Fragmento)<br />
ou antes<br />
ainda não existia a poesia<br />
estava<br />
toda ali<br />
roubando pães na rua<br />
do sobe-e-desce<br />
anunciando a manhã como o leite<br />
escorrendo<br />
circunspecta<br />
através do relógio<br />
imenso<br />
entrevisto pelas frestas<br />
da casa e do tempo<br />
onde laura do carmo<br />
ensaiava acordes para o jazz-band<br />
o violino mesclado<br />
aos cascos da manhã<br />
sem truques<br />
sem freios<br />
sem truques<br />
cortando<br />
o cotidiano
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
cota de dano<br />
a poesia<br />
sangrando suada<br />
veloz singrando<br />
num só arremesso<br />
singrando<br />
como bola de pano<br />
estava ali<br />
a poesia<br />
antes
Cena 2<br />
Rota: Fellini<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
tudo que em mim criança<br />
e circo e clowns e dança<br />
tudo que em mim convida<br />
para a festa da vida<br />
e roda roda-rota<br />
rota-rota de acordes<br />
tudo que me recorde<br />
tutto che me a m'arcord<br />
ch'è una festa la vita<br />
os pés sujos de infância<br />
têm-pó e água límpida<br />
as mãos sujas de dolce<br />
vita em meio: estrada<br />
rota-receio-ponte<br />
de vida e vitelloni<br />
alegria que dança<br />
tutto tutto que em mim<br />
rimini-relembrança<br />
minas não mais oprime<br />
tudo que em mim menino<br />
rota-rito-fellini
Deo gratias<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
a cada dia<br />
gratias<br />
pela precipitada<br />
oclusão<br />
das coronárias<br />
gratias<br />
deo gratias<br />
pela sangrenta liturgia da alvorada<br />
por essa rara obrigação<br />
de recomeço<br />
gratias<br />
pelo trôpego pulsar de tropeços<br />
deo gratias<br />
pelo não de nadas<br />
o mundo de areia<br />
e veredas de veias avariadas<br />
gratias<br />
gratias<br />
deo<br />
deo<br />
deo<br />
gratias<br />
jucundas e diárias<br />
pelas caminhadas<br />
em meio ao mar de bundas várias
Preto nu branco<br />
Tudo bem oculto<br />
Sob as aparências<br />
De água-forte simples:<br />
De face, de flanco<br />
O preto no branco.<br />
Manuel Bandeira<br />
não leia<br />
de arranco:<br />
opresso é<br />
o poema:<br />
eco<br />
mas a poesia<br />
salta<br />
do branco<br />
– ecco!<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
tato nas tetas<br />
– e aproveite:<br />
são<br />
compassos<br />
os pretos<br />
dispersos<br />
nu<br />
branco<br />
retretas<br />
leite<br />
submerso
catar-se<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
terra<br />
de<br />
ascânio lopes enrique de resende<br />
guilhermino cesar humberto mauro<br />
patápio silva rosário fusco<br />
gente<br />
boa<br />
impropria<br />
mente<br />
nenhum deles<br />
al di là delle stelle<br />
nenhum<br />
de lá é<br />
pois<br />
ninguém<br />
de Cataguases<br />
vem<br />
ou quase<br />
pois<br />
ora pois ficou o trilho<br />
pois-pois ferrou-se o boi<br />
réstias de rio rastro de pass(t)agem<br />
piau capim capiau capoeira<br />
pois nem trem mais nem tem<br />
nem pedreira nem diamantina jaça<br />
nem tudo volta à sua volta<br />
paisagem<br />
brilho<br />
fumaça
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
depois pouco importa<br />
nada de trem não tema<br />
adie(u)a adrenalina<br />
também<br />
pouco exporta<br />
sob pena<br />
de Leopoldina<br />
ou outros prantos<br />
de espermanescer<br />
ou outro lu(g)ar<br />
- deixa falar!<br />
onde se erra<br />
se desterra<br />
tanta<br />
de<br />
augusto dos anjos<br />
al di là<br />
de outros tantos<br />
enganos<br />
e de outros e outros<br />
anjos tontos saltimbancos<br />
pero paraibanos<br />
- xaparlà!<br />
(*) Os poetas cataguasenses Francisco Marcelo Cabral e Maria do Carmo/Carminha<br />
Ferreira. Todo mundo é de Cataguases. Inclusive quem não é. O poema diz melhor.
O poema<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
"E, dentro em nós, uma sombra infinitamente maior"<br />
Ascânio Lopes, "Serão do Menino Pobre".<br />
ressurge ascânio estranho e triste<br />
suspiro, sombras de um serão<br />
antigo-atávico: de antanho<br />
vinte e três verdes vôos vãos<br />
o sol em volta, solidário<br />
sobrado só, sol de subúrbio<br />
pálido sol, quatorzevoltas<br />
que em si assomam, sanatório<br />
sereno — sol sombrio e seco<br />
som que ressoa triste-estranho<br />
escarro-toss-toss-escansão<br />
ascaniascaniascaniascânio
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Flausina Márcia<br />
Flausina Márcia da Silva poeta nascida em<br />
Cataguases e radicada em Belo Horizonte onde<br />
trabalhou na Secretaria de Cultura de Minas<br />
Gerais.<br />
Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua<br />
Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives<br />
(2014).<br />
Dor<br />
Tudo que faço<br />
é meu poema<br />
tudo que vivo<br />
sonho<br />
choro<br />
Poesia é tudo<br />
que vejo<br />
escuto<br />
Desejo<br />
Lamento estar só<br />
insólita<br />
cheia de pesadelos
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Tudo porque<br />
o sol se inflama<br />
o amor me chama<br />
a lua nunca vai<br />
embora<br />
Chora o mar<br />
convulsivas ondas<br />
geme o vento<br />
letras de música<br />
sopra um deus<br />
o saxofone<br />
Alguém sofre agora<br />
e não estou lá, que<br />
poderia o quê...<br />
Neste universo,<br />
só o verso<br />
não perde a voz.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Luiz Lopez<br />
Nasceu em Cataguases, MG. Formado em Letras,<br />
pela UERJ. Poeta, escritor e artista plástico.<br />
Realizou dezenas de exposições na região<br />
Sudeste. Morou 17 anos no Rio de Janeiro e<br />
lecionou Língua Portuguesa, Literatura e Redação<br />
em escolas públicas e privadas. De volta a<br />
sua terra natal em 1997, continuou seu trabalho<br />
no magistério e nas artes visuais. Tem alguns<br />
livros inéditos e três livros infanto-juvenis<br />
publicados: A Árvore-Gente (1999), O Azul da<br />
Poesia (2011) e Gol de Poesia (2014), os dois<br />
últimos patrocinados pela Lei Municipal de Cultura<br />
Ascânio Lopes. Em 2011, publicou livrocatálogo<br />
com o resumo de suas obras de arte,<br />
também pela lei de incentivo à cultura do município.<br />
Nas escolas em que atuou, publicou alguns<br />
livros com textos dos alunos.<br />
Mariana<br />
Queria escrever-lhe o nome real,<br />
Vila, cidade mineira, capital colonial,<br />
Mina, escrava, mulher,<br />
Matriarca dos sonhos de ouro,<br />
Procissão, carnaval, ferro e fé,<br />
Encravada nas flâmeas montanhas do corpo.<br />
Queria fazer-lhe humildes versos,<br />
Mine(i)rando almas nas flores da História,<br />
Mas o sino, a igreja, as casas, o gado, o leite,<br />
a lousa, as árvores, o fruto, os peixes, a bola,<br />
a praça, as memórias, as folias, o deleite<br />
Foram esfacelados, varridos, soterrados,<br />
No vale de lameira, lágrimas e insânia.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Queria apenas uma canção,<br />
Ou uma estrofe apenas, com uma rima rica,<br />
como sua mineração,<br />
Que revolvesse viva a jazida, em diamante,<br />
da tumba de lama,<br />
Em sua beleza surda, muda, morta, âmbar!<br />
Aceitaria de bom grado uma rima pobre.<br />
Pobre, Mariana, que carrega na entranha,<br />
A sina, a chaga, a hecatombe, a assassina sanha<br />
da inescrupulosa e fria lâmina do capital,<br />
Degolando a vida em vida, em nome do mísero metal,<br />
Amortalhando o agora e o coração do amanhã!<br />
Uma palavra apenas, um sopro divino queria,<br />
Que amainasse a dor que em meu peito punge,<br />
Impotente cadáver-errante que me definho,<br />
Para quem só há misericórdia e eterno luto.<br />
Pobre, Mariana, submersa num mar de zinco,<br />
Arsênio, chumbo, cobre, metal vário,<br />
Que assolou o vale e jogou a vila na vala vil,<br />
Só restando a lúgubre vela, o lamento, o covil,<br />
O lancinante grito rouco de horror na sarjeta ecoado!
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
E a poesia fez-se réquiem, ode à destruição,<br />
Ode ao holocausto no altar do capital,<br />
Ode ao sangue vegetal, animal, mineral,<br />
Derramado no vale por quem nada Vale<br />
Que, privada, não vale os dólares<br />
E as fezes que intestinam seu lucro abjeto.<br />
Janeiro, 2016
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
JÁ É PRIMAVERA... NÃO HAVERÁ PRIMAVERA!<br />
Já é primavera.<br />
Planta alguma ri seu riso de flor.<br />
No ar estiolado, pairam miasmas<br />
Que sustêm um silêncio macabro,<br />
Entorpecido por falsas imagens e espetáculos.<br />
Homens cegos, sem o saberem,<br />
Caducam odiosas palavras, programados a<br />
Não verem mais que ilusões e miragens,<br />
Como se verdades fossem.<br />
(Gado vestido dos currais dos Deuses!)<br />
Das folhas dos dias o verde despencou.<br />
Lágrimas germinam de uma árvore<br />
Em que a ira frutifica.<br />
Ressecou a figueira através do fogo da maldade.<br />
Os olhos da mentira reluzem, retumbam<br />
Na tumba da ingênua e pobre verdade.<br />
Umas após outras as casas tombam<br />
Sob os dias noturnos como castelo de cartas<br />
No deserto de areias.<br />
Suas janelas partidas apontam para a ponte<br />
De um pretérito de breu, medievo,
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Com pilastras de nuvens sobre o abismo de trevas.<br />
A primavera - pétala decepada da folhinha<br />
Do tempo -, chora sua cor e seu perfume<br />
Mortos, como se fruto maldito fosse ou<br />
Necrose de um corpo em chagas.<br />
Nas ruas, os sorrisos andam soturnos das bocas.<br />
Com olhos de ver, as poucas pessoas...<br />
Fenecem-lhes as derradeiras esperanças de luz.<br />
Os lábios do sol mordem a terra sob o arco do céu.<br />
Nos canteiros da praça, onde um dia<br />
As flores, em algazarra, brincaram seu carnaval<br />
De cores e fragrâncias; da praça, nos jardins,<br />
A frágil democracia, sob a guilhotina de agosto,<br />
Ensanguentada jaz, o corpo esfacelado:<br />
Cinquenta e cinco lanças trespassando do povo o coração,<br />
Cinquenta e cinco lanças de injustiça e aço,<br />
Cinquenta e cinco lanças de ódio, poder e traição.<br />
22.09.2016
DIÁRIOS DE RUA<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
I<br />
PROFESSORES, PRESENTE!<br />
(Policiais em confronto com os professores em Curitiba. 29/04/2015)<br />
Nas avenidas e praças pisoteadas de minha alma<br />
Cavalaria<br />
Coro sinistro de cães<br />
Tropa de choque<br />
Policiais cospem balas de borracha.<br />
(Balas vetoram o humano alvo<br />
Num movimento uniformemente acelerado.<br />
Borracha não apaga a memória da História).<br />
O pelotão de choque<br />
Coturna explosões na carne crua.<br />
Balas ribombam, pipocam, trovejam,<br />
Estrondam o vidro do presente.<br />
Na brasa dos olhos, gás de pimenta flameja.<br />
Tumulto e correria na<br />
Geografia de concreto, asfalto e ódio.<br />
Perdidas nuvens de vozes anônimas.<br />
Corpos estendidos plantam<br />
Flores carmim nas calçadas da praça.<br />
Dores que se entrecruzam.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Batalhões avançam por ruas<br />
Que se encruzilham medrosas e nuas.<br />
A atrocidade multiplica a intolerância,<br />
Que soletra na dilacerada cartilha<br />
Da professora.<br />
O entardecer urra<br />
Sem braços para acudir.<br />
Asfixiado, o sino da matriz na torre<br />
Emudece de pavor e tenta contabilizar,<br />
Com os olhos esbugalhados, os feridos.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
II<br />
ALUNOS, PRESENTE!<br />
(Estudantes protestam por merenda em São Paulo- 10/05/2016)<br />
Um atroz trovão de balas de borracha<br />
Troa na praça e nas avenidas<br />
Des<br />
tro<br />
ça<br />
das<br />
De minha alma.<br />
O choque dos cassetetes da tropa de choque<br />
Eletrocuta e ensandece os ouvidos pueris.<br />
Nos lombos dos alunos, a borracha víbora no ar.<br />
Gás de pimenta flameja a indefesa<br />
Menina dos olhos nos olhos da menina<br />
Que clama por merenda na escola.<br />
Charlam e dardejam os tucanos na floresta<br />
De aço e concreto, estilhaçando o vidro<br />
Da esperança no rito de passagem.<br />
A tarde brame sob os coices da intolerância.<br />
Algemada e abatida cai por terra<br />
E é levada para o camburão<br />
Junto aos outros presos.<br />
No alto da torre, o sino da igreja<br />
Olhos esmigalhados, enforca-se<br />
De pavor.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
III<br />
LIÇÃO DAS RUAS<br />
Inútil a dura aula que vem das ruas:<br />
Eles sempre pedem mais presentes<br />
Nas urnas.<br />
03.10.2016
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Álvaro Antunes<br />
Álvaro A. Antunes nasceu em<br />
Além Paraíba, mora e trabalha no<br />
Reino Unido desde 1989. É tradutor e<br />
professor de ciência da computação<br />
na Universidade de Manchester.<br />
Nos anos 80, em Além Paraíba Minas<br />
Gerais, Álvaro A. Antunes com os amigos<br />
Carlos Moura, Marilene Moura, Antônio<br />
Jaime e Clinton Mota criaram a Interior<br />
Edições. Sua primeira publicação foi Os<br />
Ezra Pound<br />
papéis de Aspern, de Henry James, em<br />
1984; seguida de A caça ao turpente, de<br />
Lewis Carroll, também de 1984. Em 1985,<br />
Cantos de Giacomo Leopardi - primeira tradução<br />
integral - elogiadíssima na ocasião.<br />
Finalmente, Tudo que restou, de Safo, em<br />
1987. Todas obras traduzidas por Álvaro<br />
Antunes.<br />
As artes gráficas das publicações<br />
da pequena e atrevida editora de<br />
Além Paraíba<br />
foram criadas pela designer<br />
Regina Fernandes. Álvaro publicou,<br />
também, uma tradução de The Seafarer<br />
(Ezra Pound), no Suplemento Literário de<br />
MG. Numa homenagem ao tradutor e seus<br />
amigos, estamos publicando um fragmento<br />
de Ezra Pound, traduzido por ele.<br />
Ezra Weston Loomis Pound, nasceu<br />
em Hailey, Idaho, cresceu em Wyncote, perto<br />
de Filadélfia e formou-se na Universidade da<br />
Pensilvânia em 1906. O seu primeiro livro de<br />
poemas, A Lume Spento, foi publicado em Veneza<br />
em 1908.
Nesse ano fixou-se em Londres, onde viveu<br />
até 1920 e onde travou conhecimento com alguns<br />
dos mais importantes escritores da época:<br />
Ford Madox Ford, James Joyce, Wyndham<br />
Lewis, W. B. Yeats e T. S. Eliot, entre outros.,<br />
tendo influenciado a todos estes.<br />
Em 1909 publicou Personae e Exultations, a que<br />
se seguiu um volume de ensaios críticos intitulado<br />
The Spirit of Romance de 1910.<br />
Datam de 1920 as publicações de um segundo<br />
volume de textos críticos, Instigations, e<br />
de Hugh Selwyn Mauberley, uma das suas obras<br />
-primas. O poema Homage to Sextus Propertius<br />
foi publicado no ano anterior. Conhecedor<br />
das literaturas europeia e oriental, Pound associou-se<br />
desde muito cedo à escola dos imagistas,<br />
que liderou de forma particularmente enérgica.<br />
Os adeptos desta corrente poética, pretendiam<br />
explorar de forma disciplinada as potencialidades<br />
da imagem e da metáfora, consideradas a essência<br />
da poesia. O movimento, que Pound abandonou<br />
em 1914, teve a sua expressão na revista<br />
inglesa The Egoist (iniciada em 1912) e na revista<br />
americana Poetry (a partir de 1914). As raízes<br />
do movimento encontravam-se fundamentalmente<br />
na poesia chinesa e japonesa, mas os imagistas<br />
inspiraram-se também na poesia latina, em<br />
poemas da tradição medieval inglesa, nas composições<br />
poéticas dos trovadores provençais e<br />
em alguns poetas italianos. Nos seus Cantos,<br />
publicados numa longa série entre 1917-1949 e<br />
inacabados, Pound procurou elaborar uma versão<br />
moderna da Divina Comédia.<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
A fase em que o poeta leva mais a extremos os<br />
princípios do seu movimento imagista é ilustrada<br />
pelas obras Ripostes (1912) e Lustra (1916).<br />
Em 1924 Pound mudou-se para Itália, onde as<br />
teorias político-econômicas que defendeu o associaram<br />
ao fascismo, tendo chegado a proferir<br />
comunicações antidemocráticas na rádio italiana<br />
durante a Segunda Guerra Mundial. Pound comprometeu-se<br />
definitivamente com o fascismo e<br />
foi preso em 1945, libertado em função do protesto<br />
de vários artistas, tendo sido posteriormente<br />
repatriado. Considerado oficialmente incapaz<br />
mentalmente, com o objetivo de livrá-lo da prisão,<br />
foi internado durante 13 anos num hospital<br />
psiquiátrico em Washington. A acusação de traição<br />
foi retirada em 1958 e Pound voltou a Itália<br />
depois da sua libertação. Trabalhou nos<br />
seus Cantos até 1972, ano da sua morte.<br />
Sua obra, carregada de citações e alusões históricas,<br />
é indiscutivelmente uma das maiores da poesia<br />
do século XX. É comum a afirmação de<br />
que, junto de Vladimir Maiakóvski, foi o maior<br />
poeta do século XX.<br />
A influência de Ezra Pound e do seu projeto de<br />
renovação da linguagem poética foi essencial<br />
para Joyce, Yeats, William Carlos Williams e<br />
particularmente para T. S. Eliot, que submeteu o<br />
manuscrito da sua obra The Waste Land à apreciação<br />
de Pound antes de o publicar em 1922.<br />
Pound, simplesmente, riscou à caneta uma parte<br />
considerável do texto inicial, e Eliot aceitou os<br />
c o r t e s s e m t i t u b e a r . O s<br />
"aperfeiçoamentos" (ponto de vista de Eliot) feitos<br />
por Pound mereceram-lhe a dedicatória de<br />
Eliot: "For Ezra Pound, il miglior fabbro" (A Ezra<br />
Pound, o melhor artífice). Sendo o primeiro<br />
líder do modernismo dos Estados Unidos, sua<br />
influência fez-se sentir inclusive na poesia<br />
da Geração beat, que levou a extremos a ideia<br />
poundiana de que o poema deve reproduzir a<br />
ordem natural da sintaxe de uma língua (falada)<br />
e não afastar-se demais da música ou da própria<br />
língua falada, já que o poema deve soar natural<br />
ao ouvido se lido em voz alta. O “poder visual<br />
da imagem” do seu Imagismo também fez-se<br />
sentir em Kenneth Rexroth, Gary Snyder e nos<br />
poetas objetivistas.<br />
No Brasil, sua influencia fez-se sentir especialmente<br />
na Poesia Concreta e seu ciclo de influência.<br />
Sua pregação pró economia verbal e um certo<br />
visualismo à moda oriental que tomou força a<br />
partir da poesia brasileira dos anos 80 e 90,
Middle-Aged<br />
A Study In An Emotion<br />
By Ezra Pound<br />
1912<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
“ Tis but a vague, invarious delight.<br />
As gold that rains about some buried king.<br />
As the fine flakes,<br />
When tourists frolicking<br />
Stamp on his roof or in the glazing light<br />
Try photographs, wolf down their ale and cakes<br />
And start to inspect some further pyramid;<br />
As the fine dust, in the hid cell beneath<br />
Their transitory step and merriment,<br />
Drifts through the air and the sarcophagus<br />
Gains yet another crust<br />
Of useless riches for the occupant,<br />
So, the fires that lit once dreams<br />
Now over and spent,<br />
Lie dead within four walls<br />
And so now love<br />
Rains down and so enriches some stiff case,<br />
And strews a mind with precious metaphors,<br />
And so the space<br />
Of my still consciousness<br />
Is full of gilded snow,<br />
The which, no cat has eyes enough<br />
To see the brightness of.”
De Meia-Idade<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Um Estudo De Uma Emoção<br />
“É só um prazer pedestre, mero, vago.<br />
Como ouro que pingasse em rei ruído.<br />
Bem como os finos flocos,<br />
De frívolos turistas<br />
Pisando o seu telhado, disparando<br />
Na vítrea luz, a foto fátua, pressa,<br />
Fome, frango, cerveja e a próxima pirâmide;<br />
Como, na cela oculta, o parco pó,<br />
Sob o passar fugaz de pés, sorrir que<br />
Levita e pousa, no sarcófago<br />
Mais uma crosta jaz,<br />
Vitrais cingindo o seco olhar de um cego.<br />
Assim de mim, as chamas que arderam um dia sonhos<br />
Frígidas folhas, mortas<br />
Na prensa das paredes<br />
E assim, o amor agora<br />
Respinga de e adorna uma urna rígida,<br />
Asperge a mente com metáforas preciosas,<br />
E assim o espaço do<br />
Que silente meu consciente abraça<br />
Se encharca de um douror de neve,<br />
Cujo, gato algum de cílio sujo<br />
Tem olho mago para, seu fulgor, filar.”<br />
Alvaro A. Antunes, 2012
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Vera Inber<br />
Vera Inber (1890-1972) nasceu em Odessa, na<br />
Ucrânia. Judia como Trotsky, seu primo, foi<br />
uma das mais destacadas poetisas do Realismo<br />
Socialista. Entre os seus melhores trabalhos<br />
estão os poemas “Cinco noites e dias” (Piát›<br />
nóchei i dnéi), escrito em 1924, com a morte de<br />
Vladimir Lênin, e “Moscou na Noruega”<br />
(Moskvá v Norvégii), escrito durante as<br />
suas viagens pela Escandinávia.<br />
ПЯТЬ НОЧЕЙ И ДНЕЙ (Вера Инбер)<br />
И прежде чем укрыть в могиле<br />
Навеки от живых людей,<br />
В Колонном зале положили<br />
Его на пять ночей и дней.<br />
И потекли людские толпы,<br />
Неся знамена впереди,<br />
Чтобы взглянуть на профиль жёлтый,<br />
И красный орден на груди.<br />
Текли. А стужа над землею<br />
Такая лютая была,<br />
Как будто он унес с собою<br />
Частицу нашего тепла.<br />
И пять ночей в Москве не спали<br />
Из-за того, что он уснул,<br />
И был торжественно-печален<br />
луны почетный караул.
Cinco noites e dias<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
E antes de o esconderem na campa<br />
para sempre das pessoas vivas,<br />
colocaram-no na Sala das Colunas<br />
por cinco noites e dias.<br />
As multidões passavam<br />
empunhando bandeiras à frente,<br />
para olhar o seu perfil já amarelo<br />
e a medalha vermelha no peito.<br />
E o frio sobre a terra<br />
era tão feroz<br />
como se ele tivesse levado consigo<br />
uma parte do nosso calor.<br />
E por cinco noites Moscou não dormiu<br />
porque ele havia adormecido,<br />
e foi com solene tristeza<br />
que a lua o velou.<br />
Tradução de André Rosa<br />
Jornalista e tradutor. Colaborou com o Pravda<br />
e a Vertente Cultural, além de ter traduzido<br />
poetas como Aleksandr Pushkin, Blok e<br />
Velimir Khlébnikov.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Claudio Sesín<br />
Claudio Luis Sesín nasceu em Villa<br />
Dolores, Valle Viejo, passou sua infância e<br />
cresceu em Pomán, Província de Catamarca,<br />
Argentina.. Publicou entre outros La<br />
Barbárie (1993) e El círculo de fuego<br />
(1997) e em 2008 El libro de los poemas<br />
casuales (2008), em edição bilíngue espanhol-português.<br />
A eternidade do outono<br />
A eternidade é o outono<br />
gerando uma imensidade de beleza,<br />
e tem, como seu amor,<br />
tremores em gotas, cores e desejos,<br />
melancolias obscenas pelo mundo<br />
em sua voz derramando-se.<br />
Eu te amo indiferente ao tempo.<br />
Quando a possessão é sacudida por teu alento,<br />
quando as folhas voam como poemas tolos<br />
para que tu os leias,<br />
quando você retorna de tudo e chegas à minha noite,<br />
igual ela, para abraçar-me dentro do escuro,<br />
liberando o adeus pelo ar e no ar.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
O lamento das folhas<br />
No inesperado da meia-noite, o lamento das folhas,<br />
nos despedíamos no jardim que já não existe.<br />
Possui o alivio de esquecer as angústias, ou talvez fosse<br />
essa ilusão da passagem pelo mundo.<br />
Vestígios de amor e juramentos, no mapa do céu<br />
onde cada detalhe falava de lugares que embalavam argila,<br />
ante a decadência, a angústia e a árvore<br />
Há um rumor na fogueira e transparência<br />
na quietude incerta do momento.<br />
Dizer adeus e apenas entrar no negrume.<br />
Profundas gretas do tempo, fazem a distância.<br />
A viagem soltou amarras e certezas<br />
Nascerás deste amor que te oferece a morte.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Nestes dias<br />
Medimos nossas mortes em dias chuvosos<br />
sentados num café que tudo o perdoa.<br />
Aqui desembarcamos. Aqui,<br />
nestas mesas de cálidas neblinas,<br />
e o nó do inverno chegando na nevasca,<br />
e as mediocridades, que sempre nos perturbam,<br />
bebidas, vozes, olhares e outros ruídos.<br />
Sentimos a ausência até que ao fim vamos.<br />
A vida te satisfaz e assassina.<br />
Essas rosas escuras do fundo de sua casa,<br />
se ganhou e se perdeu tantas vezes,<br />
família, perfumes, lágrimas, amigos...<br />
Versão - Antônio Perin
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Manuel Bandeira<br />
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu<br />
em Recife, 19.04.1986 e faleceu no Rio de<br />
Janeiro, 13.10.1968. Poeta, crítico literário e de<br />
arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.<br />
Tem-se que Bandeira faça parte da geração de<br />
1922 da literatura moderna brasileira, sendo<br />
seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de<br />
Arte Moderna de 1922. Com escritores como<br />
João Cabral de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto<br />
Freyre, Clarice Lispector e Joaquim Nabuco,<br />
entre outros, representa o melhor da produção<br />
literária do estado de Pernambuco.<br />
Orestes<br />
E m F l a u t a d e P a p e l *<br />
N ã o é d o A t r i d a q u e v o u<br />
f a l a r , d a q u e l e g r e g o t e r r í v e l q ue<br />
ma to u a mãe, foi p erseguido p e las<br />
Fúrias, a punha lou P ir ro e, j unto co m<br />
a i rmã e P i lades, sa cr i f ico u Toas,<br />
roubou a e státua d e Diana e a ca bou<br />
mo rrendo prosaicamente d e uma<br />
mo rdedura de cobra. Não, o meu<br />
O restes é outro, p er tence à raça<br />
p a cata e ca nta n te de Or fe u, era<br />
f u n cio nário da Câ mara dos<br />
V er ea dores, mas apo sento u -s e e<br />
d e sapa rece u da circula ção cario ca, no<br />
l ouvável e de risó rio intuito de<br />
d e safogar o trânsito na s imedia ções<br />
d a Ga l er ia Cr uzeiro. Em d uas<br />
p a lavras fama na das: Orestes B arbo sa.<br />
A n d ava e u com s auda de s de seu<br />
p asso ba liza, d e suas roupa s brancas<br />
i m pe cáveis, d e s eus olho s claros d e<br />
água -marinha: o n de a n dará e l e? Não<br />
m e v enhamdizer que tev e um enfa rte<br />
e etá n a tenda de oxig ê nio, pe nsava<br />
comigo, apr eens ivo. N ada d i sso . O<br />
ú l t imo n úm ero d e Manchete traz u ma<br />
e n trev is ta com Or estes, e sabemos<br />
agora q ue o velho j orna lista continua<br />
e m boa fo rma, só que a posentado não<br />
a pe nas d o funcio na lismo, mas d e<br />
t u do — das l etras d e canções e até<br />
d os cavacos de rua. O R io m udou<br />
m u ito, agora só h á ca fé s e m p é, e<br />
O restes é d os tempo s do N i ce, para<br />
n ão fa la r do S u iço, q ue sauda de s!<br />
O n de v i o po eta S chm i dt, então<br />
mo d esto ger ente da L ivraria Cató l i ca,<br />
s er to ca do para fora do café po r estar<br />
e m ma ngas de camisa, o que não era<br />
p er m it ido a l i.
O r e stes v ive ho je e m Pa q uetá,<br />
não vem ao R io s enão para receb<br />
er os seus vencim e ntos de a posenta -<br />
d o, tem ca sa na i lha e pa ssa a s tardes<br />
e m sua varanda bebendo cerveja g elad<br />
a, q u e d elícia! Não s e q u eix a da v i-<br />
d a, diz q u e o seu tempo como l etris ta<br />
d e ca n ções pa sso u, que o povo agora<br />
q u er é samba e baião, co m sa n fo na e<br />
t u do . Só não concordo com Orestes<br />
q ua n do e le zomba d e v io lão e n cordoa<br />
do com tr i pa . V iva a corda d e tripa!<br />
Violão co m cordas d e a ço não é viol<br />
ão , é guitarra. Vio lão é ala úde. Alaú<br />
d e é v io lão medieval.<br />
G r ande poeta da ca nção, esse<br />
O restes! S e se f i ze sse a q u i u m<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
concur so, como fizeram n a França,<br />
p ara a purar q ua l o ver so ma is bonito<br />
d a no ssa líng ua, ta lvez e u vota sse<br />
n aquele de O restes e m q ue e le d i z:<br />
“ T u pisavas os astros distr aída . ..” Só<br />
m esmo em chão d e e str elas era<br />
p ossív e l a cha r e sse verso . D e certo<br />
O restes rojava no s u b lime, e a mulher<br />
q u e o inspirou p iso u - lhe, a cinte ou<br />
i n adv ertidamente, o coração, q ue se<br />
a br i u na queix a i mortal. Se i d e m uito<br />
p oeta ( Onestaldo d e Pennafo rt é um<br />
d e le s e e u sou o ut ro) q ue se rala de<br />
i n veja porque não é a uto r da q ue le<br />
verso . Com razão: n u n ca s e e n de usou<br />
ta n to um a mulhe r co mo na q ue las<br />
cinco palavras...<br />
* L i v r o d e c r ô n i c a s d e 1 9 5 7 ,<br />
o n d e M a n u e l B a n d e i r a n a p á g i n a 7<br />
a d v e r t e : “ A s m i n h a s C r ô n i c a s d a<br />
P r o v í n c i a d o B r a s i l , c u j a e d i ç ã o ,<br />
q u e é d e 1 9 3 6 , s e a c h a v a d e h á<br />
m u i t o e s g o t a d a , n ã o m e r e c e r i a m<br />
r e i m p r e s s ã o : a l g u m a c o i s a d e l a s<br />
f o i a p r o v e i t a d a e m o u t r o s l i v r o s ,<br />
c o m o , p o r e x e m p l o , o q u e s e<br />
r e f e r i a a O u r o P r e t o e a o<br />
A l e i j a d i n h o ; m u i t a o u t r a p e r d e u a<br />
o p o r t u n i d a d e . D e c i d i , p o i s ,<br />
r e e d i t a r a p e n a s o q u e n e l a s m e<br />
p a r e c e u m e n o s c a d u c o , j u n t a n d o -<br />
l h e n u m e r o s a s c r ô n i c a s e s c r i t a s<br />
p o s t e r i o r m e n t e , a m a i o r i a p a r a o<br />
J o r n a l d o B r a s i l . . . . ”
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Emerson Teixeira<br />
Cardoso<br />
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />
(2001) poesia, coautor de A casa da Rua<br />
Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O<br />
retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre<br />
ativo em publicações literárias. Iniciou-se em<br />
Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador<br />
do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />
O vitoriano implacável<br />
Oscar Wilde foi um implacável e agudo<br />
crítico de tudo e de todos que lhe pareciam<br />
medíocres. Mas era personalidade conhecidíssima<br />
em seu tempo fama esta adquirida a doses<br />
proporcionais de talento e irreverência.<br />
Nascido em Dublin, Irlanda em 1856 (não há<br />
consenso quanto ao dia, mas o mês foi o de outubro<br />
(quinze para alguns, dezesseis para outros)<br />
seus sólidos conhecimentos de grego lhe garantiram<br />
alguns prêmios e também uma bolsa de estudo<br />
em Oxford.<br />
Sua produção intelectual reúne textos para<br />
teatro, poesia, contos, novelas e um único romance,<br />
realmente uma obra-prima muitas vezes<br />
traduzida e em muitos idiomas. Grandes sucessos<br />
intercalados por alguns outros poucos fracassos<br />
e até uma tragédia pessoal no ano de 1895,<br />
então com quarenta e cinco anos, quando foi<br />
julgado e condenado por manter uma ligação<br />
íntima com o jovem lorde Alfredo Douglas.<br />
De estatura privilegiada (1,90m) é quase impossível<br />
imaginar que fosse submetido a humilhações<br />
e privações – consta que teria sido hostilizado<br />
pelos guardas na penitenciária à qual foi<br />
recolhido, a de Reading, e teve inclusive a cabeça<br />
raspada. Relatou essa experiência no poema<br />
“Balada da prisão de Reading” e no De Profundis.<br />
Terminou sua vida vivendo em hotéis baratos,<br />
afastado da família quando entregou-se ao<br />
vício do absinto. Morreu em Paris a trinta de novembro<br />
de 1900 o escritor mais importante do<br />
panorama literário britânico do final do século<br />
XIX.<br />
Espírito e mordacidade marcaram sua obra<br />
em que se destacavam ditos irresistíveis:<br />
Casamento<br />
Os homens casam-se porque estão cansados,<br />
as mulheres porque estão curiosas. Ambos se<br />
desapontam.<br />
Mulheres<br />
As mulheres representam o triunfo da matéria<br />
sobre a mente, exatamente como os homens<br />
representam o triunfo da mente sobre a moral.<br />
Beleza<br />
A busca da beleza é o verdadeiro segredo da<br />
vida.
Lealdade<br />
O que você chama de lealdade e fidelidade,<br />
eu chamo de letargia de hábito. A paixão pela<br />
propriedade está na fidelidade. Jogaríamos fora<br />
muitas coisas se não tivéssemos medo de que<br />
outros a pegassem...<br />
Artistas<br />
Os únicos artistas que conheci que são agradáveis<br />
pessoalmente são os maus artistas. Os<br />
bons artistas colocam tudo que é encantador de<br />
sua personalidade em seus trabalhos: bons poetas<br />
escrevem a poesia que não conseguem viver,<br />
enquanto poetas inferiores vivem a poesia que<br />
não conseguem escrever.<br />
Fortuna<br />
Eu faria qualquer coisa na vida para ganhar<br />
uma fortuna, desde que não tivesse que trabalhar,<br />
acordar cedo e fazer ginástica.<br />
Dinheiro<br />
Os jovens imaginam que o dinheiro é tudo e<br />
quando ficam mais velhos sabem que é.<br />
Inimigos<br />
Um homem tem de ser completamente cuidadoso<br />
na escolha de seus inimigos; não tenho<br />
nenhum que seja tolo.<br />
Princípios<br />
Gosto mais de pessoas que de princípios e<br />
aprecio mais pessoas sem princípios do que<br />
qualquer outra coisa do mundo.<br />
Retratos<br />
Todo retrato pintado com sentimento é o retrato<br />
do artista não do modelo.<br />
Terrorismo<br />
O terror da sociedade que é a base da moral<br />
e o terror de Deus que é o segredo da religião,<br />
são as duas coisas que nos governam.<br />
A alma e os sentidos<br />
Nada pode curar a alma a não ser os sentidos,<br />
e nada pode curar os sentidos a não ser a<br />
alma.<br />
Gênio e beleza<br />
O gênio dura mais que a beleza, esta é a razão<br />
porque todos querem se supereducar.<br />
Quando foi libertado, dois anos depois,<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
arruinado financeira e moralmente, terminou<br />
seus dias em Paris, onde mendigou, tendo o corpo<br />
torrado de erupções, um abscesso no ouvido<br />
e meningite. Faleceu aos 46 anos.<br />
Tão rápido quanto seu declínio foi a sua<br />
reabilitação literária. Dizem que seu túmulo até<br />
hoje atrai a visita de fãs, que beijam a ilustre lápide<br />
e deixam recados escritos a lápis e batom.<br />
Para refrear tais exageros, o túmulo ganhou recentemente<br />
uma proteção de vidro.<br />
Para recordar sua sagacidade fora do comum,<br />
vale lembrar uma das frases mordazes<br />
com que costumava chocar o decoroso século<br />
XIX: “A única diferença entre um santo e um<br />
pecador é que o santo tem um passado e o pecador<br />
tem um futuro”.<br />
Dá-lhes, Oscar Fingal O'Flahertie Wills<br />
Wilde
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Ronaldo Werneck<br />
Nasceu em Cataguases - MG, onde mora atualmente.<br />
Poeta, jornalista e crítico, colaborou<br />
com vários jornais e revistas cariocas: Publicou<br />
os livros de poesias: Selva Selvaggia (1976),<br />
Pomba Poema (1977), Minas em mim e o mar<br />
esse trem azul (1999), Noite Americana / Doris:<br />
Day by Night (2006), Minerar O Branco (2008),<br />
Cataminas Pomba e Outros Rios (2012) O Mar<br />
de Outrora e Poemas de Agora (2014) os de<br />
prosa: Há Controvérsias 1 1987—2003 (2009) e<br />
Há controvérsias 2 (2011) Em 1997, lançou Cataguases<br />
é Cachoeira, homenagem aos 100<br />
Anos de Humberto Mauro.<br />
Slotti: o traço interrompido<br />
Só agora, um mês exato, soube da morte<br />
em 02 de setembro de Sebastião Nozza Bielle<br />
Lotti, o meu amigo Tuíte, mais conhecido como<br />
Slotti, assinatura que dava aos seus trabalhos de<br />
artes plásticas. A notícia me chega hoje pela Revista<br />
Eletrônica “<strong>Chicos</strong>” (nº 46, 22.09.2016),<br />
onde o poeta Antônio Jaime Soares fala dos contos<br />
de Slotti, que o artista tanto queria ver publicados.<br />
Ele chegou também a me mandar alguns<br />
desses contos, todos ótimos: além de grande artista<br />
plástico, Tuíte escrevia muito bem e tinha<br />
muita coisa pra contar.<br />
O artigo dele que a “<strong>Chicos</strong>” publica sobre o<br />
filme “Os dias com ele” é um texto emocionado<br />
e emocionante – pelo menos pra mim, que também<br />
fui/sou amigo (mesmo sem nos vermos há<br />
anos) do poeta e filósofo Carlos Henrique Escobar,<br />
atualmente auto-exilado num lugarejo perdido<br />
em Portugal. O filme que, como o Tuíte, também<br />
eu vi há alguns meses no Canal Brasil, é<br />
uma grande homenagem que a diretora Maria<br />
Clara Escobar, filha do filósofo, faz a seu pai. Eu<br />
e Escobar lançamos juntos livros de poemas na<br />
Ipanema dos anos 1970. Lembro-me que nossos<br />
livros foram impressos numa gráfica de Petrópolis<br />
e subíamos a serra para revisões pelo menos<br />
uma vez por semana – filosofando sobre poesia<br />
e política naqueles tempos de brutal repressão.<br />
Eu passei mais ou menos incólume por uma prisão,<br />
vamos dizer, “leve”, sem levar porrada – se<br />
se pode chamar de “leve” uma prisão no DOI-<br />
CODI dos tempos de Médici. Mas Escobar, não:<br />
ele acabou sendo barbaramente torturado.<br />
Tuíte pouco saía nos últimos tempos, tomado<br />
por um enfisema, esse mal tenebroso que levou<br />
também há poucos anos nosso amigo Afonso<br />
Vieira, o Afonsinho. Nós nos telefonávamos às<br />
vezes – e lembro que quando organizei um número<br />
especial do Suplemento Literário do Minas<br />
Gerais sobre Cataguases, em 2013, o chamei<br />
para ilustrar alguns poemas de minha prima e<br />
sua grande amiga, a poeta Lecy Delfim Vieira,<br />
que também já se foi (Gente, toda a nossa gente<br />
“está-se-indo”!). Tuíte vinha de uma internação,<br />
mas se entusiasmou e me disse que, mesmo respirando<br />
com grande dificuldade, ia fazer o possível<br />
para “mandar alguma coisa”, pois adorava a<br />
Lecy.
Mas, ao me ligar tempos depois, dizendo que<br />
estava começando a fazer as ilustrações, a edição<br />
já estava fechada e mesmo os poemas da<br />
Lecy não puderam sair por falta de espaço. Não<br />
sei se ele terminou as ilustrações. Quem sabe<br />
não estão entre os guardados que deve ter deixado?<br />
Vou sentir saudade do artista plástico Slotti<br />
sempre que olhar para seus quadros; e do escritor,<br />
sempre que ler seus contos. Antônio Jaime<br />
diz que a família está disposta a publicá-los e<br />
“está somente dando um tempo, até passar o<br />
choque”. Mas vou sentir uma saudade maior<br />
mesmo é de meu amigo Tuíte, que não verei<br />
nunca mais. Em sua homenagem, volto a publicar<br />
a seguir uma crônica que se encontra em<br />
meu livro “Há Controvérsias-1”, de 2009, escrita<br />
quando da inauguração de sua mostra “Cabeças<br />
Cortadas”, na sala de exposições da Caixa Econômica,<br />
no Rio. Mas, antes, assino embaixo o<br />
que Antônio Jaime escreveu na “<strong>Chicos</strong>” sobre<br />
ele: “minha agenda de amigos, pouco a pouco,<br />
vai ficando desfalcada, cada vez menos gente<br />
para aquele papo “sem meias-patacas”, como<br />
dizia Fábio Leite (irmão da cantora Maria Alcina),<br />
um dos que se foram. Jorge Napoleão foi<br />
outro. Amigo só tem um defeito: morrer antes<br />
da gente – disse alguém, creio que da equipe do<br />
finado jornal Pasquim”.<br />
Glauber/Slotti<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Poucas pessoas são assim tão anos 60. Poucas<br />
ainda aquelas assim “ando meio desligado”<br />
como o Tuíte dos tempos do desbunde, o Sebastião<br />
Lotti de depois, esse Slotti de agora. Que<br />
ainda parece estar sempre “viajando”, com a<br />
mesma cara de antes, aquela que lembra mais<br />
Salvador Dali que o próprio. Surrealista como<br />
Dali – sem se desligar do figurativo ao longo de<br />
sua trajetória nesses últimos trinta anos, sem se<br />
distanciar da perfeição de suas máscaras – Slotti<br />
agora e aqui homenageia Glauber Rocha com<br />
suas Cabezas Cortadas. “A função histórica do<br />
surrealismo no mundo hispano-americano oprimido<br />
foi aquela de ser instrumento para o pensamento<br />
em direção de uma liberação anárquica,<br />
a única possível”, Glauber dixit.<br />
“Cabeças Cortadas”, esta mostra dos trabalhos<br />
atuais de Slotti (tenho até hoje em minha<br />
sala um quadro que ele me deu, “Trilogia da<br />
Terra”, um plano fechado dos pés de camponeses<br />
extraído do filme “Deus e o Diabo na Terra<br />
do Sol”, de Glauber), nasceu do que ele chama<br />
de “minha indignação face ao que ainda não foi<br />
feito: a reforma agrária desejada em seu sentido<br />
mais objetivo”. Os Sem-Cabeça, os Sem-Terra.<br />
Tuíte-Slotti diz que os desenhos foram surgindo<br />
naturalmente, pois ele queria que as figuras brotassem<br />
sem se policiar quanto à forma. Quando<br />
saíam acadêmicos, acadêmicos ficavam.<br />
De acordo com a emoção do momento, oscilavam<br />
entre figuras quase renascentistas e outras<br />
muito pelo contrário: absolutamente deformadas<br />
pela realidade, meio chegadas ao pop. “Pensei<br />
em terra, nos Sem-Terra. Surgiram imagens de<br />
Canudos, Lampião, essas imagens tão Glauber,<br />
tão do imaginário de Deus e o Diabo, filme que<br />
mexeu muito com minha cabeça nos anos 60”.<br />
Era o mesmo Glauber que nos anos 70 escrevia:<br />
“Cabezas Cortadas é um filme contra as ditaduras,<br />
é o funeral das ditaduras. Um encontro apocalíptico<br />
nas ruínas da civilização latinoamericana,<br />
que desmonta todos os esquemas<br />
dramáticos do teatro e do cinema. O cinema do<br />
futuro será som, luz, delírio, aquela linha interrompida<br />
desde L’Âge d’ Or”.
aquela linha interrompida<br />
Conotação social, arte participante, aquele<br />
papo de engajamento. Parece um mundo antigo,<br />
efervescente e pleno de contradições, coisa defasada<br />
depois da queda do Muro de Berlim, das<br />
globalizações & outras mumunhas mais que nivelaram<br />
por baixo os anseios, como se refrigerassem<br />
nossas vidas. Quer dizer, nossas vidas em<br />
Ipanema. Porque, de resto, a coisa continua muito<br />
Minas Gerais, i.e., “está onde sempre esteve”.<br />
Estão aí os Sem-Terra e os Sem-Mesa. E Minas<br />
não surge aqui por acaso. Lá, como aqui, Slotti<br />
passou por álcool, drogas & amores mil. Mas<br />
amar, amar mesmo, só em Minas. O Rio de namorar:<br />
piração. Ipanema é sua praia, o mar desse<br />
mineiro de Miraí. De sua pequenina Miraí cujos<br />
códigos já transgredia aos 12 anos, naquele<br />
“Circo do Tuíte”<br />
onde era o trapezista, o diretor, o figurinista e<br />
principalmente o criador do strip-tease na roça:<br />
agreste, bucólico, corajoso – e precursor e pueril<br />
e patético.<br />
Os peitinhos de Lelena tinham somente 12<br />
anos e ficavam de fora e eram como dois limõezinhos<br />
soltos enquanto Marlene cantava “Eva<br />
me leva/ pro Paraíso agora” e os meninos de Miraí,<br />
na faixa dos 14, se masturbavam num só<br />
delírio, num gozo conjunto e total. Os moleques<br />
gritavam em uníssono enquanto a Lelena do Lalá<br />
caía no picadeiro e saía rolando pra debaixo<br />
da cortina: o maior barato. Por razões mineiras,<br />
demandas matreiras e por isso mesmo óbvias, o<br />
“Circo do Tuíte” foi fechado e seu jovem trapezista<br />
– sem peitinhos, mas também com 12 aninhos<br />
– muda-se já com seus primeiros desenhos<br />
para a cidade grande. Quer dizer, a mais próxima:<br />
Cataguases, a Princesinha da Mata Mineira,<br />
que adota, elege e erige como cidade dos sonhos.<br />
Ou pelo menos trapézio para o mundo que<br />
desconheciansiava.<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Censurado no mato, censurado na praia. Na<br />
Ipanema dos anos 60, vamos encontrar o mineiro<br />
que inventou o strip-tease decorando as vitrines<br />
chiques do bairro, como aquelas da Bibba,<br />
um dos ícones fashion da década. A Bibba que<br />
lançava a moda mais up-to-date, as últimas vogas<br />
da swinging London, o que havia de mais<br />
“quente” na época. Tuíte, é claro, morava no<br />
Solar da Fossa, bicho. Pode crer. É isso aí, ali ao<br />
lado de todos aqueles artistas já meio conhecidos,<br />
aqueles Gil, aqueles Rogério Duarte, aqueles<br />
Caetano junto a quem sua timidez não deixava<br />
o papo se travar, perdão, se soltar. Ali no Solar<br />
lia Rimbaud e Jean Genet, mas ficava mesmo<br />
com o Livro Vermelho de Mao, ou “A Chinesa”<br />
do Godard, impressões fortes da juventude,<br />
aquela da Geração Paissandu. Sim, ele também<br />
estava lá, ô cara!<br />
“A arte é invenção, é o inconsciente do artista,<br />
o sonho, o imprevisto, a forma nova.”. Não<br />
por acaso, a frase é também de Glauber Rocha,<br />
o mesmo cara daquele “a política e a poesia são<br />
demais para um só homem: vão se esquecer de<br />
Lênin, mas não de Maiakovski”. Aquele<br />
“Glauber, profeta alado”, no dizer de Paulo Emílio<br />
Salles Gomes. Na Páscoa de 74, Tuíte utilizou<br />
alguns anjos na decoração da Bibba, ali na<br />
Maria Quitéria, onde hoje é o Empório 37 (ainda<br />
é?). Eram anjos de papelão, segurando um pássaro<br />
azul. Como os peitinhos da Lelena do Lalá,<br />
anjos de pauzinhos de fora, umas gracinhas. A<br />
repressão nada sabia do sexo dos anjos, nem<br />
podia. Os militares aplicaram o corretivo de praxe:<br />
fecharam a loja, cobriram anjos & vitrines<br />
com jornal e abriram processo de atentado ao<br />
pudor, o que deu a Tuíte seus 15 minutos de<br />
glória no Jornal Nacional, com direito a suítes<br />
em toda a mídia do país e até do exterior. Nunca<br />
se discutiu tanto o sexo dos anjos.<br />
Década de 60 sem Mauá não há. Slotti vai<br />
pra Mauá, a serra, e acaba no mar. Piração geral:<br />
meio desligado, troca as bolas e respectivas<br />
praias: achou que Mauá fosse a indefectível<br />
Praia de Mauá, permanentemente em estado de<br />
emergência. Ficou na lama durante um ano, chafurdando<br />
com os caranguejos e achou o maior<br />
barato, que nosso artista sempre foi de boa paz:<br />
“Mauá é ótimo. É uma estação onde D. Pedro<br />
parava, na Praia de Mauá, na Freguesia da Ajuda.<br />
A carruagem esperava e ele subia pra Petrópolis<br />
pela Estrada do Imperador.”. São de Mauá<br />
os anjos em ocre, com elementos terra, sempre a<br />
presença da terra, marcante nas paisagens tropicais,<br />
bucólicas. Mas eram também trabalhos impregnados<br />
pelo surrealismo.
Nada de mar, marinas. A paixão de Slotti é a<br />
terra, o verde: flor, fruta, jamelão. Ainda Glauber<br />
Rocha: “O surrealismo para os povos latinoamericanos<br />
é o tropicalismo”.<br />
e retomada<br />
Meio desligado sim, mas em termos. Às vezes,<br />
um rebelde, antenado no acontecimento,<br />
participante. Aquele mesmo que foi preso durante<br />
o movimento estudantil, distribuindo panfletos<br />
de sua própria lavra & fabricação em plena<br />
Cinelândia. Um jovem indignado com a ditadura,<br />
trancafiado no Regimento de Cavalaria Caetano<br />
de Farias, ali onde aquele velhinho, perdão,<br />
aquele velho milico safado, pisava em seus pés e<br />
repisava, olhando fixo em seus olhos com aquele<br />
idiotal sorriso de desprezo: “Compositor,<br />
né?!!!”. Não era, apesar dos cabelos compridos.<br />
Mas guardou para sempre a humilhação.<br />
A mesma que devolve agora, nessa retomada<br />
da linha de protesto, aquela interrompida.<br />
De Miraí a Cataguases, de Ipanema a Mauá,<br />
dali a Pedra de Guaratiba, onde participa da Associação<br />
de Artistas locais, de Teresópolis a<br />
Anápolis, a Brasília. E de novo morando em Cataguases,<br />
não se sabe até quando, e agora e novamente<br />
em Ipanema. Trinta anos de Tuíte esta<br />
noite. Do expressionismo ao abstrato, é árido o<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
mundo para esses olhos de espantalho. A expressão<br />
do que Slotti vê, o que sai de dentro si –<br />
porque quem de dentro de si não sai, bem o sabeis,<br />
vai morrer sem amar ninguém. A figura<br />
sempre predominando em todas as fases, o traço<br />
perfeito, marca, assinatura. A força, o impacto<br />
extraordinário desses olhos atônitos, semiesbugalhados,<br />
que fixam o acaso. Muitas vezes<br />
o ocaso.<br />
Mesmo quando se fragmentam, as figuras<br />
não são aleatórias: antes resultam de uma composição<br />
pré-moldada na memória. Um amálgama<br />
de vários matizes, tons de terra e violeta.<br />
Ocre. Verde, amarelo. Esta paleta tão tropical,<br />
tão Bandeira do Brasil. A Padroeira que veio impávida<br />
& coroada. Puro kitsch. Lona, arte povera.<br />
Desenhos & óleos, aquarelas, nanquim, estandartes.<br />
Esses estandartes tão marcantes em<br />
Deus e o Diabo, em Cabezas Cortadas. O amarelo,<br />
o vermelho tão Glauber/Rogério Duarte, a<br />
ressoar: “Não me exijam coerência. Não tenho<br />
resposta na boca para todas as coisas. Sou um<br />
artista, portanto meu processo é um processo<br />
dialético entre o fluxo do inconsciente e minha<br />
razão dialética. Assim, posso mudar a qualquer<br />
momento. Eu não tenho medo de criar, se tiver<br />
engenho e arte vou em frente. E é necessário<br />
não ser babaca, pois a babaquice é o maior inimigo<br />
do artista”.<br />
Slotti e Jorge Napoleão : saudosos artistas plásticos
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
José Antonio Pereira<br />
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa<br />
da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de<br />
Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />
Nem soberana nem vidente, apenas Miriã a sorridente<br />
Lá pelo mês de maio, na semana em<br />
que passou em branco a abolição, atendi uma<br />
jovem mulata risonha e amável. Chamava-se Miriã.<br />
– Mas é assim mesmo que se escreve? Fui<br />
perguntando. Com um sorriso inocente ela simplesmente,<br />
– Sim, com tiI! Minha avó fala que<br />
Miriã era profetisa e irmã mais velha de Moisés.<br />
Bem-humorada, continuou: – Pode um trem destes?<br />
Eu, euzinha aqui, irmã mais velha do Moisés.<br />
E caiu num riso contido pela mão. Após<br />
concluir o atendimento me despedi da jovem e<br />
brinquei. – Juízo viu! Afinal, você é irmã de Moisés.<br />
Ela, abriu um largo sorriso, – Quem sabe ainda<br />
encontro com ele lá no terreiro que frequento.<br />
Sou umbandista. E foi-se com seu sorriso. Tempos<br />
depois explodiu no noticiário as confusões de<br />
um ex-presidente e outra Miriam, mas esta é com<br />
m e é jornalista.<br />
Na roda vespertina de sábado, lá no bar do Goiaba,<br />
o assunto era a amante do empavonado tucano.<br />
Lembrei-me e contei o episódio da jovem<br />
Miriã aos amigos. Enquanto eu falava das variações<br />
gráficas dos nomes, um deles, o poeta, só<br />
queria saber da mulata. Insistia na busca de detalhes<br />
sobre a mesma. – E como ela é? Eu a conheço?<br />
Sábado seguinte, voltamos ao assunto...<br />
– E a Miriã voltou a vê-la? – Claro que não. Retruquei.<br />
Enquanto saboreávamos o primeiro gole<br />
da cerveja, continuou o poeta, – Saibam que de<br />
tão curioso que fiquei, fiz uma pesquisa sobre o<br />
nome dela. Sabiam que Miriam é uma variante de<br />
Maria. Oriundo do hebraico, significa vidente ou<br />
senhora soberana. Um protocolar - É mesmo! do<br />
artista plástico denotava que o pessoal, estava<br />
mais afim de escarafunchar alguma coisa picante<br />
no noticiário sobre o caso da Miriam com o FHC.<br />
E a que era amante do Figueiredo? – Como?<br />
Indago incrédulo enquanto o poeta arregala os<br />
olhos. Mas a novidade, pelo menos para nós, é<br />
servida pelo artista plástico à mesa entre cervejas<br />
e torresmos. – Não sabiam que uma outra Myrian<br />
teve um caso com o Figueiredo? Continua com ar<br />
professoral e rindo de nossa ignorância a estes<br />
detalhes que fogem dos nossos velhos compêndios<br />
de história. Mas também já faz tempo que<br />
saímos da escola. É óbvio que o nosso imaginário,<br />
elucubrou um monte de segredos sujos e<br />
chulos dos podres poderes de Brasília nas alcovas<br />
mirianas. E o poeta insistia em saber da Miriã e<br />
em falar da sua pesquisa: – Mas nada da mulata<br />
mesmo? Outra versão sugere que Miriam teria<br />
surgido a partir das palavras assírias Yamo e Mariro,<br />
significando oceano azedo ou ácido no idioma<br />
aramaico assírio. Um quarto frequentador da<br />
mesa, até ali num silêncio boquiaberto, entra no<br />
papo: – Isto explica o azedume dela com o sociólogo,<br />
acho que tudo não passa de luta pela<br />
herança do espertalhão. – Já a outra..., continua<br />
com uma aura de vaidosa sabedoria o nosso amigo<br />
artista e agora, neo-historiador, ... a Myrian<br />
disse que em Brasília, ela se hospedava na casa<br />
de um ministro de Figueiredo, o mais importante<br />
representante civil nos governos militares. Quem<br />
será? – Acho que é o porca sem rabo. Retruca o<br />
poeta. – Mas voltando a etimologia, alguns estudiosos<br />
atribuem a origem ao termo egípcio mry<br />
que significa amada ou amor. Ao que prontamente<br />
o neo-historiador retruca. – Amor uma ova!<br />
Você acha que caras como FHC e Figueiredo tiveram<br />
estes casos por amor? É a velha conjugação<br />
de poder e sexo e nada mais que isto. – Já a<br />
Miriã em sua mulatice inocente e pura, como o<br />
branco das camélias, tem a ver o quê com todas<br />
estas Mirians? Indaga o poeta botando ponto<br />
final na conversa.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Antônio Jaime Soares<br />
Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />
Participou de um dos movimentos culturais mais<br />
ativo dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />
Depois de morar um longo tempo no Rio de Janeiro,<br />
onde entre outras foi redator de publicidade.<br />
Retornou a Cataguases direto para a Vila.<br />
Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />
(crônicas - 2011)<br />
Laranjal era uma farra<br />
Cidade minúscula e pacífica, em<br />
1956, quando morei lá. Nenhuma ocorrência<br />
policial, que eu saiba. Só um pequeno incidente,<br />
quando duas famílias classe média se esbofetearam<br />
à luz do dia, no meio da rua. Depois eu<br />
conto.<br />
Apenas uma rua calçada de paralelepípedos.<br />
As outras eram a de Trás, a do Sapo, a da<br />
Lagartixa e o Camin Novo, aonde, aos domingos,<br />
os namorados iam beijar, para escândalo<br />
das beatas e delícia da molecada, só na moita.<br />
Duas igrejas, duas pracinhas, um tímido comércio,<br />
economia rural.<br />
Famílias de mais posses dominavam a política,<br />
como em todo lugar. mas deixemos isso<br />
de lado. Uma delas produziu Sérgio Naya e outra,<br />
Acacinho, cientista respeitado, até por ter<br />
descoberto uma lagarta jurássica na região de<br />
Ouro Preto, batizada em sua homenagem: Peripatus<br />
acaciol. Muito chique.<br />
Erondina, por quaisquer dez tostões, abria<br />
as pernas, deleite da rapeize. Sobrinha minha,<br />
com três anos, a viu raspando as axilas e disse<br />
que ela estava “fazendo barba debaixo do braço”.<br />
Pascoalito, filho de espanhóis, impressionava<br />
porque, já avô de adultos, cuidava de três filhos<br />
quase de colo, cuja mãe, tísica, tratava-se<br />
num sanatório. Gostei de vê-lo um dia dedilhando<br />
um piano direitinho, numa loja. Tenho comigo<br />
que pianos, lá, eram mais comuns que geladeiras.<br />
Tanto que ouvi uma pianista dizer para<br />
sua amiga que havia chupado mexerica gelada,<br />
que luxo.<br />
Té Muié, casado, pai de duas filhas com<br />
fama de lésbicas, além de fuxiqueiro, era pedófilo,<br />
vivia dando em cima dos garotos. Estes, por<br />
sua vez, não davam trégua a Aristote, o doidinho<br />
local, tipo passar a mão na bunda. E macaqueavam<br />
um que sofria de dança-de-são-guido,<br />
patético, por exemplo, fazendo todo aquele esforço<br />
para acender o cigarro, maior ainda quando<br />
tinha que apanhar a caixa a caixa de fósforos<br />
que caía na calçada.<br />
Falava-se de tudo e de todos, e tudo ia<br />
dar aos ouvidos de padre Boanerges, um inquisidor.<br />
Mesmo mangas curtas as mulheres não podiam<br />
usar, por ordens dele, que ameaçava meninos<br />
e meninas com o fogo do inferno, até que<br />
confessassem seus atos “impuros”. Num sermão,<br />
disse que os comunistas acabariam por fazer o<br />
que foi feito durante a Revolução Francesa, que<br />
transformou igrejas em bordéis, instalando meretrizes<br />
nos altares.<br />
Contei isso a um que se diz católico praticante<br />
(no fundo chegado a um bordel) e falou<br />
que, se ouvisse o sermão, viraria comunista. Já<br />
outro padre que passou por lá brincava de roda,<br />
de mãos nas cadeiras, interpretando o Pai Francisco:<br />
“Não é que ele vem todo requebrado, parece<br />
um moleque desengonçado”.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Muito esquisito, num tempo em que a Igreja,<br />
soleníssima, falava latim.<br />
As moçoilas que ficavam “faladas” tinham<br />
que se mandar de lá, se quisessem casar, e o padre<br />
só lhes dava meia hóstia, o que levou uma<br />
delas a se recusar a abrir a boca. Bailes aconteciam<br />
no salão da prefeitura, os negros dançando<br />
do lado de fora, feito no tempo da senzala. Num<br />
carnaval, suprema audácia, três moças bonitas e<br />
ricas fantasiaram-se de bailarinas, mostrando as<br />
pernas, com um chicotinho, para espantar a mocidade<br />
louca. Curti muito o cineminha do padre<br />
e mais ainda um circo, onde vi o drama Sansão<br />
e Dalila, e Heloísa, “a garota que tem o micróbio<br />
do samba”, um dos epítetos que pensaram<br />
para Carmem Miranda.<br />
Havia só um farmacêutico, que também<br />
fazia partos, e um curandeiro. Hoje tem hospital,<br />
colégio, rádio, heliporto, talvez até motel, porém,<br />
no fundo, continua tudo como dantes, pelo<br />
que pude observar, trinta anos depois: na piscina<br />
do clube, uma fêmea mais donairosa era alvo de<br />
intensas investigações sobre sua, putativa, libido<br />
descontrolada. Sobre adultério, nos velhos tempos,<br />
só sei de um senhor que ia todo dia a Leopoldina,<br />
de terno e chapéu. “Jogar no bicho”<br />
diziam. Na verdade, ver amante, soube depois.<br />
Quanto às duas famílias que brigaram, o<br />
pau comeu, mas vou deixá-las brigando em paz,<br />
se é que isso é possível. É, sim, ou era, na Laranjal<br />
muito acanhada, e não menos assanhada,<br />
de antanho.<br />
Cataguases, 20.07.2003
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Luiz Ruffato<br />
Nasceu em Cataguases MG, reside em<br />
São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria<br />
destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />
de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido<br />
pela Associação Paulista de Críticos de Arte e<br />
o Prêmio Machado de Assis da Fundação<br />
Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou<br />
um escritor reconhecido no país. Em 2011<br />
concluiu o projeto Inferno Provisório, com a<br />
publicação do romance Domingos Sem Deus,<br />
iniciado com Mamma, son tanto Felice em<br />
2005, composto por cinco livros sobre o operariado<br />
brasileiro.<br />
Lendo os Clássicos<br />
Viagem à roda do meu quarto (1794)<br />
Expedição noturna à roda do meu quarto (1825)<br />
Xavier de Maistre (1763-1852) - França<br />
Tradução: Marques Rebelo<br />
São Paulo: Estação Liberdade, 1989, 160 páginas
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Os dois opúsculos são uma espécie<br />
de paródia às viagens de exploração a mundos<br />
desconhecidos, comuns no século XVIII. O narrador,<br />
proibido de "percorrer uma cidade, um<br />
ponto" (p. 77) por razões que, embora não fiquem<br />
claras, estão ligadas a motivos políticos,<br />
resolve empreender uma excursão pelo<br />
"universo inteiro" que representa seu quarto,<br />
tendo como companhia apenas seu criado Joanetti<br />
e sua cadela Rosina. Se na primeira parte<br />
trata de preencher quarenta e dois dias de solidão<br />
e exílio, na segunda parte, escrita trinta<br />
anos mais tarde, "sem pátria" e "sem emprego"<br />
(p. 83), descreve o período de apenas uma<br />
noite no mesmo cômodo de outrora. Irônico,<br />
bem-humorado, crítico, somos apresentados aos<br />
objetos que compõem o quarto e, entre um passo<br />
e outro, o narrador faz comentários sobre temas<br />
que associa de maneira aleatória, em um<br />
prenúncio do que viria a ser conhecido no final<br />
do século XIX como "fluxo de consciência". Tudo<br />
que observa motiva uma reflexão, e se outros<br />
propuseram peregrinar para vistoriar o mundo<br />
de fora, Xavier de Maistre nos convida a uma<br />
jornada para dentro. Talvez o maior mérito desta<br />
obra seja o legado a Machado de Assis (1839-<br />
1908), que, influenciado por seu estilo tortuoso<br />
e por suas tiradas metafísicas, meteu-lhe<br />
"algumas rabugens de pessimismo", como anotaria<br />
nas Memórias póstumas de Brás Cubas.<br />
Avaliação: BOM<br />
(Abril, 2016)<br />
Entre aspas<br />
"(...) a paixão obscurece a inteligência (...)" (p. 65)
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Ronaldo Cagiano<br />
Nasceu nem Cataguases MG e reside em<br />
São Paulo SP. Publica, regularmente, artigos e<br />
criticas literárias em diversos jornais e revis-tas<br />
do país e do exterior. Entre os vários já publicados<br />
destacam-se: Palavra Engajada (poesia<br />
1989) Exílio (poesia 1990) Palavracesa (poesia<br />
1994) Canção dentro da noite (poesia 1999) Dezembro<br />
indigesto (contos 2001) Concerto para<br />
arranhacéus (contos 2004) Dicionário de pequenas<br />
solidões (contos 2006) O sol nas feridas<br />
(poesia 2011) Moenda de silêncios (novela em<br />
parceria com Whisner Fraga 2012)e Eles não<br />
moram mais aqui (contos 2016).<br />
Catarse do luto, exorcismo da perda<br />
Na literatura, o luto vem sendo abordado de maneiras<br />
distintas por autores nacionais e estrangeiros,<br />
cada qual, à sua maneira, incursionando pela<br />
dor provocada pela morte, de modo a realizar<br />
não apenas a catarse de um passivo existencial,<br />
mas também como tentativa de compreensão<br />
dos mistérios da finitude ou para superação do<br />
trauma da perda.<br />
Nesse mergulho em busca de uma leitura peculiar<br />
ou pessoal da “Indesejada das Gentes”, vamos<br />
percorrer autores e obras paradigmáticos,<br />
que lançam um farol sobre o escuro que os habitam<br />
(ou a seus personagens) nesse momento doloroso,<br />
não apenas para minimizar a angústia de<br />
uma ausência, mas também para estabelecer um<br />
diálogo afetivo e íntimo (e às vezes confessional)<br />
com aqueles que partiram, seja para enfrentar<br />
uma realidade vivida ou na elaboração ficcional<br />
de um luto genérico. Assim, nos deparamos com<br />
uma literatura de atmosfera dilacerante, que vai<br />
deslindando esse processo de aceitação ou compreensão<br />
do luto como condição inafastável e<br />
que deflagra no ser um desejo íntimo e catártico<br />
de transcendência, que leva à percepção do frágil<br />
liame entre a morte e o morrer, entre o nascer<br />
e o partir.<br />
Essa relação com o pesar vai encontrar na bibliografia<br />
os mais pungentes momentos em que a<br />
expressão estética do sofrimento alcança também,<br />
e paradoxalmente, uma dimensão poética,<br />
como em Nada a temer, de Julian Barnes; O ano<br />
do pensamento mágico, de John Didion; Nora<br />
Webster, de Cólm Toibin; O brilho do bronze,<br />
de Boris Fausto; Diário do luto, de Roland<br />
Barthes; A desumanização, de Valter Hugo<br />
Mãe; Os verbos auxiliares do coração, de Péter<br />
Esterházi; e Carta a D – História de um amor, de<br />
André Gorz. São exemplos candentes e apaixonados<br />
de uma intervenção literária que vai além<br />
do simples relato ou do mero sentimento de<br />
exorcismo do terrível impacto que o desaparecimento<br />
de um ente querido é capaz de provocar.<br />
Tais situações, com todas as suas consequências<br />
emotivas muitas vezes incontornável, gera um<br />
estado emocional em que tristeza se mistura à<br />
culpa e acaba por prolongar a melancolia e a<br />
fragilidade e retardar a reconciliação com a realidade<br />
vigente ou com a própria vida.
Entre as obras que lidaram com a morte sem cair<br />
na exacerbação sentimental ou na caricatura da<br />
dor irremediável, podemos situar o recémlançado<br />
romance A definição do amor, do escritor<br />
Jorge Reis-Sá, uma das vozes mais originais<br />
da ficção portuguesa contemporânea, autor também<br />
dos belíssimos Todos os dias (2007) e O<br />
dom (20009), publicados no Brasil pela Record.<br />
O autor realiza uma profunda incursão nesse<br />
universo de estranhamento e incertezas por meio<br />
de um diário em que o personagem Francisco<br />
vivencia o fantasma da morte anunciada de sua<br />
mulher Susana, que está gravida, porém em coma<br />
após sofrer um AVC, inerte e inerme, levando<br />
uma vida vegetativa num leito de hospital.<br />
Desde a data da internação (3 de maio) até o<br />
desfecho final (13 de outubro, quando nada<br />
mais terá jeito), Francisco alterna as memórias e<br />
reflexões emotivas exteriorizadas em seu diário<br />
com o amálgama de outras vozes que se intercalam,<br />
em clave fragmentária, cujos textos designados<br />
como “Véspera” funcionam como uma<br />
perfeita alusão a uma espera de algo que não se<br />
concretiza e que igualmente são como distintas<br />
deambulações pelo território de outras dores.<br />
Numa linguagem extremamente elaborada, Reis-<br />
Sá dá voz a um homem tão imobilizado quanto<br />
a esposa, porque dominado pela impotência diante<br />
da realidade que o impossibilita de salvá-la<br />
e ao filho que ela carrega e que divide com a<br />
mãe a fronteira entre a luz e as trevas. Nessa<br />
busca, autor e personagem se alternam numa<br />
comunicação plena e epifânica ao mapear a contradição<br />
de duas vidas num ventre e num corpo<br />
que convive simbioticamente com dois extremos,<br />
na medida em que a antecipação de um<br />
luto vem na esteira da anunciação de uma vida<br />
gerada em meio ao mundo inóspito da inércia<br />
materna.<br />
Entre uma morta-viva e um ser (em gestação)<br />
vivo-morto que habita uma existência em estágio<br />
terminal (porque decretada a morte cerebral da<br />
sua progenitora) reside a metáfora da luta pela<br />
própria vida (e aí também se digladia com o dilema<br />
vital que sempre nos acompanha desde o<br />
nascimento, a peleja entre eros e thanatos). Esse<br />
relato, em síntese, carrega a força de um amor<br />
que busca entender os paradoxos de uma vida<br />
que deixa-se ir para que outra não se vá. Esse<br />
conflito metafórico – é preciso que a morte de<br />
um seja irrigação de um novo ser – está na raiz<br />
do (in)tenso diálogo que Francisco empreende,<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
de forma hercúlea, para superar o abismo intransponível<br />
de uma verdade imutável e alcançar<br />
uma certa dose de resignação diante de sua impotência<br />
com a abrupta interdição do futuro e da<br />
impossibilidade de viver sem Susana, abduzida<br />
pela crueldade do existir.<br />
O autor confere uma dimensão humana e não<br />
apocalíptica ao sofrimento, mas reconhece nessa<br />
história, a partir da belíssima epígrafe que toma<br />
emprestado do músico irlandês Bob Geldof e<br />
que abre o livro A lição de hoje é como morrer –<br />
que chegar e partir são apenas dois lados da<br />
mesma moeda, como cantou Milton Nascimento.<br />
E assim reafirma uma consciência racional sobre<br />
o lento aprendizado humano que cada episódio<br />
da vida nos delega na preparação para a morte.<br />
Eis um romance impactante, que traz a definição<br />
do amor como uma (e)terna viagem ao que poderia<br />
ter sido e não foi, e que a lenta agonia e a<br />
situação-limite vividas pelo protagonista definiram<br />
o seu olhar agudo sobre seu destino, ao<br />
abrir suas confissões logo no início: “Envelheci<br />
hoje a minha vida inteira”. E para não sucumbir<br />
ao império das Parcas, ele escreve para não esquecer<br />
e para não esquecê-la.<br />
Obra prima de um autor inventivo e versátil, que<br />
trata dos dramas pessoais com uma potência<br />
sensorial, uma carga emotiva, em linguagem depurada<br />
e extremo rigor estético, A definição do<br />
amor assegura o lugar de Jorge Reis-Sá entre os<br />
mais sensíveis estilistas da língua portuguesa.<br />
Livro: “A definição do amor”<br />
Autor: Jorge Reis-Sá<br />
Ed. Tordesilhas, 2016, 256 páginas
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Adelto Gonçalves<br />
Mestre em Língua Espanhola e Literaturas<br />
Espanhola e Hispano-americana e doutor<br />
em Literatura Portuguesa pela Universidade de<br />
São Paulo (USP), é autor de Os vira-latas da<br />
madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora,<br />
1981; Taubaté, Letra Selvagem,<br />
2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio<br />
de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona<br />
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São<br />
Paulo, Publisher Brasil, 2002),Bocage – o perfil<br />
perdido (Lisboa, Editorial Caminho,<br />
2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia<br />
Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado<br />
de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em<br />
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial<br />
(Imprensa Oficial do Esta do de São Paulo,<br />
2015), entre outros.<br />
Um romance da alma uruguaia<br />
I<br />
Embora seja dono de obra considerada um marco<br />
fundamental na literatura uruguaia do século<br />
XX, Francisco (Paco) Espínola (1901-1973) continuava<br />
inédito em outros idiomas. Esse estranho<br />
e inexplicável silêncio, porém, acaba de ser rompido<br />
com a publicação de seu romance Sombras<br />
sobre a terra (1933) pela editora Letra Selvagem,<br />
de Taubaté-SP, em tradução de Erorci Santana,<br />
com texto de “orelhas” do crítico e poeta Ronaldo<br />
Cagiano. Além de nota do editor, o livro traz<br />
prefácio do crítico uruguaio Leonardo Garet,<br />
professor do Instituto de Estudos Superiores e do<br />
Instituto de Filosofia, Ciências e Letras, de Montevidéu,<br />
e a reprodução do prefácio da terceira<br />
edição, de 1966, publicad a pelo Centro dos Estudantes<br />
de Direito de Montevidéu, escrito pelo<br />
crítico, historiador e ensaísta uruguaio (nascido<br />
na Argentina) Alberto Zum Felde (1889-1976).<br />
Garet deixa claro, em seu prefácio, que<br />
foi com dor que constatou que em América Latina<br />
en su literatura (México, Siglo Veintiuno,<br />
1972), obra de quase 500 páginas coordenada<br />
por César Fernández Moreno que conta com a<br />
participação de 27 colaboradores, adotada também<br />
no curso de Letras da Faculdade de Filosofia,<br />
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade<br />
de São Paulo (USP), não há uma citação<br />
do nome de Espínola. Só César Aira o reconhece<br />
em seu Diccionario de autores latinoamericanos<br />
(Buenos Aires, Emecé, 2001).
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
E, no entanto, Sombras sobre a terra não<br />
fica a dever a outros romances paradigmáticos<br />
da literatura hispano-americana, como Juntacadáveres,<br />
do também uruguaio Juan Carlos<br />
Onetti (1909-1994), Os passos perdidos, do cubano<br />
Alejo Carpentier (1904-1980), Pantaleão e<br />
as visitadoras, do peruano Mario Vargas Llosa,<br />
O obscuro pássaro da noite, de José Donoso<br />
(1925-1996), e Trópico enamorado, do boliviano<br />
Augusto Céspedes (1906-1997), outra obra nunca<br />
publicada no Brasil, embora tenha o porto de<br />
Santos como um de seus cenários.<br />
O romance teve sua edição de estréia<br />
em 1933, em Montevidéu, e ganhou segunda<br />
edição em 1939, em Buenos Aires. Seguiram-se<br />
mais uma edição em 1966 e outra em 2001<br />
(Clásicos Uruguayos), que inclui vários estudos<br />
preliminares, a propósito dos cem anos de nascimento<br />
do escritor. A edição brasileira surge agora<br />
depois que o editor Nicodemos Sena<br />
“descobriu” na livraria de alfarrábios El Galeón,<br />
na zona central de Montevidéu, um exemplar de<br />
1966, indicado por seu proprietário, Roberto Cataldo,<br />
para quem naquele romance “está a alma<br />
uruguaia”.<br />
II<br />
Sombras sobre a noite, como se percebe<br />
pelo título, é um daqueles romances ligados ao<br />
(sub)mundo noturno e seus notívagos, na linhagem<br />
de Agonia da noite, de Jorge Amado (1912<br />
-2001) e outros poucos na literatura brasileira. A<br />
exemplo de seus congêneres hispanoamericanos,<br />
aborda as relações humanas nas casas<br />
noturnas e nos prostíbulos. O protagonista,<br />
de nome Juan Carlos, é um órfão de pai assassinado<br />
e mãe vítima de tuberculose, que vive num<br />
imenso e solitário casarão aos cuidados da negra<br />
Basília e cresce no Baixo, el Bajo, como é conhecida<br />
a zona do baixo meretrício nas cidades<br />
latino-americanas, em meio a prostitutas, cafetões<br />
e outros seres marginalizados. Foi num<br />
prostíbulo que o jovem Juan Carlos encontrou<br />
refúgio e compreensão, além de iniciar-se nas<br />
artes do amor.<br />
Autobiográfico, o romance não tem,<br />
praticamente, um enredo que se possa seguir de<br />
fio a pavio, mas é formado por episódios que<br />
antes constituem flagrantes do modo de vida<br />
daqueles que transitam por aquele mundo às<br />
avessas. As prostitutas, porém, são extremamente<br />
humanas e mesmo aqueles que vivem do suor<br />
de suas mulheres no ofício que é considerado o<br />
mais antigo do mundo não são apresentados como<br />
seres cruéis ou vis, mas como “namorados”<br />
ou apenas “rapazes” enamorados de suas amantes.<br />
Não se pense também que o leitor aqui<br />
irá encontrar cenas tórridas ou eróticas. Pelo<br />
contrário. Haverá de perceber certo desencanto<br />
em cenas no bar de um prostíbulo em que há<br />
sempre um cantante de tangos, milongas e estilos<br />
(típica composição uruguaia para ser acompanhada<br />
ao violão) a lamentar a fatalidade daquela<br />
vida à margem, um purgatório para a entrada<br />
no paraíso que só virá com a morte. Por<br />
trás desse romance poético, ainda que realista,<br />
perpassa, porém, um sentimento de solidariedade<br />
com os menos favorecidos, os deserdados da<br />
terra.<br />
III<br />
Francisco Espínola nasceu, em San José<br />
de Mayo, a 4 de outubro de 1901. Era, portanto,<br />
maragato, como todo aquele que nasce no pequeno<br />
departamento de San José, que fica às<br />
margens do Rio da Prata e na área metropolitana<br />
de Montevidéu.<br />
O termo maragato aqui também tem a ver com<br />
os nossos maragatos, os sulistas que deram início<br />
à Revolução Federalista no Rio Grande do<br />
Sul, em 1893, contra os chimangos, os legalistas.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Eram chamados de maragatos não só por causa<br />
do lenço vermelho que traziam ao pescoço, mas<br />
porque vinham do exílio no Uruguai, exatamente<br />
na região de San José, que fora colonizada por<br />
espanhóis procedentes da comarca espanhola de<br />
Maragatería, na província de León.<br />
Espínola nasceu no seio de uma família<br />
de tradição blanca, ou seja, ligada ao Partido<br />
Blanco, de inspiração conservadora, cujo ideário,<br />
aparentemente, seguiu pelo menos até 1962,<br />
quando se filiou ao Partido Comunista Uruguaio.<br />
Foi professor e crítico literário e teatral. Combateu<br />
a ditadura de Gabriel Terra (1873-1942), advogado<br />
que ocupou a presidência da república<br />
uruguaia de 1931 e 1938. Alto dirigente do Partido<br />
Colorado, igualmente de ideário conservador,<br />
Terra liderou um golpe de estado em 1933,<br />
com o apoio do exército. Durante seu governo,<br />
colocou na prisão muitos adversários políticos,<br />
inclusive vários professores, como Espínola. Preso<br />
em 1935, Espínola seria felicitado na prisão<br />
por algu ns de seus algozes, que haviam tido a<br />
oportunidade de ler Sombras sobre a terra.<br />
Sua estréia literária deu-se em 1926<br />
com o livro de contos Raza ciega, no qual o crítico<br />
uruguaio Alberto Zum Felde viu similitudes<br />
com Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski<br />
(1821-1881). Escreveu ainda Saltoncito (1930),<br />
relato para crianças; El rapto y otros cuentos<br />
(1950); Milón o el ser del circo (1954), ensaio<br />
sobre estética; e Don Juan el Zorro (1968),<br />
três fragmentos de romance. Escreveu também<br />
peças de teatro. Em 1961, foi distinguido com o<br />
Grande Prêmio Nacional de Literatura do Ministério<br />
de Instrução Pública do Uruguai.<br />
No artigo “El Bajo maragato cruza fronteras”,<br />
publicado no semanário Busqueda, de<br />
Montevidéu, de 19 de fevereiro de 2015, a jornalista<br />
Silvana Tanzi, a propósito da então presumível<br />
publicação do romance no Brasil pela<br />
editora Letra Selvagem, traça um perfil de Espínola<br />
com a ajuda de um artigo de Alfredo Mario<br />
Ferreiro (1899-1959), em que este poeta dizia<br />
que o escritor fazia parte de uma geração que<br />
“vivia em ritmo lento e podia passar horas conversando<br />
no boliche”. Segundo Ferreiro, Espínola<br />
vestia-se sempre de preto com uma gravata e<br />
colarinho quebrado e engomado, usado em camisas<br />
destinadas a trajes formais como<br />
o smoking. “Dias houve em que Espínola falou<br />
pelo espaço de oito ou dez horas. E parecia um<br />
minuto”, recordou Ferreira, que era seu amigo.<br />
Espínola morreu durante a madrugada<br />
de 27 de julho de 1973, por coincidência dia em<br />
que ocorreu o golpe de Estado liderado pelo presidente<br />
Juan María Bordaberry (1928-2011), que<br />
instaurou um regime de exceção que duraria até<br />
28 de fevereiro de 1985. Naquela manhã, os<br />
uruguaios acordaram ao som de marchas militares<br />
que eram tocadas nas emissoras de rádio,<br />
prenunciando um período de muitas perseguições,<br />
torturas e assassinatos de opositores à ditadura.<br />
Sombras sobre a terra, de Francisco Espínola,<br />
tradução de Erorci Santana, com prefácio de Leonardo<br />
Garet, prólogo da terceira edição por Alberto<br />
Zum Felde, texto de “orelhas” de Ronaldo<br />
Cagiano e nota do editor Nicodemos Sena. Taubaté:<br />
Editora Letra Selvagem, 5ª edição (1ª em<br />
português), 360 págs., R$ 40,00, 2016.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
W. J. Solha<br />
Waldemar José Solha, escritor, cordelista,<br />
ator e artista plástico nascido em Sorocaba<br />
(SP), mora em João Pessoa (PB) desde 1962.<br />
É autor dos romances: Israel Rêmora (1975),<br />
A Canga (1978), A Verdadeira História de Jesus<br />
(1979), Zé Américo Foi Princeso no Trono<br />
da Monarquia (1984), A Batalha de Oliveiros<br />
(1989), Shake-up (1997).<br />
PARA FUGIR DOS VIVOS – romance de Eltânia André<br />
Não sei se todo mundo sentiu ou vai<br />
sentir o mesmo que eu ao ler esse romance: que<br />
ele fala do seu leitor. Talvez, no meu caso, porque<br />
os dois narradores são filhos de um carpinteiro<br />
que morre de pneumonia, como meu pai.<br />
Talvez porque um deles é funcionário do Banco<br />
do Brasil – do qual sou aposentado, e o outro,<br />
escritor – como eu. Depois do enterro do meu<br />
pai, ao voltar para a sua casa, vi um de seus<br />
chapéus cinzas, pensei em ficar com ele, mas ao<br />
levá-lo à cabeça descobri que o velho – que me<br />
parecia tão alto - era menor do que eu. No romance,<br />
esse é o símbolo maior do morto, objeto<br />
de que os filhos têm medo e que a mãe põe<br />
num altar.<br />
PARA FUGIR DOS VIVOS – dessa mineira de<br />
Cataguases radicada em São Paulo - é um livro<br />
triste. “Aprendi muito cedo que vida é solidão”,<br />
diz o primeiro narrador. E, noutro ponto: “não<br />
acredito nos homens, não acredito nas religiões,<br />
nem na política ou na filosofia, sequer no alívio<br />
material do consumo. Não há escapatória, quando<br />
se encara a vida a sangue frio. (...) Convivo<br />
com o vazio”. Mais adiante: “Nada muda com<br />
sua morte. Os ônibus continuam a circular, o<br />
comércio não fecha as portas, a engrenagem da<br />
vida funciona no mesmo ritmo”.<br />
Eltânia André habilidosamente constrói seus personagens<br />
pelas palavras que usam. A mulher<br />
com quem o bancário se casa é uma réplica da<br />
mãe que ele teve: “estou casada com um homem<br />
imprestável, não tem expediente para nada,<br />
é tudo eu: essa droga dessa lâmpada está<br />
queimada há dois dias e você nem se toca...” E<br />
a mãe, num passado um tanto distante:<br />
“Engenheiro! Engenheiro é profissão de gente<br />
rica. Ponha-se no seu lugar, (...) vá estudar para<br />
passar no concurso do Banco do Brasil ou da<br />
Caixa Econômica, isso sim é um destino promissor<br />
para você”.<br />
É impressionante quando ele enche, aqui e ali,<br />
meias páginas de expressões em que emperra,<br />
tipo “medroso medroso medroso medroso”,<br />
“burro burro burro burro”, ou “fracassado”,<br />
“estúpido”, “verme verme verme verme”. Miguel<br />
acaba, por essas e outras, um personagem<br />
difícil de esquecer. A parte final do romance,<br />
que é o seu livro, contrasta enormemente com a<br />
inicial, do irmão. Na sua narração, as paixões<br />
dominantes são o futebol e uma colega de quem<br />
não tem coragem de se aproximar. Na do outro,<br />
as referências são a Coleridge, Camus, Thomas<br />
Mann e assemelhados, e confissões como “uma<br />
resenha com crítica positiva da minha obra na<br />
Folha de São Paulo, página inteira, é uma descarga<br />
de libido superior a uma boa trepada. Ganhar<br />
prêmios nacionais: a foda perfeita; internacionais<br />
– o ápice do orgasmo”.<br />
A forte lembrança de uma infância extremamente<br />
angustiante une, desune os irmãos. Cada um<br />
segue seu rumo, até que – anos depois da morte<br />
do pai terrível, morre a terrível mãe e eles vão à<br />
casa dela e se desfazem de tudo. “Por fim, o<br />
caminhão veio e, em poucos minutos, os homens<br />
deixavam ecos pela casa vazia”.
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Clips<br />
SODOMA & GOMORRA, de José Heitor, volta, restaurada, ao chão onde foi<br />
exposta pela primeira vez, há <strong>47</strong> anos.<br />
Galeria do Cine Brasil, Além Paraíba MG.<br />
José Heitor - Escultura em madeira<br />
Com fotografias de Rodrigo Salgado e<br />
Carlos T. Moura, textos de Carlos T. Moura, o<br />
volume oferece-nos uma panorâmica da obra<br />
deste extraordinário escultor mineiro. José Heitor<br />
é figura ímpar nas artes da Zona da Mata<br />
Mineira.<br />
Para adquiri-la, os interessados podem<br />
contatar o Depto. De Cultura - Cine Brasil - (32)<br />
3462-9614 em Além Paraíba - MG.
Criador e criatura<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong>
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
Neste ambicioso e extraordinário romance, Luiz<br />
Ruffato recria literariamente a história do proletariado<br />
brasileiro, partindo dos anos 1950 e chegando<br />
até o início do século XXI. Publicado originalmente<br />
em cinco volumes, Inferno provisório ganha<br />
agora sua edição definitiva. Um dos grandes escritores<br />
brasileiros em atividade, Ruffato compôs um<br />
poderoso mosaico das andanças e agruras do trabalhador<br />
brasileiro. Narrado num calidoscópio de<br />
vozes, o romance dá a palavra aos desfavorecidos<br />
e às figuras invisíveis que construíram e transformaram<br />
nossas cidades e nossas fábricas. Verdadeiro<br />
épico proletário, Inferno provisório é uma saga<br />
descomunal sobre um Brasil que muitas vezes não<br />
queremos ver.<br />
Claudio Sesín, poeta catamarquenho, é um<br />
amigo e colaborador desta e-zine. Acabou de lançar<br />
seu “Celebraciones y Certezas” pela Mezcal,<br />
editora de Córdoba.<br />
Em seu prefácio diz Arturo Herrera: “... O poeta<br />
deste livro intensifica sua expressão até fazê-la<br />
cada vez mais pessoal e íntima; por momentos,<br />
parece ter as palavras como as únicas interlocutoras<br />
de seu diálogo. Este fato faz com que, algumas<br />
vezes, não seja tão fácil entender sua voz por este<br />
grau de familiaridade que tem desenvolvido com<br />
sua própria linguagem. Entretanto, é fácil senti-lo,<br />
fundamental em toda arte literária. ...”
A Arte & Letra é uma editora que tem alguns<br />
belos princípios afirmados por eles: “Desde<br />
o início, em 2001, lançamos poucos títulos e somos<br />
pequenos, uma opção que faz os nossos<br />
livros receberem uma grande atenção da ideia<br />
inicial até chegar às mãos do leitor. Gostamos de<br />
ser pequenos, de lançar poucos livros e assim<br />
vamos prosseguir. Cuidando de cada detalhe para<br />
no final termos um livro que desejamos ler de<br />
novo.”<br />
Em seu catálogo encontramos: A Busca de Luiz<br />
Ruffato que narra uma<br />
história que transita entre<br />
o Brasil e o Uruguai,<br />
entre o passado e o presente.<br />
A busca de um<br />
filho por seu pai que<br />
sumiu na ditadura uruguaia<br />
e o acaso que traz<br />
um estranho que pode<br />
finalmente ajudá-lo em<br />
seu objetivo.<br />
Com xilogravuras de André Ducci, o livro faz<br />
<strong>Chicos</strong> <strong>47</strong><br />
parte da segunda edição da coleção de Livros<br />
Artesanais. A impressão foi feita por um tipógrafo,<br />
que monta página por página do livro com<br />
linotipos e com as xilogravuras. O resultado desse<br />
processo totalmente artesanal, em que os livros<br />
são feitos um por um, em edições numeradas<br />
e de tiragem limitada (250 exemplares de<br />
cada título). Da textura do tecido que encobre a<br />
capa ao relevo da impressão do texto, o leitor<br />
tem uma experiência tátil com o objeto livro.<br />
Outra bela iniciativa é a publicação de Miguel<br />
de Cervantes.<br />
Entre 1590 e 1612 Miguel de<br />
Cervantes escreveu uma série de<br />
novelas curtas. Os doze textos<br />
foram publicados juntos em 1613<br />
com o título de Novelas Exemplares<br />
de Honestíssimo Entretenimento.<br />
O nome se dá por ser o primeiro exemplo<br />
em castelhano de um tipo de novela muito<br />
comum na Itália bem como o caráter moral e<br />
didático contido nelas.<br />
O que há em comum entre os seis personagens<br />
daquela rua que, como eles, tem charme no<br />
nome e delicadeza na alma?<br />
Uma leitura divertida que nos leva a descobrir as<br />
grandes surpresas dos pequenos acontecimentos.<br />
Ronaldo Cagiano<br />
(Im)previsível<br />
de Andréa Pelagagi<br />
Ilustrações de Luiz Zonzini<br />
Projeto gráfico de Tadeu Costa<br />
Revisão de Guilherme Salgado Rocha