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01 - A Guerra da Duquesa

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A GUERRA DA DUQUESA


A senhorita Minerva Lane era uma mulher retraí<strong>da</strong> e calma que se<br />

escondia atrás de seus óculos. Afinal, a última vez que tinha sido o centro <strong>da</strong>s<br />

atenções, tinha terminado muito mal. Tanto é assim que ela tinha mu<strong>da</strong>do seu<br />

nome para escapar de seu passado escan<strong>da</strong>loso. Sempre passava despercebi<strong>da</strong>,<br />

provavelmente nunca seria a rainha <strong>da</strong> festa, mas tampouco fazia inimigos.<br />

Assim, quando um belo Duque veio para a ci<strong>da</strong>de, a última coisa que ela<br />

queria era que a notasse.<br />

Mas isso foi exatamente o que aconteceu.<br />

Porque Robert Blaisdell, o Duque de Clermont, não se deixou enganar por<br />

sua timidez. Quando a mulher adivinhou a que ele se propunha, ele percebeu<br />

que havia mais nela do que seus óculos e sua forma inibi<strong>da</strong>. Ele decidiu<br />

descobrir seus segredos antes que ela descobrisse o seu. Mas, no final, a mulher<br />

retraí<strong>da</strong> provou ser a fôrma de seu sapato e algo mais.


CAPÍTULO 1<br />

Leicester, novembro de 1863<br />

Robert BLAISDELL, NONO DUQUE DE CLERMONT, não se escondia.<br />

Era certo que tinha subido à biblioteca <strong>da</strong> Casa do Conselho, que tinha se afastado bastante <strong>da</strong><br />

multidão embaixo, de modo que o ruído tinha se convertido em um retumbar distante. E era certo que não<br />

havia mais ninguém por ali. E que estava de pé atrás de grossas cortinas de veludo azul cinzento que o<br />

ocultavam <strong>da</strong> vista. Como também era certo que, para chegar ali, tinha tido que mover o velho sofá de<br />

couro marrom.<br />

Mas não tinha feito tudo isso para se esconder, mas sim porque, e isso era um ponto chave em sua<br />

linha de pensamento lógico, naquela sala centenária de madeira e gesso apenas uma <strong>da</strong>s folhas <strong>da</strong> janela<br />

se abria e, casualmente, era a que ficava escondi<strong>da</strong> atrás do sofá.<br />

Ali estava, cigarro em mãos, com a fumaça elevando-se no frio ar outonal. Não se escondia, só<br />

tentava preservar <strong>da</strong> fumaça os livros antigos.<br />

Uma desculpa na qual possivelmente ele mesmo teria acreditado... Se fosse fumante.<br />

Através do cristal velho podia distinguir a pedra escureci<strong>da</strong> <strong>da</strong> igreja situa<strong>da</strong> justo em frente. A luz <strong>da</strong><br />

rua lançava sombras imóveis sobre o pavimento. Alguém tinha empilhado um montão de folhetos contra a<br />

porta, mas a brisa outonal os tinha espalhado pela rua e os jogado nas poças d'água.<br />

Aquilo era um desastre. Um condenado desastre. Robert sorriu e golpeou a ponta do cigarro contra a<br />

janela, lançando cinzas nas pedras embaixo.<br />

O fraco rangido de uma porta se abrindo o sobressaltou. Voltou-se ao ouvir o ruído <strong>da</strong>s tábuas de<br />

madeira do chão. Alguém tinha subido as esca<strong>da</strong>s e tinha entrado na biblioteca. Os passos eram leves…<br />

de mulher, possivelmente, ou de um menino. Também eram estranhamente hesitantes. A maioria <strong>da</strong>s<br />

pessoas que subia à biblioteca no meio de um sarau musical tinha um motivo para fazê-lo. Um encontro<br />

clandestino, talvez, ou a busca por um parente perdido.<br />

De seu lugar privilegiado atrás <strong>da</strong>s cortinas, Robert podia ver apenas uma parte <strong>da</strong> sala. A pessoa em<br />

questão se aproximou mais, com passos ain<strong>da</strong> hesitantes. Não podia vê-la, mas a ouvia deter-se<br />

frequentemente para examinar o que a rodeava.<br />

Não chamava a ninguém nem fazia uma busca decidi<strong>da</strong>. Não parecia estar à procura um amante<br />

oculto. Mas seus passos <strong>da</strong>vam volta em torno <strong>da</strong> sala.<br />

Robert demorou meio minuto em <strong>da</strong>r-se conta de que tinha esperado muito para anunciar sua<br />

presença.<br />

– Oh! – podia dizer. – Estava admirando o gesso. Está muito bem posto neste lado, não lhe parece?<br />

A mulher, pois Robert estava seguro de que era uma mulher, o tomaria por louco. E até o momento,<br />

ninguém tinha chegado ain<strong>da</strong> a essa conclusão. Assim, em vez de falar, jogou o cigarro pela janela e este<br />

caiu com a ponta laranja brilhante para o chão até que aterrissou em uma poça e se apagou.


Quão único via do cômodo era meia estante de livros, a parte traseira do sofá e, ao lado, uma mesa<br />

com um jogo de xadrez em cima. O jogo estava iniciado. Pelo pouco que recor<strong>da</strong>va Robert <strong>da</strong>s regras,<br />

estavam ganhando as negras. A visitante se aproximou e Robert se encostou mais à janela.<br />

Ela entrou em seu campo de visão.<br />

Não era uma <strong>da</strong>s jovens às quais tinha visto antes no salão. Essas eram to<strong>da</strong>s belezas que esperavam<br />

que prestasse atenção nelas. E a visitante, quem quer que fosse, não era uma beleza. Levava o cabelo<br />

moreno recolhido em um coque sério na nuca. Seus lábios eram finos; e seu nariz, afilado e um pouco<br />

grande. Usava um vestido azul escuro com cós de cor marfim, sem ren<strong>da</strong>s nem laços, só de tecido<br />

singelo. Até o corte do vestido parecia severo: uma cintura tão aperta<strong>da</strong> que Robert não sabia como<br />

podia respirar e umas mangas que caíam dos ombros até os pulsos sem nenhuma sobra de tecido de<br />

enfeite que suavizasse a imagem.<br />

Não viu Robert atrás <strong>da</strong> cortina. Tinha inclinado a cabeça de lado e contemplava o jogo de xadrez<br />

com a mesma expressão com a qual um membro <strong>da</strong> Liga <strong>da</strong> Moderação olharia uma garrafa de brandy,<br />

como se fosse um diabo ao qual teria que espantar com orações e hinos. Ou, em sua falta, com a lei<br />

marcial.<br />

A mulher adiantou um passo e depois outro. A seguir colocou a mão na bolsinha de se<strong>da</strong> que trazia<br />

pendura<strong>da</strong> no punho e tirou uns óculos.<br />

As lentes deveriam ter acentuado seu ar severo, mas produziram o efeito contrário, suavizaram seu<br />

olhar.<br />

Robert a tinha julgado mal. A mulher não apertava os olhos com desdém, entreabria-os para ver<br />

melhor. Não era severi<strong>da</strong>de o que via em seu olhar a não ser algo muito diferente, algo que não conseguia<br />

identificar de tudo. Ela tomou um cavalo negro do tabuleiro e o virou na mão uma e outra vez. Robert não<br />

via na<strong>da</strong> na peça que merecesse tanta atenção. Era de madeira sóli<strong>da</strong>, sem na<strong>da</strong> especial. Entretanto, ela a<br />

estu<strong>da</strong>va com olhos grandes e luminosos.<br />

Logo, inexplicavelmente, a levou aos lábios e a beijou.<br />

Robert a olhou petrificado. Quase tinha a sensação de interromper um encontro amoroso entre uma<br />

mulher e seu amante. Aquela mulher tinha segredos e não queria compartilhá-los.<br />

A porta <strong>da</strong> sala voltou a ranger de novo.<br />

A mulher abriu muito os olhos como se estivesse com medo. Olhou frenética a seu redor e se lançou<br />

por cima do sofá; em sua pressa por esconder-se, aterrissou no chão a dois pés de distância de Robert.<br />

Não o viu nem sequer então. Fez-se uma bola, envolvendo o vestido ao redor de seu corpo por trás <strong>da</strong><br />

barreira do sofá. Sua respiração era ofegante e superficial.<br />

Menos mal que Robert tinha movido um pouco o sofá ou a mulher jamais teria conseguido esconder<br />

atrás dele a ela e ao vestido!<br />

Seguia apertando o cavalo na mão; empurrou-o com violência debaixo do sofá.<br />

Nessa ocasião se ouviram passos pesados na estadia.<br />

– Minnie? – chamou uma voz de homem. – Senhorita Pursling?<br />

Está aqui?<br />

Ela enrugou o nariz e se apertou contra a parede. Não respondeu.


– Uau! – disse outra voz que Robert não reconheceu. Uma voz jovem e meio pastosa pela bebi<strong>da</strong>. –<br />

Não invejo a essa mulher.<br />

– Não fale mal de minha quase prometi<strong>da</strong> – respondeu a primeira voz. – Você sabe que é perfeita para<br />

mim.<br />

– Essa ratinha tími<strong>da</strong>?<br />

– Cui<strong>da</strong>rá bem de casa. Se ocupará do meu conforto. Se encarregará dos meninos e não se queixará<br />

<strong>da</strong>s minhas amantes – se ouviu um ranger de dobradiças, o som inconfundível de alguém que abria uma<br />

<strong>da</strong>s portas de cristal que protegiam as estantes de livros.<br />

– O que faz, Gardley? – perguntou o homem bêbado. – A procura entre os volumes em alemão? Não<br />

acredito que caiba aí – terminou com uma gargalha<strong>da</strong>.<br />

Gardley. Podia ser o ancião senhor Gardley, dono de uma destilaria, mas a voz soava jovem, assim<br />

devia ser o senhor Gardley filho. Robert o tinha visto a distância: um indivíduo anódino de estatura<br />

média, cabelo castanho e traços que lhe recor<strong>da</strong>vam vagamente os de cinco pessoas mais.<br />

– Ao contrário – dizia o Gardley jovem. – Acredito que caberia muito bem. No que se refere a<br />

esposas, a senhorita Pursling será igual a esses livros. Quando queira lê-la, ela estará aí. Quando não,<br />

esperará pacientemente, no mesmo lugar onde a deixei. Será uma esposa cômo<strong>da</strong> para mim, Ames. Além<br />

disso, a minha mãe aprova.<br />

Robert não acreditava conhecer Ames. Encolheu os ombros e olhou a que supunha devia ser a<br />

senhorita Pursling para ver como reagia a essa revelação.<br />

Ela não se mostrava nem surpreendi<strong>da</strong> nem escan<strong>da</strong>liza<strong>da</strong> pelos comentários pouco românticos de seu<br />

quase prometido. Parecia mais era resigna<strong>da</strong>.<br />

– Terá que se deitar com ela, sabe? – perguntou Ame.<br />

– Certo. Mas, graças a Deus, não muito frequentemente.<br />

– É como um camundongo. E como todos os ratos, é claro que chiará quando nela se enterrar.<br />

Houve um ruído surdo.<br />

– O que? –protestou Ames.<br />

– Está falando de minha futura esposa.<br />

Robert pensou que possivelmente Gardley não fosse tão mau depois de tudo.<br />

Até que o ouviu continuar:<br />

– Eu sou o único que pode pensar em se enterrar nesse camundongo.<br />

A senhorita Pursling apertou os lábios e ergueu a vista como se implorasse ao céu. Mas dentro <strong>da</strong><br />

biblioteca não havia céu ao que implorar. E quando ergueu a vista e olhou através <strong>da</strong> separação <strong>da</strong>s<br />

cortinas…<br />

Seu olhar se encontrou com o de Robert. A mulher abriu muito os olhos. Não gritou nem lançou um<br />

coice. Nem mesmo se moveu. Simplesmente lhe lançou um olhar terrivelmente acusador e lhe tremeram<br />

as aletas do nariz.<br />

Robert não pôde fazer outra coisa que saudá-la com um gesto de mão.<br />

Ela tirou os óculos e se voltou com tanto desdém que ele teve que olhá-la para assegurar-se de que<br />

estava senta<strong>da</strong> a seus pés. E de que, do ângulo onde estava em cima dela, podia ver o interior de seu


decote, justo a única parte <strong>da</strong> figura dela que não lhe parecia severa, mas suave.<br />

“Guarde isso para depois”, disse-se, e ergueu o olhar umas polega<strong>da</strong>s. Como ela se virou, ele viu<br />

pela primeira vez uma débil cicatriz em sua bochecha, uma espécie de teia de aranha branca com linhas<br />

cruza<strong>da</strong>s.<br />

– Seja qual lugar que seu camundongo foi, não está aqui – dizia Ame. – Provavelmente estará no<br />

quarto <strong>da</strong>s <strong>da</strong>mas. Eu digo que voltemos para a diversão. Sempre pode dizer a sua mãe que falaste com<br />

ela na biblioteca.<br />

– Certo – repôs Gardley. – E não tenho que lhe dizer que ela não estava presente para responder. De<br />

todo modo, tampouco diria alguma coisa se estivesse.<br />

Seus passos se afastaram. A porta voltou a ranger e os homens saíram.<br />

A senhorita Pursling não olhou para Robert nem se dignou a reconhecer sua existência de nenhum<br />

outro modo. Ficou de joelhos, fechou o punho e golpeou com ele a parte de atrás do sofá, uma, duas<br />

vezes, com tanta força que o golpe moveu o móvel para diante, e este pesava alguns quilos.<br />

Robert lhe deteve a mão antes que golpeasse pela terceira vez.<br />

– Vamos, vamos – murmurou. – Você não quer se machucar por ele. Não vale a pena.<br />

Ela o olhou com um olhar irado. Como alguém podia chamar aquela mulher de tími<strong>da</strong>. Era puro<br />

desafio. Soltou-lhe o braço antes que a fúria feminina pudesse percorrer a mão dele e consumi-lo. Já<br />

tinha raiva suficiente com a sua própria.<br />

– Eu não me importo – respondeu ela. – Ao que parece, não sou capaz de aju<strong>da</strong>r a mim mesma.<br />

Robert quase deu um salto. Não sabia como tinha imaginado sua voz. Agu<strong>da</strong> e severa como sugeria<br />

seu aspecto? Possivelmente tinha esperado um chiado, como se fosse o camundongo que haviam dito os<br />

outros homens. Mas aquela voz era quente e profun<strong>da</strong>mente sensual. Uma voz que fez que de repente<br />

ficasse muito consciente de que ela estava de joelhos diante dele com a cabeça quase ao nível de sua<br />

virilha.<br />

“Guarde isso para depois também”.<br />

– Sou um camundongo. Os ratos chiam quando os cravam – ela voltou a golpear o sofá. Se continuasse<br />

assim, acabaria machucando-se nos nódulos. – Você também quer me cravar?<br />

"Isso também ficaria para mais tarde."<br />

– Não – graças a Deus, as divagações mentais não contavam; ou todos os homens arderiam no inferno<br />

por to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de.<br />

– Sempre se esconde atrás <strong>da</strong>s cortinas para escutar conversas priva<strong>da</strong>s?<br />

Robert notou que lhe ardiam as pontas <strong>da</strong>s orelhas.<br />

– Você sempre salta detrás dos sofás quando ouve a chega<strong>da</strong> do seu prometido?<br />

– Sim – disse ela, desafiante. – Não o ouviu? Sou como um livro que deixaram esquecido. Um dia um<br />

de seus serventes me encontrará coberta de pó quando fizerem limpeza geral. “Ah”, dirá o mordomo. “Aí<br />

foi onde acabou a senhorita Wilhelmina. Tinha-me esquecido dela”.<br />

Wilhelmina Pursling? Que nome tão horroroso!<br />

A jovem respirou fundo.


– Por favor, não conte isso a ninguém – fechou os olhos e apertou as pálpebras com os dedos. – Por<br />

favor, parta, quem quer que seja.<br />

Robert afastou a cortina e se colocou diante do sofá. Já não podia vê-la, somente imaginá-la<br />

amontoa<strong>da</strong> no chão, furiosa até estar á beira <strong>da</strong>s lágrimas.<br />

– Minnie – disse. Não era amável chamá-la por um nome tão íntimo, mas ele queria ouvi-lo em sua<br />

voz.<br />

Ela não respondeu.<br />

– Dar-lhe-ei vinte minutos – disse ele. – Se então não a vir lá embaixo, subirei para procurá-la.<br />

A mulher demorou um momento em responder.<br />

– O bom do matrimônio é que me dá direito à monogamia – disse por fim. – É suficiente que só um<br />

homem tente ditar meu paradeiro, não lhe parece?<br />

Robert olhou o sofá, confuso, até que se deu conta de que ela tinha interpretado que ele a tinha<br />

ameaçado buscá-la a força.<br />

Ele se saía bem em muitas coisas, mas a comunicação com as mulheres não era uma delas.<br />

– Não queria dizer isso – murmurou. – É apenas que… – se aproximou do sofá e se agachou por cima<br />

<strong>da</strong> bor<strong>da</strong> de pele. – Se uma mulher a que apreciasse se escondesse atrás do sofá, iria querer que alguém<br />

se incomo<strong>da</strong>sse em ver se, se encontra bem.<br />

Essa vez a pausa foi mais longa. Logo ouviu rumor de tecido e ela o olhou. Seu cabelo tinha<br />

começado a fugir do coque severo e pendurava em torno de seu rosto, suavizando seus traços e realçando<br />

a brancura páli<strong>da</strong> de sua cicatriz. Não era bonita, mas sim… interessante. E não lhe importaria ouvir sua<br />

voz to<strong>da</strong> a noite.<br />

Ela o olhava perplexa.<br />

– Oh! –exclamou. – Tenta ser amável – falava como se nunca lhe tivesse passado pela cabeça essa<br />

possibili<strong>da</strong>de. Suspirou e moveu a cabeça. – Mas sua amabili<strong>da</strong>de está mal dirigi<strong>da</strong>. Verá, isso –<br />

assinalou a porta por onde seu quase prometido tinha desaparecido– é o melhor a que posso aspirar.<br />

Levo anos desejando algo assim. Assim que essa ideia deixe de me ser indigesta, casarei-me com ele.<br />

Não havia nem rastro de sarcasmo em sua voz. Ficou em pé. Arrumou o coque com um gesto eficiente<br />

e alisou as saias até que recuperou seu ar de correção.<br />

Somente então se agachou e buscou debaixo do sofá até encontrar o cavalo. Examinou o tabuleiro,<br />

inclinou a cabeça de lado e devolveu a peça a seu lugar com muito cui<strong>da</strong>do.<br />

Quando saiu pela porta, Robert seguia observando-a em silêncio, tentando encontrar sentido em suas<br />

palavras.<br />

Minnie DESCEU A ESCADA QUE LEVAVA a biblioteca até o pátio em penumbra situado ao lado do<br />

Grande Salão. O pulso disparado com força ain<strong>da</strong>. Tinha temido por um momento que aquele homem<br />

começasse a interrogá-la. Mas não, tinha escapado sem que lhe fizesse perguntas. Tudo voltava a ser<br />

como sempre: tranquilo e incrivelmente aborrecido. Justo o que necessitava. Nisso não havia na<strong>da</strong> a<br />

temer.


Lembrou-se do concerto que, sofrivelmente executado pela parca habili<strong>da</strong>de do quarteto de cor<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

região, mal se ouvia no jardim. A escuridão pintava de cinza o pátio aberto. Embora tampouco haveria<br />

muitas cores com a luz do dia; somente a pedra azul cinzenta que formava o pátio e o gesso envelhecido<br />

<strong>da</strong>s paredes de vigas de madeira. Umas quantas ervas tinham brotado insistentes entre as gretas <strong>da</strong>s<br />

pedras que pavimentavam o chão, mas tinham murchado até adquirir um tom sépia. Quase não mostravam<br />

cor no azul marinho profundo <strong>da</strong> noite. Ao lado <strong>da</strong> porta do salão havia umas figuras na penumbra com<br />

copos na mão. Ali fora tudo estava apagado: as cores, o som e o torvelinho de emoções de Minnie.<br />

A apresentação musical tinha atraído um número surpreendente de pessoas. Tantas que a sala<br />

principal estava a transbor<strong>da</strong>r, com todos os assentos ocupados e algumas pessoas de pé. Era estranho<br />

que os fracos acordes de um Beethoven mal interpretado cativassem a tanta gente, mas as pessoas tinham<br />

ido em massa. Uma olha<strong>da</strong> ao salão cheio e Minnie tinha retrocedido com o estômago tenso por um semfim<br />

de nós. Não podia entrar ali.<br />

Possivelmente pudesse fingir-se doente. De fato, nem teria que fingir muito.<br />

Mas…<br />

Abriu-se uma porta detrás dela.<br />

– Senhorita Pursling. Está aqui.<br />

Minnie se sobressaltou e se voltou no ato.<br />

O Conselho de Leicester era um edifício antigo, uma <strong>da</strong>s poucas estruturas de madeira <strong>da</strong> época<br />

medieval que não tinha padecido em algum incêndio. Ao longo dos séculos tinha servido para diferentes<br />

usos. Era lugar de encontro para eventos como aquele, sala de reuniões para o prefeito e seus vereadores,<br />

ou armazém para os objetos cerimoniosos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Inclusive tinham convertido uma de suas alas em<br />

celas para presos. Um lado do pátio era de tijolo em vez de gesso e ali tinha sua sede o chefe de polícia.<br />

Essa noite, entretanto, estavam usando o Grande Salão, e por isso Minnie não esperava encontrar<br />

ninguém do escritório do prefeito.<br />

Uma figura cora<strong>da</strong> se aproximou dela com passos rápidos e seguros.<br />

– Lydia leva meia hora procurando-a. E eu também.<br />

Minnie respirou alivia<strong>da</strong>. George Stevens era um sujeito decente. Melhor que os dois caipiras dos<br />

quais tinha escapado. Era o capitão <strong>da</strong> tropa <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e o prometido de sua melhor amiga.<br />

– Capitão Stevens. Há tanta gente aí dentro! Tive que sair para tomar ar.<br />

– De ver<strong>da</strong>de? – ele se aproximou mais. Ao princípio era só uma sombra. Logo se aproximou o<br />

suficiente para que ela o visse sem óculos e distinguisse seus traços familiares; seu bigode jovial e suas<br />

gor<strong>da</strong>s costeletas.<br />

– Não gosta <strong>da</strong>s multidões, ver<strong>da</strong>de? – perguntou ele com voz solícita.<br />

– Não.<br />

– Por que não?<br />

– Simplesmente, nunca gostei.<br />

Mas não era ver<strong>da</strong>de. Minnie tinha uma vaga lembrança de homens rodeando-a, chamando-a em voz<br />

alta para falar com ela. Naquele tempo não havia possibili<strong>da</strong>de de paquerar. Ela tinha oito anos e se<br />

vestia como um menino, mas tinha havido um tempo no qual a energia vibrante <strong>da</strong>s multidões a tinha<br />

estimulado em vez de lhe produzir nós no estômago.


O capitão Stevens se situou a seu lado.<br />

– Tampouco gosto <strong>da</strong>s framboesas – confessou Minnie. – Me fazem cócegas na garganta.<br />

Ele a olhou com o cenho franzido. Esfregou os olhos como se não estivesse seguro do que via.<br />

– Vamos – Minnie sorriu. – Faz anos que me conhece e nunca gostei <strong>da</strong>s reuniões com muita gente.<br />

– Não – respondeu ele, pensativo. – Mas verá, senhorita Pursling. Dá a casuali<strong>da</strong>de de que a semana<br />

passa<strong>da</strong> fui a Manchester a negócios.<br />

“Não mostre nenhuma reação”. Isso era algo que Minnie tinha muito inculcado. Seguiu sorrindo e<br />

alisando as saias sem permitir que a paralisasse o medo. Mas ouvia um grande rugido em seus ouvidos e<br />

o coração lhe pulsava com força.<br />

– Oh! – sua voz lhe pareceu muito corajosa, e muito crispa<strong>da</strong>. – Meu antigo lar. Faz tanto tempo!<br />

Como a encontrou?<br />

– Estranha – ele deu um passo mais para ela. – Visitei o antigo bairro de sua tia avó Caroline. Minha<br />

intenção era simplesmente conversar cortesmente, <strong>da</strong>r suas notícias às pessoas que pudessem recordá-la<br />

de menina. Mas ninguém recor<strong>da</strong>va que a irmã de Caroline se casou. Procurei e não encontrei seu<br />

nascimento no registro <strong>da</strong> paróquia.<br />

– Que estranho! – Minnie olhou os paralelepípedos do chão. – Não sei onde registraram meu<br />

nascimento. Terá que falar com a tia avó Caroline.<br />

– Ninguém ouviu falar de você. Viveu no mesmo bairro onde ela se criou, não é assim?<br />

O vento açoitava o pátio com um assobio lastimoso de dois tons. O coração de Minnie pulsava com<br />

um ritmo similar. “Agora não. Agora não. Por favor, não te derrube agora”.<br />

– Nunca gostei <strong>da</strong>s multidões – se ouviu dizer. – Nem sequer então. Não era muito conheci<strong>da</strong> quando<br />

menina.<br />

– Humm.<br />

– Era tão jovem quando parti que temo que não posso lhe aju<strong>da</strong>r.<br />

Pouco recordo de Manchester. A tia avó Caroline, por outra parte…<br />

– Mas não é sua tia avó quem me preocupa – interveio ele, devagar. – Sabe que manter a paz é parte<br />

de meus deveres.<br />

Stevens sempre tinha sido um homem sério. Embora no ano anterior só tinham tido que recorrer à<br />

tropa uma vez, e tinha sido para que aju<strong>da</strong>ssem a combater um fogo, tomava seu trabalho muito a sério.<br />

A confusão de Minnie já não era fingi<strong>da</strong>.<br />

– Não compreendo. O que tem a ver tudo isto com a paz?<br />

– Estes tempos são perigosos – repôs ele. – Eu formei parte <strong>da</strong> tropa que reprimiu as manifestações<br />

dos cartistas em 42 e não esqueci como começaram.<br />

– Isto não tem na<strong>da</strong> a ver com…<br />

– Lembro-me dos dias antes que explodisse a violência – prosseguiu ele com frieza. – Sei como<br />

começa. Começa com alguém que diz aos operários que deveriam ter voz própria em vez de fazer o que<br />

lhes man<strong>da</strong>m. Reuniões. Bate-papos. Panfletos. Ouvi o que disse como membro <strong>da</strong> Comissão de Higiene<br />

dos Operários, senhorita Pursling. E eu não gosto. Eu não gosto na<strong>da</strong>.<br />

Sua voz se tornou muito fria e Minnie sentiu um calafrio nos braços.


– Mas eu apenas disse que era…<br />

– Sei o que disse. Naquele momento o atribuí a simples ingenui<strong>da</strong>de. Mas agora sei a ver<strong>da</strong>de. Você<br />

não é quem diz ser. Mente.<br />

O coração de Minnie começou a pulsar com mais força. Olhou a sua esquer<strong>da</strong>, ao pequeno grupo<br />

situado a dez pés dela. Uma <strong>da</strong>s garotas bebia ponche e ria. Se gritasse, certamente…<br />

Mas gritar não serviria de na<strong>da</strong>. Por impossível que parecesse, alguém tinha descoberto a ver<strong>da</strong>de.<br />

– Não posso estar seguro – disse o homem. – Mas sinto nos ossos que ocorre algo. Você é parte disto<br />

– lhe passou um papel; empurrou-o até quase golpeá-la com ele no rosto.<br />

Minnie pegou automaticamente e o ergueu à luz que saía <strong>da</strong>s janelas. Por um segundo não soube o que<br />

tinha na mão. Um artigo de jornal? Tinha havido muitos. Mas o papel não tinha a textura do jornal. Sua<br />

certidão de nascimento? Aquilo podia ser grave. Tirou os óculos do bolso.<br />

Quando por fim pôde lê-lo, quase soltou uma gargalha<strong>da</strong> de alívio. Com to<strong>da</strong>s as acusações que ele<br />

podia lhe haver feito; com to<strong>da</strong>s as mentiras que tinha contado ela, começando com a de seu nome, e<br />

Stevens pensava que estava mescla<strong>da</strong> naquilo? O capitão lhe tinha <strong>da</strong>do um santinho como os que<br />

apareciam nas paredes <strong>da</strong>s fábricas e deixavam em montões desordenados nas portas <strong>da</strong>s Igrejas.<br />

OPERÁRIOS, dizia a primeira linha em grandes letras maiúscula. E debaixo: se organizem, SE<br />

organizem, SE organizem!!!!<br />

– Oh, não! – protestou ela. – É a primeira vez que vejo isto. E não é meu – para começar, porque ela<br />

considerava uma abominação qualquer frase que usasse mais exclamações que palavras.<br />

– Estão por to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de – grunhiu ele. – Alguém é responsável por eles – ergueu um dedo. – Você se<br />

ofereceu para fazer os panfletos <strong>da</strong> Comissão de Higiene dos Operários. Assim tinha uma desculpa para<br />

visitar to<strong>da</strong>s as imprensas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

– Mas…<br />

Ele ergueu um segundo dedo.<br />

– E foi você a que sugeriu que os operários participassem <strong>da</strong> Comissão.<br />

– Eu apenas disse que devíamos perguntar aos operários se tinham acesso a água corrente. Se não o<br />

fazíamos, faríamos todo o trabalho e depois descobriríamos que sua saúde não tinha mu<strong>da</strong>do em na<strong>da</strong>. Há<br />

um longo caminho entre isso e sugerir que se organizem.<br />

Ele levantou o terceiro dedo.<br />

– Suas tias avós participam dessa horrível cooperativa de mantimentos e eu sei que você contribuiu<br />

para organizá-la.<br />

– Uma transação de negócios. O que importa onde guar<strong>da</strong>mos nossas couves?<br />

Stevens a apontou com os três dedos.<br />

– Tudo encaixa. Você simpatiza com os operários e não é quem diz ser. Alguém os aju<strong>da</strong> a imprimir<br />

os santinhos. Deve acreditar que sou muito idiota para assinar desse jeito – assinalou o pé do santinho,<br />

onde havia um nome.<br />

Minnie o olhou através <strong>da</strong>s lentes.<br />

Não era um nome, era um pseudônimo.


– De minimis – leu. Não tinha estu<strong>da</strong>do latim, mas sabia um pouco de italiano e bastante de francês e<br />

pensou que significava algo como “pequeno”. Algo minúsculo.<br />

– Não compreendo – moveu a cabeça. – O que tem a ver isso comigo?<br />

– De. Minnie. – ele pronunciou as sílabas por separado, <strong>da</strong>ndo um tom estranho a seu nome. –<br />

Acredito que me toma por tolo, senhorita Minnie.<br />

Aquilo tinha uma espécie de lógica, tão retorci<strong>da</strong> que ela teria rido com vontade… a não ser porque<br />

as consequências <strong>da</strong> pia<strong>da</strong> não tinham na<strong>da</strong> de diverti<strong>da</strong>s.<br />

– Não tenho provas – disse ele. – E como sua amizade com minha futura esposa é pública e notória,<br />

não desejo vê-la humilha<strong>da</strong> publicamente e acusa<strong>da</strong> de rebelião criminal.<br />

– Rebelião criminal! – exclamou ela com increduli<strong>da</strong>de.<br />

– Assim, considere-o uma advertência. Se seguir adiante com isto… – lhe golpeou as mãos com o<br />

papel, – descobrirei a ver<strong>da</strong>de de suas origens. Demonstrarei que está por trás disto. E a afun<strong>da</strong>rei.<br />

– Eu não tenho na<strong>da</strong> a ver com isto! – protestou ela. Foi inútil. Ele já se afastava.<br />

Minnie apertou o santinho na mão. Que assunto tão inoportuno! Stevens partia de uma premissa falsa,<br />

mas pouco importava como encontrasse o rastro. Se o seguia, descobriria tudo. O passado de Minnie, seu<br />

ver<strong>da</strong>deiro nome.<br />

E, sobretudo, seus pecados, há muito tempo enterrados, mas não mortos.<br />

De minimis.<br />

A diferença entre a desonra e a segurança era minúscula. Um ponto muito pequeno. Mas ela não<br />

pensava perdê-lo.


CAPÍTULO 2<br />

– Minnie!<br />

Essa vez, quando ouviu que a chamavam através do pátio, não se sobressaltou. Seu coração não se<br />

acelerou. Em reali<strong>da</strong>de, descobriu que estava ca<strong>da</strong> vez mais tranquila e um sorriso sincero se estendeu<br />

por seu rosto. Voltou-se estendendo as mãos.<br />

– Lydia – disse calorosamente. – Me alegro muito em ver-te.<br />

– Onde estiveste? – perguntou sua amiga. – Te procurei por to<strong>da</strong> parte.<br />

Minnie podia mentir a todos os outros, mas não a ela.<br />

– Escondi<strong>da</strong> – disse. – Atrás do sofá <strong>da</strong> biblioteca.<br />

Qualquer outra pessoa talvez tivesse estranhado isso, mas Lydia a conhecia muito bem. Fez uma<br />

careta e moveu a cabeça.<br />

– Isso é tão… tão…<br />

– Ridículo? – perguntou Minnie.<br />

– Tão pouco surpreendente – respondeu sua amiga. – Mas me alegro de te haver encontrado. É a hora.<br />

– A hora? A hora do que? – esse dia não tocavam na<strong>da</strong> além de Beethoven.<br />

Sua amiga não respondeu. Puxou-a pelo cotovelo e caminhou com ela até a porta do escritório do<br />

prefeito.<br />

Minnie se deteve em seco.<br />

– Lydia, o digo a sério. A hora do que?<br />

– Sabia que não suportaria a apresentação no Grande Salão com to<strong>da</strong> essa gente – Lydia sorriu. – Por<br />

isso pedi a papai que vigiasse o escritório. É hora de ser apresenta<strong>da</strong>.<br />

– Apresenta<strong>da</strong>? – o pátio estava quase vazio atrás delas. – A quem tenho que ser apresenta<strong>da</strong>?<br />

Sua amiga a apontou com um dedo.<br />

– Tem que estar a par dos rumores. Como é possível que não saiba? Só tem vinte e oito anos, sabe? E<br />

já tem fama de estadista. Lhe atribuem a criação do Compromisso de Importação de 1860.<br />

Lydia falava como se soubesse o que era isso… como se todo mundo conhecesse o Compromisso de<br />

Importação de 1860. Minnie não tinha ouvido falar dele e estava quase segura de que sua amiga<br />

tampouco.<br />

Lydia suspirou fundo.<br />

– E está aqui.<br />

– Sim, mas quem é? – Minnie olhou a sua amiga. – E a que vem esse suspiro? Está prometi<strong>da</strong>.<br />

– Sim – respondeu Lydia. – E sou muito, muito feliz com meu compromisso.


Muitos “muito” para resultar acreditáveis, mas Minnie não havia contradito nunca esse ponto e não<br />

tinha sentido começar nesse momento.<br />

– Mas você não está prometi<strong>da</strong> – Lydia fez um gesto com a mão. – Ain<strong>da</strong> não. E, além disso, o que<br />

tem a ver a reali<strong>da</strong>de com a imaginação? Não posso sonhar por uma vez contigo embeleza<strong>da</strong> com um<br />

formoso vestido de se<strong>da</strong> vermelha e te aproximando de uma multidão admira<strong>da</strong> de braço <strong>da</strong>do com um<br />

homem?<br />

Minnie sim podia imaginá-lo, mas as multidões de sua imaginação não estavam admira<strong>da</strong>s. Gritavam.<br />

Jogavam objetos. Insultavam-na e ela voltava a reviver o pesadelo.<br />

– Não digo que deva começar a se preparar para o pedido de casamento agora mesmo. Somente que<br />

sonhe um pouco – Lydia abriu a porta.<br />

Na sala havia só um punhado de pessoas. O senhor Charingford as esperava perto <strong>da</strong> porta. Saudou<br />

sua filha com uma inclinação de cabeça. A estadia era pequena, mas as paredes estavam forra<strong>da</strong>s de<br />

madeira, os cristais pintados, e a chaminé adorna<strong>da</strong> com uma escultura. O brasão de Leicester ocupava<br />

um lugar de honra na parede mais afasta<strong>da</strong>, e a pesa<strong>da</strong> poltrona do prefeito estava na parte frontal do<br />

lugar.<br />

Ali se tinham congregado as poucas pessoas presentes: o prefeito, sua esposa, Stevens, um homem ao<br />

qual Minnie não reconhecia e… A jovem conteve o fôlego.<br />

Era ele. O homem loiro de olhos azuis que tinha falado com ela na biblioteca. Tinha-lhe parecido<br />

muito jovem para ser alguém importante. Melhor dizendo, tinha-lhe parecido muito amável para isso. E<br />

ver o prefeito mostrando-se obsequioso com ele…<br />

– Vê? – disse Lydia em voz baixa. – Acredito que até você poderia sonhar com ele.<br />

Bonito, amável e importante. A imaginação de Minnie reagiu de um modo quase visceral e a levou<br />

por caminhos pavimentados de fantasia à luz <strong>da</strong> lua.<br />

– Às vezes – comentou, – acredito no impossível…<br />

Ela era muito jovem quando seu pai era bastante bem visto para ser convi<strong>da</strong>do a to<strong>da</strong>s as partes.<br />

Viena. Paris. Roma. Ele tinha tido pouco mérito nisso além de seu sobrenome, uma conversa fácil e um<br />

talento quase sem igual para o xadrez. Tinha sonhado com o impossível e sua loucura tinha contagiado a<br />

Minnie.<br />

“Quão único tem que fazer é acreditar”, havia-lhe dito desde que ela tinha cinco anos. “Não<br />

necessitamos fortuna. Não necessitamos riquezas. Os Lane só têm que acreditar com mais intensi<strong>da</strong>de que<br />

os outros e nos acontecem coisas boas”.<br />

E ela tinha acreditado. Tinha acreditado tanto nele, que uma fé vazia era o único que lhe tinha ficado<br />

quando to<strong>da</strong>s as maquinações dele tinham ficado destruí<strong>da</strong>s.<br />

– Creia no impossível – disse Lydia, devolvendo-a ao presente, – pode ser que se cumpra.<br />

– Se crê no impossível – respondeu Minnie com aspereza, – deixará ir o que tem.<br />

Não havia caminhos iluminados pela lua que levassem até aquele homem. Apenas era um cavalheiro<br />

que lhe tinha falado com amabili<strong>da</strong>de. Na<strong>da</strong> mais. Nem sonhos nem fantasias.<br />

– E você tem muito que perder – disse Lydia com voz zombadora.<br />

– Tenho muitíssimo que perder. As pessoas não me assinalam com o dedo e começam a murmurar<br />

quando passo pela rua. Não me seguem multidões raivosas procurando vingança. Não me atiram pedras.


E homens desconhecidos seguiam sendo amáveis com ela. Ele era injustamente atrativo. E sem dúvi<strong>da</strong><br />

isso explicava o brilho nos olhos de Lydia. Pelo que havia dito sua amiga, ele participava <strong>da</strong> política.<br />

Um membro do Parlamento possivelmente? Parecia muito jovem para isso.<br />

– Que séria! – Lydia fez uma careta. – Sim, tem razão. Poderiam te cuspir pela rua e te insultar como<br />

a um monstro. E também os Dragões poderiam te comer. Seja razoável. Na<strong>da</strong> disso é nem remotamente<br />

possível. Se você não pode sonhar, farei-o eu por ti. Vou passar um minuto imaginando que ele se vire e<br />

te olhe.<br />

Não houve necessi<strong>da</strong>de de imaginar. Ele, quem quer que fosse, voltou-se então. Olhou para Lydia, que<br />

mal pode conter seu entusiasmo, lhe fez uma reverência profun<strong>da</strong>. Logo seus olhos se pousaram em<br />

Minnie.<br />

“Está aí”, parecia lhe dizer com o olhar. Ou algo pelo estilo. Porque uma faísca de reconhecimento<br />

percorreu as veias dela. Não foi algo tão simples como ver sua cara e que lhe resultasse familiar. Foi a<br />

sensação de que se conheciam, e de um modo mais profundo que os poucos momentos passados juntos<br />

atrás de um sofá.<br />

Os olhos dele viraram à direita e pousaram no pai de Lydia, que estava ao lado delas. Separou-se <strong>da</strong><br />

gente que o rodeava e se adiantou uns passos.<br />

– Senhor Charingford, ver<strong>da</strong>de? – perguntou.<br />

Ao aproximar-se, olhou de novo para Minnie nos olhos e lhe dedicou um sorriso que parecia surgir<br />

de alguma recor<strong>da</strong>ção por um longo tempo escondi<strong>da</strong>.<br />

Se o nervosismo do senhor Charingford não lhe tivesse <strong>da</strong>do já uma pista, aquele sorriso teria<br />

convencido a Minnie de que aquele homem era importante. Demorou um momento em se localizar a<br />

curiosa expressão de sua cara, aquele sorriso acompanhado de uns olhos que se enrugavam com um jeito<br />

parecido à inquietação.<br />

Tinha visto essa expressão oito anos atrás na cara de Willy Jenkins. Este era então maior que todos os<br />

outros meninos de sua i<strong>da</strong>de, até um ponto alarmante. Aos quinze anos media um metro e oitenta e pesava<br />

cento e oitenta libras. E tinha uma força de acordo com seu tamanho. Minnie o tinha visto levantar seus<br />

dois irmãos mais jovens, um em ca<strong>da</strong> braço.<br />

Willy Jenkins era grande e forte e os outros meninos teriam tido medo dele a não ser por seu sorriso.<br />

O senhor Charingford se inclinou obsequioso, tanto que quase se dobrou em dois. Mal se entendiam<br />

suas palavras.<br />

– Posso lhe apresentar…?<br />

Nem sequer <strong>da</strong>va é obvio que aquele homem permitiria a apresentação. Parecia pensar que não seria<br />

de má educação que dissesse que não.<br />

– É obvio – disse o homem importante. Seus olhos pousaram nos de Minnie e ela afastou rapi<strong>da</strong>mente<br />

à vista. – Meu círculo de conhecidos nunca é tão amplo que não possa incluir a mais senhoritas – voltou a<br />

sorrir <strong>da</strong>quele modo com o que parecia justificar-se, o mesmo sorriso que usava Willy quando ganhava<br />

uma que<strong>da</strong> de braço… e ele sempre ganhava. Era um sorriso que dizia: “Sinto ser maior que você e mais<br />

forte que você. Sempre vou ganhar, mas tentarei não te machucar no processo”. Era o sorriso de um<br />

homem que sabia que possuía uma força considerável e lhe resultava embaraçoso.<br />

– Muito considerado – disse o senhor Charingford. Esta é minha filha, a senhorita Lydia Charingford;<br />

e sua amiga, a senhorita Wilhelmina Pursling.


O homem loiro se inclinou levemente sobre a mão de Lydia, e a seguir tomou os dedos de Minnie.<br />

– Senhoritas – seguiu o senhor Charingford –, este é Robert Alan Graydon Blaisdell.<br />

Os olhos azuis do homem, tão claros que faziam pensar em um lago no inverno, encontraram-se com<br />

os de Minnie. Seu sorriso era mais desassossegado que nunca. Seus dedos roçaram os dela e Minnie<br />

encontrou sua mão muito quente inclusive através <strong>da</strong>s luvas de ambos. Contra seu sentido comum, sentiu<br />

que respondia a ele. Sorriu. Em sua imaginação, por um momento, sim houve caminhos iluminados pela<br />

lua. E essa luz pratea<strong>da</strong> pintou de magia to<strong>da</strong>s as facetas sombrias de sua vi<strong>da</strong>.<br />

A seu lado, o senhor Charingford tragou saliva audivelmente.<br />

– É obvio, ele é Sua Excelência o duque de Clermont.<br />

Minnie quase retirou os dedos. Um duque? Um condenado duque a tinha encontrado atrás do sofá?<br />

Não. Não. Impossível.<br />

Charingford indicou ao outro homem que havia ao lado do duque.<br />

– E seu, ah, seu administrador… – Meu amigo – o interrompeu o duque.<br />

– Sim – Charingford tragou saliva. – É obvio. Seu amigo, o senhor Oliver Marshall.<br />

– Senhorita Charingford, senhorita Pursling – o duque fez um gesto com a cabeça a Lydia por cima do<br />

ombro de Minnie. – Todo o prazer <strong>da</strong> apresentação é meu.<br />

Minnie inclinou um pouco a cabeça.<br />

– Excelência – murmurou.<br />

Essa noite, tudo conspirava para destruí-la. O prometido de sua melhor amiga acreditava que se<br />

dedicava à rebelião e o condenado duque de<br />

Clermont podia destruí-la com uma só palavra. Isso era no que <strong>da</strong>va se dedicar a imaginar coisas. Que<br />

visse caminhos iluminados pela lua. Que albergasse pensamentos românticos embora apenas por um<br />

momento. Os sonhos fracassavam e, quando voavam, deixavam a reali<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> mais fria.<br />

Sua Excelência o duque a olhou nos olhos justo antes que Minnie se retirasse. De novo lhe dedicou<br />

aquele sorriso como envergonhado. Essa vez ela soube por que.<br />

Ela não era na<strong>da</strong>. Ele tinha tudo. E pelo que pudesse servir, ele envergonhava-se de sua própria força.<br />

A CARRUAGEM QUE A LEVAVA DE RETORNO à granja de suas tias avós se balançava para frente<br />

e para trás, não com suavi<strong>da</strong>de, mas com movimentos bruscos. Minnie supunha que as molas teriam sido<br />

novas em outro tempo e não teriam amplificado tanto ca<strong>da</strong> buraco do caminho. Mas o dinheiro<br />

escasseava e as reparações eram um luxo que suas tias não se podiam permitir.<br />

Sua tia avó Caroline ia senta<strong>da</strong> em frente a ela, com a bengala apoia<strong>da</strong> no joelho. A seu lado se<br />

sentava Elizabeth, menos encurva<strong>da</strong>, mas muito mais grisalha. Se as tivessem escolhido ao azar entre uma<br />

multidão, não teriam podido ser mais diferentes. Caroline era alta e gordinha, e Eliza era baixa e<br />

angulosa. Caroline era morena com o cabelo liso, com apenas algumas mechas grisalhas, e o cabelo de<br />

Eliza, antes loiro, tornou-se branco e crespo.<br />

Na sua i<strong>da</strong>de, numa noite fria de novembro, deveriam haver ficado em casa ao lado do fogo em vez<br />

de ter que an<strong>da</strong>r vadiando para assistir a musicais. Mas a tinham acompanhado e agora ambas tinham a


mesma expressão descontente.<br />

Na escuridão <strong>da</strong> carruagem, que as escondia <strong>da</strong> vista do homem que conduzia a carruagem, tinham<br />

suas mãos uni<strong>da</strong>s em busca de calor.<br />

E, como sempre, Minnie estava a ponto de estragar tudo ain<strong>da</strong> mais.<br />

– Tia Caroline. Tia avó Eliza – sua voz soava tranquila na noite avelu<strong>da</strong><strong>da</strong>, quase silencia<strong>da</strong> pelo<br />

estalo continuo <strong>da</strong>s ro<strong>da</strong>s. – Há algo que tenho que lhes dizer. Trata-se do capitão Stevens.<br />

As duas mulheres trocaram um longo olhar.<br />

– Sabemos – disse sua tia avó Caroline. – Não sabíamos como lhe dizer isso.<br />

– Está investigando meu passado.<br />

As duas mulheres trocaram outro olhar. Caroline foi primeira a falar.<br />

– É um contratempo, certamente, mas atravessamos tormentas piores.<br />

Minnie moveu a cabeça.<br />

– Sabe. Ou saberá logo. Não sei o que fazer.<br />

Eliza estendeu o braço e lhe deu uns tapinhas no joelho.<br />

– Está cedendo ao pânico – murmurou. – Nunca faça isso. Isso indica que há algo estranho. Você<br />

mesma recor<strong>da</strong> que a ver<strong>da</strong>de é muito estranha para que pensem nela. Ninguém o adivinhará nunca.<br />

Minnie respirou fundo algumas vezes.<br />

– Mas…<br />

– Para descobrir a ver<strong>da</strong>de, teriam que fazer as perguntas pertinentes – disse Eliza. – E me acredite,<br />

queri<strong>da</strong>. Ninguém jamais perguntará se seu pai te fez passar por um moço os primeiros doze anos de sua<br />

vi<strong>da</strong>.<br />

– Mas só tem que suspeitar…<br />

– Basta, Minnie. Respire. Te alterando não vais obter na<strong>da</strong>.<br />

Para ela era fácil dizê-lo. Minnie, com os olhos fechados, podia ver a multidão fechando-se a seu<br />

redor e ouvindo os gritos duros e dissonantes que brotavam de seus rostos desfigurados pela raiva.<br />

– Não é na<strong>da</strong> – disse Eliza. Moveu-se na carruagem para sentar-se ao lado de Minnie e lhe pôs uma<br />

mão no ombro. – Não é na<strong>da</strong>. Não é na<strong>da</strong> – Enquanto falava, alisava o cabelo de Minnie. Ca<strong>da</strong> sussurro<br />

lhe produzia uma calma maior, até que Minnie conseguiu controlar o pânico. Encerrou aquela lembrança<br />

no passado a qual pertencia e o manteve ali até que deixou de lhe <strong>da</strong>nçar à vista e sua respiração<br />

recuperou uma cadência regular.<br />

– Assim está melhor – murmurou Eliza. – Nos ocuparemos disto. Stevens também falou comigo.<br />

Acredita que nós estamos mentindo. De fato, insinuou que podia não ser quem afirma ser, que te aproveita<br />

de nossa bon<strong>da</strong>de.<br />

– Oh, Senhor! – Minnie enterrou a cabeça nas mãos.<br />

– Não, não – disse Caroline. – Esta história é mais fácil de combater, porque é claramente falsa. Nem<br />

sequer temos necessi<strong>da</strong>de de mentir. Disse-lhe que eu estava presente no dia que nasceu, que prometi a<br />

sua mãe em seu leito de morte que cui<strong>da</strong>ria de ti e que eu não gostava que colocasse o nariz onde não lhe<br />

importava. Quando lhe disse que era impossível que fosse um passarinho que tinham jogado- em nosso<br />

ninho sem que nos déssemos conta, acreditou-me – assentiu com força com a cabeça. – Sabe que é minha


sobrinha neta e que não há nenhuma dúvi<strong>da</strong> nisso. Suspeita que há algo estranho, mas eu lhe fiz duvi<strong>da</strong>r.<br />

Não fará na<strong>da</strong>.<br />

– Mas não o sou – Minnie respirou com força. – Não sou sua sobrinha neta. Sou…<br />

Caroline tomou sua bengala e roçou com ela a perna de Minnie.<br />

– Não fale assim. Já sabe o que acontece.<br />

Minnie sabia. Desde que podia recor<strong>da</strong>r, tinha chamado as duas de tia, embora só Eliza fosse sua<br />

parente de sangue. As duas mulheres tinham ido juntas a uma escola para senhoritas quase cinquenta anos<br />

atrás. Tinham sido apresenta<strong>da</strong>s na socie<strong>da</strong>de em Londres ao mesmo tempo. E quando não tinham<br />

conseguido encontrar homens que as amassem depois de algumas tempora<strong>da</strong>s na boa socie<strong>da</strong>de, tinham<br />

recusado casar-se por conveniência. Em vez disso, retiraram-se juntas à pequena granja que possuía<br />

Caroline nos subúrbios de Leicester e tinham permanecido amigas e solteiras o resto de suas vi<strong>da</strong>s.<br />

Estavam tão uni<strong>da</strong>s como se fossem irmãs. Minnie suspeitava de mais.<br />

– Não tema – interveio Eliza. – Prometi a sua mãe. Prometemos as duas – lhe tremeu a voz. – Já lhe<br />

falhei uma vez, e nunca me perdoei por isso. Nunca mais.<br />

Minnie ergueu a mão e tocou a cicatriz <strong>da</strong> bochecha. Desde menina se considerou invulnerável.<br />

Outras pessoas podiam vacilar e fracassar, mas ela não. A ousadia do que tinha conseguido sozinha tinha<br />

comparação com o muito que tinha perdido depois. Ain<strong>da</strong> se recor<strong>da</strong>va deita<strong>da</strong> na escuridão, sem saber<br />

se voltaria a ver por um dos olhos. Suas tias avós tinham ido então por ela.<br />

– Se vier conosco – lhe havia dito Caroline, – terá uma oportuni<strong>da</strong>de.<br />

Não lhe tinham oferecido a vi<strong>da</strong> brilhante e sofistica<strong>da</strong> com a qual sonhavam muitas jovens. Se fosse<br />

com suas tias podia esperar uma vi<strong>da</strong> frugal. Um nome falso. Teria uns poucos anos de infância, seguidos<br />

por um tempo breve para conhecer homens. Poderia casar-se e ter filhos. Não conheceria a fama nem a<br />

adulação. O único privilégio que elas podiam lhe oferecer era um futuro sem multidões furiosas.<br />

Suas tias tinham sacrificado muito para lhe <strong>da</strong>r essa oportuni<strong>da</strong>de. Tinham economizado para que<br />

pudesse ter um guar<strong>da</strong>-roupa respeitável quando foi o bastante cresci<strong>da</strong> para conhecer homens. Nunca se<br />

queixavam, mas Minnie sabia que tomavam o chá sem açúcar. Sabia por que tinham deixado caducar, a<br />

contra gosto, sua assinatura <strong>da</strong> biblioteca. Tinham sacrificado to<strong>da</strong>s as comodi<strong>da</strong>des de sua velhice por<br />

ela.<br />

E ela não queria nem sequer metade do que lhe tinham <strong>da</strong>do tão generosamente.<br />

– Possivelmente se disséssemos a ver<strong>da</strong>de ao capitão Stevens… – sugeriu.<br />

Suas tias a olharam consterna<strong>da</strong>s.<br />

– Minnie – disse Eliza. – Queri<strong>da</strong>. Depois de tanto tempo! Sabe que nunca deve fazer isso.<br />

Caroline interveio.<br />

– Essas regras que criamos para ti não são para te incomo<strong>da</strong>r nem são castigos. As fixamos porque<br />

lhe amamos. Porque queremos que tenha um futuro. Walter Gardley não está te cortejando? Porque se<br />

pudesse apanhá-lo e te casar rapi<strong>da</strong>mente com ele, seria uma boa ideia.<br />

– Sim – assentiu Caroline. – Seria muito boa ideia. As suspeitas de Stevens perderiam força assim<br />

que estivesse casa<strong>da</strong> com o filho de um destilador. Então seu meio de vi<strong>da</strong> estaria em perigo se, se<br />

organizassem os operários. O matrimônio não só asseguraria seu futuro, mas também sua credibili<strong>da</strong>de.<br />

Minnie já tinha pensado em tudo aquilo.


Sabia que seria uma grande sorte assegurar-se isso. Para uma garota sem dote e não muito agracia<strong>da</strong>,<br />

qualquer homem era um bom partido. Embora ele a quisesse porque pensava que ela suportaria suas<br />

grosserias em silêncio. E, entretanto, essa possibili<strong>da</strong>de não a entusiasmava nem um pouco.<br />

– O ouvi falar sobre mim– comentou. – Disse que sou um camundongo e que não direi na<strong>da</strong> se tiver<br />

amantes.<br />

Caro e Eliza se olharam.<br />

– Não tem por que te casar com ele – declarou Eliza. – Se isso te fizer infeliz, é obvio que não. Mas<br />

antes de recusar, por favor, considera quais seriam suas outras alternativas. Sempre pode esperar algo<br />

mais.<br />

Disse-o com dúvi<strong>da</strong>, com uma expressão que indicava que, à medi<strong>da</strong> que Minnie ficasse mais velha,<br />

seria improvável que recebesse outra proposta mais satisfatória.<br />

– Se houver alguma possibili<strong>da</strong>de de que Stevens adivinhe a ver<strong>da</strong>de… – prosseguiu.<br />

Não precisava que terminasse a frase. Se soubesse a ver<strong>da</strong>de, não haveria nenhuma oferta.<br />

Minnie não tinha mentido ao duque de Clermont. Gardley era o melhor ao que podia aspirar, um<br />

homem que só sabia que ela permanecia cala<strong>da</strong> em público. Um homem que a preferia silenciosa. Não<br />

tinha se incomo<strong>da</strong>do em descobrir algo sobre ela, nem sua cor favorita nem sua comi<strong>da</strong> predileta.<br />

Embora, por outra parte, seria mais seguro casar-se com um homem que não queria saber na<strong>da</strong> dela.<br />

A senhorita Wilhelmina Pursling sentiria uma patética gratidão por<br />

Gardley por lhe oferecer matrimônio. Mas Minerva Lane, por sua parte…<br />

– Nem sequer sabe quem sou – disse. – Me chamou de camundongo. Minerva Lane jamais foi um<br />

camundongo.<br />

– Não pronuncie esse nome – Eliza falava com voz baixa e assusta<strong>da</strong>. Sua mão apertou o joelho de<br />

Minnie.<br />

– Silêncio – interveio Caroline. – Não tem sentido dizer a ver<strong>da</strong>de. “Silêncio. Não ce<strong>da</strong> ao pânico.<br />

Não diga a ver<strong>da</strong>de a ninguém”. Minnie tinha vivido doze anos com as regras delas, e para que? Para<br />

poder ter a sorte de ser totalmente esqueci<strong>da</strong> algum dia.<br />

A lembrança de Minerva Lane, pelo que tinha sido e o que tinha feito, era como um carvão quente<br />

abafado com cinzas. Seguia ardendo muito depois que se extinguiu o fogo. Às vezes todo esse calor ardia<br />

dentro dela até que sentia a necessi<strong>da</strong>de de gritar. Até que desejava queimar todos os retalhos tímidos de<br />

sua maltrata<strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de.<br />

Essa rebeldia feroz se ergueu naquele momento em seu interior.<br />

A parte dela que seguia sendo Minerva, a parte que não tinha sido asfixia<strong>da</strong>, sussurrou-lhe tentações<br />

ao ouvido. “Não precisa guar<strong>da</strong>r silêncio, o que precisa é uma estratégia”.<br />

Na<strong>da</strong> de estratégias. Suas tias protestariam se soubessem que estava considerando atuar. Fazia anos<br />

que não se permitia fazer isso.<br />

“Stevens acredita que escrevo os panfletos. Eu sei que não sou eu.<br />

Averiguarei quem o faz”.<br />

Era uma estupidez. Uma tolice. Uma idiotice. Era impossível.


Mas por muitas coisas que se dissesse, aquele pensamento insidioso não a abandonava. Como podia<br />

averiguar quem o tinha feito? Podia ser qualquer um.<br />

“Não, qualquer um não. Você sabe que não é o capitão Stevens. Tampouco são suas tias. Nem é<br />

você”. Se pudesse eliminar quem não tinha sido, só ficaria o culpado. Por um processo de eliminação…<br />

“Não, tola. Há centenas de pessoas que poderiam ser culpados. Milhares”.<br />

Mas tinha se imposto uma tarefa e lhe resultava quase impossível mu<strong>da</strong>r seus pensamentos. Pensou nas<br />

letras maiúsculas, nos sinais de exclamação. Nos parágrafos do texto que descreviam os donos <strong>da</strong>s<br />

fábricas e a suas vergônteas. Ali havia algo estranho.<br />

E então, por alguma razão, pensou em algo totalmente diferente. Minnie sabia por que se escondeu<br />

atrás do sofá. Queria evitar à multidão e a proposta de Gardley.<br />

Mas o que fazia ali o duque de Clermont?<br />

Organizem-se, Organizem-se, Organizem-se!!!!<br />

E aquele estranho sorriso seu… seu sorriso amistoso e levemente envergonhado? Desde quando um<br />

duque se desculpava por ser o que era?<br />

Não, definitivamente, ali havia algo estranho. Algo…<br />

A ver<strong>da</strong>de lhe chegou com uma força tão cegadora que a carruagem quase pareceu desaparecer em um<br />

relâmpago de luz.<br />

Momentos como aquele eram uma <strong>da</strong>s razões pelas quais tinha sido tão maravilhoso ser Minerva<br />

Lane. Havia vezes nas quais parecia que as palavras eram simples fios, totalmente inapropriados para<br />

conter a enormi<strong>da</strong>de de seus pensamentos. O quebra-cabeças se reorganizou em sua mente com um vigor<br />

tectônico; as peças encaixaram com uma certeza que era muito maior que sua capaci<strong>da</strong>de para explicarse.<br />

E assim foi como Minnie soube o que tinha que fazer, embora soubesse que não devia fazê-lo. O<br />

plano lhe chegou com ímpeto.<br />

Era algo que a insignificante senhorita Pursling não faria jamais. Mas Minerva Lane sim sabia o que<br />

teria que fazer.<br />

E graças a Deus, não teria que casar-se com Walter Gardley imediatamente.<br />

Possivelmente o faria algum dia. Mas se pudesse impedir que Stevens suspeitasse dela,<br />

possivelmente poderia prorrogá-lo durante meses. E possivelmente, só possivelmente… sim tivesse uma<br />

oferta melhor.


CAPÍTULO 3<br />

QUANDO O DUQUE DE CLERMONT ENTROU no salão,<br />

Minnie pensou que quase resultava injusto que fosse tão atraente. O sol <strong>da</strong> manhã que entrava pelas<br />

janelas se refletia em seu cabelo loiro que seria muito longo se não fosse por aqueles cachos rebeldes.<br />

Ele se deteve na soleira e passou a mão pelo cabelo olhando-a, com o que desordenou ain<strong>da</strong> mais os<br />

cachos. Mas qualquer suavi<strong>da</strong>de que pudesse dá o cabelo revolto a seu semblante se via rebati<strong>da</strong> pelos<br />

olhos. Eram vivos e frios, de um azul cortante, como um lago cheio de água gela<strong>da</strong> <strong>da</strong> primavera.<br />

Aqueles olhos descansaram um momento nela e depois se pousaram em Lydia, que estava a seu lado.<br />

Esta tinha rido ao ouvir que Minnie pensava visitar o duque de Clermont, e não se alterou quando sua<br />

amiga lhe tinha explicado que tinha que falar com ele em privado.<br />

Minnie pensou que o olhar do duque atravessava a facha<strong>da</strong> que ela apresentava diante do resto do<br />

mundo, mas se disse que devia ser produto de sua imaginação. Simplesmente lhe parecia que ele sabia<br />

tudo.<br />

Mas não podia saber na<strong>da</strong>, porque quando a olhava, sorria com algo parecido ao prazer. Era um<br />

simples franzir dos lábios, mas também uma mu<strong>da</strong>nça sutil em seus olhos, que passavam do azul pálido<br />

do gelo ao azul ligeiramente menos pálido de um céu claro do verão.<br />

Seu atrativo tinha um ar juvenil: uma ameaça de acanhamento em seu sorriso, certa magreza na<br />

figura… Ou possivelmente era o modo como afastava a vista quando ela o olhava nos olhos para logo<br />

voltar a olhá-la.<br />

Se Minnie não tivesse ouvido a noite anterior o deputado Packerly elogiar os esforços do duque no<br />

Parlamento, o teria tomado por uma fraude. Atrativo, jovem e modesto? Muito bom para ser ver<strong>da</strong>de. Na<br />

reali<strong>da</strong>de, os duques eram barrigudos, velhos e exigentes.<br />

– Senhorita Pursling – disse ele. – Que prazer tão inesperado!<br />

Sobre o inesperado sim acreditava ela. Sobre o prazer… certamente ele o retiraria antes que tivessem<br />

terminado.<br />

– Excelência – disse.<br />

Tomou brevemente sua mão e inclinou a cabeça. Minnie sentiu uma sensação de calor através <strong>da</strong>s<br />

luvas.<br />

– Senhorita Charingford – Clermont se inclinou sobre a mão de Lydia como se fosse a <strong>da</strong>ma mais<br />

importante do reino. Ela olhou de soslaio a sua amiga e apertou os lábios como se reprimisse uma<br />

gargalha<strong>da</strong>.<br />

– O que as traz por aqui, senhoritas?<br />

Lydia olhou para Minnie, esperando inteirar-se ela também.<br />

– Se alguém perguntar – murmurou Minnie, – viemos solicitar um donativo para a Comissão de<br />

Higiene dos Operários – conteve o fôlego, perguntando-se quão ardiloso seria ele.


O duque pensou um momento em suas palavras.<br />

– Considero-o solicitado – respondeu. – Farei um donativo se me deixar os detalhes. Quanto ao<br />

resto… Se isto for pelo ocorrido ontem à noite, pode estar segura de que sou a personificação <strong>da</strong><br />

discrição.<br />

Era bastante ardiloso.<br />

Lydia arqueou uma sobrancelha ao captar a implicação de que o duque e sua amiga tinham falado<br />

antes. Minnie negou com a cabeça.<br />

– Não, Excelência. Há algo mais que devo comentar com você. A senhorita Charingford veio como<br />

acompanhante, mas temo que o que tenho para dizer não é para seus ouvidos.<br />

– Certo – corroborou Lydia, corajosa. – Não sei o que está acontecendo.<br />

– Entendo – disse o duque.<br />

Seu sorriso adquiriu uma frieza cautelosa. Sem dúvi<strong>da</strong> imaginava algo acidentado e escan<strong>da</strong>loso,<br />

algum complô para apanhá-lo em matrimônio. Era um duque de aparência agradável com uma fortuna<br />

razoável; provavelmente sofria tais complôs de modo regular. Mas não a expulsou de sua casa. Esfregou<br />

o queixo e olhou ao seu redor.<br />

– Se quiser falar em voz baixa, a senhorita Charingford pode sentar-se aí – assinalou uma cadeira ao<br />

lado <strong>da</strong> porta. – Deixaremos a porta aberta e nós podemos nos colocar junto à janela. Assim ela verá<br />

tudo, comprovará que não faltamos ao decoro, mas não ouvirá na<strong>da</strong>.<br />

Sustentou a cadeira para Lydia. Atuava em tudo como um cavalheiro, com tanta naturali<strong>da</strong>de que<br />

Minnie quase duvidou de seu instinto.<br />

Ele chamou uma campainha e, quando apareceu um servente, pediu chá em duas bandejas. Enquanto<br />

esperavam, pôs uma mão na parte baixa <strong>da</strong>s costas de Minnie e a guiou para a janela. Era um contato<br />

minúsculo, só a calidez <strong>da</strong> mão dele na coluna, apaga<strong>da</strong> por cama<strong>da</strong>s de tecido, mas ela o sentiu até<br />

mesmo no pulso que lhe palpitava na garganta.<br />

Era tão injusto que tinha vontade de gritar. Ele era rico, atraente e podia acelerar o coração dela com<br />

um simples toque de seu dedo. Ela tinha ido ali para chantageá-lo, não para paquerar. Pela janela se via a<br />

praça de fora.<br />

As praças eram menos comuns em Leicester que em Londres.<br />

Aquela estava muito descui<strong>da</strong><strong>da</strong>. Havia uma árvore tão franzina que dificilmente se poderia chamar de<br />

árvore. A erva secou e deixou espaço para um cascalho cinza. Mas, por outra parte, aquele era um dos<br />

poucos bairros de Leicester onde havia praças.<br />

Os comerciantes de mais êxito viviam perto <strong>da</strong>li, na estra<strong>da</strong> de Londres, em Stoneygate. A<br />

aristocracia vivia em proprie<strong>da</strong>des rodea<strong>da</strong>s de muito terreno no campo circun<strong>da</strong>nte. Todos os que<br />

tinham riqueza e boa posição se estabeleciam fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Mas o duque não o tinha feito. Minnie tocou o papel que levava no bolso e acrescentou isso à lista de<br />

coisas estranhas <strong>da</strong>quele homem. Quando iam duques a aquela zona, estabeleciam-se no Quorn ou no<br />

Melton-Mowbray para a caça <strong>da</strong> raposa. Ele, entretanto, tinha alugado uma residência situa<strong>da</strong> a poucas<br />

quadras <strong>da</strong>s fábricas.<br />

– No que posso ajudá-la? – perguntou ele.


Havia muitas coisas que não encaixavam. Ele mentia. Tinha que ser isso. Simplesmente, Minnie não<br />

sabia por que. Em uma mesinha lateral havia um jogo de xadrez. Ela tentou não olhá-lo, esforçou-se por<br />

não sentir sua inevitável atração, mas…<br />

Ganhavam as brancas. Faltavam seis joga<strong>da</strong>s para o cheque mate, possivelmente só três. Podia ver o<br />

final, a pinça que formavam a torre e o bispo, com a linha de três peões brancos cortando o tabuleiro em<br />

dois.<br />

– Joga xadrez? – perguntou.<br />

– Não – ele moveu uma mão no ar. – Perco no xadrez. Muito.<br />

Mas meu… um dos homens que há aqui comigo joga xadrez por correspondência com seu pai. Guar<strong>da</strong><br />

o tabuleiro aqui. Não vai me desafiar a uma parti<strong>da</strong>, ver<strong>da</strong>de? – sorriu.<br />

Minnie negou com a cabeça.<br />

– Não. Era somente curiosi<strong>da</strong>de.<br />

Chegaram às donzelas com o chá. Minnie esperou até que saíram. Logo tirou do bolso <strong>da</strong> saia o<br />

santinho que lhe tinha <strong>da</strong>do Stevens. As bor<strong>da</strong>s, molha<strong>da</strong>s pela chuva <strong>da</strong> noite anterior, dobraram-se e se<br />

haviam posto amarela<strong>da</strong>s ao secar-se. Ela a estendeu.<br />

O duque não pegou. Olhou o papel com curiosi<strong>da</strong>de, o tempo suficiente para ler o título em letras<br />

maiúsculas, que ocupava o primeiro quarto <strong>da</strong> folha. Logo olhou para ela.<br />

– Supõe-se que devo me interessar pelos santinhos radicais? – perguntou.<br />

– Não, Excelência – Minnie quase não podia acreditar na sua audácia. – A você não interessa ler os<br />

santinhos radicais. Você os escreve.<br />

Ele olhou o papel. Passou a vista lentamente para ela e arqueou as sobrancelhas. Minnie afastou a<br />

vista, afeta<strong>da</strong> pela intensi<strong>da</strong>de do olhar dele. Ao fim ele tomou um bolinho e o partiu pela metade. Saiu<br />

vapor, mas o duque não deu amostras de que lhe incomo<strong>da</strong>sse o calor nas mãos.<br />

Nem sequer precisava responder. A acusação dela era ridiculamente absur<strong>da</strong>. Estava sentado em sua<br />

confortável poltrona, rodeado de móveis que limpavam e enceravam diariamente serventes que não<br />

tinham na<strong>da</strong> que fazer exceto tirar bolinhas de pó assim que ousavam aparecer. O duque de Clermont<br />

tinha alugado uma casa e contratado doze serventes por dois meses. Tinha proprie<strong>da</strong>des espalha<strong>da</strong>s por<br />

to<strong>da</strong> a Inglaterra e uma fortuna que a imprensa de fofocas calculava em dezenas, se não centenas, de<br />

milhares de libras esterlinas. Um homem como aquele não tinha motivos para publicar circulares<br />

políticas radicais.<br />

Por outra parte, ela já sabia que ele não era o que parecia.<br />

Como se quisesse sublinhar tudo isso, ele mordeu um pe<strong>da</strong>ço de pão-doce com ar casual e lhe fez<br />

gestos de que fizesse o mesmo.<br />

Minnie não podia. Lhe encolhia o estômago só de pensar em sorver o chá. Quando já acreditava que<br />

ele ia ignorar delibera<strong>da</strong>mente sua acusação, o duque estendeu a mão e olhou o papel.<br />

– Operários – leu. – Organizem-se, organizem-se, organizem-se, tudo com muitos pontos de<br />

exclamação – fez um gesto desdenhoso. – Para começar, me aborrece os pontos de exclamação. Por que<br />

supõe que eu tenho algo a ver com isto?<br />

Ela não tinha provas, só intuição pelo modo como encaixavam as peças. Mas estava segura. Quão<br />

pior podia ocorrer seria que estivesse equivoca<strong>da</strong>. Nesse caso, ficaria em evidencia diante de um homem


a quem não voltaria a ver nunca. Cruzou as mãos no colo e esperou. Se ele podia pô-la incômo<strong>da</strong> com<br />

seu silêncio, ela podia fazer o mesmo.<br />

E ele foi o primeiro em falar.<br />

– É porque acabo de chegar à ci<strong>da</strong>de e não quer que culpem a algum de seus amigos?<br />

Ela guardou silêncio.<br />

– Porque pareço um agitador? – havia certa secura em sua voz. Soava suave e flui<strong>da</strong>, arrastava as<br />

sílabas no melhor inglês <strong>da</strong> rainha. Mostrava um indício de sorriso, uma expressão condescendente que<br />

indicava que lhe seguia a corrente. – Ou é porque ouviu histórias de minhas inclinações radicais?<br />

Não havia tais histórias. Tinha fama de estadista, de homem ardiloso e de maneiras suaves.<br />

– Por que veio aqui? – perguntou Minnie. – Ouvi o que se diz, mas um homem de seu status que queira<br />

investir na indústria de Leicester enviaria a um procurador em vez de vir pessoalmente para impressionar<br />

a todos. – Tenho amigos na região.<br />

– Se fossem tão bons amigos que precisasse visitá-los, hospe<strong>da</strong>ria se com eles.<br />

O duque encolheu os ombros.<br />

– Não quero impor minha presença a ninguém.<br />

– Você é um duque. Sempre impõe sua presença.<br />

Ele fez uma careta; parecia levemente envergonhado.<br />

– Por isso, senhorita Pursling, eu não gosto de fazê-lo. Tem alguma base para suas acusações?<br />

Ela tomou o papel.<br />

– Se quer sabê-lo, há dois parágrafos neste santinho que me convencem de que você o escreveu.<br />

– Por favor – ele estendeu uma mão com a palma para cima. – Leia-os e me desmascare.<br />

Minnie tirou suas lentes do bolso e procurou os parágrafos.<br />

– O que fazem os amos para levar a parte do leão do pagamento? Fiscalizam. São os donos. E por<br />

essa tarefa, que não requer nem pensamento nem trabalho, ganham somas tão grandes que nem sequer<br />

precisam levantar um dedo para vestir-se. Suas filhas, em vez de trabalhar duro aos quatorze anos, são<br />

livres para fazer o que desejarem; seus filhos só têm que se preocupar até onde querem chegar com sua<br />

dissipação.<br />

O duque não mostrou nenhuma reação. Limitou-se a olhá-la com seus olhos azul gelo e tamborilou<br />

levemente com os dedos no braço <strong>da</strong> poltrona.<br />

– Você acredita que isso o escreveu um duque? – perguntou ao fim com uma nota de humor na voz.<br />

– Não foi um operário.<br />

– Surpreenderia a gramática que alguns…<br />

– Sou membro <strong>da</strong> Comissão de Higiene dos Operários – o interrompeu Minnie. – Não subestimo a<br />

nenhum deles. Há um homem com memória de enciclopédia que lê a última série de Dickens de noite e o<br />

recita aos outros pelo dia. Você não se delata só no primeiro parágrafo. É o primeiro tomado junto com o<br />

segundo.<br />

– Oh! – exclamou ele, ain<strong>da</strong> sorridente. – Há um segundo parágrafo muito mais <strong>da</strong>ninho. Claro que o<br />

panfleto tem apenas dois parágrafos, assim por favor, leia-o.


– Não posso fazê-lo – Minnie deixou o papel na mesinha do chá e tirou os óculos. – O segundo<br />

parágrafo, Excelência, é o que você não escreveu. Escreveu o que não fazem os donos, mas não<br />

mencionou o que fazem os trabalhadores. Um operário teria se centrado em seu trabalho, no que faz e a<br />

quem beneficia, não no que faz outra pessoa. Isto foi escrito por alguém que, fossem quais fossem suas<br />

intenções, pensava como um dono.<br />

Clermont inclinou a cabeça para um lado. Estendeu a mão, pegou o papel e o leu. Quando começou,<br />

tinha os lábios franzidos. Leu com rapidez, percorrendo a página com os olhos. Mas ela viu que sua<br />

expressão se alterava, passava <strong>da</strong> increduli<strong>da</strong>de à surpresa. Sua boca se curvou lentamente em um<br />

sorriso. Quando ergueu a vista, seus olhos, antes frios e severos, brilhavam.<br />

– Vá – disse ao fim. – Que me condenem. Tem razão.<br />

– É questão de pura lógica – Minnie cruzou as mãos. – Um dono não escreveria isso, delataria-se<br />

muito. E se descartar os operários e os donos, ficam poucas opções. Você estava escondido ontem à noite<br />

atrás <strong>da</strong> cortina. Não é o que parece. Você é a única possibili<strong>da</strong>de que tem sentido com as provas<br />

disponíveis.<br />

Esperava que ele voltasse a negar a autoria, pois as provas dela eram muito débeis.<br />

Mas o duque não discutiu. Olhou para Lydia, que sorvia seu chá e lhes dirigia olhares de curiosi<strong>da</strong>de.<br />

Baixou a voz ain<strong>da</strong> mais.<br />

– Se pensasse me denunciar publicamente, o haveria dito ao magistrado, que teria vindo aqui com um<br />

punhado de donos de fábricas zangados para me exigir que deixasse de agitar os operários. Não o fez.<br />

Em reali<strong>da</strong>de – assinalou com a cabeça a Lydia, – tomou o cui<strong>da</strong>do de esconder de todo mundo o<br />

ver<strong>da</strong>deiro propósito desta visita. O que é que quer de mim? – apoiou a mão no bolso do colete, onde era<br />

habitual que um homem guar<strong>da</strong>sse a bolsa <strong>da</strong>s moe<strong>da</strong>s.<br />

– Quero que pare.<br />

Ele a olhou nos olhos.<br />

– Por favor – ela engoliu em seco. – Verá, esses panfletos fazem com que todo mundo se enfrente.<br />

Todo mundo vigia a todo mundo. E eu participo <strong>da</strong> distribuição de folhetos para a higiene dos operários.<br />

Esses não são radicais, são sobre a cólera, mas as pessoas podem suspeitar de mim.<br />

– Mas embora suspeitassem de você, seguro que não demoraria para justificar seu trabalho – ele fez<br />

uma pausa. – A menos que tenha algo mais para esconder. Possivelmente não quer que ninguém pergunte<br />

por que uma jovem senhorita a ponto de casar-se, se esconde atrás de um sofá quando aparece seu<br />

pretendente – arqueou uma sobrancelha.<br />

Minnie já não pôde seguir olhando-o nos olhos.<br />

– Isso é o que ocorre – sussurrou, com a vista fixa em sua xícara de chá.<br />

– Que surpresa! – exclamou ele em voz baixa e zombadora. – Jamais teria adivinhado que você teria<br />

algo que ocultar em seu passado.<br />

Ela olhou o líquido marrom de sua xícara.<br />

– Para você é fácil encontrar tudo isto divertido. Mas meu futuro não é nenhum jogo. Trabalhei duro<br />

para chegar onde estou e lutarei por conservar as poucas comodi<strong>da</strong>des que ganhei, por pequenas que<br />

possam parecer. Não desejo que examinem muito de perto minhas ações. E suspeito que você tampouco.<br />

Se parar, os dois estaremos seguros.


– Seguros – ele arrastou a palavra como se a saboreasse. – Não me importa muito a segurança, e lhe<br />

estaria fazendo um favor se a separasse de seu pretendente.<br />

Minnie dificilmente podia discutir aquele ponto. Mas negou com a cabeça.<br />

– Não é favor se fizer com que me resulte impossível encontrar outro. Eu vivo o dia, Excelência.<br />

Quando minha tia avó morrer, a granja irá para o seu primo. Minha tia avó Elizabeth e eu não teremos<br />

aonde ir. É preciso que me case – ergueu a cabeça e o olhou aos olhos. – Não tenho escolha.<br />

O olhar dele se suavizou.<br />

– Seu passado… é tão mau para que tema que alguém meta o nariz nele devido a um santinho?<br />

Durante um momento de loucura, Minnie considerou a possibili<strong>da</strong>de de lhe contar to<strong>da</strong> a história. Ele<br />

parecia muito aberto, com a cabeça inclina<strong>da</strong> de um modo sedutor. Seguro que poderia…<br />

Só a ideia de confessar-se fez com que o ar lhe parecesse mais frio e lhe fechou um pouco os pulmões.<br />

Voltou a olhar seu chá.<br />

– Sabe o que é a vi<strong>da</strong> para uma mulher nestes tempos modernos? Os cavalheiros se casam ca<strong>da</strong> vez<br />

menos. Tenho lido que trinta e quatro por cento <strong>da</strong>s <strong>da</strong>mas <strong>da</strong> boa socie<strong>da</strong>de chegam aos vinte e sete anos<br />

solteiras. Não é necessário que haja algo vergonhoso em meu passado; algo que saia do normal, por<br />

inofensivo que possa parecer, é uma catástrofe.<br />

Ele se recostou em sua poltrona e pensou naquilo.<br />

– Nesse caso, vejo uma solução alternativa a nosso mútuo problema. Aparentemente, eu necessito<br />

uma razão mais acreditável para permanecer na ci<strong>da</strong>de. Se você não acreditou no que eu disse, os outros<br />

tampouco acreditarão. Você precisa estar nos sessenta e seis por cento de mulheres que se casam –<br />

encolheu os ombros. – Me dedicarei a cortejá-la enquanto estou aqui. Você pode me rechaçar e eu insisto<br />

um pouco. Todo o assunto fará maravilhas para sua reputação. Eu sigo escrevendo e você consegue seu<br />

marido.<br />

Disse tudo isso com naturali<strong>da</strong>de, mas a imagem que suscitou… dele <strong>da</strong>nçando com ela, de sua mão<br />

apoia<strong>da</strong> na dela em uma valsa, provocou borboletas no estômago de Minnie. Ela sacudiu a cabeça com<br />

força.<br />

– Isso é uma ideia terrível. Ninguém acreditará que você se interessa por mim.<br />

– Posso fazer com que acreditem. Nenhuma pessoa em dez mil teria adivinhado o que adivinhou você.<br />

Ninguém. Posso fazer com que creiam na mulher que viu isso. Uma mulher cala<strong>da</strong>, sim, e possivelmente<br />

um pouco tími<strong>da</strong> em companhia…<br />

Minnie fez um ruído grosseiro com a boca, mas ele ergueu uma mão para lhe pedir silencio.<br />

– Você tem um caráter de aço e um talento estranho para ver o que há diante de seus olhos. Eu poderia<br />

fazer com que todos vissem isso – a olhou nos olhos com intensi<strong>da</strong>de. Aparentemente, era impossível<br />

escapar. Ele baixou a voz. – Poderia fazer com que todos a vissem como é.<br />

As borboletas estavam somente no estômago de Minnie? Não, todo seu corpo parecia trêmulo. Fazia<br />

anos que ninguém fingia interessar-se por ela.<br />

Ter a atenção dele tão concentra<strong>da</strong> nela… Era muito. Mas o duque não tinha terminado.<br />

– E também há seu cabelo. O cabelo não deveria mu<strong>da</strong>r de cor só porque se frisa, mas as pontas<br />

parecem apanhar a luz, e quando isso ocorre, não sei se é castanho, loiro ou inclusive ruivo. Poderia<br />

passar horas olhando-o para tentar decifrá-lo.


Pulsava-lhe com força o coração. Não ia mais depressa, só pulsava com mais força, como se seu<br />

sangue requeresse mais trabalho para mover-se.<br />

Mas tudo aquilo eram hipóteses, e Minnie estava muito desespera<strong>da</strong> para ser outra coisa além de<br />

pragmática.<br />

– Não diga bobagens – pretendia que suas palavras soassem depreciativas, mas lhe tremia a voz. – O<br />

que diria você quando estivesse entre homens? Quando lhe perguntassem que diabos via na diminuí<strong>da</strong><br />

senhorita Pursling? Não acredito que se atrevesse a lhes dizer que estava extasiado pelos cachos de meu<br />

cabelo. Isso o diz um homem para convencer a uma mulher, mas os homens não falam assim entre eles.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong> ele esperava que tragasse essas tolices sobre seu cabelo, porque pareceu surpreso ao<br />

ouvi-la. Moveu a cabeça e sorriu.<br />

– Vamos, senhorita Pursling – disse. – Os homens não perguntariam isso. Saberiam em segui<strong>da</strong> o que<br />

me tinha atraído em você – se inclinou para diante e sorriu com ar conspirador: – seus seios.<br />

Ela abriu muito a boca. De repente era muito consciente de seus seios, quentes e com um comichão de<br />

espera, embora ele não estava perto deles.<br />

– São magníficos – murmurou o duque.<br />

Nem sequer os olhava, mas Minnie ansiava levar as mãos ali, não para os tampar, a não ser para<br />

explorar suas curvas. Para ver se, possivelmente, seus seios eram de ver<strong>da</strong>de magníficos, se o tinham<br />

sido todos esses anos e ela simplesmente não se deu conta.<br />

Se outro homem houvesse dito que seus seios eram magníficos, possivelmente o haveria dito de um<br />

modo luxurioso, de um modo que lhe teria resultado repelente. Mas o duque de Clermont sorria corajoso<br />

e tinha dito a frase como se fosse só um <strong>da</strong>do mais a ter em conta. “Faz um dia precioso”. “As ruas estão<br />

cobertas de paralelepípedos”. “Suas tetas são magníficas”.<br />

– Não proteste – disse ele. – Você me perguntou isso e, depois de ter vindo me visitar em minha casa<br />

para me chantagear, não é necessário fazer alarde de falsa modéstia.<br />

Minnie endireitou os ombros, muito consciente de que ao fazê-lo erguia mais os seios.<br />

– Olha-se alguma vez no espelho – sugeriu ele. – Olha, além disto – tocou a bochecha no ponto onde<br />

ela tinha a cicatriz. Veja-se alguma vez tal e como está agora, cheia de fogo e de fúria, disposta a batalhar<br />

comigo. Se tivesse se visto alguma vez assim, não questionaria que queira cortejá-la. Saberia que quero.<br />

Minnie sentia todo seu corpo em chamas, umas chamas ardentes e cintilantes. Jamais tinha sido tão<br />

consciente de seu corpo, de ca<strong>da</strong> polega<strong>da</strong> dele, dos bicos dos seios, que podiam ser magníficos ou<br />

podiam não sê-lo, até os calcanhares. Ele a olhava nos olhos com intensi<strong>da</strong>de.<br />

Ela tragou saliva.<br />

– Não é justo de sua parte tentar me confundir antes que tenha aceitado seu plano – e se tivesse<br />

pretendido aceitar, aquele olhar a teria dissuadido de fazê-lo. Um homem que podia paquerar assim não<br />

fazia sentido que paquerasse com ela.<br />

O duque franziu o cenho e passou uma mão pela fronte.<br />

– Vamos, senhorita Pursling – sorriu. – Você é a pessoa mais interessante que conheci desde minha<br />

chega<strong>da</strong>. Seria um prazer passar mais tempo em sua companhia.<br />

Para ele isso implicaria que poderia partir a outras ci<strong>da</strong>des. Para ela… Para ela significaria um<br />

período curto de ter aquele homem <strong>da</strong>nçando com ela e cortejando-a. Um mês de elogios, umas semanas


de sorrisos sedutores. Significaria dia sobre dia que ela poderia cair presa de seu feitiço. Era só ver o<br />

que tinha conseguido em dez minutos.<br />

Moveu a cabeça para limpar as teias que ele tinha tecido com tanta arte. Isso implicaria que a<br />

olhariam todos em todos os lugares que comparecesse. Não poderia suportar esse tipo de escrutínio.<br />

– Esse plano não me beneficia em na<strong>da</strong>, Excelência. Se lhe aju<strong>da</strong>r e nos descobrem, o desculparão<br />

por ser rico, excêntrico e poderoso. Eu serei a mulher, a traidora que deu tudo por você. E se me dá fama<br />

de coquete, todos acreditarão que fui sua amante. Ficarei desonra<strong>da</strong>. E quando… – uma on<strong>da</strong> de tristeza a<br />

envolveu e não pôde terminar a frase. Não queria pensar em sua tia avó Caroline morta. Respirou fundo.<br />

– E ao final de tudo, eu estarei na miséria e você será um duque.<br />

– Eu trato minhas amantes melhor que isso. Embora sejam fingi<strong>da</strong>s.<br />

Ela ergueu o queixo e o olhou séria.<br />

– Meu futuro não é nenhuma brincadeira, Excelência.<br />

O duque fez uma careta.<br />

– Acredito que me expressei mal. Ouça senhorita Pursling – suspirou, – não pretendo me burlar de<br />

sua situação. Mas não vim a Leicester paquerar por capricho. Estou aqui por uma promessa que fiz. Meu<br />

pai torceu algumas linhas e eu as devo endireitar. Não desejo lhe causar nenhum <strong>da</strong>no, mas não pararei o<br />

que faço apenas porque você me pede isso. E não é necessário que estejamos em conflito.<br />

– Eu não desejo ter que lançar insinuações nem ir reunindo provas que o assinalarão indevi<strong>da</strong>mente<br />

como o culpado – respondeu ela. – Mas o farei se for necessário. Se o fizer a meu modo, quando tudo<br />

isto termine, as pessoas dirão: “Vá, Minnie manteve a cabeça em seu lugar apesar de haver um duque no<br />

meio”.<br />

– E os homens se casarão com você por isso? – perguntou ele duvidoso.<br />

– Só necessito que o faça um homem – replicou ela. – Mais seria ilegal.<br />

O duque recuperou o sorriso.<br />

– Você não deixa na<strong>da</strong> por menos, ver<strong>da</strong>de? Não posso acreditar que Gardley a chamasse<br />

camundongo. É você o roedor mais formidável que conheci.<br />

Colocou seu dedo indicador em cima <strong>da</strong> mão dela. Não foi uma carícia. Não podia ser uma carícia.<br />

Mas bastou para que Minnie ficasse paralisa<strong>da</strong> no lugar, presa por esse único ponto de contato.<br />

– Queri<strong>da</strong> – disse o duque. – Lhe dou minha palavra de que terá uma oferta de matrimônio antes que<br />

eu vá. Embora tenha que fazer-lhe eu mesmo.<br />

Minnie se levantou de um salto e se separou dele.<br />

– Isso não tem graça – repôs sem incomo<strong>da</strong>r-se em moderar seu tom. – Isto não é nenhuma<br />

brincadeira apesar do que você possa pensar, e lhe agradeceria se deixasse de falar como se fosse.<br />

Em seu intento por escapar dele e de sua horrível proposta, tinha derrubado a xícara de chá <strong>da</strong> mesa e<br />

esta lhe tinha caído no pé e sentia o líquido atravessando a meia. Ele não disse na<strong>da</strong>, simplesmente<br />

endireitou a bandeja sobre a mesa. Lydia, atrás deles, tinha as sobrancelhas ergui<strong>da</strong>s e os olhava<br />

incômo<strong>da</strong>.<br />

– Nesse caso – comentou ele, ain<strong>da</strong> em voz baixa, – eu o farei a meu modo e você prove o seu. Já<br />

veremos quem ganha.<br />

– Isso é impossível – repôs ela. – Não pode paquerar comigo. Estarei em guerra com você.


– Não o estará – murmurou ele. – Prove estar em guerra com um competidor que não quer lutar.<br />

Acredito que nem sequer você será capaz disso.<br />

– Você não sabe do que sou capaz.<br />

– Não – ele sorriu de um modo que fez voar faíscas pelo ventre dela.<br />

Levantou-se e tomou sua mão. Essa vez se inclinou até que seus lábios roçaram a palma. Minnie tinha<br />

tirado as luvas e sentiu em todo seu corpo o leve beijo que ele depositou na mão.<br />

– Não sei – comentou ele. – Mas estou desejando descobri-lo.


CAPÍTULO 4<br />

A CHUVA SALPICAVA OS CRISTAIS <strong>da</strong> janela do escritório de Robert e dissolvia o mundo exterior<br />

em redemoinhos nebulosos. Abaixo, na rua, as duas mulheres eram já borrões que se afastavam entre<br />

saias que revoavam debaixo do guar<strong>da</strong>-chuva. O azul marinho era <strong>da</strong> senhorita Charingford; e o marrom<br />

escuro, <strong>da</strong> inimitável senhorita Pursling. De cima, na<strong>da</strong> o diferenciava de qualquer outro guar<strong>da</strong>-chuva <strong>da</strong><br />

rua. Se ele não tivesse visto seu vestido só uns minutos antes, não teria sabido quem era.<br />

Sentia-se como se tivesse despertado fraco e confuso e que lhe houvessem dito que tinha passado três<br />

semanas em cama com febre e que, durante sua enfermi<strong>da</strong>de, a rainha Vitória tinha abdicado para fugir<br />

com um domador de leões de Birmingham. O mundo parecia um lugar completamente diferente. E<br />

entretanto, ali estava a senhorita Pursling, detendo-se debaixo de um toldo na esquina, conversando com<br />

sua amiga e girando o guar<strong>da</strong>-chuva com os dedos como se na<strong>da</strong> tivesse ocorrido.<br />

Como se não acabasse de truncar to<strong>da</strong>s suas expectativas.<br />

A porta se abriu em silêncio a suas costas e uns passos se aproximaram dele. Robert não tinha que<br />

olhar para saber quem era; os serventes <strong>da</strong>quela casa o temiam ain<strong>da</strong> muito para aproximar-se sem pedir<br />

permissão. Isso deixava só uma possibili<strong>da</strong>de: o senhor Oliver Marshall.<br />

– Então – disse Oliver atrás dele. – Foi tão mal como temia?<br />

Robert tamborilou com os dedos no batente e considerou a resposta.<br />

– Vieram duas senhoritas solicitar uma contribuição para a<br />

Comissão… Oh, o diabo o leve, não me lembro. Ah, sim. A Comissão de Higiene dos Operários.<br />

Robert tinha poucos segredos com Oliver, mas a noite anterior não lhe tinha mencionado sobre a<br />

senhorita Pursling. Em primeiro lugar, porque não lhe tinha parecido importante e, em segundo, porque se<br />

ali havia um segredo, pertencia a ela, não a ele. E isso… isso o convertia em um dos poucos segredos<br />

que não tinha mais remedeio que ocultar a Oliver.<br />

– Entendo. Vieram para te olhar embeveci<strong>da</strong>s – havia um traço de humor na voz de Oliver, que foi<br />

situar-se ao lado de Robert. Olhou também pela janela e franziu o cenho ao não ver na<strong>da</strong> de interesse.<br />

– Pois a ver<strong>da</strong>de é que não.<br />

A senhorita Pursling e sua amiga passaram sob a marquise com as cabeças inclina<strong>da</strong>s uma para a<br />

outra e os ombros roçando-se. A chuva caía do teto metálico que as resguar<strong>da</strong>va e salpicava o chão em<br />

on<strong>da</strong>s de água suja. Oliver acreditava que tinham ido a essa ci<strong>da</strong>de para tentar convencer a seus<br />

habitantes de que votassem numa reforma. A senhorita Pursling tinha ameaçado revelando as outras<br />

ativi<strong>da</strong>des de Robert ali, e isso era muito mais irritante que o fato de que o olhassem embeveci<strong>da</strong>s. Por<br />

outra parte… Robert se voltou para seu amigo.<br />

– Oliver – disse. – Como pôde chegar à conclusão de que eu era um ser humano que valia a pena?<br />

Oliver tirou as lentes e as limpou com um lenço.<br />

– O que te faz pensar que cheguei a essa conclusão?


– Digo-o a sério. Até que te conheci, ninguém dos que me olhavam via uma pessoa de ver<strong>da</strong>de.<br />

Apenas ao filho de um duque.<br />

E desde Oliver, ninguém tinha visto tampouco uma pessoa de ver<strong>da</strong>de. Viam um voto na Câmara dos<br />

Lordes, ou uma fortuna her<strong>da</strong><strong>da</strong> de seu avô. Viam as possibili<strong>da</strong>des que representava.<br />

A senhorita Pursling desapareceu ao dobrar a esquina e Robert moveu a cabeça. Ela era um problema<br />

com o qual teria que lutar. Mas também era um prazer.<br />

Oliver terminou de limpar suas lentes e o olhou.<br />

– Bom – disse. – Possivelmente foi porque eu sabia muito bem quanto valia ser filho de um duque.<br />

Você não foi o único.<br />

– Mas quando te conheci, comportei-me como um imbecil.<br />

– Certo – comentou Oliver.<br />

Sua amizade, ou o que quer que fora aquilo, não tinha sido fácil. Quando Robert conheceu Oliver,<br />

tratou-o como a um inimigo e inspirou a outros meninos a meter-se com ele. Embora o certo era que<br />

Oliver não necessitava que o inspirassem muito para brigar.<br />

Um dia Oliver lhe havia dito em voz baixa que eram irmãos. E Robert tinha tido a sensação de que<br />

todo seu mundo virava do avesso.<br />

– A que vem tudo isto? – perguntou Oliver. – Foi simples. Brigamos; os irmãos brigam muito.<br />

Demoramos um pouco em aprender a nos conhecer e depois… – encolheu os ombros.<br />

– Tem uma memória terrível. Demoramos um pouco em aprender a nos conhecer – lhe recordou<br />

Robert. – Eu animava a outros meninos a que se metessem contigo. E quando fizemos as pazes, custou-me<br />

muitíssimo aceitar o que me havia dito.<br />

Tinha passado meses ponderando o inevitável, fazendo contas. Retrocedia nove meses do nascimento<br />

de seu irmão e lhe saía uma <strong>da</strong>ta dois meses depois do casamento de seus pais. Sua mente não deixava de<br />

procurar uma boa razão para que seu pai tivesse engendrado um filho fora do casamento e logo o tivesse<br />

abandonado sem lhe <strong>da</strong>r apoio econômico. Robert construía explicações elabora<strong>da</strong>s apoia<strong>da</strong>s em<br />

mensagens que se perdiam, mentiras que se contavam, serventes que estavam ausentes…<br />

– Apenas deixei de procurar desculpas ao comportamento de meu pai quando lhe perguntei o que<br />

tinha ocorrido.<br />

“Dá-me igual o que ela diga”, tinha grunhido seu pai. “Ela queria aquilo. Sempre o querem”.<br />

Essa negação automática de um delito de que não tinha sido acusado tinha deixado às coisas<br />

dolorosamente claras a Robert. E tinha procurado Oliver assim que voltou <strong>da</strong>s férias.<br />

– Eu não sou meu pai – lhe havia dito com voz trêmula. – Digam o que digam as pessoas, não sou meu<br />

pai.<br />

E Oliver lhe tinha sorrido.<br />

– Já sei – tinha respondido com insolência. – Estava esperando que te desse conta.<br />

“Sei que não é seu pai”. Ao longo dos anos, essas palavras tinham significado mais para Robert que<br />

nenhuma <strong>da</strong>s adulações que tão frequentemente lhe dirigiam. Um catedrático de Cambridge o tinha<br />

observado nos olhos e lhe havia dito: “meu Deus, é sua viva imagem”. Quando alcançou a maiori<strong>da</strong>de, os<br />

homens lhe <strong>da</strong>vam tapinhas nas costas e lhe diziam o muito que se parecia com o velho duque de


Clermont. Sempre que o felicitavam por ser filho dele, Robert ouvia o lamento queixoso de seu pai. “Ela<br />

queria aquilo.<br />

Sempre o querem”.<br />

Robert era duas polega<strong>da</strong>s mais alto que seu irmão. Era três meses mais velho que ele. E, quão único<br />

de ver<strong>da</strong>de contava, era o filho legítimo, que tinha her<strong>da</strong>do o ducado de seu pai e uma vasta fortuna pelo<br />

lado de sua mãe. A ninguém teria estranhado que tivesse posto a seu irmão em seu lugar… muito atrás<br />

dele.<br />

Por isso precisamente, não o faria nunca. “Os jogo de <strong>da</strong>dos me favoreceram no primeiro lançamento,<br />

e portanto já ganho sempre” não era um bom grito de batalha. E se ele sozinho tinha ganhado aquela<br />

primeira ron<strong>da</strong> era porque seu pai tinha feito armadilhas.<br />

Desde aquele dia, irritava-lhe que lhe recor<strong>da</strong>ssem seus privilégios, a riqueza ou a nobreza de seu<br />

pai. Porque isso lhe recor<strong>da</strong>va o momento em que tinha descoberto o que significava ser seu pai um<br />

duque. Significava que ninguém lhe questionava por muito equivocados que fossem seus atos. Significava<br />

que não pagava por seus crimes independentemente de quem sofresse no processo. Significava que, se<br />

Robert seguia os passos de seu pai, ninguém teria na<strong>da</strong> que dizer.<br />

Depois de tudo, os homens tinham suas necessi<strong>da</strong>des. E as mulheres queriam aquilo. Sempre o<br />

queriam.<br />

Em to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, só uma pessoa o tinha observado e lhe havia dito:<br />

“Você não tem por que ser seu pai”.<br />

Uma e… Robert olhou pela janela. Uma e meia.<br />

Porque a senhorita Pursling tinha entrado em sua casa, tinha-lhe <strong>da</strong>do um santinho e lhe havia dito que<br />

o tinha escrito ele. E ele teve que se reprimir para não resplandecer de orgulho e lhe perguntar o que lhe<br />

parecia. Se resultava convincente e se tinha gostado.<br />

Enrugou o nariz.<br />

– Nosso pai era um imbecil.<br />

Oliver fez uma careta.<br />

– Seu pai – respondeu cortante. – Não me criou o duque de Clermont. Não me levou para pescar. É o<br />

homem que me engendrou, não é meu pai. Nunca foi meu pai.<br />

Segundo essa lógica, Robert tinha sido criado por colherinhas e fibras de erva.<br />

– Eu não falava de história – repôs com rigidez. – Só de biologia.<br />

Oliver negou com a cabeça.<br />

– A família não é questão de história nem de biologia – comentou com suavi<strong>da</strong>de. – É questão de<br />

escolha. E não te mostre tão sombrio. Você sabe a que me referia. Que me negue a deixar que esse homem<br />

seja meu pai não significa que você não possa ser meu irmão.<br />

– Oxalá fosse tudo tão fácil! – Robert meteu as mãos nos bolsos e afastou a vista. – Esta manhã recebi<br />

uma mensagem de minha mãe.<br />

– Ah! – Oliver lhe pôs uma mão no ombro. – A sério?<br />

– Sim – repôs Robert com uma voz que esperava soasse humorística. – E só faz dois meses que a vi<br />

em Londres.


Seu irmão o olhou então pela extremi<strong>da</strong>de do olho. Foi um olhar compassivo e Robert o afastou com<br />

um gesto.<br />

– Não faça isso – murmurou com brutali<strong>da</strong>de. – Vai vir aqui.<br />

Clermont, dizia a nota, ficarei um tempo no hotel Três Coroas de Leicester. Como acredito que está<br />

perto, jantaremos juntos em dezenove de novembro.<br />

– Não disse por que e não me ocorre o que pode havê-la empurrado a vir – Robert evitou olhar a seu<br />

irmão. – Se a família for questão de escolha, ela escolheu a todos menos a mim faz muito tempo. Por que<br />

se incomo<strong>da</strong> em me ver agora quando no passado nunca se fixou em mim…<br />

– Possivelmente queira… – respondeu Oliver.<br />

– Não quer – o interrompeu Robert, cortante. – Ela não quer nunca.<br />

Oliver e Robert se conhecem durante mais <strong>da</strong> metade de suas vi<strong>da</strong>s. Tinham frequentado juntos<br />

primeiro a Eton e depois a Cambridge. Durante esse tempo, Oliver tinha recebido continuamente cartas<br />

de sua família. Tinha que ter notado que Robert mal recebia correspondência de seus pais.<br />

Oliver moveu o teto; pareceu que escolhia com cui<strong>da</strong>do suas seguintes palavras.<br />

– O que vais fazer?<br />

– Já lhe respondi e disse que nessa <strong>da</strong>ta estarei fora, que prometi acompanhar Sebastian.<br />

– Ah! – exclamou Oliver sem comprometer-se.<br />

– E em segui<strong>da</strong> escrevi a Sebastian e lhe supliquei que venha – confessou Robert. – Não sei o que<br />

quer ela, mas não pode ser muito importante. Além disso, faz quase um ano que não coincidimos os três.<br />

Se os Irmãos<br />

Sinistros com to<strong>da</strong> sua mal<strong>da</strong>de não são capazes de espantá-la <strong>da</strong>qui… Oliver sorriu.<br />

– Assim nos chamavam em Eton porque os três somos canhotos.<br />

Eu agora sou quase respeitável, você é um duque e Sebastian é… – franziu o cenho. – É um homem<br />

bem considerado entre pessoas inteligentes. A menos por algumas delas.<br />

Robert pôs-se a rir.<br />

– Bem pensado, mas não servirá. Minha mãe acha que sua existência é um insulto pessoal. Está<br />

convenci<strong>da</strong> de que Sebastian é um apóstata e, desde que flertou com ela o ano passado, um libertino.<br />

Oliver quase se engasgou com a saliva.<br />

– Ele fez o quê?<br />

– Pedi-lhe que me salvasse em uma reunião e o fez – Robert moveu a cabeça. – A seu modo.<br />

Oliver fez uma careta.<br />

– Não pretendia na<strong>da</strong> com isso – esclareceu Robert. – Mas tudo se reduz a uma coisa. Se ela insistir<br />

em me ver apesar <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça de <strong>da</strong>ta e <strong>da</strong> presença de duas pessoas que odeia, é que é algo sério.<br />

Em outro tempo, Robert teria se permitido sonhar acor<strong>da</strong>do com uma situação em que sua mãe iria a<br />

ele banha<strong>da</strong> em lágrimas, a lhe pedir desespera<strong>da</strong>mente sua aju<strong>da</strong>. Ele a salvaria então com uma mescla<br />

de engenhosi<strong>da</strong>de e bom senso. E lhe pediria perdão chorando por havê-lo evitado por tanto tempo.<br />

Em sua juventude, quando imaginava as desculpas senti<strong>da</strong>s dela, Robert lhe dizia que não chorasse.<br />

“Não se preocupe”, imaginava que lhe dizia. “Temos muitos anos pela frente”.


A ele não lhe tinha acabado o tempo, mas as esperanças só podiam ver-se frustra<strong>da</strong>s certo número de<br />

vezes antes que o cansaço o fizesse se entregar. Fazia mais de uma déca<strong>da</strong> que não se permitia sonhar<br />

com um mundo em que sua mãe se importasse com ele e não estava disposto a começar a fazê-lo outra<br />

vez. Por improvável que parecesse, ela certamente teria assuntos em Leicester, assuntos que a afastariam<br />

<strong>da</strong>li antes que ele chegasse a vê-la. Os dois seriam mais felizes se não tivessem que ver-se.<br />

– E o que fará se a situação for séria? – perguntou Oliver.<br />

Robert moveu a cabeça.<br />

– O que sempre fiz. O que for preciso, Oliver, o que for preciso.<br />

A QUESTÃO DO QUE ia fazer em relação à senhorita Pursling teve que esperar até que Robert<br />

voltou a vê-la. Isso aconteceu três dias depois, na residência dos Charingford, onde Robert e Oliver<br />

tinham sido convi<strong>da</strong>dos para jantar.<br />

É obvio, tinha pensado nela nesses dias. Algo nela lhe chamava a atenção. Seu engenho rápido e seu<br />

estilo intrépido. Gostava disso. Uma noite despertou de um sonho em que ela se mostrava alegremente<br />

descara<strong>da</strong>.<br />

Mas as fantasias <strong>da</strong> noite poucas vezes se tornavam reali<strong>da</strong>de. Duvi<strong>da</strong>va que ela tivesse intenção de<br />

lhe <strong>da</strong>r prazer de nenhum jeito. Na reali<strong>da</strong>de, suspeitava que estivesse a ponto de ser submetido à<br />

investigação de uma detetive amadora. Disfarces ruins, perguntas indiretas, intenção de revirar seu lixo<br />

em busca de pistas… A senhorita Pursling era sem dúvi<strong>da</strong> o tipo de jovem veemente que se entregava à<br />

caça com paixão.<br />

Por isso não lhe surpreendeu vê-la no jantar. Já tinha se posto confortável quando ele chegou, mas era<br />

apenas questão de tempo antes que tentasse falar com ele. Robert a observou pelo canto do olho antes que<br />

se sentassem para jantar. Pensava que ela tentaria escutar sua conversa.<br />

Mas ela o ignorou.<br />

Fez-o tão bem que foi ele quem, justo antes que anunciassem o jantar, descobriu-se tentando ouvir a<br />

conversa dela com outras três senhoritas.<br />

Tinha certeza de que estaria fazendo perguntas sobre ele.<br />

Não era assim.<br />

Ela falava muito pouco. E quando o fazia, falava com voz tão baixa que ele tinha que se esforçar para<br />

ouvir suas palavras.<br />

Recor<strong>da</strong>va a cadência sensual de sua voz e o desafio que iluminava suas feições e a deixava bonita.<br />

Esse dia não havia nem rastro de nenhuma <strong>da</strong>s duas coisas.<br />

Usava um vestido de pescoço alto feito de um tecido marrom rígido, enfeitado com uma trança militar<br />

nos punhos e no pescoço. Devia levar os óculos guar<strong>da</strong>dos na bolsa singela que pendurava de seu punho.<br />

Mantinha distância dele e não dizia na<strong>da</strong> engenhoso. Quase não dizia na<strong>da</strong>.<br />

Robert tinha estado a ponto de dizer a Oliver que se tratava de uma jovem com muito engenho.<br />

Quando se sentaram para jantar, ela ficou senta<strong>da</strong> ao lado de seu irmão, mas não tentou falar com ele.<br />

Nem sequer ergueu a vista de seu prato exceto para olhar de vez em quando o nível do vinho rebaixado


com água de seu copo. Murmurou algo a Oliver em uma ocasião, mas como ele respondeu lhe entregando<br />

o saleiro, Robert assumiu que não havia dito na<strong>da</strong> interessante.<br />

E aquela mulher tinha ameaçado provar que ele era responsável pelos santinhos? Incrível.<br />

Oliver lhe dirigiu várias vezes a palavra no transcurso do jantar. Ela, em resposta, murmurava algo<br />

ininteligível sem tirar a vista de seu prato. O irmão de Robert acabou por renunciar a tentar manter uma<br />

conversa.<br />

A mulher que Robert tinha visto em sua casa se evaporou; ficava somente uma sombra com uma<br />

compostura perfeita e na<strong>da</strong> de conversa. Ela tinha razão. Todos se perguntariam o que tinha visto se<br />

tentasse cortejá-la. Nem sequer saberia como fazê-lo. Não se podia paquerar com uma pedra.<br />

Quando os cavalheiros se reuniram de novo com as <strong>da</strong>mas depois do jantar, Robert cumpriu com seu<br />

dever. Parou para falar com todos os presentes, inteirou-se de seus nomes e perguntou por sua saúde.<br />

Teria feito isso de todos os modos, pois não tinha sentido ser duque se não podia usar sua posição para<br />

fazer sorrir às pessoas, mas dessa vez tinha um incentivo a mais. Fez seu circuito pela sala e acabou<br />

aproximando-se indevi<strong>da</strong>mente dela. Estava senta<strong>da</strong> em uma cadeira numa <strong>da</strong>s laterais <strong>da</strong> sala olhando às<br />

pessoas que falavam. Se olhava mais a uns que a outros, Robert não o detectou.<br />

– Senhorita Pursling, é um prazer voltar a vê-la.<br />

Ela ergueu a vista, mas não o olhou, mirou além de seu ombro.<br />

– Excelência – respondeu.<br />

Sua voz era baixa, mas continuava sendo como ele a recor<strong>da</strong>va: rouca e avelu<strong>da</strong><strong>da</strong>. Ao menos isso não<br />

tinha imaginado.<br />

– Posso me sentar um momento ao seu lado?<br />

Ela continuou sem olhá-lo. Baixou a vista ao tapete e assinalou uma cadeira contigua com um gesto <strong>da</strong><br />

mão. Robert se sentou e esperou que ela falasse.<br />

Depois de um minuto completo em silêncio, compreendeu que não ia dizer na<strong>da</strong>.<br />

Robert se recostou na cadeira.<br />

– Já vejo o que se passa aqui. Deixa o peso <strong>da</strong> conversa a Robert. É um duque, supõe-se que deve<br />

fazer isso bem.<br />

– Oh, não! – ela franziu os lábios. – Eu não assumiria que você tenha nenhum talento concreto nesse<br />

aspecto.<br />

Era a primeira pista que <strong>da</strong>va de que podia haver algo mais nela além de um excesso de acanhamento.<br />

Robert tinha começado a duvi<strong>da</strong>r de sua própria memória. Não era possível que aquela mulher tivesse<br />

ido à sua casa para tentar lhe fazer chantagem. Ou sim?<br />

– Me diga – insistiu. – Como pode Minnie vir de Wilhelmina? Minnie me faz pensar em miniaturas, e<br />

não há na<strong>da</strong> em você que pareça diminutivo.<br />

A jovem observou suas as luvas com muita atenção.<br />

– Vem <strong>da</strong> terceira sílaba, Excelência.<br />

Havia tornado a ser a jovem tími<strong>da</strong>. Tinha imaginado Robert a conversa em sua casa? Talvez<br />

estivesse ficando louco.<br />

– O que tem de mais a primeira sílaba? – perguntou. – Ou a segun<strong>da</strong>.


Ela ergueu a vista. Pela primeira vez em to<strong>da</strong> a noite, olhou-o nos olhos. Ele teria jurado que tinha<br />

que haver algum tipo de faísca nela, alguma indicação <strong>da</strong> inteligência que tinha exibido em seu último<br />

encontro. Mas se os olhos eram as janelas <strong>da</strong> alma, as dela tinham sido mura<strong>da</strong>s. Robert não podia ver<br />

na<strong>da</strong> em seus olhos.<br />

– Imagino que poderá perceber o problema – repôs ela, amável. – Willy não ficaria bem. É muito<br />

masculino.<br />

– Isso é certo – murmurou ele.<br />

– Quanto à segun<strong>da</strong> sílaba – ela voltou a olhar por cima do ombro dele, esquivando seu olhar. Seus<br />

olhos eram uma máscara, mas sua boca se franziu de novo. – Pense-o bem, Excelência. O que eu poderia<br />

dizer? Meu nome é Wilhelmina Pursling, mas pode me chamar Hell {1} ?<br />

Robert riu, quase com admiração. Ela seguia parecendo uma pedra, movia os dedos com acanhamento<br />

e se negava a olhá-lo nos olhos. Mas em segui<strong>da</strong> havia sua voz. Uma voz que o fazia pensar em fumaça de<br />

lenha em uma tarde outonal, em se<strong>da</strong>s coloca<strong>da</strong>s em cima de camas suntuosas. O cabelo dela livre de<br />

to<strong>da</strong>s aquelas forquilhas que o capturavam e solto sobre o travesseiro, com as pontas de cor mel lhe<br />

roçando os peitos.<br />

Ele tragou saliva e pigarreou.<br />

– Isto não é o que esperava quando disse que iria à guerra contra mim.<br />

– Deixe-me ver se adivinho – ela tocou a luva com cui<strong>da</strong>do e ele se deu conta de que lhe preocupava<br />

um minúsculo buraco que havia em um dedo. – Pensou que eu sorriria com afetação se você me sorrisse.<br />

Supôs que, quando disse que demonstraria o que está fazendo, pensou que começaria a investigar de<br />

maneira desajeita<strong>da</strong> to<strong>da</strong>s suas ativi<strong>da</strong>des.<br />

– Não. É obvio que não – disse Robert. Mas sentiu que se ruborizava, porque isso era exatamente o<br />

que tinha pensado.<br />

A jovem mordeu o lábio inferior. Era a viva imagem do acanhamento. Mas suas palavras eram o<br />

oposto a tími<strong>da</strong>s.<br />

– Agora se surpreendeu ao descobrir que sou melhor que você.<br />

– Ah, sim? – perguntou ele, olhando-a. – Você é?<br />

Ela tinha a vista fixa no ombro dele. Em sua postura não havia nenhuma indicação do que dizia com<br />

voz baixa.<br />

– Pois claro que sim – respondeu. Falava como se o assunto fosse evidente. – Você é um duque bem<br />

educado, um dos homens mais poderosos <strong>da</strong> Inglaterra. Certamente terá centenas de empregados em suas<br />

distintas proprie<strong>da</strong>des. Se fosse preciso, poderia reunir dezenas de milhares de libras.<br />

Ergueu o canto <strong>da</strong> boca, o que apagou a ilusão de que era uma garota singela e tranquila. Em sua<br />

bochecha apareceu uma covinha. Olhou-o uma vez e ele quase não pôde respirar.<br />

Aquela sim era a mulher que o tinha ameaçado.<br />

– Tem to<strong>da</strong>s essas coisas – disse ela. – Mas eu tenho uma coisa que você não tem.<br />

Robert aproximou o tronco porque não queria perder nenhuma palavra.<br />

– Tenho talento como estrategista – terminou ela.<br />

Robert captou o brilho de um sorriso por um breve momento que lhe fez conter o fôlego, e logo<br />

desapareceu tudo. O rosto dela se alisou, voltou a baixar a vista e a imagem <strong>da</strong> senhorita Pursling se


voltou comum.<br />

Outro homem teria deixado o tema ali, mas Robert não podia imaginar-se retrocedendo nesse<br />

momento, quando ela agachava a cabeça e olhava o chão. Não. Ele queria que ela voltasse a se mostrar.<br />

– Não fez na<strong>da</strong> – disse.<br />

A expressão dela não mudou.<br />

– Estou ganhando – insistiu ele. – Não vai me vencer por meio de aborrecimento.<br />

– Você provavelmente acredita que as batalhas se ganham com canhões, discursos valentes e cargas<br />

temerárias – ela alisava as saias enquanto falava. – Não é assim. As guerras ganham os que fazem<br />

sapatos bons. Ganham os moços que fabricam balas nas fábricas de munições, os trens de fornecimentos<br />

escondidos dos olhos do inimigo. As guerras ganham prestando muita atenção aos detalhes aborrecidos.<br />

Se esperar para ver a carga <strong>da</strong> cavalaria, Excelência, já teria perdido.<br />

Robert piscou.<br />

– Você pode tentar me convencer. Não se <strong>da</strong>rá bem.<br />

– Essa é a beleza <strong>da</strong> estratégia. Tudo o que faço contém uma ameaça dupla. Se você não voltar atrás,<br />

mostrará sua ver<strong>da</strong>deira face. Tudo o que diga, tudo o que faça, ca<strong>da</strong> sorriso encantador e ca<strong>da</strong> frase<br />

doce, quão máximo pode esperar é trocar a forma <strong>da</strong> minha vitória. Mas esta é inevitável.<br />

Parecia tão pequena senta<strong>da</strong> em sua cadeira, tão frágil! Apenas fechando os olhos e apagando a<br />

imagem de solteirona diminuí<strong>da</strong>, podia ele compreender a evidência do que ouvia. A senhorita Pursling<br />

nem sequer o olhava aos olhos, mas sua voz parecia indomável.<br />

– Isso quer dizer que você acredita que sou encantador – comentou ele. – Antes não tinha posto isso na<br />

lista <strong>da</strong>s minhas quali<strong>da</strong>des.<br />

– Pois claro que é encantador – ela não ergueu a vista. – Me cativou. Estou completamente<br />

enfeitiça<strong>da</strong>.<br />

Em sua voz havia uma nota que soava tão amarga que quase resultava doce.<br />

– Você é uma força <strong>da</strong> natureza, Excelência – disse ela. – Mas eu também. Eu também.<br />

Não havia dito que era encantadora. E, de fato, não o era. Não no sentido habitual. Mas havia algo<br />

muito persuasivo nela. Robert já não sabia quem era ela. Ao princípio lhe tinha parecido uma mulher<br />

corajosa e inteligente. Em segui<strong>da</strong> tinha pensado que era a feia do baile. E nesse momento parecia estar<br />

além de qualquer categoria, resultava maior e mais complexa que qualquer outra pessoa que ele tivesse<br />

conhecido até então.<br />

– Se quiser que volte atrás – disse com suavi<strong>da</strong>de, – você não deveria ser tão interessante.<br />

Minnie apertou os lábios.<br />

Mas antes que pudesse responder, soou um ruído do outro lado do aposento. Robert voltou a cabeça a<br />

tempo de ver a senhorita Charingford, a filha <strong>da</strong> família, a mesma amiga que tinha acompanhado a<br />

senhorita Pursling uns dias atrás, levantar-se com tal brutali<strong>da</strong>de que derrubou sua cadeira.<br />

– Vamos, Lydia – disse o homem que estava sentado a seu lado. – Não pode falar a sério.<br />

– Pois sim – replicou a senhorita Charingford.<br />

Pegou um copo de ponche <strong>da</strong> mesa que tinha ao lado e, antes que alguém pudesse intervir, jogou seu<br />

conteúdo no rosto do homem. Gotas vermelhas caíram por seu nariz e seu queixo e mancharam seu


peitilho.<br />

Ouviram-se murmúrios sobressaltados.<br />

– Não pode fazer isso! – disse ele, levantando-se <strong>da</strong> cadeira.<br />

O homem era George Stevens. Robert tinha falado com ele em duas ocasiões, suficientes para<br />

recor<strong>da</strong>r que estava no comando <strong>da</strong> tropa. Um homem importante naquele tipo de entorno.<br />

– Não posso? – perguntou a senhorita Charingford. – Olhe-Me.<br />

Pegou outro copo de ponche <strong>da</strong> mão de sua vizinha e o jogou também à cara.<br />

– Vê? Parece que posso sim.<br />

Depois de dizer isso, ergueu o queixo e saiu como um furacão pela porta. Robert se voltou para a<br />

senhorita Pursling.<br />

– Está…?<br />

Mas a senhorita Pursling não estava ali, já cruzava a sala. Não tinha se desculpado com ele nem<br />

pedira permissão; simplesmente tinha saído correndo atrás de sua amiga. Um momento depois, a porta se<br />

fechou atrás dela.<br />

Robert tinha admirado que sua postura e a expressão de seu rosto tivessem permanecido tão anódinas<br />

durante sua conversa. Mas ela o tinha enganado de novo. Tinha-lhe indicado uma cadeira que lhe<br />

permitiria falar com ele enquanto observava sua amiga. Ele tinha acreditado que não o olhava aos olhos<br />

para fingir acanhamento, quando em reali<strong>da</strong>de estava vigiando Stevens.<br />

“Tudo o que faço contém uma ameaça dupla”. Nisso não tinha sido uma fanfarrona<strong>da</strong>. Ela mal tinha<br />

prestado à conversa a metade de sua atenção; tinha-lhe falado de estratégia e tinha fingido ser tími<strong>da</strong> e<br />

diminuí<strong>da</strong> perante outros. E enquanto fazia isso, seguia também a pista do drama de sua amiga no outro<br />

lado do aposento.<br />

Deus santo! Robert ficava com dor de cabeça só de pensar em todos os fios que devia manter ela em<br />

sua mente.<br />

– Excelência.<br />

Robert saiu de seu sonho e olhou o homem que tinha ao lado. Era George Stevens, que o olhava com<br />

ar sombrio e a mandíbula aperta<strong>da</strong> em um gesto de desaprovação. Limpou-se a maior parte do ponche,<br />

mas seu peitilho seguia manchado de rosa e em sua testa tinha um brilho que fez com que a Robert<br />

picasse a pele em soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de.<br />

– Capitão Stevens.<br />

– Permite-me um momento?<br />

Robert olhou a porta pela qual tinha desaparecido a senhorita<br />

Pursling.<br />

– É obvio.<br />

Stevens lhe fez uma inclinação rígi<strong>da</strong> de cabeça e se sentou com a mesma rigidez no assento que tinha<br />

deixado livre a senhorita Pursling.<br />

– É admirável – disse. – Admirável de todo ponto, que um homem de sua posição tenha a<br />

condescendência de falar com todo mundo em uma reunião como esta – esfregou as mãos. – Mas, ah,


como dizer-lhe? Baixou a voz. – Nem to<strong>da</strong>s as mulheres são igualmente merecedoras disso, e a senhorita<br />

Pursling não é o que parece.<br />

– Oh? – Robert estava muito surpreso para reagir de outro modo–. De que modo a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

senhorita Pursling difere de sua aparência?<br />

Stevens pareceu relaxar-se então.<br />

– Tenho razões para acreditar que não é quem afirma ser.<br />

– Razões? Que razões?<br />

Stevens piscou, como se não estivesse acostumado a que lhe fizessem essa pergunta.<br />

– Bom, há… falei com alguém que conheceu intimamente a sua tia avó. Era uma mulher. E não tinha<br />

notícias <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> senhorita Pursling.<br />

– Você diz que conheceu intimamente a sua tia avó? – perguntou Robert com voz tranquila. – Quanto<br />

tempo faz que a conheceu essa pessoa?<br />

Stevens começava a retorcer-se como um menino apanhado em uma mentira.<br />

– Conheceu-a antes que se mu<strong>da</strong>sse para Leicester. Quer dizer…<br />

– Ah, sim? – Robert arqueou as sobrancelhas. – Me Perdoe se não conheço às famílias <strong>da</strong> região tão<br />

bem como você. Mas a tia avó <strong>da</strong> senhorita Pursling não se mudou a esta região faz cinquenta anos?<br />

– Sim – Stevens se afundou mais no assento. – Mas ela conhecia to<strong>da</strong> a família – fez uma pausa para<br />

respirar fundo. – E se a senhorita Elvira Pursling, a mulher que se supõe ser a mãe <strong>da</strong> senhorita<br />

Wilhelmina, casou-se, ela o teria sabido. As pessoas falam, Excelência, em particular dos êxitos<br />

venturosos. Mas não há notícias disso. Tenho motivos para suspeitar que a senhorita Pursling pode ser<br />

filha ilegítima.<br />

Possivelmente fosse certo. Isso explicaria a insistência dela de que não queria que ninguém<br />

investigasse seu passado. “Um pouco diferente”, sim.<br />

Robert pensou que, se havia algo de ver<strong>da</strong>de na suspeita de Stevens, ele poderia solucionar aquele<br />

assunto de uma vez por to<strong>da</strong>s. O que era uma pequena ameaça quando ela tinha começado fazendo<br />

chantagem?<br />

Mas não. Ele era um cavalheiro e um dos homens mais poderosos do país. Os homens poderosos que<br />

utilizavam seus privilégios para fazer mal às mulheres eram escória.<br />

Robert adotou uma expressão muito fria. Não pôs má cara. Simplesmente olhou ao outro sem piscar<br />

até que o capitão <strong>da</strong> tropa baixou a vista.<br />

– Stevens – disse Robert, sem incomo<strong>da</strong>r-se em usar o título de capitão. – Possivelmente ouviu algo<br />

de mim que lhe faça pensar que quero ouvir tais calúnias?<br />

– Mas Excelência, a senhorita Pursling é uma desconheci<strong>da</strong> para você. Eu apenas queria…<br />

– Você acreditou que eu aceitaria escutar fofocas sem fun<strong>da</strong>mento só porque versam sobre alguém que<br />

não conheço? Stevens apertou os dentes.<br />

– Eu só pretendia…<br />

– Não quero ouvir mais especulações sobre elas. Se me inteirar de que segue com elas, ocuparei-me<br />

de que Leicester tenha outro capitão <strong>da</strong> tropa.<br />

Stevens empalideceu.


– Não pode fazer isso.<br />

Mas sem dúvi<strong>da</strong> sabia que Robert sim podia. Não diretamente, mas apenas tinha que dizer uma<br />

palavra às pessoas apropria<strong>da</strong>s. Robert não queria empregar sua influência sem uma boa razão, e tendo<br />

em conta o que esperava encontrar ali, precisava conservar esse poder o melhor que pudesse. Mas isso<br />

não implicava que tivesse que se privar de ameaçar.<br />

Stevens inclinou a cabeça.<br />

– Me perdoe, Excelência. Essa mulher não é na<strong>da</strong>, cometi um engano. Não tinha me ocorrido que se<br />

interessasse por alguém que está tão abaixo de você.<br />

– Que sentido teria ser duque se não o fizesse? – A pergunta saiu sem pensar, mas Robert não a teria<br />

retirado embora tivesse podido.<br />

Stevens piscou confuso e Robert moveu a cabeça. Era uma loucura <strong>da</strong>r tanto poder a um homem e não<br />

ter expectativas sobre como o utilizaria. Podia esmagar à senhorita Pursling com uma frase.<br />

Possivelmente, inclusive, poderia esmagá-la com seu silêncio. Mas isso não estaria certo.<br />

– Excelência – disse Stevens por fim. – Essa preocupação pelos outros lhe honra.<br />

Tais lisonjas, em troca, não honravam na<strong>da</strong> a ele.<br />

Robert o olhou aos olhos.<br />

– Não, não é certo. Chama-se decência básica. E não mereço elogios por fazer o que deveriam fazer<br />

todos os homens.<br />

Stevens se encolheu visivelmente e levou uma mão à fronte. Uma fronte pegajosa, a julgar pelos<br />

rastros de dedos que deixou nela.<br />

– E agora – Robert ficou em pé, – se me desculpar, há outras pessoas com as quais devo falar.<br />

Cruzou a sala muito consciente de levar os olhos de Stevens cravados nas costas. Tomou nota<br />

mentalmente de que teria que vigiar a aquele homem.


CAPÍTULO 5<br />

– LYDIA – DISSE Minnie, QUE IA CORRENDO pelo corredor. – Lydia espere! O que está fazendo?<br />

Lydia se deteve com os braços colados aos lados e os punhos apertados.<br />

– Vou subir – não se voltou. – O que te parece?<br />

Minnie chegou a seu lado.<br />

– Não é muito tarde. Volta lá e peça desculpas. Stevens te perdoará, estou segura.<br />

– Pois eu não o perdoarei – retrucou Lydia. – Me contou os rumores mais vis sobre ti, que não é filha<br />

legítima. E esse canalha me diz isso!<br />

Minnie lhe pôs as mãos nos ombros.<br />

– Lydia, me escute. Volte e se desculpe. Diga que sente muito. Diga que te equivocaste. Diga que<br />

bebeste muito ponche e tenho certeza de que voltará a te aceitar.<br />

– Pois eu não – Lydia golpeou o chão com o pé. – Não o farei. Não estarei com um homem que pode<br />

falar assim de minha amiga mais queri<strong>da</strong>. Não me casarei com alguém que pode rir disso e espera que eu<br />

concorde com a cabeça. Não o farei.<br />

– Sabe o que acontecerá quando seu pai morrer. Seu irmão her<strong>da</strong>rá a fábrica e…<br />

– Eu terei minha parte – Lydia ergueu o queixo.<br />

Minnie sabia que não seria suficiente para viver disso. E depois de ter terminado sua relação com<br />

Stevens de um modo tão pouco civilizado, seria improvável que encontrasse outro noivo. Além disso…<br />

– E se a próxima vez o rumor for sobre ti? – insistiu Minnie.<br />

Não foi necessário que especificasse sobre o que seria o rumor. O segredo de Lydia sabiam muitas<br />

pessoas. O doutor que a tinha diagnosticado.<br />

Qualquer um que a tivesse visto em Cornwall durante aqueles meses horríveis. Lydia, como ela, vivia<br />

também com o risco de uma desonra pública.<br />

– O que importa quem saiba? – perguntou Lydia, afastando a vista. – Ao que parece, a ver<strong>da</strong>de não é<br />

óbice para que haja rumores. Stevens está espalhando esse vil rumor sobre ti.<br />

Explicar a fonte desse rumor suscitaria perguntas que Minnie não podia responder. Perguntas tais<br />

como por que não havia registro do nascimento de Wilhelmina Pursling. Ou qual tinha sido seu nome<br />

anterior e por que tinha sido necessário trocá-lo.<br />

Minnie moveu a cabeça.<br />

– Meus pais estavam casados, isso posso lhe assegurar – isso e na<strong>da</strong> mais. – Mas Lydia, não podemos<br />

desprezar assim seu futuro. Vais renunciar a um prometido apenas porque disse algo que não gostou?<br />

Ninguém é perfeito.<br />

Lydia rodeou o corpo com os braços e moveu a cabeça.<br />

– Como pode perguntar isso? Como poderia guar<strong>da</strong>r silêncio?


– Mas ele era… – murmurou Minnie. – Você disse…<br />

Lydia havia dito que Stevens a faria feliz. Havia-o dito uma e outra vez, como se tentasse convencerse<br />

a si mesma. Lydia era assim. Acreditava o melhor <strong>da</strong>s pessoas. Desejava que todo mundo fosse feliz.<br />

Era capaz de encontrar o lado bom em to<strong>da</strong>s as situações.<br />

– Às vezes – disse, – alguém se vê força<strong>da</strong> a tomar decisões. Se algo parecer inevitável. Se, por<br />

exemplo, for um homem que pode aju<strong>da</strong>r a meu pai. Se for um homem decente e gostasse… E não parecia<br />

que fosse encontrar na<strong>da</strong> melhor. Tem sentido – franziu o cenho com feroci<strong>da</strong>de. – Tinha sentido –<br />

retificou.<br />

– Pois volte e peça desculpas.<br />

O rosto de Lydia se endureceu.<br />

– Depois do que disse de ti? Disse-me que não deveria estar contigo. Não posso acreditar que este<br />

mundo seja tão cruel para exigir sacrificar minha amiga mais queri<strong>da</strong> para poder fazer um bom<br />

matrimônio.<br />

“Oh, Lydia!”. O coração de Minnie doía por sua amiga. Apesar de tudo o que lhe tinha ocorrido,<br />

seguia pensando assim.<br />

– Pode ser tão cruel, sim – sussurrou. E porque sabia quão cruel podia ser, acrescentou: – E é.<br />

– Não é – Lydia abraçou a sua amiga e a atraiu para si. – Não deixarei que seja.<br />

Minnie quase se permitiu deixar-se enganar pelo calor desse abraço. Quase.<br />

Algum dia…<br />

Algum dia Lydia descobriria tudo o que Minnie lhe tinha ocultado. Sua amizade não poderia<br />

sobreviver a isso. Não seria a ver<strong>da</strong>de do que tinha ocorrido o que destruiria sua amizade, a não ser o<br />

fato de que o tivesse ocultado todos esses anos. De que tivesse sido depositária dos segredos mais<br />

escuros de sua amiga e de que guardou o seu para si.<br />

A questão não era se deixariam de ser amigas. A questão era quando ocorreria isso. E, entretanto,<br />

Minnie tinha sido incapaz de renunciar a ela. Lydia era carinhosa, feliz e cheia de esperança. E às vezes,<br />

apesar <strong>da</strong> inclinação de Minnie pela lógica, sua amiga conseguia lhe contagiar com seu otimismo.<br />

Às vezes acreditava que seriam felizes. Acabariam-se os medos pelo futuro. Tudo sairia bem e<br />

seriam sempre amigas.<br />

De to<strong>da</strong>s as fantasias tolas que Minnie poderia haver-se permitido, aquela era a que lhe tinha mais<br />

introjeta<strong>da</strong>, a que nunca podia abandonar de tudo. Por isso abraçou a sua amiga e rezou para que a vi<strong>da</strong><br />

não lhe desse razão muito cedo.<br />

– E então? – perguntou Lydia. – O duque de Clermont falou muito tempo contigo. – O que te disse?<br />

– Na<strong>da</strong> – mas Minnie sorriu a contra gosto. – Na<strong>da</strong>.<br />

Absolutamente na<strong>da</strong>.<br />

A MORADIA, SE, SE PODIA chamar assim, e Robert não estava seguro de que merecesse esse<br />

nome, era um ver<strong>da</strong>deiro antro. O pouco gesso que restava na parede <strong>da</strong> única sala estava rachado e sujo<br />

de fuligem. O aposento cheirava a vinagre amargo e a couve rançosa. A cadeira em que se sentava estava


muito perto do chão, como se tivesse quebrado uma perna e tivessem cortado as demais para deixá-las no<br />

mesmo nível. Se, se movia muito para qualquer dos dois lados, a cadeira rangia e oscilava. Aquela casa<br />

sórdi<strong>da</strong> representava tudo o que o pai de Robert fez de mal em Leicester, e ele tinha ido ali para arrumálo.<br />

Tinha demorado muito tempo em tentá-lo. Mas em sua defesa podia aduzir que fazia pouco tempo que<br />

tinha descoberto o que tinha se passado.<br />

Em frente dele, o habitante <strong>da</strong> casa, um homem magro que tossia muito e respondia pelo nome de<br />

Finney, envolvia-se bem em sua jaqueta.<br />

Botas Graydon – Finney se voltou para trás em seu assento e olhou para o teto. – Esse é um nome em<br />

que não me permiti pensar em anos.<br />

Deixei de trabalhar para eles em cinquenta e oito, não?<br />

– Isso é o que diz o registro – retrucou Robert.<br />

O homem o apontou com seu cachimbo.<br />

– E você me diz que, depois de tantos anos, depois de que Botas Graydon desapareceu faz quase uma<br />

déca<strong>da</strong>, há um ricaço que quer me <strong>da</strong>r uma pensão. A mim.<br />

Robert assentiu.<br />

– Senhor Blaisdell. Passei quatro meses no cárcere. Isso arruinou minha saúde, mas minha cabeça<br />

ain<strong>da</strong> funciona. Não acredito nisso, não senhor. Com certeza há algum truque.<br />

Não havia truque. O avô de Robert tinha <strong>da</strong>do a fábrica a seu pai como parte do trato. Seu pai, que<br />

não entendia na<strong>da</strong> de indústria, tinha entregue a fábrica a um capataz e lhe tinha ordenado que lhe tirasse<br />

todos os benefícios que pudesse. Robert tinha descoberto o lugar revisando os arquivos de seu avô de<br />

déca<strong>da</strong>s atrás. Nos livros de seu pai, sempre incompletos, não aparecia.<br />

– Senhor Finney – explicou. – Não lhe digo que Botas Graydon vá <strong>da</strong>r uma pensão. Isso seria<br />

absurdo. A organização benéfica a que represento esteve investigando as ocorrências <strong>da</strong>quele ano e<br />

decidiu que foi injustamente encarcerado.<br />

– Eu levo anos dizendo o mesmo.<br />

– De fato, Leicester tem uma história curiosa a esse respeito – prosseguiu Robert. – Sabia que na<br />

última déca<strong>da</strong> se condenou a mais pessoas por rebelião criminal em Leicester que em todo o resto <strong>da</strong><br />

Inglaterra junto?<br />

Até onde Robert sabia, isso também tinha começado o capataz de seu pai e não se acabou com o<br />

afun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> fábrica.<br />

– Aqui dizemos o que pensamos.<br />

Robert pôs os papéis na mesa.<br />

– Dizer o que pensa apenas é ilegal se com suas palavras pretende criar animosi<strong>da</strong>de contra o<br />

Governo. Não contra seus patrões, contra o Governo.<br />

A princípio, Robert só tinha querido tentar emen<strong>da</strong>r o que seu pai tinha destruído. Mas quanto mais<br />

investigava, mais encontrava. Tinha terminado por investigar os arquivos desses julgamentos, e estava<br />

claro que aos jurados não lhes tinham explicado claramente a lei.<br />

– Não deveriam havê-lo condenado apenas por organizar um sindicato.


Finney o olhou. Negou com a cabeça.<br />

– Tem razão. Mas os patrões conseguem o que querem. Eu não quero me colocar mais nisso. Estou<br />

muito ocupado com a cooperativa.<br />

Nesse momento se abriu a porta <strong>da</strong> casa e apareceram duas mulheres na soleira. Uma delas, anciã e<br />

magra, embeleza<strong>da</strong> com um vestido largo marrom, levava um saco com comi<strong>da</strong>. Empurrou para trás o<br />

gorro amarelo que lhe escorregava na cabeça e fez um gesto a sua acompanhante.<br />

– Eu apenas digo que não acredito que funcione.<br />

Sua companheira era a senhorita Pursling. Parecia a viva imagem <strong>da</strong> severi<strong>da</strong>de, com o cabelo<br />

castanho e cor mel recolhido em um coque apertado e só uns poucos cachos soltos no pescoço.<br />

As duas mulheres estavam totalmente absortas uma na outra.<br />

– Senhora Finney – disse a senhorita Pursling. – Falei com todos os farmacêuticos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Você é<br />

minha última esperança.<br />

A senhora Finney tirou o xale.<br />

– Mas a cooperativa vende comi<strong>da</strong>, não essas outras tolices.<br />

– Mas o anúncio…<br />

– Senhorita Pursling, eu a aprecio, mas como vou levar isso à Junta?<br />

A senhorita Pursling baixou a vista.<br />

– Você não sabe como vão se esquivar os outros membros <strong>da</strong> Comissão se fracasso nisto – tinha um<br />

ar muito manso, com a cabeça inclina<strong>da</strong> e as mãos uni<strong>da</strong>s. – Por favor.<br />

– Bom – a senhora Finney deixou seu xale na mesa <strong>da</strong> entra<strong>da</strong>. – Suponho que poderia dizer algo.<br />

– Obrigado – repôs a senhorita Pursling. – Obrigado.<br />

Nesse momento interveio o marido <strong>da</strong> primeira.<br />

– Senhora Finney – chamou. – Temos visita. E não vais acreditar no que diz.<br />

As duas mulheres se voltaram para eles. A senhorita Pursling olhou para Robert. Abriu muito os olhos<br />

e retrocedeu um passo.<br />

– É um cavalheiro de Londres – disse o senhor Finney. – Senhor Blaisdell, minha esposa. E a<br />

senhorita Pursling. É um advogado, acredito.<br />

A senhorita Pursling não piscou ao ouvir isso.<br />

– Um advogado – repetiu. – Que curioso senhor Blaisdell!<br />

– Simplesmente represento a todos – comentou Robert.<br />

O senhor Blaisdell diz que há um fundo que estabeleceu pensões para homens que se dedicaram aos<br />

sindicatos e que se encontram em apuros por isso – o senhor Finney riu.<br />

Sua esposa franziu o cenho.<br />

– E o que é o que querem de nós? – olhou a seu redor. – Vivemos os dois sós nesta casa grande e<br />

temos carne na mesa três vezes à semana. Não estamos tão mal.<br />

Robert piscou ao ouvir isso e olhou a seu redor, tentando ver o lugar com os olhos dela. Não estavam<br />

tão mal?


– Ofereceram-me uma pensão – Finney voltou a rir. – Para mim. Quando o único que fiz por Botas<br />

Graydon foi conseguir que ninguém fosse trabalhar quando Jimmy morreu por envenenamento.<br />

Robert afastou a vista. Uma <strong>da</strong>s primeiras iniciativas do capataz tinha sido substituir o método<br />

original de tingir as botas de negro com uma fórmula que era mais barata, mas muito mais perigosa para<br />

as pessoas que tinham que colocar as mãos nela diariamente. O dinheiro não podia compensar por aquilo,<br />

mas ele tinha que tentá-lo.<br />

– Sim – disse. – E já lhe expliquei que não é por seu trabalho em Botas Graydon, mas sim por sua<br />

experiência no sindicato.<br />

Finney moveu a cabeça com tristeza.<br />

– Você é jovem. Não entenderia. Aprendi a lição de que tinha que ficar em meu lugar. Acabaram-se as<br />

greves. E acabou o associar-se com essas coisas. E menos agora. Disseram-me que o duque de Clermont<br />

está na ci<strong>da</strong>de.<br />

– É ver<strong>da</strong>de – interveio a senhorita Pursling.<br />

Finney cuspiu no chão.<br />

– Tudo começou quando ele comprou Botas Graydon – lhe tremeram as mãos, amarela<strong>da</strong>s pelos anos.<br />

– Mais horas de trabalho por menos pagamento. Logo chegaram os fura greves e as condenações. Esse<br />

homem é uma besta e eu nunca…<br />

– Nathan Finney – o interrompeu a senhora Finney. – É perigoso falar assim. Já lhe separaram de mim<br />

uma vez. Não aprendeu a pensar antes de falar?<br />

– Não, não – disse Robert. – Por mim não tem que conter a língua. Eu estou de acordo.<br />

A senhorita Pursling se aproximou dois passos a ele.<br />

– Está senhor?<br />

Sem dúvi<strong>da</strong> pensava que sua presença ali se devia a um capricho.<br />

Robert se voltou para olhá-la.<br />

– Revisei os arquivos do que fez Clermont – disse com suavi<strong>da</strong>de. – É tão ruim querer emen<strong>da</strong>r as<br />

coisas?<br />

Ela afastou a cabeça.<br />

– Eu apenas questiono seus métodos – franziu levemente o cenho. – Seu motivo… ain<strong>da</strong> não o<br />

compreendo.<br />

– Mas meu motivo é simples. Acredito que os nobres não merecem seus privilégios – repôs Robert. –<br />

Têm o direito para serem julgados na Câmara dos Lordes. Pense, senhor Finney, no que teria significado<br />

isso para você. Os lordes jamais teriam ouvido um caso de rebelião criminal apoiado nas provas<br />

apresenta<strong>da</strong>s contra você. A lei é muito clara e eles protegeriam aos seus.<br />

– Muito certo, muito certo – assentiu Finney.<br />

Robert olhou à senhorita Pursling.<br />

– Acredito que se o duque de Clermont, por exemplo, escrevesse santinhos dizendo o que disse<br />

Finney em 58, ele poderia dizer a ver<strong>da</strong>de e ninguém poderia detê-lo com ameaças de cárcere apoiados<br />

em uma perversão <strong>da</strong> lei.<br />

A senhorita Pursling inclinou a cabeça para um lado.


– Sério?<br />

Finney assentiu.<br />

– Tem muita razão, senhor Blaisdell.<br />

– Mas os nobres usam esse privilégio, não para dizer a ver<strong>da</strong>de a não ser para ocultá-la. Pense,<br />

senhor Finney. O que faria você se tivesse um lugar na Câmara dos Lordes?<br />

– Eu sentado com os lordes? – Finney riu. – Isso eu gostaria de vê-lo.<br />

– A mim também – respondeu Robert. – Se eu tomasse parte no Governo desta nação, não perderia<br />

tempo protegendo meus privilégios e interesses. Não. Encontraria to<strong>da</strong>s as falhas que tem a lei e que<br />

permitem que pessoas como Clermont envenenem seus operários e em segui<strong>da</strong> os castiguem quando se<br />

queixam disso. E erradicaria to<strong>da</strong>s essas falhas.<br />

A ele mesmo surpreendeu a veemência de suas palavras.<br />

– Isso sim é rebelião – interveio a senhora Finney. – E será melhor que não diga essas palavras por<br />

muito seguro que creia estar. É jovem, senhor Blaisdell. Todos fomos jovens. Mas respire fundo e<br />

esqueça esse modo de falar. Não fará nenhum bem a ninguém – olhou à senhorita Pursling com<br />

nervosismo. Além disso, senhorita Pursling, você não viu o duque de Clermont? Você se move às vezes<br />

nesses círculos.<br />

O senhor Finney se afundou mais em seu assento. Parecia envergonhado.<br />

A senhorita Pursling afastou a vista de Robert.<br />

– Sim, o conheci.<br />

– E como é esse velho estúpido? – perguntou Finney. – Porque espero que…<br />

– Silêncio – interveio sua esposa.<br />

– Acredito que este é o filho do velho – disse a senhorita Pursling. Finney fez um gesto com a mão no<br />

ar.<br />

– Se tiver visto um duque, viu-os todos. Não tenho razão, senhor Blaisdell?<br />

Robert não respondeu. Observava à senhorita Pursling, que não tinha mostrado nenhuma emoção<br />

quando falava dele. Nem sequer tinha enrugado a testa pensativa.<br />

Ela moveu a cabeça.<br />

– É alto, rico e atrativo. Essas coisas não chegam a ser boas para a personali<strong>da</strong>de de um homem.<br />

Robert fez uma careta.<br />

Mas ela não tinha terminado.<br />

– Duvido muito que enten<strong>da</strong> o que significa ser um homem trabalhador e suspeito que em sua vi<strong>da</strong><br />

sempre conseguiu o que queria apenas pedindo.<br />

Era um julgamento duro, e o fato de que fosse ver<strong>da</strong>de o fazia ain<strong>da</strong> mais duro. A Robert custava ficar<br />

quieto no assento.<br />

– Os homens que só conheceram bons tempos, frequentemente não podem compreender os tempos<br />

duros – continuou ela.<br />

Era incrível quanto podia ferir a ver<strong>da</strong>de. Robert nem sequer podia zangar-se com ela. Ele havia dito<br />

o mesmo.


– E, entretanto…<br />

Ela se interrompeu movendo a cabeça, e Robert inclinou para frente, desesperado por ouvir o que ia<br />

dizer a seguir.<br />

– E, entretanto – repetiu ela sem olhar nenhuma só vez em sua direção, – acredito que não se parece<br />

na<strong>da</strong> a seu pai. Não sei o que pensar dele.<br />

Robert se sentiu colado à cadeira, incapaz de mover-se. Ela não o havia olhado nem tinha elevado a<br />

voz. Mas suas palavras, pronuncia<strong>da</strong>s quase em um sussurro, tinham sido uma bênção.<br />

“Não se parece na<strong>da</strong> a seu pai”. Exalou o ar entrecorta<strong>da</strong>mente.<br />

– E você contará esta conversa aos magistrados, senhorita Pursling? – perguntou.<br />

– E envolver os Finney? Acredito que não – ela mordeu o lábio inferior. – Me diga, senhor Blaisdell.<br />

Essa associação benéfica a que representa, oferece pensões a todos os que trabalharam em Botas<br />

Graydon?<br />

A todos não. Para começar, muitos não acreditariam. Além disso, a metade tinha morrido e outros<br />

partiram <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

– Aos que foram tratados injustamente – repôs Robert, afastando a vista.<br />

– Senhora Finney – disse a senhorita Pursling, – agradeço-lhe muito que tenha concor<strong>da</strong>do a<br />

apresentar a proposta ante a junta <strong>da</strong> cooperativa.<br />

– É obvio – respondeu a outra mulher.<br />

– Senhor Finney. Senhor Blaisdell – a senhorita Pursling inclinou a cabeça, tocou as saias com uma<br />

pequena reverência e se retirou.<br />

Robert a tinha considerado pouco atrativa vista assim, com a cabeça e a voz baixa. Mas já não.<br />

Algumas mulheres resplandeciam com luz e energia. A senhorita Pursling lhe recor<strong>da</strong>va a primeira luz do<br />

amanhecer que penetrava por debaixo <strong>da</strong> porta depois de uma longa noite. Possuía uma graça cala<strong>da</strong>,<br />

como um tigre passeando em sua jaula. Havia majestade nas garras que não se usavam, nos músculos<br />

preparados para uma ação que nunca chegava. Uma besta enjaula<strong>da</strong> possuía uma beleza sombria.<br />

Ele queria vê-la livre dessa melancolia. Queria que ela o olhasse com seus olhos inteligentes e lhe<br />

dissesse que não era como seu pai, que ele nunca seria seu pai.<br />

O que se interpunha entre eles se tornou imensamente simples e também, de repente, muito<br />

complicado.<br />

“Não se parece na<strong>da</strong> a seu pai”.<br />

Queria lhe ouvir repetir isso e queria que ela acreditasse de ver<strong>da</strong>de.


CAPÍTULO 6<br />

ESSA NOITE, O SONHO de Robert, como tantos outros nesses dias, esteve carregado de desejo<br />

sexual.<br />

Em seu sonho tinha a Minnie onde a tinha conhecido: atrás do sofá <strong>da</strong> biblioteca do Conselho, com as<br />

cortinas ocultando-os à vista de todos. Mas essa vez, em vez de escutar a conversa de outras pessoas,<br />

ouviam o murmúrio gentil <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s do oceano. Nenhum dos dois comentou a rari<strong>da</strong>de de ouvir o mar na<br />

biblioteca. Robert não usava nenhuma roupa e ela estava nua até a cintura. A versão sonha<strong>da</strong> de Minnie<br />

lhe sorria com um encanto convi<strong>da</strong>tivo. Seu cabelo cor marrom mel ia solto e lhe caía em cachos sobre<br />

os ombros, emoldurando os seios nus e os mamilos rosa profundo. Esses mesmos seios roçaram os<br />

joelhos de Robert quando ela se ajoelhou diante dele e introduziu todo o pênis na boca.<br />

Para Robert, os detalhes de seus sonhos eram terrivelmente vagos. Não podia sentir o calor úmido <strong>da</strong><br />

boca dela nem a pressão <strong>da</strong> língua. Apenas percebia o fogo de sua luxúria ardente e uma apaga<strong>da</strong><br />

sensação de desejo. Mas ao menos nos sonhos não tinha que preocupar-se <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de nem <strong>da</strong>s<br />

consequências. Nos sonhos só estava a ver<strong>da</strong>de física do desejo, e essa o tinha bem agarrado.<br />

Em seu sonho ela era muito habilidosa. Sabia embora não pudesse senti-lo. Por muito que se movesse<br />

e que tentasse abraçá-la, não conseguia chegar a tocá-la. Apenas sentia a força de seu desejo crescendo<br />

com ca<strong>da</strong> carícia. Só havia luxúria e mais luxúria.<br />

– Por Deus, Minnie! – dizia-lhe no sonho. – Dê-Me o que quero.<br />

Mas em vez de acariciá-lo com mais força ou de mover-se para que pudesse penetrá-la, a Minnie do<br />

sonho o olhou e se sentou nos calcanhares.<br />

– Se insiste – disse com um sorriso sedutor. Inclinou-se e, de repente, como aconteciam essas coisas<br />

nos sonhos, sussurrou-lhe ao ouvido: – Sei quem é.<br />

A surpresa foi tão grande que despertou. Piscou sonolento. Era de noite e reinava o silêncio. Seu<br />

quarto estava às escuras. Embora tivesse afastado a maior parte <strong>da</strong>s mantas durante o sonho, tinha a<br />

sensação de estar ardendo de febre. Seu pênis estava muito duro e seu corpo se estremecia pela tensão e<br />

exigia alívio. E ele não podia afugentar a imagem do sonho. A senhorita Pursling nua, com o cabelo<br />

caindo pelos ombros e olhando-o com um sorriso brilhante.<br />

Santo céu!<br />

Tinha pensado que seria difícil explicar a seus amigos o que via nela. Não era bonita no sentido<br />

clássico; nem sequer era chamativa. E embora sua figura estivesse bastante bem, Robert sabia que havia<br />

melhores.<br />

Possivelmente era simplesmente que a primeira vez que ela o tinha visto, não tinha visto um duque,<br />

mas um homem que escrevia santinhos radicais.<br />

“Sei quem é”.<br />

Robert levou a mão esquer<strong>da</strong> a sua ereção.


Acreditava na moderação. Decidira não imitar a seu pai. Negava-se a ser o tipo de homem que<br />

possuía a uma mulher só porque gostava. Mas havia vezes em que desejava sê-lo. Desejava sê-lo com<br />

to<strong>da</strong>s as fibras de seu ser.<br />

Afastou os lençóis que o cobriam ain<strong>da</strong> e deixou que o ar frio tocasse sua pele. Não serviu de na<strong>da</strong>.<br />

Isso, em si mesmo, nunca servia de na<strong>da</strong>. Baixou a mão pelo pênis muito devagar e foi adotando um<br />

ritmo familiar. Pensou no sonho. Em Minnie de joelhos, Minnie sorrindo-lhe quando fechava os lábios em<br />

seu membro. Acariciou-se com movimentos curtos e bruscos, que foram voltando-se mais rápidos e<br />

urgentes até que chegou o momento do clímax.<br />

E nesse momento imaginou que Minnie lhe dedicava aquele sorriso aberto e espontâneo e lhe dizia<br />

que sabia quem era. Robert mordeu o lábio para resistir ao prazer selvagem que o embargou.<br />

Demorou um momento em recuperar o sentido comum e admitir que estava em uma situação em que<br />

tinha fixação por uma pessoa. Aquela não era a primeira vez que tinha sonhado com ela. Tampouco era a<br />

primeira vez que despertou em um frenesi de luxúria e se masturbou. Imaginava possuindo-a contra a<br />

parede e na cama. A beleza <strong>da</strong> masturbação era que sempre conseguia o que queria e como o queria. Não<br />

sofria ninguém e não tinha consequências.<br />

“Sei quem é”.<br />

Olhou a escuridão <strong>da</strong> noite. É obvio, tinha sido apenas um sonho. Nos sonhos aconteciam coisas que<br />

não tinham relevância na reali<strong>da</strong>de. Se seus sonhos tivessem algo de ver<strong>da</strong>de, faria anos que o teriam<br />

expulsado <strong>da</strong> companhia <strong>da</strong>s pessoas decentes. Não obstante, os sonhos frequentemente serviam como<br />

alavanca para sua luxúria. Despertava aquecido, recor<strong>da</strong>va imagens do sonho enquanto se provocava o<br />

orgasmo, e a combinação de seu sonho e seus esforços aliviava o pior de suas frustrações.<br />

Mas não havia orgasmos suficientes no mundo que pudessem aliviá-lo do desejo que o enchia por<br />

dentro naquele momento. Até então tinha tido a sensatez de deixar-se levar por desejos que podia<br />

satisfazer facilmente. E não havia motivos para mu<strong>da</strong>r isso.<br />

“Sei quem é”.<br />

Olhou a escuridão e desejou esquecer aquelas palavras, mas ficaram flutuando a seu redor. Umas<br />

palavras não pronuncia<strong>da</strong>s e que, entretanto, ressonavam em seus ouvidos.<br />

Ela acreditava que ele não era como seu pai. E Robert queria que soubesse quem era. E queria<br />

conhecê-la por sua vez.<br />

Apesar de SEUS ESFORÇOS, passou uma semana até que voltou a ver a senhorita Pursling, e foi em<br />

um encontro que teve que organizar ele mesmo.<br />

Fez um donativo de cem libras à Comissão de Higiene dos Operários. Isso o convertia em um de seu<br />

mecenas, e não teria sentido ver como se gastaria seu dinheiro?<br />

A Comissão não se reunia em uma respeitável sala priva<strong>da</strong> do Hotel Três Coroas, nem na sala<br />

dianteira do pub O Sino. Reunia-se nos subúrbios <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de velha, em um lugar decrépito chamado<br />

Hospe<strong>da</strong>ria Cabeça de Cavalo.<br />

Robert chegou dez minutos depois <strong>da</strong> hora assinala<strong>da</strong> e não chamou a atenção de ninguém, pois entrou<br />

na sala atrás de uma donzela. A mulher se movia pela sala com ar competente, enchendo as xícaras <strong>da</strong>s


<strong>da</strong>mas com o que parecia água de ceva<strong>da</strong>, servindo cerveja aos cavalheiros e limpando as inevitáveis<br />

gotas derrama<strong>da</strong>s com um trapo grande e sujo que pendurava do cinturão de seu avental.<br />

Ninguém lhe <strong>da</strong>va atenção; todos estavam absortos na conversa.<br />

Robert se aproximou <strong>da</strong> parte de trás e se sentou em uma cadeira.<br />

Aquela Comissão não só se reunia em um lugar estranho, como também sua composição era<br />

surpreendente. Robert tinha sido membro de muitas juntas benéficas para saber o que podia encontrar<br />

nelas: a uns quantos ricos, aos quais tinham pedido por seu dinheiro e seus contatos, mais que por seus<br />

conhecimentos; e a umas quantas pessoas de carreira. E ali havia um homem de que recor<strong>da</strong>va que era<br />

doutor. Estava o capitão Stevens; é obvio, também a senhorita Pursling, senta<strong>da</strong> ao lado de uma senhora<br />

mais velha de ar rico. Eles pertenciam ao tipo de pessoas que estava acostumado a haver nas juntas <strong>da</strong>s<br />

organizações benéficas. Mas ao outro lado <strong>da</strong> mesa havia uma moça, possivelmente <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> senhorita<br />

Pursling, embeleza<strong>da</strong> com uma blusa de trabalho. A seu lado havia um homem mais velho, grisalho,<br />

vestido com um traje antigo remen<strong>da</strong>do. Um assento mais à frente havia uma mulher gor<strong>da</strong> com vestido de<br />

lã negro de decote alto e pescoço negro postiço, a classe de uniforme que a identificava como<br />

pertencente ao serviço doméstico. A metade dos assistentes pareciam ser <strong>da</strong> classe operária.<br />

Robert nunca tinha visto uma organização benéfica como aquela.<br />

Escutou com interesse.<br />

Stevens movia a cabeça naquele momento.<br />

– Nos preocuparemos disso mais tarde – disse. – Senhorita<br />

Pursling, tem o relatório sobre o desinfetante?<br />

A interpela<strong>da</strong> assentiu. Estava de costas para Robert e ele podia ver os cachos de seu cabelo lhe<br />

roçando o pescoço. Aqueles seus cachos eram interessantes, diferentes aos cachos em forma de salsicha<br />

que criavam esmera<strong>da</strong>mente as donzelas com ferros. Esses eram uma farsa: muito parecidos com um<br />

saca-rolha, muito selvagens. Suspeitava que o cabelo <strong>da</strong> senhorita Pursling tinha um cacho natural que<br />

nenhum ferro podia domar curvando-o de um modo regular.<br />

– A junta <strong>da</strong> Cooperativa se reuniu ontem à noite – teve que prestar atenção ao ouvi-la. A voz dela era<br />

clara, mas baixa. – Concor<strong>da</strong>ram em vender o desinfetante a preço de custo, sempre que mencionarmos a<br />

Cooperativa no folheto. Ao final se convenceram de que a publici<strong>da</strong>de era compensação suficiente.<br />

Um modo estranho de dizer aquilo. “Ao final se convenceram”. Outra pessoa haveria dito: “Eu os<br />

convenci”, e se teria atribuído o mérito. Robert cruzou as mãos.<br />

Quão único podia ver dela era a parte de trás <strong>da</strong> cabeça, a forma encantadora <strong>da</strong> cintura e a leve<br />

curva do quadril, antes que a crinolina e o tecido tampassem to<strong>da</strong>s suas curvas naturais. Enquanto falava,<br />

virou a cabeça. Seguia sem poder lhe ver a cara totalmente. Não lhe via os olhos, só a bochecha e a<br />

cicatriz. Ela tinha posto os óculos e lia os papéis que tinha diante.<br />

Robert tinha pensado nela na última semana. Tinha pensado tanto nela que já não se deixava desalentar<br />

por sua fala baixo ou seu olhar caído. Por improvável que parecesse, a senhorita Pursling tinha<br />

convencido a todos os <strong>da</strong>li de que ela não era quase na<strong>da</strong>. Sua ver<strong>da</strong>deira competência parecia ser um<br />

segredo íntimo entre eles dois.<br />

– E qual será o custo <strong>da</strong> solução desinfetante? – perguntou uma <strong>da</strong>s garotas trabalhadoras. Sua voz era<br />

normal, mas depois <strong>da</strong> voz <strong>da</strong> senhorita Pursling, soava quase muito alta.


– Um xelim por garrafa. Se, se usar com bom senso, essa quanti<strong>da</strong>de deverá durar um mês inteiro em<br />

uma casa de seis ou sete pessoas. Senhorita Peters, isso é uma soma razoável para uma família operária<br />

ou devemos procurar um modo de subvencionar mais o custo? – a senhorita Pursling inclinou a cabeça<br />

em direção a mais jovem <strong>da</strong>s garotas trabalhadoras.<br />

A garota olhou uma caderneta e passou páginas.<br />

– Humm – respondeu. – Isso deve ser suficiente.<br />

– Tolices – interveio Stevens. – Como já disse, tudo isso são tolices. As instruções sobre a<br />

desinfecção, a solução, os folhetos – olhou com dureza à senhorita Pursling. O seu foi um olhar que<br />

denotava que não tinha feito caso <strong>da</strong> advertência de Robert e que seguia pensando mal dela.<br />

– Não podem ser tudo tolices – disse a senhorita Peters. – Depois de tudo… – Robert se inclinou<br />

para diante. Stevens golpeou a mesa com a mão.<br />

– Se esses operários rebeldes vacinassem a seus filhos como exige a lei, não haveria necessi<strong>da</strong>de de<br />

desinfetantes.<br />

O homem de tweed remen<strong>da</strong>do se levantou de um salto.<br />

– Que me condenem se for deixar que um vacinador coloque em meus filhos injeções feitas de alguma<br />

enfermi<strong>da</strong>de.<br />

– Minha mãe se vacinou e morreu na semana seguinte.<br />

A mulher gor<strong>da</strong> se inclinou sobre a mesa.<br />

– Eu fiz com que meu Jess se vacinasse e mesmo assim adoeceu <strong>da</strong> varíola e perdeu a vista. O caso é<br />

que tinha terminado a vacina quando chegamos, assim o vacinador usou álcool e cobrou o mesmo.<br />

A metade <strong>da</strong>s pessoas senta<strong>da</strong>s à mesa se pôs em pé e olhavam mal para o capitão. Uma palavra<br />

equivoca<strong>da</strong> e podia explodir a violência.<br />

Nessa atmosfera tensa, a senhorita Pursling ficou rígi<strong>da</strong> e com as costas muito retas. Tocou a cicatriz<br />

do rosto com uma mão; roçava-a como se fosse um talismã contra maus presságios.<br />

– Stevens – disse um homem com voz de tenor. – Asseguro que eu tenho tanto interesse pelas vacinas<br />

como você.<br />

Era um homem moreno que estava sentado perto do pé <strong>da</strong> mesa. Era o doutor Grantham, um jovem<br />

que tinha um consultório no Belvoir Street. Suas palavras relaxaram a tensão e a senhorita Pursling<br />

lançou um pequeno suspiro e se recostou no respaldo <strong>da</strong> cadeira.<br />

Grantham brincava com sua caneta-tinteiro.<br />

– Mas em meu consultório aprendi que tenho que tratar a quão pacientes tenho, não aos que eu<br />

gostaria de ter. Stevens jogou faíscas pelos olhos.<br />

– O que significa isso?<br />

Grantham encolheu os ombros.<br />

– Eu gostaria de ter pacientes que comessem carne e verduras em to<strong>da</strong>s as refeições, tivessem água<br />

limpa para lavar-se e janelas em todos os cômodos. Pacientes que não tivessem que encurvar-se para<br />

trabalhar – enquanto falava, golpeava seus nódulos com a caneta. – Encurvar-se é mau para as costas e<br />

para os órgãos internos – encolheu os ombros. – Eu gostaria de ter pacientes que ganhassem o dobro nas<br />

fábricas. Mas tenho quão pacientes tenho.


– Bem dito, doutor – murmurou a viúva.<br />

– Deixá-los tomar essas decisões por si mesmos conduz a ideias de autogoverno – vaiou Stevens. –<br />

Que fazem suas próprias regras. Quando nos dermos conta, teremos outro episódio dos cartistas para<br />

reprimir. As pessoas falam já de votar. Esta ci<strong>da</strong>de é um barril de pólvora de descontente e vocês estão<br />

agitando uma tocha – a julgar por seus gestos, Stevens implicava não só Grantham, mas também à<br />

senhorita Pursling. – Este modo de falar lhes dá ideias.<br />

Grantham sorriu e se inclinou para diante.<br />

– Sabe que durante meu treinamento médico aprendi que to<strong>da</strong>s as pessoas têm cérebro? Até os<br />

mendigos e os operários. Não necessitam que um rico lhes dê ideias. Eles as têm sozinhos.<br />

– Cavalheiros – a senhorita Pursling golpeou a mesa com os nódulos; era o primeiro som forte que<br />

fazia. – Devemos deixar para depois a questão <strong>da</strong>s vacinas. O tema atual é o desinfetante. E quero<br />

recor<strong>da</strong>r aos dois que esse desinfetante aju<strong>da</strong> a prevenir a cólera e a gripe, duas enfermi<strong>da</strong>des contra as<br />

quais não podemos vacinar.<br />

– Ah, senhorita Pursling – murmurou Grantham. – É muito próprio de você utilizar os fatos para<br />

resolver disputas.<br />

A senhorita Pursling nem sequer piscou, mas Robert acreditou ver que se sentia incômo<strong>da</strong> com aquele<br />

reconhecimento.<br />

– Então está resolvido – respondeu ela. – Marybeth Peters e eu repartiremos os santinhos.<br />

– Duas mulheres caminhando sozinhas pelas ruas? – interveio Stevens. – Me parece que não.<br />

– Se for por isso – apontou Grantham, – eu também irei. E senhorita Pursling, possivelmente possa<br />

trazer sua amiga, a senhorita Charingford, não?<br />

Essa devia ser a mulher que tinha batizado Stevens com sua bebi<strong>da</strong>. Depois dessa insinuação, o<br />

capitão ficou com a cara tão vermelha como o ponche que tinham jogado nela mais de uma semana atrás.<br />

– Os três repartindo folhetos sobre a Cooperativa? – fez uma careta de desdém. – Não permitirei essa<br />

reunião de radicais em minha ci<strong>da</strong>de e diante de meus narizes. Não, eu as acompanharei. E diga à<br />

senhorita Charingford que fique em casa, onde deve estar.<br />

– Posto que tem medo de uma mulher – repôs Grantham com suavi<strong>da</strong>de, – duvido que possa oferecer<br />

o amparo que requerem as <strong>da</strong>mas. Irei eu.<br />

– Vá ao inferno – grunhiu Stevens. – De fato, ao inferno com to<strong>da</strong> esta…<br />

– Irei eu – disse Robert.<br />

Todos se voltaram para olhá-lo. A senhorita Pursling abriu muito os olhos. O doutor Grantham o<br />

olhou com curiosi<strong>da</strong>de. Mas Stevens ficou muito pálido.<br />

– Suponho que não me atribuirá tendências radicais, ver<strong>da</strong>de, Stevens? – perguntou Robert.<br />

– Excelência – Stevens ficou de pé. – Claro que não, Excelência.<br />

Mas não queremos lhe causar incômodos. E… e o que faz aqui? Robert fez um gesto com a mão no ar.<br />

– Não é incômodo. Assim terei ocasião de ver a ci<strong>da</strong>de a pé.<br />

A senhorita Pursling lhe lançou um olhar de recriminação.<br />

– A senhorita Pursling tomou a responsabili<strong>da</strong>de de convencer à Cooperativa para que fizesse esse<br />

desinfetante a bom preço – disse Robert. – Para mim seria um prazer ver que todo esse trabalho se


aproveitou.<br />

A aludi<strong>da</strong> parecia envergonha<strong>da</strong> de ver reconhecidos seus méritos com tanta clari<strong>da</strong>de.<br />

– De acordo – assentiu o doutor Grantham.<br />

– De acordo – grunhiu Stevens.<br />

Depois disso, apenas restava arrumar os detalhes com a senhorita Pursling. Esta lhe lançou um olhar<br />

venenoso e depois fixou a vista na distância e cruzou as mãos. Durante o resto <strong>da</strong> reunião, não voltou a<br />

olhar em sua direção, nem sequer com recriminação. Tampouco o fez quando se levantaram e começou a<br />

recolher suas coisas.<br />

Robert se aproximou dela antes que tivesse oportuni<strong>da</strong>de de desaparecer.<br />

– Envio uma nota para fixar o momento apropriado para distribuir os folhetos? – perguntou.<br />

Ela seguiu sem olhá-lo. Guar<strong>da</strong>va papéis e um lápis em uma bolsa estreita.<br />

– Como queira, Excelência.<br />

– Ou poderíamos decidi-lo agora.<br />

– Se o desejar, sim, Excelência – respondeu ela.<br />

Mostrava a Robert seu perfil no lado <strong>da</strong> cicatriz. Objetivamente, Robert sabia que a cicatriz era o<br />

tipo de falha na simetria que faria com que muitos homens afastassem a vista para não ver essa marca.<br />

Mas não lhe incomo<strong>da</strong>va. Ela a usava como uma máscara em um baile, como se quisesse utilizá-la para<br />

afastá-lo.<br />

– Estarei fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de nos próximos dias – disse ele. – Aceitei acompanhar a meu primo a… Bom,<br />

isso não importa. A senhorita Pursling agachou a cabeça.<br />

– Como desejar, Excelência. De todos os modos, demorarão uns dias em imprimir os folhetos.<br />

– Digamos na quinta-feira?<br />

– Quando melhor venha a você.<br />

– Nesse caso, fiquemos às duas <strong>da</strong> manhã – sugeriu ele. – Quando saem os ursos para brincar.<br />

Ela sim o olhou então; lançou lhe um olhar rápido de fúria que reprimiu quase imediatamente. Robert<br />

suspirou. Aquela mulher fazia todo o possível por não chamar a atenção. A voz fraca e o modo de infra<br />

valorizar seus lucros tinham esse objetivo. Ele se perguntou se aquela reticência teria alguma relação<br />

com a cicatriz na bochecha. Além disso, o silêncio dela não era o de uma pessoa que era tími<strong>da</strong> de um<br />

modo natural, era um silêncio diferente.<br />

– Vamos senhorita Pursling – disse ele. – Você pode fazer melhor que isso. Não me parecia que fosse<br />

<strong>da</strong>s que fazem ameaças vãs.<br />

– Não sei a que se refere – ela se virou levemente. De fato, sim, olhou-o por cima do ombro com<br />

certo desdém.<br />

Robert reprimiu um sorriso.<br />

– Tínhamos um trato – disse em voz baixa, para que não o ouvisse o doutor Grantham, que pegava o<br />

casaco ao lado <strong>da</strong> porta. – Eu flerto com você e você tenta destroçar minha reputação. Não cumpriu sua<br />

parte. Não me fez na<strong>da</strong>. Acreditava que era uma mulher que cumpre o que promete.<br />

Ela inclinou a cabeça e o olhou de soslaio.


– Mil perdões, Excelência – sua voz não mostrava nenhuma contrição. – Acaso espera que lhe dê<br />

informações de meus progressos? – enquanto falava, grampeou as fivelas de sua bolsa.<br />

– Supunha que usaria alguns sarcasmos, sim.<br />

Lhe lançou um olhar gelado.<br />

– Está claro que seus padrões não são os meus. Sejam quais forem seus defeitos, eu não os presumo<br />

antes de tempo.<br />

Robert soltou uma gargalha<strong>da</strong> ultraja<strong>da</strong> e olhou a seu redor, mas não havia ninguém que tivesse<br />

podido ouvir o comentário dela.<br />

A senhorita Pursling dobrou o folheto de amostra que tinha levado consigo, marcado agora com as<br />

notas <strong>da</strong> Comissão, e o guardou no bolso <strong>da</strong> saia.<br />

– Eu não exibo minha estratégia diante de meus inimigos. Isso seria coisa de idiotas.<br />

– O que quer dizer é que ain<strong>da</strong> não encontrou nenhuma prova.<br />

Ela o olhou nos olhos e moveu a cabeça.<br />

– O que quero dizer é que não estou tão cheia de orgulho tolo para contar tudo o que tenho descoberto<br />

apenas porque você me pergunte de um modo inepto com esse objetivo.<br />

– Uau! – exclamou ele. – Primeiro me acusa de presumir prematuramente e agora de não saber<br />

provocá-la. Compadeça do orgulho de um homem.<br />

Ela sorriu um pouco; adiantou-se e lhe deu uns tapinhas na mão.<br />

– Sinto-o – murmurou com doçura. – Não sabia que seria tão suscetível à flacidez de seu… orgulho –<br />

o disse com uma voz tão insinuante que ele sentiu uma on<strong>da</strong> de calor. Flacidez era quão último sentia seu<br />

corpo nesse momento.<br />

Ela jogou a bolsa no ombro e se dirigiu à porta. Deu dois passos e se virou para olhá-lo com um<br />

sorriso que atravessou o corpo dele até a virilha.<br />

– Estou segura de que seus atributos são tão grandes como espessa é sua cabeça.<br />

Robert não podia deixá-la partir com aquela despedi<strong>da</strong> condescendente cheia de carga sexual, que o<br />

deixava fervendo de luxúria.<br />

Seguiu-a e lhe pôs uma mão na manga.<br />

– Espere.<br />

Mas ela não o fez e ele se encontrou caminhando atrás e guar<strong>da</strong>ndo silêncio enquanto atravessavam a<br />

hospe<strong>da</strong>ria e saíam à rua. Quando estiveram à luz do sol e se afastaram o bastante <strong>da</strong>s pessoas para que<br />

ninguém os ouvisse, disse:<br />

– Sei que não descobriu na<strong>da</strong>. Com a desculpa de conseguir o melhor preço para esses folhetos,<br />

visitou to<strong>da</strong>s as impressoras <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de procurando provas de que trabalham comigo. E não encontrou<br />

na<strong>da</strong>.<br />

Ela se deteve então. Inclinou a cabeça e se voltou para ele.<br />

– Vigiou-me – disse por fim.<br />

– Absolutamente. Seria muito sórdido fazer com que a seguissem. Mas pedi a alguns conhecidos de<br />

negócios que me dissessem o que você perguntava – sorriu. – Porque não esperava que você me<br />

informasse de seus progressos.


A senhorita Pursling encolheu os ombros.<br />

– Seria sórdido se fizesse seguir a uma amante por ciúmes. Mas recorde que somos inimigos. É<br />

prudente me vigiar. Aplaudo-o.<br />

Pôs-se a an<strong>da</strong>r de novo e Robert a olhou com regozijo.<br />

Procurava ser sincero consigo mesmo. Tinha que sê-lo, já que pouca gente o era. Seu amigo Sebastian<br />

podia conquistar até às matronas mais estritas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, e às vezes o fazia. Seu irmão possuía um<br />

engenho afiado combinado com uma facili<strong>da</strong>de para fazer com que as pessoas se sentissem confortáveis<br />

com ele. Oliver sabia fazer às <strong>da</strong>mas rirem.<br />

Quanto a ele… Quase nunca sabia como responder em uma conversa engenhosa. Às vezes lhe<br />

ocorriam respostas inteligentes… horas depois. Normalmente cometia o pior pecado possível. Dizia o<br />

que pensava. Por isso lhe ocorriam coisas como “Eu gosto de suas tetas”. Não, aquele não tinha sido um<br />

de seus melhores momentos.<br />

– Não – moveu a cabeça e ficou ao passo dela. – Por que temos que ser inimigos? Poderíamos ser…<br />

aliados. Ela o olhou com receio.<br />

– Por quê? Porque precisaria de solteironas meio cegas a seu cargo?<br />

Ele fez uma careta.<br />

A senhorita Pursling franziu os lábios.<br />

– Não respon<strong>da</strong>. Vi-o na casa dos Finney. É evidente que sim.<br />

Robert ignorou essas palavras.<br />

– Porque quando se propôs demonstrar que eu era o autor dos santinhos, começou por fazer uma lista<br />

de to<strong>da</strong>s as impressoras <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e depois as visitou sistematicamente. Você tem um sentido de<br />

estratégia e eu valorizo isso.<br />

Ela esfregou o lábio inferior com um dedo enluvado.<br />

– Você não deixa de dizer que não encontrei na<strong>da</strong> – murmurou. – Equivoca-se. Descobrir que os<br />

santinhos não se imprimiram em Leicester. E só há um suspeito possível que não seja <strong>da</strong>qui. Acredito que<br />

avancei muito.<br />

Robert piscou. Tinha a sensação de estar perdido naqueles tranquilos olhos cinzas e de não poder<br />

afastar a vista. Ele era um duque e ela era… como se chamava a si mesma? Uma quase solteirona meio<br />

cega. A luta teria que ter sido muito mais desigual.<br />

– Você acredita que, porque identificou um de meus objetivos, já sabe o que faço – continuou ela. –<br />

Mas as perguntas aos impressores eram só um ataque a descoberta.<br />

Estando tão perto dela, Robert podia começar a ver a diferença. Ela seguia com a vista baixa e o ar<br />

tímido e calado, de modo que qualquer um que estivesse a mais de três passos de distância não saberia o<br />

que dizia. Mas havia mais movimento em suas mãos e seus lábios se franziam a ponto de sorrir.<br />

– A que se refere com o de ataque a descoberta?<br />

– É um término de estratégia de xadrez – ela juntou as gemas dos dedos. – Em um movimento se<br />

fazem duas coisas. A primeira é avançar… e o espaço que se passa a ocupar tem um valor. Mas também<br />

se deixa vago o posto que se ocupava antes, com o que se expõe o lado do inimigo a ataques de maior<br />

categoria. Temos que ser conscientes do lugar que ocupamos e do espaço que deixamos atrás.


– Não é que você tenha intuição para a tática – respondeu ele. – Isso soa a treinamento tático. Onde<br />

aprende isso uma quase solteirona meio cega?<br />

Em reali<strong>da</strong>de, onde poderia aprender isso alguma mulher? Mas a senhorita Pursling não pareceu<br />

alterar-se por isso.<br />

– Reuni um montão de papéis que demonstrarão que é o culpado. O que conseguiu você, Excelência?<br />

Fingir que flertava comigo.<br />

Robert piscou, sobressaltado. Ela não o olhava. É obvio, não o olhava. Examinava o chão a seus pés<br />

como se fosse uma mulher páli<strong>da</strong> e tími<strong>da</strong> que não se atrevia a olhá-lo nos olhos.<br />

– Fingir? – Robert se sentia quase perigoso. – Você não me olha nos olhos. Dá suas inteligentes<br />

respostas em sussurros. Rechaça qualquer insinuação de que seja uma mulher inteligente. É você que<br />

finge queri<strong>da</strong>. Ela abriu mais os olhos.<br />

– Isso é… isso apenas é aceitar as pressões <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de…<br />

– É? Levante à vista, Minnie. Me olhe nos olhos. Deixe que todo mundo nesta rua veja o que os dois<br />

sabemos que é ver<strong>da</strong>de. Não está se inclinando ante mim, está me desafiando. Olhe para cima.<br />

Ela não o fez. Manteve a cabeça teimosamente baixa ante ele. Robert tinha vontade de agarrá-la e<br />

sacudi-la. Queria lhe elevar o queixo e obrigá-la a olhá-lo nos olhos. Queria…<br />

Depois disso queria muitas coisas, nenhuma <strong>da</strong>s quais as ia conseguir pela força.<br />

– Eu não finjo paquerar com você – declarou. – Não há nenhum fingimento nisso. A desejo. Por Deus<br />

que a desejo!<br />

Ela soltou um leve coice e levantou, quase involuntariamente, à vista.<br />

Por um momento, Robert viu algo que acreditou que não era fingido… captou um desejo<br />

desesperançado no modo como ela elevava a cara para ele, uma hesitação em sua respiração<br />

entrecorta<strong>da</strong>. A mulher entreabriu os lábios e de repente pareceu incrivelmente bonita.<br />

Mas logo fechou os olhos e voltou a baixar a cabeça. Sua respiração se fez mais firme; apertou os<br />

punhos dos lados. Moveu a cabeça.<br />

– Tem sorte – disse com amargura. – Tem sorte de poder fazer planos e atuar sem fingir. De poder<br />

desejar abertamente e não ter que guar<strong>da</strong>r isso para que se apodreça em seu interior. Tem sorte de poder<br />

erguer os olhos ao céu sem queimar as asas. E de poder pensar no futuro sem terror.<br />

Começaram a lhe tremer as mãos.<br />

– Eu olhei para cima – continuou ela. Sua voz era um sussurro urgente. – E tenho caído mais do que<br />

você possa imaginar. Assim não me exorte. Apenas quero fingir que isto é suficiente, que posso estar<br />

satisfeita com as migalhas que ficam.<br />

Robert voltou a ter a sensação de um animal grande passeando em sua jaula. Desejou lhe tocar a<br />

bochecha e lhe voltar o rosto para ele. Queria lhe sussurrar que tudo ficaria bem.<br />

– Minnie – foi tudo o que disse.<br />

Ela fez uma careta.<br />

– Não diga meu nome assim. Por favor, Excelência. Se de ver<strong>da</strong>de lhe importar algo, finja que flerta,<br />

mas não o faça de ver<strong>da</strong>de.


– Minnie – repetiu ele. – Quem seria se não dedicasse três quartas partes de sua atenção para<br />

esconder do que é capaz?<br />

Ela negou com a cabeça.<br />

– Não me diga que olhe para cima. Não me peça que deseje. Se o fizer, não sobreviverei – lhe tremia<br />

a voz. A julgar por seu tom, parecia a beira <strong>da</strong>s lágrimas, mas seus olhos estavam secos e limpos. E<br />

cravados no chão.<br />

Robert desejava tomá-la em seus braços e estreitá-la contra si, fazer com que se sentisse a salvo do<br />

que quisesse que fosse o que temia. Se ela tivesse elevado de novo a vista para ele, embora tivesse sido<br />

um segundo, a teria beijado sem lhe importar quem pudesse vê-los.<br />

Minnie não o olhou. Parecia estar procurando aquela calma antinatural a ca<strong>da</strong> respiração.<br />

– Possivelmente Peters esteja me esperando ali adiante – disse ela, com voz tranquila de novo. – Se<br />

me permitir, Excelência.<br />

Não era uma pergunta. Ele não tinha escolha.<br />

Olhou-a afastar-se e voltar a caminhar dentro dos limites de sua jaula.


CAPÍTULO 7<br />

QUANDO Minnie CHEGOU EM CASA, suas tias a receberam na porta, muito nervosas. A razão de<br />

seu nervosismo se fez evidente quando lhe disseram que Walter Gardley esperava na sala. Sozinho.<br />

Gardley. Que inoportuno!<br />

Minnie levou uma mão ao abdômen. Tinha a sensação de que ardia um fogo em seu interior, como se,<br />

se tivesse ficado empanzina<strong>da</strong> com to<strong>da</strong>s as coisas que lhe havia dito o duque.<br />

“É uma mulher inteligente, brilhante”.<br />

“Olhe para cima”.<br />

“A desejo. Por Deus que a desejo!”.<br />

Não podia aproximar-se de Gardley sentindo-se assim, mas não tinha muita escolha. Se o despedia,<br />

voltaria outro dia. E se não voltasse… Alisou a saia e entrou para vê-lo.<br />

Ele ficou de pé ao vê-la.<br />

– Aí está – disse, como se a tivesse perdido e acabasse de encontrá-la entre as penugens de pó de<br />

debaixo do divã.<br />

Minnie tentou dizer-se que ele não era tão mau. Em geral, não era mal parecido. Apenas tinha uns<br />

poucos anos mais que ela e não <strong>da</strong>va amostras de perder cabelo.<br />

“É você que finge”, pareceu-lhe que sussurrava o duque a suas costas.<br />

– Senhor Gardley – disse, com todo o calor de que foi capaz. – No que posso lhe servir?<br />

Lhe dirigiu um olhar indiferente.<br />

– Bom, Minnie – respondeu. – Minha mãe está me pressionando para que arrume as coisas. Já fiz o<br />

que devia. Publicarei os proclamas neste domingo para um casamento em dezembro.<br />

Estava tão seguro dela que nem sequer esperava uma resposta.<br />

Ajustou-se a jaqueta e voltou a sentar-se, antes que Minnie se sentasse. – Acredito que em meados do<br />

mês nos viria bem.<br />

“Quem seria se não dedicasse três quartas partes de sua atenção para esconder do que é capaz?”.<br />

Era uma estupidez comparar ao sempre possível Walter Gardley com o inalcançável duque de<br />

Clermont. Mas Minnie não pôde evitar fazê-lo. Gardley saía perdendo em todos os sentidos. Mostrava<br />

um indício de barriga em cima do cinturão e se sentou com desinteresse, sem esperar até que ela se<br />

sentasse primeiro. E, além disso, estavam suas palavras. Tomava-a por um ratinho tímido que não se<br />

moveria de onde a deixasse. E que não se queixaria de suas amantes.<br />

E tinha também o que não fazia.<br />

Não fazia com que ela sentisse mariposas no estômago. Não a deixava sem fôlego. Jamais tinha se<br />

incomo<strong>da</strong>do nem sequer em fingir que a cortejava.<br />

“Isso não é ter intuição para a tática. Isso soa a treinamento tático”.


Estava em jogo seu futuro. Não podia permitir-se ser irracional. To<strong>da</strong>s as mulheres em sua posição<br />

tinham que suportar imperfeições em seu par. Um pouco de barriga e umas quantas amantes não eram<br />

coisas que devessem preocupá-la. Queria-a porque acreditava que ela se mostraria pateticamente<br />

agradeci<strong>da</strong>. E não se equivocava. Estava agradeci<strong>da</strong> e era patética. Não?<br />

– Não – se ouviu dizer.<br />

Gardley encolheu os ombros.<br />

– Depois do Natal, então. Presumo que quer celebrar as festas com suas tias? Suponho que posso<br />

permitir isso.<br />

Minnie tinha falado em voz alta em resposta a sua própria pergunta. “Não, não era patética”. Mas<br />

aquela palavra tinha contribuído com clari<strong>da</strong>de ao empenho. Queria-a porque acreditava que era patética.<br />

E se, se casasse com ele, seria-o.<br />

– Permitirá que eu escolha a <strong>da</strong>ta de meu casamento? – murmurou. – Que tolerante por sua parte!<br />

Ele ergueu a cabeça ao ouvi-la.<br />

– Tolerante? Não ache que vou ser um marido fácil por lhe conceder isso. Não o serei nem um pouco.<br />

Se tentar algum truque quando estivermos casados, Minnie, jogarei-a de casa. E os dois sabemos que não<br />

tem aonde ir.<br />

Minnie não podia respirar.<br />

Céu Santo, não podia respirar!<br />

As palavras dele não a surpreendiam. Mas tinha imaginado que o matrimônio, embora fosse com um<br />

homem que lhe produzia repulsa, lhe <strong>da</strong>ria segurança. Em sua mente, o matrimônio durava para sempre.<br />

Jamais lhe tinha ocorrido que alguém pudesse vê-lo de outro modo.<br />

Se, se casava com ele, estaria ain<strong>da</strong> mais desespera<strong>da</strong>, não menos. Se alguma vez soubesse a ver<strong>da</strong>de<br />

sobre ela, jogaria-a à rua sem que importasse o matrimônio.<br />

Minnie esfregou as mãos na saia.<br />

– Senhor Gardley, o “não” era to<strong>da</strong> sua proposta, não só à <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> cerimônia. Obrigado, mas não.<br />

Ele franziu o cenho e esfregou a testa.<br />

– Por que diz que não?<br />

Tinha que perguntá-lo depois do discurso que lhe tinha feito?<br />

– Você acredita que sou cala<strong>da</strong>, débil e tola – inclusive então falava em voz baixa, que não chegava a<br />

todos os cantos <strong>da</strong> sala.<br />

Ele se moveu e seu assento rangeu. Minnie sentia que sua voz se afogava no ruído dele.<br />

O homem soltou um risinho forçado.<br />

– Seu caráter feminino, senhorita Pursling, é sua maior virtude – adiantou o tronco para ela. – Nunca<br />

se considere fraca porque se dobra.<br />

– Senhor Gardley, não está me escutando.<br />

– A mulher se dobra como um junco na tormenta – continuou ele, falando por cima dela. – O homem<br />

se parte como um carvalho – franziu o cenho. – Ou é uma faia? Sim, isso, com um vento forte, o homem<br />

se quebra como uma faia – tomou a mão dela. – A escolhi porque você compreenderia minhas<br />

necessi<strong>da</strong>des, e porque acredito que as pode cumprir.


Olhar para cima? Não, o duque de Clermont estava muito equivocado. Ela tinha que baixar a vista.<br />

Permitiu-se acreditar que aquele homem lhe oferecia algum tipo de segurança. Tinha sido muito otimista,<br />

não muito pouco. Gardley tinha deixado muito claro que não sentia nenhuma obrigação para com ela. Que<br />

segurança havia nisso?<br />

– Isso é ridículo – disse. – As mulheres também se quebram, como a faia. Como pode imaginar que<br />

sou tão flexível se estou me negando a me casar com você?<br />

– Es… está me rechaçando? – ele franziu o cenho. – Não pode negar-se. Essa era a razão… – tossiu e<br />

fez uma careta.<br />

– Essa era a razão para dizer a sua mãe que me cortejasse? – terminou Minnie em seu lugar. –<br />

Escolher a uma mulher que contasse com a aprovação dela e que estivesse tão desespera<strong>da</strong> que não<br />

pudesse dizer que não embora você não se incomo<strong>da</strong>sse em tentar conquistá-la?<br />

Ele guardou silêncio. Nem sequer era o bastante homem para olhá-la aos olhos e admiti-lo. Ao fim<br />

encolheu os ombros mal-humorado.<br />

– O que quer? Que a leve para <strong>da</strong>r um passeio de carruagem algumas vezes?<br />

Stevens suspeitava ain<strong>da</strong> dela. O risco de ser descoberta era tão grande como sempre. Mas se, se<br />

casasse com Gardley, nunca estaria segura. Dar-se conta disso a aterrorizava mais que nunca. O<br />

matrimônio lhe tinha parecido um talismã durante muito tempo. Mas não era suficiente. E já não sabia o<br />

que podia sê-lo.<br />

Estendeu o braço e virou a cara de Walter Gardley para ela. Ele não queria olhá-la nos olhos, e como<br />

se esforçava por desviar o olhar <strong>da</strong> cicatriz, acabou lhe olhando a bochecha direita.<br />

– Não – murmurou ela. – Não me casarei com você. Ele parecia atônito.<br />

– Mas… mas… mas o que fará então? – perguntou.<br />

– MAS O QUE VAIS FAZER? –perguntou sua tia Eliza, menos de meia hora depois.<br />

Minnie estava senta<strong>da</strong> na sala em frente a suas tias, que tinham se instalado no sofá. As agulhas de<br />

tecer de Eliza tilintavam sem cessar. A mulher tecia uma meia. Sua tia Caroline olhava a sua sobrinha<br />

neta com os braços cruzados.<br />

“Conheça sempre o caminho que há pela frente”. Essa era uma <strong>da</strong>s regras de seu pai. Minnie não<br />

sabia por que se agarrava agora a elas depois de tudo o que lhe tinha feito. Possivelmente porque<br />

esquecê-las converteria sua infância não só no resultado de mentiras, como também em uma falsi<strong>da</strong>de<br />

absoluta. Mesmo assim, Minnie sacudiu a cabeça.<br />

– Queremos que seja feliz – disse Caroline. – E eu jamais te diria que não tenha ambição. Mas o<br />

truque está em ter apenas a quanti<strong>da</strong>de apropria<strong>da</strong>. Se eu desejasse ser rainha <strong>da</strong> Inglaterra, por exemplo,<br />

jamais estaria satisfeita.<br />

– Eu não quero ser rainha <strong>da</strong> Inglaterra – Minnie cruzou os braços.<br />

– Não, não – Caroline lhe sorriu com tristeza. – O que digo é que deve desejar apenas o suficiente<br />

para que te faça esticar um pouco os braços. Se desejar mais, isso te fará sofrer.<br />

Minnie ficou em pé.


– Não rechacei ao Gardley porque queira muito. Não foi porque pensasse que podia ter algo melhor.<br />

Foi porque sei que não podia ter na<strong>da</strong> pior.<br />

Caroline tentou reprimir um suspiro, mas não conseguiu.<br />

– Pensem nisto com lógica – disse Minnie. – Porque eu deveria havê-lo pensado antes. Se me casar<br />

com alguém que queira uma esposa cala<strong>da</strong> e solícita, jogara-me de sua casa se descobrir meu passado.<br />

As agulhas de Eliza ficaram imóveis.<br />

Era perigoso falar assim e to<strong>da</strong>s sabiam.<br />

“Olhe para cima”. Mas Minnie não o faria. Se olhasse para cima, pensaria em um homem colocado a<br />

seu lado, com o sol arrancando reflexos de seu cabelo loiro enquanto dizia que era uma mulher<br />

inteligente.<br />

– Você é cala<strong>da</strong>, Minnie – disse por fim Eliza. – Eu não iria querer que fosse contra sua natureza.<br />

Cala<strong>da</strong>, sim. E sua voz, além disso, era fraca. Não gostava de chamar a atenção. Mal estava à vontade<br />

nos cantos de uma reunião. Mas solícita…<br />

Quase podia ver Clermont pelo canto do olho, como se estivesse ain<strong>da</strong> a seu lado. Tinha olhos azuis<br />

brilhantes e um sorriso que lhe curvava os cantos dos lábios para cima quando a via. Pensou em sua mão<br />

segurando o pulso dela para que não voltasse a golpear o sofá. No timbre profundo de sua voz quando<br />

estava ao seu lado e dizia…<br />

“A desejo”.<br />

Moveu a cabeça. Se sonhasse tão alto, queimaria-se com certeza. Ela apenas queria segurança.<br />

– Os homens procuram muitos tipos de esposas – disse Eliza. – Esposas bonitas e vivazes. Esposas<br />

ricas e indulgentes. Ou de alto berço e orgulhosas – mordeu o lábio inferior. – Não quero te ferir, Minnie.<br />

Mas é meu dever te fazer ver a ver<strong>da</strong>de. Ninguém busca uma garota tími<strong>da</strong> e inteligente cujo pai morreu<br />

cumprindo uma condenação a trabalhos forçados.<br />

Minnie levou um dedo à ponta do nariz e apertou com força para tentar vencer a dor. Não conseguiu.<br />

As fronteiras de sua vi<strong>da</strong> se fechavam a seu redor como os muros de um cárcere. Olhar para cima? Com<br />

as rochas pontu<strong>da</strong>s que havia sob seus pés, se olhasse para cima, tropeçaria.<br />

– Faz uma lista <strong>da</strong>s coisas que é – disse Eliza. – E te pergunte que homem as quereria.<br />

“A desejo”. Mas Clermont tampouco sabia.<br />

– Suas escolhas são tuas – continuou Eliza. – Nós não lhe tiraremos isso.<br />

Não. Elas nunca lhe tiravam suas opções. Apenas assinalavam, de um modo amável, doce e<br />

implacável, as poucas que tinha. As mãos de Minnie tremiam. Quão único tinham feito mal tinha sido lhe<br />

permitir acreditar que tinha uma opção quando não havia nenhuma.<br />

Minnie não via nenhum caminho para percorrer. Não podia ver nenhum futuro. Sentia-se<br />

asfixiantemente cega.<br />

Apenas havia uma coisa que podia fazer, e era seguir na direção que tinha começado. Evitar a<br />

desonra uma semana mais, rezar pedindo um refúgio embora ain<strong>da</strong> não tivesse encontrado nenhum. E isso<br />

implicava que precisava encontrar provas do que tinha feito Clermont. Tinha que se ocupar do passo<br />

seguinte e confiar no futuro.<br />

E isso queria dizer…


– Amanhã vou a Londres – anunciou.<br />

Suas tias abriram muito os olhos. Eliza se sentou mais reta.<br />

– Mas…<br />

– Há…?<br />

– É por um posto de trabalho? – suas tias falavam atropelando-se uma à outra. Tinham unido suas<br />

mãos no sofá, entre elas.<br />

– Tome cui<strong>da</strong>do – lhe recomendou Caroline. – Tenho lido nos jornais. Senhoras sem fé que anunciam<br />

bons trabalhos e salários excelentes, mas depois…<br />

– Não vou procurar trabalho – disse Minnie. – Têm razão. Não posso olhar para cima. Não posso<br />

sonhar, não me atrevo. Quão único posso fazer é <strong>da</strong>r o seguinte passo para frente.<br />

Caroline franziu o cenho.<br />

– E o próximo passo para diante é Londres?<br />

– O próximo passo para diante é ganhar o jogo no que estou coloca<strong>da</strong>. E isso significa que devo falar<br />

com alguns vendedores de papel. Voltarei dentro de três dias.<br />

As tias de Minnie trocaram um olhar nervoso que entristeceu a jovem. Mas não podia explicar-lhe<br />

nem podia voltar atrás. E embora não fosse bem visto que uma jovem de sua i<strong>da</strong>de viajasse sozinha no<br />

trem, não era nenhuma senhorita <strong>da</strong> boa socie<strong>da</strong>de que teria que <strong>da</strong>r conta de ca<strong>da</strong> minuto.<br />

– Bom – disse Caroline por fim. – Se acha que é o que deve fazer… Tem recursos?<br />

– Sim.<br />

Tinha seu dinheiro dos ovos. Embora esse não fosse o nome apropriado. Ao chegar à maiori<strong>da</strong>de, suas<br />

tias lhe tinham <strong>da</strong>do a responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s galinhas e lhe tinham permitido guar<strong>da</strong>r o dinheiro<br />

procedente delas. Um presente, posto que bem podiam haver ficado com tudo. E não tinha sido apenas um<br />

presente de dinheiro, mas também de independência.<br />

Presente que podiam permitir-se muito pouco.<br />

Minnie foi ao seu quarto preparar suas coisas. Mas em vez de fazê-lo, sentiu-se atraí<strong>da</strong> pelo jogo de<br />

xadrez que se apodrecia em seu baú. Fazia doze anos que não o olhava e se aproximou com nervosismo.<br />

Ajoelhou-se diante o baú de madeira, afastou o tecido que o cobria e desatou as fivelas. O metal resistiu<br />

ao movimento e ela teve que puxar com força.<br />

O xadrez estava no fundo, oculto debaixo de roupas e recortes de jornais. As peças eram de ébano e<br />

marfim, familiares e, entretanto, curiosamente estranhas. Suas primeiras lembranças eram <strong>da</strong>quele xadrez,<br />

dela levantando peças que então lhe pareciam grandes e pesa<strong>da</strong>s. Agora podia fechar a mão ao redor dos<br />

peões e escondê-los por completo.<br />

Tomou o tabuleiro e tirou as peças de sua bolsa de veludo. Colocou-o tudo em cima <strong>da</strong> escrivaninha.<br />

Apesar dos anos transcorridos, não tinha necessi<strong>da</strong>de de pensar aonde ia ca<strong>da</strong> peça. A rainha, o rei e os<br />

peões ocuparam seu lugar. Se ela, Minnie, fosse uma peça de xadrez, seria… Não, ela não seria nem<br />

sequer um peão. Tornou-se muito pequena para isso.<br />

Em outro tempo a tinham animado colocar as peças. O começo de ca<strong>da</strong> parti<strong>da</strong> estava cheio de<br />

possibili<strong>da</strong>des. Podia ocorrer de tudo. To<strong>da</strong>s as opções estavam abertas. Esse dia não sentia na<strong>da</strong>. Olhou<br />

as peças e se deu conta de que não estava no começo dessa parti<strong>da</strong>, a não ser quase no final. Havia partes


inteiras do tabuleiro que eram inalcançáveis, peças que tinham sido rouba<strong>da</strong>s, movimentos que jamais<br />

poderia fazer.<br />

Em seu tabuleiro não ficava quase na<strong>da</strong>. Mesmo assim, tirou suas lentes e o estudou.<br />

“Em to<strong>da</strong>s as parti<strong>da</strong>s há um ponto no qual é inevitável uma vitória”, havia-lhe dito seu pai em uma<br />

ocasião. “No que todos seus movimentos obrigam seu oponente a reagir e, ao reagir, cava sua própria<br />

tumba”.<br />

Que estranho! Minnie já não podia recor<strong>da</strong>r o rosto de seu pai, mas podia ver o tabuleiro tal e como<br />

estava naquele momento. Retirou peças do tabuleiro e deixou apenas as que havia então. Um bispo e um<br />

cavalo dele que paralisavam a torre dele; sua rainha coloca<strong>da</strong> contra dois peões dele, que era o único<br />

amparo que ficava a seu pai contra o ataque dela.<br />

– Chegamos já a esse ponto? – tinha perguntado ele. – Planeje. Conheça sempre o caminho por<br />

percorrer.<br />

Ela tinha observado o tabuleiro, e então o tinha visto pela primeira vez. Podia obrigar os peões a se<br />

afastarem. Comeriam seu cavalo e sua rainha e depois ele teria que mover a torre e isso colocaria a seu<br />

rei contra a bigorna do bispo dela.<br />

– Sim – havia dito, maravilha<strong>da</strong>. – Já estamos aí.<br />

– Pois no próximo movimento, quando te comer uma peça, lhe dê um beijo. Assim, queri<strong>da</strong>.<br />

Minnie tinha pegado o bispo. Em sua lembrança, a peça era maior e suas mãos pequenas e gordinhas.<br />

Certamente não tinha mais de seis anos naquele momento.<br />

– Por quê? – tinha perguntado.<br />

– Tradição <strong>da</strong> família Lane – seu pai tinha sorrido. – Quando abandonaste ao oponente, dá-lhe um<br />

beijo para demonstrar que não o quer mal.<br />

Depois disso, sempre que jogavam e um dos dois se aproximava de um cheque mate, ele ria e dizia<br />

que se aproximava um beijo. Minnie queria recor<strong>da</strong>r a seu pai assim, sorridente e carinhoso, lhe<br />

ensinando tudo o que sabia. Rindo, dizendo que ela era o centro de sua existência. Tinha que recordá-lo<br />

assim porque a alternativa era vê-lo como tinha sido no final.<br />

Olhar para cima? Seu pai não só lhe havia dito que olhasse para cima, tinha-lhe ensinado a voar. E<br />

depois, quando ela tinha chegado ao topo do mundo, tinha-a jogado do céu.


CAPÍTULO 8<br />

AO FINAL, Robert DEMOROU DIAS em levar Sebastian com ele, em grande parte porque Violet, a<br />

recente condessa viúva de Cambury, tinha insistido em ir com eles.<br />

– Em primeiro lugar – havia dito, olhando para Robert, – estou cansa<strong>da</strong> de estar presa em uma<br />

proprie<strong>da</strong>de de Cambridgeshire sem na<strong>da</strong> que fazer. E em segundo, precisará de alguém que traga<br />

Sebastian em rédea curta – tinha observado a ele, que se esforçou por parecer inocente.<br />

Aquilo tinha algo de ver<strong>da</strong>de. Violet podia conseguir que Sebastian se comportasse bem quando ela<br />

queria. Era dois anos mais velha que Sebastian e Robert. Criou-se na mansão contigua à de Sebastian e<br />

tinha sido companheira deles nos verões até que tinha sido considera<strong>da</strong> muito mais velha para brincar<br />

com meninos.<br />

Mas Robert tinha mais lembranças de Violet desafiando Sebastian e enviando-o, em um ataque de<br />

raiva, a subir às árvores para procurar ovos de falcão do que fazendo com que Sebastian se comportasse<br />

bem.<br />

– E finalmente – tinha acrescentado ela, – a sua mãe caio bem. E se queremos distraí-la, um ataque<br />

duplo funcionará melhor. Sebastian a afastará e eu a afastarei de ti.<br />

Mas tinha sido Sebastian o que deu o golpe final, quando Violet se retirou <strong>da</strong>quele primeiro encontro.<br />

– Ouça – havia dito a Robert, – está de luto por um homem a qual odiava. Dê-lhe uma oportuni<strong>da</strong>de<br />

de sair <strong>da</strong>qui.<br />

E Robert tinha cedido, e tinha tido que ocupar-se de um séquito de lacaios, donzelas e costureiras, de<br />

enviar mensagens para reservar acomo<strong>da</strong>ções em um hotel, pois Violet não podia ficar em sua casa de<br />

solteiro. E tinham decorrido quarenta e oito horas até que Robert se viu por fim, com sua prima, a<br />

condessa de Cambury, nove serventes, dois gatos e um cão manco, na plataforma <strong>da</strong> estação de Euston<br />

Square em Londres.<br />

Os serventes se ocupavam de colocar a bagagem no compartimento apropriado e Robert passeava com<br />

seu primo. Havia um pouco de brisa, suficiente para que o ar na plataforma resultasse fresco e agradável.<br />

O aroma de tabaco, que tinha sido a desculpa de Robert para não sentar-se na estação propriamente dita<br />

com Violet, punha um contraponto acre ao aroma <strong>da</strong>s folhas de outono.<br />

Passeava ao lado de seu primo e sua miríade de preocupações parecia diminuir-se.<br />

– E estão <strong>da</strong>ndo passos para criar uma posição para ti em Cambridge – dizia a seu primo. – Tendo em<br />

conta o que diziam de ti quando estu<strong>da</strong>va ali, imagino que é a última coisa que esperava. Não ficaste<br />

atônito?<br />

Sebastian o olhou.<br />

– Já não sou um estu<strong>da</strong>nte, sabe?<br />

– Não finja que amadureceu – disse Robert.<br />

Seu primo sorriu com picardia.


– Espere quando eu recusar o posto – disse. – Isso escan<strong>da</strong>lizará a todos.<br />

Robert piscou e o observou melhor. Sebastian era um brincalhão contumaz, mas tomava muito a sério<br />

seu trabalho.<br />

– O vai rechaçar?<br />

– Temo-me que terei que fazê-lo – Sebastian meteu as mãos nos bolsos. – Até Newton teve que<br />

conseguir uma dispensa de Carlos II porque não acreditava na Santa Trin<strong>da</strong>de. Oxford se tornou mais<br />

liberal, mas Cambridge… – encolheu os ombros. – Ali seguem na I<strong>da</strong>de Média. Insistem em que defen<strong>da</strong><br />

a doutrina <strong>da</strong> Igreja <strong>da</strong> Inglaterra. A metade dos cientistas naturalistas me querem ali porque acreditam<br />

que faço um trabalho interessante. A outra metade acredita que me nomear professor fará com que me<br />

cale.<br />

– E o faria? – perguntou Robert. – Nunca te vi calar por na<strong>da</strong>. E acaso é um não crente? Tenho lido<br />

todos seus ensaios, incluídos os que não entendo, e não recordo que tenha tomado posição nisso.<br />

Sebastian encolheu os ombros.<br />

– Não te inteiraste? Sou um cientista pagão, um apóstata seguidor de Darwin.<br />

– Mas o senhor Darwin não é um não crente.<br />

Sebastian não respondeu a isso. Encolheu os ombros com resignação. – Eu não só acredito que as<br />

espécies evoluíram; também posso provar, de um modo científico e confiável, que se transmite traços de<br />

pais para filhos. Não pela graça de nenhum ser divino, mas sim por simples princípios naturais – olhou<br />

para Robert. Isso me converte em um não crente para a metade <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Quem sou eu para discutir<br />

com eles?<br />

– Assumo que isso é uma pergunta retórica, posto que discute com eles sempre que pode.<br />

Sebastian sorriu de prazer e negou com a cabeça.<br />

– Acredito que você gosta de ser um emparelha – declarou Robert.<br />

– Deve ser isso .<br />

– E conseguiste me distrair. Não respondeste a minha pergunta. Crê em Deus?<br />

– Respondi-te tudo o que penso responder. Acredito que é uma vergonha que o senhor Darwin tenha<br />

que incluir sua religião na base do trabalho que faz. As crenças de uma pessoa deveriam ser algo entre<br />

ele e a dei<strong>da</strong>de a qual adore ou não adore. Ninguém pergunta a um toneleiro se acredita em Deus. Por que<br />

tenho que responder eu? Por que deveria importar a alguém? A fama de Sebastian tinha chegado muito<br />

rápi<strong>da</strong>. Tanto que para Robert seguia sendo uma surpresa que Sebastian, o inteligente e desbocado<br />

Sebastian Malheur, seu primo e cúmplice de outros tempos, converteu-se em um cientista famoso. Não<br />

porque não tivesse cérebro para isso, mas sim porque era mais fácil vê-lo como o brincalhão que tinha<br />

sido de menino que como o adulto sério atual. Possivelmente porque Sebastian não se converteu em um<br />

adulto sério.<br />

– Além disso – disse Sebastian, – é muito mais divertido despistar todo mundo. Me negando a<br />

responder a isso, fiz com que to<strong>da</strong>s as velhas maritacas me tirem de suas listas de convi<strong>da</strong>dos.<br />

O revisor tocou o apito e as pessoas começaram a subir no trem. Robert e Sebastian esperaram ao<br />

final <strong>da</strong> plataforma até que se dissipasse a multidão e depois se aproximaram. A caminho de seus<br />

assentos, passaram diante dos vagões <strong>da</strong> bagagem e depois dos <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> classe.


Quando passavam diante de um dos vagões, Robert piscou. Não podia ser que… Se voltou e pôs-se a<br />

an<strong>da</strong>r.<br />

– Ué! – chamou-o Sebastian. – Está indo em direção contrária.<br />

Robert agitou uma mão no ar. Tinha tido uma ilusão muito estranha ao passar por ali… Acreditava ter<br />

visto a senhorita Pursling pelo canto do olho.<br />

Não podia ser.<br />

Quando chegou diante do guichê em questão, viu que seus olhos não lhe tinham enganado. A mulher<br />

ergueu a cabeça do livro que lia e olhou pelo guichê do outro lado. O sol atravessou o pó acumulado no<br />

cristal e iluminou aquele nariz que ele conhecia tão bem… e aqueles lábios.<br />

A senhorita Pursling ia senta<strong>da</strong> naquele compartimento. Estaria ali todo o caminho até Leicester,<br />

várias horas sem ninguém com quem falar. A menos que…<br />

– Oh? – Violet olhou discretamente a seu redor. – É…? Não, não me diga quem é. Me deixe adivinhálo.<br />

Violet tinha saído também <strong>da</strong> estação e <strong>da</strong>va ordens a um servente.<br />

Robert lhe deu um golpezinho no ombro.<br />

– Empresta a sua donzela? – perguntou.<br />

Violet o olhou receosa.<br />

– A minha donzela? Não, não empresto a Matil<strong>da</strong>. Para que a necessita?<br />

Robert procurou não olhar em direção à senhorita Pursling.<br />

– Eu… Ah…<br />

– Trata-se de uma mulher – interveio Sebastian. – Se nota pelo nervoso que se pôs. É uma mulher.<br />

Violet podia olhar com discrição, mas Sebastian esticou o pescoço e olhou de um lado a outro com<br />

movimentos exagerados.<br />

Robert fez uma careta.<br />

– Para. Para. É preciso que seja tão óbvio?<br />

– Sabia que era uma mulher! – exclamou Sebastian, triunfante. – Se o envergonhamos, é que se trata<br />

de uma mulher.<br />

Apenas um momento atrás, Robert pensava que era maravilhoso estar com gente que o compreendia.<br />

Mas já não. Ruborizou-se.<br />

– Se admitir que é uma mulher, deixarão de olhar boquiabertos e se comportarão como pessoas<br />

normais?<br />

Violet soltou um bufo.<br />

– Ain<strong>da</strong> não entendo o que tem a ver uma mulher com que necessite <strong>da</strong> Matil<strong>da</strong>.<br />

– Viaja sozinha em um compartimento de segun<strong>da</strong> classe – explicou Robert. – Quero me sentar com<br />

ela.<br />

Sua declaração se encontrou com um silêncio. Sebastian olhou para Violet e esta olhou a ele. A<br />

expressão de ambos resultava acusadora.<br />

– Interessa-te uma mulher que viaja na segun<strong>da</strong> classe – disse por fim Sebastian.


Violet o olhou também.<br />

– Interessa-te uma mulher que viaja em segun<strong>da</strong> classe e te interessa de tal modo que também te<br />

importa o que possa afetar a sua reputação.<br />

Sebastian esfregou as mãos.<br />

– Oh! – exclamou com regozijo. – A sua mãe adorará isto.<br />

– Odeio quando fazem isso – grunhiu Robert.<br />

Não era certo. Normalmente adorava que falassem assim, com os pensamentos de Violet sobrepondose<br />

aos de Sebastian e confundindo a conversa. Mas esse dia lhe resultava inconveniente. Tinha que<br />

livrar-se deles antes que dissessem algo horrível.<br />

– Pois o sinto, Robert, mas não empresto a minha donzela – declarou Violet.<br />

– Mas…<br />

– Mas… – ela esfregou as mãos com brutali<strong>da</strong>de. – Te acompanharei eu mesma encanta<strong>da</strong>.<br />

Robert tragou saliva. Tentou imaginar-se conversando com a senhorita Pursling sob o ávido olhar <strong>da</strong><br />

condessa de Cambury.<br />

– Segun<strong>da</strong> classe – comentou Sebastian. – Nunca viajei na segun<strong>da</strong> classe. Seguro que será divertido.<br />

Robert tossiu em sua mão.<br />

– Não, os dois não. Definitivamente, os dois não.<br />

– Necessita aos dois – declarou Sebastian. – Há quatro assentos. Se levar apenas a Violet, pode<br />

entrar alguém e sentar-se com vocês. Há quatro assentos. Estou seguro que não quer te arriscar a perder a<br />

oportuni<strong>da</strong>de de poder falar.<br />

– Mas…<br />

– Já me conhece – insistiu Sebastian. – Sou a discrição personifica<strong>da</strong>.<br />

– Não, não o é. É justamente o contrário.<br />

Sebastian sorriu.<br />

– Apenas burlo de ti quando ninguém nos ouve. E, além disso, se você não se sentar com essa<br />

misteriosa mulher, irei eu mesmo. Acredito que vi onde estava.<br />

Robert não podia fazer na<strong>da</strong>. Quase seria melhor afastar-se e não falar com ela. Mas…<br />

Olhou de novo o vagão dela. A senhorita Pursling olhava pelo guichê oposto, com os dedos apoiados<br />

no cristal. Não observava a ninguém, tinha a vista perdi<strong>da</strong> na distância, longe <strong>da</strong>s colunas altas <strong>da</strong><br />

estação, como se o que desejava estivesse muito longe.<br />

– Não digam na<strong>da</strong> embaraçoso – pediu Robert.<br />

– Eu? – perguntou Sebastian. – Seria contraproducente fazê-lo. Não estudo o comportamento humano,<br />

mas, cientificamente, a não interferência é imprescindível para observar devi<strong>da</strong>mente os rituais<br />

primitivos de acasalamento de…<br />

Robert ergueu os olhos ao céu. Aquilo ia ser horrível. Teria que ter guar<strong>da</strong>do silêncio.<br />

– Digo-o a sério – advertiu. – Se vierem, não quero ouvir nenhuma palavra em to<strong>da</strong> a viagem.<br />

– Vamos – murmurou Violet. – Acredito que sabe que pode confiar em minha prudência.<br />

– Não é você quem me preocupa – repôs Robert, e era certo. – Sebastian?


– Pode estar seguro de que não romperei meu voto de silêncio até que você me dê sua permissão; que<br />

perca minha alma imortal se não o cumprir.<br />

Uma promessa menos grandiloquente teria inspirado mais confiança em Robert. Em particular porque<br />

Sebastian se negava a admitir se acreditava em uma alma imortal. Mas Robert baixou a cabeça e confiou<br />

com ardor em que aquilo não acabasse tão mal como temia.<br />

O REVISOR CHAMAVA A TODOS a subir ao trem que partia de Euston Square e Minnie se escondeu<br />

no vagão <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> classe. Os compartimentos estavam quase vazios e tinha subido a capa para cobrir o<br />

rosto. Um olhar de severa desaprovação costumava servir para que qualquer companheiro de viagem em<br />

potencial decidisse passar ao seguinte compartimento.<br />

Por isso, quando ouviu a porta, adotou uma expressão sombria e pouco convi<strong>da</strong>tiva. Rangeram as<br />

dobradiças, abriu-se a porta e uma mulher entrou no compartimento.<br />

Não era uma mulher qualquer, era uma <strong>da</strong>ma. Vestia o cinza escuro do meio luto, com laços e fitas de<br />

um rebordo cor lavan<strong>da</strong> tão pálido que quase resultava incolor. Minnie não precisou ver as pérolas que<br />

levava nos punhos para saber que aquela mulher era rica e importante. Adivinhou-o antes disso, pelos<br />

cui<strong>da</strong>dosos enfeites e bor<strong>da</strong>dos do vestido, pelo tecido que formava uma nuvem excessiva, pelo modo<br />

como lhe sentava o vestido, que só podia ter conseguido mediante muitas visitas a uma costureira.<br />

Que fazia uma mulher assim em um vagão de segun<strong>da</strong> classe?<br />

A <strong>da</strong>ma arqueou as sobrancelhas. Tocou ligeiramente o banco em frente de Minnie, para assegurar-se<br />

de que era tão duro como parecia. Encolheu os ombros.<br />

Antes que pudesse olhar para Minnie, um homem, um cavalheiro a julgar por seu aspecto, com as<br />

calças bem engoma<strong>da</strong>s, um colete vermelho coberto por um casaco longo de viagem, apareceu a cabeça.<br />

– Cobber tornou a perder o baú – disse. – E Matil<strong>da</strong> diz que o moço insiste em colocar seu segundo<br />

baú debaixo, sem fazer caso do que diz a etiqueta.<br />

– Oh, diabos! – exclamou a mulher.<br />

O homem não se alterou pelo palavrão. Simplesmente, fez-se a um lado e a deixou sair pela porta.<br />

Curiosamente, aquele cavalheiro, um homem moreno de olhos negros, olhou para Minnie.<br />

Provavelmente era muito tarde para espantá-lo, mas ela o olhou de cima abaixo de todos os modos.<br />

Lhe piscou os olhos.<br />

– Os vagões de primeira classe estão ali – assinalou com a mão.<br />

Ele encolheu os ombros, deixou seu pesado casaco em outro assento e saiu atrás <strong>da</strong> mulher.<br />

Parecia que Minnie ia ter companheiros depois de tudo. E uns muito estranhos.<br />

A porta voltou a soar. Ergueu a vista, esperando ver seus estranhos companheiros de viagem. O<br />

coração lhe deu um tombo. Sentiu calor nas mãos.<br />

– Senhorita Pursling – disse o duque de Clermont. – É um prazer vê-la.<br />

A última vez que o tinha visto, lhe havia dito que olhasse para cima.<br />

Ela tinha querido fazê-lo então. E logo… logo tinha descoberto que tinha ain<strong>da</strong> menos opções do que<br />

supunha. Vê-lo fazia querer esquecer tudo isso. Tinha acreditado ter superado aquele desejo, mas lhe


astou vê-lo para que a lembrança voltasse espontaneamente, como se esperasse escondido na superfície<br />

de sua pele e revivesse com ca<strong>da</strong> fôlego que passava pelos lábios dela.<br />

“A desejo”.<br />

Essas palavras continuavam na imaginação dela, e embora sua mente soubesse que não tinha<br />

acontecido na<strong>da</strong> entre eles, seu corpo não parecia tão convencido. Sua pele fazia cócegas na presença<br />

dele. Baixou a vista.<br />

– Faz uma boa viagem? – ele colocou uma bolsa na prateleira metálica que havia sobre sua cabeça e<br />

se sentou frente a ela.<br />

– Sim – respondeu Minnie com rigidez. – Visitei um fabricante de papel de Londres para descobrir de<br />

onde tira você seus materiais.<br />

Disse-o para que ele soubesse bem onde estavam… tão longe como ela pudesse fazer que estivessem.<br />

Ele franziu o nariz.<br />

– Um relatório de seus progressos – comentou alegremente. – Vejo que avançou em sua posição. Que<br />

bom! – sorriu a Minnie.<br />

Ela pensou que em sua vi<strong>da</strong> não havia lugar para ele nem para seus desejos. Não havia. Por sorte, a<br />

porta se abriu de novo e entrou a mulher do impressionante vestido de viagem.<br />

– Robert – disse. – Não podemos ir ain<strong>da</strong>. Perderam o Herman e o revisor ameaça partir de todos os<br />

modos. O que importa que o trem se atrase? Tem que detê-los, porque meus estratagemas não durarão<br />

muito mais.<br />

– Seus estratagemas? – o duque de Clermont se endireitou em seu assento e sua voz se voltou<br />

sombria. – O que fez?<br />

A mulher mostrou um apito prateado.<br />

– É do revisor – comentou.<br />

O duque a olhou; soltou um grunhido e esfregou a testa.<br />

– Santo céu! – tocou o chapéu e olhou para Minnie. – Espere. Volto em segui<strong>da</strong>.<br />

A porta voltou a fechar-se e Minnie ficou sozinha de novo. Pensou por um momento em trocar de<br />

compartimento. Mas se o fazia, ele voltaria a encontrá-la. Além disso, o revisor tinha marcado seu<br />

bilhete com aquele assento e não estava segura de que se lembrasse dela se trocasse de compartimento.<br />

No minuto seguinte a assaltou outra tentação. O duque tinha deixado sua bolsa no assento contiguo ao<br />

dela. Só uma fivela metálica a separava dos papéis dele. De seus papéis potencialmente condenatórios.<br />

De alguma parte tinha que levar os santinhos. Possivelmente houvesse um recibo ou uma nota naquela<br />

bolsa.<br />

Mas… seria uma tremen<strong>da</strong> violação de intimi<strong>da</strong>de.<br />

E o que faria embora encontrasse algo? A palavra dele contra a sua a desonraria igualmente. Discutiu<br />

consigo mesma os prós e os contra, até que o passar do tempo tomou a decisão por ela.<br />

Abriu-se a porta do vagão. Era o duque. Ergueu a vista até sua bolsa e moveu a cabeça.<br />

– De ver<strong>da</strong>de não a vasculhou?<br />

– De ver<strong>da</strong>de – Minnie apertou os dentes. – Não.<br />

– Não sou seu inimigo? Não estamos em guerra?


– Não sei o que você é. E certamente, não sei o que estamos fazendo – enrugou o nariz. – Mas ia me<br />

custar muito provar a procedência <strong>da</strong>s provas. Embora encontrasse um montão de santinhos radicais em<br />

sua bolsa, o que poderia fazer? Levar isso e mostrar ao magistrado? Não teria provas de que tinham<br />

estado em sua posse.<br />

Ele baixou a bolsa e a olhou.<br />

– Você me surpreende continuamente. Não devo esquecer que, o que quer que você planeje, será<br />

muito mais consciencioso que na<strong>da</strong> do que já vi – abriu a tira de couro e tirou uns papéis. – Aqui está –<br />

disse. – Se tivesse vasculhado minha bolsa, teria encontrado isto. Escrevi-o para você.<br />

Na mão tinha um pe<strong>da</strong>ço de papel.<br />

Minnie não pegou.<br />

– A última vez que falamos disse que a aterrorizava o futuro. Quero uma trégua. Esta é minha melhor<br />

oferta – lhe sorriu e, Oh, Deus! Ela sentiu a força desse sorriso até a ponta dos dedos dos pés.<br />

Estendeu a mão e pegou o papel com cautela. Era uma carta, e levava seu nome na parte frontal.<br />

– Paz durante a viagem?<br />

– Não sei.<br />

– Umas horas, senhorita Pursling. É tudo o que lhe peço – o sorriso dele vacilou. – E a propósito, os<br />

outros dois passageiros…<br />

Abriu-se a porta e ele fez uma careta e cruzou os braços sobre o peito. As duas pessoas de antes<br />

entraram de novo no vagão.<br />

A mulher olhou para Minnie… e entreabriu por um segundo os olhos, suficiente para que Minnie<br />

compreendesse que aquela mulher tranquila e elegante provavelmente tinha ouvido o duque falar.<br />

Suficiente para <strong>da</strong>r a entender que tinha captado o vestido simples de Minnie e a cicatriz de sua<br />

bochecha. Atrás dela estava o cavalheiro que lhe tinha piscado os olhos antes, um homem moreno com<br />

um laço branco no pescoço.<br />

O duque de Clermont sorriu com ar de desculpa.<br />

– Com respeito a eles… – mordeu o lábio. – Então. Violet, Sebastian, posso lhes apresentar à<br />

senhorita Pursling? Senhorita Pursling, ela é Violet Waterfield, a condessa de Cambury.<br />

– Encanta<strong>da</strong>, certamente – murmurou a condessa, com uma voz que sugeria que estava algo menos que<br />

isso.<br />

– E o cavalheiro que há atrás dela é o senhor Sebastian Malheur.<br />

Minnie se esqueceu de guar<strong>da</strong>r silêncio. Abriu muito a boca.<br />

– Sebastian Malheur? – perguntou. – O homem que escreveu essa defesa apaixona<strong>da</strong> pelo senhor<br />

Darwin?<br />

Santo céu! Se o que diziam dele era certo, aquele homem era todo um infame. Se comentava que era<br />

não só um dissidente religioso, mas além disso um ver<strong>da</strong>deiro ateu. Um mulherengo. Um libertino. O<br />

senhor Malheur encolheu os ombros e levou dois dedos aos lábios em um gesto exagerado de silêncio.<br />

– Sim – respondeu o duque depois de uma pausa um pouco força<strong>da</strong>. – É esse mesmo sujeito ignorante.<br />

Todos os rumores que ouviu são certos. Além disso, é meu primo – suspirou. – Bom, vocês dois podem<br />

se sentar – disse. – Além disso, tampouco podem piorar mais isto.


Minnie não sabia a que se referia com aquilo. Se o dizia por eles ou por ela. Mas os outros dois se<br />

sentaram sem dizer uma palavra e sem olhar em sua direção.


CAPÍTULO 9<br />

FORA SOOU UM APITO.<br />

O trem estremeceu com as portas que se fechavam em todo o comprimento do comboio. E Robert<br />

esperava com tristeza o que sabia que se produziria a seguir.<br />

Por um momento tudo pareceu ir bem. Violet tirou de sua bolsa lã e agulhas de tecer. Sebastian olhava<br />

à frente e não dizia na<strong>da</strong>.<br />

A senhorita Pursling tinha a vista fixa nas tábuas de madeira que formavam o chão. Guardou a carta<br />

no bolso e não havia tornado a tocá-la. O trem começou a mover-se, oscilando de lado a lado, e ela<br />

seguia sem falar.<br />

Robert não se surpreendia com isso, pois era o que sempre fazia quando a via. Mas Violet olhou<br />

primeiro a ele e a seguir à senhorita Pursling. Enrugou o cenho com confusão e trocou um olhar<br />

preocupado com Sebastian.<br />

– E bem – murmurou Robert. – Esteve em Londres, senhorita<br />

Pursling?<br />

A mulher o olhou e afastou a vista.<br />

– Sim, Excelência.<br />

– O que a trouxe por aqui?<br />

Ela inclinou a cabeça de modo que era impossível olhá-la aos olhos. – Tinha assuntos de índole<br />

pessoal, Excelência.<br />

Se aquilo era paz… Robert suspirou.<br />

Não podia falar dos santinhos. Nem Sebastian nem Violet estavam sabendo, e como não gozavam do<br />

amparo do qual gozava ele, Robert preferia que não soubessem. O silêncio se estendeu pelo vagão e o<br />

duque pensou que não tinha sido boa ideia proibir seus amigos de falar. O que podia ser um silêncio<br />

cômodo entre os dois, voltava-se terrivelmente incômodo com quatro pessoas olhando-se com os lábios<br />

apertados. Aquela viagem de trem tinha potencial para ser a mais desagradável <strong>da</strong> história.<br />

– Bom – voltou a provar. – A Comissão de Higiene dos<br />

Operários. Por que se interessa por isso?<br />

Ela o olhou então. Franziu os lábios como se reprimisse um sorriso. – Porque a higiene é importante.<br />

Não está de acordo, Excelência?<br />

– É obvio, mas muitas coisas são importantes. Todos fazemos diferentes opções sobre como<br />

empregamos nosso tempo. Violet trabalha de voluntária no Jardim Botânico de Cambridge,<br />

presumivelmente porque gosta <strong>da</strong>s plantas. Sebastian…<br />

Sebastian ergueu a vista com interesse.


– Sim – interveio a senhorita Pursling. – Eu gostaria muito de ouvir como emprega seu tempo o<br />

senhor Malheur.<br />

– Ah! – não era fácil fazer uma descrição asséptica do trabalho de Sebastian.<br />

– Porque ouvi – continuou a senhorita Pursling, – que ameaçou instituindo um programa de<br />

reprodução humana entre os professores de Cambridge para provar sua teoria sobre a herança sexual dos<br />

traços.<br />

Sim. Por isso era difícil falar do trabalho de Sebastian. Porque, para isso, a gente tinha que dizer<br />

coisas como “herança sexual” sem ruborizar-se; algo que a senhorita Pursling conseguiu fazer muito bem.<br />

Sebastian a olhou com intensi<strong>da</strong>de e Robert recordou, um pouco tarde, que seu primo tinha um grande<br />

talento para cativar às mulheres. Como lhe tinha ocorrido aproximá-lo <strong>da</strong> senhorita Pursling? Ao final <strong>da</strong><br />

viagem, ela estaria encanta<strong>da</strong> com ele.<br />

De fato, provavelmente já o estivesse.<br />

Mas Sebastian se limitou a encolher os ombros mais uma vez, levou uma mão à boca com um<br />

movimento exagerado e assinalou com a cabeça ao Robert. Este traduziu aquilo como: “Sinto-o muito,<br />

mas depois de haver prometido a meu primo que não diria nenhuma palavra, agora tenho que envergonhálo<br />

o mais possível com gestos”.<br />

– Oh, pelo amor de Deus! – murmurou Robert. Apertou a testa com os dedos. O trem chiou ao tomar<br />

uma curva.<br />

Sebastian o olhou movendo o dedo indicador em sua direção em um gesto de vergonha e a seguir fez<br />

um gesto gentil para frente e para trás com a mão, que não indicava claramente na<strong>da</strong>.<br />

– Está… ferido? Doente? – perguntou a senhorita Pursling. – Impossibilitado para falar por alguma<br />

razão?<br />

O rosto de Sebastian se iluminou e a apontou com um dedo.<br />

– Tentou tomar um chá? – perguntou ela. – Com mel pode aliviar muito a garganta.<br />

Outro gesto por parte de Sebastian; essa vez ergueu os braços em direção ao teto e os baixou<br />

rapi<strong>da</strong>mente.<br />

– Ao menos tente não me golpear na cara, Sebastian – disse Violet. – E pelo amor de Deus! Os dois<br />

sabemos que Robert não o dizia em um sentido literal. Apenas queria que não o envergonhássemos, coisa<br />

que você faz muito bem sem palavras.<br />

Os olhos <strong>da</strong> senhorita Pursling passavam de um a outro. Se havia uma mulher capaz de captar o que<br />

não se dizia, era ela. Ao Robert não custava na<strong>da</strong> imaginá-la reconstruindo o que devia haver dito ele aos<br />

outros dois.<br />

Sentiu que se ruborizava.<br />

– Pode falar – grunhiu.<br />

– Sabia perfeitamente bem o que queria dizer – respondeu Sebastian. – Mas sempre descubro que o<br />

modo mais rápido de conseguir que alguém esqueça seus decretos mais ridículos é tomar sua ordem em<br />

um sentido literal e obedecê-la ao pé <strong>da</strong> letra.<br />

– Não é muito tarde para te jogar deste vagão – replicou Robert. O trem oscilava para frente e para<br />

trás em sua viagem ao longo <strong>da</strong>s vias. Ain<strong>da</strong> não tinha alcançado sua veloci<strong>da</strong>de máxima; depois de tudo,<br />

acabaram de sair de Londres.


– Aí vê revela<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>deira natureza de meu primo – disse Sebastian à senhorita Pursling. –<br />

Desumano, cruel e violento.<br />

Robert fez o que pôde por reprimir um gemido, e estava quase seguro de havê-lo conseguido.<br />

– E para que conste – continuou Sebastian. – Eu não ameacei criar um programa de reprodução<br />

humana em Cambridge para provar minha teoria. Para começar, isso não prova uma teoria nesse sentido<br />

<strong>da</strong> palavra. Põe-na a prova considerando a seguinte explicação mais provável. E em segundo lugar, essa<br />

história se exagerou muito em suas versões sucessivas. Eu me limitei a fazer notar que poderíamos usar<br />

princípios simples para determinar, depois do fato, a probabili<strong>da</strong>de de que a esposa de certo professor<br />

houvesse…<br />

– Pare! Sim – Robert interveio na conversa antes que fosse mais longe. – E possivelmente haja outros<br />

temas que nos alegre mais.<br />

– Perdoe meu primo – Sebastian encolheu os ombros. – É um pouco puritano. Mas minhas desculpas.<br />

Intrometi-me em sua encantadora conversa. Por favor, continuem com o que estavam dizendo – se<br />

recostou em seu assento.<br />

– Na ver<strong>da</strong>de – disse Violet. – Não se preocupe conosco. Apenas estamos aqui. E pode estar segura<br />

de que, se querem falar de segredos, eu jamais repetirei nenhum. Sou conheci<strong>da</strong> por minha discrição.<br />

– Isso é ver<strong>da</strong>de – respondeu Sebastian. – A condessa de Cambury é como um buraco escuro e<br />

profundo. Os segredos entram nela, mas jamais sai nenhum.<br />

– Sebastian – replicou Violet com calma, voltando para seu trabalho de ponto, – não é nem<br />

apropriado nem respeitoso dizer a uma mulher que a considera somente um buraco.<br />

A senhorita Pursling se engasgou com a saliva e tossiu; Robert se afundou mais em seu assento,<br />

arrependido de ter atraído aquilo sobre sua cabeça. Necessitava algo para tampar seu rubor. Não deveria<br />

ter deixado que nenhum dos dois se aproximasse <strong>da</strong> senhorita Pursling e, se seguiam assim, ele, Robert,<br />

jamais o perdoaria.<br />

Violet seguiu tecendo como se na<strong>da</strong> tivesse ocorrido.<br />

Sebastian agitou uma mão no ar.<br />

– Minhas desculpas; é obvio, a condessa é uma doce flor de feminili<strong>da</strong>de.<br />

“Te cale. Te cale”, pediu em seu interior Robert.<br />

Por sorte, Sebastian não levou mais à frente a desculpa.<br />

Violet pareceu aceitá-la sem comentários.<br />

– Não se preocupe comigo – repetiu. – De fato, não se preocupe com nenhum de nós – piscou e<br />

ergueu as agulhas ante si como se levantasse um muro.<br />

– Acredito que começamos esta conversa com o pé esquerdo – interveio por fim Robert. De fato,<br />

pensava que, se aquela conversa tivesse sido um ser vivo, o mais misericordioso teria sido arrastá-lo<br />

atrás do celeiro e lhe <strong>da</strong>r um tiro.<br />

– Sério? – a senhorita Pursling olhou pelo guichê.<br />

– Eu apenas pensei que, possivelmente se lutássemos um com o outro com franqueza por uma vez,<br />

poderíamos…<br />

– Oh! Não acredite nele quando fala assim – interrompeu Violet, fingindo ain<strong>da</strong> estar absorta em seu<br />

trabalho de ponto. – Pode falar tudo o que queira de equi<strong>da</strong>de e justiça, mas ele foi o único que se negou


a se fazer de princesa.<br />

Robert sorriu com inapetência. Aquele era o tipo de coisa que mais temia. Dar um tiro à conversa<br />

seria muito misericordioso; queria matá-la a golpes e jogá-la em uma tumba desconheci<strong>da</strong>.<br />

A senhorita Pursling olhou à outra mulher com o cenho franzido.<br />

– Fazer de princesa? – perguntou, confusa.<br />

– Sim – repôs Violet. – O fazíamos quando éramos crianças. Nos verões, seu pai ia de visita e<br />

deixava Robert com sua irmã, a mãe de Sebastian.<br />

Os três jogávamos um jogo que eles chamavam “Cavalheiros e dragões” e eu chamava<br />

“Profun<strong>da</strong>mente aborrecido”. Eles eram cavalheiros e eu tinha que ficar senta<strong>da</strong> como uma princesa e<br />

esperar até que me resgatassem.<br />

– Entendo.<br />

– E um dia – prosseguiu a condessa com calma– enquanto eles fingiam atacar dragões, eu escrevi uma<br />

nota onde dizia que tinha fugido para me dedicar a vi<strong>da</strong> de pirata.<br />

Sebastian soprou.<br />

– Acredito que acrescentou que antes pretendia entregar sua virtude a um grupo de bandidos.<br />

A condessa não pareceu na<strong>da</strong> ofendi<strong>da</strong>.<br />

– Naquele momento não sabia o que significava isso, mas minha professora me advertia<br />

constantemente de que devia proteger minha virtude com a vi<strong>da</strong>. Pareceu-me a pior ameaça que podia<br />

lançar.<br />

A senhorita Pursling se inclinou para frente com um leve sorriso no rosto. Olhou para Violet.<br />

– E o que fizeram seus valentes cavalheiros quando descobriram sua deserção?<br />

– Decidiram que era seu dever me caça e me castigar me entregando como comi<strong>da</strong> ao dragão – Violet<br />

olhou seu trabalho com o cenho franzido e começou a desfazer com calma a última volta. – Não tiveram<br />

nenhum êxito. Em qualquer caso, isso fez o jogo mais divertido.<br />

– O barro também jogou um papel importante – informou<br />

Sebastian.<br />

–<br />

Depois disso – continuou Violet, – decidiu-se que era injusto que eu fosse sempre a princesa.<br />

Lançamos uma moe<strong>da</strong> para escolher, mas Robert nunca quis se fazer de princesa quando chegou sua vez. –<br />

A condessa o olhou com o cenho franzido e Robert afastou a vista.<br />

– Uma moe<strong>da</strong> só tem dois lados – declarou. – Era impossível me atribuir um.<br />

– Exceto por…<br />

Robert ergueu uma mão.<br />

– E este não é o momento de entrar nos métodos para lançar moe<strong>da</strong>s entre três de um modo<br />

equilibrado. Basta dizer que eu teria feito muito mal uma princesa.<br />

– Entendo – murmurou Minnie.<br />

– Não o entende – interveio Sebastian. – Você acredita que Violet era uma princesa responsável, mas<br />

ela então era já como agora. Afeta<strong>da</strong> e esnobe por fora, mas um vân<strong>da</strong>lo quando não olhavam os adultos.


Ela sempre parece respeitável. Não sei como o fazia, mas Robert e eu voltávamos de nossas excursões<br />

enlameados de cima abaixo e Violet estava tão fresca como um dia de primavera.<br />

– Há uma coisa maravilhosa que se chama água – declarou Violet. – Os meninos parecem<br />

desconhecer sua existência – olhou para Minnie por cima <strong>da</strong>s agulhas. – A higiene é importante.<br />

A senhorita Pursling sorriu e baixou a vista.<br />

– Por certo, e em defesa de minha digni<strong>da</strong>de – disse Sebastian, – devo dizer que, quando eu fazia esse<br />

papel, chamava-me “príncipe”, não princesa.<br />

– Chamava-lhe isso você – interveio Robert. – Nós lhe chamávamos “princesa”. A brincadeira não<br />

tinha sentido de outro modo. Os dragões querem devorar princesas, os príncipes pouco importam.<br />

– Tem muito que aprender de dragões. Pensa-o bem. Tiramos mais “vitela” dos bezerros que <strong>da</strong>s<br />

vitelas. É bem sabido que o macho <strong>da</strong> espécie produz uma carne mais fina.<br />

– Eu acreditava que não comíamos as vitelas porque preferíamos as guar<strong>da</strong>r para o leite – declarou a<br />

senhorita Pursling.<br />

Robert não queria tampouco aquela conversa. Suspeitava que ao final só suportaria problemas.<br />

Afundou-se mais em seu assento e esperou o momento inevitável no qual Sebastian faria à senhorita<br />

Pursling gritar.<br />

Seu amigo piscou à senhorita Pursling.<br />

– Os dragões gostam do queijo.<br />

– Mas os dragões não podem ordenhar princesas – respondeu ela. – Não têm polegares objetáveis.<br />

Sebastian olhou o teto.<br />

– Muito inteligente, e quase correto. Mas os dragões têm aju<strong>da</strong>ntes. Em qualquer caso, está claro que<br />

a fêmea <strong>da</strong> espécie humana tem uma carne inferior. Está carrega<strong>da</strong> com depósitos de gordura feminina na<br />

parte dianteira.<br />

Enquanto que o flanco do macho é magro, macio e suculento – enfatizou suas palavras levantando-se e<br />

pousando uma mão em seu traseiro.<br />

A condessa ergueu os olhos ao céu.<br />

– Quanto menos se diga do flanco <strong>da</strong> carne masculina, mais nos alegraremos todos. Além disso,<br />

acreditava que você gostava desses desafortunados depósitos de gordura feminina. Passas suficiente<br />

tempo… Robert tossiu audivelmente.<br />

– Minhas preferências são irrelevantes – declarou Sebastian, com altivez. – Eu não sou um dragão.<br />

– Certo – declarou Robert. – É um pavão que exibe suas plumas diante <strong>da</strong> fêmea <strong>da</strong> espécie.<br />

– Se funcionar… – Sebastian sorriu. Voltou a cabeça para olhar uma imaginária cau<strong>da</strong> de plumas em<br />

seu traseiro. – E sim, esse é um de meus melhores traços, obrigado.<br />

A condessa emitiu um suspiro de derrota.<br />

– Já estamos falando outra vez do traseiro de Sebastian? Não tem mais nenhuma parte no corpo?<br />

Aquele foi o momento no qual Robert se deu conta de que a senhorita Pursling não olhava o chão; de<br />

fato, fazia já tempo que não baixava à vista. Sorria e olhava os outros dois com fascinação e com as<br />

bochechas rosa<strong>da</strong>s.<br />

Robert apontou para Sebastian com o dedo.


– Vê-o? – perguntou acusador. – Sabia que o faria. Estendeste-me uma armadilha. Não voltarei a<br />

acreditar nenhuma palavra do que diga.<br />

– De na<strong>da</strong> – Sebastian baixou a cabeça e voltou a sentar-se. – Tanto desconforto não vinha a conto –<br />

fingiu um estremecimento. – Já logo me agradecerá.<br />

– Não. Odeio-lhes aos dois.<br />

Normalmente teria gostado de passar o tempo assim, escutando a seus amigos jogando conversa como<br />

felinos enlouquecidos. Mas a senhorita Pursling pensaria que estava louco para passar tempo com<br />

aqueles dois. Estava aparentado com Sebastian. Eram primos irmãos. Aquilo era quase como anunciar<br />

que tinha a um ramo inteiro de sua família no manicômio.<br />

– Oh, vá! – murmurou Sebastian. – Não tínhamos que haver dito na<strong>da</strong> disso?<br />

– Pois claro que sim – repôs Violet. –Mencionamos especificamente que ele jamais se fazia de<br />

princesa. Isso o converte em varonil.<br />

Você o segue considerando varonil, ver<strong>da</strong>de, senhorita Pursling?<br />

– Parece-me importante não fazer comentários – a interpela<strong>da</strong> baixou a vista, mas lhe brilhavam os<br />

olhos.<br />

– Eu protesto por essa linha de raciocínio – declarou Sebastian. – Tem que ter muita confiança em sua<br />

virili<strong>da</strong>de para se fazer de princesa.<br />

Possivelmente o que conseguimos foi fazê-lo inseguro.<br />

– Possivelmente, se não o mencionarmos, ela não se dê conta – respondeu Violet.<br />

A senhorita Pursling sorriu.<br />

– Não se preocupem comigo – baixou mais à vista. – Eu nunca me fixo em na<strong>da</strong>.<br />

– Nesse caso – declarou Violet com sua melhor voz de “bem está o que bem acaba”, – não vejo que<br />

motivo há para incomo<strong>da</strong>r-se. Robert, deixa de te zangar.<br />

Robert fechou os olhos, derrotado.<br />

Quando o trem parou, esperou até que Sebastian recolheu suas coisas e saiu, e até que Violet o seguiu<br />

para fiscalizar sua bagagem. Só então se voltou para a senhorita Pursling.<br />

Ela estava na porta do vagão; envolvia um lenço ao redor do pescoço.<br />

Robert começou a virar o chapéu em suas mãos.<br />

– Ouça, em relação à conversa… – guardou silêncio. O que podia dizer?<br />

“Normalmente não são assim”.<br />

Isso era mentira.<br />

“Tem que entendê-lo. As brincadeiras de Sebastian me causaram muitos momentos difíceis. Mas o<br />

amo mais do que quero matá-lo”.<br />

A ver<strong>da</strong>de era muito. Seguia esforçando-se por procurar um modo de desculpar-se, embora nem<br />

sequer estivesse seguro de querer fazê-lo. Ela ajustou as luvas com a vista baixa antes de olhá-lo.<br />

– Excelência.<br />

– Senhorita Pursling.


Os olhos dela eram cinzas, luminosos e claros, e pareciam ver através dos movimentos nervosos<br />

dele.<br />

– Sempre pensei que se pode julgar a um homem pela companhia em que an<strong>da</strong>.<br />

– Credo! – ele fez uma careta. – Sebastian sempre foi excessivo. Pode ser muito, no princípio. Mas é<br />

um bom homem, isso é certo. Mais ou menos.<br />

A senhorita Pursling franziu o cenho.<br />

– Por que diz isso? Eu gostei de seus amigos.<br />

Robert respirou com força.<br />

– Isso quase soa como se gostasse de mim.<br />

Ela assentiu.<br />

– A lógica é uma coisa encantadora, Excelência. Isso é exatamente o que disse. Mas oxalá não fosse<br />

assim! – girou o trinco e saiu pela porta.<br />

– Espere – disse ele.<br />

Mas a porta se fechou atrás dela. Robert seguia olhando o espaço que ela tinha ocupado quando o<br />

revisor soou o apito. Pegou sua bolsa e saiu correndo.<br />

Ela gostava de seus amigos. Gostava de seus amigos? Era estranho esquecer to<strong>da</strong> a vergonha anterior.<br />

Quando alcançou Sebastian, Violet e o resto do séquito, sorria como um parvo. Seus amigos olhavam as<br />

páginas do caderno de notas de Violet e riam.<br />

– Do que riem? – perguntou Robert receoso.<br />

Violet fechou o caderno.<br />

– Estou levando a conta – respondeu. – Lamento te informar disto, mas sua senhorita Pursling ganhou<br />

a conversa.<br />

Robert seguia luzindo seu sorriso tolo; não podia evitá-lo.<br />

– Sim – assentiu. – Não é maravilhoso?


CAPÍTULO 10<br />

O ÔNIBUS DEIXOU Minnie a meia milha <strong>da</strong> granja de suas tias avós. Colocou a valise sob o braço e<br />

pôs-se a an<strong>da</strong>r.<br />

Quando deixou para trás o último grupo de casas, tirou a carta do bolso <strong>da</strong> saia e, como pôde, pois<br />

somente tinha uma mão livre, rompeu o selo de cera.<br />

A carta estava <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> dois dias atrás.<br />

Minha queri<strong>da</strong> senhorita Pursling. Quero esclarecer ao que me referia ao outro dia quando nos<br />

encontramos na residência dos Finney. Escrever santinhos não é um capricho <strong>da</strong> minha parte.<br />

Você me disse que tinha olhado para cima e que tinha sofrido por isso. Não é a única. Está na<br />

natureza <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de inglesa fazer precisamente isso: manter abaixo às classes mais baixas e elevar<br />

ain<strong>da</strong> mais às classes superiores. Eu sou afortunado de poder olhar aonde me agrade, sim.<br />

Meu desejo mais ardente é que você, e todo mundo, olhe para cima. Que o façam e não tenham que<br />

voltar a cair por isso. Escrevo santinhos porque eu posso escrever essas palavras sem medo a<br />

represálias, porque se for descoberto, a Câmara dos Lordes jamais me julgará. Escrevo-as porque é<br />

necessário escrever essas palavras. Escrevo-as porque se não as escrever, não falar, desperdiçaria o<br />

que me foi <strong>da</strong>do. Mantenho-o em segredo porque, se não o fizesse, to<strong>da</strong>s as pessoas associa<strong>da</strong>s comigo<br />

seriam objeto de uma investigação.<br />

Não há dúvi<strong>da</strong> de que, em assuntos de estratégia, é você muito superior a mim. Como prova disso,<br />

aqui tem uma carta de meu punho e letra em que confesso o que tenho feito. Utilize-a para revelar<br />

minha identi<strong>da</strong>de, se acreditar que assim obterá um bom matrimônio com um homem corrente que só<br />

deseja ter uma esposa cala<strong>da</strong>. Utilize-a se o necessita, ou guarde-a e não diga na<strong>da</strong>. Disse-me que a<br />

aterrorizava o futuro. Eu não posso mudá-lo inteiro, mas posso mu<strong>da</strong>r isto.<br />

Ou você pode olhar para cima. Pode utilizar bem essa mente superior que possui e criar um lugar<br />

diferente para si mesma. Você poderia ser mais. Poderia ser muito, muito mais.<br />

Qualquer outra coisa seria um desperdício criminal de seu talento.<br />

Seu servidor,<br />

Robert Alan Graydon Blaisdell.<br />

Não havia título. Mas, por outra parte, o único título que tinha escolhido em seus santinhos era De<br />

minimis, algo pequeno. Embora aquilo não fosse tão pequeno. Minnie sentia que a maré <strong>da</strong> esperança<br />

dele a elevava mais e mais a ca<strong>da</strong> passo que <strong>da</strong>va.<br />

“Você poderia ser mais”.<br />

Em outro tempo tinha provado mais; só um pouco, mas suficiente para fazer que sua vi<strong>da</strong> atual lhe<br />

resultasse muito deprimente. Era como se comesse papa sem sal em to<strong>da</strong>s as comi<strong>da</strong>s, mas passasse o dia<br />

cheirando salsichas e empana<strong>da</strong>s. Depois de todo o tempo que levava tragando aquela massa insípi<strong>da</strong>,<br />

alguém lhe oferecia carne.


Não podia pensar com lógica. Não podia analisar. Não podia pensar em na<strong>da</strong> que não fosse sua fome.<br />

“Eu poderia ser mais”.<br />

Não sabia o que lhe reservava o futuro, mas inclusive aquele pequeno alívio que tinha sentido ao ler a<br />

confissão dele… o de uma coisa menos que temer, uma preocupação que podia esquecer depois do temor<br />

dos últimos dias… até isso parecia diminuir sua carga.<br />

Essa sensação de falso conforto a acompanhou durante todo o caminho até sua casa. Alegrava-se a<br />

ca<strong>da</strong> passo que <strong>da</strong>va e animava-se a ca<strong>da</strong> fôlego que tomava. Vibrava através dela quando saudou suas<br />

tias, quando foi lavar-se e assear-se para o jantar. E não mudou na<strong>da</strong>. Somente serviu para que o peso <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de resultasse mais pesado quando caiu sobre seus ombros.<br />

Na hora do jantar, descobriu que não podia provar a sopa.<br />

Suas tias comiam com bom ânimo, conversando como era de esperar que fizessem duas boas amigas<br />

que tinham passado déca<strong>da</strong>s uma em companhia <strong>da</strong> outra. A conversa passou <strong>da</strong> produção de nabos aos<br />

usos que <strong>da</strong>riam na primavera ao campo mais afastado.<br />

Conversavam como se na<strong>da</strong> tivesse mu<strong>da</strong>do, e Minnie odiava isso porque na<strong>da</strong> tinha mu<strong>da</strong>do. Porque<br />

o fatídico dia em que se truncou sua vi<strong>da</strong>, tinham sido elas as que tinham ido procurá-la em Londres. E<br />

elas lhe tinham acenado com aquele caminho.<br />

Se vier conosco – lhe havia dito sua tia avó Caroline, – Minerva Lane morrerá para sempre. Não<br />

pronunciará nunca mais esse nome. A pessoa que é hoje desaparecerá.<br />

Papa. Na<strong>da</strong> a não ser papa, e o medo a que um dia não tivesse nem sequer isso.<br />

– Sabia que Billy está cortejando? – perguntou sua tia avó<br />

Caroline.<br />

– Não! Não pode já ter essa i<strong>da</strong>de.<br />

– Tem dezoito – respondeu Caroline. – E que o céu me ampare se souber quando ocorreu isso. Parece<br />

que foi só o mês passado quando acabava de nascer.<br />

Minnie não podia atender à conversa. Tinha adotado um nome novo quando suas tias a levaram com<br />

elas; e com o nome, tinha adotado também uma personali<strong>da</strong>de nova. Ao princípio nem sequer sabia an<strong>da</strong>r<br />

como uma garota. Com o passar do primeiro ano, suas tias a tinham corrigido constantemente. “Não<br />

contradiga”. “Não eleve a voz”. “Não dê um passo à frente”. Tudo o que chamasse a atenção estava<br />

proibido. Minnie tinha se tornado ca<strong>da</strong> vez mais pequena até que sua personali<strong>da</strong>de teria cabido em uma<br />

noz… e teria demasiado pequeno para mover-se<br />

Tornou-se pequena e cala<strong>da</strong>. E, como tinha conhecido outras coisas, sua frustra<strong>da</strong> ambição reprimi<strong>da</strong><br />

foi murchando. Tinha atacado o pouco trabalho caridoso que permitia às mulheres, mas não era<br />

suficiente. E agora lhe esperava uma vi<strong>da</strong> inteira desse mal, de ver-se obriga<strong>da</strong> a tornar sua alma o mais<br />

pequena e insípi<strong>da</strong> possível com a esperança de que acabasse por entrar nos limites estreitos de sua vi<strong>da</strong>.<br />

“Você tem uma personali<strong>da</strong>de de aço e um estranho talento para ver o que tem diante de seus olhos.<br />

Eu poderia fazer com que todos vissem isso”.<br />

Minnie amaldiçoou os olhos dele e amaldiçoou sua carta. Amaldiçoou seu sorriso, esse sorriso que<br />

fazia com que quisesse beijá-lo somente para que ele soubesse que tinha aceito aquela luz em seu<br />

interior.<br />

“Qualquer outra coisa seria um desperdício criminal”.


Amaldiçoou aquele homem, porque, embora não falasse a sério, embora tudo aquilo fosse só um<br />

modo de tentar lhe nublar a mente e desviá-la de seu caminho, tinha-lhe feito acreditar que ela podia<br />

mu<strong>da</strong>r as coisas. E que dessa vez, quando o fizesse…<br />

Aquele desejo a golpeou com a força de um murro no peito. Foi doloroso e lhe paralisou. Não só<br />

desejava. Tinha esperança. Necessitava.<br />

Sonhava que, dessa vez, quando revelassem à multidão o que era em reali<strong>da</strong>de, não a rodeariam nem<br />

lhe atirariam pedras. Essa vez não a chamariam besta nem semente do diabo. Essa vez, em vez de tirarlhe<br />

tudo, alguém a amaria por ser quem era.<br />

Um desejo que era muito grande para a pessoa que tinha que ser.<br />

Amaldiçoou ao duque de Clermont por lhe <strong>da</strong>r aquela esperança. Amaldiçoou-o por seu conselho de<br />

que olhasse para cima. Amaldiçoou-o por lhe fazer acreditar.<br />

Picavam-lhe os olhos. Apontou com o garfo no prato e golpeou cegamente.<br />

– Maggie – Eliza arqueou as sobrancelhas com preocupação. – Está bem?<br />

– Estou…<br />

“Muito bem”.<br />

Supunha-se que tinha que responder isso. Não devia pedir na<strong>da</strong> nem admitir nenhum desconforto. Uma<br />

<strong>da</strong>ma tinha que comportar-se assim.<br />

Mas a mentira não pôde cruzar seus lábios. Estava cheia, transbor<strong>da</strong>ndo de emoção. E, de algum<br />

modo, em vez de murmurar uma desculpa e sair <strong>da</strong> sala, como tinha que ter feito, sentiu que lhe escapava<br />

o garfo <strong>da</strong> mão, cruzava a mesa e golpeava a parede de frente com um som metálico.<br />

– Não – repôs. – Não, não estou bem.<br />

– Minnie!<br />

– Não estou bem – repetiu. – Não estou bem. Como puderam me fazer isto?<br />

Eliza ficou em pé e deu um passo para ela.<br />

– Minnie, o que te ocorre?<br />

– Vocês me fizeram isto – repetiu a jovem. Tremia-lhe a voz por tantos anos de lágrimas não<br />

derrama<strong>da</strong>s. – As duas me fizeram isso.<br />

Converteste-me nesta… nesta…<br />

Encontrou a colher ao lado de seu prato e lançou também aquela parte de estanho contra a parede.<br />

– … neste na<strong>da</strong>! – terminou. – E agora estou presa nela e não posso encontrar a saí<strong>da</strong>.<br />

Eliza e Caroline trocaram um olhar doído.<br />

– Tenho tudo isto dentro de mim. Todos estes pensamentos, estes desejos, estas ambições.<br />

Caroline fez uma careta de dor ao ouvir isso.<br />

E não são na<strong>da</strong> – continuou Minnie. – Na<strong>da</strong>, na<strong>da</strong>, na<strong>da</strong>. Igual a mim.<br />

– Oh, Minnie! – disse Eliza, com a mesma gentileza que usaria um moço de estábulo com um cavalo<br />

que se encabritava. – O sinto muito. Prometi a sua mãe antes de morrer que cui<strong>da</strong>ria de ti. Se tivesse<br />

cumprido minha promessa, agora não se sentiria assim. Nunca teria sabido…


Não foram as palavras o que conseguiram; foi o tom quente e acalmado. Minnie sentiu como se<br />

evaporava sua fúria em resposta a esse tom. Em poucos minutos voltaria a sentir-se pláci<strong>da</strong>, e não ficaria<br />

na<strong>da</strong> que recor<strong>da</strong>sse aquela noite salvo alguns arranhões no papel pintado <strong>da</strong> parede, onde tinham<br />

deixado seu rastro os dentes do garfo.<br />

Mas ain<strong>da</strong> podia ouvir a voz do duque. Podia ain<strong>da</strong> ver seus olhos, tão azuis e brilhantes, e a<br />

intensi<strong>da</strong>de de sua expressão. Aquela carta podia não ser mais que um gesto nobre por parte de um<br />

homem que podia permitir-se aquelas coisas. Mas no que dizia havia ver<strong>da</strong>de suficiente para que Minnie<br />

não pudesse evitar agarrar-se a ela.<br />

“Isto poderia ter sido teu, se fosse outra pessoa”, atormentou-a sua lembrança.<br />

“Ele poderia ser teu se fosse você mesma. Mas não o é. Não o é”. Eliza se aproximou e lhe pôs uma<br />

mão no ombro.<br />

– Não deveria havê-lo sabido nunca – repetiu.<br />

E a lembrança <strong>da</strong> Minnie, a lembrança de sua au<strong>da</strong>z confiança, de seu entusiasmo juvenil, parecia tão<br />

longínquo que notou que assentia com a cabeça.<br />

“Você não é na<strong>da</strong>. Um na<strong>da</strong> não sente”.<br />

Eliza lhe apertou o ombro e Minnie se deixou cair de novo em sua cadeira.<br />

– Vamos, vamos – sussurrou sua tia avó. – Não é na<strong>da</strong>, não é na<strong>da</strong>.<br />

– Pois claro que não é na<strong>da</strong> – sussurrou Minnie, é quão único fui.<br />

Depois disso, foi impossível conter um grande rio de lágrimas.<br />

Chorou até que expurgou todos os desejos de seu coração… seu desejo nostálgico pelo passado que<br />

tinha perdido, entrelaçado com o futuro que não podia contemplar.<br />

– Possivelmente – disse sua tia avó, quando se acalmaram as lágrimas, – possivelmente deva tomar<br />

um descanso nesse assunto de… do matrimônio. Fica umas semanas na granja. O que te parece?<br />

Minnie não tinha umas semanas. Mas tinha a carta, a prova que necessitava. Podia pôr fim às<br />

suspeitas de Stevens sobre ela no dia seguinte.<br />

E por que, então, não queria fazê-lo?<br />

Negou com a cabeça.<br />

– Isso não aju<strong>da</strong>rá – disse. – Isso nunca aju<strong>da</strong>. Na<strong>da</strong> aju<strong>da</strong>.<br />

NA MESA DO HOTEL PODERIAM ter comido oito pessoas, caso tivesse sido necessário. Esse dia<br />

estava a mãe de Robert em uma ponta, e na outra, separado dela por seis pés de mogno bem encerado e<br />

polido, estava Robert. Parecia que todos os garfos de prata que possuía o hotel estavam naquela mesa, e<br />

também a maioria <strong>da</strong>s colheres. Ele poderia ter construído uma torre de relógio completa com todos<br />

aqueles talheres.<br />

A mãe de Robert depositou um desses garfos na mesa com muito cui<strong>da</strong>do.<br />

Robert sabia que era seu modo de enviar um sinal. Tinha mu<strong>da</strong>do a <strong>da</strong>ta e tinha ido vê-lo sabendo que<br />

Sebastian e Oliver estavam na ci<strong>da</strong>de. Isso implicava que aquilo não era somente uma refeição, a não ser


um parlamento. Duas partes independentes e levemente hostis que se reuniam para acor<strong>da</strong>r as tarifas entre<br />

suas nações.<br />

Como sempre, ela não tinha nem um fio de cabelo fora de seu lugar. Ia vesti<strong>da</strong> ao que certamente seria<br />

a última mo<strong>da</strong>, embora Robert não se incomo<strong>da</strong>va em segui-la. Usava um vestido azul escuro, com a<br />

prega bor<strong>da</strong><strong>da</strong> com um desenho branco e ouro de duas polega<strong>da</strong>s de largura. Sua cintura era fina, mas não<br />

muito aperta<strong>da</strong>, e um xale de ren<strong>da</strong> negro lhe cobria os ombros.<br />

Sempre tinha sido uma mulher imponente, como uma torre de castelo longínqua que espreitasse no<br />

horizonte. E sempre se mostrou distante, inclusive quando o visitava quando menino.<br />

As duas jar<strong>da</strong>s que havia nesse momento entre eles poderiam ter sido um estádio. Desde que ele<br />

alcançou a maiori<strong>da</strong>de, tinham obtido uma espécie de confortável convívio. Quando ambos coincidiam na<br />

ci<strong>da</strong>de, jantavam juntos, nunca mais de uma vez, e não falavam de na<strong>da</strong>. Das obras benéficas dela, do<br />

trabalho dele no parlamento… Tudo o que se diziam nesses jantares poderiam havê-lo sabido lendo as<br />

páginas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Ele não tinha expectativas com ela e ela já não o decepcionava.<br />

Mas que ela fosse vê-lo… aquilo era novo.<br />

Bem, Clermont – a duquesa deixou a colher e um servente retirou sua tigela de sopa. Ela tinha a vista<br />

crava<strong>da</strong> em Robert. Olhava-o com expressão afável e cortês. Na<strong>da</strong> fora do comum. – Suponho que sabe<br />

por que vim.<br />

– Não – respondeu ele. – Não sei.<br />

Ela arqueou uma sobrancelha.<br />

– Não o recor<strong>da</strong>? A última vez que falamos, mencionou que pensava tomar uma esposa.<br />

A última vez que tinham falado tinha sido dois meses atrás. Robert tinha assentido quando ela havia<br />

dito que um homem que se aproximava dos trinta deveria pensar no matrimônio. Em seu momento lhe<br />

tinha parecido um comentário inócuo. Um tema de conversa sem complicações.<br />

– Você concordou em cumprir com seu dever – disse ela com calma.<br />

– Disse que me casaria – recordou ele. – Acredito que não disse nenhuma palavra sobre o dever.<br />

Lhe palpitaram as aletas do nariz e apertou os lábios, como se a ideia de que o matrimônio pudesse<br />

ser algo mais que um dever lhe desse vontade de espirrar. Mas não disse na<strong>da</strong> até que lhes serviram o<br />

seguinte prato. Então esperou até que Robert tomasse uma denta<strong>da</strong>, e não pudesse protestar, antes de<br />

falar:<br />

– Se tivermos que abor<strong>da</strong>r o tema como é devido, poderia levar anos. Tais assuntos não se podem<br />

tratar de um modo cavalheiresco. Terá que investigar antecedentes, obter informação – pegou um garfo. –<br />

Devemos fazer listas. Eu já comecei três.<br />

Robert tragou a denta<strong>da</strong> de pescado apesar de que tinha a garganta seca. Embora a mulher senta<strong>da</strong><br />

frente a ele fosse sua mãe, era uma estranha. Quando era menino a tinha visto muito pouco. Em outro<br />

tempo tinha querido que ela o cui<strong>da</strong>sse. Tinha-o desejado desespera<strong>da</strong>mente; tinha inventado uma<br />

desculpa atrás de outra para justificar sua ausência. Mas ela tinha deixado dolorosamente claro que suas<br />

desculpas eram somente isso e que não queria ter na<strong>da</strong> a ver com ele.<br />

– Perdão – disse Robert, consciente de que um manto de silêncio cobria a sala desde que ela tinha<br />

falado. – O que quer dizer com o de que devemos fazer listas? Quais listas devemos fazer?


– Você não tem do que preocupar-se – ela fez um movimento elegante com a mão. – Posso te mostrar<br />

o que tenho até agora. Organizei os nomes que recolhi em três categorias: filhas de nobres, herdeiras e<br />

outras – aspirou o ar. – Com um pouco de trabalho de minha parte, acredito que poderei evitar a<br />

necessi<strong>da</strong>de de considerar qualquer mulher <strong>da</strong> categoria “outras”.<br />

Vinte e oito anos de quase indiferença por parte <strong>da</strong>quela mulher e de repente saía com aquilo?<br />

– Ou seja, que quando diz “devemos” – comentou Robert, – em reali<strong>da</strong>de se refere a ti mesma.<br />

– Bom… – ela se mostrou surpreendi<strong>da</strong> pela pergunta. – Não é preciso que pareça tão decepcionado,<br />

Clermont. É obvio que se terão em conta seus desejos.<br />

– Terá em conta meus desejos – repetiu ele. – Que generosi<strong>da</strong>de! E que curioso modo de dizer essa<br />

frase tendo em conta que aqui não há ninguém mais! Posso perguntar pelo nome <strong>da</strong> pessoa que tão<br />

amavelmente se advém a ter em conta meus desejos? Depois de tudo, apenas se trata de meu matrimônio.<br />

Sua mãe lambeu o lábio inferior e guardou silêncio. Fixou a vista no prato, mas apertou os dedos em<br />

torno do garfo.<br />

– Obrigado, duquesa – comentou Robert, – mas não necessito sua aju<strong>da</strong> neste assunto.<br />

– Clermont – a voz dela continha um deixe de exasperação. – Pode ser que seja seu matrimônio, mas<br />

sua escolha me afetará – ergueu a cabeça com os olhos muito abertos. – Se seu matrimônio for tema de<br />

falatórios, sofreremos todos os relacionados contigo. Tenho déca<strong>da</strong>s de experiência com a boa<br />

socie<strong>da</strong>de. Seria estúpido não aproveitá-la.<br />

Estava senta<strong>da</strong> muito rígi<strong>da</strong>. Pequenas manchas de rosa apareciam em suas bochechas. Sem dúvi<strong>da</strong> se<br />

<strong>da</strong>va conta de que, quando ele se casasse, ela se converteria na duquesa viúva de Clermont, e<br />

provavelmente aborrecia ceder seu posto na socie<strong>da</strong>de a uma moça que não a respeitasse como queria.<br />

– Não te ofen<strong>da</strong>, mãe – grunhiu Robert, – mas não te considero uma perita em matrimônios. Para ser<br />

uma perita, teria tido que ter um.<br />

Ela apertou os lábios.<br />

– Insultos – aspirou ar– Ca<strong>da</strong> dia te parece mais a seu pai. Considere minha oferta, Clermont, e<br />

falaremos quando tiver tido tempo para refletir. Não pode te dedicar a passear por Londres até que veja<br />

uma candi<strong>da</strong>ta cujo aspecto você goste. Esta é uma <strong>da</strong>s decisões mais importantes de sua vi<strong>da</strong>.<br />

Sua esposa compartilhará o resto de seus dias.<br />

Não necessariamente – a contradisse Robert. – Sempre pode partir. Olhou-a nos olhos através <strong>da</strong><br />

mesa. – Se decidisse fazer isso, direi que fale contigo. Acredito que tem experiência nessa frente.<br />

Lhe palpitaram as aletas do nariz. Robert quase pensou que ia golpear o chão com o pé e caminhar<br />

por ali como um touro zangado. Mas a duquesa se limitou a baixar a vista e comer um pouco de comi<strong>da</strong>.<br />

Havia uma razão para que sempre tivessem falado de coisas superficiais. Era impossível falar a sério<br />

sem amargura. Não tinham um passado comum no que apoiar-se, quase não tinham conhecidos comuns.<br />

Sua mãe tinha passado mais tempo de visita com a mãe de Sebastian, irmã de seu marido, que vivendo na<br />

mesma casa que Robert quando este era menino.<br />

E tinha sido escolha dela. Ele poderia havê-la perdoado em outro tempo. Tinha havido um tempo no<br />

qual teria perdoado tudo. Sabendo o que sabia de seu pai, parecia injusto acusá-la por havê-lo deixado.<br />

Mas quando deixou a seu marido, tinha abandonado também a seu filho. Por muito que ele o tinha pedido,<br />

ela nunca tinha olhado para trás.


– Ao menos – disse ao fim a duquesa, com certa rigidez, – ao menos pode utilizar minhas listas.<br />

– Não, Excelência – respondeu Robert com voz tão fria como se sentia ele. – Acredito que não<br />

necessitaremos suas listas.<br />

Ela piscou. Olhou sua comi<strong>da</strong>.<br />

– Como assim necessitaremos? – perguntou. – A quem te refere com esse plural?<br />

– Não lhe disse? A Sebastian Malheur – Robert sorriu. – Por que acha que lhe pedi que venha?<br />

Ela abriu muito os olhos.<br />

– Esse homem! – vaiou. – Já me chamou e… – vaiou com desgosto. – Não tem nem o mínimo sentido<br />

do decoro. Parece-me bem que te relacione com ele por leal<strong>da</strong>de familiar, mas que o trate com<br />

intimi<strong>da</strong>de…<br />

– Não tema, Oliver Marshall também está aqui e ele…<br />

– Essa é a companhia que frequenta? Um infame e um bastardo?<br />

Robert quase ficou em pé de um salto com fúria. Mas gritar nunca o tinha levado a nenhuma parte.<br />

Exalou devagar e esperou até que recuperou a calma gela<strong>da</strong> de antes.<br />

– Ah! – exclamou. – Insultos.<br />

Ela fez uma careta de desprezo.<br />

– Parece que nos parecemos apesar de tudo – continuou ele. – Espero que não te horrorize muito esse<br />

descobrimento.<br />

Ela não parecia zanga<strong>da</strong>. De fato, em seus lábios se vislumbrou uma ameaça de sorriso, o primeiro<br />

que via Robert desde sua chega<strong>da</strong>.<br />

– Já sabia – respondeu. – Por que crê que estou aqui?


CAPÍTULO 11<br />

– ONDE ESTIVESTE ESTES últimos dias? – perguntou Lydia. – Te enviei uma nota faz duas noites,<br />

mas suas tias me responderam que estava doente.<br />

Minnie olhou para sua amiga. Lydia sorria e não parecia preocupa<strong>da</strong>. Pegou Maggie pelo braço e a<br />

levou até a parte traseira <strong>da</strong> casa dos Charingford.<br />

– Não estava doente.<br />

– Já sei, parva – Lydia lhe deu um tapinha na mão. – Se tivesse sido grave, teria insistido em que me<br />

dissessem. E se não tivesse sido grave, teria escrito você mesma. Onde estava?<br />

Minnie olhou a seu redor. Não havia serventes por perto; ninguém que ouvisse o que diziam. Apenas a<br />

parede com painéis de madeira do corredor.<br />

– Não posso lhe contar tudo, mas neste momento estou meti<strong>da</strong> em outra estratégia.<br />

Lydia empalideceu.<br />

– Na<strong>da</strong> disso – se apressou a dizer Minnie. – Isso nunca mais.<br />

– Oh, Deus! Assustaste-me. Olhe minhas mãos – Lydia as estendeu. Estavam tremendo.<br />

– Se tivesse a ver contigo, haveria dito antes de qualquer coisa.<br />

Dessa vez… – fez uma careta– é um segredo de outra pessoa.<br />

Lydia aceitou aquilo com um leve encolhimento de ombros e abriu a porta <strong>da</strong> sala dos fundos. Minnie<br />

viu com surpresa que estava ocupa<strong>da</strong>. Ocupa<strong>da</strong> e muito, muito quente.<br />

Três faxineiras estavam senta<strong>da</strong>s diante <strong>da</strong> chaminé, onde se elevavam alegres chama laranjas<br />

bastante altas. As faxineiras amassavam papéis e os jogavam ao fogo um por um, para que não se<br />

descontrolassem as chamas. O ar cheirava a papel queimado.<br />

– O que é isso? – perguntou Minnie.<br />

– Oh! Não ouviste? – respondeu Lydia. – Um grupo de radicais está deixando santinhos por to<strong>da</strong> a<br />

ci<strong>da</strong>de. Deixaram um montão diante <strong>da</strong> camisaria de papai. Teve que arrancar-lhe ele mesmo e os<br />

operários. Passou a manhã tentando retirar todos.<br />

Minnie olhou para sua amiga.<br />

– Tão horríveis são?<br />

Lydia sorriu com picardia e se aproximou para pegar um <strong>da</strong>s mãos de uma <strong>da</strong>s faxineiras.<br />

– Olha-o por ti mesma.<br />

Minnie olhou o papel que tinha diante. Começou a ler…<br />

E se topou com um parágrafo que fez com que levasse uma mão à boca.<br />

… Deixar de trabalhar é uma espécie de ataque à descoberta. Primeiro deem voz a seus problemas,<br />

gritem com o volume de mil gargantas. Segundo, esvaziem as fábricas em que trabalham, deixando


assim que se encolham os bolsos de seus amos em um contraponto veemente. Sede conscientes de onde<br />

estão e do espaço que deixam para trás.<br />

– Está falando de uma greve – disse Lydia. – Ver<strong>da</strong>de?<br />

“Deixar de trabalhar é uma espécie de ataque à descoberta”. Minnie sentiu que lhe gelava o sangue<br />

nas veias.<br />

– Possivelmente – estava um pouco tonta. – Ain<strong>da</strong> há um longo caminho entre os santinhos e a<br />

organização, e entre a organização e o seguimento – apoiou uma mão na parede para apoiar-se.<br />

“Sede conscientes de onde estão e do espaço que deixam para trás”.<br />

Aquelas palavras eram familiares… muito familiares. A última frase era quase uma entrevista direta<br />

de “Sobre xadrez”, de Tappitt, um livro pouco conhecido. Ela o tinha comentado ao duque de Clermont<br />

sem <strong>da</strong>r importância a suas palavras. Depois de tudo, ele tinha confessado que ignorava o jogo.<br />

Ela também tinha usado essas palavras antes. Havia dito algo quase idêntico á Stevens uns meses<br />

atrás, quando falavam <strong>da</strong> bomba de água do Harley. Isso não tinha na<strong>da</strong> de estranho. As palavras <strong>da</strong><br />

estratégia do xadrez formavam parte de seu vocabulário desde que tinha memória. Sua primeira<br />

lembrança era estar senta<strong>da</strong> ante um tabuleiro de xadrez com seu pai em frente.<br />

– Isto – lhe havia dito ele– é um ataque à descoberta. Vê? Um movimento, duas ameaças. Assinala-me<br />

isso?<br />

– Se não fosse ver<strong>da</strong>de – disse Lydia, – meu pai não teria ficado tão furioso. Mas não pode permitirse<br />

que pare a camisaria.<br />

– Entendo – murmurou Minnie.<br />

Lydia despediu as faxineiras com um gesto.<br />

– Nós terminamos isso – disse. – Se retirem.<br />

As donzelas saíram <strong>da</strong> sala. Lydia se sentou ante o fogo e começou a jogar panfletos a intervalos<br />

regulares.<br />

Minnie respirou em silêncio. Melhor que os queimassem.<br />

Possivelmente ninguém os teria visto. O duque tinha usado suas palavras.<br />

– Lydia, viu o Stevens? – perguntou.<br />

– Sim. Hoje. Depois que distribuíram isto, meu pai e ele estiveram horas trancados. Depois de tudo,<br />

se houver uma greve, terá que ser Stevens que a pare. Discutiram por algo e Stevens se foi. Meu pai me<br />

disse que ia a Manchester para investigar algo, embora não sei o que poderia averiguar ali de nossos<br />

operários. Possivelmente que os operários se comunicam entre eles?<br />

Não. Stevens tinha lido o santinho. Tinha recor<strong>da</strong>do as palavras que lhe tinha mencionado sobre o<br />

ataque à descoberta. E fazendo honra a sua palavra, tinha ido a Manchester para investigar a vi<strong>da</strong> dela<br />

porque a acreditava culpa<strong>da</strong>. Minnie se sentia enjoa<strong>da</strong>.<br />

– Crê que meu pai paga suficiente a seus operários? Stevens diz que, se ceder uma vez a suas<br />

exigências, ca<strong>da</strong> vez serão menos razoáveis. Mas eu acredito que poderia te ocorrer um modo de impedir<br />

isso. Como fez com o Comitê de Higiene dos Operários.<br />

Minnie não podia fazer na<strong>da</strong> sobre tema. Sacudiu a cabeça para limpar seus medos.<br />

– Não sei – disse. – Mas Stevens e seu pai… Lydia ergueu os olhos ao céu.


– Não quero falar de Stevens – baixou a voz. Olhou-a. – Crê que se inteirou do que passou há alguns<br />

anos? – perguntou, em direta contradição com sua declaração anterior. – Que esses rumores sobre seu<br />

passado são porque alguém lhe falou de mim? Nós duas fomos a Cornwall. Possivelmente…<br />

possivelmente descobriu algo ali.<br />

– Estou segura que não – retrucou Minnie.<br />

– Mas como…?<br />

– Sei por que me falou de suas provas – disse Minnie. – Não tem na<strong>da</strong> sobre ti. São to<strong>da</strong>s tolices,<br />

algo sobre minha mãe não estar casa<strong>da</strong>, algum rumor que ouviu de uma velha que está perdendo a<br />

memória ao final de seus dias.<br />

Lydia suspirou.<br />

Mas a Minnie isso não tranquilizou. Stevens tinha ido procurar notícias delas. Tinha a impressão de<br />

que a sala estava envolta em partes de algodão, em nuvens e nuvens de algodão que a rodeavam. Na<br />

distância ouvia gritos apagados. Os ruídos de uma grande multidão, a pisca<strong>da</strong> quando o sol brilhante<br />

tragava sua visão…<br />

– Minnie, está bem?<br />

A voz preocupa<strong>da</strong> de Lydia a devolveu ao presente. Não havia gritos nem distúrbios. Não havia<br />

multidão.<br />

Ao menos ain<strong>da</strong>. E possivelmente…<br />

– Estou bem – disse. – Somente… pensava.<br />

Stevens demoraria uma semana ao menos em descobrir a ver<strong>da</strong>de… caso soubesse vê-la quando a<br />

tivesse diante dele. E ela tinha a carta do duque. Isso, junto com todo o resto que tinha descoberto,<br />

provaria que ela não tinha estado envolvi<strong>da</strong>.<br />

Lydia a observava com atenção.<br />

– Do que queria me falar?<br />

Minnie suspirou. Olhou a sua amiga.<br />

– O outro dia na Comissão de Higiene dos Operários, o doutor Grantham perguntou por ti.<br />

Lydia ergueu um pouco o nariz.<br />

– E o que?<br />

– Que… queria verte – embora talvez o houvesse dito apenas para incomo<strong>da</strong>r ao Stevens. – É jovem<br />

e atrativo. Cai-me muito bem.<br />

– A mim não – retrucou Lydia. – Ele trabalhava com o doutor Parwine quando ocorreu aquilo. E<br />

agora me olha com cumplici<strong>da</strong>de.<br />

– Olha a todo mundo assim – replicou Minnie. – Acredito que não pode evitá-lo.<br />

– E é muito sarcástico.<br />

– É sarcástico com todo mundo.<br />

Lydia afastou a vista.<br />

– Eu não gosto de recor<strong>da</strong>r e ele me faz recor<strong>da</strong>r. Ca<strong>da</strong> vez que ri para mim, que me olha, julga-me<br />

por minha frivoli<strong>da</strong>de. Não suporto estar perto dele.


– Não tinha nem ideia – Minnie se moveu para sentar-se ao lado de sua amiga.<br />

– Minha frivoli<strong>da</strong>de já me deu muito trabalho – as mãos de Lydia tremiam. – Como se atreve a me<br />

julgar por ela?<br />

Minnie sabia muito bem a ver<strong>da</strong>de que escondia a afirmação de sua amiga.<br />

– Sei que às vezes crê que não sou séria. Que sonho muito. Que deveria ser mais racional – Lydia<br />

suspirou.<br />

– Eu não acho isso.<br />

– Apenas as tragédias são grandes – comentou Lydia. – A melancolia é sabedoria. O sofrimento é<br />

força.<br />

– Lydia…<br />

– Alguma pessoas me considerariam fraca porque fui seduzi<strong>da</strong> por um homem mais velho.<br />

Minnie olhou a seu redor, mas não havia ninguém mais na sala e sua amiga falava em voz baixa.<br />

– Porque não sabia que estava casado. Porque não entendi bem o que estava passando. Algumas<br />

pessoas me considerariam fraca porque te pedi aju<strong>da</strong>.<br />

– Eu não.<br />

Lydia tinha pedido aju<strong>da</strong> a Minnie e esta tinha pensado em tudo. Como afastá-la <strong>da</strong> vista do público<br />

durante a gravidez, como fazer com que a viagem parecesse respeitável para que ninguém falasse. Tinha<br />

sido questão de estratégia, e naquele momento, Minnie tinha acolhido com alegria ter algo que fazer.<br />

Lydia jogou um punhado de santinhos no fogo e esperou até que se queimassem.<br />

– Algumas pessoas pensariam que era fraca porque chorei quando tive o aborto. E pensariam que<br />

você foi boba por me abraçar e me dizer que tudo se arrumaria. Mas, sobretudo, me tomariam por<br />

estúpi<strong>da</strong> porque aprendi a sorrir de novo. Pensariam que você não vale na<strong>da</strong> porque não usa se<strong>da</strong> nem<br />

laços e porque terão que escutar com atenção para captar o que diz. E essas pessoas não sabem na<strong>da</strong>.<br />

Minnie recordou as palavras do duque de Clermont.<br />

“Vê-a alguém, senhorita Pursling?”.<br />

“Sim”, queria responder. “Sim, alguém me vê”.<br />

– Apenas por uma vez, eu gostaria que todos lhe vissem como eu<br />

– disse Lydia.<br />

Minnie moveu a cabeça e abraçou a si mesmo.<br />

– Não, não. Não quero que me olhem. Não posso suportar que me olhem.<br />

– Bom, possivelmente todos não – Lydia sorriu com astúcia. – Mas tudo bem…?<br />

Minnie conteve o fôlego.<br />

– Não pronuncie seu nome.<br />

– O duque de Clermont – terminou Lydia. – Quero que todos aqui saibam o mal que lhe julgaram ao<br />

imaginar cala<strong>da</strong> e obediente. Quero que enten<strong>da</strong>m o que eu sei tão bem, que tem um coração amoroso e<br />

uma mente inteligente.<br />

Minnie afastou a vista.


– Isso apenas ocorre nos contos de fa<strong>da</strong>s. Às garotas de ver<strong>da</strong>de ficam melhores com um bom dote e<br />

o cabelo loiro.<br />

– E o que mais odeio é que não podemos mostrar provas de quão maravilhosa é. Mas sigo pensando<br />

que a ver<strong>da</strong>de se saberá algum dia. E esse dia, todos lhe conhecerão como eu.<br />

– E crê que gostariam do que veriam?<br />

Lydia assentiu com firmeza.<br />

– Estou segura de que sim.<br />

O otimismo de Lydia não tinha na<strong>da</strong> de ingênuo. O tinha ganhado limpamente, e nem sequer Minnie<br />

podia privá-la dele. Que estranho que Lydia pudesse estar tão segura de sua visão do futuro e ela não<br />

pudesse ver na<strong>da</strong>!<br />

Voltou a cabeça.<br />

– Pois há algo mais que devo te dizer. O doutor Grantham queria que te convi<strong>da</strong>sse para distribuir os<br />

panfletos com Marybeth Peters e comigo.<br />

Lydia olhou o papel enrugado que acabava de jogar ao fogo.<br />

– Esses panfletos não – murmurou Minnie com um sorriso pouco sincero. – São aqueles ain<strong>da</strong> mais<br />

aborrecidos, sobre varicela e desinfetante.<br />

– E o doutor Grantham estará presente?<br />

– Não – Minnie lhe dedicou outro sorriso pouco sincero. – Essa é a parte que te resultará<br />

interessante. Outra pessoa se ofereceu em seu lugar, e jamais adivinharia quem.<br />

– Tola – Lydia lhe apertou a mão. – Já sei. Foi como um conto de fa<strong>da</strong>s? – Minnie retorceu as mãos<br />

com angustia… – Espera, você nunca diria isso. Minnie beliscando a ponta do nariz enquanto esses<br />

homens idiotas discutiam com ela perguntando-se como conseguir com que todos fizessem o que queria –<br />

sorriu. – E de repente o príncipe de Gales entrou na sala.<br />

Minnie soltou uma gargalha<strong>da</strong>.<br />

– Oh, muito bem – disse Lydia. – Suponho que isso seria pouco provável. Além disso, está casado. E<br />

eu não gostaria de imaginá-lo sendo infiel à princesa Alexandra. Assim vou me decidir pelo duque de<br />

Clermont. Entrou, jogou uma olha<strong>da</strong> a seus seios e te reclamou para si.<br />

– Bom…<br />

Lydia a apontou com o dedo.<br />

– Sabia. Deveria ver como ele lhe observa.<br />

Minnie tentou não fazê-lo, mas a lembrança foi a ela sem que tivesse que esforçar-se. Ruborizou-se.<br />

– Que não lhe coloquem coisas na cabeça – advertiu.<br />

E o que tinha se a olhava o duque? Isso não significava na<strong>da</strong>. Falava sem pensar e não considerava as<br />

consequências de seus atos. Provavelmente seus olhares tampouco queriam dizer na<strong>da</strong>.<br />

– Apenas estava sendo… – Minnie se interrompeu. Não sabia como terminar a frase. Cavalheiresco?<br />

Irritante?<br />

Inclinava-se pelo último, tendo em conta que tinha usado as palavras dela tal qual nos santinhos. Mas<br />

recor<strong>da</strong>va o olhar intenso dele depois do último encontro <strong>da</strong> Comissão de Higiene dos Operários. E


também seu sorriso surpreendido quando lhe havia dito que gostava de seus amigos. Um sorriso tão<br />

luminoso como um amanhecer.<br />

– Enviou uma nota – disse. – Sugere que nos vejamos amanhã pela tarde. Estaremos, Marybeth Peters,<br />

eu…<br />

– E o Duque de Clermont – Lydia sorriu. – Tenho um bom pressentimento com isto, Minnie.<br />

“Olhe para cima”.<br />

Minnie se abraçou o corpo.<br />

– Não. Não o tenha. Eu não posso pressentir isso.<br />

Lydia moveu a cabeça.<br />

– Pois claro que não. Por isso o faço eu por ti.


CAPÍTULO 12<br />

NO DIA SEGUINTE, a Minnie não custou nenhum esforço manobrar para ter uma conversa priva<strong>da</strong><br />

com o Duque de Clermont. Depois de tudo, os pôsteres se colocavam melhor em duplas, e assim que<br />

estabeleceram isso, Lydia se pegou a Marybeth Peters e cruzaram a rua com os papéis e a massa de<br />

pregar na mão, deixando sozinhos Minnie e o duque.<br />

Ain<strong>da</strong> que não totalmente. Em primeiro lugar, estavam em um lugar público. E Lydia e Marybeth se<br />

achavam a pouca distância, na outra calça<strong>da</strong> de Haymarket. As pessoas passavam pelas ruas. Um homem<br />

vendia castanhas em uma esquina; uns moços tinham feito fogo no chão e o alimentavam com pe<strong>da</strong>ços de<br />

lixo.<br />

E Minnie não sabia o que dizer. O que se propunha ele? Tinha-lhe <strong>da</strong>do a carta, havia-lhe dito que a<br />

desejava e ela sentia ain<strong>da</strong> calafrios na coluna quando recor<strong>da</strong>va o olhar dele ao lhe dizer aquelas<br />

palavras. E depois tinha usado as palavras dela em um panfleto e escurecido assim a nuvem de suspeita<br />

que a envolvia.<br />

Em vez de tentar esclarecer tudo aquilo, entregou-lhe o recipiente com a massa de colar.<br />

– O que você sabe de trabalho manual?<br />

– Humm – lhe brilharam os olhos. – Tenho lido algo sobre isso. Percorri as fábricas que herdei de<br />

meu avô e falei com todos os operários que pude quando tive ocasião.<br />

– Mas nunca o fez.<br />

– Não… em reali<strong>da</strong>de, não.<br />

Minnie lhe entregou um bastão de madeira.<br />

– Parabéns – disse. – Está a ponto de rebaixar-se a novas profundi<strong>da</strong>des.<br />

– Estou desejando isso – ele, divertido, tomou a vasilha de cerâmica e a seguiu pela calça<strong>da</strong>. Ela se<br />

deteve na primeira esquina e segurou um folheto em alto.<br />

– O que faço? – perguntou ele.<br />

– Você põe a massa de gru<strong>da</strong>r no folheto e eu o prego na parede.<br />

– Simples assim? – destampou a jarra, molhou o bastão nele e aplicou desajeita<strong>da</strong>mente a substância<br />

branca no folheto que entregava Minnie.<br />

– Este é um grude muito sujo – ela se voltou, pregou o papel no tijolo e seguiu avançando.<br />

Acreditava que ele não se propôs a lhe causar problemas. Olhava-a como se não tivesse ocorrido<br />

na<strong>da</strong>. E para ele não tinha mu<strong>da</strong>do na<strong>da</strong>. Sorriram-se no trem e lhe havia dito que gostava dos seus<br />

amigos.<br />

Quando se voltou, pegou-o sorrindo. Seus sorrisos eram como relâmpagos na noite, rápidos e fugazes;<br />

iluminavam to<strong>da</strong> a paisagem por breves momentos e voltavam a dissipar-se. Minnie se lembrou que esses<br />

sorrisos podiam parecer bonitos, mas podiam deixar montões de escombros fumegantes na sua trilha


– E então – disse ele a suas costas, com voz baixa e diverti<strong>da</strong>. – Conhece o ditado: “Não deseje na<strong>da</strong><br />

e não pecará”?<br />

Ela piscou.<br />

– Jogos de palavras – disse sem voltar-se. – São a forma mais vulgar de humor.<br />

– Se os disser um duque, não.<br />

Ela ergueu um folheto para que ele o empastelasse, pregou-o na parede, apertando-o um momento<br />

para assegurar-se de que se aderia.<br />

– Você é um duque? – perguntou. – Eu pensava que era um homem morto.<br />

Sua Excelência o Duque de Clermont não deu amostras de havê-la ouvido. Sorriu.<br />

– Passamos a seguinte esquina? A senhorita Peters e a senhorita Charingford nos adiantaram – a olhou<br />

apertando os olhos. – Empastelam melhor que nós.<br />

Minnie se negava a rir com ele e fazer pia<strong>da</strong>s sobre a massa.<br />

Apertou os lábios e caminhou rua abaixo.<br />

Ele a seguiu.<br />

– Acontece algo? Leu minha carta?<br />

– Sim. Li tudo o que escreveu. E estou furiosa com você.<br />

Vamos, vamos – brigou ele. – Não seja melindrosa – soltou um risinho, que terminou assim que ela o<br />

olhou e ele viu sua expressão. O sorriso abandonou sua cara. – Oh. Está muito zanga<strong>da</strong>. Fiz algo errado?<br />

Se tinha feito algo errado? Minnie sentiu desejos de lhe bater.<br />

– Sua última obra de arte. Não posso acreditar no que pôs.<br />

Ele enrugou o nariz.<br />

– Por quê? Porque uma greve prejudicaria a seus amigos? Porque não lhe importa as condições nas<br />

quais trabalham os operários? Ou acredita que não deveria escrever isso, que deveria guar<strong>da</strong>r silêncio,<br />

não dizer o que penso…?<br />

– Oh, pelo amor de Deus! – exclamou ela exaspera<strong>da</strong>. – Se pensasse que não deveria escrever esses<br />

condenados santinhos, já teria mostrado sua carta aos magistrados <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Às vezes eu também quero<br />

gritar tão alto como posso sem que me importe quem me ouça. Estou zanga<strong>da</strong> porque você usou minhas<br />

palavras em sua última aventura. Minhas palavras!<br />

Ele piscou.<br />

– Oh! – mordeu o lábio inferior. – Por isso. De certo modo, suponho que é certo. E por que não ia<br />

fazê-lo? Suas palavras eram boas.<br />

– Não diga tolices. Não me ouviu falar sobre Stevens? Já me acusou de ser uma radical. Por que usou<br />

uma frase que tinha ouvido de mim? Não compreende quão difícil será minha vi<strong>da</strong> se suspeitarem de<br />

mim?<br />

As ruas estavam tranquilas, pois os operários se achavam nas fábricas até que soasse o apito <strong>da</strong><br />

tarde. Havia algumas mulheres nas ruas, que iam as lojas, ou lavadeiras com um saco de roupas no<br />

ombro. O murmúrio rítmico de máquinas a umas ruas de distância fazia com que as ruas parecessem mais<br />

tranquilas, pois cobria todos os outros ruídos como uma manta.<br />

– Eu estou aterroriza<strong>da</strong> – disse ela. – E você não tem na<strong>da</strong> que temer. Não é justo.


Na calça<strong>da</strong> em frente, a dez jar<strong>da</strong>s mais acima, Lydia e Marybeth pregavam panfletos de um modo<br />

metódico.<br />

– E bem? – perguntou Minnie, agitando um folheto diante dele. – Não perca tempo. Necessito grude.<br />

– Senhorita Pursling – disse ele formalmente, – peço-lhe desculpas.<br />

Pôs roupa mais escura e áspera para a ocasião. Calças de lã cinza e levita combinando, de tecido<br />

mais áspero, mas de corte perfeito. Usava um cachecol marrom suave ao redor do pescoço. Com esse<br />

traje não parecia um duque, a não ser um patife loiro, peralta e um pouco cínico. O tipo de homem que<br />

tentaria a uma mulher para que passeasse com ele de noite e que lhe <strong>da</strong>ria goles de álcool forte de sua<br />

cigarreira. Seria muito fácil acabar enre<strong>da</strong><strong>da</strong> com ele.<br />

Parecia sincero e ela queria acreditá-lo.<br />

– Sente me haver posto em perigo?<br />

Seu sorriso envergonhado também parecia sincero. Olhou-a, introduziu o bastão na jarra e o tirou com<br />

um grande emplastro de betume de massa na ponta.<br />

– Não – suas palavras soavam envergonha<strong>da</strong>s, mas lhe brilhavam os olhos.<br />

– Isso não. Isto.<br />

Lançou o bastão para o meio do corpo dela. Minnie quase não teve tempo de baixar o panfleto para<br />

defender-se. A bor<strong>da</strong> golpeou o emplastro de betume de massa voadora, que se quebrou no ar e lançou<br />

massa em to<strong>da</strong>s as direções.<br />

Ela o olhou com increduli<strong>da</strong>de.<br />

– Não sabia que permitiam que meninos de doze anos se sentassem na Câmara dos Lordes – comentou<br />

com voz gela<strong>da</strong>.<br />

Piscou-lhe, voltou-se para as mulheres <strong>da</strong> calça<strong>da</strong> em frente e fez gestos com o braço.<br />

– Estaremos na bomba de água do final desse beco – disse. – Tivemos um acidente com a massa.<br />

– Um acidente com a massa? – Minnie soprou. – O que tivemos foi um ataque.<br />

Mas ele já a tinha tomado pelo braço. Levou-a por um beco entre dois edifícios até um pátio lôbrego<br />

onde havia uma bomba de água. Ele tirou a jaqueta antes de manobrar a manivela <strong>da</strong> bomba de água; ela<br />

podia ver a forma de seus músculos através <strong>da</strong>s mangas. Estava aterroriza<strong>da</strong> e ele se dedicava a<br />

presumir.<br />

– E que conste que tenho vinte e oito anos, não doze – disse, sem deixar de trabalhar.<br />

– Felici<strong>da</strong>des.<br />

– Certamente. Por fim a tenho a sós.<br />

Sorriu de novo e ela se sentiu golpea<strong>da</strong> pelo raio. Afastou a vista. A bomba soltou um assobio oco, o<br />

que implicava que a água estava a ponto de chegar.<br />

É um assunto sujo paquerar com você.<br />

Enquanto falava, a água saiu pela boca <strong>da</strong> bomba. Ele a apanhou no balde que tinha preso à bomba de<br />

água.<br />

– E bem? – arqueou uma sobrancelha. – Você queria gritar comigo e me ocorreu lhe <strong>da</strong>r ocasião de<br />

fazê-lo sem causar uma cena. Adiante.


– Por que utilizou minhas palavras? Fez-o de propósito para pôr em perigo minha reputação? Pensou<br />

que, se me jogavam a culpa, você ficaria livre de to<strong>da</strong> censura?<br />

Ele negou com a cabeça.<br />

– Teria que ter sabido que não gritaria – encolheu os ombros; tirou o cachecol do pescoço e o molhou<br />

no balde. – Respondendo à sua pergunta, não, não queria na<strong>da</strong> disso. Talvez tenha sido um pouco<br />

desconsiderado, mas não o fiz com malícia.<br />

Para surpresa de Minnie, ajoelhou-se diante dela e lhe limpou uma mancha de massa com o cachecol.<br />

– Foi simplesmente isto – ele parecia ter sua atenção fixa na massa. – Você me causou uma grande<br />

impressão. Se pode reconhecer suas palavras no que escrevi, é porque meus pensamentos versavam<br />

sobre você – ergueu a vista para ela. – Me ocorre frequentemente.<br />

Maggie pensou que não era justo que ele pudesse esvaziar seu coração <strong>da</strong> fúria e seus pulmões de ar<br />

com apenas umas palavras. Lhe sustentou o olhar.<br />

Não era justo. Não estava certo. Ele estava ajoelhado diante dela e, entretanto, era ela a que caía sob<br />

seu enfeitiço.<br />

Afastou a vista.<br />

– Isso não mu<strong>da</strong> na<strong>da</strong>. De todos os modos me pôs em uma posição insustentável. Não sei o que fazer.<br />

Não pode limitar-se a pedir desculpas e esperar que eu lhe sorria.<br />

Ele afastou a vista, não em um gesto de rendição a não ser com ar indiferente, como se quisesse<br />

indicar que não podia incomo<strong>da</strong>r-se com aquilo, e esfregou outra mancha de massa.<br />

Minnie não podia sentir suas mãos através <strong>da</strong> saia, mas podia imaginar. Imaginar que a leve pressão<br />

que exercia em sua saia se transmitia às anáguas e <strong>da</strong>li aos calções, as meias e as pernas. Fechou os<br />

olhos enquanto ele ia subindo para cima.<br />

Quanto mais subia, mais ela podia senti-lo. Quando chegou a última parte de massa, não ficava mais<br />

remedeio que aceitar a ver<strong>da</strong>de. Lhe tocava o estômago. Através de cama<strong>da</strong>s de tecido e espartilho, sim,<br />

mas a mão dele estava em seu ventre. Minnie respirou com força.<br />

– Não posso acreditar que tenha tirado massa de minha roupa – murmurou. – Isso deve ser o mais<br />

estúpido…<br />

– Pois claro que foi estúpido – ele olhou a ponta molha<strong>da</strong> de seu cachecol, encolheu os ombros e o<br />

jogou por cima do ombro. – Estas coisas são assim – se levantou e Minnie ficou olhando para baixo…<br />

aos botões do colete dele.<br />

– As coisas são assim? – perguntou duvidosa. – Está dizendo que é estúpido, Excelência?<br />

– Em certas circunstâncias, sim – a voz dele era só um murmúrio. Adiantou o corpo até que quase lhe<br />

sussurrou ao ouvido: – Verá, há uma mulher.<br />

Minnie se negava a olhá-lo. Não o faria.<br />

– Normalmente, poderíamos dizer que é uma mulher bonita, mas acredito que não é uma beleza<br />

clássica. Mesmo assim, quando ela está perto, eu prefiro olhá-la e a ninguém mais.<br />

Apoiou dois dedos na bochecha dela e Minnie conteve o fôlego.<br />

Não o olharia. Se o fazia, ele veria o desejo em seus olhos e então…


– Há algo nela que atrai meu olhar. Algo que desafia às palavras. Possivelmente seja seu cabelo, mas<br />

tentei dizer-lhe e me disse que era ridículo. Suponho que o era. Possivelmente sejam seus lábios. Ou seus<br />

olhos, embora quase nunca me olhe.<br />

Os dedos que estavam na bochecha de Minnie baixaram até o queixo. Ela se sentia paralisa<strong>da</strong> no<br />

lugar.<br />

– É inteligente – murmurou ele. – Sempre que a vejo, descubro que subestimei seu poder. Confundeme<br />

muito.<br />

Eram apenas palavras, palavras que diria qualquer homem que queria deixar louca a uma mulher.<br />

Eram apenas palavras. Não significavam na<strong>da</strong>.<br />

Mas não eram somente palavras. Ninguém mais as havia dito antes; não sabia que as queria ouvir até<br />

que ele as havia dito. Agora estavam crava<strong>da</strong>s como uma faca entre suas costelas. Desejava que fossem<br />

ver<strong>da</strong>de… o ansiava tanto que lhe doía a ca<strong>da</strong> respiração.<br />

– O que é que tenta dizer? – perguntou aos botões do colete dele. Sua voz não vacilou nem tremeu. –<br />

Que está em desvantagem? Isso já o estabelecemos.<br />

Pois claro que estou em desvantagem – lhe tocava levemente a bochecha. – O varão <strong>da</strong> espécie<br />

humana tem uma falha fun<strong>da</strong>mental. No momento em que mais desejamos dizer algo inteligente e que<br />

impressione, todo o sangue foge de nosso cérebro.<br />

– Ah, sim?<br />

– É um fato fisiológico – respondeu o duque. – A excitação me torna estúpido. Faz-me dizer idiotices<br />

como: “Eu gosto de suas tetas” e<br />

“Socorro! temos um problema com a massa”. Faz com que queira estar perto de você embora saiba<br />

que estou em desvantagem, embora esteja seguro de que você vai ganhar – baixou a voz. – Verá, quero<br />

ver como o faz.<br />

Minnie tragou saliva. E por um momento, acreditou. Acreditou que ela ganharia, que ganharia de<br />

algum modo um futuro tão incrivelmente brilhante que a deslumbrava apenas pensando nele.<br />

– Embora saiba que vou dizer tolices – disse. – E fazer coisas como lhe jogar pasta em cima – houve<br />

uma pausa. – Perdoe-me por isso – disse por fim. – Foi muito estúpido por minha parte.<br />

– Eu acreditava que havia… coisas… que o macho <strong>da</strong> espécie humana podia fazer com suas falhas<br />

fisiológicas.<br />

Ele seguia tocando-a; seus dois dedos apertavam levemente o queixo dela. Minnie não podia olhá-lo<br />

enquanto falava. Lhe esquentava o rosto só de pensar o que podiam entranhar essas “coisas” <strong>da</strong>s quais<br />

falava.<br />

– Aqui não – murmurou ele com voz diverti<strong>da</strong>. – Agora não.<br />

Seu polegar acariciou o lábio dela; recor<strong>da</strong>va vagamente a um beijo.<br />

– Com você não – continuou ele. – O sinto.<br />

E ela sentiu muito calor então. Tinha a sensação de que lhe ardia a pele. Notava que se umedecia sob<br />

as saias. Mas aquele banho de desejo líquido apenas servia para entristecê-la.<br />

Os dois tinham interpretado bem o momento. Minnie era muito gentil para que ele se deitasse com ela<br />

de um modo casual, e não o bastante eleva<strong>da</strong> para desposá-la. Isso fazia com que não fosse na<strong>da</strong> para ele,


uma insignificância com saias. O que quer que fosse aquilo que havia entre eles, era ao mesmo tempo<br />

dolorosamente real e impossivelmente inexistente.<br />

A voz dele soou rouca quando voltou a falar.<br />

– Mas me derrote a consciência – disse. – Ganhe. Me supere,<br />

Minnie. E quando estivermos sozinhos…<br />

Seus dedos esfregaram levemente o queixo dela.<br />

– Quando estivermos sozinhos – sussurrou, – olhe para cima.<br />

Podia lhe haver subido o queixo e havê-la obrigado a fazê-lo. Mas seu dedo indicador permaneceu<br />

quente e firme no rosto dela. Esperou e, ao final, Maggie não pôde evitá-lo. Ergueu a vista.<br />

Seus olhos se encontraram em uma sau<strong>da</strong>ção quente.<br />

– Olá, Minnie – ele não sorria. Não se inclinou para ela. Mas quando sussurrou: – Eu gostaria que me<br />

chamasse Robert – sua voz era quase uma carícia.<br />

– Robert.<br />

– Agora – murmurou ele– seria quando eu diria algo muito inteligente, se meu cérebro não tivesse se<br />

convertido em massa.<br />

– Como seduz a alguém se não poder falar nessa fase? – perguntou ela.<br />

– Eu… – ele se interrompeu, sacudiu a cabeça e ergueu as mãos com frustração.<br />

“É uma tradição <strong>da</strong> família Lane. Quando abandonaste a seu oponente, dá-lhe um beijo para provar<br />

que não há má intenção”.<br />

– Já vejo o que acontece – disse ela com suavi<strong>da</strong>de.<br />

– Vê-o?<br />

Não o via. Não podia ver na<strong>da</strong>. Não sabia o que fazer sobre o Stevens, o que fazer com o futuro que<br />

parecia derrubar-se diante de seus olhos. Aquilo era justamente o contrário de quando beijava uma peça<br />

de xadrez.<br />

Mas ao olhá-lo nos olhos não via finais, nem a finali<strong>da</strong>de do matrimônio com um homem que não a<br />

conhecia, nem a certeza cinza de um futuro asilo para pobres. Via começos.<br />

Aquela atração entre eles era impossível. – Entendo – disse ela. – Não seduz às mulheres. Ele sorriu.<br />

– Com respeito a isso…<br />

– Elas o seduzem – e então, antes que pudesse pensá-lo bem, antes que pudesse dizer-se por que<br />

jamais devia fazer aquilo, ficou nas pontas dos pés. Havia apenas umas polega<strong>da</strong>s entre eles e Minnie<br />

fechou a distância sem pensá-lo.<br />

Ele fez um gesto suave de surpresa. Seus lábios resultavam quentes nos dela, e depois do primeiro<br />

momento de indecisão, estreitou-a contra si.<br />

– Assim – murmurou; e então seus lábios não só apertaram os dela, como se moveram sobre eles<br />

incitando-os ao beijo.<br />

Aquele beijo tampouco era um final, a não ser algo novo e vibrante, brilhante de possibili<strong>da</strong>des. Os<br />

lábios dele apanharam os dela uma e outra vez. Quando suas línguas se encontraram, ele levou as mãos<br />

aos lados do rosto dela e a atraiu mais para si, com tanta brutali<strong>da</strong>de, que ela temeu que pudesse quebrarse.


Beijou-a e ela se apertou contra ele, com as mãos em seu peito e os botões de seu colete cravando-se<br />

nela. Deslizou os dedos debaixo do cachecol dele e o apertou mais contra si.<br />

E então ele se separou. Minnie abriu os olhos e olhou ao pátio, à bomba de água.<br />

Ele sorriu.<br />

– Acredito que é a primeira vez que me emprestaste to<strong>da</strong> sua atenção.<br />

– Robert – ela tragou saliva, indecisa.<br />

– Em resposta ao que disse, tem razão. Não lhe devo somente uma desculpa. Apenas posso repetir o<br />

que já lhe disse. Não a deixarei em pior situação que a que estava quando a conheci. Sei que tem medo.<br />

Sei que posso ser desconsiderado. Mas não sou sempre desconsiderado, senhorita Pursling – disse,<br />

renunciando ao seu prenome de repente. – Há muitas coisas que posso fazer e não permitirei que ninguém<br />

lhe faça mal. Tem minha palavra.<br />

Ela sabia que não devia acreditá-lo. Ele não podia assegurar aquilo. Já a tinha arruinado por dentro,<br />

tinha-lhe feito questionar a paisagem sombria que era sua vi<strong>da</strong>. Tinha-lhe feito conceber esperanças.<br />

Tinha a sensação de estar flutuando entre nuvens e isso implicava que estava acostuma<strong>da</strong> ao muito<br />

abaixo.<br />

– Não deveria acreditá-lo – passou as mãos pela cara. – Deveria lhe mostrar sua carta ao senhor<br />

Charingford agora mesmo.<br />

– Deveria havê-lo feito faz dois dias. Minnie sorriu fracamente.<br />

– Sei.<br />

Devolveu-lhe o jarro com a massa de colar. Seus dedos se encontraram e todo o corpo dela cantou em<br />

resposta. E se deu conta, pela primeira vez, de que ele era muito preparado. Ela não o tinha vencido, lhe<br />

tinha entregue a chave de sua que<strong>da</strong>… e assim tinha conseguido que lhe resultasse quase impossível usála.


CAPÍTULO 13<br />

QUANDO Minnie SOPROU a vela AQUELA NOITE e se meteu na cama, to<strong>da</strong>s as emoções do dia a<br />

tinham abandonado. Tinha a sensação de que se achava nas labare<strong>da</strong>s de um fogo selvagem, com o<br />

terreno a seu redor enegrecido e queimado até onde alcançava à vista. Quase podia cheirar a fumaça e<br />

sentir em seu interior as brasas ocultas que ain<strong>da</strong> não se converteram em cinza.<br />

– Não te apaixone por ele, Minnie – advertiu a si mesmo. Mas o quarto estava às escuras e seu corpo<br />

não tinha esquentado ain<strong>da</strong> os lençóis.<br />

Se ele fosse menos atrativo, menos rico e não fosse duque… Poderia ter sido um ferreiro ou um<br />

livreiro. Alguém humilde, mas com sua mente agu<strong>da</strong>, seus olhos penetrantes e aquele sorriso luminoso<br />

que parecia feito apenas para ela.<br />

Em vez disso, era uma <strong>da</strong>s pessoas de mais linhagem do reino. Podia escolher entre milhares de<br />

mulheres. De fato, provavelmente estava escolhendo uma naquele momento. Os duques faziam essas<br />

coisas, não? Tinham uma amante, que podia ser loira, castanha ou morena, dependendo do capricho que<br />

tivessem aquele dia. Tomavam o que queriam e deixavam um punhado de moe<strong>da</strong>s como lembrança. Ser<br />

duque implicava que tinham um harém perpétuo a seu alcance. Só tinham que pedir.<br />

Aquela ideia deveria ter aborrecido a Minnie, mas, por alguma razão, imaginou ao Robert… Não,<br />

tinha que pensar nele como “o duque”, não por seu nome, não como uma pessoa. Imaginou, pois, ao duque<br />

olhando um desfile de garotas que lhe mostrava uma proprietária de rosto magro. Imaginou que pousava<br />

os olhos em uma garota de cabelo castanho claro e peito grande. – Ela – dizia. – Esta noite quero a essa.<br />

“A desejo”.<br />

Era muito estúpido por sua parte imaginar que esse desejo persistiria o suficiente nele para pagar uma<br />

substituta. Minnie trocou de posição na cama, mas não pôde tirar a ideia <strong>da</strong> cabeça.<br />

Ele podia estar na cama com a outra naquele momento. Suas mãos roçariam os seios dela. Assim. Seus<br />

lábios não encontrariam a palma <strong>da</strong> mão dela, a não ser seu pescoço, seus lábios. Não haveria hesitação<br />

nem contenção. Não haveria na<strong>da</strong> fora do desejo excitado dele.<br />

Cobriria à mulher com seu corpo e ela se entregaria a ele. Abriria as pernas, abraçaria com elas o<br />

corpo dele…<br />

Aqueles pensamentos conseguiram esquentar a cama de Minnie, mas uma vez que tinha começado, já<br />

não pôde frear sua mente. Levou uma mão entre suas pernas e a outra a um dos mamilos. Imaginou<br />

desejando-a tanto como o desejava ela, possuindo-a em sua imaginação como não podia permitir que<br />

acontecesse na vi<strong>da</strong> real. Ele se afundou nela com força; ela se estremeceu quando chegou à beira do<br />

orgasmo. E quando alcançou o clímax, mordendo o lábio para não gritar, foi a cara dele o que viu.<br />

Depois disso, a cama estava já muito quente, assim teve que afastar as mantas e deixar que a<br />

envolvesse o ar frio, que voltou a converter seus mamilos em pontas duras. Mas o frio não lhe<br />

proporcionou a clari<strong>da</strong>de mental que necessitava desespera<strong>da</strong>mente.


Levantou-se, aproximou-se do lavatório e jogou água <strong>da</strong> jarra à bacia. A água estava gela<strong>da</strong> e a toalha<br />

de lavar-se resultava áspera contra a pele.<br />

Possivelmente ele teria escolhido essa noite uma mulher que se parecesse com ela. Ou possivelmente<br />

não tinha escolhido a nenhuma mulher, mas estava em seus aposentos e se deu prazer a si mesmo como<br />

tinha feito ela. Aquela ideia lhe produziu um desejo profundo.<br />

Se pudesse…<br />

– Na<strong>da</strong> de ilusões vãs – disse a si mesmo com dureza. – O que tem é o que há.<br />

Tinha que aceitar a reali<strong>da</strong>de. O que acabava de ocorrer era o mais próximo que estaria de fazer amor<br />

com o Duque de Clermont. Podia pensar nele e, se tivesse muita sorte, possivelmente lhe dedicasse<br />

também um pensamento.<br />

O desejo lhe oprimiu a garganta.<br />

Não importava.<br />

Tinha aprendido tempos atrás que seus sentimentos nunca importavam. As coisas eram o que eram<br />

independentemente do que ela sentisse.<br />

E aquele sentimento em particular… Aquele sentimento já a tinha desviado muito de seu rumo.<br />

Abriu as cortinas. Qualquer outra noite teria observado os campos de couves ou o semicírculo de<br />

cascalho que havia diante <strong>da</strong> casa de suas tias avós.<br />

Essa noite, durante o tempo que demorou seu coração em voltar a pulsar com normali<strong>da</strong>de, Minnie<br />

olhou para cima. Olhou a lua minguante que aparecia entre as nuvens, as estrelas que brilhavam igual<br />

para a rainha que para os camponeses. Ergueu a vista até que as nuvens cobriram a lua e cortaram to<strong>da</strong> a<br />

luz.<br />

ESSA MESMA NOITE, MUITO MAIS TARDE, Robert percorria de novo as ruas de Leicester, essa<br />

vez acompanhado por Oliver. Tinha descido a névoa, que se mesclava com a fumaça do carvão e formava<br />

uma espécie de sopa espessa que se gru<strong>da</strong>va a suas roupas. Em algum lugar à sua direita, o relógio de<br />

uma igreja deu nove ba<strong>da</strong>la<strong>da</strong>s; outros relógios responderam quase imediatamente a sua esquer<strong>da</strong> e o<br />

mesmo fizeram outros mais adiante e atrás deles, formando um coro de ba<strong>da</strong>la<strong>da</strong>s que resultavam ain<strong>da</strong><br />

mais sinistras dentro do cárcere silencioso <strong>da</strong> névoa.<br />

– O que ocorre? – pergunto Oliver por fim. Tinham caminhado em silêncio desde que os relógios<br />

tinham <strong>da</strong>do meia-noite.<br />

– Tento fazer o que devo – respondeu Robert.<br />

A ci<strong>da</strong>de estava em silêncio. Era estranho como dividiam ali os dias os apitos <strong>da</strong>s fábricas. De dia<br />

era impossível escapar do ruído <strong>da</strong>s máquinas e de noite tudo estava em silêncio, como se uma besta<br />

enorme tivesse saído deixando atrás um curioso silêncio; um silêncio mais ruidoso que o silêncio do<br />

campo. Robert quase podia sentir seus dentes tocar castanholas com o som que não faziam as máquinas.<br />

Oliver se voltou para ele. – Algo vai mal?<br />

– Há uma mulher…<br />

Robert pronunciou aquelas palavras exalando o ar com força e seu irmão pôs-se a rir.


– Estava esperando que me dissesse isso. Sebastian a mencionou e me surpreendeu não saber na<strong>da</strong>.<br />

Quem é ela?<br />

Robert o disse. Não contou tudo; não podia lhe falar dos santinhos, pois aquele era um risco que<br />

insistia em correr sozinho. Mas lhe falou <strong>da</strong> Minnie, do cala<strong>da</strong> que parecia até que falava com ele. De<br />

como havia tornado seu mundo do avesso.<br />

– Beijei-a e não posso esquecê-lo – disse. – Tampouco posso repeti-lo. Sei como se fazem essas<br />

coisas e isto não está certo.<br />

– Não está certo? – perguntou Oliver.<br />

O silêncio que seguiu parecia um silêncio afiado. Quase nunca falavam <strong>da</strong>s circunstâncias que os<br />

tinham feito irmãos, mas isso era algo que se erguia entre eles. A mãe de Oliver tinha sido governanta em<br />

uma casa que tinha visitado o anterior Duque de Clermont. O que podia fazer uma governanta quando a<br />

perseguia um duque? Se aceitava, ele a fazia dele. Se negava-se, ele a fazia dele.<br />

– Não sei o que é que está certo – respondeu por fim. – Sou um duque. Ela é sobrinha neta de uma<br />

mulher que tem alguma pretensão de ser uma <strong>da</strong>ma. Se fizer algo que não devo aqui, é o único em quem<br />

posso confiar que me <strong>da</strong>rá um murro no estômago.<br />

Oliver negou com a cabeça.<br />

– Não chegaria a isso.<br />

As últimas ba<strong>da</strong>la<strong>da</strong>s morriam na distância. Robert sentia ain<strong>da</strong> o beijo dela, podia sentir ain<strong>da</strong> o<br />

desejo em seu sangue.<br />

– Talvez sim. Você sabe quem foi meu pai. O tipo de homem que era – baixou a voz. – E eu a desejo.<br />

Aqui estava; havia-o dito em voz alta. Desejava-a. E não desejava apenas seu corpo. Poucas pessoas<br />

sabiam quem era em reali<strong>da</strong>de nem o que desejava. E, entretanto, Minnie tinha aceitado suas palavras.<br />

Não tinha se inclinado perante ele nem lhe tinha arranhado; em vez disso, havia-lhe dito que podia vencêlo.<br />

Mais que isso. Robert tinha passado muito tempo escondendo o que sentia e o que queria. Tinha que<br />

trabalhar no Parlamento para que se aprovassem to<strong>da</strong>s as leis que podia fazer avançar, mesmo<br />

remotamente, seus objetivos, embora ele apertasse os dentes pela lentidão do progresso. A Câmara dos<br />

Lordes debatia o limite apropriado de proprie<strong>da</strong>de de bens quando a Robert chateava a ideia de que<br />

houvesse proprie<strong>da</strong>des. Eles murmuravam sobre os privilégios dos nobres, quando ele os queria todos<br />

abolidos. Mas se declarava um pouco radical, alienaria a todo mundo. E por isso seguia na brecha.<br />

Discutia por minúcias. Votava leis que fariam a vi<strong>da</strong> um pouco mais suportável quando em reali<strong>da</strong>de<br />

queria gritar a todos.<br />

E Minnie… Ela era uma mulher que sabia o que era esconder o que sentia. E ele a desejava tanto!<br />

Tanto!<br />

– Não confio em mim mesmo – comentou.<br />

Oliver encolheu os ombros.<br />

– E por que vai confiar em mim, então? Tenho tanto do Clermont como você.<br />

– Você… – Robert se interrompeu; olhou a seu irmão – é diferente.<br />

– O mesmo sangue – seu irmão tirou as lentes. – Os mesmos olhos. O mesmo nariz.


– Mas você… você… – Robert se esforçou por procurar uma explicação. – Eu posso ser um autêntico<br />

bastardo. Você precisamente deveria sabê-lo. E nunca saberei por que me deu uma oportuni<strong>da</strong>de.<br />

– Isso é fácil – Oliver encolheu os ombros e olhou o chão. – Se você não se parecia com o duque, eu<br />

tampouco teria por que me parecer.<br />

Robert deixou de an<strong>da</strong>r.<br />

– Eu tampouco sou nenhuma joia – prosseguiu seu irmão. – Tenho um temperamento pior que alguém<br />

de minha família. Quando era menino, meu temperamento assustava às vezes a mim mesmo. E sei que<br />

assustava a minha mãe – Oliver moveu a cabeça. – Eu não sou sua consciência. Não sou um homem que<br />

te mostrará o que está certo. O sofrimento de minha mãe não me lavou por completo o sangue de<br />

Clermont.<br />

– Não lhe peço isso por isso – a névoa parecia tragar as palavras de Robert. – Lhe peço isso por<br />

que…<br />

Quando estu<strong>da</strong>vam juntos em Eton, Oliver passava muitas horas fazendo caixas engenhosas de papel<br />

ou esculpindo pequenos rebanhos de ovelhas com pastores para suas irmãs. Fazia desenhos dos edifícios<br />

de Eton para enviar a sua mãe e, quanto a seu pai, na<strong>da</strong> lhe parecia o bastante bom para ele. Um ano se<br />

empenhou em lhe conseguir uns gêmeos. E os meses anteriores a novembro, o mês em que o senhor<br />

Marshall completava anos, Oliver tinha trabalhado, fazia esculturas para os outros meninos a um<br />

piquenique a peça, com o fim de reunir o dinheiro para um presente.<br />

Robert sempre tinha observado tudo aquilo divertido.<br />

– Pede-me isso por que… – lhe recordou seu irmão.<br />

– Porque não tenho ninguém mais a quem pedir – o respondeu<br />

Robert.<br />

Sempre tinha querido ter também uma família. Primeiro imaginando a seu pai mais carinhoso do que<br />

era; logo esperando que o quisesse sua mãe. Quando se tinha <strong>da</strong>do conta de quão fúteis eram seus sonhos,<br />

tinha mu<strong>da</strong>do a direção de seus desejos. Tinha sido algo tão sutil, que não podia assinalar o momento<br />

concreto.<br />

Tinha sonhado acor<strong>da</strong>do acompanhando ao Oliver a sua casa nas férias de verão. Tinha-os imaginado<br />

passando dias inteiros juntos, falando e jogando, boxeando, pescando e fazendo o que quer que fizessem<br />

os irmãos.<br />

Mas embora isso não tivesses ocorrido, pois nem seu primeiro pai, nem seu tutor depois, lhe teriam<br />

permitido jamais passar suas férias com plebeus, ele tinha <strong>da</strong>do um passo mais. Não era só um irmão o<br />

que desejava, era uma família completa.<br />

E acontece que Oliver já tinha uma forma<strong>da</strong>.<br />

Nos sonhos que tinha acor<strong>da</strong>do, os pais de Oliver chegavam a conhecê-lo. O senhor Marshall lhe<br />

<strong>da</strong>va conselhos sábios e uma palma<strong>da</strong> no ombro, e a senhora Marshall lhe <strong>da</strong>ria fatias de pão de<br />

gengibre, ou o que quer que fizessem as mães. Esses detalhes sempre tinham sido fastidiosamente vagos,<br />

mas isso não lhe tinha importado. Em suas fantasias se imaginava convertendo-se em uma espécie de<br />

amigo especial, um quase filho para as pessoas que amavam Oliver sem limitações.<br />

Quando chegou aos dezesseis anos, tinha inventado um elaborado mundo de sonho em que se<br />

apaixonava pela mais velha <strong>da</strong>s irmãs de Oliver. Sabia que não havia nenhum parentesco com ela;<br />

preocupou-se de inteirar-se. E se casava com ela sem lhe importar sua diferença de status social.


Na reali<strong>da</strong>de nunca tinha conhecido à irmã de Oliver nem tampouco aos senhores Marshall. Mas a<br />

reali<strong>da</strong>de não alterava em na<strong>da</strong> a substância de seus sonhos. Ca<strong>da</strong> vez que Oliver recebia uma carta de<br />

casa, ou enviava uma escultura para alguma irmã, Robert se apaixonava um pouco mais por todos eles.<br />

Não importava quem fossem nem como fossem. Se correspondiam a seu carinho, teria por fim um lugar<br />

em que se encaixaria.<br />

– Ah! –exclamou Oliver. Deu-lhe um murro no ombro que foi uma autêntica amostra de afeto. –<br />

Acredito que você não tem na<strong>da</strong> de seu pai.<br />

Robert encolheu os ombros.<br />

– Se você diz…<br />

Mas ele tinha provado que sim… e precisamente com a família de<br />

Oliver.<br />

A coisa tinha sido como esperava. O dia em que os pais de Oliver foram de visita por fim, Robert<br />

tinha se vestido com muito esmero. Escovou o cabelo e os dentes duas vezes e amarrou três vezes o laço<br />

do pescoço em um esforço por parecer sério e respeitável. Descobriu-se passeando pela sala com uma<br />

energia impaciente e desespera<strong>da</strong> enquanto Oliver o olhava com estranheza.<br />

Robert sabia que seus sonhos eram apenas sonhos. Eram tão tolos que nunca os tinha mencionado a<br />

seu irmão. Mas embora fossem somente fantasias, embora eles não chegassem a querê-lo, sim podia lhes<br />

gostar um pouco. Não?<br />

Quando se abriu a porta e entraram os senhores Marshall, pareceu-lhe que nunca tinha visto na<strong>da</strong> tão<br />

bonito. Tão normal. Eles tinham se adiantado com os braços abertos para abraçar Oliver. E este, o<br />

ingrato, tinha franzido o cenho e se queixou com frases como: “Basta, mamãe, o cabelo não”. Ou “não me<br />

beije diante dos meninos”. To<strong>da</strong>s essas amostras de carinho só porque levavam uns meses sem vê-lo.<br />

Robert os tinha observado do outro lado <strong>da</strong> sala com um nó na garganta.<br />

E logo tinha chegado o momento que Robert esperava. Depois <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>ções afetuosas, Oliver se<br />

virou então.<br />

– Mãe – disse, – pai, este é…<br />

Mas a senhora Marshall se voltou ao mesmo tempo em que seu filho. Seu olhar se pousou em Robert<br />

e, ao fazê-lo, ela ficou muito quieta, tanto que quase deu a impressão de que a sala inteira se paralisou<br />

com ela. Abriu muito os olhos e sua cara ficou branca. Olhou-o fixamente.<br />

E sem dizer uma palavra, sem nem sequer elevar uma mão em uma ameaça de sau<strong>da</strong>ção, ergueu-se<br />

muito reta, voltou-se e saiu <strong>da</strong> sala.<br />

Robert teve a sensação de que seus pulmões se enchiam de partes de cristal. Doía-lhe respirar. Deu<br />

um passo para ela… mas interveio o senhor Marshall.<br />

– Você deve ser o Duque de Clermont – disse, colocando-se diante dele.<br />

Robert tinha pensado lhes pedir que o acolhessem e o chamassem por seu nome de batismo depois<br />

<strong>da</strong>s apresentações. Mas essas palavras, essa busca de intimi<strong>da</strong>de, lhe teria feito parecer mais<br />

desesperado. Conseguiu assentir com a cabeça com firmeza.<br />

O senhor Marshall falou com voz baixa, mas isso não pôde suavizar a dureza do golpe que supuseram<br />

suas palavras.


– Parece-se muito a seu pai. Muito – fez uma pausa. – Tanto que acredito que minha esposa, ao vê-lo,<br />

viu-o a ele.<br />

Robert tinha assentido, envolto em uma bruma de dor.<br />

– Possivelmente este não seja o melhor momento para realizar as apresentações.<br />

– Sim, senhor – respondeu Robert.<br />

E compreendeu então que nunca haveria um momento para essas apresentações, que para ele não<br />

haveria lentos verões familiares, nem bate-papos de homem a homem nem pão de gengibre.<br />

Pouco importava o que fizesse. Parecia-se com seu pai e seu pai tinha forçado à senhora Marshall.<br />

Em certo modo, tudo o que tinha feito em segui<strong>da</strong> havia surgido <strong>da</strong>quele momento, de seu desespero<br />

por provar-se a si mesmo que ele era algo mais que sua cara.<br />

Era estúpido dizer que um par de pessoas às quais nunca tinha conhecido lhe tinham quebrado o<br />

coração. E resultava ain<strong>da</strong> mais idiota porque era ver<strong>da</strong>de. Mas nos meses seguintes, sempre que<br />

pensava naquele momento, sentia uma agu<strong>da</strong> sensação de per<strong>da</strong>. Como se de ver<strong>da</strong>de tivessem sido sua<br />

família e os tivesse perdido a todos de uma vez em circunstâncias trágicas.<br />

Tinha chorado a per<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles sonhos mais do que tinha chorado a morte <strong>da</strong> babá de sua infância.<br />

– Não necessita que eu seja sua consciência – disse Oliver, tirando-o de suas lembranças. Inclinou-se<br />

levemente para ele, o suficiente para lhe transmitir afeto. – Você tem a tua. E eu confio em ti, embora nem<br />

você confie.<br />

Robert não tinha muito, mas se agarraria ao que tinha e não o soltaria nunca.<br />

Deu um empurrão brincalhão a seu irmão, mas sentia a garganta oprimi<strong>da</strong>.<br />

– Sempre soube que foi um crédulo – comentou. – Por sorte para mim.


CAPÍTULO 14<br />

NOS DIAS SEGUINTES, Minnie não voltou a ver o duque.<br />

Mas lhe resultava impossível não pensar nele. Examinou sua carta com uma lupa de joalheiro que<br />

pediu empresta<strong>da</strong>, olhou a tinta usa<strong>da</strong> em seus santinhos, catalogou as particulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s letras. Havia<br />

um “e” minúsculo que tinha uma ligeira greta na ponta; tinha-a visto em quatro santinhos diferentes. E um<br />

“b” perdia um pouco a forma.<br />

To<strong>da</strong>s as provas que tinha encontrado encaixavam.<br />

Mas tudo eram detalhes. E agora que tinha sua carta, eram também supérfluos.<br />

E o mais importante. Quando se imaginava nas ruas de Leicester, já não se via recolhendo<br />

industriosamente mostra de santinhos, a não ser passeando de braço <strong>da</strong>do com o Duque de Clermont.<br />

Estúpi<strong>da</strong>. Era uma estúpi<strong>da</strong>.<br />

O chamava frequentemente e, entretanto, descobriu que não podia deixar de pensar nele. Recor<strong>da</strong>va a<br />

sensação de seus lábios e o olhar de seus olhos. Recor<strong>da</strong>va suas mãos, cáli<strong>da</strong>s no corpo dela. Recor<strong>da</strong>va<br />

tudo o que lhe havia dito e não se sentia estúpi<strong>da</strong>.<br />

Uma tarde olhou sua imagem no espelho.<br />

– É idiota – lhe disse.<br />

Seus olhos cinzas lhe devolveram o olhar com soleni<strong>da</strong>de.<br />

O duque lhe tinha enviado uma mensagem. Seu primo <strong>da</strong>va uma conferência essa tarde na Socie<strong>da</strong>de<br />

Mecânica de Leicester e Robert lhe pedia que assistisse.<br />

Minnie suspeitava que seria melhor não ir. A estupidez do que queria resultava evidente com apenas<br />

olhar-se no espelho. Usava um vestido azul, que ele já a tinha visto usar duas vezes. Era um vestido<br />

severo de pescoço alto, com mangas longas sem enfeite. E a saia não trazia volantes nem laços. Os<br />

tecidos eram caros e as fitas mais ain<strong>da</strong>. Era pura lógica se vestir assim quando tinham tão pouco<br />

dinheiro. Embeleza<strong>da</strong> <strong>da</strong>quela maneira, não a olharia ninguém. E ela não queria que a olhassem.<br />

Mas queria o fazer sorrir.<br />

– Oh, Minnie – disse com desespero. – A sério? A ele? Poderia ser mais iludi<strong>da</strong>?<br />

Ele era um duque. Ela era… – Te olhe, maldição – disse.<br />

Obrigou-se a olhar-se no espelho. A não centrar-se nas partes mais agradáveis, a curva dos seios e na<br />

cintura, a não olhar de ver<strong>da</strong>de quem era em reali<strong>da</strong>de. A olhar a cicatriz <strong>da</strong> bochecha. Não era<br />

superficial, estava grava<strong>da</strong> em sua alma. Wilhelmina Pursling era seca, severa, cala<strong>da</strong>.<br />

– A senhorita Pursling – pronunciou devagar– não é ninguém.<br />

Por iniciativa própria.<br />

Mas seus olhos seguiam olhando-a. E por muitas coisas que se dissesse e por muitas vezes que se<br />

chamasse idiota, aquele desejo selvagem e indômito seguia preso em seu interior.


– Você – repetiu, apontando-se com um dedo no espelho– é idiota.<br />

Mas se ia ser idiota, ao menos tentaria sê-lo com estilo. Assim saiu <strong>da</strong> casa e foi até os campos.<br />

Subiu uma colina e baixou outra; procurou nas ladeiras meridionais, mais resguar<strong>da</strong><strong>da</strong>s, até que<br />

encontrou o que procurava: um ramo de amores-perfeitos amarelos, escondidos entre os pés de milho.<br />

Recolheu todos.<br />

SE BRILHAVA ALGUMA ESTRELA depois <strong>da</strong> grossa manta de névoa e fumaça, Robert não podia<br />

vê-la. Desceu <strong>da</strong> carruagem e se voltou para aju<strong>da</strong>r a Violet. As luzes <strong>da</strong> rua emitiam uma luz apaga<strong>da</strong> e<br />

pesa<strong>da</strong>, suficiente para mostrar ao grupo de pessoas que esperavam nos degraus dianteiros do Salão<br />

Novo. Na noite, to<strong>da</strong> a roupa parecia negra e o efeito era quase funerário.<br />

Ou o teria sido, a não ser porque as pessoa cantavam.<br />

– Ah, bem – disse Sebastian a seu lado. – Há uma multidão.<br />

– Uma multidão – repôs Robert.<br />

Sebastian esfregou as mãos com satisfação.<br />

– Sempre que falo, acontece o mesmo. Essas coisas são cabras?<br />

Eram. Na praça do mercado, ao lado do salão de conferências tinham montado dois cercados<br />

provisórios. Havia placas ata<strong>da</strong>s a ambos, mas Robert não podia ler na escuridão. Um dos cercados<br />

estava cheio de cabras, quase uma dúzia de animais balindo.<br />

No outro cercado, curiosamente, havia meninos. Meninos pequenos. Robert franziu o cenho ao<br />

aproximar-se. O menino mais alto apenas lhe chegaria à cintura; o menor quase não an<strong>da</strong>va, mas<br />

tropeçava atrás dos outros com determinação sombria. Os gritos não procediam dos meninos, mas sim<br />

dos adultos que os rodeavam.<br />

Quando se aproximaram dos cercados, Robert pôde ler por fim as placas.<br />

ESTES SÃO ANIMAIS, proclamava a que estava ata<strong>da</strong> ao cercado <strong>da</strong>s cabras. A do outro cercado<br />

dizia: ESTES NÃO O SÃO.<br />

Robert olhou para Sebastian. Seu primo, que sempre tinha gostado de criar controvérsia, sorria ain<strong>da</strong>,<br />

mas seu sorriso não era do todo franco. Adiantou-se uns passos até ficar em frente aos meninos.<br />

Estavam muito mais confundidos que as cabras. Um menino pequeno tinha as mãos na barra<br />

intermediária <strong>da</strong> cerca. Usava apenas um casaco leve e luvas finas. Se lhe tinham posto um gorro, devia<br />

ter caído. Seus olhos resultavam luminosos no frio <strong>da</strong> noite; seu fôlego criava vapores no ar frio.<br />

Sebastian se agachou e os gritos se redobraram.<br />

– Não somos animais – gritava uma mulher. – Não somos animais.<br />

Não gritavam a Sebastian; nenhum deles o reconhecia. Para eles era somente mais um cavalheiro que<br />

observava o espetáculo. Uma razão mais para gritar mais alto. Sebastian tirou lentamente o cachecol e,<br />

sem dizer uma palavra, o enrolou no pescoço do menino. O cachecol, grande, fazia com que o menino<br />

parecesse ain<strong>da</strong> menor. Sebastian assentiu sem palavras e se voltou para partir.<br />

– O que acredita que está fazendo? – perguntou uma mulher próxima. – Esse é meu filho. Não<br />

necessitamos sua cari<strong>da</strong>de.


Sebastian seguiu an<strong>da</strong>ndo.<br />

– Se escutar a conferência desse louco – gritou a mulher a suas costas, – perderá sua alma imortal.<br />

Aqui não queremos os ensinamentos do diabo.<br />

Sebastian não voltou a olhar para trás. A mulher pôs os braços na cintura e o observou afastar-se.<br />

Apertou os lábios e moveu os dedos com impaciência. Por fim se voltou para seu filho.<br />

– O que fazia sentado aí como um pasmado? – agarrou uma ponta do cachecol de Sebastian e puxou. –<br />

Te disse que fizesse coro aos gritos. Quero te ouvir gritar. Prova agora. Eu não… – se deteve na metade<br />

<strong>da</strong> frase e deixou de puxar o cachecol, quando Robert se aproximou dela. Olhou-lhe as botas e subiu<br />

depois os olhos pelas calças e o colete até que chegou à cara.<br />

– Senhora – disse Robert. – Sabe por acaso a temperatura que faz esta noite?<br />

Ela pareceu sobressalta<strong>da</strong>.<br />

– Não. Mas acredito que montou um termômetro em… – Dois graus. Está quase gelando e é provável<br />

que baixe mais.<br />

Lhe lançou um olhar estranho.<br />

– Se já sabia, por que se incomodou em perguntar?<br />

Robert olhou ao menino, que tinha o nariz vermelho e escorria pelo frio.<br />

– Você não tem nenhum direito a dizer a ninguém como cui<strong>da</strong>r de animais – comentou Robert com<br />

amargura. – E menos a meu primo.<br />

Ela franziu o cenho confusa e Robert se afastou apertando os punhos. A suas costas, a multidão seguia<br />

fazendo coro: “Não somos animais.<br />

Não somos animais”.<br />

Sebastian era um provocador. Podia incomo<strong>da</strong>r um homem até irritá-lo grandemente. Mas jamais<br />

tinha sido tão desconsiderado, tão cruel como era aquela mulher com seu próprio filho. A Robert<br />

incomo<strong>da</strong>va que julgassem que seu primo estava em perigo de perder sua alma imortal, quando eram eles<br />

os que prendiam os meninos em cercados e os tratavam como mercadoria somente para lançar uma<br />

mensagem.<br />

Alegrou-se de deixar a multidão para trás. O interior do edifício resultava mais quente e seco.<br />

Quando se fecharam as portas a suas costas, apagaram a maior parte do ruído de fora. Descobriu à<br />

senhorita Pursling em uma <strong>da</strong>s últimas filas, senta<strong>da</strong> junto a sua amiga ao lado do corredor. Agarrava à<br />

beira do assento com as mãos. Robert se deteve seu lado.<br />

– Senhorita Pursling – disse. – Temos assentos diante, se a senhorita Charingford e você quiserem<br />

unir-se a nós.<br />

– Não, obriga<strong>da</strong> – disse ela com voz fria. – Eu não gosto <strong>da</strong>s multidões. Se soubesse que ia ser assim,<br />

não teria vindo. Se houvesse um modo de partir…<br />

Apertou os lábios. Não era fácil julgar a cor de sua pele na débil luz <strong>da</strong> parte de trás <strong>da</strong> sala, mas lhe<br />

pareceu que estava páli<strong>da</strong>.<br />

– Encontra-se bem? – perguntou.<br />

Não é na<strong>da</strong> – ela tragou saliva. – Não é na<strong>da</strong>. Não é na<strong>da</strong>. Não é na<strong>da</strong>.<br />

– Perdão?


Ela ergueu a vista e em segui<strong>da</strong> afastou os olhos.<br />

– Não é na<strong>da</strong> – repetiu. – Por favor, deixe de me olhar.<br />

Robert se sentou na fila atrás dela.<br />

– Está bem. Já não olho para você. Leva flores no vestido – era certo, levava flores de ver<strong>da</strong>de.<br />

Amores-perfeitos amarelos decoravam a barra do vestido e dos punhos.<br />

– Pareceu-me apropriado à luz do trabalho do senhor Malheur. Ele estu<strong>da</strong> essas flores, não é assim?<br />

– Pois sim. Entretanto, parece-me recor<strong>da</strong>r que ele começou com bocas de dragão, não com… o que é<br />

isso? Amor-perfeito. Você aproveitou a ocasião – a olhou de soslaio e surpreendeu um sorriso suave em<br />

seu rosto. – São preciosas.<br />

– Ah! – ela manteve a vista fixa à frente.<br />

– São sim – murmurou ele com satisfação. – Agora respira como se deve – ela pensou. Apenas<br />

precisava distrair-se por um momento.<br />

Começou a levantar-se.<br />

– Excelência.<br />

– Sim?<br />

– Obriga<strong>da</strong> – ela seguia olhando à frente. Já não agarrava o assento como se precisasse fazê-lo para<br />

manter-se ergui<strong>da</strong>. – Não pus as flores em honra do senhor Malheur, Excelência.<br />

Robert sorriu.<br />

– Sei. Sei muito bem para quem as pôs.<br />

– …Sabe?<br />

– As pôs porque sabia que essa cor suavizaria os ângulos de seu vestido. Esse toque no pescoço faz<br />

que seus olhos pareçam nuvens tormentosas.<br />

Cria um efeito encantador, Minnie. Sei para quem as pôs.<br />

Ela se mantinha imóvel.<br />

– As pôs para si mesma – comentou ele. – Fez bem.<br />

Minnie exalou devagar o ar.<br />

– É você um homem muito perigoso.<br />

Ele ficou em pé.<br />

– O local está quase cheio. Sinto que prefira ficar aqui. Eu devo ir mais à frente e assistir a meu<br />

primo. Nos veremos depois?<br />

Eu… a multidão… – ela olhou a seu redor. – Possivelmente saia cedo, Excelência, para não me ver<br />

apanha<strong>da</strong> na multidão – falava olhando o colo, mas Robert viu que seu rosto havia tornado a empalidecer.<br />

– Não se encontra bem.<br />

– Não é na<strong>da</strong>.<br />

A voz dela soou quase cortante e o cavalheiro <strong>da</strong> primeira fila se levantou e parecia a ponto de<br />

apresentar Sebastian. Robert não tinha mais saí<strong>da</strong> do que deixá-la. Quando chegou a seu assento, o<br />

homem repassava a história de Sebastian.


– Depois de um começo distinguido em Cambridge, o senhor<br />

Sebastian Malheur se fez homem com…<br />

Começo distinguido? Arre! Sebastian tinha sido aprovado nos exames pelos cabelos. Sempre tinha<br />

estado à beira <strong>da</strong> expulsão por jogar uma brincadeira pesa<strong>da</strong> atrás <strong>da</strong> outra. A ninguém tinha<br />

surpreendido tanto o êxito repentino de Sebastian como aos velhos que o tinham examinado em outro<br />

tempo.<br />

Em certo sentido, o subsequente êxito de Sebastian, tanto a natureza desse êxito como a maneira, eram<br />

a maior de suas brincadeiras. E ele sabia. Subiu ao palco rebolando um pouco e com um certo sorriso de<br />

suficiência.<br />

– Obrigado, graças a todos por suas amáveis boas-vin<strong>da</strong>s – disse. A suficiência de seu sorriso era<br />

quão único indicava que sabia que a metade de seus ouvintes tinham ido insultá-lo. – Vim aqui para lhes<br />

falar <strong>da</strong> ciência dos caracteres her<strong>da</strong>dos, um tema que estudei durante anos. No transcurso de meus<br />

estudos, cheguei a várias conclusões. A primeira, as características como a cor dos olhos, a estatura, o<br />

número de pétalas de uma flor ou a forma de um rabanete, her<strong>da</strong>m-se dos progenitores segundo umas<br />

regras estritas e invioláveis. A segun<strong>da</strong>, que as regras <strong>da</strong> herança parecem ser constantes nos animais e<br />

nas flores amor-perfeito, nas árvores, nos gatos, nas ovelhas, nas cabras e, é obvio, no animal humano.<br />

Estava desfrutando. Brilhavam os olhos ao falar e tinha um sorriso débil que se fez mais intenso<br />

quando se ouviram murmúrios de protesto espalhados pelo salão.<br />

– Em terceiro lugar, explicarei como as regras <strong>da</strong> herança seguem de acordo com os descobrimentos<br />

do senhor Darwin sobre a origem <strong>da</strong>s espécies. Sei que muitos de vocês esperam essa parte concreta,<br />

assim explicarei essa conexão e os meios pelos quais cheguei a minhas conclusões empregando…<br />

Empregando as ferramentas do diabo – gritou alguém na parte de trás.<br />

Sebastian fez só uma pausa breve.<br />

– Usando os fatos, a lógica e experimentos reprodutíveis – disse com gentileza. – Tudo isso pode<br />

resultar aborrecido a muitos de vocês. Mas meus colegas resistem colocar objeções às provas por<br />

motivo de influência diabólica.<br />

Um sorriso apareceu brevemente em seu rosto. Estendeu os braços e se aproximou de um cavalete que<br />

tinha colocado na parte dianteira.<br />

– Começarei pela cor <strong>da</strong>s flores chama<strong>da</strong>s bocas de dragão.<br />

Tocou com a mão o tecido que cobria o cavalete. Mas naquele momento se abriu a porta de trás do<br />

salão. Algumas cabeças se voltaram para ali. Por um momento, apenas se viu escuridão.<br />

– Vamos! – gritou uma voz. E as cabras que estavam antes no lugar entraram no salão e olharam<br />

confusas a seu redor.<br />

– Já que acredita que não há distinção entre humanos e animais – gritou outra voz, – aqui chega parte<br />

de seu público.<br />

Houve risa<strong>da</strong>s.<br />

Robert pensou que as ovelhas teriam sido melhor opção. As ovelhas eram animais assustadiços que<br />

se espantavam ao movimento de uma capa.<br />

Teriam cedido ao pânico em um instante. As cabras, entretanto… as cabras consideravam uma reunião<br />

de tantas pessoas como uma oportuni<strong>da</strong>de. Desciam pelo corredor entre os assentos.


– Eu recebo encantado a to<strong>da</strong>s as criaturas inteligentes o bastante para compreender – declarou<br />

pomposamente Sebastian. – Não tema, bom homem. Estou seguro que quando tivermos terminado, seus<br />

animais poderão lhe explicar estes princípios com palavras simples, <strong>da</strong>s quais até você possa entender.<br />

Isso arrancou mais gargalha<strong>da</strong>s entre o público.<br />

A cabra líder se deteve em sua marcha, moveu a cabeça com ar contemplativo, e se aproximou para<br />

morder as flores <strong>da</strong> roupa de Minnie.<br />

Robert se levantou pela metade de sua cadeira, com os braços estendidos para trás, embora ela estava<br />

a metros de distância. Ela empurrou a cabeça do animal. Robert via que movia os lábios e a viu golpear<br />

ao animal no ombro, mas não ouvia o que dizia.<br />

– Vamos, vamos! – gritou o pastor atrás dela. – Não toque a esse animal. Já ouviu o senhor. Ela é uma<br />

de nós. Se lhe voltar a pôr a mão em cima, farei com que a detenham por assalto – soltou uma grande<br />

gargalha<strong>da</strong>.<br />

Outra <strong>da</strong>s cabras se aproximou <strong>da</strong> senhorita Pursling; essa apontava a seu pescoço. A jovem tomou<br />

uma sombrinha de uma mulher próxima e a golpeou com ela.<br />

– Assalto! Assalto com agressão!<br />

As gargalha<strong>da</strong>s aumentaram. Outro golpe com a sombrinha e outra cabra mais se uniu à refrega. Esta<br />

última aproximou a cabeça e lhe mordeu a prega. O tecido azul se rasgou, mostrando uma parte de anágua<br />

de cor nata.<br />

E então Robert se deu conta do que em reali<strong>da</strong>de passava. Ninguém se tinha movido para ajudá-la.<br />

Todos a rodeavam olhando e rindo. Ficou de pé e correu pelo corredor para ela.<br />

– Animais ou humanos? – gritava o dono <strong>da</strong>s cabras. – Ah, como verá, sim que podemos notar a<br />

diferença depois de tudo.<br />

A gente que rodeava Minnie ria <strong>da</strong>quele idiota e não fazia na<strong>da</strong> enquanto ela reprimia o ataque<br />

sozinha. Robert empurrou para abrir caminho até aquele homem.<br />

– Você acredita que isso é assalto? – grunhiu.<br />

O homem não olhou atrás de si para ver quem falava.<br />

– O que?<br />

Robert lhe pôs uma mão no ombro e o obrigou a voltar-se.<br />

– Isto – disse. – Isto é assalto.<br />

Deu-lhe um murro na mandíbula. O homem abriu muito os olhos surpreso. Cambaleou-se um momento<br />

no lugar e logo pôs os olhos em branco e caiu ao chão.<br />

Robert se voltou.<br />

– Que vergonha! –gritou à multidão. – Deveria lhes <strong>da</strong>r vergonha. Afastem agora mesmo às cabras<br />

dessa mulher.<br />

Minnie ergueu a vista então. Estava tão ocupa<strong>da</strong> defendendo-se <strong>da</strong>s cabras, que não se deu conta de<br />

que a rodeava a multidão. Mas em lugar de mostrar-se alivia<strong>da</strong> ao ver que os homens se aproximavam<br />

<strong>da</strong>s cabras, sua cabeça oscilou de lado a lado e empalideceu. Robert viu que punha os olhos em branco.<br />

Se alguém lhe tivesse perguntado antes dessa noite, ele haveria dito com absoluta segurança que ela<br />

tinha nervos de aço. Começou a abrir caminho entre a gente, mas chegou muito tarde.


Minnie desmaiou antes que pudesse chegar até ela.


CAPÍTULO 15<br />

O MUNDO ERA FEITO de vinagre e Minnie sentia o nariz em chamas. Tossiu e foi consciente de que<br />

descansava em uma superfície incômo<strong>da</strong>: dura, com vultos e, ao mesmo tempo, cáli<strong>da</strong>.<br />

Abriu os olhos.<br />

Lydia a olhava movendo um frasco de sais debaixo de seu nariz. Minnie tossiu pesa<strong>da</strong>mente e afastou<br />

a cabeça dos sais.<br />

– Já está melhor – disse sua amiga, corajosa. – Isto funcionou.<br />

Dói-te muito a cabeça?<br />

Então recordou tudo. As flores. As cabras. A multidão.<br />

– Meu Deus! – gemeu. – Lydia, por favor, me diga que não desmaiei diante de todo mundo.<br />

– Sim o fez.<br />

Minnie queria fechar os olhos de novo. Robert tinha estado presente. O que pensaria dela?<br />

– As cabras comeram todo meu vestido? – perguntou.<br />

– Nenhuma <strong>da</strong>s partes boas – respondeu outra voz, essa diretamente em cima dela.<br />

E então foi quando Minnie se deu conta de que não apoiava a cabeça em um travesseiro. Os vultos<br />

incômodos eram coxas; sua cabeça descansava no colo do Duque de Clermont. Incorporou-se, sem fazer<br />

caso do tamborilar que sentia atrás <strong>da</strong>s pestanas, e se separou dele. Tinham-na deitado em um banco duro<br />

de madeira. Havia um escritório adiante e algumas cadeiras em um dos lados. Supôs que se encontrava<br />

em uma <strong>da</strong>s salas de reuniões que havia para os comerciantes no segundo an<strong>da</strong>r do Salão Novo.<br />

E estava com o Duque de Clermont.<br />

– Lydia – gemeu. – Como pudeste?<br />

Mas sua amiga não respondeu. Olhou para o duque, ruborizou-se e afastou a vista.<br />

– Alguém tinha que transportá-la – explicou ele. – E resulta que fui o primeiro em me oferecer.<br />

Minnie sentia náuseas só de imaginá-lo. Certamente todo mundo a teria visto quando perdeu os<br />

sentidos. E a intervenção do Duque de Clermont teria chamado a atenção. Sem dúvi<strong>da</strong> haveria muitos<br />

falatórios.<br />

– Agora vou procurar um copo de água – disse Lydia, pronunciando as palavras com muito cui<strong>da</strong>do.<br />

– Não te ocorra me deixar desacompanha<strong>da</strong> com… Mas sua amiga já se retirava.<br />

– Lydia!<br />

A porta se fechou atrás dela.<br />

Minnie ficou em pé de um salto, sem pensar em na<strong>da</strong> que não fosse colocar espaço entre eles. Se ele<br />

não a tocava…<br />

O duque se levantou por sua vez. Quando ela cambaleou, ele a segurou pelo braço.


– Sente-se, Minnie.<br />

– As pessoas sabem que estamos aqui juntos – respondeu ela, nervosa. – Olharão para ela e saberão<br />

que estamos aqui sozinhos. Todo mundo pensará que…<br />

– Todo mundo já o pensa – declarou ele. – Sua amiga nos deixou sozinhos porque sabe o que lhe vou<br />

dizer. Por favor, sente-se e me escute.<br />

Ela o olhou nos olhos. Ele era bastante imponente e a ela ain<strong>da</strong> estava tonta. Voltou a sentar-se.<br />

– Quando a rodearam as cabras – disse ele, – golpeei ao homem que as conduzia diante de todo<br />

mundo. E logo, quando você desmaiou, recolhi-a do chão e a tirei <strong>da</strong> sala. Se imaginar que vai deter os<br />

falatórios saindo agora <strong>da</strong>qui, devo lhe dizer que acredito que é muito tarde.<br />

Céu santo! Tinha ocorrido. Tinha acontecido de ver<strong>da</strong>de. Minnie sentia a cabeça ro<strong>da</strong>r. Estava<br />

desonra<strong>da</strong>. Stevens voltaria com suas provas, e isso já pouco importava. Respirou fundo.<br />

– Sinto-o – disse ele. – Não pensei. Já lhe disse que podia ser estúpido. Quando a vi aí fora, não me<br />

ocorreu pensar. Apenas queria estar a seu lado.<br />

Minnie sacudiu a cabeça, com o que se sentiu ain<strong>da</strong> mais enjoa<strong>da</strong>.<br />

– É tão culpa minha como sua.<br />

Se aquilo era um desastre, ela tinha jogado com ele. Sabia que havia uma atração entre eles.<br />

Virtualmente lhe havia dito que aquilo não podia conduzir a na<strong>da</strong>. E ela o tinha beijado de todos os<br />

modos; tinha-o beijado e tinha querido que a olhasse. Arriscou-se muito e aquela era a consequência.<br />

– Arrumarei isto de algum modo – disse.<br />

Tinha que haver uma explicação que pudesse dá, um modo de que se ajeitasse tudo aquilo.<br />

Possivelmente que desmaiasse outra mulher e ele também se ocupasse dela? Assim pareceria mero<br />

cavalheirismo de sua parte.<br />

Mas essa ideia não a convenceu. Muito forçado. Pouco natural.<br />

Minnie esfregou a testa com desgosto.<br />

Ele se sentou a seu lado e tomou sua mão.<br />

– Minnie – disse com gentileza. – Recor<strong>da</strong> o dia que veio até minha casa e me ameaçou?<br />

– Como poderia esquecê-lo? – ela franziu o cenho. – Suponho que poderia usar isso. Revelar agora o<br />

que fez e explicar que apenas queria que ficasse cala<strong>da</strong>. Mas não me convence. Não acredito que isso dê<br />

resultado.<br />

– Aquele dia lhe disse que, se ocorria algo, me asseguraria de que tivesse uma proposta de<br />

matrimônio. Acredito que minhas palavras exatas foram que me asseguraria disso embora tivesse que<br />

fazê-la eu mesmo.<br />

Minnie deixou de pensar em planos alternativos e o olhou nos olhos. Seria muito cruel brincar com<br />

algo assim e ele nunca tinha sido cruel. Mesmo assim, era mais fácil imaginá-lo a ele desalmado que<br />

imaginar o universo amável.<br />

– Não falava a sério – disse. – Disse aquilo por brincadeira.<br />

Ele encolheu os ombros.<br />

– Foi um modo estúpido de falar, não uma brincadeira. Eu digo muita estupidez quando você está<br />

perto – passou a mão pelo cabelo e suspirou. – Mas por mais estúpido que fosse, também era ver<strong>da</strong>de.


Dizia-o a sério, Minnie. Eu gostaria que se casasse comigo – a olhou nos olhos. – O teria pedido embora<br />

não tivesse acontecido isto. Faz dias que não penso em outra coisa. Case-se comigo<br />

Minnie não podia abranger aquilo com a mente. Levantou-se e se aproximou <strong>da</strong> estreita janela. Dali<br />

tinha uma boa vista <strong>da</strong> praça, que estava adiante. A multidão se dispersou e não havia nem rastro <strong>da</strong>s<br />

cabras. Não, o que ele dizia não parecia possível.<br />

– Isso não tem sentido, Excelência – respondeu. – É uma loucura falar assim. Você não pode casar-se<br />

com alguém como eu.<br />

Ele não fingiu que não sabia o que queria dizer.<br />

– Isso é o que dizem todos – a olhou de frente. – E admito que essa possibili<strong>da</strong>de não me tinha<br />

ocorrido até que a conheci. Mas assim que comecei a pensar nisso, pareceu-me que tinha muito sentido.<br />

Sabe por que não me casei ain<strong>da</strong>?<br />

– Não tem nem trinta anos. Ficam muitos anos pela frente…<br />

Minnie se interrompeu, nervosa de repente. Ele a olhava de um modo que fazia com que lhe pulsasse<br />

o coração com uma rapidez que não tinha na<strong>da</strong> a ver com a i<strong>da</strong>de dele. Sentia as mãos suarentas.<br />

– Minnie – comentou ele. – Tem alguma ideia do que espero obter? Acredito que já sabe que meu pai<br />

entrou em posse de uma fábrica <strong>da</strong>qui e a arruinou; e suponho que intuiu que eu espero compensar isso.<br />

Tenho um meio irmão que é a pessoa que mais me importa no mundo e é um homem ao qual olharam com<br />

desprezo por seu nascimento. Eu não quero viver me apoiando em meus privilégios.<br />

Minnie quase não podia respirar.<br />

– Mas isso é somente uma parte do que espero ver em minha vi<strong>da</strong>.<br />

Se de mim dependesse, aboliria por completo a nobreza hereditária.<br />

Ela deu um sobressalto.<br />

– Todos os aspectos dela – declarou ele com feroci<strong>da</strong>de. – Os lordes deveriam ser processados como<br />

os plebeus e julgados por um jurado. Não deveríamos ter o direito de rechaçar as leis que propõe a<br />

Câmara dos Comuns. De fato, acredito que a Câmara dos Lordes não deveria existir. Eu gostaria<br />

muitíssimo de ser simplesmente o senhor Blaisdell. Meu pai… você não tem nem ideia de quão horrível<br />

ele foi.<br />

Tinha os punhos apertados ao lado do corpo e lhe brilhavam os olhos com uma luz que ela não tinha<br />

visto desde que ele tinha falado com o Finney.<br />

– Poderia pedir desculpas pelos benefícios que herdei dele – disse Robert. – Mas faz tempo que<br />

aprendi que uma desculpa não mu<strong>da</strong> na<strong>da</strong>. Em vez disso, é minha intenção lutar para que nenhum nobre<br />

possa voltar a fazer o que fez meu pai.<br />

Aquilo não podia estar acontecendo. Ele não podia estar dizendo essas coisas.<br />

Mas dizer-se aquilo não servia de na<strong>da</strong>. Minnie estava completamente segura de que nesse momento o<br />

via como era em reali<strong>da</strong>de.<br />

– De todos os privilégios aos quais penso renunciar, o primeiro será a possibili<strong>da</strong>de de me casar com<br />

a filha de algum nobre. Pense no que aconteceria propor matrimônio a uma garota assim. O que pensaria<br />

ela quando se inteirasse de que o objetivo de minha vi<strong>da</strong> é privar a seu pai e a seu irmão de seus<br />

privilégios? Meus pais brigavam sempre que estavam juntos no mesmo cômodo. Eu não terei esse tipo de<br />

matrimônio. Nego-me.


Ela não tinha na<strong>da</strong> que dizer sobre isso.<br />

– Em segundo lugar – continuou ele, – jamais tinha esperado encontrar amor no matrimônio. Quando<br />

muito, esperava encontrar uma alia<strong>da</strong>. Uma mulher que me apoiasse no que viesse – a olhou. – Você sabe<br />

mais de tática que eu. Seria uma esposa terrível para um duque, mas para um homem que não quer seguir<br />

sendo duque, não posso imaginar a ninguém melhor.<br />

Minnie não podia imaginar ninguém pior do que ela. Ele não estava a par <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dela. Não sabia.<br />

– Em terceiro lugar – prosseguiu ele, – a desejo. A desejo muito. A desejo tanto que, quando<br />

desmaiou no meio do salão longe de mim, cheguei a seu lado antes que alguma outra pessoa tivesse<br />

podido mover-se. A desejo tanto que há noites nas quais não penso em outra coisa do que em fazê-la<br />

minha.<br />

Minnie sentiu aquelas palavras em seu âmago, em uma chama de calor e desejo que abrangia to<strong>da</strong>s as<br />

noites solitárias que tinha passado. Nisso faziam bom casal. Mas…<br />

– E sobre a fideli<strong>da</strong>de? – perguntou. – Eu gostaria de saber o que posso esperar aí. Você terá<br />

amantes? Me permitiria os ter?<br />

O duque a olhou um momento em silêncio.<br />

– O último no que penso agora é em outras mulheres – murmurou.<br />

– Respon<strong>da</strong> à pergunta por favor – pediu ela. Tremia-lhe a voz.<br />

– Isso é o que quer? Que tomemos amantes por capricho?<br />

– Você disse que não me amava – dessa vez, a voz dela soou surpreendentemente firme. – Se posso<br />

mostrar minhas preferências, quero que meus votos matrimoniais signifiquem algo. Estava pensando era<br />

em suas necessi<strong>da</strong>des. Não quero que isso me pegue de surpresa. Ele respirou fundo. Sorriu.<br />

– Ah!<br />

Minnie se aproximou dele.<br />

– Disse que seríamos aliados, que pensaríamos um no outro. Não posso imaginar o que é ser um<br />

duque. Até o momento, pôde ter to<strong>da</strong>s as mulheres que quis – e sem dúvi<strong>da</strong> teria tido muitas. – Não<br />

prometa algo que lhe chegue a chatear mais tarde. Neste momento prefiro a sinceri<strong>da</strong>de à fideli<strong>da</strong>de e as<br />

adulações.<br />

– Sinceri<strong>da</strong>de?<br />

Minnie assentiu.<br />

– Nesse caso, queri<strong>da</strong> minha, a terá. Não desejo relações sexuais tão desespera<strong>da</strong>mente como pode<br />

estar imaginando. Não preciso levar uma mulher a meu leito para me descarregar de um modo regular.<br />

Deus me deu uma mão esquer<strong>da</strong> forte e houve muitas noites em que a preferi a uma mulher.<br />

Falava sem olhá-la. Era possível que lhe envergonhasse reconhecer aquilo?<br />

Mas sua confissão lançou outra chama de calor derretido pelo corpo dela, que imaginou nu e excitado,<br />

com a mão em seu membro. Que aspecto teria quando se acariciava? Usaria carícias longas e fortes ou<br />

suaves e gentis?<br />

– Não posso arruinar a reputação de minha mão – disse ele. – Nem ferir seus sentimentos, nem deixála<br />

grávi<strong>da</strong>. Demonstrou ser, em muitos aspectos, a opção mais segura para mim. Assim me diga Minnie.<br />

Acredita que você precisará tomar amantes?


– Jamais tinha pensado nisso – era certo; nunca tinha considerado a ideia de ser infiel em seu<br />

matrimônio. Nem sequer no caso de que se houvesse desposado com um homem que tinha amantes.<br />

– Porque eu acredito que é melhor deixar as coisas claras – disse ele. – Não quero que haja malentendidos<br />

entre nós. E, se as coisas chegassem a esse ponto, prometo que, se, se desgostar comigo,<br />

permitirei que se vá. Não idearei nenhum estratagema para fazer com que volte e não deixarei de lhe <strong>da</strong>r<br />

dinheiro. Na<strong>da</strong> desse tipo – tragou saliva. – Sei que as coisas mu<strong>da</strong>m. Não há na<strong>da</strong> pior em um<br />

matrimônio que um marido que utiliza seu poder para forçar à esposa. Eu não o farei.<br />

– Robert – Minnie se voltou para ele. – Não há nenhum perigo de que eu chegue a me sentir<br />

desgosta<strong>da</strong> por você.<br />

Não soube quem foi o primeiro em mover-se. Talvez tenha sido ela que deu um passo para ele. Ou<br />

possivelmente ele se inclinou para ela. Talvez tenha sido mútuo, uma mu<strong>da</strong>nça na atmosfera que os juntou<br />

por fim. Lhe pôs as mãos nos ombros e a estreitou com força.<br />

Estavam completamente vestidos e, apesar disso, o beijo dele resultou carnal de um modo que não o<br />

tinha sido seu último beijo. Esse último era um prelúdio do que poderia seguir se ela aceitava. As mãos<br />

dele se moveram pelo corpo dela, baixaram para roçar seus seios e se fecharam em seus quadris.<br />

Aquele beijo era um precursor do ato do amor.<br />

Ele interrompeu o beijo com um meio sorriso.<br />

– Há uma coisa que devo dizer.<br />

Falava quase como se estivesse sem fôlego.<br />

– Quando se desposaram meus pais, meu pai jurou que amava a minha mãe. Era mentira, e isso fez<br />

mais <strong>da</strong>no do que se falasse a ver<strong>da</strong>de. Eu não me casarei com expectativas falsas – flexionou os dedos e<br />

ela ergueu a vista para olhá-lo nos olhos. – Compreendo muito bem o que significamos um para o outro.<br />

Não espero que me ame.<br />

– O que significamos um para o outro? – perguntou ela.<br />

– Eu quero filhos. Todos os que possamos ter sem que perca a saúde.<br />

– Excelência – disse ela, enfatizando delibera<strong>da</strong>mente o título. – Isso não é uma resposta.<br />

Robert encolheu os ombros e afastou a vista.<br />

– Não sei como explicá-lo. Você me olhou e não viu um duque, viu um homem que podia escrever<br />

santinhos radicais. Você sabe quem sou.<br />

E aquilo devolveu a Minnie de repente à reali<strong>da</strong>de. Ele tinha pintado um quadro encantador. Se o<br />

único que tivesse tido que fazer ela tivesse sido sentar-se atrás dele no Parlamento e lhe sussurrar<br />

conselhos ao ouvido, figurativamente falando, haveria dito que sim.<br />

Mas aquilo…<br />

As duquesas iam a festas, a grandes recepções onde havia centenas de pessoas presentes. Quando<br />

saíam a passear pelo parque, as pessoas as assinalavam com o dedo e as olhavam. E Minnie… ela cedia<br />

ao pânico se a olhava mais de um punhado de pessoas juntas. Desmaiava quando a rodeavam vinte<br />

pessoas.<br />

– Oh, Deus! – exclamou. Separou-se dele e se abraçou o corpo. – Isto não pode funcionar.<br />

– Minnie?


A jovem virou-se para ele.<br />

– O que acredita que aconteceu antes no salão?<br />

Ele piscou.<br />

– Em que salão? Há algum salão?<br />

– Por que acredita que desmaiei?<br />

– Humm – ele passou as mãos pelo cabelo. – Pelas cabras?<br />

– Vivo em uma granja. Estou acostuma<strong>da</strong> às cabras.<br />

Ele franziu o cenho.<br />

Tem razão. Desmaiou quando já tinham afastado às cabras. Quando as pessoas a rodeavam.<br />

Normalmente, Minnie se esforçava por não recor<strong>da</strong>r os momentos que lhe produziam um terror<br />

abjeto. Separava-os de sua mente assim que recuperava o conhecimento. Mas naquele momento viu a<br />

parede de rostos e trajes, um montão de caras que riam dela. Lhe encolheu o estômago só recor<strong>da</strong>ndo-o.<br />

O coração lhe pulsou com muita força.<br />

– Tenho medo <strong>da</strong>s multidões – suas palavras foram quase um gemido, mas ao menos as tinha<br />

pronunciado. – Não, medo não. Terror.<br />

Robert tomou a mão.<br />

– Especialmente <strong>da</strong>s multidões onde todo mundo olhe para mim. Uma vez me vi apanha<strong>da</strong> em meio de<br />

uma multidão; tinha doze anos – tocou a bochecha. – O medo se deve a isso. As pessoas atiravam pedras.<br />

Robert ergueu uma mão até o rosto dela. Suas luvas eram de couro negro; Minnie podia cheirá-los<br />

muito perto. Ele colocou os dedos na cicatriz dela, seguiu-a pela cara com a gema dos dedos, primeiro<br />

levemente, depois com um pouco mais de força.<br />

Minnie não havia dito to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de. A multidão não só atirava pedras. Atiravam nela.<br />

– Isto foi uma pedra cruel.<br />

Ela assentiu.<br />

Robert voltou a percorrer a cicatriz com os dedos, essa vez apertando um pouco mais.<br />

– Posso apalpar uma fratura no osso. Muito perto do olho.<br />

– Nos primeiros dias, quando estava cheia de golpes, não estava muito claro que pudesse voltar a ver<br />

por esse olho quando se curasse.<br />

Ele não tinha afastado a mão de sua bochecha.<br />

– Por isso agora não posso tolerar estar em grupos grandes de gente. E se todos me olham, torna-se<br />

impossível. Não sou capaz de pensar. Não posso respirar. Apenas quero escapar.<br />

– Por isso é tão cala<strong>da</strong>. Por isso esconde tudo quão bom tem e espera que ninguém a olhe.<br />

Minnie olhou as saias.<br />

– Sim – sua voz soava angustia<strong>da</strong>. Sentia-se menor.<br />

Robert não disse na<strong>da</strong> em um momento. Logo lhe pôs um dedo no queixo e lhe ergueu a cara.<br />

– Pois o sinto – murmurou. – Mas eu já a vi.


Seus lábios roçaram os dela. Não foi um beijo. Não de tudo. Os beijos deviam ser algo mais que um<br />

leve encontro dos lábios, que uma troca de aromas. Se tivesse sido um beijo, ele não teria se afastado tão<br />

rápido.<br />

Minnie se surpreendeu olhando-o. Pôs a mão na bochecha.<br />

– O que foi isso? – perguntou ela.<br />

– Se não o adivinhou, é que devo ter feito mal – ele se inclinou devagar, com deliberação. Essa vez<br />

seus lábios não se limitaram a roçar os dela, mas sim os encontraram de frente. Sua boca resultava cáli<strong>da</strong><br />

e seca; em vez de pressionar brevemente, mordiscou os lábios. Sua mão cobria a bochecha dela,<br />

aproximando-a, e esse beijo…<br />

Minnie se voltou, mas isso apenas serviu para que sua testa entrasse em contato com o ombro dele.<br />

Apoiou-se nele e aprendeu a respirar de novo.<br />

– Não posso me casar com você – murmurou. – Como poderia ser duquesa?<br />

– É fácil – retrucou ele. – Você diz que sim e eu peço a meus advogados que preparem os contratos.<br />

Isso levará três ou quatro dias, e até então, já terá chegado a licença especial.<br />

Céu santo! A versão de Robert do matrimônio começava com advogados. Se Minnie necessitava<br />

alguma prova de quão distanciados estavam, do distintos que eram os mundos nos quais viviam…<br />

A mão dele descansou na sua e todos os músculos do corpo dela ficaram paralisados. Seus pulmões<br />

deixaram de inalar ar; sua boca ficou meio aberta e imóvel. E seus dedos… não se atreveu a mover os<br />

dedos nenhuma polega<strong>da</strong>. Apenas seu coração seguia pulsando no peito, com um ritmo mais ou menos<br />

regular.<br />

– Depois disso – disse ele, – poderei levá-la a minha cama.<br />

Aquilo, ao menos, era igual nos mundos dos dois. Minnie sorriu a seu pesar.<br />

Robert lhe acariciou a lateral <strong>da</strong> cara com o polegar.<br />

– O que vou fazer com você, Minnie? – perguntou.<br />

Lhe afastou a mão; doía-lhe o coração com uma emoção que não podia identificar.<br />

– Basta. Não faça na<strong>da</strong>.<br />

Robert inclinou a cabeça para ela. Seu perfil era largo e perfeito. A luz do abajur beijava a ponta de<br />

seu nariz e Minnie sentiu ciúmes irracionais porque a luz pudesse tocá-lo <strong>da</strong>quele modo e ela quase não<br />

pudesse resistir à pressão <strong>da</strong>s pontas de seus dedos.<br />

Excelência – disse claramente. – Tenho que ser mais clara.<br />

Disse-lhe que havia algo em meu passado. Algo que não queria que saísse à luz.<br />

Ele não deixou de acariciar sua mão.<br />

– Posso adivinhar o que vai me dizer – murmurou. – E lhe asseguro que não me importa na<strong>da</strong>.<br />

As mãos de Minnie começaram a suar. Começava a sentir as primeiras on<strong>da</strong>s de náusea. Fazia muito<br />

tempo que não contava a ninguém; que não pronunciava aquelas palavras em voz alta.<br />

– Até os doze anos… – começava a tremer e ele a olhou com preocupação. Minnie pensou que o<br />

melhor que podia fazer era dizê-lo depressa. – Até os doze anos – disse com rapidez, – meu pai me<br />

vestiu com calças e me apresentou a todo mundo como se fosse um menino. Ele piscou; seus olhos se<br />

abriram surpreendidos.


– Eu acreditava… Definitivamente, jamais teria adivinhado isso.<br />

– Acabou-se sabendo, claro – seguiu ela. – Se soube de um modo muito ruim – esfregou as mãos, em<br />

um esforço por impedir que tremessem. – To<strong>da</strong> Londres soube. Saiu nos jornais. A multidão de qual falei<br />

antes? Prosseguia-me. Queriam me castigar por ter ousado fingir tanto. Por ser tão antinatural.<br />

– Ah!<br />

Robert a olhava com o cenho franzido. Seus olhos percorriam o corpo dela como se a visse de outra<br />

maneira, essa vez como a uma coisa que não tinha saído bem. Possivelmente tinha lido o escân<strong>da</strong>lo em<br />

seu momento. Talvez tentasse recor<strong>da</strong>r os detalhes. Ou possivelmente tinha formado parte <strong>da</strong>quela<br />

multidão, do grupo que lhe jogava pedras.<br />

Não. Isso não. Não lhe tinha soltado a mão e Minnie não podia imaginá-lo atirando pedras em<br />

ninguém, e muito menos em uma menina.<br />

– Foi tão duro que tive que renunciar totalmente a minha vi<strong>da</strong>. Troquei de nome. Batizaram-me como<br />

Minerva Lane. Quando estava… quando fingia ser um menino, meu pai me chamava Maximilian.<br />

– Ah! –repetiu ele. Moveu a mandíbula, mas não falou.<br />

– Diga algo – pediu ela. – Diga qualquer coisa. Você não sabia quando me Propôs matrimônio. Não o<br />

culparei se mu<strong>da</strong>r de ideia – ergueu a vista e o olhou aos olhos. – Mas diga algo.<br />

Robert lhe observou um momento a cara; encolheu os ombros.<br />

– Gostava de ser um menino?<br />

– Ah… bom… – era a primeira vez que lhe faziam essa pergunta, e o sobressalto conseguiu com que<br />

esquecesse o medo. – A princípio não conhecia outra coisa. O engano começou quando eu era muito<br />

jovem. A mim nem sequer me ocorreu pensá-lo – suspirou. – Mas odiava mentir. As desculpas para não<br />

ter que tirar a roupa diante de outras pessoas. Isso o odiava muito. E quando fiz doze anos, comecei a<br />

gostar de um de meus amigos. Isso foi… foi muito incômodo.<br />

– Imagino que sim – Robert piscou. – Isso explica muitas coisas sobre você.<br />

– Depois disso, tive que aprender a ser uma garota. Tive que aprender a an<strong>da</strong>r e a falar. Havia tantas<br />

coisas pequenas que podia fazer errado que era mais fácil tornar-se tími<strong>da</strong> e cala<strong>da</strong>. Assim não podia<br />

cometer enganos.<br />

– Isso me faz pensar que devemos ter uma longa conversa sobre os temas apropriados para a<br />

educação feminina – disse ele com um sorriso. – Quando nós tivermos casado.<br />

– Você não fala a sério, Excelência. Sou um escân<strong>da</strong>lo em potencial.<br />

– Minnie, eu quero abolir a nobreza. Escrevo santinhos radicais em segredo. Não vou gritar: “Oh,<br />

não, um escân<strong>da</strong>lo!”, e sair correndo. Não me importa o escân<strong>da</strong>lo.<br />

Minnie o olhou nos olhos.<br />

– Mas a mim sim, Excelência. A mim sim.<br />

Alguém bateu na porta. Uns momentos depois, repetiu-se a chama<strong>da</strong>. O trinco começou a mover-se<br />

com lentidão; depois de fazer hora, Lydia abriu a porta e entrou com uma jarra de água.<br />

– Parece-me que foste procurar essa água em Bath – comentou Minnie. – Caminhaste até ali ou<br />

tomaste o trem?<br />

Sua amiga lhe sorriu com malícia.


– E bem? Está tudo arrumado?<br />

– Isso mesmo pergunto eu – Robert arqueou uma sobrancelha.<br />

E Minnie se encontrou de modo que não podia responder. Desejava o. Gostava dele. Se tivesse sido<br />

qualquer outro homem, teria aceito. Mas casar-se com ele a colocaria em exposição, não só de algumas<br />

pessoas, mas sim de todo o país. E com ele a seu lado, todos a olhariam. Sentia-se doente apenas em<br />

pensá-lo.<br />

Afastou a vista.<br />

– Necessito mais tempo – disse.<br />

– Tempo? Tempo para que? – perguntou Lydia.<br />

Mas Robert ergueu uma mão.<br />

Nesse caso, tome-o – disse. – Pense-o bem desde todos os ângulos. Considere suas estratégias, se for<br />

preciso, e adiante suas linhas de defesa. Faça o que tenha que fazer para sentir-se segura – lhe dedicou<br />

um sorriso; era um sorriso confiado. Um sorriso que indicava que sabia que ela não o rechaçaria. –<br />

Tome-se seu tempo – se aproximou e se inclinou para ela. – E ao final, Minnie, me aceite.


CAPÍTULO 16<br />

Robert TERIA QUE TER adivinhado no que implicariam os falatórios, mas a visita <strong>da</strong> manhã seguinte<br />

o pegou de surpresa. Dispunha-se a sair, acabava de fato de cruzar a porta, quando uma carruagem se<br />

deteve diante <strong>da</strong> casa. Um lacaio saltou <strong>da</strong> parte de trás e colocou um tamborete no pavimento.<br />

Abriu-se a porta e baixou a mãe de Robert. A mulher pousou os olhos em seu filho. Não franziu o<br />

cenho nem entreabriu os olhos. De fato, a duquesa não mostrou nenhuma emoção. Simplesmente baixou<br />

ao chão e subiu os degraus como flutuando.<br />

– Clermont – o saudou.<br />

Ele inclinou a cabeça meia polega<strong>da</strong>.<br />

– <strong>Duquesa</strong>.<br />

A mulher entrou pela porta como se ele a tivesse mantido aberta para ela. Sem pedir permissão,<br />

abordou a uma donzela que passava e ordenou chá. Robert a seguiu divertido. Dois minutos depois, ela<br />

estava senta<strong>da</strong> no salão principal. Despediu-se de sua donzela com um gesto e o olhou.<br />

– Assumo que não terá por costume ir por aí corrompendo a jovens de classe média – disse.<br />

Pronunciou as palavras “classe média” como se cheirassem a ovos podres.<br />

– Refere-se aos acontecimentos de ontem à noite? – perguntou ele, imitando seu tom. – Tenho por<br />

costume desonrar a um par delas antes do chá. Tenho descoberto que essa prática faz com que as horas <strong>da</strong><br />

manhã passem com uma celeri<strong>da</strong>de deliciosa.<br />

A condessa respirou com força.<br />

– Esse é o tipo de comentário que teria feito seu pai.<br />

Robert apertou o punho dentro <strong>da</strong> luva.<br />

– Não – retrucou. – Esse é o tipo de coisa que teria feito meu pai.<br />

Ele jamais teria brincado com isso, não diante de uma mulher.<br />

Sua mãe agitou uma mão no ar em sinal de conformi<strong>da</strong>de.<br />

– Esta não é a primeira vez que ouvi seu nome acompanhado do <strong>da</strong> senhorita Pursling. Me diga que<br />

não está considerando na<strong>da</strong> indecoroso.<br />

– Não vejo o que possa te importar isso a ti. Não te importou nunca.<br />

A duquesa de Clermont encolheu os ombros.<br />

– Seus atos, sejam quais sejam, refletem-se em mim.<br />

É obvio. Ela não se interessava por ele. Não o tinha feito nunca. Simplesmente se preocupava com<br />

sua reputação, pensava nas dificul<strong>da</strong>des que isso podia causar a ela. Robert tinha esperado to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong><br />

que se fixasse nele.<br />

Tinha estu<strong>da</strong>do duro no colégio e ganhou louvores de todos seus tutores. Tinha escrito entusiasmado a<br />

sua mãe, com a esperança de que lesse sua carta e de que se sentisse orgulhosa dele.


Mas sua primeira carta não tinha tido resposta. Esforçou-se mais ain<strong>da</strong>. Se não se limitava a ser bom,<br />

mas sim chegava a ser muito bom, sua mãe estaria orgulhosa dele. Tinha estu<strong>da</strong>do mais, esforçou-se mais,<br />

tinha alcançado mais objetivos. Havia tornado a lhe escrever quatro meses depois e lhe tinha contado<br />

seus sucessos com acanhamento.<br />

O correio não lhe tinha levado nenhuma resposta.<br />

Robert não se deixou afetar por isso e se esforçou ain<strong>da</strong> mais. Tinha-lhe escrito a terceira carta ao<br />

final do curso. Nela a informava que tinha sido o primeiro de sua classe. A primeira semana <strong>da</strong>quele<br />

verão tinha contido o fôlego todos os dias quando chegava o carteiro. E tinha levado uma decepção todos<br />

os dias.<br />

Por fim, ao oitavo dia, tinha recebido uma resposta. Constava de uma linha: diga a seu pai que essa<br />

estratégia tampouco <strong>da</strong>rá resultado.<br />

Depois disso, para Robert tinha sido questão de princípios seguir como antes, para provar que todo<br />

esse esforço não tinha sido por ela. Apesar disso, tinha-lhe levado anos perder a esperança.<br />

– E bem? – perguntou ela, observando-o. – Quais são suas intenções com essa garota?<br />

Robert a olhou.<br />

– Acredito que um filho deveria obedecer a sua mãe e responder a suas perguntas por que lhe deve<br />

respeito pelos anos de cui<strong>da</strong>dos que lhe dedicou ela.<br />

O corpo de sua mãe ficou rígido.<br />

– Sinto-me generoso. Responderei a uma pergunta por ca<strong>da</strong> mês que passou comigo em minha<br />

infância.<br />

Olhou-a. Ela tinha os lábios apertados. Seus dedos tamborilavam um ritmo irado no pires.<br />

Robert ficou em pé.<br />

– Como estou seguro que sabe – disse, – isso te deixa sem perguntas. Esta entrevista terminou.<br />

Dito isso, saiu <strong>da</strong> sala.<br />

Minnie SE DAVA CONTA DE QUE uma proposta de matrimônio não deveria fazer com que se<br />

sentisse mal. Sobre tudo porque gostava do homem que a fazia. Mas não podia discutir com seu corpo.<br />

Lhe encolhia o estômago só de pensar o que implicaria casar-se com ele. Quando na manhã seguinte disse<br />

a suas tias que precisava descansar, não mentia.<br />

Tinha prometido considerar as vantagens <strong>da</strong> proposta, mas qualquer tentativa nessa direção se via<br />

impossibilita<strong>da</strong> assim que começava a ver-se rodea<strong>da</strong> por caras furiosas.<br />

– Fraude – gritavam essas caras. – Semente do diabo.<br />

As duquesas atraíam multidões. Assistiam a festas. Não desmaiavam quando as olhava muita gente.<br />

Se o fizessem, estariam sempre desmaiando.<br />

Podia imaginar muito bem a parte priva<strong>da</strong> de sua relação. Ardia-lhe a pele de desejo pensando nisso.<br />

Beijaram-se algumas vezes e não podia fingir que não o desejava. Mas embora poderia haver ido bem<br />

como amante de Robert, a ideia de ser a esposa de um duque a punha doente. E antes ou depois, qualquer


entendimento privado que pudessem ter se veria escurecido pelo desastre inevitável que seria sua vi<strong>da</strong><br />

pública.<br />

Essa tarde, suas ruminações se viram interrompi<strong>da</strong>s pelo ruído de uma carruagem no caminho de<br />

entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa. Minnie se incorporou sobre um cotovelo para aparecer pela janela e observou diverti<strong>da</strong><br />

os quatro cavalos escuros que se aproximavam <strong>da</strong> casinha de suas tias avós. Um lacaio saltou <strong>da</strong> parte de<br />

trás <strong>da</strong> carruagem, abriu a porta e colocou ao lado um tamborete estofado de cores brilhantes. Saiu a<br />

duquesa de Clermont e olhou em to<strong>da</strong>s direções enrugando o nariz. Sem dúvi<strong>da</strong> se fixava nos campos de<br />

couves depois <strong>da</strong> casa, na pintura que caía em pe<strong>da</strong>ços no celeiro a sua esquer<strong>da</strong>, nas dobradiças<br />

oxi<strong>da</strong><strong>da</strong>s… sinais <strong>da</strong> pobreza que espreitava de perto.<br />

Usava um vestido rosa pálido, enfeitado com ren<strong>da</strong>s nos punhos e prega; lembrava um bolo luxuoso na<br />

cristaleira de uma confeitaria. Moveu a cabeça como se quisesse fazer desaparecer a vista <strong>da</strong> casa que<br />

tinha diante e pôs-se a an<strong>da</strong>r. Um de seus lacaios se adiantou a usar a aldrava.<br />

Já começava aquilo. As multidões. Olha<strong>da</strong>s duvidosas. As recriminações.<br />

Não lhe surpreendeu na<strong>da</strong> que sua tia Caroline entrasse para vê-la uns minutos depois.<br />

– Minnie – disse a mulher com tom assombrado. – Sei que não te encontra bem, mas a duquesa de<br />

Clermont insiste em ver-te. Digo-lhe que se vá?<br />

Obviamente, a duquesa se inteirou <strong>da</strong> notícia através de seu filho.<br />

– Não – repôs a jovem. – Será melhor que a veja.<br />

Caroline a ajudou a atar o vestido e recolher o cabelo em um coque. Fez-o em silêncio. Não<br />

perguntou por que a visitava a duquesa de Clermont nem questionou a enfermi<strong>da</strong>de de Minnie. Ela<br />

poderia ter muitas queixas contra suas tias, mas a deixavam livre e confiavam nela para que tomasse suas<br />

próprias decisões.<br />

– Minnie – disse ao fim sua tia, quando deixou a escova do cabelo e declarou seu vestido<br />

apresentável. – Se necessitasse algo, o que fosse, você me diria isso, ver<strong>da</strong>de?<br />

Sua tia avó usava um vestido até que tinha virado pela quinta vez. A metade <strong>da</strong>s rugas de sua cara<br />

provavelmente eram culpa de Minnie. Se acontecia algo a Eliza, Caroline não teria aonde ir. E seguia<br />

confiando em Minnie.<br />

Esta pensou que não importava o que acontecesse se, se convertia em duquesa. Não importava que ela<br />

fizesse muito mal seu trabalho. Suas opções tinham ido desaparecendo uma por uma e havia coisas piores<br />

que sentir-se obriga<strong>da</strong> a casar-se com um homem que gostava.<br />

– Não – disse. – Não lhe diria isso. Faz muito tempo que teria que ter deixado de depender de vocês.<br />

Deveria ser você quem dependesse de mim.<br />

Os olhos de sua tia se escureceram.<br />

– Oh, Minnie! – exclamou com voz estrangula<strong>da</strong>.<br />

Minnie lhe apertou a mão.<br />

– Não se preocupe por mim – respirou fundo e desceu, disposta a combater<br />

De perto, o vestido <strong>da</strong> duquesa era ain<strong>da</strong> mais impressionante. Quatro capas <strong>da</strong> mais fina ren<strong>da</strong><br />

rodeavam suas mãos. O tecido levava um desenho de flores delica<strong>da</strong>s bor<strong>da</strong><strong>da</strong>s e costura<strong>da</strong>s com pontos<br />

finos, muito acima <strong>da</strong>s habili<strong>da</strong>des de Minnie. Não viu na<strong>da</strong> de Robert na cara <strong>da</strong> mulher. O nariz era<br />

pequeno e arrebitado, e sua boca parecia luzir uma careta perpétua.


Minnie inclinou a cabeça e fez uma reverência na soleira, muito consciente de seu vestido gasto: um<br />

objeto cinza com punhos negros que já tinham sido virados uma vez para esconder o desgaste. A duquesa<br />

a examinou em silêncio, sem dúvi<strong>da</strong> catalogando to<strong>da</strong>s suas deficiências. Não era necessário que falasse.<br />

O modo como arqueava as sobrancelhas e a surpresa que se lia em seus olhos indicavam uma mesma<br />

coisa. “Como te atreve a pensar que pode te casar com meu filho?”.<br />

Independentemente de qual seria a decisão final de Minnie, não se acovar<strong>da</strong>ria diante <strong>da</strong>quela mulher.<br />

Olhou-a nos olhos e se recusou a ser a primeira em afastar a vista.<br />

– Bem – disse pôr fim a duquesa. – Compreendo o que vê em você.<br />

Suas palavras foram tão surpreendentes que Minnie esqueceu sua resolução.<br />

– Compreende-o?<br />

A duquesa se levantou e se aproximou dela.<br />

– Pobre – disse. – Tocou os punhos puídos <strong>da</strong>s mangas de Minnie. – Com cicatrizes – assinalou a<br />

bochecha. – Sem porte, sem boa postura e sem as maneiras apropria<strong>da</strong>s. Você é sua obra de cari<strong>da</strong>de.<br />

Depois <strong>da</strong>s turbulências do dia anterior, foi um alívio sentir uma fúria fria sem complicações. Minnie<br />

ergueu o queixo.<br />

– E, entretanto, ain<strong>da</strong> não me ofereceu nenhuma só libra esterlina.<br />

– O matrimônio com ele valeria mais de uns quantos guinés.<br />

Minnie pôs uma mão no quadril.<br />

– Se acreditar que o interesse de seu filho por mim é uma mera questão de cari<strong>da</strong>de, é que não o<br />

conhece muito bem. Certamente haverá vítimas mais merecedoras disso que eu.<br />

A duquesa negou com a cabeça.<br />

– Conheço meu filho – grunhiu. – Se parece tanto a seu pai que me levou anos me <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de. Parece-se muito a mim.<br />

– A você? – Minnie voltou a olhar à mulher. Além <strong>da</strong> cor clara do cabelo, seu filho não tinha na<strong>da</strong><br />

dela. Provavelmente não teria mais de cinquenta anos, mas o cenho franzido tinha formado rugas duras<br />

em sua frente. Sua boca estava curva<strong>da</strong> em uma permanente expressão de desagrado. – Ele não se parece<br />

na<strong>da</strong> a você.<br />

A duquesa agitou uma mão no ar com um gesto de desdém.<br />

– A como eu era antes – disse. – Flexível. Bran<strong>da</strong> – apertou ain<strong>da</strong> mais os lábios. – Ingênua. Ele é um<br />

ver<strong>da</strong>deiro romântico, não o negue. Tem que sê-lo para pedir a uma mulher como você que se case com<br />

ele.<br />

– A uma mulher como eu – Minnie sentiu que sua boca se curvava também com desagrado. – A que se<br />

refere com uma mulher como eu?<br />

– Durante o resto de sua vi<strong>da</strong>, as pessoas o olharão e se perguntarão por que se casou com você.<br />

Murmurarão sobre o modo terrível como manchou o sobrenome Blaisdell.<br />

– Eu acredito que disso deveria preocupar-se ele, não você.<br />

A duquesa jogou faíscas pelos olhos.<br />

– Sabe o quanto eu renunciei para que meu filho nascesse com to<strong>da</strong>s as vantagens? Sofri durante anos<br />

um matrimônio com o cretino e infiel de seu pai. Esfregaram seu bastardo na minha cara. Tive que… – se


interrompeu e moveu a cabeça. – Isso não importa. Renunciei a tudo para que meu filho pudesse ter esta<br />

vi<strong>da</strong>. Para que tivesse tudo. Você não pode conceber o que tive que suportar. E eu não sacrifiquei minha<br />

vi<strong>da</strong> inteira para que ele desperdice a sua com uma filha de ninguém.<br />

Essas palavras deixaram claro a Minnie que a mãe de Robert desconhecia as esperanças dele de<br />

abolir os títulos de nobreza.<br />

Mas a duquesa seguiu com seu discurso.<br />

– Você não contribui com na<strong>da</strong> a esse enlace. Nem sobrenome nem dinheiro nem terras nem poder.<br />

– Conheço muito bem meus bens, Excelência.<br />

– E de todos os modos, não se casará com ele – disse a duquesa com desprezo. – Conheço meu filho.<br />

Provavelmente lhe interessam o bem e o mal; deseja tão desespera<strong>da</strong>mente encontrar seu lugar em alguma<br />

parte que se empregará a fundo em qualquer causa que escolha cegamente, sem lhe importar os <strong>da</strong>nos<br />

para si mesmo.<br />

Talvez a duquesa sim conhecesse Robert melhor do que Minnie tinha suposto ao princípio.<br />

A duquesa soprou.<br />

– Provavelmente pense que a está salvando de uma vi<strong>da</strong> de penali<strong>da</strong>des.<br />

Olhou mais uma vez o vestido singelo de Minnie e esta se ruborizou. O olhar <strong>da</strong> duquesa viajou até as<br />

luvas <strong>da</strong> jovem e voltou a subir até o coque severo que lhe tinha feito Caroline. Minnie se manteve reta e<br />

lhe devolveu o olhar.<br />

– Está-te salvando de uma vi<strong>da</strong> de penali<strong>da</strong>des – concluiu a duquesa. – Não posso te culpar por<br />

deixar que ele o faça.<br />

– Quem disse que eu o fiz? – perguntou Minnie. – Eu não quereria me encontrar em seu lugar. Nem<br />

por todos seus vestidos ridiculamente exagerados.<br />

Surpreendentemente, isso fez sorrir à duquesa. O sorriso adoçou seu rosto, fazendo-a parecer déca<strong>da</strong>s<br />

mais jovem.<br />

– Ah, não? Nesse caso, pode ser que não careça de sentido comum – a mulher depositou uma bolsinha<br />

com contas bor<strong>da</strong><strong>da</strong>s sobre a mesa. – Sei que pareço dura, mas ele é meu único filho. É o único que tenho<br />

– suspirou. – Não careço totalmente de sentimentos. Uma vez me encontrei na posição em que você está<br />

agora.<br />

Franziu os lábios, mas esta vez não houve sorriso, apenas um grunhido.<br />

– Afeta muito ser corteja<strong>da</strong> por um duque. Um duque jovem e atrativo. Sabia que o pai de Robert<br />

tinha muito má reputação, mas estava segura de poder curá-lo de todos seus defeitos. Tinha deixado de<br />

jogar e de beber em excesso e, se me tivesse, não voltaria a olhar a outra mulher.<br />

A duquesa tirou uma <strong>da</strong>s luvas e a dobrou antes de olhar a Minnie nos olhos.<br />

– Mataram to<strong>da</strong>s as minhas ilusões românticas antes dos vinte anos. Mas não foi o duque o único<br />

responsável. Foi todo mundo com que me encontrei. To<strong>da</strong> a alta socie<strong>da</strong>de me via somente como uma<br />

bolsa de dinheiro para o Duque de Clermont. Durante anos e anos, disseram-me todos os dias, em<br />

sussurros que não eram sempre pelas minhas costas, que eu não era igual a meu marido. Dava no mesmo<br />

se ele não tivesse nem sentido comum, nem dinheiro.<br />

Eu estava abaixo dele e o fato de que ousasse contradizê-lo… Na<strong>da</strong> do que fazia meu marido<br />

provocava jamais nem um sussurro, mas minha insistência em ser trata<strong>da</strong> com respeito era um escân<strong>da</strong>lo.


Quando ele ia visitar prostitutas, isso não era na<strong>da</strong> para a socie<strong>da</strong>de. Golpeava-me porque eu insistia na<br />

fideli<strong>da</strong>de marital e quão único a boa socie<strong>da</strong>de encontrava escan<strong>da</strong>loso era que eu ousasse questioná-lo<br />

– à duquesa lhe tremia a voz. – Ao menos eu tinha dinheiro.<br />

Como acredita que será essa vi<strong>da</strong> para você?<br />

Minnie tragou saliva.<br />

– Robert não é assim.<br />

As mãos <strong>da</strong> duquesa apertaram a luva que tirou.<br />

– Li Orgulho e Preconceito. Sei exatamente em qual papel me colocou, o de lady Catherine, tola<br />

intrometi<strong>da</strong> que acredita que Darcy deve casar-se com sua miserável filha – apertou os lábios. –<br />

Possivelmente seja esse meu papel. Deveria me erguer agora e lhe gritar: – “vão poluir assim as sombras<br />

<strong>da</strong> mansão Clermont?”.<br />

Minnie piscou surpreendi<strong>da</strong> e a duquesa sorriu.<br />

– Já lhe disse que eu também fui romântica – disse. – E possivelmente tenha que ser lady Catherine.<br />

Mas me vejo também nele, quando eu era mais jovem. Em sua galanteria, sua certeza do amor, sua<br />

esperança pelo futuro. E eu não desejaria minha vi<strong>da</strong> a ninguém.<br />

Aquela conversa não ia como Minnie tinha imaginado. Em lugar de enfurecê-la, as palavras <strong>da</strong><br />

duquesa contribuíam uma espécie de clari<strong>da</strong>de fria à situação.<br />

– Deve querer muito a seu filho – disse.<br />

– Não – repôs a outra com suavi<strong>da</strong>de. – Suponho que em outro tempo poderia havê-lo querido. Mas<br />

se utilizarem muitas vezes a um menino como uma espa<strong>da</strong> crava<strong>da</strong> em seu coração, deixa de sentir. Eu<br />

não tive escolha e… – encolheu os ombros. – Não tenho esse sentimento para convencê-la, nem para<br />

suplicar. Apenas o pedirei o mais amavelmente que possa – olhou a Minnie nos olhos. – Por favor, não<br />

faça isso com meu filho.<br />

Minnie concluiu que a duquesa era uma mulher estranha. Muito estranha. Sentiu uma faísca de<br />

compaixão por ela.<br />

– É muito mais gentil do que era seu pai – a duquesa apertou os lábios. – Quando vir como a tratam,<br />

será desgraçado. Nunca pôde tolerar os abusos.<br />

– Tudo isso está muito bem – respondeu Minnie. – Se eu fosse uma pessoa melhor, suponho que<br />

recusaria me casar com ele. Mas você mesma disse. Não tenho fortuna nem família nem futuro – sorriu<br />

com nervosismo. – Você já ouviu os rumores que me relacionam com seu filho. O que acredita que será<br />

de minha reputação sem ele?<br />

A duquesa entreabriu os olhos.<br />

– Há-a…?<br />

– Não estou desonra<strong>da</strong> – continuou Minnie. – E os falatórios até o momento são apenas de ultraje.<br />

Mas eu não necessito mais que uma simples suspeita negativa. No tema <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de, os detalhes são<br />

para os ricos. Eu não posso permitir isso – moveu a cabeça. – Sei que seria desastroso me casar com ele.<br />

Mais do que você possa imaginar.<br />

A ideia de ser duquesa, de suportar os falatórios, de sentir o peso do olhar de todo o mundo em<br />

qualquer lugar que fosse, fazia com que Minnie se sentisse enjoa<strong>da</strong>. Mas tinha a oportuni<strong>da</strong>de de prover<br />

para sempre suas tias avós e a si mesma.


– Sei que seria um desastre, mas não tenho escolha. Devo fazê-lo.<br />

Ergueu a vista e viu que a duquesa lhe sorria.<br />

– Que refrescante! – disse esta. – Eu pensava que choraria e golpearia o peito dizendo que o amava.<br />

Mas você é muito pouco romântica.<br />

Minnie negou com a cabeça.<br />

– Posso sonhar com duques e castelos como qualquer um.<br />

Mas jamais teria podido imaginar a Robert. Ele era melhor que nenhum príncipe. Via claramente o<br />

brilho de seus olhos quando lhe dizia que queria abolir os títulos de nobreza. Se, tivesse se tratado<br />

somente deles dois, possivelmente teria se apaixonado por ele. Dado seu passado, era um milagre que<br />

encontrasse a alguém a quem podia amar, e que parecia corresponder de algum modo a esse amor.<br />

Rechaçar isso seria muito perigoso. Alguns dons podiam não <strong>da</strong>r-se duas vezes.<br />

E, entretanto, proclamar-se esposa de um duque? Esse era o tipo de orgulho que precedia, não a um<br />

simples estrondo, a não ser a uma grande que<strong>da</strong> do alto de um precipício elevado.<br />

Quase podia ver as pedras bicu<strong>da</strong>s que a esperavam abaixo.<br />

Estava apanha<strong>da</strong> entre a esperança e a presunção.<br />

– Eu poderia ser romântica – murmurou com suavi<strong>da</strong>de. – Mas o romantismo é outro luxo que não<br />

posso me permitir.<br />

– Que ironia! – exclamou a duquesa, observando-a. – Agora acredito que faria bom casal com ele…<br />

se fosse outra pessoa. Minnie se pôs a rir e fechou os olhos.<br />

A duquesa adiantou o peito para ela.<br />

– Pois vamos ver como são seus princípios quando tem uma escolha. Darei a você cinco mil libras.<br />

Minnie abriu os olhos imediatamente. Olhou à outra mulher. Estava segura de que brincava. Mas a<br />

duquesa lhe devolveu o olhar com to<strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de.<br />

– Fala a sério – disse Minnie, aturdi<strong>da</strong>.<br />

Cinco mil libras esterlinas pareciam uma quanti<strong>da</strong>de impossível. Suficiente para viver com isso.<br />

Suficiente para assegurar o futuro de suas tias. Suficiente para formar um dote razoável, se era isso o que<br />

queria, ou para mu<strong>da</strong>r-se para viver no continente. Era muito dinheiro.<br />

Mas em segui<strong>da</strong> olhou o vestido que usava a duquesa, a quanti<strong>da</strong>de de tecido, as jar<strong>da</strong>s e jar<strong>da</strong>s de<br />

ren<strong>da</strong>s e o esmerado bor<strong>da</strong>do. Apenas aquele vestido provavelmente custava mais de cem libras.<br />

– Suponho que para isso terei que rechaçar o matrimônio.<br />

A duquesa encolheu os ombros.<br />

– Não vou pretender que possa lhe oferecer suficiente para compensá-la por não casar-se com ele.<br />

Apenas no contrato de matrimônio, provavelmente lhe <strong>da</strong>ria já mais de cinco mil libras. Mas… Já lhe<br />

disse que o conheço. É muito perseverante para aceitar uma simples negativa – olhou a distância como se<br />

recor<strong>da</strong>sse algo. Apertou os lábios com desgosto. – Ele o tentará uma e outra vez. Robert não se renderá<br />

até que o esbofeteie com to<strong>da</strong>s suas forças. Mas traia-o uma vez e não voltará a olhá-la na cara.<br />

A duquesa havia dito que não queria a seu filho. Mas era uma mulher estranha, fria e angulosa um<br />

momento e frágil ao seguinte. Era uma parte quebra<strong>da</strong> de vidraça, que podia lançar cores à sala e, ao


mesmo tempo, também cortar tudo o que tocava. Às vezes parecia que seu filho lhe importava. E ao<br />

momento seguinte…<br />

– Não é possível que queira que faça mal ao Robert – disse Minnie. – Não pode me pedir que faça<br />

isso.<br />

A duquesa encolheu os ombros.<br />

– Acredito que lhe viria bem. É muito romântico, muito crédulo – olhou a Minnie e voltou a encolher<br />

os ombros sem o menor sinal de arrependimento.<br />

Uma mulher dura e estranha. Possivelmente Robert poderia chegar a ser uma criatura como ela.<br />

– Não sei se posso fazer isso – disse Minnie com voz rouca. – Lhe Fazer tanto <strong>da</strong>no que…<br />

Mas já estava imaginando como podia fazê-lo.<br />

– Você parece uma mulher capaz – respondeu a duquesa com o cenho franzido.<br />

Os segredos de Minnie tinham sido revelados em uma ocasião a todo mundo. Como podia fazer o<br />

mesmo com outra pessoa? Como poderia fazer precisamente a ele?<br />

Mas como poderia casar-se com ele?<br />

Minnie olhou à duquesa nos olhos.<br />

– Não sei se posso fazer isso – repetiu.<br />

Quando partiu a duquesa, esquivou as perguntas bem-intenciona<strong>da</strong>s de Caroline e Eliza e subiu a seu<br />

dormitório. A casa não era grande; Minnie tinha um quarto pequeno na parte dianteira, justo em cima do<br />

salão. Dali podia ver os campos de couves; estas tinham sido recolhi<strong>da</strong>s em preparação para o inverno e<br />

os campos esperavam o arado. Mas seu campo de visão estava bloqueado pelo celeiro. Nos dias frios, o<br />

calor do gado liberava vapor quando estavam abertas as portas. Esse dia só escapavam do celeiro<br />

pequenas bafora<strong>da</strong>s brancas, apenas visíveis entre a chuva que tinha começado a cair.<br />

A proprie<strong>da</strong>de tinha sido em outro tempo uma cabana de caça com alguns acres de terreno. Caroline e<br />

Eliza a tinham convertido em uma granja. Tinham investido ali o pouco dinheiro que tinham entre as duas,<br />

tinham contratado homens para formar os campos e ará-los ano após ano. Mas apesar de todo esse<br />

trabalho, a terra não era realmente dela. Caroline tinha somente o usufruto <strong>da</strong> cabana de caça enquanto<br />

vivesse. Depois de sua morte, a proprie<strong>da</strong>de passaria a um primo longínquo.<br />

Com cinco mil libras, Minnie poderia comprar a granja de suas tias quando chegasse o momento.<br />

Com cinco mil libras, poderia fazer isso e ir-se muito longe. Wilhelmina Pursling poderia<br />

desaparecer. Poderia ir aonde não tivessem ouvido falar dela. A algum lugar onde não teria que tornar-se<br />

pequena para tentar agra<strong>da</strong>r a um homem. E o único que teria que fazer para conseguir essa segurança era<br />

justamente o que ao princípio tinha prometido ao Robert que faria. Teria que ser sua inimiga.<br />

Mas a alternativa…<br />

Podia dizer não à duquesa. Embora a mulher afirmasse que conhecia seu filho, Minnie suspeitava que<br />

não tivesse nem ideia de quem era. Robert não seria feliz com a filha bem educa<strong>da</strong> de um nobre. Ela tinha<br />

visto a luz que brilhava em seus olhos quando falava de seus planos para o futuro. Se fazia aquilo, não<br />

podia fingir que era pelo bem dele.<br />

Era pelo seu próprio. Porque preferia trair a um homem a que poderia chegar a amar ao invés de mais<br />

uma vez expor-se a uma multidão.


Podia ver sua imagem páli<strong>da</strong> no cristal <strong>da</strong> janela, sobre o reflexo <strong>da</strong> granja. Olhou-se as bochechas<br />

páli<strong>da</strong>s, a cicatriz do rosto, os olhos que se moviam ao redor, negando-se a pousar-se em um ponto fixo.<br />

Ergueu uma mão e viu que tremia.<br />

– Se estiver considerando isto, é só porque está assusta<strong>da</strong> – se disse.<br />

Mas aquilo não era certo de tudo. Não estava assusta<strong>da</strong>, estava aterroriza<strong>da</strong>.


CAPÍTULO 17<br />

CHEGOU O ENTARDECER E Minnie não tinha tomado ain<strong>da</strong> uma decisão. Estava caminhando por<br />

seu quarto quando ouviu uns golpes na porta de baixo. Houve um ruído como de empurrar a porta,<br />

seguido de um grito procedente <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> debaixo <strong>da</strong> sala.<br />

– Minnie! Minnie! –era a voz <strong>da</strong> Lydia.<br />

Minnie correu à porta. Depois <strong>da</strong> visita <strong>da</strong> duquesa tinha começado uma tormenta e a chuva golpeava<br />

os cristais com força.<br />

A jovem não se entreteve em esperar. Simplesmente abriu a porta e correu esca<strong>da</strong> abaixo. Sua amiga<br />

estava na entra<strong>da</strong> e havia uma poça de água a seus pés. Levava o cabelo solto, que caía empapado<br />

formando uma massa negra sobre seus ombros. Suas saias e anáguas jorravam.<br />

– Minnie – repetiu, antes que esta chegasse até ela. – Stevens retornou e não vai acreditar no que<br />

disse a meu pai. Disse que… Minnie levou um dedo aos lábios.<br />

– Shsss! – inclinou a cabeça em direção onde estava a donzela, que observava a cena confusa. “Não<br />

diga na<strong>da</strong>. Podem te ouvir”. Lydia saiu ao seu encontro na esca<strong>da</strong>.<br />

– Diz que você é a autora desses santinhos – disse em voz baixa.<br />

A Minnie pulsou com força o coração.<br />

– Isso diz? Tem provas?<br />

– Diz que é uma embusteira e uma trapaceira, que tem provas de que sua mãe nunca se casou e de que<br />

você é filha do pecado. Diz que seu ver<strong>da</strong>deiro nome é Minerva Lane…<br />

Minnie lhe pôs uma mão a sua amiga na boca.<br />

– Shss! – repetiu com suavi<strong>da</strong>de. – Já sei o que diz. Não é necessário repeti-lo. Quem ele acredita<br />

que é Minerva Lane?<br />

Lydia franziu o cenho ao ouvir a pergunta.<br />

É… é outra mulher. Stevens diz que esse foi o nome que lhe puseram para ocultar que foi filha<br />

ilegítima.<br />

Então Stevens tinha descoberto seu ver<strong>da</strong>deiro nome. Ela tinha vivido em Manchester quando era uma<br />

menina pequena e alguém devia recor<strong>da</strong>r a conexão. Mas ele não tinha descoberto a história de sua<br />

família nem adivinhado por que tinha adotado outro nome. Se tinha investigado em Manchester, era<br />

provável que não tivesse encontrado o motivo. Depois de tudo, o escân<strong>da</strong>lo tinha acontecido em Londres.<br />

– Tem que esclarecer tudo. Stevens está falando de pedir uma ordem judicial para te deter.<br />

Minnie deu um coice.<br />

– Para me deter?<br />

– Por rebelião criminal. Meu pai te conhece há anos. Não sei como pôde ocorrer, como pode pensar<br />

algo tão impossível. Ouvi-os através <strong>da</strong> porta.


Minnie, tem que vir. Possivelmente se chamar o duque…<br />

O trovão fez tremer os vidros; o ruído foi tão alto que Minnie se encolheu.<br />

– Não – respondeu. – A ele não. A ele não. Ele não pode me salvar.<br />

Se Stevens não sabia ain<strong>da</strong> por que Minerva Lane tinha trocado de nome, saberia logo. Assim que<br />

esse nome fosse pronunciado em público, não poderia ocultar seu passado. Se, se casava com Robert,<br />

essa revelação não seria só uma possibili<strong>da</strong>de, seria uma certeza. Jamais poderia escapar <strong>da</strong>quele nó que<br />

havia ao redor de seu pescoço. Um nó que sentia apertar-se naquele momento.<br />

Soou outro trovão, que vibrou por muito tempo e próximo através do ar. Tremeram-lhe as mãos e, ao<br />

final, o medo tomou a decisão por ela. Tinha um instante para escolher entre a desonra e a traição, entre a<br />

possibili<strong>da</strong>de do amor e a certeza <strong>da</strong> derrota. E bem observado, o amor não lhe tinha servido de muito na<br />

vi<strong>da</strong>.<br />

– Temos que ir agora – insistiu Lydia. – Sei que você pode arrumar tudo. Sempre o faz.<br />

Minnie sabia o que tinha que fazer. Via-o com clari<strong>da</strong>de: uma visão de pesadelo desprovido de cor.<br />

– Pede que selem um cavalo – disse à donzela, que seguia esperando na entra<strong>da</strong>.<br />

Havia apenas um modo de sair <strong>da</strong>quela confusão, e esse modo lhe partiria o coração.<br />

Vamos, vamos – Lydia insistiu.<br />

– Te seque um pouco – disse Minnie, embora soubesse que não serviria de na<strong>da</strong>, já que iam voltar a<br />

sair. – Necessito cinco minutos. Cinco minutos para recolher uns papéis – cinco minutos para matar dois<br />

pássaros com uma traição.<br />

Entrou em seu quarto como em uma névoa. Tirou lentamente os papéis que tinha reunido. As provas<br />

recolhi<strong>da</strong>s com esforço. E depois também tirou a carta de Robert.<br />

Olhou em frente. O coração lhe pulsava com força no peito, mas atou todos os papéis juntos sem que<br />

lhe tremesse a mão.<br />

DEMOROU QUASE TRÊS QUARTOS de hora para chegar à casa dos<br />

Charingford com a tormenta. Quando chegou, sua roupa jorrava água e seu cabelo era uma massa<br />

embola<strong>da</strong> e empapa<strong>da</strong>. Mas não podia perder tempo com uma coisa tão frívola quanto secar-se. Assim<br />

que entrou na casa com Lydia, avançou diretamente para o salão e empurrou a porta.<br />

– Senhorita Pursling! – exclamou o senhor Charingford, levantando-se de um salto.<br />

Stevens ficou em pé mais devagar, com os braços cruzados e gesto desaprovador. Olhou primeiro a<br />

Minnie, depois a Lydia, que estava atrás dela, e logo afastou a vista.<br />

– Senhorita Charingford – disse com frieza.<br />

Voltou a olhar a Minnie.<br />

– Diga-o – murmurou Lydia, atrás de sua amiga. – Lhes diga a ver<strong>da</strong>de.<br />

Stevens seguia olhando a Minnie.<br />

– Presumo que é você a senhorita Minerva Lane.


Minnie sabia que ocorreria aquilo. Mesmo assim, o coração lhe deu um tombo quando ouviu<br />

pronunciar seu antigo nome em voz alta e viu a expressão do Stevens. Acreditou ver chamas de luz diante<br />

de seus olhos.<br />

“Não é na<strong>da</strong>. Você não é na<strong>da</strong>. Não pode te fazer na<strong>da</strong>”. – Assim é – respondeu.<br />

Lydia teve um sobressalto atrás dela. Mas Minnie não podia voltar-se. Não podia suportar ver a cara<br />

de sua amiga naquele momento.<br />

– Quer dizer que é uma bastar<strong>da</strong>. Que mais esteve ocultando?<br />

Minnie ergueu uma mão.<br />

Sou muitas coisas – declarou com voz fraca, – mas há uma acusação que não se sustentará. Não tenho<br />

escrito santinhos sediciosos nem agora nem nunca.<br />

– Mentiras – grunhiu Stevens.<br />

Minnie olhou ao senhor Charingford nos olhos.<br />

– Eu não tive na<strong>da</strong> a ver com isso. E to<strong>da</strong>s as provas assinalam a outra pessoa.<br />

Stevens a apontou com um dedo.<br />

– Mais mentiras.<br />

Mas o senhor Charingford deu um passo para ela.<br />

– Está segura? – perguntou. – Porque, Minnie, embora eu não goste de pensar isso de ti, sei do que é<br />

capaz.<br />

Não olhou a sua filha, mas Minnie soube que ele pensava em uma tarde de muito tempo atrás quando<br />

ela tinha explicado o que teria que fazer para proteger a reputação <strong>da</strong> Lydia.<br />

– Posso prová-lo – respondeu.<br />

Todos seus sentimentos pareciam distantes… como uma luz escondi<strong>da</strong> debaixo de um casco de metal,<br />

que brilhava onde ninguém podia vê-la. Ela estava tranquila. Achava-se vazia por dentro.<br />

– Quem diz que é o responsável? – perguntou o senhor<br />

Charingford. – Grantham? Peters?<br />

Minnie abriu a bolsa de tecido que levava de lado. Tinha envolvido seu primeiro conteúdo em papel<br />

de cera e depois em tecido impermeável. Quando tirou os papéis, tinham somente uma leve umi<strong>da</strong>de.<br />

– Estes – disse, separando as primeiras folhas de papel– são os papéis que nosso querido amigo De<br />

Minimis tem escrito até o momento. O que vou dizer agora se pode observar com uma lupa de joalheiro.<br />

Em primeiro lugar, o tipo de letra no que estão impressos tem um defeito na “e”, uma ligeira greta. Justo<br />

aí.<br />

Dados. Fatos. Ela era só isso, uma coleção de <strong>da</strong>dos e na<strong>da</strong> mais.<br />

Assinalou com o dedo e trocou de folha.<br />

– E neste. E também neste outro. É um traço distintivo.<br />

Mostrou outros papéis.<br />

– Estes se podem comprar em grandes quanti<strong>da</strong>des aqui em<br />

Leicester.<br />

Stevens deu um passo à frente.


Minnie levantou uma mão.<br />

Todos foram feitos na mesma região. Verão que marquei sua origem na esquina; se não confiarem em<br />

mim, podem comprovar a ver<strong>da</strong>de do que digo perguntando amanhã. Se olharem este papel com a lupa de<br />

joalheiro, descobrirão algo que não acredito que lhes surpreen<strong>da</strong> muito. Todo o papel que se fabrica em<br />

Leicester aproveita os materiais <strong>da</strong> região. As três fábricas de papel <strong>da</strong>qui incorporam desperdícios <strong>da</strong><br />

indústria têxtil em seus papéis: trapos, partes de algodão, lã… Os papéis de Leicester, quando se<br />

examinam com atenção, têm traços característicos de fibras neles, seja qual seja seu grau. Estes –<br />

mostrou os santinhos de Robert– não têm nenhum.<br />

– O que é o que tenta dizer?<br />

Minnie ignorou a pergunta do Stevens. Nesse momento era uma enciclopédia, um dicionário que <strong>da</strong>va<br />

<strong>da</strong>dos e na<strong>da</strong> mais.<br />

– Aqui há amostras de impressões <strong>da</strong>s prensas <strong>da</strong> área. Cataloguei pessoalmente os defeitos nos tipos<br />

de letras; uma vez mais, asseguro-lhes que apenas têm que lhe dedicar um pouco de tempo para verificar<br />

esta afirmação. Verão que não há gretas em nenhum “e” que sejam do tamanho <strong>da</strong>s que aparecem nos<br />

santinhos.<br />

– Vá diretamente ao ponto, senhorita Lane – Stevens fez uma careta de desdém. – Já sabemos que a<br />

pessoa que criou os santinhos não trabalhava sozinha. Isto apenas nos diz que você teve aju<strong>da</strong> de fora.<br />

Uma organização nacional, talvez?<br />

Minnie não tinha intenção de deixar-se intimi<strong>da</strong>r por ele. O senhor Charingford a observava com<br />

atenção. Tirou outro papel do montão.<br />

– Este papel foi comprado em Londres. Notarão que neste montão há papel de distintos graus. Este –<br />

tomou um papel dos últimos do montão– verão que é idêntico ao papel no que estão impressos os<br />

santinhos. Mas não se esqueçam do resto dos papéis. Quem acreditam vocês que é o fabricante deste?<br />

– Não estou de humor para as adivinhações. Você já disse que é de Londres.<br />

– É de Graydon Mills. Sabem vocês algo sobre Graydon Mills?<br />

– Asseguro-lhe, senhorita Lane, que se não chegar a uma conclusão…<br />

– Deixe-a terminar – grunhiu o senhor Charingford.<br />

Minnie assentiu.<br />

– Graydon Mills é uma fábrica que fundou faz sessenta anos um tal senhor Hansworth Graydon, um<br />

granjeiro que ganhou sua primeira fortuna com ovelhas e a segun<strong>da</strong>, terceira e quarta com fábricas.<br />

Chegou a ter todo um império. Era tão rico que pôde casar muito bem a sua filha. Quando o senhor<br />

Graydon morreu, deixou o grosso de suas proprie<strong>da</strong>des a seu neto. Vocês o conhecem como Robert Alan<br />

Graydon Blaisdell, o nono Duque de Clermont.<br />

Aquela declaração foi segui<strong>da</strong> de um silêncio; depois houve um grunhido depreciativo.<br />

– Deve estar louca – protestou Stevens. – Acredita que vai escapar a seu castigo explorando uma<br />

coincidência tão inverossímil?<br />

O senhor Charingford não disse na<strong>da</strong>; apenas fez um gesto a Minnie para que continuasse.<br />

– Sua Excelência utiliza também papel de Graydon Mills para sua correspondência pessoal –<br />

prosseguiu ela. – Um papel de boa quali<strong>da</strong>de, sim.


– Isso não me importa na<strong>da</strong>! – A cara de Stevens se tornou vermelha. – Já ouvi suficientes calúnias.<br />

Charingford, se você não…<br />

Minnie tirou devagar a carta que Robert lhe tinha <strong>da</strong>do no trem.<br />

– Isto é uma carta pessoal de sua Excelência – nesse momento lhe tremia a voz e lhe tremiam as mãos.<br />

Alisou o papel contra a mesa e o agarrou pela bor<strong>da</strong>. – Devo assinalar que utiliza o papel de maior<br />

quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Graydon Mills. Aí está a marca d'água e sua assinatura também se pode autentificar –<br />

assinalou. – Mas me parece que encontrarão vocês o conteúdo muito mais interessante que a fonte.<br />

Stevens lhe tirou o papel <strong>da</strong> mão. – Não sei o que faço… – murmurou lendo. Interrompeu-se e a olhou.<br />

– Escrevo santinhos – leu devagar.<br />

Leu em silêncio, movendo os olhos pelo papel. Charingford olhava a carta por cima do ombro do<br />

Stevens. Tinha o cenho franzido. Quando se afastou, moveu a cabeça.<br />

– Não acredito – murmurou Stevens. Mas suas palavras não eram as de um homem que duvi<strong>da</strong>sse <strong>da</strong><br />

carta; eram um intento por negar a reali<strong>da</strong>de.<br />

– Minnie – disse Charingford. – Esta carta… o tom é bastante íntimo. A sau<strong>da</strong>ção… As palavras que<br />

emprega… Até o modo como está assina<strong>da</strong> a carta. Como é que está em posse dessa carta?<br />

Da<strong>da</strong>s as circunstâncias, Robert provavelmente lhe perdoaria que dissesse a ver<strong>da</strong>de. A duquesa<br />

havia dito que tinha que traí-lo, ganharia seu desprezo.<br />

Se tivesse se tratado de uma parti<strong>da</strong> de xadrez, aquele teria sido o momento no qual teria beijado a<br />

peça. Quando fizesse aquele movimento, já não haveria volta atrás.<br />

Arqueou uma sobrancelha.<br />

– A duquesa de Clermont veio ver-me – comentou. – Quer que seu filho renuncie a seus ideais.<br />

Ofereceu-me cinco mil libras esterlinas para que eu pudesse pará-lo.<br />

A ver<strong>da</strong>de. Não to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de. E <strong>da</strong>quele modo, transmitia uma impressão que era totalmente falsa.<br />

A Minnie tremiam as mãos.<br />

– Digam que disse isso– comentou, com voz surpreendentemente firme. – Mostrem a carta e não<br />

negará sua participação.<br />

Já não havia volta atrás. Se tinha entendido bem a relação entre eles, ao fazer saber ao duque que se<br />

havia mancomunado com sua mãe mataria qualquer afeto que ele pudesse sentir por ela.<br />

E por outro lado, no momento em que Stevens a tinha relacionado o nome de Minerva Lane, tinha<br />

terminado qualquer possibili<strong>da</strong>de que pudesse ter de um matrimônio feliz com o duque.<br />

– É um duque – comentou Stevens. – Como pode fazer isto um duque?<br />

– Lhe perguntem – Minnie baixou a cabeça. – Eu não sei o que faz um duque nem por que o faz.<br />

– E como vou responsabilizá-lo, embora tenha sido ele? – Stevens seguia olhando o papel. – Instigou<br />

à ci<strong>da</strong>de com seus santinhos e suas afirmações. A próxima coisa será que os operários se manifestarão e<br />

se negarão a ir trabalhar. Como vou manter a paz se os ci<strong>da</strong>dãos acreditarem que se pode violar<br />

impunemente a lei?<br />

Minnie estendeu a mão para a carta, mas Stevens a separou dela.<br />

Olhou com raiva os papéis.<br />

– Alguém tem que pagar por isso – disse.


Minnie tinha pagado já uma vez e voltaria a pagar. Mas no momento… No momento fez jus ao seu<br />

dinheiro. Teria suficiente para partir, para escapar de Minerva Lane para sempre. Por que, então, sentia<br />

vontades de chorar?<br />

– Parta – disse Stevens. – Agora vá. Lutarei com você mais tarde.<br />

Ela saiu devagar <strong>da</strong> sala.<br />

Lydia tinha esperado todo esse tempo apoia<strong>da</strong> na parede, mas quando Minnie passou a seu lado,<br />

seguiu-a fora.<br />

– Lydia – a voz de Minnie tremia.<br />

– Por que disse isso? – perguntou Lydia. – Não pode ser ver<strong>da</strong>de. A duquesa de Clermont pagou você?<br />

Minnie, ela chegou à ci<strong>da</strong>de faz uns dias e este assunto com o duque leva muito mais tempo. E isso de que<br />

te chama Minerva Lane? Se de ver<strong>da</strong>de te chamasse assim, haveria-me dito. Eu sei que me haveria dito.<br />

Minnie se encolheu.<br />

– Lydia.<br />

– Haveria-me dito – repetiu sua amiga. – Você é como uma irmã para mim. Não pode ser outra<br />

pessoa.<br />

– Meu ver<strong>da</strong>deiro nome é Minerva Lane – Minnie baixou a vista. Aquela história deveria ter sido<br />

mais fácil <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> vez, mas com os olhos de sua amiga fixos nela, resultava ain<strong>da</strong> mais difícil.<br />

– Não – Lydia negou com a cabeça com feroci<strong>da</strong>de. – Não pode ser. Haveria-me dito.<br />

– De certo modo, Minerva Lane nunca existiu. Quando era pequena, meu pai me vestiu de menino e<br />

viajou comigo por to<strong>da</strong> a Europa, me exibindo. Chamava-me Maximilian. Logo se soube a ver<strong>da</strong>de –<br />

tragou saliva–. Fiquei desonra<strong>da</strong>. Já pode imaginar como foi minha desonra. Troquei o nome para<br />

escapar disso.<br />

– Mas – Lydia negava com a cabeça, – como pode ser isso ver<strong>da</strong>de? Se fosse ver<strong>da</strong>de, você me<br />

haveria dito – se tornava mais veemente a ca<strong>da</strong> repetição <strong>da</strong> frase.<br />

– Não – disse Minnie. – Não o teria feito.<br />

Lydia ergueu o queixo.<br />

– Você sabia tudo, absolutamente tudo, de mim. Como podia não me dizer isso. – Para Minnie, vê-la<br />

com a respiração entrecorta<strong>da</strong> e os punhos apertados, era pior que quando se viu rodea<strong>da</strong> pela multidão,<br />

quando se tinham concentrado a seu redor e…<br />

– Lydia, eu não podia. Se lhe dizia isso… – Eu não haveria dito na<strong>da</strong> jamais.<br />

Minnie sentia a cicatriz tensa. Ardia-lhe a cabeça e o estômago.<br />

– Quase não posso falar disso. Quando o faço, treme-me todo o corpo. Não posso respirar. Não podia<br />

suportar que me olhasse enquanto o dizia. Não podia.<br />

– Não permita Deus que você me tivesse mostrado uma debili<strong>da</strong>de.<br />

Poderia ter pensado que foi uma simples mortal.<br />

Minnie fechou os olhos.<br />

– Eu ain<strong>da</strong> te quero. Lydia?<br />

– Como pode me querer? – perguntou sua amiga com frieza. – A pessoa que era minha amiga… nem<br />

sequer era real. Era uma invenção.


– Não. Era… era real – assegurou Minnie. Mas falava em voz mais baixa, e Lydia nem sequer a<br />

olhava.<br />

– Vá embora – disse esta. – Neste momento não posso nem te olhar. Parta.<br />

Minnie se aproximou <strong>da</strong> porta cambaleante. Seguia chovendo forte e o ruído do trovão soava como o<br />

tamborilar de pés, como o rugido de uma multidão. Um raio cruzou seu campo de visão.<br />

– Toma – Lydia lhe pôs um guar<strong>da</strong>-chuva na mão. – Leve isto. Não é por ti, não me importa o que te<br />

aconteça. Apenas te quero fora de minha vista. Parta!<br />

Minnie não teria sabido dizer como desceu os degraus até a rua. Quase não podia ver através <strong>da</strong>s<br />

lágrimas e <strong>da</strong> chuva. Quando ergueu a cabeça, viu três homens na calça<strong>da</strong> em frente. Olhavam-na com<br />

curiosi<strong>da</strong>de. Possivelmente não viam todos os dias sair a uma mulher cambaleando-se de uma casa. Eram<br />

somente três, mas bastava isso.<br />

“Não é na<strong>da</strong>. Não é na<strong>da</strong>. Você não é na<strong>da</strong>”.<br />

Mas ela era alguém e não podia fingir que os acontecimentos desse dia tinham ocorrido a outra<br />

pessoa. Dobrou-se sobre si mesma e vomitou com violência na rua.<br />

Quando se assentou seu estômago, incorporou-se. Tremia ain<strong>da</strong>, mas tinha a sensação de que o vômito<br />

tinha levado tudo consigo. Não só os tremores físicos, mas também o medo, o acanhamento e doze anos<br />

de mentiras. Levou tudo o que a tinha convertido em Wilhelmina Pursling, a jovem tími<strong>da</strong> e cala<strong>da</strong> que se<br />

escondia nos cantos.<br />

Olhou a casa dos Charingford por cima do ombro. Wilhelmina Pursling tinha desaparecido e levou<br />

consigo uma déca<strong>da</strong> de amizade.<br />

“Bravo, Minnie. Bravo”.<br />

Abriu o guar<strong>da</strong>-chuva com um suspiro e pôs-se a an<strong>da</strong>r para o prado em que tinha deixado o cavalo.


CAPÍTULO 18<br />

Robert PENSOU QUE ERA ESTRANHO que suas perspectivas tivessem podido mu<strong>da</strong>r tanto em vinte<br />

e quatro horas. Dois dias atrás tinha feito uma oferta de matrimônio. Tinha estado esperançoso, cheio de<br />

desejo e desejo. E esse dia…<br />

– Assim já vê, Excelência, estamos em um ponto morto.<br />

Robert estava sentado em seu salão. O capitão Stevens se achava diante ele e havia um montão de<br />

papéis sobre a mesa.<br />

– Não posso anunciar que é você o autor dos santinhos – disse Stevens. – Se, se souber que tais<br />

sentimentos contam com aprovação de um duque, a multidão já não terá razões para conter-se.<br />

Robert apenas o ouvia. Sua mente seguia fixa na carta. Menos mal que tinha estado sentado quando<br />

Stevens a tinha mostrado e lhe havia dito que sua mãe tinha pago a Minnie para que o traísse. Se não<br />

fosse assim, poderia haver-se cambaleado.<br />

“Podia haver dito que não e me preparado”.<br />

– Você provavelmente não terá que confrontar consequências – Stevens franziu o cenho. – Mas lhe<br />

direi algo. Por ca<strong>da</strong> santinho que escreva, eu farei deter e encarcerar a um suspeito.<br />

– Sem provas? Sabendo que não são os autores? – perguntou Robert com calma.<br />

– É importante – repôs Stevens. – Alguém deve pagar. Se não pagar ninguém, pagaremos todos. Não<br />

pode me… não se pode ignorar a lei desta maneira.<br />

Embora ao Robert troassem os ouvidos, reconhecia o que fazia Stevens: ameaçava-o ameaçando a<br />

outros. Robert sabia que alguém devia estar por trás <strong>da</strong>s condenações por rebelião criminal, condenações<br />

que não deveriam ter ocorrido. Seu desejo tinha sido encontrar quem tinha corrompido a lei.<br />

Isso ao menos o tinha conseguido. Tomou nota mentalmente de que devia fazer com que retirassem<br />

Stevens de seu posto. Assim que pudesse voltar a pensar com clari<strong>da</strong>de.<br />

– Entendo – respondeu. – Bem, obrigado pela visita.<br />

– Mas…<br />

Robert já se levantou. Saiu <strong>da</strong> estadia sem incomo<strong>da</strong>r-se em olhar para trás.<br />

Passeou por sua biblioteca, esperando que o embargassem seus sentimentos.<br />

Mas ao final triunfou uma surpreendente sensação de calma, como se tivesse passado por uma<br />

tormenta de areia e esta tivesse arrancado a carne pouco confiável de seus sentimentos e deixado só os<br />

ossos. Os ossos não sentiam desejo. Não sentiam desejos. Graças a Deus por isso!<br />

Quando pediu que lhe preparassem um cavalo, não sentia nem o mais leve indício de fúria. O caminho<br />

até a granja <strong>da</strong>s tias avós era longo, mas isso não o irritou. Não sentia na<strong>da</strong> absolutamente.<br />

Seguia sem sentir na<strong>da</strong> quando jogou as rédeas sobre o poste de atar os cavalos. Na<strong>da</strong> se agitou em<br />

seu peito quando bateu na porta. Era como se estivesse envolto em algodão, como se o mundo inteiro<br />

tivesse emudecido a seu redor. A porta se abriu sem ruído e apenas ouviu a si mesmo perguntar por ela.


O salão ao qual o conduziram poderia ter estado desprovido de móveis e não o teria notado. Não se<br />

sentou. Não olhou na<strong>da</strong>. Apenas esperou, sabendo o que poderia acontecer.<br />

Ela abriu a porta.<br />

Possivelmente, no fundo, tinha temido que, quando voltasse a vê-la, se sentiria tão afligido por seus<br />

sentimentos que lhe perdoaria o que tinha feito. Tinha fabricado uma imagem dela, apoiando-se em coisas<br />

que ela não havia dito, em palavras que não se pronunciaram; até que tinha chegado a acreditar-se<br />

apaixonado por uma mulher que não existia. Mas quando ela entrou, não sentiu na<strong>da</strong>.<br />

Ela era pequena, e parecia encolhi<strong>da</strong>. To<strong>da</strong> sua magia se perdeu.<br />

Robert só sentiu uma dor apaga<strong>da</strong> onde antes tinha estado ela.<br />

Estava a salvo, graças a Deus. A salvo de si mesmo.<br />

– Excelência – disse ela.<br />

Ele inclinou a cabeça.<br />

Era a primeira vez desde que se conheciam em que ela o tratava como a um duque. E também era a<br />

primeira vez que ele queria ser tratado como tal. Os duques não tinham que explicar na<strong>da</strong>. Não tinham<br />

que suplicar.<br />

Simplesmente atuavam e ninguém questionava seus atos.<br />

– Estou certo que sabe por que vim – comentou.<br />

Ela inclinou a cabeça. Ele notou vagamente que parecia desgraça<strong>da</strong>. Tinha círculos escuros sob os<br />

olhos. E a luz que tinha visto neles, a formosa luz que parecia encher a sala, estava completamente<br />

apaga<strong>da</strong>.<br />

Não se importou. A Robert já não importava na<strong>da</strong>.<br />

– Excelência. Devo-lhe uma explicação.<br />

– Não quero explicações – respondeu ele. O gelo não tinha necessi<strong>da</strong>de de ouvir na<strong>da</strong>.<br />

– Mas…<br />

– Não me importa por que o fez – murmurou Robert. Suas palavras tinham um som oco. – Dá no<br />

mesmo saber quanto lhe pagou minha mãe. Você não me importa na<strong>da</strong>. Ela se encolheu.<br />

– Pois me permita lhe garantir… – E não desejo quaisquer garantias.<br />

Deu-se conta então de que ela nunca as tinha <strong>da</strong>do. O único que as ofereceu tinha sido ele. Enganou-se<br />

pensando que, se ela chegava a conhecê-lo, que podia explicar-lhe bem, ela poderia… O que?<br />

Ela poderia interessar-se também por ele. Apreciá-lo um pouco. Ela sabia quem era ele e o que<br />

queria. Robert lhe tinha contado seus sonhos, Seus desejos secretos. Tinha confessado tudo.<br />

E não tinha sido suficiente.<br />

Uma vez mais teve uma desilusão. Dedicou-se a sonhar acor<strong>da</strong>do com uma pessoa que pouco se<br />

fixava nele.<br />

A diferença estava em que dessa vez não seria ele quem veria como se afastava a outra pessoa. Não<br />

seria ele o que esperaria inutilmente cartas que nunca chegavam.<br />

Obrigou-se a respirar regularmente até que recuperou aquela sensação de calma paralisa<strong>da</strong>. Envolto<br />

em algodão? Não, o algodão era muito leve para conter todo seu ser. Estava enterrado em areia e ca<strong>da</strong>


grão era um peso que lhe pressionava o peito, tão pesado que to<strong>da</strong>s as demais sensações ficavam<br />

bloquea<strong>da</strong>s. Não sentia na<strong>da</strong> absolutamente, e gostava.<br />

Ela deve ter visto algo do que não se percebia em seu rosto, porque baixou a cabeça.<br />

– Sinto muito, Excelência.<br />

– Não quero uma desculpa – replicou ele, cortante.<br />

– Então, por que veio?<br />

– Muito simples – disse Robert. Lhe teria gostado de estar sentado sozinho para ter podido levantarse<br />

nesse momento. – Vim para dizer adeus – caminhou até a porta e ali se voltou. Ela o olhava com a<br />

boca aberta. – E já o disse.<br />

Saiu sem acrescentar na<strong>da</strong> mais.<br />

Pareceu-lhe que demorava séculos em atravessar o corredor até a porta de entra<strong>da</strong>, e um século mais<br />

em pegar o chapéu e a capa. Ouvia seu coração pulsando com força no peito.<br />

Dessa vez Minnie correria atrás dele. Jogaria-se a seus pés e suplicaria pie<strong>da</strong>de. E lhe agra<strong>da</strong>ria<br />

muito não dignar-se em baixar a vista. Separaria-a de seus sapatos como se fosse pó.<br />

Não a perdoaria. Para perdoá-la, teria que lhe importar, e para que lhe importasse, teria que permitirse<br />

sentir.<br />

Mas ela não chegou, e ele não teve que decidir o que ia fazer.<br />

NO DIA SEGUINTE, O CAFÉ DA MANHÃ com sua mãe encaixava muito bem com seu humor<br />

sombrio. O ruído <strong>da</strong> colherinha dela ao dissolver o açúcar interrompeu um silêncio que parecia<br />

suportado por uma centena de conversas que nunca haviam tido. Esse dia gostaria de sentir-se irritado.<br />

Por fim a duquesa depositou sua xícara com a determinação de um pedreiro que molhasse tijolos em<br />

argamassa e o olhou.<br />

– Suponho que concedeu em ver-me porque está zangado pelo que fiz – comentou, levantando o<br />

queixo no ar.<br />

Robert se limitou a cruzar os braços e a olhá-la.<br />

– Eu não lhe disse o que tinha que fazer – continuou ela. – Isso o decidiu sua senhorita Pursling<br />

sozinha. Mas sim, confesso-o. Paguei cinco mil libras à senhorita Pursling para que recusasse sua oferta<br />

do modo mais descortês que pudesse.<br />

A mente de Robert ficou em branco. Teve que recorrer a to<strong>da</strong> sua força de vontade para seguir com os<br />

braços cruzados e não afastar a vista dela. Mas dessa vez seu silêncio não produziu nenhum comentário<br />

Ela se limitou a tomar um sorvo de chá e deixar que Robert tentasse esclarecer a confusão que sentia.<br />

– Pagou-lhe para que me rechaçasse – disse ele.<br />

Ela assentiu.<br />

Stevens havia dito claramente que tinham pago à senhorita Pursling para que descobrisse os segredos<br />

de Robert. Este tinha acreditado que a intenção dela tinha sido lhe estender uma armadilha. Tinha<br />

pensado que a atração se deu só por sua parte. Tinha recor<strong>da</strong>do com inquietação o modo como ela tinha


fingido acanhamento e se perguntou como era possível que ele não tivesse notado o pouco confiável que<br />

era.<br />

– Vá, mãe! – exclamou. – Não sabia que eu te importava tanto.<br />

A pesar do sarcasmo que cobria suas palavras, havia muito de ver<strong>da</strong>de nelas. A duquesa jamais tinha<br />

feito na<strong>da</strong> que pudesse qualificar-se nem remotamente como maternal. Intrometer-se em sua proposta de<br />

matrimônio era quase tão bom como receber seu beijo na bochecha. Era… comovedor.<br />

Exasperante, também. Era ruim. Era uma altivez. Mas… comovedor.<br />

Ela respirou com força e afastou a vista.<br />

– Foi apenas dinheiro. Não dê tanta importância.<br />

– Ao contrário. Estou muito agradecido. Se ela se pode comprar tão facilmente, é melhor sabê-lo<br />

agora.<br />

A duquesa o observou um momento, como se não acreditasse que ele pudesse mostrar-se tão<br />

tranquilo, tão sereno.<br />

– Disse-lhe que, se sua traição fosse bastante má, não voltaria a pensar nela. E resulta que tinha<br />

razão.<br />

Não parecia alegrar-se de sua vitória. Não sorria e não havia jactância em sua voz.<br />

– É muito indulgente – prosseguiu ela. – Até deixar de me perdoar em tudo. Me diga, em que momento<br />

te rendeu por fim as esperanças para comigo?<br />

Robert aspirou ar com força.<br />

– Que presunção tão odiosa! Nunca tive esperanças contigo – disse. Mas não pôde olhá-la enquanto<br />

falava. Ela tinha suas cartas para acreditar nisso.<br />

– Foi no funeral de seu pai, ver<strong>da</strong>de?<br />

Robert nem sequer se permitiu piscar.<br />

– Escreveu-me com antecipação e me pediu que fosse. “Agora que ele já não está…”, disse.<br />

Robert deu um murro na mesa. Salpicou chá por to<strong>da</strong> parte.<br />

– Te pedi que viesse?<br />

Olhou-a de cima abaixo. Ela não se encolheu nem respondeu a seu olhar desafiante. Simplesmente o<br />

olhou com calma, tão serena como sempre. Seus olhos mostravam tanta expressão como uma boneca de<br />

porcelana <strong>da</strong> China.<br />

– Eu não te pedi que viesse – comentou ele. – Lhe supliquei isso. Sabia que eu acreditava<br />

sinceramente que me levaria contigo? Tinha-me convencido de que a única razão pela qual adiou me<br />

conhecer melhor era que não podia tolerar a presença de meu pai. E que, quando ele já não estivesse,<br />

poderíamos ter uma oportuni<strong>da</strong>de. Como não veio ao funeral, disse-me que viria quando terminasse. E<br />

quando vi que não chegava, convenci-me de que esperaria até que se fossem todos. Finalmente, disse-me<br />

que viria para me buscar quando escurecesse e não se inteirasse ninguém. Até esse dia, acreditava, e não<br />

sei por que, pois não tinha nenhuma prova, que era somente meu pai o que nos mantinha separados. Mas<br />

não era isso. Eu não te importava.<br />

– Não – repôs ela com suavi<strong>da</strong>de. – Não é ver<strong>da</strong>de.<br />

– Importei-te alguma vez ou me odeia tanto como odiava a ele?


– Tanto? – ela franziu o cenho. – Eu diria que te odiava de um modo diferente.<br />

Robert teria gostado de ter então a calma imperturbável de uns momentos atrás. Embora tivesse<br />

sabido que devia ser assim, embora suspeitasse que aborrecia a sua mãe, ouvi-la dizer o convertia em<br />

real. E depois de todos esses anos, de todo o tempo que tinha passado tornando-se indiferente com ela,<br />

ain<strong>da</strong> doía.<br />

– Naqueles primeiros meses – disse ela, – quando seu pai te separou de mim, pensei que não tornaria<br />

a respirar. Mas não podia deixar que ele soubesse o quão importante você era para mim. Se o fazia, só<br />

Deus sabe com o que teria ameaçado. Assim que despertava to<strong>da</strong>s as manhãs, vestia-me e ia fazer visitas.<br />

Ria-me quando encontrava coisas graciosas e mostrava minhas simpatias quando não era assim, e sentia a<br />

todo momento que meu peito se convertia em uma caverna.<br />

Falava com tanta suavi<strong>da</strong>de que não induzia a pensar que tivesse tido alguma vez algo no peito.<br />

– Aos três anos, foi uma armadilha para meu coração. Ca<strong>da</strong> palavra que me dizia, ca<strong>da</strong> curta visita<br />

que seu pai me permitia à contra gosto, eram como se, se fechasse um muro a meu redor. Quanto mais<br />

adorável te tornava, mais seguro estava seu pai de minha volta, e mais me ameaçava. Tinha que fingir que<br />

não me importava. Depois de um tempo, comecei a fingir tão bem… que possivelmente deixou de me<br />

importar de ver<strong>da</strong>de. E não, eu não gostava que me fizesse sentir algo – encolheu os ombros com<br />

indiferença. – Mas o que ia fazer? Ficar com ele? Tentei-o. Mas então, ele já era impossível. Depois <strong>da</strong><br />

última vez, quando tinha nove anos e passei uma noite entrincheira<strong>da</strong> em meu quarto com ele uivando e<br />

golpeando a porta, ameaçando com… A duquesa o olhou de soslaio.<br />

– Acredito que, se não tivesse estado tão bêbado, teria ocorrido algo muito feio. Não podia ficar. E<br />

legalmente, você era dele. O que podia fazer eu exceto deixar de te querer?<br />

Robert moveu a cabeça.<br />

– Sempre que se ia, ele me dizia que era minha culpa. Que não tinha conseguido te cativar. Que teria<br />

que ter sido mais…<br />

Mais adorável. Embora seu pai jamais tivesse usado essa palavra.<br />

Sua mãe o olhou.<br />

– Quando morreu seu pai, assumi que te tinha feito a sua imagem.<br />

Quando me dei conta de que não era assim… – voltou a encolher os ombros, – então já era tarde para<br />

salvar algo entre mãe e filho. Por sorte, para então já não me importava. Não sentia na<strong>da</strong>. E agora,<br />

sabendo que é muito tarde para fazer na<strong>da</strong>, agora…<br />

Olhou-o nos olhos.<br />

– Agora – disse, – descubro que segue sem me importar – lhe brilharam os olhos um momento e<br />

afastou a vista. Ergueu o queixo e apertou os lábios.<br />

– Entendo – comentou ele, confuso.<br />

– Não me importa. Não pode me importar. Já não sei como fazê-lo – ela tirou um lenço com bor<strong>da</strong> de<br />

ren<strong>da</strong>s e limpou os olhos.<br />

– Está…?<br />

– Não. Eu nunca choro – a duquesa o olhou com feroci<strong>da</strong>de.<br />

– Entendo – repetiu ele.


E pensou que era assim. Aquela viagem… a visita dela, seus pronunciamentos exagerados, sua<br />

estúpi<strong>da</strong> interferência… Possivelmente não lhe importava. Possivelmente, depois de todos esses anos,<br />

tinha esquecido como querê-lo. Mas o tentava. Recor<strong>da</strong>va a um potro recém-nascido que lutava por<br />

sustentar-se sobre suas patas trêmulas, tentava sustentar-se de pé e caía redondo ao chão.<br />

Ela respirou lentamente.<br />

– Quando conseguir aprender como – disse, – você já haveria renunciado a mim de tudo. Parece-me<br />

um castigo merecido.<br />

Guardou seu lenço e o olhou de cima abaixo, desafiando-o a contradizê-la.<br />

Em uma ocasião, quando Robert era pequeno, ela tinha ido de visita. Ele tinha corrido para recebê-la<br />

ao descer <strong>da</strong> carruagem. Não sabia quantos anos tinha então, mas recor<strong>da</strong>va que se abraçou aos joelhos<br />

dela, tão alto como podia alcançar.<br />

Ela não o havia correspondido; nem sequer se tinha agachado para lhe <strong>da</strong>r tapinhas na cabeça.<br />

Apenas o tinha observado, havia-lhe dito que mostrasse mais decoro e tinha seguido an<strong>da</strong>ndo.<br />

Por isso, esse dia na mesa do café <strong>da</strong> manhã, Robert não fez gesto de tocá-la. Acreditava que não<br />

gostaria e se sentia muito vulnerável para arriscar-se a um desprezo.<br />

– Pois muito bem – comentou com brutali<strong>da</strong>de. – Obrigado por tomar o incômodo de sair de sua<br />

indiferença e te intrometer em meus planos matrimoniais. Pensava que ela valia mais. Aparentemente,<br />

não.<br />

– Oh, sim! – respondeu a duquesa. – Gostei dela. Encontre outra garota como ela, mas desta vez que<br />

seja filha de um marquês.<br />

– Sabe? Não tenho nem ideia de quem é sua família. Pursling não é seu nome ver<strong>da</strong>deiro.<br />

– Não?<br />

– Ela nasceu como Minerva Lane.<br />

A duquesa soltou um coice audível.<br />

– Minerva Lane?<br />

– Você sabe quem é? – Robert a olhou surpreso. – Me disse que tinha havido um escân<strong>da</strong>lo.<br />

– Escân<strong>da</strong>lo? Com ela? Não – a mulher negou com a cabeça com violência. – Escân<strong>da</strong>lo é o que<br />

ocorre quando uma garota entrega seus favores com ligeireza. É um assunto que se pode vencer, pode-se<br />

arrumar, se não esquecer, com um bom matrimônio e dinheiro suficiente. A senhorita Lane não ficou<br />

desonra<strong>da</strong>, Robert. Ficou completamente destruí<strong>da</strong>.


CAPÍTULO 19<br />

Minnie NÃO TINHA PODIDO FALAR com suas tias a noite anterior. Mas quando a duquesa de<br />

Clermont enviou um pagamento de seu banco, já não tinha sentido adiar mais a conversa.<br />

– Há algo que devem saber as duas – disse. – Ontem, quando veio para ver-me Lydia, foi porque<br />

Stevens tinha ido a Manchester. Sabe que não há nenhuma senhorita Wilhelmina Pursling, que sou uma<br />

impostora. Sabe que nasci como Minerva Lane.<br />

As duas mulheres deram um coice e se olharam.<br />

– Sabem o que…?<br />

Minnie negou com a cabeça.<br />

– Não sabem tudo.<br />

– Não me dê esses sustos – Caroline levou uma mão ao coração– . E o que vamos fazer? Com o<br />

Gardley fora de cena… Minnie afastou a vista.<br />

– Resulta que obtive um pouco de dinheiro. Cinco mil libras.<br />

Suas tias a olharam. As duas eram muito diferentes entre si, mas a expressão escan<strong>da</strong>liza<strong>da</strong> de seus<br />

rostos era idêntica.<br />

– Queri<strong>da</strong> – disse Eliza ao fim. – Sabemos que este é um momento difícil. Mas cinco mil libras é uma<br />

grande quanti<strong>da</strong>de de dinheiro, e nós não gostaríamos que, ah… que…<br />

Certamente pensavam que tinha conseguido aquele dinheiro por meios ilícitos. E se pensavam isso,<br />

perguntariam-se…<br />

– Não – respondeu Minnie com amargura. – O ganhei limpamente – bom, possivelmente não tinha sido<br />

de um modo muito limpo, mas o tinha ganho legalmente. De um modo legítimo. Teria que bastar com isso.<br />

– Como?<br />

– Tive uma proposta de matrimônio. Sua mãe não queria que a aceitasse – Minnie afastou a vista. –<br />

Não aceitei – eram apenas duas palavras e, entretanto, rompiam-lhe o coração.<br />

Mas fazia tempo que tinha renunciado a desejar que as coisas fossem diferentes. Os desejos eram<br />

algo estúpido, coisas tolas.<br />

– Uma proposta de matrimônio? – repetiu Caro. – Mas de quem?<br />

Não imagino…<br />

Interrompeu-a a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> donzela.<br />

– Senhorita – disse esta, dirigindo-se a Minnie. – Senhoritas.<br />

Perguntam pela senhorita Pursling.<br />

– Quem é? – inquiriu Eliza.<br />

Lydia. Lydia tinha ido vê-la. Minnie poderia explicar-lhe tudo, arrumar as coisas com ela.


Mas a donzela agachou a cabeça com acanhamento repentino e Minnie adivinhou no ato de quem se<br />

tratava.<br />

– Sua Excelência o Duque de Clermont – disse.<br />

Minnie sentiu gelo no estômago, mas tinha as mãos muito quentes. Não sabia se ria ou chorava, se<br />

corria para seus braços ou escapava saltando pela janela. Ficou com a vista crava<strong>da</strong> à frente; no bolso<br />

tinha dobrado o pagamento bancário de cinco mil libras, a modo de acusação silenciosa.<br />

– Oh! – exclamou Eliza.<br />

– Tinha ouvido rumores – Caroline esfregou a testa, – mas parecia tão improvável que… Se tivesse<br />

havido algo de ver<strong>da</strong>de neles, você nos haveria isso dito, não é assim?<br />

Minnie não podia as olhar aos olhos.<br />

– Acredito que deveríamos falar disto em breve. Mais tarde.<br />

Caroline assentiu. Eliza se levantou, apoiando-se com força na bengala que usava dentro de casa.<br />

– Minnie – disse com suavi<strong>da</strong>de. – Se não quer se casar com ele, não tem que fazê-lo. Nunca lhe<br />

obrigaremos a fazer isso. Não importa o que tenha acontecido, o que disse nem o que tenha feito. Nós lhe<br />

queremos, independentemente do que queira fazer.<br />

Quando entrou o duque um momento depois, Minnie se esforçava por reprimir as lágrimas. Nem<br />

sequer pôde voltar-se para olhá-lo. Percebeu o som de suas botas no chão, aproximando-se. Deteve-se a<br />

poucos centímetros de distância dela.<br />

Não disse na<strong>da</strong>; possivelmente esperava que ela o sau<strong>da</strong>sse primeiro. Mas Minnie não podia. Se, se<br />

voltava naquele momento…<br />

– Pensei em escalar até sua janela – disse ele por fim, com voz grave. – Mas teria que tirar as botas<br />

para subir pelos tijolos, e, além disso, a janela que me pareceu ser a sua é incrivelmente estreita. Agora<br />

sei por que Julieta tinha um balcão. E por isso optei pela rota menos romântica e bati na porta principal.<br />

Minnie soltou um risinho trêmulo.<br />

– Romeu, além disso, tinha dezesseis anos – respirou fundo, esforçou-se em mostrar uma expressão<br />

serena e se voltou por fim. – Acreditava que já tinha se despedido. Por que voltou?<br />

Ele, em resposta, tomou a sua mão. Enquanto ela estava de costas, tirou as luvas e as tinha deixado<br />

sobre a mesa. Minnie sabia que devia afastar-se, mas estava ain<strong>da</strong> muito fraca para resistir. Ele<br />

entrelaçou seus dedos com os dela. Suas mãos eram suaves e fortes.<br />

– Está bem – disse. – Vou dizer isto sem rodeios. Estraguei tudo.<br />

– Você estragou tudo – repetiu Minnie com increduli<strong>da</strong>de. – Você – olhou-o, perguntando-se se tinha<br />

perdido a cabeça durante a noite.<br />

O duque assentiu com a cabeça e lhe assinalou uma poltrona. Dava voltas a cabeça.<br />

– Você me disse que não podia ser duquesa – disse ele quando se sentou. – E eu não prestei atenção a<br />

suas palavras.<br />

Minnie piscou e se sentou em frente a ele.<br />

– Não comecei a entendê-las até que minha mãe me disse que lhe tinha pago para me rechaçar, não<br />

para me delatar. E uma vez que me pus a pensar nisso, isso tampouco tinha sentido. Meus ganhos são um<br />

mínimo de dez mil libras ao ano, algo que todo mundo sabe. Qualquer pessoa racional que tivesse que


escolher entre cinco mil libras e casar-se comigo, escolheria-me. Se você fosse tão fria e calculista como<br />

eu pensava, estaríamos casados, não nos olhando de cima abaixo.<br />

Minnie negou com a cabeça.<br />

– Além disso, se minha mãe lhe tivesse pago para me deter, você teria utilizado minha carta<br />

imediatamente. Não teria esperado. E como ia estar ela a par de meus atos? Como ia saber que você era<br />

a única pessoa que tinha me descoberto? A história não tem sentido, senhorita Pursling – a olhou nos<br />

olhos. – Nunca tinha me alegrado tanto ao <strong>da</strong>r conta de que tinham mentido para mim.<br />

Minnie sentia uma opressão na garganta. Esforçou-se muito por afastá-lo e ele seguia sem partir.<br />

– Não prestei atenção ao que me dizia – ele seguia olhando-a nos olhos. – Nem prestei atenção ao que<br />

não me dizia. Apenas ouvi o que tinha a ver comigo. Ouvi que não me desejava, que eu não podia lhe<br />

importar. Ouvi que lhe causava ansie<strong>da</strong>de que as pessoas se concentrassem em você, mas não escutei –<br />

juntou os dedos. – Permita que eu lhe diga o que deveria ter ouvido.<br />

Seu pai foi um dos melhores jogadores de xadrez… Minnie ficou em pé de um salto.<br />

– Sabe.<br />

O coração lhe pulsava com força no peito. Tomava o ar em respirações curtas e superficiais. A<br />

atmosfera parecia tremer ao seu redor. Mas é obvio que ele sabia. Lhe havia dito seu nome. Depois<br />

disso, todo o resto era questão de investigar. Retrocedeu um passo sem pensar no que fazia e tropeçou<br />

com sua poltrona.<br />

Mas antes que chegasse a cair sobre o assento, Robert se adiantou e a tomou em seus braços. Uns<br />

braços quentes e firmes.<br />

– Shss! – murmurou. – Sou eu. Não vou lhe fazer mal. Eu nunca lhe farei mal, Minnie.<br />

Ela ergueu a cabeça para olhá-lo nos olhos. O pulso lhe pulsava com força, mas não havia uma<br />

multidão perto; não havia gritos.<br />

Apenas ele.<br />

Essa vez, quando se sentou, colocou-a em seu colo. Encaixavam juntos como duas peças de um<br />

quebra-cabeça; a cabeça dela caiu automaticamente sobre o ombro dele, que pôs uma mão em seu cabelo.<br />

Minnie sabia que não devia apoiar-se nele. Aquilo não deveria estar acontecendo. Tinha partido o<br />

coração tentar afastá-lo uma vez. Como ia ser capaz de repeti-lo?<br />

– Vamos começar de novo – disse ele com suavi<strong>da</strong>de. Entrelaçou suas mãos em torno dela. – Apenas<br />

descobri alguns detalhes. Seu pai foi um dos melhores jogadores de xadrez do mundo. O que aconteceu?<br />

Minnie sentia mariposas no estômago. Mas ele a estreitava em seus braços. E ele sabia. Sabia e não<br />

lhe estava lançando objetos à cabeça. Esperava com paciência que ela estivesse prepara<strong>da</strong>.<br />

“Salva” era o último que se sentia quando tinha que pensar naqueles tempos sombrios, mas ao menos,<br />

no momento, não sentia vontade de vomitar.<br />

Respirou fundo.<br />

– Meu pai era o quinto filho de um baronete. Da nobreza menor, muito por baixo de seu padrão de<br />

duque, e, além disso, empobrecidos. Ganhava a vi<strong>da</strong> jogando xadrez. Era gregário, extrovertido caía bem<br />

a todo mundo. Sua fortuna pessoal era quase inexistente, mas se saía tão bem que isso não importava.<br />

Sempre tinha um convite para hospe<strong>da</strong>r-se em alguma parte. Às vezes eram convites na Inglaterra, outras


vezes eram ofertas para visitar a Europa e passar meses com homens que queriam estu<strong>da</strong>r o xadrez com<br />

um homem jovem e brilhante.<br />

Uma vez, em uma dessas viagens que tinha feito com ele, um marinheiro lhe havia dito que olhasse a<br />

costa quando se enjoava no mar e desapareceria a náusea. Nesse momento olhou para a estante e lhe<br />

surpreendeu descobrir que seu mundo se voltava mais firme.<br />

– Meus pais se casaram só uns anos antes <strong>da</strong> minha mãe morrer de parto. Não recordo grande coisa<br />

antes dos cinco anos, exceto as visitas de meu pai. Minhas primeiras lembranças são dele me ensinando a<br />

jogar xadrez. Aprendi a mover as peças antes de aprender o alfabeto. Esperava suas visitas com muita<br />

impaciência. E um dia, quando eu era muito, muito jovem, perguntou-me se queria acompanhá-lo a<br />

seguinte vez que viajasse ao estrangeiro.<br />

Minnie respirou com força. Robert não disse na<strong>da</strong>. Limitou-se a estreitá-la com mais força.<br />

– É obvio, uma menina não pode viajar ao Continente só com a única companhia de seu pai e<br />

hospe<strong>da</strong>r-se com o tipo de pessoas com as quais se hospe<strong>da</strong>va ele. Eu teria tido que viajar com uma babá<br />

e uma governanta, e para então, nossa economia era muito pobre para nos permitir essas coisas. Meu pai<br />

disse que havia uma solução fácil. Apresentaria-me como Maximilian Lane, seu filho. Perguntou-me se<br />

me importava – ela fechou os olhos. – Eu tinha cinco anos. Não sabia o que pensar. Ele disse que seria<br />

muito divertido e lhe disse que sim.<br />

A revoa<strong>da</strong> que sentia no estômago tinha começado a acalmar-se.<br />

– Acredito que aqueles primeiros anos eu não compreendia a curiosi<strong>da</strong>de que despertava. Recordo<br />

que as pessoas me propunham desafios de xadrez. Às vezes resolvia e às vezes não – encolheu os<br />

ombros. – À medi<strong>da</strong> que crescia, ia resolvendo ca<strong>da</strong> vez mais.<br />

– Quão único li sobre Maximilian Lane – interveio Robert, – dizia que era calado, solene e muito<br />

brilhante. Você jogava com adultos que tinham anos de experiência e os vencia sem problemas, e quando<br />

a elogiavam por isso, retrocedia quinze movimentos no tabuleiro e lhes explicava com entusiasmo o que<br />

deveriam ter feito para ganhar.<br />

– Sim – Minnie respirou fundo; fechou os olhos. – Me lembro disso. Ganhar tanto teve um efeito<br />

extraordinário sobre mim. Como pensava que ganharia sempre, não entendia o conceito do risco.<br />

Tampouco tinha entendido o conceito de perder.<br />

– O resto tive que adivinhar depois do fato. Quando fiz doze anos, meu pai estava muito endivi<strong>da</strong>do.<br />

Fazia promessas às pessoas, proclamava que tinha feito investimentos fabulosos na indústria russa. Para<br />

escorar essas declarações e atrair mais investidores, pagava com resultados de seus próprios e limitados<br />

recursos. Depois pagava aos penúltimos investidores com o que contribuíam os últimos aos que<br />

conseguia enrolar. Mas os investimentos russos não existiam e tinha que encontrar dinheiro rapi<strong>da</strong>mente<br />

se não queria que tirasse a aju<strong>da</strong> to<strong>da</strong>.<br />

Minnie baixou a vista. Naquele momento, ela apenas sabia que seu pai se mostrava ca<strong>da</strong> vez mais<br />

errático. Em um momento era imensamente feliz em outro estava furioso.<br />

– Não me convi<strong>da</strong>ram ao primeiro torneio internacional de xadrez em Londres. A meu pai sim. Mas<br />

uns dias antes, declarou que havia ficado doente de repente e ofereceu que eu ocupasse seu posto.<br />

Ninguém teve na<strong>da</strong> que objetar.<br />

Pequenos tremores percorriam o corpo de Minnie. Ela não podia reprimi-los.


– Necessitava muito dinheiro e as probabili<strong>da</strong>des me favoreciam. Pediu a um de seus amigos que<br />

apostasse até seu último centavo contra mim. E me ordenou que perdesse a parti<strong>da</strong>.<br />

Não lhe havia dito o motivo. Aquele dia gritaram mutuamente um com o outro.<br />

– Os Lane podem fazer tudo – lhe havia dito ela.<br />

E lhe tinha jogado um olhar estranho naquele momento. Minnie não se deu conta, até mais tarde, de<br />

que seu pai não esperava que usasse suas palavras para desafiá-lo a ele próprio.<br />

Minnie notava os braços de Robert quentes em suas costas e como subia e descia o peito dele com a<br />

respiração. O silêncio <strong>da</strong> sala os envolvia. Não havia na<strong>da</strong> ao redor nem ninguém perto. Apenas eles e as<br />

lembranças dela.<br />

– Uma menina tem uma cegueira estranha para os defeitos de seus pais. O meu era meu amigo mais<br />

querido. Estávamos sempre juntos. Ele me ensinou tudo o que sabia. Nunca me dizia nenhuma palavra<br />

dura. Eu o idolatrava. Ele estava acostumado a dizer que, se acreditávamos com força suficiente, tudo<br />

sairia bem. Que, se confiava em algo e esperava, encontraria o caminho. Quando me neguei a perder a<br />

parti<strong>da</strong>, ele encontrou seu caminho – respirou fundo. – Disse aos tabloides que eu era uma garota. No<br />

meio do torneio.<br />

Minnie recor<strong>da</strong>va ain<strong>da</strong> o tabuleiro <strong>da</strong> última parti<strong>da</strong>. Tinha beijado a torre e a tinha deixado de novo<br />

no tabuleiro. Faltavam-lhe quatro movimentos para o mate.<br />

– Os oficiais me interromperam e me desqualificaram. Tiraram-me <strong>da</strong>li me puxando a orelha e no dia<br />

seguinte saiu a história em todos os jornais de Londres. Tudo o que tinha sido, to<strong>da</strong>s as pessoas que<br />

acreditava que eram meus amigos, to<strong>da</strong>s as coisas que tinha obtido… tudo desapareceu. Tinha-me feito<br />

passar por um menino e tinha escan<strong>da</strong>lizado a todo mundo.<br />

– É incrível que durasse tanto tempo a farsa – comentou Robert.<br />

– Eu tinha doze anos. Se tivesse tido um ano a mais, me teria crescido o peito e teria sido impossível<br />

ocultar a ver<strong>da</strong>de – ela moveu a cabeça. – Não sei o que teria ocorrido se as coisas tivessem seguido seu<br />

curso. Mas quando se soube a ver<strong>da</strong>de, as pessoas começaram a fazer perguntas sobre meu pai. Tinham<br />

investido milhares de libras com ele e suas histórias não suportaram uma investigação conscienciosa. Seu<br />

julgamento teve muita publici<strong>da</strong>de. Eu assisti a ele. Era uma garota de doze anos, que tinha vestidos pela<br />

primeira vez em anos; uma garota nervosa e insegura. Ali foi onde ouvi a defesa de meu pai. Declarou<br />

que se viu obrigado a fazê-lo. Obrigado por mim. Disse que eu lhe tinha pedido que me vestisse de<br />

menino e me levasse com ele. Que o plano <strong>da</strong> indústria russa falsa tinha sido meu. Que eu tinha causado<br />

sua ruína. Que tudo o tinha feito eu.<br />

Robert a rodeou com seus braços.<br />

– Você tinha cinco anos quando começou aquilo.<br />

– Disse que eu era uma menina antinatural. Isso foi o que disse. Disse-o uma e outra vez. Que eu era<br />

uma menina antinatural. E quem ia contradizê-lo? Resultava evidente que era estranha. Podia ganhar no<br />

xadrez de homens adultos, a alguns dos melhores do mundo. Era uma garota cala<strong>da</strong>, sempre observando.<br />

Não ajudou que todos pudessem dúvi<strong>da</strong>s no julgamento, que notassem quão estranha era. Eu não sabia me<br />

mover como uma garota. Tinha o cabelo curto e tinha passado os anos de minha infância com homens<br />

dissolutos. Não sabia na<strong>da</strong> de bom comportamento.<br />

Guardou silêncio um momento. Robert esperou.


– Meu pai sempre dizia que, se crê em algo com a força suficiente, a reali<strong>da</strong>de não tem mais<br />

remedeio que fazer que se cumpra. Quando declarou naquele estrado, já se tinha convencido a si mesmo.<br />

Chamou-me “semente do diabo” diante de to<strong>da</strong> Londres.<br />

Minnie tinha pensado que não podia haver na<strong>da</strong> pior que o horror paralisante do tribunal, que ver o<br />

homem a que queria tanto, ao homem que nunca lhe tinha dirigido uma palavra dura, apontá-la com o<br />

dedo e denunciá-la. Ver a terrífica luz em seus olhos que indicava que acreditava no que dizia. Ele tinha<br />

sido quão único ela tinha no mundo e a tinha deixado de repente sozinha. E o tinha feito publicamente.<br />

– Era um homem carismático e convincente. Condenaram-no, não por roubo, mas sim por impostura,<br />

suficiente para lhe jogar dois anos de trabalhos forçados, mas não mais. Entretanto, as pessoas presentes<br />

no julgamento estavam convenci<strong>da</strong>s de que tinha sido tratado injustamente. Quando saí <strong>da</strong> sala,<br />

completamente sozinha, rodeou-me uma multidão. Gritaram-me e me cuspiram. Não sei quem atirou a<br />

primeira pedra. Não sei quantas atiraram – ergueu a cara para olhá-lo nos olhos. – Quando me tiraram<br />

<strong>da</strong>li, tinha desmaiado, mas nunca esqueci. Após o que aconteceu não posso suportar as multidões. Penso<br />

em um grupo de gente junta e ponho-me a tremer. Cedo ao pânico.<br />

– Alguma vez teve a alguém que a aju<strong>da</strong>sse? – perguntou ele. Sua voz soava baixa e rouca.<br />

– Minhas tias avós. Lydia também, até…<br />

Minnie quase se engasgou ao dizer aquilo. Mas tampouco então tinha podido confiar plenamente<br />

nelas. Suas tias morreriam e sempre tinha sabido que Lydia descobriria algum dia a ver<strong>da</strong>de e se sentiria<br />

enoja<strong>da</strong>.<br />

– Até o final, jamais teria adivinhado que meu pai pudesse fazer aquilo. Quero pensar que<br />

possivelmente estava doente. Que não sabia o que fazia quando me traiu – lhe brilharam os olhos. –<br />

Morreu na prisão, assim possivelmente era certo. Tenho que acreditar nisso porque, por muito que me<br />

esforço, não posso deixar de querê-lo. Ele me ensinou tudo o que sabia. Meu pai era to<strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>. E<br />

não sei como odiá-lo tudo o que merece. Assim já vê, Excelência, não posso me casar com você. Nem<br />

sequer posso pensar nisso sem ficar trêmula. A socie<strong>da</strong>de de Londres me destroçaria.<br />

– Não – murmurou ele. – Não a destroçarão.<br />

Minnie o olhou.<br />

– Como pode dizer isso?<br />

– Não a destroçarão porque eu não permitirei que ocorra isso – prometeu ele. Ergueu-lhe o queixo<br />

para poder olhá-la nos olhos. – Uma vez disse que era afortunado porque podia olhar onde quisesse sem<br />

medo. Acredito que não comecei a compreender o que queria dizer até que descobri… – a estreitou com<br />

mais força em seus braços. – Sabia que estava chatea<strong>da</strong>. Você me disse que tinha medo. Que era<br />

afortunado de não entender o que queria dizer, quão aterroriza<strong>da</strong> estava.<br />

Ela tinha começado a tremer.<br />

– Dou-lhe minha palavra de que, se, se casar comigo, protegerei-a. Estarei ao seu lado e jamais lhe<br />

farei nenhum mal. Já falei com o Stevens e Charingford e os dois ficarão de boca fecha<strong>da</strong>. Prometo-lhe<br />

pelo que considero mais sagrado que farei o impossível por manter seu passado em segredo e que, se<br />

fracasso nesse empenho, farei tudo o que esteja em meu poder para que esteja segura. Se, se casar<br />

comigo, não terá que voltar a ter medo.<br />

– E o que terei que lhe <strong>da</strong>r em troca?


– Sua leal<strong>da</strong>de – ele a abraçou com mais força. – E enquanto os dois possamos suportar mutuamente<br />

nossa presença, também seria bom que me desse seu corpo. Não espero seu amor. Não espero que me<br />

deseje eternamente. Mas acredito que poderíamos ter um bom matrimônio.<br />

– Não espera amor – ela moveu a cabeça confusa. – Esta é a segun<strong>da</strong> vez que diz isso. Será como em<br />

uma dessas terríveis tipos de novelas onde me adverte que não me apaixone por você e, se o fizer,<br />

converterá-se em<br />

Barba Azul e tentará me arrancar a cabeça? É atrativo. Tem todos os dentes…<br />

Olhou-o nos olhos e lhe tocou levemente a bochecha com a mão. Robert ficou muito quieto.<br />

– Não posso fazer nenhuma promessa. Se for bom na cama, poderia me apaixonar por você. Se isso<br />

for ser um anátema…<br />

– Não – se apressou a dizer ele. Afastou a vista dela e, quando voltou a falar, sua voz soava<br />

levemente rouca. – Não. Isso seria perfeitamente… plausível.<br />

Se, se guiasse por suas palavras, Minnie poderia ter pensado que pouco lhe importava. Mas o modo<br />

como quase lhe quebrava a voz e a maneira como inclinava a cabeça para ela indicavam que sua<br />

indiferença era mentira. Olhava-a como olharia um oásis um homem sedento que queria decidir se aquilo<br />

era só uma ilusão produzi<strong>da</strong> pelo calor.<br />

Minnie entendeu por fim o que ocorria ao duque. “Não é que queira um matrimônio sem amor.<br />

Simplesmente se resignou a isso”.<br />

Sua mãe havia dito que Robert tinha o coração de um romântico. Esse dia, Minnie tinha estado afligi<strong>da</strong><br />

por outras preocupações, mas possivelmente a duquesa tinha acertado. Seu filho lutava pelos que não<br />

tinham voz própria. E por alguma razão, convenceu-se a muito tempo de que não podia ser amado.<br />

Minnie estava tão perto de apaixonar-se por ele, que quase abriu a boca e o disse. Mas a luz nos<br />

olhos dele, o modo como a tinha observado quando lhe havia dito que isso seria plausível… tudo isso<br />

fazia com que resultasse cruel dizer-lhe antes que fosse ver<strong>da</strong>de.<br />

“Logo será ver<strong>da</strong>de”, pensou.<br />

Desde a traição de seu pai, havia-se questionado e se dito que ela tinha provocado o ocorrido por<br />

ambicionar muito. Por atrever-se a pensar que uma garota de doze anos podia desafiar a homens adultos e<br />

não ter que encarar consequências por isso.<br />

Mas possivelmente seu engano tinha sido não tentá-lo o suficiente.<br />

– Uma duquesa pode fazer muitas coisas que não pode fazer uma jovem <strong>da</strong>ma solteira – disse ele. –<br />

Talvez seja afortuna<strong>da</strong> comigo, Minnie.<br />

Ela pensou que no momento em que abrisse as asas seria o momento no qual se estatelaria contra o<br />

chão. Mas se não o tentava, não seria surpreendente que o chão se elevasse e a golpeasse.<br />

Levava muito tempo dizendo-se que era uma estupidez confiar muito. Mas talvez não o fosse. Não<br />

podia ver como seria seu futuro. Mas podia esperar amor e segurança e possivelmente, apenas<br />

possivelmente, não lhe negaria por tentar alcançá-lo com mãos trêmulas.<br />

– Céu santo! – exclamou com voz trêmula. – Acredito que vou.<br />

Robert soltou um suspiro de alívio.<br />

– Bem. Bem – a estreitou contra si com to<strong>da</strong>s suas forças. Baixou a cabeça e lhe sussurrou ao ouvido:<br />

– Espero ser bom na cama.


Era o mais perto que tinha estado de admitir que queria que o amasse. Minnie sorriu e o beijou. O<br />

sabor dele se parecia com a água salga<strong>da</strong> do mar. O coração lhe bateu as asas no peito como as asas de<br />

um bando de pássaros.<br />

– Eu também o espero – respondeu com acanhamento.<br />

Robert a beijou de novo e tomou a sua mão. Ela o beijou até que o sol <strong>da</strong> tarde encheu a sala, até que<br />

se sentiu tonta por tanta sensação. Abraçou-o e o beijou até que sua tia avó Caroline apareceu na soleira<br />

<strong>da</strong> porta e pigarreou.<br />

Minnie se ruborizou. Robert ficou de pé.<br />

– Você deve ser uma <strong>da</strong>s tias de Minnie – disse com suavi<strong>da</strong>de. – Sou Robert Blaisdell, o Duque de<br />

Clermont, e eu gostaria muito de me casar com sua sobrinha.


CAPÍTULO 20<br />

QUANDO Robert RETORNOU A SUA CASA, encontrou a seu irmão e a seu primo revisando molhos<br />

de papéis rabiscados. A julgar pelas notas que havia neles, deviam ser parte do seguinte ensaio de<br />

Sebastian.<br />

Eles não o viram entrar.<br />

– E há mais uma coisa – dizia Sebastian. – Por que os gatos pardos e os brancos são quase sempre<br />

fêmeas? Além de montar um programa maciço de cria de gatos…<br />

Interrompeu-se quando Robert se situou ao seu lado.<br />

– Vai te converter em fornecedor de gatos? – perguntou este com um sorriso.<br />

Sebastian fez um gesto com as mãos no ar.<br />

– Estava falando com Oliver de minha coleção de curiosi<strong>da</strong>des. Já sabe, coisas que observei e que<br />

ain<strong>da</strong> não posso explicar. Em Londres conheço uma mulher de oitenta anos que começa to<strong>da</strong>s as manhãs<br />

<strong>da</strong>ndo de comer a gatos de rua em um beco. Pedi-lhe que fizesse esboços dos gatos e anotasse suas<br />

descrições: peso, sexo, cor dos olhos, número de dedos… to<strong>da</strong> a informação interessante. Pensei que<br />

possivelmente isso me levaria a alguma conclusão – inclinou a cabeça para um lado e olhou para Robert.<br />

– Noto você diferente.<br />

– Ah, sim? – Robert se sentia diferente. Embargava-o uma sensação nova quase maravilhosa, uma<br />

confiança agra<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

– Pois sim – interveio Oliver. – Para sermos francos, nos últimos dias parecia…<br />

– Um rato morto que um gato arrasta até em casa – o interrompeu Sebastian. – Um gato de seis dedos.<br />

Sabia que os gatos de seis dedos têm dezessete por cento mais de unha?<br />

Oliver encolheu os ombros.<br />

– Um rato morto arrastado por um dos gatos guias de ruas de Sebastian – assentiu. – E ficava muito<br />

tempo olhando o espaço.<br />

E lançava suspiros pesarosos – Sebastian fez uma demonstração. Lançou um grande suspiro e a seguir<br />

afundou os ombros com tristeza.<br />

– Suspiros pesarosos não – protestou Robert. – Nenhuma só vez me rebaixei a lançar suspiros<br />

pesarosos. Embora possa ter lançados grunhidos viris de opressão – fez uma demonstração. Cruzou os<br />

braços com firmeza e apertou os lábios com um meio grunhido.<br />

– Oh? Você chama assim a isto? – Sebastian olhou à frente com uma expressão de tristeza no rosto.<br />

Soltou um leve choramingo e inalou o ar com um longo suspiro.<br />

– A isso o chamo um exagero. Chamo-o uma perfídia. Morte ao homem que diga tais coisas!<br />

Oliver pôs-se a rir.<br />

– Vejo que se sente melhor. O que produziu essa mu<strong>da</strong>nça de humor? Aceitou casar-se contigo<br />

finalmente?


Robert piscou.<br />

– Como? Mas se eu não disse que o tinha pedido!<br />

O sorriso de Oliver se ampliou mais ain<strong>da</strong>.<br />

– Dez libras, Malheur.<br />

Sebastian soltou o que poderia ter sido qualificado como um “suspiro pesaroso”.<br />

– Sim – murmurou Robert. – Disse que se casará comigo. A cerimônia acontecerá dentro de quatro<br />

semanas. Apenas tenho que tirar a licença e redigir os contratos. Me alegro de lhes encontrar juntos<br />

porque queria que fossem os primeiros a saber. Não sei se entenderão, mas… – guardou silêncio.<br />

Nenhum dos outros dois disse na<strong>da</strong>, e esse silencio cúmplice explicava o tema muito melhor do que<br />

teria podido fazê-lo Robert. Sebastian era capaz de fazer brincadeiras sobre qualquer coisa e Oliver<br />

sempre estava disposto a burlar-se dele. Mas ambos sabiam quando fazê-lo e quando parar.<br />

– Se tenho uma família – disse o duque com voz um pouco rouca, – são vocês dois. Esperava que os<br />

dois estivessem ao meu lado na cerimônia. Que sejam testemunhas e essas coisas.<br />

– É obvio – lhe assegurou Oliver.<br />

Sebastian encolheu os ombros.<br />

– Sou exatamente a pessoa que eu escolheria para essa honra se estivesse em seu lugar. Aplaudo seu<br />

sentido comum.<br />

Robert não se incomodou em tentar decifrar o que queria dizer seu primo com tudo aquilo. Por um<br />

momento, um momento muito curto, teve a sensação de que podia abraçá-los. Quase desejou fazê-lo.<br />

Estender os braços e estreitá-los contra seu peito. Tinham estado a seu lado nos momentos mais difíceis<br />

de sua vi<strong>da</strong>: o funeral de seu pai, os dias seguintes, quando revisava os pertences de seu pai e descobrira<br />

que o duque anterior tinha sido ain<strong>da</strong> pior do que tinha imaginado…<br />

Em vez de abraçá-los, optou por cruzar os braços.<br />

– Significaria muito para mim.<br />

– É obvio – Sebastian se voltou para Oliver. – Já sabe o que significa isto – lhe disse. – Nós dois<br />

temos que organizar uma festa selvagem e licenciosa para Robert a véspera de seu casamento – esfregou<br />

as mãos com regozijo.<br />

Oliver lhe devolveu o olhar com calma.<br />

– Selvagem – repetiu. – Licenciosa. Estou plenamente de acordo.<br />

Robert sentiu uma ponta<strong>da</strong> de apreensão.<br />

– São muito amáveis – comentou. – Mas isso não é necessário.<br />

Os outros não lhe deram atenção. Seguiram olhando um ao outro.<br />

– Bom, já sabe. O castigo tem que ser adequado ao crime e tudo isso. Depois de tudo, trata-se de<br />

Robert – Sebastian passou uma mão pelo cabelo, alisando-o. – E o que vamos fazer no referente ás<br />

mulheres?<br />

– De ver<strong>da</strong>de – insistiu Robert, essa vez com mais força. – Já sei que ain<strong>da</strong> não estou casado, mas<br />

lhes repito que não… Os outros seguiam sem lhe dá atenção.<br />

– Sei o que podemos fazer – comentou Oliver com um sorriso. – Mary Wollstonecraft. Em meu quarto<br />

tenho um exemplar de Reivindicação dos direitos <strong>da</strong> mulher. Levarei-o a festa.


– Excelente – respondeu Sebastian, esfregando as mãos. – E eu tenho uma carta que me enviou uma<br />

mulher muito curiosa dos Estados Unidos, uma tal Antoinette Brown. Escreveu-me coisas <strong>da</strong>s mais<br />

extraordinárias sobre a evolução e dos direitos <strong>da</strong>s mulheres. Eu levarei isso.<br />

– Eu tenho um panfleto de Emily Davies.<br />

Robert sorriu quase a seu pesar.<br />

– Acredito que eu posso levar um livro do Thomas Payne – declarou Oliver, – mas então estaríamos<br />

em maioria os homens.<br />

– Violet – disse Sebastian, agitando uma mão no ar. – Pode ser surpreendentemente útil em uma<br />

discussão.<br />

Ah, suponho que pode nos servir em caso de apuros – Oliver se levantou e pôs uma mão no ombro de<br />

Robert. – Que ninguém diga que os Irmãos Sinistros não sabem ser depravados.<br />

– Haverá brandy – Sebastian também se levantou. – E até o beberemos, embora Robert parará depois<br />

de duas taças porque sempre o faz.<br />

– Haverá comi<strong>da</strong> – anunciou Oliver, imitando a postura de Sebastian. – E isso não a comeremos<br />

porque nos engasgaríamos.<br />

Sebastian sorriu.<br />

– A véspera de seu casamento, Robert, lhe ofereceremos o tipo de prazeres femininos que sempre<br />

gostou. Um panfleto filosófico atrás de outro, todos os quais advogarão por uma mu<strong>da</strong>nça política que<br />

produza como resultado a alteração <strong>da</strong> ordem social atual. Leremos esses ensaios e depois… – fez uma<br />

pausa como procurando uma ênfase dramática. – E depois, meus amigos, debateremos sobre eles.<br />

Robert sorriu e afastou a vista.<br />

– Vocês dois vão acabar comigo. Não sei o que faria sem vocês. E não sou tão mau.<br />

– Falando do... – disse Oliver. Seu rosto se voltou solene por um momento. – Seu casamento. Seu pai<br />

já não está entre nós e sua mãe não… ah, não conhece seu dever. Acredito que possivelmente poderíamos<br />

te oferecer nossa aju<strong>da</strong>.<br />

Sebastian assentiu a seu lado.<br />

Robert acreditava que já tinha pensado em tudo. Tinha decidido o presente de casamento e tinha<br />

procurado advogados em Londres que se ocupassem dos contratos. Mas não lhe surpreenderia saber que<br />

tinha se esquecido de algo. Havia tantas coisas que desconhecia nos temas de família!<br />

– Aju<strong>da</strong>r com o que? – perguntou.<br />

Oliver se inclinou para ele.<br />

– Trata-se <strong>da</strong> noite de núpcias – disse com serie<strong>da</strong>de. – Do que acontece essa noite. Tem que sabê-lo<br />

– baixou a voz com tom melodramático– . Quando um homem e uma mulher se amam, unem-se de um<br />

modo muito especial.<br />

Robert lhe deu uma cotovela<strong>da</strong>.<br />

– É terrível – disse.<br />

Mas sorria e não podia deixar de fazê-lo.


E BEM…<br />

À manhã seguinte, Minnie ergueu a vista de seu café <strong>da</strong> manhã e viu a duquesa de Clermont na soleira<br />

<strong>da</strong> porta.<br />

Sua tia avó Caroline fez gesto de levantar-se. Eliza já se pôs de pé. Atrás <strong>da</strong> duquesa entrou uma<br />

donzela retorcendo as mãos com ar impotente e tentando transmitir uma desculpa silenciosa pela intrusão.<br />

Mas a duquesa não olhou às demais mulheres. Cravou a vista em Minnie.<br />

– Vai se casar com meu filho dentro de três dias. Sabe que será um desastre completo.<br />

Minnie se recordou que aquela mulher ia ser sua sogra durante déca<strong>da</strong>s. Não seria boa ideia tê-la<br />

como inimiga.<br />

Tampouco seria boa ideia que a duquesa pensasse que podia acovardá-la. Minnie fez uma inclinação<br />

de cabeça, como entre iguais.<br />

– Veio para me dissuadir? Para pedir que lhe devolva suas cinco mil libras? – ergueu o queixo e<br />

voltou sua atenção à torra<strong>da</strong> que tinha no prato. – Rasguei sua nota promissória bancária.<br />

A duquesa fez uma careta de desprezo e caminhou pela sala. Separou ela mesma uma cadeira <strong>da</strong><br />

mesa, antes que a donzela tivesse tempo de fazê-lo e se sentou espectadora.<br />

– E bem? – perguntou. – Sirva o chá.<br />

Minnie assim o fez e, a pedido <strong>da</strong> duquesa, acrescentou-lhe açúcar.<br />

Enquanto isso, suas tias se olhavam entre si como se debatessem em silencio entre elas se deviam<br />

intervir. Mas a duquesa não lhes prestava nenhuma atenção. Tomou uma torra<strong>da</strong> um pouco queima<strong>da</strong> e a<br />

colocou em seu prato.<br />

Minnie lhe alcançou a xícara e o pires. A duquesa tomou um sorvo e os deixou na mesa, como se ao<br />

fazer isso tivesse completado já com as exigências <strong>da</strong>s boas maneiras.<br />

– E eu que pensava que tinha bom senso, senhorita Pursling!<br />

– E o tenho. Veio para tentar me intimi<strong>da</strong>r de novo?<br />

A duquesa negou com a cabeça.<br />

– Apenas uma mulher muito iludi<strong>da</strong> e romântica que se encontrasse em minha posição pensaria que<br />

um chilique com sua futura nora poderia alterar em algo o resultado. Você conhece os riscos e meu filho<br />

conhece a ver<strong>da</strong>de. Fiz minha melhor oferta e não foi suficiente. Ao mundo raramente lhe interessa o que<br />

eu pense. Quando as coisas não acontecem como eu gosto, apenas fica uma coisa por fazer – assim<br />

dizendo, ergueu a torra<strong>da</strong> e a mordeu com elegância.<br />

E qual é? – perguntou Minnie.<br />

A duquesa tragou o mordido com o cenho levemente franzido, deixou a torra<strong>da</strong> no prato e mexeu o<br />

chá.<br />

– Gosta de gatos, senhorita Pursling?<br />

Minnie piscou ao ouvir a mu<strong>da</strong>nça de tema.<br />

– Eu gosto o bastante, embora eu gostaria que Pouncer cessasse de me deixar fígados de camundongo<br />

em minha cama.<br />

A duquesa moveu uma mão enluva<strong>da</strong> no ar para afastar de si qualquer possível entranha de roedores.<br />

– Alguma vez viu um gato desculpar-se ou admitir que se equivocou?


– Os gatos não falam – interveio Caroline; eram as primeiras palavras que dizia desde a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

duquesa.<br />

Esta ergueu a vista e a olhou de cima a baixo.<br />

– Uma mulher capaz de manter a salvo a sua tristemente célebre sobrinha neta durante uma déca<strong>da</strong>,<br />

seguro que pode conseguir entender uma metáfora – voltou de novo a vista a Minnie. – Alguma vez viu<br />

um gato saltar sobre um banco e falhar?<br />

– Claro que sim.<br />

– E o que faz o gato? – a duquesa não esperou resposta. – Atua como se tivesse sido sua intenção<br />

falhar. “Sim”, diz. “Deixei escapar esse como advertência a todos os outros. Agora lamberei ás patas os<br />

seguintes cinco minutos, tal e como tinha planejado”.<br />

– Diz isso? – perguntou Minnie com ar inocente.<br />

– Em sentido figurado. O que quero dizer é que terá que ser o gato. Todo mundo respeita os gatos.<br />

– Bom, em reali<strong>da</strong>de – interveio Eliza, – na época <strong>da</strong> peste negra…<br />

A duquesa estendeu uma mão.<br />

– Não polua minha perfeitamente aceitável linguagem metafórica com <strong>da</strong>dos irrelevantes – trovejou. –<br />

Não há nenhuma necessi<strong>da</strong>de disso – voltou a olhar para Minnie mais uma vez. – Decidi que meu filho e<br />

você devem ir de lua de mel a Paris.<br />

A brusca mu<strong>da</strong>nça de assunto fez com que Minnie movesse a cabeça.<br />

– Isso sonha… romântico. Está segura?<br />

– Completamente – disse a duquesa. – Parece romântico, e apesar de que aprovo muito pouco a<br />

existência deste amor, sou muito consciente de que vão necessitar muito essa “aparência” – apertou os<br />

lábios e fixou a vista na parede.<br />

Em outro momento e com outra mulher, Minnie poderia ter pensado que a duquesa parecia<br />

envergonha<strong>da</strong>. Quando voltou a falar, fez-o pela primeira vez sem olhar diretamente a jovem.<br />

– Em segundo lugar – disse, – possivelmente devam considerar não consumar o matrimônio.<br />

– O que? Por quê? Para que possa ser anulado?<br />

A duquesa ergueu os olhos ao céu.<br />

– Isso é um mito horrível. Não se pode anular um matrimônio só porque não tenha sido consumado.<br />

Acredite-me, eu consultei com todos os advogados de Londres os modos possíveis de pôr fim a um<br />

matrimônio. Conheço a lei de cor. Simplesmente acredito que seria bom que o primeiro filho não<br />

chegasse até ao menos dez ou onze meses depois do matrimônio. Que ninguém ache que o casamento foi<br />

porque estava grávi<strong>da</strong>. Se passasse algo assim, os falatórios durariam déca<strong>da</strong>s.<br />

– Isso é outra amostra de linguagem metafórica? – perguntou<br />

Caroline.<br />

– Experiência – respondeu a duquesa, sombria. – Robert nasceu aos oito meses de gravidez.<br />

Minnie se engasgou com o chá e fechou os olhos, tentado expurgar de sua mente as implicações.<br />

– Adiantou-se – explicou a duquesa com calma. – Ocorre frequentemente com os primogênitos. Eu<br />

disse assim durante os últimos vinte e oito anos, assim deve ser ver<strong>da</strong>de – olhou fixamente para Minnie.<br />

– Portanto, não haverá relações matrimoniais até dois meses pelo menos.


– Haverá – respondeu Minnie. – Não sinto desejos de me privar de na<strong>da</strong> do que queira fazer somente<br />

porque pessoas às quais nunca vi possam assumir o pior sobre mim. Além disso, tendo em conta meu<br />

passado, isso é como se a um assassino preocupasse ir ao inferno por ter falado mal do cavalo de um<br />

amigo.<br />

– Humm – a duquesa franziu o cenho; encolheu os ombros. – Só a estava pondo a prova. Tinha que me<br />

assegurar de que, com seus antecedentes, interessava-se pelos homens. É melhor averiguar essas coisas<br />

agora.<br />

Parecia segura. Falava com segurança. E, entretanto, Minnie teve a clara impressão do gato lambendo<br />

as patas. “Não queria em reali<strong>da</strong>de esse camundongo”.<br />

– Falando disso, a razão mais importante para ir a Paris – a duquesa assinalou para Minnie. –<br />

Necessita um guar<strong>da</strong>-roupa novo. Não pode se conformar apenas com um aceitável. Tem que ser<br />

brilhante. Me diga, filha, gosta de se vestir como uma camponesa pobre ou usa esses farrapos unicamente<br />

porque suas empobreci<strong>da</strong>s tias a obrigam a isso?<br />

Caroline e Eliza soltaram um coice ao uníssono no outro lado <strong>da</strong> mesa. Minnie tossiu.<br />

– É obvio. Na<strong>da</strong> me agra<strong>da</strong> mais que virar um vestido pela quarta vez. Se não usar punhos que caem<br />

aos pe<strong>da</strong>ços, não me sinto confortável – olhou de cima abaixo a sua futura sogra. – Agradecerei que não<br />

insulte às mulheres que me deram um lar embora não estivessem obriga<strong>da</strong>s a fazê-lo.<br />

Insulte a mim tudo o que queira, mas deixe em paz a Caroline e a Eliza.<br />

A duquesa nem sequer piscou.<br />

– O que pensa de meu estilo de roupa?<br />

– Muito enfeitado, muito conservador – respondeu Minnie sem vacilar. – Suponho que está bem para<br />

você, mas para mim…<br />

– Excelente. O que escolheria você? Que classe de duquesa seria?<br />

Minnie pensou nos anos passados olhando revistas de mo<strong>da</strong> com Lydia e a embargou uma intensa<br />

sensação de per<strong>da</strong>, uma sensação pareci<strong>da</strong> com um golpe repentino. Teria que ter escolhido seu enxoval<br />

de casamento com Lydia. Sua amiga teria se gabado de ter acertado e…<br />

– Bom – respondeu Minnie, – não vou pretender ser uma duquesa convencional. Eu não gosto de<br />

to<strong>da</strong>s essas capas de ren<strong>da</strong>s, embora agora sejam muito populares. Sentiria-me enterra<strong>da</strong> nelas. Eu gosto<br />

<strong>da</strong>s linhas defini<strong>da</strong>s e os tecidos alegres – respirou fundo e deu rédea solta a sua imaginação. – Muito<br />

tecido. Acabou-se o tempo de economizar em tecido.<br />

– E terá que aprender a cobrir-se essa cicatriz. Minha donzela poderá fazer…<br />

Minnie a olhou com ar de desaprovação.<br />

– Isto? – tocou-se a bochecha. – Oh, não! Levarei-a descoberta.<br />

Acredito que é uma cicatriz que realça minha beleza.<br />

A duquesa soltou uma gargalha<strong>da</strong>; levantou-se com brutali<strong>da</strong>de.<br />

Minnie a olhou fixamente.<br />

– E bem? – perguntou a outra. – Não temos todo o dia. Em meu hotel tenho to<strong>da</strong>s as revistas de mo<strong>da</strong>s.<br />

Se enviarmos suas medi<strong>da</strong>s a minha gente na França, poderão fazer as provas finais quando chegar ali. E<br />

também há muitas coisas que se podem comprar aqui.


– Veio até aqui unicamente para me levar as compras? – perguntou Minnie.<br />

– Quando for a duquesa de Clermont – respondeu a outra, sem responder à pergunta, – nunca permita<br />

que ninguém saiba que poderia ser outra coisa. Se não ouvir o que dizem de você, não poderá ser<br />

ver<strong>da</strong>de. O melhor será que, quando a socie<strong>da</strong>de descubra sua existência, você já seja uma duquesa.


CAPÍTULO 21<br />

OS DIAS ATÉ AS BODAS PASSARAM muito depressa para<br />

Robert. Não sabia se sentia entusiasmo ou apreensão. Ou ambas as coisas de uma vez. Para começar,<br />

sua mãe tinha tomado Minnie sob sua asa e tinha man<strong>da</strong>do procurar uma costureira de Londres para que a<br />

provesse com o que ela chamava de “o mais básico”.<br />

Lhe tinha perguntado por aquilo, mas ela se limitou a responder:<br />

– Se for jogar a moça aos lobos, é apropriado que ao menos lhe proporcione uma capa vermelha.<br />

E breve eram os momentos que Minnie e ele podiam roubar para estarem juntos. Robert tinha tido<br />

alguns beijos para lhe abrir o apetite. Se podia se chamar de beijo empurrá-la contra a parede e lhe<br />

desabotoar a metade do vestido no processo. Quando chegou a manhã do casamento, seu apetite estava<br />

muito acor<strong>da</strong>do.<br />

Em certo sentido, era uma sorte que a cerimônia se realizasse cedo. Em reali<strong>da</strong>de, o cedo <strong>da</strong> hora<br />

tinha sido escolhido especificamente para que pudessem chegar a Paris ao final do dia. Se o primeiro<br />

trem do correio não chegasse com atraso a Londres e se o vapor conseguisse cruzar o canal em um tempo<br />

prudente.<br />

Mas quando a olhou nos olhos e pronunciou seus votos matrimoniais, não podia pensar em na<strong>da</strong><br />

disso. O desejo físico não era quão único o tinha dentro de si. Quando ela prometeu amá-lo e honrá-lo,<br />

sentiu um entusiasmo elétrico que percorreu todo seu corpo. E quando ele prometeu o mesmo, pareceulhe<br />

que isso os unia, que fechava a distância entre eles como não podia fazê-lo nem sequer o beijo<br />

posterior.<br />

Sabia que muitos de seus compatriotas evitavam a todo custo o matrimônio. Viam este como um<br />

motivo de irritação e à esposa como uma pessoa mais com quem brigaria e se queixaria. Mas quando ela<br />

repetiu seus votos, ele ouviu: “Até que a morte nos separe”, e seu coração se encheu de esperança.<br />

Depois <strong>da</strong> cerimônia, separaram-se brevemente. Minnie foi com suas tias para recolher algumas<br />

coisas; Robert fiscalizou a carga <strong>da</strong> bagagem. Ao fim de só meia hora, reuniram-se de novo na estação do<br />

trem. Enquanto subiam a bordo, não tiveram oportuni<strong>da</strong>de de falar. Robert estreitou a mão de seu irmão e<br />

depois a de seu primo. Violet lhe deu um abraço, e sua mãe… Esta lhe fez uma inclinação de cabeça.<br />

Minnie e ele se despediram agitando as mãos através do guichê até que a estação desapareceu totalmente.<br />

– De quem foi a ideia de fazer uma viagem de dezesseis horas entre a cerimônia e a consumação do<br />

matrimônio? – sussurrou Robert ao ouvido de sua mulher.<br />

– Minha, acredito – ela se voltou pela metade para ele, que pôde lhe ver a cara. Não parecia<br />

impaciente pelo que demorava; parecia infeliz. Voltou a olhar pelo guichê quase com desejo, fixando a<br />

vista na silhueta <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que retrocedia na distância. Todos os edifícios se mesclavam formando um<br />

amálgama de pedra cinza e um bosque de chaminés de tijolo. Não havia muito que ter sau<strong>da</strong>des disso.<br />

E então Robert recordou que ela tinha duas tias que a queriam, e que ele a estava separando delas.<br />

– Me dê um momento – pediu Minnie. – Estarei bem em segui<strong>da</strong>.


É que pensava… estava segura de que Lydia viria ao meu casamento.<br />

Robert demorou um momento em recor<strong>da</strong>r quem era Lydia. A senhorita Charingford, quão amiga tinha<br />

estado sempre ao lado de Minnie.<br />

– Enviei-lhe uma carta contando-lhe tudo, absolutamente tudo, sobre mim. Pedi-lhe que viesse.<br />

Pensava que ao menos viria se despedir. Mas nem sequer me enviou uma nota.<br />

Ele tinha estado a ponto de sugerir que passassem a viagem preparando-se para a cama do hotel em<br />

Paris. Mas ali não havia espaço para jogos lascivos. Tocou-lhe a mão com gentileza, temeroso de dizer<br />

algo que pudesse estragar ain<strong>da</strong> mais o humor dela.<br />

Mas Minnie não tinha mentido ao dizer que apenas necessitaria um momento para recuperar-se.<br />

Quando chegaram a Londres, voltava a sorrir.<br />

– A última vez que estive em Paris tinha oito anos – lhe confiou–. Naquela época, levava dias viajar<br />

ao continente – moveu a cabeça. – Levava dias ir a qualquer parte.<br />

– Eu não fui ao continente até que alcancei a maiori<strong>da</strong>de – disse Robert. – Assim apenas o conheci<br />

nos dias nos quais se chega lá com o trem e com o vapor.<br />

Chegaram a Londres às dez e meia, a Southampton pouco depois de meio-dia, e às três <strong>da</strong> tarde<br />

pisavam em chão francês. Minnie honrou a sua palavra e já não <strong>da</strong>va nenhuma amostra de infelici<strong>da</strong>de.<br />

Observava tudo com interesse, como se não tivesse nenhuma tristeza, e quando entraram no último vagão<br />

de trem naquele dia, apoiou a cabeça no ombro dele em uma amostra de afeto que fez com que Robert<br />

contivesse o fôlego e pensasse em pe<strong>da</strong>ços de gelo aplicados diretamente em sua coxa.<br />

Menos mal que não tinha sugerido que provassem na<strong>da</strong> mais! Apenas o contato <strong>da</strong> mão dela<br />

entrelaça<strong>da</strong> com a sua o fazia perguntar-se se acabaria possuindo a sua esposa pela primeira vez em um<br />

vagão de trem.<br />

Não. Possuiria-a no quarto de um hotel. Sobre uma cama. E seria uma experiência incrível.<br />

Quando chegaram a Paris, repetiu-se que seria incrível.<br />

E voltou a repetir apertando os dentes quando descobriu que sua mãe tinha organizado para que<br />

Minnie fosse provar vestidos ao chegar, o que supunha um maldito atraso de uma hora antes do jantar <strong>da</strong><br />

noite de núpcias<br />

Quando por fim estiveram sentados juntos diante de um jantar íntimo, Minnie vesti<strong>da</strong> com uma pesa<strong>da</strong><br />

bata de brocado que a cobria <strong>da</strong> cabeça até os dedos dos pés, eram onze <strong>da</strong> noite. Robert bicava a<br />

comi<strong>da</strong> com o garfo e ela fazia o mesmo. Depois do segundo prato, despediram-se dos serventes.<br />

Minnie declarou que não tinha fome e deixou os talheres na mesa.<br />

Ficou de pé.<br />

Era quase meia-noite. Tinham viajado durante a maior parte do dia; durante a maior parte do dia,<br />

Robert tinha estado nervoso pensando no que poderia fazer aquela noite. E já tinha chegado o momento.<br />

– Minnie – disse com lentidão. – Depois <strong>da</strong> viagem exaustiva de hoje, acredito que poderíamos…<br />

Ela desabotoou o cinturão <strong>da</strong> bata e a deixou cair ao chão. Robert não foi capaz de seguir falando.<br />

– Pensaste que poderíamos o que? – perguntou-lhe ela com um sorriso.<br />

Deus santo, aquela voz! E aquele corpo! Ela levava uma camisola branca de tecido fino, com<br />

desenhos bor<strong>da</strong>dos em espiral que se entrelaçavam de um modo muito sutil desde seus quadris até seus<br />

seios. Uns seios que foram soltos e que resultavam muito visíveis através do tecido. Havia enfeites


impregnados à altura <strong>da</strong>s pernas. Ela deu um passo para ele e o tecido girou a seu redor o que permitiu a<br />

Robert ver partes <strong>da</strong> pele nua e <strong>da</strong>s pernas longas.<br />

De ver<strong>da</strong>de ele tinha estado a ponto de sugerir que adiassem a noite de núpcias até que tivessem<br />

descansado?<br />

– Pensei – disse, com o sangue de seu corpo fluindo como uma corrente para sua virilha– que poderia<br />

passar o resto <strong>da</strong> noite te possuindo.<br />

Minnie sorriu.<br />

– Sabia que iria dizer isso.<br />

– Te olhando – ele podia fazê-lo já. Levantou-se <strong>da</strong> mesa e deu uma volta ao redor dela. – Viu isso?<br />

O tecido se colava nos mamilos. Os sonhos e a imaginação aqueci<strong>da</strong> de Robert empalideciam diante<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Num de seus sonhos tinha imaginado a meia lua perfeita dos seios, mas não tinha tido em<br />

conta as pequenas sar<strong>da</strong>s que o cobriam. Ele tinha imaginado pele Lisa e páli<strong>da</strong>. A essa distância, podia<br />

ver que sua pele não era tão uniforme e que havia distintas cores: uma leve capa rosa<strong>da</strong> onde o sangue<br />

dela pulsava sob a pele, mostra de bronzeado e de branco. Até podia divisar uma linha branca mais<br />

páli<strong>da</strong> ao longo de uma costela, que podia ser uma cicatriz.<br />

Essas pequenas imperfeições o cativavam. Aquilo não era a imaginação de um pintor nenhuma<br />

fantasia irreal desdobra<strong>da</strong> em sua mente. Aquela era Minnie e ela estava ali, real e respirando.<br />

Umas fitas vermelhas prendiam a camisola nos ombros. A que caía sobre seu braço direito estava<br />

solta, e aquele nó meio desfeito parecia burlar-se dele ameaçando soltar-se e deixar que o tecido fino<br />

deslizasse pela pele dela.<br />

– Recor<strong>da</strong> o defeito psicológico do qual te falei? – murmurou ele.<br />

– Recordá-lo? Eu esperava poder explorá-lo.<br />

– Oh! – Robert estendeu os braços para ela. – Bem. Nesse caso, assumo que disse algo muito<br />

inteligente.<br />

Pegou-a pelos ombros e a atraiu para si para beijá-la. Não foi só um beijo, uns lábios sobre outros<br />

lábios. Nem tampouco foi apenas seu corpo pressionado contra o dela. Sentiu os seios dela, livres do<br />

espartilho. Deslizou as mãos pelo corpo dela. Seus seios eram firmes e redondos; seus mamilos se<br />

endureceram quando os dedos dele os roçaram. Aquele era o começo de tudo.<br />

– Assumo que disse algo muito inteligente – murmurou.<br />

Do peito dela, havia um curto caminho até as fitas soltas, apenas um movimento dos dedos para as<br />

desatar e baixar a se<strong>da</strong>. Encontrou de novo o peito, essa vez descoberto. A textura <strong>da</strong> pele feminina, tão<br />

cáli<strong>da</strong> e vibrante, suave ao tato e, entretanto, firme à carícia, cativou-o.<br />

Mas ela era ain<strong>da</strong> menos tími<strong>da</strong> que ele. Deslizou as mãos para baixo a levita dele e as pousou em<br />

sua cintura. Deu-lhe um beijo longo e lento.<br />

– Tem medo? – sussurrou ele, levando-a para a cama.<br />

– Sei que seria normal o ter, mas não. Não.<br />

Robert sempre achou sua voz sensual, mas naquele momento lhe parecia claramente erótica.<br />

Ela se sentou na cama e fez um gesto com o dedo.<br />

– Eu não me sinto particularmente inteligente. Desejo-te.


Qualquer esperança que pudesse ter ele de conter-se evaporou ao ouvir isso. Tirou a levita enquanto<br />

lhe abria os botões do colete. Juntos tiraram a camisa, e riram juntos quando a mão dele ficou presa em<br />

um dos punhos e ela teve que colocá-lo de volta no pulso para enfim retirá-lo. Os dedos dela exploraram<br />

o peito dele, que se estremeceu enquanto tirava as calças.<br />

Quando deixou a roupa interior em um montão no chão, ela voltou para a cama e o beijou de novo.<br />

Esse beijo foi ain<strong>da</strong> melhor: pele contra pele, com as mãos dela roçando as coxas dele para depois<br />

explorar com gentileza seu membro. Robert soltou a fita do outro ombro dela enquanto suas línguas se<br />

encontravam. Então ficaram peito contra peito, e, quando lhe tirou a camisola, suas pernas nuas se<br />

tocaram também. Tomou as mãos dela nas suas e as apertou em todo o comprimento.<br />

Sentia a boca dela quente contra a sua. Seu pênis estava ereto colado ao quadril dela. Beijaram-se,<br />

com a pélvis dele pressionando a dela, e todos os sonhos de Robert, suas fantasias mais sórdi<strong>da</strong>s,<br />

empalideceram em contato com a reali<strong>da</strong>de. Ia fazê-la dele. Por fim ia possuí-la de ver<strong>da</strong>de. Separou-lhe<br />

as pernas e se colocou de joelhos entre elas.<br />

Quando teve diante de si as belas dobras rosas de seu sexo, foi impossível não tocá-la. Minnie soltou<br />

um coice quando a tocou ali. Não foi um coice escan<strong>da</strong>lizado, a não ser alentador. Ficou tensa sob seus<br />

dedos. Os dedos não eram suficientes. Robert se colocou em cima dela com cui<strong>da</strong>do, com muito cui<strong>da</strong>do<br />

de não esmagá-la com seu peso. Ela gemeu quando ele esfregou a ponta de sua ereção contra a abertura<br />

do sexo dela.<br />

– Oh, Senhor! – murmurou com aquela voz seu tão excitante. – Robert…<br />

– Meu Deus! Desejo-te muito.<br />

Introduziu o pênis uma polega<strong>da</strong>.<br />

Minnie inalou fundo e apoiou a mão no peito dele. Não foi uma carícia a não ser uma leve pressão<br />

para afastá-lo, e ele se deteve. Os bíceps lhe doíam um pouco, colocado como estava em cima dela.<br />

– Dói? – perguntou.<br />

– Não – ela sorriu fracamente e acrescentou, em clara contradição: – Só um pouco.<br />

Não foi muito, mas bastou para explorar a borbulha de luxúria inconsciente que o tinha envolvido até<br />

esse momento. Estava fazendo aquilo errado. Estava-se impondo a ela depois de apenas um beijo e de<br />

umas quantas carícias para prepará-la.<br />

– Não pare – disse ela. Mas quando ele empurrou um pouco mais dentro, todo o corpo de Minnie se<br />

esticou. O prazer que sentiu ele apenas serviu para incrementar seu nervosismo. Ela se fechou ao redor<br />

de seu pênis, suave e cáli<strong>da</strong>, aperta<strong>da</strong>, muito aperta<strong>da</strong>. A sensação era boa. Mas Robert sentia os<br />

músculos dela tensos e rígidos sob seu corpo. Os dedos de Minnie agarravam com força os lençóis <strong>da</strong><br />

cama. Sua mandíbula denotava que estava se esforçando muito para não apertar os dentes com força.<br />

– Sinto-o – Robert tentou beijá-la – sinto muito.<br />

Ela ergueu uma mão e lhe tocou a bochecha.<br />

– Deixa de preocupar-se. Eu te avisarei se, se tornar insuportável.<br />

Suportável. Aquilo era suportável para ela quando para ele era bom.<br />

Apenas bom.<br />

Não sabia por que, mas tinha feito à ideia de que a relação sexual com ela seria diferente. Que a<br />

complexi<strong>da</strong>de do que sentia por Minnie, sua compenetração… Tinha imaginado que tudo isso faria que


aquele momento fosse diferente em algum aspecto. Que quando se deslizasse dentro dela, todo seu mundo<br />

desprenderia fogo.<br />

Saber que para ela era só suportável, privava ao ato de tudo exceto do prazer físico. Era sua noite de<br />

núpcias. Supunha-se que devia ser mágica, por estúpido e ingênuo que soasse aquilo.<br />

Quando a penetrasse, supunha-se que devia sentir outras coisas. Desejava algo mágico procedente <strong>da</strong><br />

carne dela, algo secreto que os arrebatasse. Algo que fizesse com que aquilo fosse mais que bom para ele<br />

e mais que suportável para ela. Em reali<strong>da</strong>de, embora tentasse suprimir aquele pensamento, com o corpo<br />

dela tão tenso sob o seu, Robert teria preferido sua mão esquer<strong>da</strong> a aquilo.<br />

Dava igual à possuir devagar ou depressa, que deslizasse suas mãos no cabelo dela ou as colocasse<br />

ao lado de seus ombros, <strong>da</strong>va igual porque não havia magia no ato. Quando um homem fazia amor com<br />

uma mulher que queria de ver<strong>da</strong>de, supunha-se que tinha que sentir algo diferente.<br />

“Se for bom na cama, possivelmente me apaixone por você”.<br />

Minnie havia dito aquela frase com um sorriso, e Robert não se deu conta de até que ponto queria que<br />

ela o amasse. Desejava seu amor, e sentia que essa possibili<strong>da</strong>de se afastava com ca<strong>da</strong> investi<strong>da</strong> que era<br />

meramente suportável.<br />

Fechou os olhos e pensou na Inglaterra. Concentrou-se nos prazeres menores do ato, a agradável<br />

vibração de seu corpo quando se deslizava dentro dela, o calor de seu prazer acumulando-se na base de<br />

sua coluna.<br />

– Meu Deus, Minnie! – exclamou.<br />

Investiu com mais força. Era bom. E “bom” tinha que ser suficiente. Ela era suficiente. Seu corpo,<br />

apertando-se ao redor do membro dele, seus quadris, seus seios roçando o torso dele com ca<strong>da</strong> investi<strong>da</strong>,<br />

eram suficiente. E logo, nos últimos momentos ofegantes, aquilo foi muito bom. Endureceu-se ain<strong>da</strong> mais<br />

dentro dela e o clímax produziu um momento que foi quase tão doce como o que ele tinha desejado.<br />

Quando terminou, separou-se dela e se tombou. Baixou os dedos pelas costelas dela.<br />

Bem. Um sonho romântico e idealizado que caía presa <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Não tinha sentido chorar por<br />

isso. E… e não seria sempre assim para ela, ver<strong>da</strong>de? Robert confiava em que não. Quase desejava<br />

haver pedido conselho a Oliver.<br />

Minnie, a seu lado, voltou-se para ele. Robert não podia olhá-la aos olhos ain<strong>da</strong>. Lhe pôs uma mão no<br />

braço.<br />

– Não quero te assustar – sua voz soava um pouco fria. Ele moveu a cabeça para um lado e a<br />

observou o melhor que pôde com aquela luz tênue.<br />

– O que ocorre?<br />

– Acredito que não fizemos certo.<br />

O corpo de Robert ficou rígido. Se ela não houvesse dito na<strong>da</strong>, ele podia ter fingido. Afastou-se<br />

sutilmente dela.<br />

– Tenho entendido que a primeira vez é a pior. Para as mulheres. Depois melhorará – tinha que fazêlo.<br />

– Não – repetiu ela com voz grave. – O fizemos errado. Sei o que se tem que sentir ao final. E isso<br />

que aconteceu a ti, não aconteceu comigo.


– Sei – replicou ele com voz cortante. – Não precisa que me diga isso. Quase não podia tolerar o ato.<br />

Não precisa que me esfregue o fato de que não pude <strong>da</strong>r um orgasmo a minha esposa. Sou muito<br />

consciente disso.<br />

Aquela explosão foi seguido de um silêncio. Robert exaltou o ar com força.<br />

– Não é minha intenção te criticar – disse ela ao fim. Sua voz soava incrivelmente razoável, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as<br />

circunstâncias, e isso fazia com que<br />

Robert desejasse lhe gritar. – É apenas que… pelo modo como o fizemos, isso jamais poderia me<br />

acontecer e… e, bom, eu tinha esperado que me acontecesse.<br />

– O que quer dizer com que não ia te acontecer? Como pode sabê-lo?<br />

Minnie o olhou sem dizer na<strong>da</strong>, e ele se deu conta de que estava gritando a sua esposa por não havêla<br />

levado ao êxtase. Porque havia sentido mais prazer do que tinha <strong>da</strong>do a ela.<br />

“Estupendo, Robert”.<br />

– Sinto-o – suspirou. – Não devia ter gritado. Você não tem a culpa – respirou fundo.<br />

Minnie pegou-o pelo braço.<br />

– Somos inteligentes. Descobriremos. Temos dez dias em Paris para aprender a fazê-lo bem.<br />

Demônios! Dez noites mais como aquela? Robert, antes, suplicaria que o liberassem disso.<br />

– Nove – corrigiu. – Já passou uma.<br />

– Esta não terminou – Minnie mordeu o lábio inferior. – Não tenho experiência com homens, mas…<br />

quer que lhe ensine isso?<br />

– Me ensinar?<br />

Ela se ruborizou.<br />

– Já sabe. Que te ensine o que faria eu sozinha.<br />

Depois do desastre em que se converteu aquela noite, Robert pensava que seria impossível que<br />

voltasse a desejá-la. E, entretanto, aquelas palavras provocaram um comichão em algum lugar de sua<br />

mente, uma faísca de interesse. Pigarreou.<br />

– Não tenho nenhum outro plano para esta noite.<br />

Ela soltou uma gargalha<strong>da</strong>.<br />

– Suponho que não. Começa aqui – deslizou uma mão entre suas coxas.<br />

– Eu comecei aí.<br />

– Um pouco mais acima – ela fez algo com a mão, algo que Robert não pôde ver até que se sentou na<br />

cama e lhe observou os dedos. Deslizavam-se, não na abertura, a não ser mais acima, fixos no botão<br />

brilhante entre as pernas dela. Suas carícias eram leves e rápi<strong>da</strong>s. Ela conteve o fôlego de repente e logo<br />

respirou de modo regular.<br />

Ele fez o mesmo.<br />

– No que está pensando? – perguntou.<br />

Ela o olhou aos olhos.<br />

– Em ti. Recor<strong>da</strong> o dia em que jogou a massa de colar na minha saia?<br />

– Humm.


– Essa noite, quando fui para casa, imaginei que você me tirava o vestido.<br />

Robert acabava de derramar sua semente nela. Pensou que não deveria ter outra ereção em um longo<br />

momento. Mas o sangue fluía para seu pênis.<br />

– É curioso – disse com voz rouca. – Eu pensei em algo parecido aquela noite.<br />

– Eu pensava muito em ti de noite – confessou ela. – Era… embaraçoso.<br />

– Chegou um momento no qual pensei que minha mão esquer<strong>da</strong> levava seu nome gravado. Quão único<br />

tinha que fazer era tocar meu pênis e pensar em ti…<br />

O corpo dela ficou estendido diante dele. Seu cabelo formava uma massa grande sobre o travesseiro.<br />

Robert lhe separou os joelhos para ver o que fazia. Quando o viu, sentiu a boca seca. A pele dela<br />

parecia suavizar-se à medi<strong>da</strong> que se tocava. Era de uma cor rosa profundo entre as pernas, com os lábios<br />

menores abrindo-se como uma flor à luz rosa<strong>da</strong> do abajur. Esse rosa escuro o chamava, convi<strong>da</strong>ndo o a<br />

tocá-lo.<br />

As mãos dela acariciavam seu corpo com um movimento suave e experiente, e ele podia ver como<br />

brilhava sua abertura. E cheirava a diferença no ar… era o aroma <strong>da</strong> excitação crescente dela.<br />

– Quão único tinha que fazer – disse com feroci<strong>da</strong>de– era pensar em ti e me punha tão duro como uma<br />

pedra. Por Deus, Minnie! Segue fazendo isso.<br />

Nunca tinha pensado nela fazendo aquilo, <strong>da</strong>ndo-se prazer, mas resultava muito mais excitante que<br />

nenhum dos cenários que ele tinha imaginado.<br />

– Necessito algo mais – ela bateu as pestanas. – Você gostaria de me aju<strong>da</strong>r?<br />

Robert sentia a boca seca.<br />

– Eu adoraria. Como?<br />

– Me toque – ela colocou uma mão ao redor do peito. – Aqui.<br />

Ele se inclinou, tomou o seio em seu polegar e deslizou o dedo ao longo <strong>da</strong> curva.<br />

– Mais. Com mais força – pediu ela.<br />

Robert tomou o mamilo de cor coral na boca. Ela lançou então um gemido e todo seu corpo se arqueou<br />

ao lado do dele. Esse gemido terminou de excita ao Robert. Seu pênis passou de medianamente<br />

interessado a completamente alerta.<br />

– Sim – gemeu ela. – Por favor. Faça isso.<br />

Robert lambeu primeiro o mamilo e depois o mordiscou levemente. Os gemidos dela cresceram em<br />

intensi<strong>da</strong>de.<br />

Ele colocou a outra mão em cima <strong>da</strong> dela, em seu sexo. Sentia-a tocando-se, sentia a cama movendose<br />

ao ritmo de seus dedos. Ela, que tinha estado levemente molha<strong>da</strong> quando ele a tinha penetrado, estava<br />

agora grosseiramente empapa<strong>da</strong>. Escorregadia e gloriosa. Seus dedos empurravam com mais força, ca<strong>da</strong><br />

vez com mais força; os dele começaram a brincar ao lado dos dela, desfrutando <strong>da</strong>quela suavi<strong>da</strong>de<br />

sedosa.<br />

– Quer saber quando foi a primeira vez que pensei em ti? – perguntou. – A noite que nos conhecemos.<br />

E aquele encontro resultou muito distinto quando eu imaginei. Uma mulher com uma voz como a sua e um<br />

corpo como o seu me encontra sozinho atrás de um sofá? Imaginei-a de joelhos, colocando esses lábios<br />

inteligentes ao redor de meu pênis. E te desejei.


Minnie chegou ao orgasmo com um grito enrouquecido. Todo seu corpo se estremeceu em on<strong>da</strong>s de<br />

prazer. Por um momento, Robert teve a sensação de que aquelas on<strong>da</strong>s viajavam também através dele.<br />

Quando ela terminou, ele mal podia pensar. Todo seu corpo gritava sua exigência. Não perguntou nem<br />

falou. Não disse na<strong>da</strong>. Simplesmente lhe abriu mais as pernas e a penetrou.<br />

Essa vez se afundou até o fundo com uma firme investi<strong>da</strong>. Essa vez pôde sentir a diferença no corpo<br />

dela. As pequenas contrações estremeci<strong>da</strong>s que percorriam ain<strong>da</strong> o núcleo dela espremiam seu pênis. Ela<br />

estava empapa<strong>da</strong> pelo desejo.<br />

Ele devolveu a mão dela ao lugar anterior.<br />

– Não pare – disse com voz rouca. – Segue fazendo isso.<br />

Ela subiu os quadris para os dele. Sua mão continuou o movimento, o que supôs uma estimulação<br />

acrescenta<strong>da</strong> na base do pênis dele. Robert sentia o prazer a todo seu redor, primeiro mais débil, e<br />

depois crescendo em intensi<strong>da</strong>de à medi<strong>da</strong> que a possuía. E, como se o primeiro orgasmo dela tivesse<br />

aberto as comportas do prazer, essa vez Minnie chegou logo ao clímax, em apenas um minuto, e em uma<br />

sucessão de on<strong>da</strong>s intensas de pura luxúria que a fizeram abraçá-lo com força.<br />

Robert não se cansava <strong>da</strong>quilo. Investiu-a uma e outra vez, e ca<strong>da</strong> investi<strong>da</strong> era melhor que a anterior,<br />

ca<strong>da</strong> uma delas era mais intensa que as outras, até chegar a um clímax que o envolveu em on<strong>da</strong>s<br />

selvagens. Seu segundo orgasmo foi quase doloroso. Foi desordenado, escorregadio e estranho, e lhe<br />

produziu uma sensação incrivelmente boa.<br />

Não tinha sido sua intenção possuir duas vezes em uma noite a sua esposa virgem, e menos depois do<br />

desastre <strong>da</strong> primeira vez. Tinha perdido o controle no momento em que a tinha visto tocar-se entre as<br />

pernas. Tinha havido algo nisso, algo que tinha conectado com um impulso profundo e primitivo dentro<br />

dele. E não tinha sido capaz de seguir pensando.<br />

A segun<strong>da</strong> vez tinha sido tudo o que tinha esperado e mais.<br />

Depois do ato a beijou e lhe devolveu o beijo. Ela era to<strong>da</strong> suavi<strong>da</strong>de e se derretia nele. Isso era o<br />

que ele queria… aquela união.<br />

– Robert – disse ela um momento depois. – Tinha assumido que, sendo quem é, que teria bastante<br />

experiência. É assim?<br />

– Depende do que enten<strong>da</strong> por experiência – respondeu ele sem comprometer-se.<br />

Minnie não respondeu.<br />

– Quando fui o bastante velho para adquirir experiência, tinha já uma ideia de como era meu pai. Não<br />

queria ser como ele. Para isso, tinha que estar seguro, plenamente seguro, de que não forçava a ninguém a<br />

fazer na<strong>da</strong> que não quisesse – sentiu que lhe ardia a cara. – E logo também tinha que me assegurar de que<br />

não era como meu pai e não me deixava levar por meu pênis. A luxúria me faz estúpido. Tinha que estar<br />

seguro de que não me fazia também egoísta.<br />

Minnie seguiu sem dizer na<strong>da</strong>.<br />

– Houve algumas festas nas quais… estive a ponto, e teria chegado a fazê-lo, se tivesse permitido que<br />

as coisas seguissem seu rumo natural. Mas sempre me ocorria uma razão para não fazê-lo. Lhes<br />

interessavam minha fortuna, não eu. Ou ela pensava que aquilo ia levar a uma proposta de matrimônio.<br />

Nunca me pareceu sincero possuir a uma mulher que queria um duque quando apenas podia lhe oferecer a<br />

mim.<br />

Ergueu a vista ao teto. Sentiu a mão dela em seu corpo e encolheu os ombros.


– Acredito que, <strong>da</strong><strong>da</strong> a frequência com a qual usei minha mão esquer<strong>da</strong>, não me deveria considerar<br />

virgem – acrescentou com um suspiro. – Tive montões de experiências sexuais. Mas… não com outras<br />

pessoas. E não estava me reservando para o matrimônio.<br />

“Apenas para ti”.<br />

Não o disse em voz alta. Parecia-lhe que estavam muito perto <strong>da</strong> paixão do encontro sexual para dizêlo<br />

nesse momento.<br />

O sexo com a Minnie não era tal e como tinha imaginado sua relação sexual nos sonhos românticos<br />

que tinha acor<strong>da</strong>do. Nesses sonhos havia muitas flores e raios de lua, tudo era muito mais asséptico:<br />

limpo e perfeito.<br />

Aquilo… aquilo era quente e sujo, e ele queria repeti-lo uma e outra vez com uma feroci<strong>da</strong>de que não<br />

conseguia compreender de tudo.<br />

– Esta vez o fizemos bem? – perguntou.<br />

Minnie se enroscou contra ele.<br />

– Oh, sim! – respondeu com ar sonhador. – Muito bem.<br />

Robert se disse que devia tomar nota. Se ela bocejava em seus braços depois, ele tinha feito um bom<br />

trabalho. Aquilo, cansar a sua esposa, era um objetivo muito agradável. A ela lhe fecharam os olhos e ele<br />

sentiu que o envolvia uma forte sensação de orgulho.<br />

Havia-lhe dito que não tinha expectativas de ser amado.<br />

Mas não era porque não acreditasse no amor. A ideia do amor era como água no deserto. Sabia que<br />

isso era um tópico estúpido, um tópico que o fazia pensar em um homem vestido com farrapos<br />

vagabundeando pelo Saara tentando procurar um oásis entre as dunas de areia.<br />

Mas a Antárti<strong>da</strong> também era um deserto, um deserto frio que se tornava seco porque a água se<br />

convertia em gelo assim que tocava a atmosfera.<br />

Assim acreditava ele no amor. Sempre tinha acreditado no amor. Tinha estado rodeado de água to<strong>da</strong><br />

sua vi<strong>da</strong>; o que ocorria era que a água estava congela<strong>da</strong>. Ele tinha querido muito e tinha visto congelar-se<br />

esse amor diante de seus narizes. Não lhe surpreendia analisar seus sentimentos e descobrir que amava a<br />

Minnie. O que lhe surpreendia era que, nessa ocasião, quando se atrevia a tomar um sorvo, encontrava<br />

água em vez de gelo.<br />

Tinha vontade de chorar.<br />

– Isso – disse a Minnie, – foi, sinceramente, o mais interessante e maravilhoso que já fiz em minha<br />

vi<strong>da</strong>. E quero repeti-lo.<br />

– Amanhã – murmurou ela. – Depois de tudo, temos mais nove dias.


CAPÍTULO 22<br />

ANTES QUE O SOL ENCONTRASSE o horizonte, Minnie despertou e sentiu os lábios de seu marido<br />

no pescoço e os braços masculinos ao redor de seu corpo. Ficou adormeci<strong>da</strong> de puro esgotamento; era<br />

vagamente consciente de que seguia ain<strong>da</strong> cansa<strong>da</strong>, mas não importava. Se estava cansa<strong>da</strong>, era um tipo de<br />

cansaço bom; desfrutava com a sensação do corpo dele colado ao seu, com as mãos dele percorrendo<br />

suas costelas de forma possessiva. A sensação era mais pareci<strong>da</strong> com um sonho do que a um despertar.<br />

Tinha calor e o contato dele era quente.<br />

Se a noite anterior tinha sido um descobrimento, essa manhã se tratava de explorar… de colocar as<br />

mãos na curva <strong>da</strong>s costas dele, de baixar as mãos por seu peito e voltar a subir fixando-se nos pontos<br />

sensíveis. A impaciência apaixona<strong>da</strong> e insistente <strong>da</strong> noite de núpcias tinha <strong>da</strong>do lugar a uma sensação de<br />

surpresa silenciosa.<br />

Quando ele a penetrou, estava mais que prepara<strong>da</strong>. Essa manhã, as investi<strong>da</strong> dele eram um balanço<br />

gentil, um beijo de todo o corpo, uma carícia que a levava ao orgasmo por fases em vez de arrancar-lhe à<br />

força.<br />

Quando terminou, ele apoiou a testa na dela.<br />

– Bom dia.<br />

O céu começava a tornar-se rosa. Minnie sabia que não tinha dormido uma noite inteira, mas não<br />

queria voltar a inun<strong>da</strong>r-se no sono. Queria apanhar aquele momento e prolongá-lo indefini<strong>da</strong>mente.<br />

– Bom dia.<br />

Robert não a tinha soltado.<br />

– Sabe de uma coisa? – perguntou. – Estou morto de fome. Se não recor<strong>da</strong>r mal de minha última<br />

viagem, há uma pa<strong>da</strong>ria pequena rua abaixo que com certeza já tem algo inclusive a esta hora <strong>da</strong> manhã.<br />

Quando terminaram de vestir-se, a luz <strong>da</strong> manhã já alagava as ruas embaixo. O hotel no qual estavam,<br />

um estabelecimento de luxo cujo nome Minnie não recor<strong>da</strong>va, pois a noite anterior não prestou atenção<br />

nisso, <strong>da</strong>va a uma ampla aveni<strong>da</strong>. Em um lado havia um parque, rodeado por uma cerca metálica. No<br />

outro lado havia edifícios de pedra com facha<strong>da</strong>s artísticas. Robert a levou por uma rua lateral mais à<br />

frente do parque. A pa<strong>da</strong>ria pequena <strong>da</strong> qual falava era em reali<strong>da</strong>de um café com vistas ao Sena. E não<br />

só ao Sena, pois seu hotel estava no coração <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, a poucos passos <strong>da</strong> Île de la Citè.<br />

Uns meses atrás, Minnie não teria podido imaginar-se indo a Paris com um marido. Não teria podido<br />

sonhar com um hotel que estava só a alguns metros <strong>da</strong> catedral de Notre Dame. Aquilo ultrapassava,<br />

inclusive, a imaginação desboca<strong>da</strong> de Lydia. Mas não pensaria em sua amiga. Fazê-lo causava uma dor<br />

profun<strong>da</strong>.<br />

Em vez disso, se concentraria nas coisas bonitas e antigas que via; e também nas novas e brilhantes.<br />

Os toldos coloridos, os elegantes edifícios, o pequeno bando de pombas que posou perto deles quando<br />

comiam; e olhou com interesse os croissant que tinha comprado Robert.


Os pães-doces, quentes, macios e lubrificados de manteiga, estavam tão bons que Minnie quase não<br />

queria compartilhá-los com os pássaros.<br />

Mas quando jogavam os restos de seu café <strong>da</strong> manhã às pombas, e tentavam assegurar-se de que os<br />

intrépidos par<strong>da</strong>is pequenos que se aproximavam pelo lateral levassem também sua parte, aproximou-se<br />

coxeando um menino pequeno com um cajado. Na cabeça levava uma boina de feltro, que não era o<br />

bastante grande para lhe tampar as orelhas.<br />

O olhar calculista de seus olhos não estava em consonância com sua curta i<strong>da</strong>de. Mas em seu caso, a<br />

i<strong>da</strong>de não tinha na<strong>da</strong> a ver com a necessi<strong>da</strong>de de ser ardiloso. Aproximou-se coxeando a eles, apoiandose<br />

pesa<strong>da</strong>mente na bengala. O balanço de seu passo era muito exagerado para ser real. Havia coisas que<br />

não era necessário traduzir.<br />

Minnie tocou com a mão o bracelete que levava no pulso.<br />

Os olhos do menino brilharam calculadores. Se tinha pensado em lhes roubar enquanto jogavam<br />

miolos às pombas, não lhe custou muito mu<strong>da</strong>r de estratégia.<br />

– Uns centavos, Monsieur – disse em um inglês passável. Tirou a boina e fez uma reverência a Robert<br />

com ela. – Uns poucos trocados para o aleijado.<br />

Minnie se perguntou como teria adivinhado que eram ingleses. Mas supôs que não devia ser muito<br />

difícil. Depois de tudo, provavelmente os tinha ouvido falar.<br />

Ela quase esperava que Robert o espantasse, mas em vez disso, tirou uma bolsa. Sem dizer uma<br />

palavra, colocou a mão nela e extraiu uma moe<strong>da</strong>. Minnie viu o brilho do ouro quando ele lançou a<br />

moe<strong>da</strong> ao menino.<br />

O menino ergueu a mão e apanhou a moe<strong>da</strong> no ar com bons reflexos. Mas abriu muito a boca quando<br />

viu o que tinha na mão. O cajado lhe caiu ao chão e ele não se deu conta e seguiu olhando a moe<strong>da</strong>.<br />

Robert soltou o braço de Minnie e se aproximou do menino. Agachou-se e recolheu o cajado.<br />

– A próxima vez – disse em um francês com muito acento inglês, – não jogue o cajado. Outro homem<br />

poderia não haver-se <strong>da</strong>do conta de que isto era uma interpretação e possivelmente se mostraria menos<br />

indulgente.<br />

– Monsieur – o menino olhou de novo a moe<strong>da</strong> que tinha na mão e a seguir jogou o cajado em Robert<br />

e saiu correndo sem o menor rastro de claudicação.<br />

– Sabia que fingia a claudicação? – perguntou Minnie.<br />

Robert encolheu os ombros. – Parecia muito provável.<br />

– E lhe deste…? Por certo, quanto lhe deste?<br />

– Uma moe<strong>da</strong> de vinte francos. Duvido que tenha visto outra em sua vi<strong>da</strong>.<br />

Vinte francos. Isso valia quase uma libra. Um garoto de rua necessitava meses e meses pedindo<br />

esmola para reunir esse botim.<br />

– Por que lhe deste isso se sabia que mentia?<br />

Robert sorriu.<br />

– Os farsantes necessitam aju<strong>da</strong> tanto como outros. Eu sei muito disso – olhou na direção em que se<br />

afastou o menino. – Especialmente quando se faz assim.


– Você sabe muito sobre dizer mentiras para tirar dinheiro? – Minnie sorriu. Ficou de pé, sacudiu os<br />

miolos do vestido e caminhou para ele.<br />

– Claro que sim. Algumas de minhas primeiras lembranças são de mim mentindo por dinheiro –<br />

Robert pôs a mão dela em seu cotovelo e puseram-se a an<strong>da</strong>r. A sua esquer<strong>da</strong>, uma cerca de ferro forjado<br />

separava seu caminho do Sena. O rio fluía mais à frente. Minnie se negava a acreditar que sua água<br />

pudesse ser marrom e suja.<br />

– De ver<strong>da</strong>de? – perguntou com increduli<strong>da</strong>de. – E que capricho queria comprar com esse dinheiro?<br />

– Nenhum capricho – lhe dedicou um sorriso e lhe deu um tapinha no braço. – É uma história bastante<br />

diverti<strong>da</strong>. Verá, meus pais se casaram em circunstâncias estranhas. Meu pai convenceu a minha mãe de<br />

que a amava. Ela acreditou; meu pai podia ser muito convincente quando se empenhava nisso. Mas o pai<br />

de minha mãe sabia um pouco do mundo e suspeitava que os duques não se apaixonavam perdi<strong>da</strong>mente<br />

pelas filhas de comerciantes de lã que tinham dotes enormes. Ao menos não quando fazia apenas umas<br />

poucas semanas que se conheciam. Assim, em vez de <strong>da</strong>r uma grande soma de dinheiro a meu pai ao<br />

casar-se, a pôs em um banco e meu pai seguiria recebendo o dinheiro enquanto minha mãe fosse feliz.<br />

Robert tinha comprado uma bolsa extra do padeiro. Abriu-a nesse momento. Entregou a Minnie um<br />

pão-doce, dourado e quente, e tirou outro para si. Começou a cortar o seus em pe<strong>da</strong>cinhos e jogá-los aos<br />

patos por cima <strong>da</strong> cerca de ferro.<br />

– Isso não parece o começo de uma história diverti<strong>da</strong> – declarou Minnie, duvidosa.<br />

– Suponho que a informação dos antecedentes não é muito diverti<strong>da</strong> – Robert franziu o cenho e partiu<br />

outro pe<strong>da</strong>cinho de pão-doce. – Mas o resto sim o é, prometo-o. Em qualquer caso, resumindo: meu pai<br />

não tinha dinheiro próprio e minha mãe controlava o seu. Assim, quando ela vinha de visita…<br />

– Sua mãe ia de visita? Não vivia com vocês?<br />

– Não, a maior parte do tempo não vivia em casa. Acredito que os três primeiros anos de minha vi<strong>da</strong><br />

não a vi – ele arranhou o queixo. – Se tivesse vivido com meu pai, lhe teriam pago o dote. Essas eram as<br />

condições. Minha mãe controlava o dinheiro mediante sua presença. Não queria que meu pai recebesse<br />

dinheiro; por isso, quando lhe disse que, se queria algo, teria que viver com ele, lhe disse que se fosse ao<br />

diabo.<br />

Minnie pensou nas conversas que tinha tido com a mãe dele. A duquesa lhe havia dito algumas<br />

confidências, mas não aquela. Embora, por outra parte, isso explicava muitas coisas. Muitas, em<br />

reali<strong>da</strong>de. Aquela história não tinha na<strong>da</strong> de diverti<strong>da</strong>. Minnie olhou para seu marido com o cenho<br />

franzido, mas ele sorria como se tudo aquilo formasse parte de alguma brincadeira. Lançava pe<strong>da</strong>ços de<br />

pão-doce aos patos e sorria quando estes brigavam por ele.<br />

– Ou seja, que, em qualquer caso…<br />

– Espera um momento. Seu pai não deixou que sua mãe te visse os primeiros três anos de sua vi<strong>da</strong>?<br />

– Exato – ele franziu o cenho e partiu outro pe<strong>da</strong>cinho de seu pão-doce. – Segundo os termos do<br />

contrato, ele não tinha nenhum controle sobre o dinheiro, mas legalmente sim me controlava. Assim… –<br />

voltou a encolher os ombros como se tudo aquilo fosse perfeitamente normal. – Não se pode culpar por<br />

tentá-lo.<br />

Quem não lhe podia culpar? Minnie sim podia.<br />

Mas Robert simplesmente seguiu jogando miolos à água e falando.


– Quando fiz quatro anos, tinham chegado a um acordo. Meu avô, o pai de minha mãe, deu um<br />

punhado de fábricas a meu pai para que pudesse manter no lugar a seus piores credores – olhou para<br />

Minnie. – Botas Graydon foi uma delas. Em troca, minha mãe poderia visitar-nos uns quantos dias duas<br />

vezes ao ano. Eu tentava desespera<strong>da</strong>mente me comportar bem quando ela vinha. Me comportar muito<br />

bem para que essa vez não partisse. Meu pai, naturalmente, apoiava-me nesse empenho. Quando tinha<br />

seis anos lhe ocorreu um plano brilhante. Eu fingiria que não sabia ler, presumivelmente porque meu pai,<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> sua pobreza, não podia permitir-se me pagar um tutor. Estava seguro de que isso faria com que ela<br />

se entregasse.<br />

Minnie pigarreou; sentia uma opressão na garganta.<br />

– E funcionou?<br />

– Quase. Eu interpretei o papel do menino mais lastimoso do mundo. Fingi que não conhecia o<br />

alfabeto. Olhava as páginas como se não me dissessem na<strong>da</strong> e encolhia os ombros. Comecei a recitar o<br />

alfabeto, mas saltava letras. Saltava <strong>da</strong> L a P. Contei até cem e troquei os sessenta pelos setenta. Disse<br />

que cinco e seis somavam treze – sorriu. – E meu pai tinha razão. Esteve a ponto de funcionar. Depois de<br />

uns dias, ela enviou uma carta a seu pai lhe encarregando que enviasse outro baú com suas coisas.<br />

Comprou uma cartilha em uma loja próxima e to<strong>da</strong>s as tardes me levava ao salão, sentava-se comigo e<br />

estudávamos o alfabeto. Mostrava-se muito severa nas aulas, quase autoritária. Tínhamos um horário<br />

muito estrito.<br />

– Você já… – Minnie não podia acreditar que o filho de um duque não soubesse ler a essa i<strong>da</strong>de, mas,<br />

por outra parte, tampouco podia acreditar que um duque crescesse sem ver alguma vez a sua mãe. – Você<br />

já sabia ler então, não é assim?<br />

Robert encolheu os ombros com indiferença.<br />

– Naturalmente. Não havia muito mais que pudesse fazer ali além de ler. Depois de três dias fingindo<br />

ignorância, a situação começava a me chatear porque queria terminar de ler Robinson Crusoé. Mas o<br />

plano funcionava.<br />

Ela não havia partido ain<strong>da</strong>. Quando chegamos a M de marmota, eu a troquei pela M de mamãe. Ela<br />

me dedicou um olhar muito estrito com os lábios apertados e exigiu saber por que havia dito isso. Disselhe<br />

que era porque as marmotas não eram na<strong>da</strong> especiais para mim, mas a ela gostava de tê-la ali.<br />

Minnie não sabia como ele podia sorrir quando ela notava que lhe partia o coração.<br />

Mas ele moveu a cabeça com um gesto que parecia quase de regozijo.<br />

– Aparentemente, levei muito longe a exploração <strong>da</strong> lástima, porque ela moveu a cabeça e disse que<br />

aquele dia não estu<strong>da</strong>ríamos mais o alfabeto. Disse que tinha que escrever umas cartas muito importantes<br />

e que eu fosse brincar sem fazer ruído. Deu-me papel e lápis e me disse que me distraí-se desenhando.<br />

– Não posso acreditar que isso não lhe derretesse o coração.<br />

– Oh, não! Para então, minha mãe se endureceu muito. E sabia muito bem como me tentar. Repetiu<br />

duas vezes que eram umas cartas muito importantes e muito íntimas. Naturalmente, eu não pude resistir o<br />

impulso de lhes <strong>da</strong>r uma olha<strong>da</strong>. Ela as escreveu senta<strong>da</strong> a meu lado, enquanto eu fingia desenhar<br />

pássaros. Sua carta muito importante e priva<strong>da</strong> repetia uma e outra vez:<br />

“Clermont é um tolo”.<br />

Robert sorriu recor<strong>da</strong>ndo aquilo, a sua mãe chamando tolo a seu pai; mas Minnie o olhava<br />

escan<strong>da</strong>liza<strong>da</strong>.


– É obvio, perguntei-lhe o que era um tolo. E assim foi como tirou a limpo meu intento de engano.<br />

Acabava de demonstrar que sabia ler. Ela não disse nenhuma palavra. Ficou de pé e saiu <strong>da</strong> sala. Depois<br />

disso, meu pai e ela tiveram a briga mais terrível de to<strong>da</strong>s. E acredito que dessa vez inclusive lhe atirou<br />

coisas. Eu não voltei a vê-la em dezoito meses.<br />

Minnie não sabia o que dizer. Ele sorria como se acabasse de relatar uma história diverti<strong>da</strong>, como a<br />

anedota que podia contar Minnie de uma vez que se perdeu aos sete anos e tinha metido a mão no bolso<br />

de outro homem acreditando que era seu pai.<br />

– Meu Deus! – exclamou ele. – Não posso acreditar que fora tão descarado quando menino.<br />

Como podia sorrir recor<strong>da</strong>ndo que seu pai o tinha recrutado com seis anos para utilizá-lo como arma<br />

contra sua mãe? Como podia rir de que sua mãe se afastou dele? Como podia fingir que pudesse haver<br />

algo divertido no fato de que seu pai arrebatasse um menino recém-nascido de sua mãe para tentar lhe<br />

tirar mais dinheiro?<br />

– Sabe, Robert? – perguntou, engasgando-se com as palavras. – Essa história não tem na<strong>da</strong> de<br />

graciosa. Na<strong>da</strong>.<br />

A ele foi apagando o sorriso pouco a pouco.<br />

– Não lhe pareceu isso? Mas… – franziu o cenho e esfregou o queixo. – A primeira parte não. Isso o<br />

compreendo. E… e suponho que não é exatamente uma história com um final feliz. Não tinha pensado<br />

nisso, mas estou tão acostumado a esse final que não penso duas vezes nisso. E a parte do meio sim é<br />

graciosa. Não te parece?<br />

– Quando trocou a M de marmota pela M de mamãe, fazia-o a sério?<br />

Por um momento, os olhos dele não mostraram nenhum regozijo. Parecia muito mais velho. Apertou<br />

os lábios, ressaltando as pequenas rugas que tinha nos cantos dos lábios. E, entretanto, também parecia<br />

jovem. Incrivelmente jovem, como se o menino de seis anos que tinha sido seguisse olhando desde detrás<br />

de seus olhos, vendo como se afastava sua mãe.<br />

– Pode ser – disse.<br />

Afastou um momento a vista e depois voltou a olhá-la. O regozijo estava de novo presente em seu<br />

rosto, mas se via um pouco forçado, como se tentasse usar um chapéu que não lhe cabia.<br />

– Por isso não tem graça.<br />

– A história tem elementos graciosos – protestou ele. – Dizer que seis mais cinco somam treze?<br />

Minnie notava o braço dele tenso sob sua mão. A seguinte parte do pão-doce que lançou aos patos o<br />

jogou com tanta força que um deles grasnou surpreso e se afastou antes de <strong>da</strong>r-se conta de que se tratava<br />

de comi<strong>da</strong>. E possivelmente foi nesse momento quando Minnie compreendeu o muito que significava<br />

aquilo para ele. Para ele tinha que ser uma história diverti<strong>da</strong> porque aquela lembrança dele dizendo<br />

mentiras a pedido de seu pai e querendo desespera<strong>da</strong>mente que sua mãe ficasse, era em reali<strong>da</strong>de uma<br />

história sobre como tinham quebrado o coração de um menino.<br />

Aquele era o homem que tinha entendido que um matrimônio com a filha de um nobre acabaria em<br />

lamentos e recriminações e que queria abolir a nobreza. Robert sabia de primeira mão o que implicava<br />

que uma esposa se afastasse dele e tinha rechaçado essa possibili<strong>da</strong>de. Tinha-a rechaçado embora isso<br />

implicaria falatórios e escân<strong>da</strong>lo, embora suportasse que os membros mais rígidos <strong>da</strong> alta socie<strong>da</strong>de<br />

nunca aceitariam a sua família.<br />

Robert não a olhou.


– E a parte em que saltava partes do alfabeto? Isso tampouco tem na<strong>da</strong> de divertido?<br />

Aquele era um homem que queria que sua esposa o amasse, mas que não se permitia essa esperança.<br />

E então foi quando Minnie se deu conta de que ela tinha algo que ele nunca tinha tido. Ela tinha sido<br />

queri<strong>da</strong>. Seu pai a tinha adorado até o momento no qual sua iminente condenação lhe tinha quebrado o<br />

espírito. Ela tinha anos de lembranças felizes com ele. Depois do desaparecimento de seu pai, tinham<br />

chegado suas tias. Embora não estivesse de acordo com tudo o que lhe haviam dito, tinham-na querido.<br />

Tinham-na tratado de um modo que demonstrava que lhes importava. Ela <strong>da</strong>va por certo esse carinho.<br />

Afortuna<strong>da</strong> ela.<br />

Robert tinha que rir do que tinha passado. Se não ria, choraria. Ela não tinha podido entendê-lo até<br />

esse momento, porque nesse momento sabia que ela também tinha que rir ou ficaria a chorar. Ele a olhava<br />

com tal desespero que ela não pôde suportar seguir contradizendo-o.<br />

– Sim – murmurou, entrelaçando os dedos com os dele. – Agora o vejo. Sim tem graça.<br />

OS PRIMEIROS DIAS EM Paris foram maravilhosos para Robert. Como se tivesse passado a vi<strong>da</strong><br />

atrás de nuvens e de repente tivesse saído o sol com to<strong>da</strong> sua força cegadora.<br />

Despertavam. Passeavam. Visitavam museus e lugares de interesse. Pela tarde voltavam para seu<br />

quarto e faziam amor. Os camarotes <strong>da</strong> ópera ficaram sem usar para poder ficarem mais tempo na cama.<br />

– Disse que tinha me imaginado de joelhos – disse ela uma tarde. – Como seria isso?<br />

Robert o explicou. E então ela insistiu em prová-lo. E depois de umas leves instruções, endureceu<br />

com a boca o pênis dele, que tinha as mãos nos ombros dela. Ele deu um coice e ela o acariciou em sua<br />

boca até que derramou sua semente. Depois disso, lhe pareceu justo lhe devolver o favor. Demorou um<br />

pouco mais em aprender a fazê-lo, mas o esforço valeu a pena.<br />

“Se for bom na cama, poderia me apaixonar por você”.<br />

Robert estava decidido a chegar a ser bom, e tinha anos de fantasias que explorar.<br />

Às vezes as coisas que imaginavam resultavam anatomicamente impossíveis e terminavam caindo ao<br />

chão e rindo. Em outras ocasiões, como a vez em que ele a debruçou sobre a escrivaninha, resultavam<br />

muito, muito boas.<br />

Em sua quarta noite em Paris, lhe pôs rubis ao redor do pescoço, só rubis e depois de lhe haver tirado<br />

todo o resto, fez o que quis com ela.<br />

Quando terminou, ela tocou as pedras que levava ao redor do pescoço.<br />

– Supõe-se que isto é um suborno? – perguntou. – Porque já deveria haver te <strong>da</strong>do conta de que não<br />

precisa me oferecer na<strong>da</strong> para me levar a sua cama.<br />

– Poderia me <strong>da</strong>r conta – respondeu ele, corajoso, – mas por sorte para ti, a luxúria me deixa estúpido.<br />

E você recebe rubis.<br />

Minnie sorriu.<br />

Mas tinha razão. Os rubis eram um suborno. Não para conseguir seus favores. A Robert, estando<br />

casado, apreciava tão pouco a ideia de pagar pelo sexo como lhe tinha gostado quando solteiro. Mas<br />

queria que ela o amasse. Queria-o com um desejo profundo que não podia explicar. Essa noite esteve a


ponto de lhe dizer que a amava. Mas ain<strong>da</strong> restava quase uma semana. Havia tempo para que chegasse o<br />

amor. Não havia por que apressá-lo.<br />

Adormeceu com o braço ao redor dela e despertou à manhã seguinte na mesma posição. Os rubis<br />

piscavam à luz do amanhecer; eram uma promessa vermelho sangue de coisas futuras.<br />

Robert os olhou e sacudiu a cabeça para afastar aquele pensamento estranho e perturbador.<br />

E então bateram na porta.<br />

Minnie DESPERTOU COM UMA CORRENTE fria e um ruído. Abriu os olhos. O quarto estava<br />

vazio. Piscou e olhou a seu redor. Ouviu murmúrio de vozes na sala. Levantou-se, pôs uma bata e se<br />

aproximou <strong>da</strong> porta que separava os dois cômodos.<br />

Na sala havia um garçom de pé. Entregou um envelope marrom ao Robert, que também usava uma<br />

bata. Robert lhe deu uma moe<strong>da</strong>.<br />

– Espere do lado de fora se por acaso for necessária uma resposta imediata – disse.<br />

Fechou a porta.<br />

– Um telegrama? – perguntou Minnie. – Espero que não sejam más notícias.<br />

Os rubis que ele lhe tinha posto à noite anterior lhe pesavam no pescoço e pareciam desproporcionais<br />

quando ela levava apenas uma bata bor<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Robert deslizou o dedo indicador sob a lapela para romper o selo.<br />

– Adivinho que será do Carter, meu encarregado de negócios. Poderá esperar – comentou. Abriu o<br />

envelope e olhou o papel que havia dentro.<br />

Minnie viu que empalidecia. Ele leu a mensagem movendo os lábios com suavi<strong>da</strong>de. Depois ergueu a<br />

vista.<br />

– É de Sebastian.<br />

– O senhor Malheur? Seu primo cientista?<br />

– O mesmo – Disse ele.<br />

– Robert, o que aconteceu?<br />

Ele seguia olhando a folha de papel. Seu rosto, duro e branco, parecia esculpido em mármore.<br />

– Diga ao Rogers que empacote minhas coisas – falava com voz fria e tensa. – Pode as enviar no<br />

próximo trem.<br />

Tirou um relógio do bolso, olhou-o com o cenho franzido e abriu a porta para falar com o garçom.<br />

– Envia uma resposta: Irei imediatamente – lançou outra moe<strong>da</strong> ao moço, que desapareceu.<br />

Robert seguia sem olhar a Minnie, mas se voltou para ela.<br />

– Devo partir no expresso <strong>da</strong>s nove e meia. Falta menos de uma hora. Não tenho tempo de…<br />

– O que ocorre?<br />

Minnie teve que segui-lo até o closet, quase correndo para não ficar para trás.<br />

A careta que ele tinha nos lábios se suavizou momentaneamente ao olhá-la.


– Você fica – disse com mais gentileza. – Tem que ir às compras e não há necessi<strong>da</strong>de de…<br />

Lhe pôs a mão no peito.<br />

– Não há necessi<strong>da</strong>de, exceto que faz só uns dias que fiz meus votos matrimoniais. No bem e no mal,<br />

Robert. Crês que já vais fugir de mim e me deixar aqui tentando adivinhar o que ocorreu? Se você for, eu<br />

também vou.<br />

Pensava que ele podia tentar dissuadi-la, mas Robert se limitou a mover a cabeça e chamou seu<br />

criado.<br />

– O que aconteceu? – perguntou ela de novo.<br />

– Acontece que acusaram a alguém de rebelião criminal pela distribuição dos meus santinhos – disse<br />

Robert. – O processaram.<br />

– O que? Acusaram-lhe em sua ausência?<br />

– Não. A mim não – ele fez uma careta. – O homem a qual detiveram é inocente, mas isso não lhes<br />

impedirá de seguir adiante com o assunto. Possivelmente procuram me envergonhar, mas não sabem que<br />

estão destruindo a vi<strong>da</strong> de um homem que é, e sempre foi, superior a mim.<br />

– Quem? Quem é?<br />

O rosto dele se contorceu e suas mãos agarraram as dela.<br />

– Oliver Marshall – respondeu. – Meu irmão.


CAPÍTULO 23<br />

Robert RESERVOU UM COMPARTIMENTO completo de primeira classe no trem de Paris a<br />

Bologne. Não pelo luxo que isso supunha, pois mal se fixava nisso naquele momento. Era uma questão de<br />

autopreservação. Se tivesse que ver-se obrigado a conversar educa<strong>da</strong>mente durante a viagem, não<br />

conseguiria sobreviver a ela. Em vez disso, olhou a paisagem com o sol subindo no céu. Passaram as<br />

horas.<br />

Não se sentou em nenhum dos assentos confortáveis nem pegou nenhuma <strong>da</strong>s frutas nem dos pãesdoces<br />

de creme que supôs que Minnie teria pedido para ele. Por insistência dela, provou uma bolacha,<br />

mas tinha sabor de cinza e a deixou no prato depois de uma mordi<strong>da</strong>. Permaneceu horas de pé perto <strong>da</strong><br />

parte dianteira do compartimento, com uma mão na parede e a outra segurando um cigarro pelo guichê<br />

aberto.<br />

Fazia tempo que tinha se <strong>da</strong>do conta de que utilizava os cigarros para evitar companhia. A nuvem de<br />

fumaça que criava no compartimento criava outra barreira, uma parede brumosa construí<strong>da</strong> entre sua<br />

esposa e ele. Aspirava a fumaça e o sentia acre e irritante nos pulmões, um castigo justo pelo que tinha<br />

permitido que ocorresse que o castigo que supunham seus remorsos.<br />

Sabia que Stevens queria um culpado. Sabia e, em sua pressa pela cerimônia, em sua luxúria, havia<br />

prorrogado o assunto até sua volta. Tinha acreditado que teria tempo de lutar com isso mais tarde.<br />

As milhas corriam, marca<strong>da</strong>s apenas por seu relógio e pelos povoados que passavam. Transcorreram<br />

longas horas, pontua<strong>da</strong>s somente pelo chiado dos freios e o assobio do trem nas poucas para<strong>da</strong>s que fazia<br />

o expresso. Primeiro deixaram para trás Beauvais e depois Amiens. Apenas quando o trem chegou até<br />

Crécy, sua esposa se atreveu a desafiar sua expressão severa e se aproximou dele.<br />

– Sabe uma coisa? – disse, apoiando-se na parede em frente do compartimento. – Empurrando-o não<br />

vais conseguir que vá mais depressa. – Não? – ele deu uns golpezinhos com o dedo na ponta do cigarro<br />

fora do guichê e ficou olhando como voavam as brasas no vento. – Pelo que eu posso ver, tampouco o<br />

freia.<br />

Minnie afastou a vista. Apertou a mandíbula e tamborilou com os dedos no vidro do guichê.<br />

Esse ligeiro distanciamento dela supunha um terceiro castigo para Robert e lhe ardia mais que a<br />

fumaça que tinha tragado.<br />

“Mas deste modo, também castiga a ela”. Apertou o punho e moveu a cabeça.<br />

Minnie não disse na<strong>da</strong>. O trem dobrou uma curva e ela apoiou uma mão na parede para sustentar-se<br />

melhor. O metal protestou ao emparelhar-se e colocar-se em seu lugar. O som do trem avançando a pouco<br />

mais de trinta milhas por hora afogou qualquer resposta que ela tivesse podido <strong>da</strong>r.<br />

Robert pensou que não tinham passado nenhuma semana e ele já estava estragando tudo. Tinha<br />

desejado tanto! Não só uma esposa de nome, a não ser uma família de fato. Alguém que escolhesse a ele.<br />

Tinha sido um sonho estúpido. Naquele momento concreto, ele tampouco teria escolhido a si mesmo.<br />

Aspirou uma vez mais do cigarro e olhou como se avivava a brasa laranja.


E então sentiu o braço dela rodeando-o por trás. Minnie não disse na<strong>da</strong>, apenas se agarrou a ele e o<br />

estreitou com força. Abraçou-o até que ficou claro que não pensava soltá-lo por muito mal-humorado que<br />

estivesse. Ao Robert a respiração raspou os pulmões, e essa vez não foi pela fumaça.<br />

– Oh, Minnie! – ouviu-se dizer. – O que vou fazer?<br />

– Tudo o que possa. Quando é o julgamento?<br />

Robert negou com a cabeça.<br />

– Não sei.<br />

– É um duque. Tem que haver algo que possa fazer – ela fez uma pausa. – Eu não sei quase na<strong>da</strong> de<br />

temas legais, mas não se podem invali<strong>da</strong>r os julgamentos?<br />

– Este está destinado a envergonhar a mim – respondeu ele. – Acredito que é por vingança.<br />

Seu rosto adquiriu uma expressão sombria.<br />

– Há algo estranho em Leicester. Eu comecei a investigá-lo porque descobri o que tinha feito meu pai<br />

com as Botas Graydon. Esses processos por rebelião criminal sempre se produziam quando se<br />

desgastavam as relações entre os operários e os donos <strong>da</strong>s fábricas. Davam-se por ressentimento, não<br />

por uma aplicação <strong>da</strong> lei como é devido.<br />

– Pois então será mais fácil invalidá-los – comentou Minnie.<br />

– Não é tão simples – Robert golpeou o cigarro contra o marco do guichê. – Sebastian dizia que<br />

chegaram uns quantos jornalistas de Londres para cobrir o assunto. Informaram que um homem de minha<br />

casa cometeu um delito. Stevens sem dúvi<strong>da</strong> pensa que conseguirá uma condenação facilmente, que<br />

estando fora do país, eu não poderei responder. Acredita que, quando eu voltar, o <strong>da</strong>no já aparecerá. Eu<br />

ficarei morto de vergonha e Oliver, um convi<strong>da</strong>do de minha casa e reconhecido como meu amigo, será<br />

tachado de criminoso.<br />

– Mas isso não ocorrerá – retrucou ela.<br />

Ele guardou silêncio um momento.<br />

– Eu poderia pressionar para que abandonassem o caso.<br />

Minnie o abraçou com mais força.<br />

– Mas não poderia parar os falatórios que seguiriam se eu anulasse a investigação. Meu irmão<br />

trabalhou muito duro para conseguir uma posição de respeito. Está construindo uma reputação de homem<br />

inteligente e justo. Se invali<strong>da</strong>r a investigação, embora ganhássemos com a base de que os santinhos nem<br />

sequer eram sediciosos, a ideia de que ele tinha escrito esses pensamentos tão radicais sob um nome<br />

falso, destruiria tudo pelo qual trabalhou. Sim, eu poderia parar o julgamento legal, mas meu irmão não<br />

só necessita um veredicto favorável; necessita que o exonerem publicamente de to<strong>da</strong>s as acusações.<br />

– E você te encarregará disso.<br />

Ela o disse com tanta segurança, com tanta ternura, que Robert quase acreditou por um momento.<br />

– Farei o que seja preciso – lhe quebrou a voz. – Meu irmão me disse uma vez que a família era<br />

questão de escolha. Se lhe desse agora as costas, que classe de irmão seria para ele?<br />

Soltou o cigarro, que chocou com o trem e desapareceu ao tomar uma curva antes que Robert o visse<br />

chegar ao chão. O bosque se afastava já na distância. Nesse momento, o trem passava por diante de<br />

pastos cercados.


Ele contou três cercas antes de voltar a falar.<br />

– Meu pai estuprou a mãe dele.<br />

Minnie aspirou ar com força.<br />

– Esse é meu parentesco com ele. Porque uma mulher que não queria se viu força<strong>da</strong> a fazer a vontade<br />

de meu pai. E minha família era tão poderosa que não se fez justiça.<br />

– Não foi você.<br />

– Foi o Duque de Clermont. Eu levo seu nome e sua cara – Robert apertou os punhos. – Sua<br />

responsabili<strong>da</strong>de. Suponho que, de certo modo, foi o cúmulo do egoísmo por minha parte reclamá-lo<br />

como irmão. Mas não posso deixá-lo agora. Se a família for questão de escolha, eu escolherei a ele. E o<br />

escolherei uma e outra vez até que…<br />

Aquele pensamento foi como um peso que lhe esmagasse o peito. Esteve a ponto de cambalear-se. E<br />

cambaleou quando o trem de novo trocou de direção. Mas Minnie apoiou-o em seu ombro, segurando-o e,<br />

a seguir, o levou até um dos bancos estofados.<br />

– Escolherá a ele até o quê? – perguntou.<br />

– Até que as estrelas caiam do céu – respondeu Robert. – Porque ele me escolheu primeiro.<br />

Era terrível admitir aquela vulnerabili<strong>da</strong>de. Sentia-se como uma tartaruga desprovi<strong>da</strong> de sua<br />

carapaça e à qual estavam preparando para fazer sopa com ela.<br />

Mas Minnie não mostrou nenhuma surpresa. Situou-se diante dele com o vestido caindo ao redor dos<br />

joelhos de Robert. Repassou suas sobrancelhas com os dedos e pressionou as têmporas com eles antes de<br />

voltar a passá-los ao longo <strong>da</strong>s rugas <strong>da</strong> testa. A sensação era… maravilhosa. Como se ela pudesse tirar<br />

assim as tensões de seus traços.<br />

– Minhas tias se fazem isto mutuamente quando as coisas não vão bem.<br />

Robert lhe afastou as mãos.<br />

– Eu não necessito que me reconforte.<br />

Ele não merecia isso.<br />

Mas antes que pudesse levantar-se e voltar-se, Minnie lhe agarrou as mãos. Seu apertão não era<br />

firme, mas sim seguro.<br />

– Se a família for questão de escolha – murmurou com suavi<strong>da</strong>de. – Eu escolhi a ti.<br />

Robert respirou fundo.<br />

– E te escolherei uma e outra vez – declarou ela.<br />

Ele ergueu a cabeça. Os olhos dela eram grandes, cinzas e cândidos. E dizia palavras que ele tinha<br />

ansiado ouvir durante anos. Ficou de pé, abraçou-a pelos quadris e a beijou na boca. O beijo não teve<br />

na<strong>da</strong> de premeditado nem de calculado. Simplesmente ela estava dolorosamente presente.<br />

– Minnie – murmurou contra seus lábios. – Minnie – repetiu.<br />

Essa noite seria a quinta noite de seu matrimônio. Havia-a possuído com ela rindo. Havia-a possuído<br />

gemendo por ele. Nunca a havia possuído como se sentia naquele momento: sombrio e duvidoso.<br />

Essa vez não pediu nem lhe sussurrou o que queria provar. Não a preparou com beijos. Empurrou-a<br />

contra a parede do vagão e, antes que ela tivesse oportuni<strong>da</strong>de de debater-se ou de gritar, agarrou-lhe as<br />

saias e subiu as anáguas e a crinolina. Apenas tinha que liberar sua ereção. Uma investi<strong>da</strong>, um empurrão


dentro dela e seria tão mal como seu pai, possuiria a uma mulher só porque estava ali e porque ele queria<br />

senti-la. Uma investi<strong>da</strong> e se castigaria ain<strong>da</strong> mais a si mesmo.<br />

Ela tinha a cabeça baixa, inclina<strong>da</strong> ante ele. Ele era muito mais alto. Não havia ninguém mais ali e ela<br />

não poderia pedir aju<strong>da</strong>. Provavelmente lhe tinha <strong>da</strong>do um susto de morte.<br />

Deixou cair as saias e se afastou.<br />

– Sinto-o – disse. – Estou com um humor dos cães. Será melhor que te afaste enquanto pode.<br />

Minnie ergueu a vista para ele. Seus olhos eram de cor cinza páli<strong>da</strong> e totalmente adoráveis. Mas ela<br />

não moveu nem um músculo.<br />

As sombras <strong>da</strong>s árvores que passava o trem entremeavam sobre eles, pintando seus rostos com uma<br />

paleta móvel de luz e escuridão. O corpo dele se estremeceu de desejo.<br />

– Digo-o a sério, Minnie – murmurou com voz baixa. – Te afaste. Se pudesse ver o que penso agora,<br />

levaria-te um bom susto. Sabe o que poderia te fazer?<br />

– Não – a voz dela soava quase pláci<strong>da</strong>. – Me diga.<br />

– Empurrei-te contra a parede – ele pôs as mãos a ambos os lados <strong>da</strong> cabeça dela. – Poderia te haver<br />

forçado.<br />

– Poderia me haver forçado – repetiu ela, movendo a cabeça. – A que poderia me haver forçado?<br />

Ele estreitou os olhos.<br />

– Já sabe ao que me refiro.<br />

– Temo-me que não tenho nem ideia.<br />

Robert adiantou um passo e ela ficou presa contra a parede.<br />

– Me vais obrigar a dizê-lo?<br />

– Por favor.<br />

– Poderia introduzir meu pênis dentro de ti – roçou a virilha dela com a sua. – Sem preâmbulos. Sem<br />

na<strong>da</strong>.<br />

Minnie abriu muito os olhos. Ergueu os cantos dos lábios.<br />

– Oh, não! – exclamou. Em sua bochecha se formou uma covinha. – Seu pênis não. Qualquer coisa,<br />

menos seu pênis.<br />

Robert sorriu a despeito de seu pesar.<br />

– Maldita seja, Minnie! Não pode levar a sério meu mau humor? Ela não fez conta.<br />

– E eu que me sentia tão… tão vazia! Se me penetrasse, isso poderia ser uma sensação curiosa –<br />

enquanto falava, desabotoou as calças dele. Tocou seu pênis, acariciando sua ereção. – Mas não há<br />

nenhum medo disso – disse. – É tão grande que não acredito que caiba.<br />

Apertou a ponta do pênis e ele soltou um coice seguido de uma risa<strong>da</strong>.<br />

– Por Deus, Minnie! Não posso pensar com clari<strong>da</strong>de.<br />

– Menos mal que você controla seus impulsos – murmurou ela, – porque eu estou empapa<strong>da</strong> e seria<br />

terrivelmente embaraçoso que agora fosse a…<br />

Ele a ergueu contra a parede, colocou as pernas dela ao redor de seu corpo e se deslizou em seu<br />

interior. Estava molha<strong>da</strong>, muito molha<strong>da</strong> e quente. O prazer de seu corpo, apertado ao redor de seu


membro, foi tão intenso que quase lhe doeu. O balanço rítmico do trem o embalava dentro dela.<br />

Apoiou-a na parede com os músculos tensos.<br />

– Isso, Robert – ela o rodeou com seus braços – Continue assim.<br />

Ele se moveu em seu interior e investiu até que sua testa se encheu de suor. Deixou-se levar pela<br />

luxúria, permitiu que seu instinto se apoderasse dele até que não ficou na<strong>da</strong> exceto ela, ela rodeando-o,<br />

os peitos dela em suas mãos e o pulso dela pulsando em uníssono com as investi<strong>da</strong>s dele.<br />

Minnie chegou ao orgasmo assim, esticando-se em torno do pênis dele com on<strong>da</strong>s de calor vibrante. E<br />

ele seguiu investindo, forte ao princípio e depois mais forte ain<strong>da</strong>, até que chegou também seu clímax. No<br />

momento em que derramou sua semente, imaginou aos dois unidos por muito mais que o roce dos dentes<br />

dele na mandíbula dela, mais que seus dedos entrelaçados e do que o modo em que as pernas dela<br />

abraçavam ain<strong>da</strong> seu corpo. Era mais que o mero feito físico de enterrar-se em seu corpo.<br />

Naquele momento, pela primeira vez em sua vi<strong>da</strong>, Robert acreditou que havia alguém para ele.<br />

Alguém que estaria ao seu lado nos momentos mais difíceis. Mais que uma amante, uma amiga e uma<br />

alia<strong>da</strong>. Uma esposa nos bons e nos maus momentos, na riqueza e na pobreza, na saúde e na enfermi<strong>da</strong>de,<br />

na risa<strong>da</strong> e nas lágrimas.<br />

Incorporou-se, respirando pesa<strong>da</strong>mente, emocionado pelo presente que lhe tinha sido <strong>da</strong>do. Acariciou<br />

a bochecha dela, admirado.<br />

– Minha Minerva – sussurrou.<br />

Tinha a sensação de estar descobrindo-a de novo. Como se, entre todo o desassossego do dia,<br />

tivessem-lhe concedido por fim o desejo de seu coração. E agora que a tinha, não queria deixá-la partir.<br />

Ela apoiou a cabeça em seu ombro.<br />

– Assim está melhor – disse.<br />

Aquilo que Robert sentia entre eles era tão novo! Novo e desconhecido, e tão bem-vindo que quase<br />

temia admiti-lo por medo de que desaparecesse. Mas se não dizia na<strong>da</strong>…<br />

– Em alguma parte há alguém dizendo que cometi um terrível engano ao me casar contigo – comentou.<br />

Minnie ergueu a cabeça do ombro dele e o olhou com olhos muito abertos.<br />

– Equivocam-se – ele a rodeou com seus braços. – Se equivocam todos, quaisquer pessoas que<br />

sejam. Você é a melhor escolha que já fiz.<br />

Ela o olhou com uma luz em seus olhos cinzas, uma luz que fazia com que Robert se sentisse muito,<br />

muito grande. Com ela a seu lado, via-se capaz de vencer a um exército inteiro. Tudo o que pudesse ir<br />

mal acabaria arrumando-se.<br />

Era quase muito para acreditá-lo.<br />

Por isso, em vez de dizer-lhe, Robert baixou a cabeça e voltou a beijá-la.<br />

QUANDO Robert CHEGOU A LEICESTER, tinha viajado quase todo o dia. Sua noite de núpcias, a<br />

lembrança atemporal de despertar ao lado de Minnie na manhã seguinte, seguido de dias de lhe fazer<br />

amor langui<strong>da</strong>mente… To<strong>da</strong>s essas coisas tinham desaparecido de sua mente com o balanço rítmico dos<br />

trens e a vibração do barco a vapor.


Quando o trem chegou por fim a Leicester, já tarde, não se permitiu tempo para comer nem para<br />

lavar-se. Tinha escurecido e a lua pendurava alta no céu. Introduziu Minnie em uma carruagem e se<br />

dirigiu a pé ao centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

A noite era escura e ventosa, mas não muito fria. O telegrama de<br />

Sebastian lhe havia dito onde estava detido Oliver, no próprio Conselho, justo debaixo <strong>da</strong> biblioteca<br />

onde Robert tinha conhecido a sua esposa, a poucos passos <strong>da</strong> sala do prefeito onde tinham sido<br />

apresentados.<br />

E na ver<strong>da</strong>de, quando chegou ao edifício já em plena noite, viu-o igual à noite em que se conheceram.<br />

No Grande Salão havia algum acontecimento. Bateu na porta lateral e esperou. Voltou a chamar mais<br />

forte, até que o homem que fazia as vezes de carcereiro lhe abriu a porta.<br />

– Não há visitas – franziu o cenho. – Já é tarde.<br />

Robert lhe pôs uma moe<strong>da</strong> na mão.<br />

– Não sou um visitante.<br />

O homem nem sequer piscou.<br />

– Por aqui, senhor – disse.<br />

Paris e os croissants pareciam muito longínquos. A lembrança pertencia a outro homem, um homem<br />

felizmente casado e timi<strong>da</strong>mente encantado com o futuro que se desvelava lentamente diante ele. No<br />

caminho até as celas, to<strong>da</strong> essa felici<strong>da</strong>de se viu suplanta<strong>da</strong> por uma sensação de vazio na boca do<br />

estômago. O carcereiro levava uma lanterna que mostrava paredes sujas e portas de madeira. Abriu as<br />

portas principais e subiu até uma <strong>da</strong>s celas. Ouviu-se ruído de madeira raspando madeira.<br />

Robert apontou a luz para diante. O homem não tinha aberto a porta <strong>da</strong> cela, mas tinha movido um<br />

painel que cobria uma fresta fixa à altura do olho, uma ranhura de umas polega<strong>da</strong>s de altura e em torno de<br />

meio pé de longitude.<br />

O carcereiro retrocedeu uns passos e fez gestos a Robert para que se adiantasse.<br />

Robert se aproximou <strong>da</strong> ranhura e levantou o lampião. A luz não chegava a iluminar o interior <strong>da</strong> cela.<br />

– Oliver? – perguntou em voz baixa.<br />

– Robert? – ouviu-se um murmúrio de roupa. – É muita luz. Não vejo na<strong>da</strong>.<br />

A luz do lampião era bastante anêmica, não chegava nem a mostrar as dimensões <strong>da</strong> cela em que<br />

estava seu irmão. Para que Oliver a achasse muito brilhante, tinha que ter passado horas sentado na<br />

escuridão. Todo o tempo que Robert tinha passado em seu vagão de primeira classe, seu irmão tinha<br />

estado ali. Estremeceu-se.<br />

– Tem mantas? – perguntou. – Comi<strong>da</strong>?<br />

– O que faz aqui? – perguntou por sua vez Oliver com uma voz estranhamente corajosa. – Está de lua<br />

de mel. Teria que estar em Paris.<br />

Isto é culpa minha – Robert baixou o lampião, baixou a boca à ranhura e baixou mais a voz. – Eu<br />

escrevi os malditos santinhos. Nunca quis te envolver nisto. É culpa minha que esteja nesta cela<br />

pestilenta – aquilo não era um modo de falar. Aproximou-se o suficiente para captar o fedor que havia no<br />

interior <strong>da</strong> cela.<br />

– Bom, eu supunha que foi você o autor – repôs Oliver depois de uma curta pausa. – É seu estilo,<br />

você já me entende. Fascinava-me as ler. Por que não me disse isso?


– Sabia que alguém estava conseguindo condenações falsas por rebelião criminal – Robert soprou;<br />

seu fôlego saía branco no frio <strong>da</strong> cela. – Queria descobrir quem era. Sou a única pessoa que não podiam<br />

acusar. Se dizia isso a ti, podiam te considerar cúmplice.<br />

– Ah! Muito preparado.<br />

– Obviamente, não o suficiente. Surpreende-me ter chegado a tempo. Imaginava que lhe fariam um<br />

julgamento rápido e lhe condenariam.<br />

– Parece ser que não – suspirou Oliver. – Estão esperando que chegue uma testemunha. Recor<strong>da</strong> a<br />

lorde Green, de nossos dias em Cambridge?<br />

– Lorde Green? Sim, lembro-me dele. Mas que demônios vai dizer ele? Viu-o em algum lugar?<br />

– Não, não o vi desde que fizemos aquela aposta por uma parti<strong>da</strong> de xadrez faz três anos. Mas o<br />

chamaram para declarar e não tenho nem ideia de que diabos vai dizer.<br />

De novo o xadrez. Não podia ser uma coincidência. Mas quanto ao que isso significava… Robert<br />

moveu a cabeça.<br />

– Pois eu também sou uma testemunha. Eu gostaria de ver um jurado votar sua condenação quando o<br />

Duque de Clermont declare que o autor foi ele e que você não sabia na<strong>da</strong>.<br />

Aproximou a mão à ranhura. Mas em vez de poder agarrar a mão de seu irmão ou de lhe tocar o<br />

ombro, seus dedos encontraram um ralo de metal frio, com os barrotes tão juntos que entre eles apenas<br />

cabia o dedo mindinho. Apenas pôde roçar as gemas dos dedos de Oliver.<br />

– Vamos, vamos – disse o carcereiro. – Não posso permitir que passem navalhas e não as possa ver.<br />

Robert deixou cair a mão com frustração.<br />

– Voltarei pela manhã – prometeu. – Então arrumaremos tudo.<br />

Pedirei uma garrafa de champanha para celebrar sua liber<strong>da</strong>de.<br />

– Pede melhor um galão de azeite de carvão.<br />

Azeite de carvão?<br />

– Nesta cela há piolhos.<br />

Robert fez uma careta. Uma cela escura, fedorenta, infesta<strong>da</strong> de piolhos… Tinha feito aquilo a seu<br />

irmão. Recriminou-se interiormente por isso.<br />

Mas se Oliver podia mostrar-se corajoso…<br />

– Pois menos mal que não pude te <strong>da</strong>r uma palma<strong>da</strong> no ombro – disse.<br />

– Arre!<br />

Robert se voltou para partir.<br />

– Dou-te minha palavra de que não permitirei que lhe condenem.<br />

Mas quando se voltou, deu-se conta de que havia uma segun<strong>da</strong> figura na escuridão. Alguém mais<br />

baixo que Robert e mais largo. Na escuridão só pôde captar uma insinuação de força e de músculos<br />

grandes.<br />

– Não – disse o homem, olhando Robert. – Não o fará. Eu farei que cumpra sua palavra, Excelência.<br />

A figura se adiantou um passo mais e a luz do farol iluminou seu rosto.<br />

– Dou minha palavra, senhor Marshall – repetiu Robert.


O pai do Oliver o olhou. Apenas o olhou, mas conseguiu transmitir uma ameaça silenciosa sem dizer<br />

nenhuma palavra.<br />

– Pai – disse Oliver atrás deles. – Deixa de jogar faíscas pelos olhos. Está me envergonhando.<br />

– Humm – o senhor Marshall adiantou um passo. – viemos assim que nos inteiramos. Sua mãe está<br />

procurando hospe<strong>da</strong>gem. Chegará em uns minutos, assim que consiga abrir caminho com a esposa do<br />

carcereiro.<br />

Robert decidiu que tinha chegado o momento de desaparecer. Tinha que ir-se antes que aparecesse o<br />

resto <strong>da</strong> família de Oliver.<br />

– Nos veremos amanhã – prometeu. E saiu <strong>da</strong>li para não atormentar à senhora Marshall mais do que já<br />

o tinha feito.<br />

Na praça, rua abaixo, havia uma para<strong>da</strong> de carruagens de aluguel.<br />

Dirigia-se ali quando ouviu passos suaves atrás dele.<br />

– Espere, Excelência – o chamou uma mulher.<br />

Robert se voltou surpreso. Uma figura envolta em uma capa correu para ele e afastou o capuz.<br />

– Senhorita Charingford – disse Robert, surpreso.<br />

– Me escute – lhe pediu a mulher com urgência. – E me escute bem. Stevens colocou o senhor<br />

Marshall no cárcere para envergonhar a você.<br />

Pois conseguiu. Isso e mais.<br />

– Acredita que você estará em Paris durante o julgamento. Que fará com que seu administrador…<br />

– Ele não é meu administrador.<br />

– O que seja. Stevens acredita que pode provar que estava envolvido nisso, que pode insinuar que<br />

trabalhava por ordem dele.<br />

Robert a olhou.<br />

– Não pode provar isso – respondeu. – Não é ver<strong>da</strong>de. E eu sei.<br />

Não pode prová-lo a menos que tenha subornado a alguém para que declare.<br />

A senhorita Charingford moveu a cabeça.<br />

– Pode provar que o senhor Marshall estava envolvido – disse. – Ao menos, vai tentar.<br />

– Não pode provar semelhante coisa – repetiu Robert.<br />

A senhorita Charingford piscou.<br />

– Sei – respondeu, baixando a voz. – Mas você tem que saber que seu plano é prová-lo. Há uma frase<br />

em um dos panfletos, uma entrevista de um livro sobre estratégias de xadrez. É bem sabido que a você<br />

não interessa na<strong>da</strong> esse jogo. Mas vai vir uma testemunha que declarará que ele falou dessas estratégias<br />

com o senhor Marshall e que lhe emprestou esse livro em questão.<br />

– Oh! – Robert respirou fundo, recor<strong>da</strong>ndo o aborrecimento de Minnie. – Sei a qual estratégia você se<br />

refere. E também sei como eu a aprendi.<br />

Então sentiu medo. Recor<strong>da</strong>va como se zangou Minnie com ele por ter usado suas palavras, e o quão<br />

segura que estava de que essa frase faria com que a acusassem. Robert sentiu náuseas.


– Precisamente – repôs a senhorita Charingford. – Minnie me enviou uma carta me contando isso<br />

tudo. Tinha que dizer-lhe a você. Stevens não sabe na<strong>da</strong> de seu passado, apenas o nome – moveu a<br />

cabeça. – Acredita que quão único esconde ela é seu ver<strong>da</strong>deiro nome. Não lhe ocorreu perguntar o que<br />

podia ter feito.<br />

– Como sabe o que planejaram?<br />

A jovem guardou silêncio um momento. Depois suspirou.<br />

– Disse-me isso meu pai. Ele é o magistrado que assinou a ordem para a detenção do senhor<br />

Marshall. Não teve outra opção, entende?<br />

– Não a teve? – perguntou Robert com maus modos.<br />

– Não – repôs ela. – Stevens gosta de acabar com as greves. É o melhor. Mas aju<strong>da</strong> só aos que o<br />

aju<strong>da</strong>m. E desde que eu o rechacei, insistiu em que meu pai tem que fazer mais por ele.<br />

– Compreendo– murmurou Robert. E era certo. Independentemente do que acontecesse com Oliver,<br />

Stevens não seguiria servindo na tropa. – Acredita que seu pai falaria comigo se fosse vê-lo?<br />

Ela assentiu com a cabeça e se voltou para partir.<br />

– Espere, senhorita Charingford. Há mais uma coisa.<br />

A jovem não tinha ido a seu casamento. Robert recor<strong>da</strong>va as poucas horas de trem de Leicester a<br />

Londres em que Minnie tinha estado triste pela ausência de sua amiga.<br />

Olhou-a aos olhos.<br />

– Minnie sente a sua falta.<br />

A senhorita Charingford se encolheu como se percebesse acusação em suas palavras.<br />

– Eu também sinto a dela – sussurrou. – Não, eu não. Não sei. Sigo zanga<strong>da</strong> com ela. Mas isso não<br />

significa que queira lhe fazer mal – moveu a cabeça. – Tenho que ir antes que alguém se dê conta de que<br />

não estou em casa. Mas… tinha que dizer a alguém e ain<strong>da</strong> não posso falar com ela. Por favor, não lhe<br />

diga que me viu. Ain<strong>da</strong> não estou prepara<strong>da</strong> para vê-la.<br />

Depois disso, partiu.<br />

Pensavam apresentar provas de que Oliver estava envolvido. Robert pôs-se a an<strong>da</strong>r de novo, mas essa<br />

vez passou ao longo <strong>da</strong> praça onde dormitava o chofer de um cabriolé solitário com as mãos nas rédeas.<br />

Podia fazer o possível por invali<strong>da</strong>r a investigação e deixar a seu irmão sob uma nuvem de suspeita.<br />

Ou podia falar. Quando falar só significava atrair o escân<strong>da</strong>lo sobre ele, não o tinha duvi<strong>da</strong>do. Mas agora<br />

teria que explicar que sua Excelência, a duquesa de Clermont, citava de cor uma frase de um obscuro<br />

volume de estratégias de xadrez.<br />

Tinha prometido a Minnie que protegeria seus segredos. Tinha prometido a seu irmão que o veria em<br />

liber<strong>da</strong>de e livre de acusações. Não podia fazer as duas coisas.<br />

Algum diabo interior lhe fez imaginar como reagiria Minnie ao lhe ouvir confessar a ver<strong>da</strong>de. Aquilo<br />

era quão pior podia imaginar-se fazendo a ela: levá-la a um tribunal para que visse como alguém que lhe<br />

importava a traía sem vacilar. Não podia lhe fazer isso; simplesmente, não podia.<br />

Mas Oliver… Oliver era seu irmão. O homem que o tinha aceito sem duvi<strong>da</strong>r, apesar de que o pai de<br />

Robert tivesse causado muitos <strong>da</strong>nos a sua família. Era seu irmão. Seu irmão, a única família que tinha<br />

tido em anos.


Sua mente reproduziu uma e outra vez a imagem <strong>da</strong> Minnie na sala do tribunal empalidecendo<br />

enquanto ele a traía. Quanto pior ficasse ela, mais acreditaria o público que dizia a ver<strong>da</strong>de. Robert se<br />

sentia doente apenas em pensá-lo. Isso destruiria seu matrimônio. Ela o deixaria e ele teria que aceitar<br />

sem protestar.<br />

Porque Minnie teria razão. Ele teria ganho.<br />

Caminhou muito tempo pelas ruas até que lhe doeram os pés e lhe congelaram as mãos, até que a<br />

desordem em sua cabeça já não lhe deixou pensar. Caminhou e tomou uma decisão.


CAPÍTULO 24<br />

QUANDO RETORNOU POR FIM A SUA CASA, estava seguro de que Minnie veria o que tinha<br />

intenção de fazer, tal era a facili<strong>da</strong>de como ela sempre tinha lido seus pensamentos. Mas ela o esperava<br />

com chá preparado e um jantar tardio, e o que quer que visse em sua expressão provavelmente o atribuiu<br />

a sua tristeza pela situação de seu irmão.<br />

– Não acredito que haja uma condenação – disse ele, com a xícara de chá na mão.<br />

– Isso é uma boa notícia.<br />

Robert moveu uma mão no ar.<br />

– Não é a pior notícia. Não há provas suficientes para condená-lo, mas… pode ser que tampouco haja<br />

muito para defendê-lo. Ao menos sem que eu explique minha participação.<br />

– E o vais fazer?<br />

Robert a olhou nos olhos.<br />

– Isto já não tem a ver somente comigo.<br />

– E com quem mais tem a ver?<br />

– Com meu pai, para começar – ele fechou os olhos, incapaz de olhá-la quando dizia a primeira<br />

mentira. – Se explicar tudo, tenho que revelar publicamente meu parentesco com Oliver. A ver<strong>da</strong>de<br />

humilharia a minha mãe, pois ele foi concebido poucos meses depois do casamento de meus pais, e<br />

humilharia também aos pais de Oliver. Quanto a ele… bom, não seria ruim que se soubesse que é filho de<br />

um duque.<br />

– Entendo – disse ela com calma.<br />

– É pior do que crê. Verá, já não se trata somente do julgamento em si, mas sim <strong>da</strong> narração pública<br />

do julgamento. Se me limitasse a asseverar que é meu irmão, sempre haveria gente que pensaria que só o<br />

havia dito para salvá-lo porque somos amigos. Não ficaria exonerado. Mas imagina, é uma suposição,<br />

que anunciasse a ver<strong>da</strong>de de seu nascimento com minha mãe na sala. Como crê que ela reagiria?<br />

– Bom, a duquesa viúva é tão forte como uma pederneira. Mas também igualmente quebradiça.<br />

– Provavelmente ficaria branca. Talvez se levantasse e saísse <strong>da</strong>li. E essa reação, mais que nenhuma<br />

outra coisas, <strong>da</strong>ria um selo de ver<strong>da</strong>de a minha afirmação. Poderia empurrá-la a reagir assim – olhou a<br />

Minnie. – Seria uma humilhação para ela, mas isso poderia salvar a meu irmão.<br />

– Possivelmente se ela soubesse o que vais fazer…<br />

– Se souber o que vai se passar, pode esforçar-se por não mostrar reação. Se soubesse o que ia<br />

ocorrer, provavelmente nem sequer assistiria – Robert olhou a sua esposa nos olhos. – Estou seguro de<br />

que posso apresentar um caso convincente para Oliver. Mas para fazê-lo, possivelmente tenha que<br />

sacrificar para sempre qualquer paz que pudesse ter com minha mãe. Me diga, Minnie. Vale a pena?<br />

Ela guardou silêncio por um longo momento, olhando-o nos olhos. Ele enterrou a ver<strong>da</strong>de tão fundo<br />

de modo que ela não pudesse ouvir o que ele não havia dito.


– E você faria isso? – perguntou ela ao fim. – Renunciar a to<strong>da</strong> esperança com sua mãe pelo bem de<br />

seu irmão?<br />

– Meu pai… – a voz de Robert saiu rouca. Fechou os olhos. Era sua única oportuni<strong>da</strong>de de explicar a<br />

ela, embora Minnie não soubesse o que estava ouvindo.<br />

– Não – disse ela. – Não é necessário que respon<strong>da</strong>. Na balança estamos sopesando a humilhação de<br />

sua mãe contra o futuro de seu irmão. Seu irmão deve vir primeiro.<br />

Abraçou-o. A Robert queimava seu contato. Não o merecia. Não merecia a ela. Afastou-a, ficou de pé<br />

e se colocou uns passos mais à frente.<br />

– É mais que isso – explicou com suavi<strong>da</strong>de. – Não é somente que meu pai forçasse a sua mãe. Não é<br />

apenas que tentasse ignorá-la, que se negasse a reconhecer ao menino e que apenas lhe proporcionasse<br />

um apoio mínimo. Não é somente que meus atos o tenham levado a uma cela fedorenta – apertou os<br />

punhos. – Tentei escolher tudo o que meu pai não era. É por isso que não posso deixar meu irmão só<br />

nisto. Não posso me arriscar que o condenem e não ficarei sem fazer na<strong>da</strong> enquanto fique um pouco de<br />

fôlego para salvá-lo.<br />

Não, Robert – respondeu ela. – Claro que não o fará pôs uma mão na bochecha. – Tem muito que fazer<br />

para perder agora sua energia com remorsos. Faça o que deva fazer.<br />

Era difícil escapar de seus remorsos quando a olhava. E a aprovação tácita dela não fazia com que se<br />

sentisse melhor. Em certo sentido, o nó que sentia no estômago era ain<strong>da</strong> pior.<br />

Minnie lhe sorriu.<br />

– O que eu posso fazer para aju<strong>da</strong>r?<br />

Robert a olhou e quase lhe partiu o coração.<br />

– Pode te assegurar de que minha mãe esteja na sala no dia do julgamento – disse devagar. – Sente-se<br />

com ela e te certifique de que esteja ali enquanto eu fale.<br />

Porque se Minnie levava a sua mãe, também iria ela.<br />

Já não havia tempo para arrependimentos.<br />

Embora sentisse como estes lhe cravavam a pele como lascas silenciosas quando lhe sorriu.<br />

– Pode confiar em mim – lhe prometeu Minnie.<br />

Tinha-o conseguido. Tinha enganado a sua esposa.<br />

Robert VOLTOU Para A CELA DE SEU IRMÃO às dez horas <strong>da</strong> manhã seguinte. O dinheiro que tinha<br />

<strong>da</strong>do na noite interior ao carcereiro tinha começado a <strong>da</strong>r fruto. A metade superior <strong>da</strong> porta <strong>da</strong> cela<br />

estava aberta, embora atrás houvesse pesa<strong>da</strong>s barras de ferro. A cela tinha sido limpa e a Oliver tinham<br />

<strong>da</strong>do água para lavar-se.<br />

A cela seguia cheirando mal, mas ao menos já não <strong>da</strong>va vontade de vomitar.<br />

– Esta manhã falei com os advogados – anunciou Oliver corajoso. – Meus pais foram tomar o café <strong>da</strong><br />

manhã, mas voltarão logo.<br />

– Então não ficarei muito – disse Robert.<br />

Seu irmão o olhou confuso, mas ele não deu importância. Contou-lhe o que tinha descoberto a noite<br />

anterior sobre o testemunho de lorde Green em relação a entrevista sobre o livro de estratégias de


xadrez.<br />

Oliver se apoiou na parede <strong>da</strong> cela.<br />

– Agora que o penso – disse, – esse é um bom argumento. Não reconheci a citação. Onde você tinha<br />

ouvido essa frase? Não joga xadrez.<br />

Robert respirou fundo.<br />

Sabe quem é Minerva Lane? Ou melhor dizendo, Maximilian Lane.<br />

Oliver o olhou surpreso e adiantou o torso.<br />

– Maximilian Lane? Pois claro que sei quem é. Essa mulher é célebre nos anais do xadrez.<br />

Tristemente célebre, suponho. Estudei suas parti<strong>da</strong>s, sabe? Registraram-nas durante… – se interrompeu e<br />

olhou para Robert nos olhos. – É uma brincadeira – murmurou. – Não me diga que sua Minnie é Minerva<br />

Lane.<br />

– Ah – Robert encolheu os ombros. – Pois sim o é.<br />

– E essa frase a ouviu dela.<br />

Robert assentiu.<br />

– Stevens sabe seu ver<strong>da</strong>deiro nome, mas não descobriu sobre seu passado.<br />

– Compreendo – Oliver deu dois passos. Chegou à outra parede <strong>da</strong> cela e retornou. – É obvio, ela<br />

está ocultando sua identi<strong>da</strong>de. Ficaria desonra<strong>da</strong> se, se soubesse.<br />

Não disse na<strong>da</strong>. Não perguntou a Robert se revelaria o passado de sua esposa. Não lhe suplicou que<br />

o fizesse. Oliver jamais pediria algo assim. Mas apertou as barras <strong>da</strong> cela com as mãos até que seus<br />

nódulos ficaram brancos. – Que desastre!<br />

– Nem tanto – Robert se aproximou mais. – Entre você e eu… eu tenho tudo. O título, a fortuna…<br />

Tento compensar essa diferença o melhor possível. O pouco que posso fazer é procurar que tenha de<br />

volta a liber<strong>da</strong>de.<br />

Oliver inclinou a cabeça de lado e o olhou. Enrugou o nariz. Parecia confuso.<br />

– Isso é o que crê? Pensa que você é o que levou a melhor parte dos dois e que eu fiquei sem na<strong>da</strong>?<br />

Na opinião de Robert, aquilo era um fato. Tinha <strong>da</strong>do a seu irmão tanto como este podia aceitar, mas<br />

Oliver seguia lutando por assegurar sua posição na socie<strong>da</strong>de.<br />

– Deixemos o tema – disse.<br />

– Não, não penso deixar o tema. De ver<strong>da</strong>de crê que você nasceu com mais opções que eu?<br />

– Eu sei que sim.<br />

Oliver se afastou; tinha os ombros rígidos.<br />

– Pensa-o bem – disse. – Pensa-o bem. Eu não trocaria o que tenho, cela e piolhos incluídos, por to<strong>da</strong><br />

sua fortuna.<br />

E o que você tem que seja tão valioso?<br />

– Tenho uma família que me quer.<br />

Essas palavras golpearam Robert com força. Acabava de começar a ser feliz e já tinha que renunciar<br />

a isso. Teve a sensação de que não podia respirar. Foi como se acabasse de receber um murro no<br />

estômago, um murro tão forte que lhe tinha bloqueado os pulmões.


Olhou para seu irmão, que estava diante ele de perfil. A pouca luz que havia se refletia em seus<br />

óculos e iluminava seu cabelo brilhante.<br />

Atrás <strong>da</strong>quelas frias barras de ferro não viu somente Oliver, mas também a todos os que o queriam.<br />

Ao brusco e ameaçador senhor Marshall, à majestosa senhora Marshall, as três irmãs, uma tia, dois<br />

sobrinhos… e refletido na luz de suas lentes, um irmão.<br />

Um irmão que tinha encontrado aos doze anos. E ele, Oliver, tinha o aceito com uma alegria corajosa<br />

que tinha surpreendido Robert. Seu irmão lhe tinha ensinado tudo o que sabia de família.<br />

– Sim – disse Robert com voz rouca. – Pois acontece que eu também tenho uma família que me quer.<br />

E não penso abandoná-la.<br />

Ergueu a mão até as barras de ferro.<br />

– Tenho piolhos – lhe recordou Oliver.<br />

– Te cale e pegue minha mão.<br />

Estreitaram-se as mãos com dificul<strong>da</strong>de, com uma barra de ferro entre as Palmas, mas Robert não<br />

teria trocado aquilo por na<strong>da</strong> no mundo.<br />

– Me deixe fazer isto por ti – disse. – Porque quando nos conhecemos em Eton, poderia ter me atirado<br />

ao chão e me chutado as costelas, mas em vez disso, escolheu ser meu irmão.<br />

– E também sua última fonte de contágio – retrucou Oliver.<br />

Robert se pôs-se a rir.<br />

– Tenho dois galões de azeite de carvão preparados para ti. Posso jogar um pouco nos dedos, se for<br />

necessário.<br />

Alguém pigarreou a suas costas. Robert se voltou. O pouco regozijo que tinha encontrado com seu<br />

irmão desapareceu no ato.<br />

Não sabia quanto tempo levava ali a mulher. Tinha-a visto uma vez antes, mais de uma déca<strong>da</strong> atrás,<br />

mas essa única vez tinha bastado para que ficasse impressa de um modo indelével em sua memória.<br />

A senhora Marshall era muito mais baixa que seu filho. Seu cabelo castanho tinha mais grisalhos que<br />

a outra vez que a viu, mas também lhe <strong>da</strong>va um ar ain<strong>da</strong> mais majestoso. Olharam-se como duas gazelas<br />

que se farejassem através de um prado, observando e observando com a esperança de que não as<br />

caçassem.<br />

– Sinto-o – disse Robert. – Já estava de saí<strong>da</strong>.<br />

Passou diante dela, deixando todo o espaço que pôde entre os dois.<br />

Saiu pela porta que <strong>da</strong>va ao pátio. Ali não entrava o sol <strong>da</strong> tarde e fazia frio. Robert colocou as luvas<br />

e baixou o chapéu sobre as orelhas.<br />

Dispunha-se a partir quando ouviu passos e saiu a senhora Marshall. Seus olhares se encontraram de<br />

novo através do pátio; Robert baixou o seu...<br />

A mulher cruzou o chão de pedra até ele.<br />

– Senhora Marshall – ele quase não podia respirar. – Sinto muito.<br />

– Excelência – ela o olhou um instante e em segui<strong>da</strong> afastou a vista.<br />

– Na<strong>da</strong> de títulos – ele se sentou em um banco. Estava molhado pela chuva <strong>da</strong> noite anterior e sentiu<br />

que a umi<strong>da</strong>de lhe molhava a calça, mas não queria estar muito mais alto que ela. Já era bastante mal que


a tivesse encontrado e houvesse lhe trazido para a mente más lembranças. – Você precisamente não<br />

deveria me chamar Excelência.<br />

Ela o olhou. Robert observou o chão de pedra entre seus pés.<br />

– Depois do que os duques de Clermont fizeram a você e aos seus – disse com voz fraca, – não<br />

merecemos seu respeito. Apenas posso dizer que o sinto. Sinto muito que Oliver…<br />

– Você não tem culpa.<br />

– Sim tenho. Meu irmão está esperando ser julgado por um ato que eu cometi, pela única razão de que<br />

não podem me processar. Se isso não for minha culpa, não sei o que é – olhou a parede do pátio. – Mas<br />

lhe prometo que não permitirei que lhe aconteça na<strong>da</strong>.<br />

Ela permaneceu diante dele uns minutos mais. Robert manteve a cabeça baixa, consciente de ca<strong>da</strong><br />

respiração dela.<br />

E então, muito lentamente, ela se sentou com cui<strong>da</strong>do no banco a seu lado. A seis polega<strong>da</strong>s de<br />

distância, mas a seu lado. – Você foi um bom amigo para meu filho.<br />

– Fui seu irmão – ele seguia sem olhá-la.<br />

– Quando vinha para casa de férias, falava muito de você. De Sebastian Malheur e de você, mas<br />

sobretudo de você. Não é preciso dizer que a mim e ao senhor Marshall nos alarmava isso. Mas ele não<br />

falava de um menino que parecia uma versão mais jovem de seu pai. Você parecia considerado e<br />

tranquilo, duas coisas que o Duque de Clermont nunca pôde ser. Sempre pensei que eu gostaria de ter<br />

estado mais prepara<strong>da</strong> quando nos vimos faz anos. Pelas palavras de Oliver, eu tinha imaginado a um<br />

menino muito diferente. E quando entrei na sala e o vi me olhando… com os olhos, o nariz e a boca<br />

dele… não sei o que me ocorreu. Não voltei a ser eu mesma até que estive a meia milha <strong>da</strong>li.<br />

– Não tem que explicar na<strong>da</strong>. Sei o que fez meu pai. Se eu fosse você, tampouco poderia suportar.<br />

– Oliver me disse depois que acreditava que eu tinha ferido seus sentimentos.<br />

Robert negou com a cabeça.<br />

– Meus sentimentos não contam nisso. A atacaram. Não é sua responsabili<strong>da</strong>de estender o ramo de<br />

oliveira, a não ser a mim me afastar de seu caminho. Lhe <strong>da</strong>r o pouco conforto que lhe possa oferecer.<br />

– Talvez – repôs ela. – Mas eu não posso evitar pensar que sim é também minha responsabili<strong>da</strong>de.<br />

O céu estava azul, sem uma só nuvem. Parecia impossível naquela época do ano e, entretanto, assim<br />

era. Robert jogou a cabeça para e fechou os olhos.<br />

– Contamos a ver<strong>da</strong>de a Oliver sobre seu nascimento quando era muito jovem. Ou, melhor dizendo,<br />

Hugo a contou. Não tudo, enten<strong>da</strong>-o, a não ser a versão infantil. Havia um homem mal. Atacou-me.<br />

Algumas pessoas poderiam lhe dizer que seu pai era outro homem, mas nós o queríamos e a ver<strong>da</strong>de era<br />

essa. Eu não queria dizer na<strong>da</strong>, mas Hugo me convenceu – a mulher suspirou.<br />

Robert tentou imaginar como seria ter uns pais que parassem para pensar no que dizer a seus filhos,<br />

uns pais a quem importasse esses detalhes. Que assegurassem a seu filho que o queriam.<br />

“Eu quero ser essa classe de pai”. Apertou os punhos.<br />

– Hugo disse com muita naturali<strong>da</strong>de e Oliver aceitou bem. Até que se inteirou <strong>da</strong> existência de você.<br />

Então teve pesadelos.<br />

– Comigo?


– Sim. Uma noite despertou chorando e não podia parar. Quando lhe perguntei o que lhe ocorria,<br />

disse-me que o homem mal tinha a seu irmão e tínhamos que ir por ele.<br />

Robert sentiu um nó na garganta.<br />

– Ah – murmurou.<br />

– Pareceu-me algo muito terno, e essa fase passou. Mas… – ela o olhou. – Faz quase trinta anos desde<br />

que vi seu pai. O que me fez durou dez minutos e ain<strong>da</strong> o recordo.<br />

Fez uma pausa. Estendeu a mão e tocou Robert no joelho.<br />

Ele a olhou nos olhos. Dessa vez ela não se encolheu nem se afastou.<br />

– Você – continuou ela– cresceu com ele. Isso deve ter sido horrível.<br />

Por um segundo, Robert viu seu pai inclinando-se sobre ele. Naquela época, seu pai era muito mais<br />

alto, muito maior.<br />

“Que classe de filho é você?”, perguntava o duque. Elevava as mãos no ar com exasperação. “Com<br />

qualquer outro menino, tudo iria muito melhor. Nem sua mãe te quer o bastante para ficar”.<br />

– Oh! – disse Robert. – Não foi tão mau. A maior parte do tempo, meu pai nem sequer recor<strong>da</strong>va<br />

minha presença.<br />

Possivelmente a senhora Marshall captou uma leve vacilação em sua voz, porque se aproximou mais<br />

e o rodeou com seu braço.<br />

– Pobrezinho! – disse.<br />

A VISITA DESSA TARDE de Robert não prometia ser tão esclarecedora como a <strong>da</strong> manhã.<br />

– Não sei o que pensar de você, Excelência.<br />

Robert estava de pé no vestíbulo <strong>da</strong> casa do senhor Charingford, uma casa que parecia bastante<br />

confortável, decora<strong>da</strong> com papeis de parede em tons creme e azul e com um vestíbulo luminoso e alegre.<br />

Mas o senhor Charingford, situado frente a ele, não se mostrava nem alegre nem corajoso. Tinha o cabelo<br />

cinza e espaçado e cruzou de braços.<br />

– Concordei com isto porque você mostrou muito sentido comum em uma ocasião concreta.<br />

– Em uma ocasião? – Robert arqueou uma sobrancelha. – Quando foi isso?<br />

– Quando se casou com a senhorita… Suponho que já não posso chamá-la assim, ver<strong>da</strong>de? –<br />

Charingford ergueu a cabeça e quase sorriu. – Quando se casou com sua esposa. Tentei convencer a meu<br />

filho de que se fixasse nela, mas não foi capaz de ver além dessa cicatriz. Sua amizade com minha filha…<br />

passamos quatro meses juntos na Cornwall em uma viagem, e acredito que a conheço melhor do que<br />

ninguém <strong>da</strong>qui exceto a suas tias. Foi uma boa escolha.<br />

Robert estava de acordo. Tinha sido uma boa escolha. E lhe doía pensar o que ocorreria ao dia<br />

seguinte.<br />

– Confio em que lhe tenha contagiado um pouco de seu sentido comum. Não sei no que estava<br />

pensando para escrever esses santinhos. Para vir aqui e tentar convencer às pessoas como eu de que<br />

apoiemos a reforma do voto – Charingford o olhou com o cenho franzido.<br />

– Se sabe que eu escrevi esses santinhos, por que acusou ao senhor Marshall? – perguntou Robert.


Charingford baixou a vista.<br />

– Havia provas suficientes para pensar que estava envolvido. E… – E Stevens o pediu – terminou<br />

Robert.<br />

Charingford mordeu o lábio inferior.<br />

– Está informado disso?<br />

– Não me fale de sentido comum – disse Robert. – Lhe pedi que me mostrasse sua fábrica e você<br />

concordou em me mostrar isso. Vamos vê-la.<br />

Charingford fez um gesto e um lacaio abriu a porta <strong>da</strong> rua. Quando o fez, o som apagado que procedia<br />

<strong>da</strong> fábrica situa<strong>da</strong> na calça<strong>da</strong> em frente se converteu em um rugido.<br />

– Adiante, Excelência – disse Charingford sombrio.<br />

Cruzaram a rua pavimenta<strong>da</strong> acompanhados pelo ruído <strong>da</strong>s máquinas, que resultava quase<br />

entristecedor. As portas <strong>da</strong> fábrica tinham sido pinta<strong>da</strong>s fazia pouco tempo de um verde brilhante e se<br />

destacavam contra o tijolo manchado de carvão <strong>da</strong>s paredes. Envolveu-os o ruído, uma cacofonia de<br />

chiados e sacudi<strong>da</strong>s. O senhor Charingford o guiou por uma pequena esca<strong>da</strong> até chegar a uma plataforma<br />

metálica de onde se via to<strong>da</strong> a planta. Aí se voltou para ele.<br />

– Esta é a sala principal – gritou, esforçando-se por ser ouvido por cima do ruído <strong>da</strong>s máquinas. –<br />

Aqui é onde se tecem as meias.<br />

Assinalou a fábrica de baixo. Uma mulher, com o cabelo grisalho recolhido em um coque descui<strong>da</strong>do,<br />

dirigia uma máquina que enrolava novelos em umas bobinas de metal em um lateral <strong>da</strong> sala. Um punhado<br />

de homens ia de uma forma circular a outra, movendo peças quando era necessário, substituindo bobinas<br />

e entregando o produto a moços, que corriam com ele até uma sala adjacente. Utilizavam uma economia<br />

de movimentos que parecia se dever mais ao cansaço que à experiência.<br />

Ca<strong>da</strong> máquina produz dois pares de meias em nove minutos – gritou Charingford. – E só se necessitam<br />

homens para tirar os ganchos dos pontos ao final e para reajustar o cilindro que guia a forma <strong>da</strong> meia.<br />

Olhe-os, Excelência. Não têm que tomar decisões em seu trabalho diário. Como vamos confiar em que<br />

deci<strong>da</strong>m o futuro de nosso país? O que entendem um funcionamento <strong>da</strong> indústria?<br />

Robert inclinou a cabeça à direita e escutou por cima <strong>da</strong> animação <strong>da</strong>s máquinas.<br />

– Estão cantando – disse. – Por que cantam?<br />

O senhor Charingford levou uma mão à orelha e escutou.<br />

– Estão contentes de trabalhar, Excelência. Estão cantando um hino de louvor a Deus.<br />

Robert olhava o chão <strong>da</strong> fábrica de cima. Ele somente tinha que olhar enquanto os homens abaixo<br />

trabalhavam, machucavam-se e se cortavam. Recordou as palavras de Minnie: “Você é afortunado por<br />

não olhar o futuro sem terror”. Robert jamais entenderia o que significava estar ali embaixo, trabalhar dia<br />

após dia com aquele ruído incessante. Apenas sabia que não era algo tão simples como gratidão e hinos.<br />

No transcurso de seu curto matrimônio, nunca tinha estado tão longe de Minnie como naquele<br />

momento. Tinha-lhe mentido e ao dia seguinte ia quebrar sua promessa e ia traí-la. E, entretanto, podia<br />

ouvi-la naquele momento por cima do estrondo <strong>da</strong>s máquinas.<br />

– Não pretendo entender o que significa ser um operário, senhor Charingford, mas sou dono de<br />

fábricas. Herdei algumas de meu avô. E quando vejo esta planta, não vejo homens que estejam contentes<br />

com seu trabalho.


Uma mulher do piso de baixo ergueu a vista e os olhou. Em seus olhos não havia ódio nem desprezo.<br />

Apenas uma expressão suave nos cantos dos olhos. Um desejo.<br />

Possivelmente tinha sido em outro tempo uma senhorita gentil que não tinha podido casar-se. Talvez<br />

não tivesse outra opção que trabalhar até que seu cabelo embranquecesse antes do tempo e sua pele se<br />

convertesse em couro. Mas ergueu a vista e seus lábios, como todos os outros, moviam-se cantando.<br />

– E bem? – perguntou o senhor Charingford. – O que é que você vê?<br />

– Vejo a Minnie – a Robert lhe quebrou a voz. – Vejo o que poderia ter sido dentro de dez anos,<br />

quando suas tias tivessem morrido.<br />

O senhor Charingford respirou com força.<br />

Vejo sua filha, se desaparecesse o mercado <strong>da</strong>s meias.<br />

– Lydia não – respondeu o senhor Charingford, escan<strong>da</strong>lizado. – Ela não… – mas deixou a frase pela<br />

metade.<br />

– Vejo o que poderia ter sido meu irmão se outro homem não se tivesse oferecido para criá-lo. Vejo a<br />

cozinheira de minha infância, se eu não lhe tivesse <strong>da</strong>do uma pensão. A única pessoa a quem não vejo é a<br />

mim mesmo – pousou as mãos no corrimão. – Eu nunca estive aí e nunca estarei. Quão único entendo<br />

agora é que não posso compreender o que é estar trabalhando em uma fábrica e elevar a vista e cantar.<br />

O senhor Charingford inclinou a cabeça para ele. Agora o escutava com atenção.<br />

– Tenho um montão de defeitos. Vou correndo onde deveria ir caminhando com cui<strong>da</strong>do. Falo quando<br />

deveria escutar. Mas quando os ouço cantar, não ouço só um hino. Cantam a Deus porque não<br />

encontraram a ninguém mais que os escute.<br />

– Stevens diz que, se os escutarmos uma vez, só conseguiremos inspirá-los a mostrar-se ca<strong>da</strong> vez<br />

mais irracionais – disse Charingford com cautela.<br />

– Viu se Stevens se torna mais razoável quanto mais você cede às suas exigências?<br />

Charingford afastou a vista.<br />

– Quanto lhe pediu, senhor Charingford? Você é magistrado. Disse que não lhe aju<strong>da</strong>rá se não fazer o<br />

que lhe diz? Pediu-lhe dinheiro? Ou se limitou a lhe pedir que lhe desse a mão de sua formosa filha em<br />

compensação por seus esforços?<br />

Charingford apertou com força o corrimão de metal que tinha diante. Fechou os olhos.<br />

– Isso – respondeu. – Tudo isso.<br />

– Eu tenho descoberto – disse Robert– que, com folga, pagar meus operários o suficiente para que não<br />

vejam o futuro com terror custa muito menos que empregar a homens que os aterrorizem.<br />

– Você fala como Minnie – murmurou Charingford, ranzinza.<br />

Robert sorriu e moveu a cabeça. Era o melhor elogio que já lhe tinham feito.<br />

Um moço passou correndo para levar uma bombinha a um homem que se virou para uma <strong>da</strong>s<br />

máquinas.<br />

Se não olharmos com atenção – disse Robert, – os homens e mulheres <strong>da</strong> fábrica se convertem em uma<br />

massa indistinguível de tons cinzas e marrons. Então não terá que vê-los salvo como os braços <strong>da</strong>s<br />

máquinas, embora de carne e sangue em vez de ferro e aço. Que cobram salários em lugar de ter que


comprá-los com antecipação. Mas as máquinas não cantam. As máquinas não têm esperança. E não<br />

acredito que possamos pará-los nem com mil capitães Stevens. Eu não penso tentá-lo.<br />

– Você é um radical.<br />

Não havia paixão na acusação. Charingford olhava a fábrica. Mas agora seu olhar se detinha aqui e<br />

lá, em mulheres que envolviam as meias em papel, em homens que operavam as máquinas.<br />

– Sei – disse Robert.<br />

– Se tivesse falado comigo quando chegou, em lugar de escrever santinhos…<br />

– Estou amadurecendo. E minha esposa, ao que parece, tem algum efeito em mim – Robert encolheu<br />

os ombros. – Nunca se sabe. Possivelmente aos trinta anos comece a ter algum efeito no que me rodeia.


CAPÍTULO 25<br />

ERA TARDE QUANDO O MARIDO DE Minnie voltou para casa.<br />

Tão tarde, que todos os serventes menos um lacaio se haviam retirado já. Minnie ouviu abrir a porta e<br />

tornar a fechar-se atrás de Robert. Imaginou-o tirando a capa, o chapéu e as luvas e entregando-as ao<br />

lacaio. Esperava ouvir seus passos na esca<strong>da</strong>, mas passaram os minutos e os passos não chegavam.<br />

Levantou-se devagar e saiu nas pontas dos pés do quarto. A parte inferior <strong>da</strong> casa estava às escuras.<br />

Se pudesse descer a grande esca<strong>da</strong> que levava à entra<strong>da</strong> sem tropeçar. Foi graças a um raio de luz que<br />

procedia de uma sala na parte de trás. Seguiu esse caminho de luz doura<strong>da</strong> corredor abaixo.<br />

A porta do final estava entreaberta. Robert se achava sentado à mesa e tinha diante de si um prato<br />

com restos frios do jantar. Não comia; segurava o garfo com uma mão e olhava inexpressivo à frente.<br />

Tinha a cabeça um pouco inclina<strong>da</strong>, como se suplicasse algo à vitela que tinha diante de si. Enquanto ela<br />

olhava, ele levou uma mão ao canto do olho e a passou por ali como se, se secasse uma lágrima.<br />

Não chorava. Não tirou nenhum lenço. Mas deixou a mão ali, ao lado do olho, para espantar qualquer<br />

outra emoção.<br />

Minnie conteve o fôlego.<br />

Retrocedeu pelo corredor, amaldiçoando as suaves sapatilhas de se<strong>da</strong>. Ele não a tinha ouvido<br />

aproximar-se. Abriu fazendo ruído a porta do salão e tomou o pacote que tinha chegado esse dia. Voltou a<br />

fechar a porta, fazendo mais ruído ain<strong>da</strong>.<br />

Era impossível fazer ruído com sapatilhas sobre o tapete, mas fez o possível. Quando chegou à porta,<br />

ele tinha baixado a mão. A expressão vazia de Robert tinha desaparecido e até conseguiu lhe dedicar um<br />

sorriso.<br />

– Minnie – disse. – Pensava que já estaria dormindo.<br />

Embora o tivesse tentado, ela não teria podido dormir pensando nele e preocupando-se com seu<br />

irmão. O julgamento aconteceria no dia seguinte. Podia ver o efeito que o estresse tinha produzido nele.<br />

Tinha círculos escuros sob os olhos e rugas de preocupação sulcavam sua testa.<br />

– Custava-me muito dormir sem ti – Disse. Deixou o pacote na mesa, perto dele.<br />

Robert cravou uma parte de vitela com o garfo.<br />

– Não tive tempo de jantar – disse, quase com ar de desculpa, antes de meter-lhe na boca. – E agora<br />

estou morto de fome.<br />

Ela se sentou a seu lado.<br />

– Eu também estou um pouco faminta.<br />

Provavelmente mentiam os dois. Certamente os dois sabiam.<br />

Mesmo assim, Minnie pegou um pãozinho para lhe fazer companhia e, enquanto ele comia, ela o<br />

esmigalhava em seu prato. Ao menos sua presença servia para que ele fizesse justiça à comi<strong>da</strong> que tinha<br />

diante dele. Comia mecanicamente as ervilhas, as cenouras e os nabos acompanhados <strong>da</strong> vitela e,


envolvendo tudo isso, um molho que se congelou. A Minnie lhe revolvia o estômago só de pensá-lo, mas<br />

ele não parecia saborear na<strong>da</strong> do que levava a boca, pois mostrou-se surpreso quando seu garfo não<br />

encontrou na<strong>da</strong> no prato.<br />

– Foi um dia longo – disse. – Acredito que irei diretamente à cama – mas não se levantou.<br />

Minnie tomou aquilo como um convite para aproximar-se do aparador e servir um cálice de xerez. O<br />

levou e lhe roçou os dedos ao entregar.<br />

– Sairá tudo bem? – perguntou.<br />

Robert, em resposta, enterrou a cabeça nas mãos. Minnie pôs seus dedos sobre os dele. A pele de seu<br />

marido resultava fria ao tato; quase podia sentir palpitar suas têmporas. Esfregou a testa devagar. Ele<br />

emitiu um gemido e apoiou a fronte nos dedos.<br />

– Eu não sei – ponderou –. Eu não... – Ele virou a cabeça de lado para olhá-la nos olhos e então<br />

rapi<strong>da</strong>mente desviou o olhar. – Não tenho certeza. Tamborilou na mesa com os dedos.<br />

– Mas farei todo o possível para que assim seja. Meu irmão… – respirou fundo. – A meu pai não<br />

importava na<strong>da</strong>. Não ajudou na<strong>da</strong>. Oliver cresceu sem nenhum dos privilégios que eu tive, e deixar que<br />

agora o culpem de um modo tão público de algo que eu fiz… Minnie, não posso permiti-lo. Sinto-me à<br />

beira <strong>da</strong> loucura só de pensá-lo. Tem que sabê-lo.<br />

– Sei – lhe esfregou a fronte. – Mas você faz tudo o que pode.<br />

– Sim – a voz dele soava oca. – Mesmo assim, não vejo nenhum modo de que isto possa sair bem.<br />

– Talvez não, mas aconteça o que acontecer, confrontaremos juntos.<br />

Robert respirou fundo.<br />

– Minnie… amanhã haverá uma multidão na sala. Alguém avisou aos jornais de Londres de que eu<br />

vou testemunhar e agora já não há dois jornalistas, mas vinte.<br />

– Pergunta se posso suportar à multidão? Posso fazê-lo. Eu não gosto de estar com muita gente, mas<br />

enquanto não me olhem, posso fazê-lo.<br />

Sua resposta pareceu intensificar o vazio nos olhos dele, que <strong>da</strong>va a sensação de que podia derrubarse<br />

sobre a mesa.<br />

– Minnie. Não sei o que dizer.<br />

Ele negou com a cabeça.<br />

– Tenho que estar ali. Não há outro modo, assim estarei – já pensaria nos detalhes mais tarde.<br />

Ele moveu a cabeça.<br />

– Ao menos saiu uma coisa boa de tudo isto. Vim a Leicester para tentar que deixassem de utilizar as<br />

acusações de rebelião criminal como uma ferramenta para acabar com as greves e agora sei quem está<br />

por trás disso – sorriu. – Tive uma conversa <strong>da</strong> mais interessante com… com um magistrado para o qual<br />

Stevens pediu para aju<strong>da</strong>r a manter a paz. Se fará justiça.<br />

– Bem – retrucou Minnie. – Excelente. Eu tenho algo mais para ti e espero que também seja bom.<br />

Comprei-te algo – assinalou o objeto envolto em papel marrom que tinha levado consigo.<br />

Robert olhou o pacote ovalado. Tomou uma ponta e o puxou para si.<br />

– O que é isto?<br />

– Um presente.


– Não é meu aniversário – a olhou. – E falta mais de um mês para o Natal.<br />

– Não é um presente por uma ocasião especial – Minnie sentia o coração lhe pulsando com força no<br />

peito. – É um presente de algo que vi e quis que o tivesse.<br />

Como os rubis que ele lhe tinha <strong>da</strong>do, guar<strong>da</strong>dos agora em uma caixa para uma ocasião mais feliz.<br />

– É pesado – disse ele, sopesando-o. – Um livro? Um atlas?<br />

– Não vou lhe dizer isso. Terá que abri-lo se quiser sabê-lo.<br />

Robert puxou o cordão e, quando se desfez a laça<strong>da</strong>, deixou-o cair ao chão. O papel se enrugou ao<br />

abri-lo.<br />

O livro estava encaderno em couro branco de cor creme, lavrado com um desenho sutil. Não havia<br />

título na tampa nem tampouco no lombo. Minnie conteve o fôlego quando ele o abriu e passou as<br />

primeiras páginas de cor creme.<br />

Aquele livro não tinha saído de uma prensa. Tinha sido ilustrado amorosamente à mão. Ela pensava<br />

que as ilustrações eram aquarelas, mas nesse caso, eram surpreendentemente anima<strong>da</strong>s, capas e capas de<br />

pintura coloca<strong>da</strong>s uma em cima <strong>da</strong> outra até que os vermelhos eram tão profundos como as folhas<br />

moribun<strong>da</strong>s do outono e os azuis tão autênticos como um céu do verão. A primeira ilustração, um “A”<br />

gigante, estava no topo de uma colina. A letra em si estava composta por uma miríade de desenhos<br />

menores. Uma lateral <strong>da</strong> letra formava uma amendoeira inclinando-se ao vento. No alto de seus ramos<br />

havia um albatroz com as asas estendi<strong>da</strong>s para o céu. Uma alpaca se esticava para as amêndoas e seu<br />

pescoço formava o outro lado <strong>da</strong> letra. A seus pés se enroscava uma sucuri, mas não ameaçava a nenhuma<br />

<strong>da</strong>s demais criaturas, mas sim parecia estar ocupa<strong>da</strong> comendo um <strong>da</strong>masco. To<strong>da</strong> a ilustração estava<br />

forma<strong>da</strong> por coisas que começavam pela “A”.<br />

Robert a olhou antes de passar a página à letra B, onde havia mochos, balões e bouganville.<br />

– Compraste-me uma cartilha? – parecia confuso.<br />

– Pensei… – ela tragou saliva. – Você disse que queria ter muitos filhos. Me ocorreu comprar uma<br />

cartilha que não tivesse palavras impressas. Assim poderia inventar o que quisesse para ca<strong>da</strong> letra. E não<br />

te equivocaria.<br />

Ele olhou as páginas. Tocou a ponta de uma e Minnie se perguntou se estaria pensando na M, que tinha<br />

desenhos de uma mãe que tinha a seu filho de mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s à luz <strong>da</strong> lua, com mariposas sobrevoando um<br />

arbusto de amoras.<br />

Mas ele não passou a página até essa letra. Em vez disso, olhou-a.<br />

– Você me compraste isto – disse.<br />

Minnie assentiu.<br />

– Por quê?<br />

– Porque estava pensando em ti.<br />

Robert ficou de pé. Ela não podia interpretar sua expressão.<br />

Lhe pôs as mãos nos ombros e, quando ela ergueu a vista, beijou-a. Beijou-a sem gentileza. Beijou-a<br />

com todo o sentimento que não tinha mostrado desde que entrou na casa. Com feroci<strong>da</strong>de, grosseiramente,<br />

como se houvesse retornado de uma ausência de dez anos e precisasse lhe recor<strong>da</strong>r tudo o que tinha<br />

passado. Estreitou-a em seus braços com força. Seu corpo despedia muito calor. Beijou-a uma vez e<br />

outra e outra mais, sem quase lhe permitir respirar antes de voltar a beijá-la de novo. Abraçou-a com


tanta força que ela quase não se deu conta quando a ergueu e a depositou na mesa diante dele. Então<br />

deixou sua boca e lhe beijou o queixo e o pescoço. Seus beijos produziam comichões de prazer em<br />

Minnie, e ele seguiu baixando até que desabotoou os botões do pescoço <strong>da</strong> camisola e pôde baixá-lo<br />

pelos seios dela.<br />

Tomou um mamilo em sua boca e ela se entregou a ele. Não ficava na<strong>da</strong> que não fosse o calor <strong>da</strong><br />

língua dele em sua pele e as carícias selvagens de suas mãos nos quadris. Apoiou as costas na madeira<br />

dura <strong>da</strong> mesa.<br />

– Meu Deus, Minnie! – exclamou ele. – O que vou fazer sem ti?<br />

– Por que quer saber isso? Eu não irei a nenhuma parte.<br />

Ele não pareceu ouvi-la. Soltou-a o tempo suficiente para abrir a calça e a seguir lhe agarrou os<br />

punhos e os segurou nas laterais dela.<br />

– Estou aqui – disse ela. – Não é necessário que me segure. Não irei a nenhuma parte.<br />

Robert não a soltou. Em vez disso, lançou um grunhido e a penetrou. O corpo dela estava molhado<br />

para recebê-lo. Ele nem sequer tinha se incomo<strong>da</strong>do em tirar as calças e ela sentiu o tecido nas coxas. O<br />

fato de que a desejasse tão desespera<strong>da</strong>mente que nem sequer se despiu e o modo como a tinha<br />

empurrado sobre a mesa incrementaram ain<strong>da</strong> mais o desejo dela. A penetração gloriosa do membro dele<br />

parecia mais deliciosa ain<strong>da</strong>, mais proibi<strong>da</strong>.<br />

Aquele ato sexual não tinha na<strong>da</strong> de imaculado nem de asséptico. Era algo primitivo, uma força<br />

elementar que ela não tinha conhecido antes. As investi<strong>da</strong>s dele eram duras e firmes; o cabelo lhe caia na<br />

testa e suava.<br />

– Sim – grunhiu.<br />

Minnie o espremeu com força e ele voltou a grunhir.<br />

– Desejo-te– disse com feroci<strong>da</strong>de. – Te desejo muito. Por que não posso te ter?<br />

– Sim pode. Sim pode.<br />

Mas ele não respondeu. Simplesmente investiu com mais força. Quase com frenesi. Grunhiu uma<br />

última vez e chegou ao orgasmo. Então lhe soltou os punhos, mas apenas o fez para tomar seu rosto e<br />

beijá-la.<br />

Quando passou seu orgasmo, seu beijo mudou de selvagem a terno. Afastou-se com gentileza, respirou<br />

fundo e olhou a seu redor como se quisesse verificar que acabava de fazer amor com ela em cima <strong>da</strong><br />

mesa.<br />

Uma mesa bem construí<strong>da</strong> que não se moveu na<strong>da</strong> apesar do modo como ele a havia possuído.<br />

Separou-se dela e escorregou até o chão. Ela se sentou com cui<strong>da</strong>do.<br />

– Minnie – suspirou ele.<br />

– Se disser uma palavra que não seja para dizer que foi magnífico, morderei-te – lhe advertiu ela.<br />

Ele soltou uma gargalha<strong>da</strong>. Roçou-lhe a bochecha com um dedo.<br />

– Você é magnífica – disse.<br />

Mas seguia havendo uma sombra em sua cara, uma cortina fecha<strong>da</strong> sobre sua expressão. Separou-se<br />

dela e Minnie pôde captar seu distanciamento.


Então soube. Via-o no modo como ele afastava a vista para não olhá-la nos olhos. Soube que havia<br />

algo que não lhe dizia.<br />

Sorriu fracamente.<br />

– Não quero que engendre a todos nossos filhos em cima de uma mesa de madeira, mas esta vez…<br />

não esteve tão mal – comentou.<br />

– Apenas… só precisava saber que foi minha mais uma vez – ele se aproximou, pôs uma mão no<br />

ombro e quase em segui<strong>da</strong> a deixou cair de lado. – Não sei o que me ocorreu.<br />

Minnie tomou a mão e a entrelaçou com a sua.<br />

– Sempre tinha sonhado fazendo um homem perder a cabeça. Foi glorioso consegui-lo – levou um<br />

dedo aos lábios dele. – Sei quão difícil deve ter sido o dia de hoje para ti, quão difíceis devem ser estes<br />

dias. Quando nos casamos, disse-me que queria uma alia<strong>da</strong>, alguém que visse a ti em vez <strong>da</strong> um duque –<br />

o atraiu para si. – E aqui estou.<br />

– Aqui está – murmurou ele. Sua voz soava rouca. Deslizou as mãos pelo cabelo dela. – Aqui está.<br />

Às TRÊS DA MANHÃ, Robert começou a sonhar. Viu a si mesmo no estrado e Minnie, uma versão<br />

mais jovem e vulnerável dela, entre o público.<br />

– É uma garota antinatural – se ouviu dizer. – É <strong>da</strong> semente do diabo. Ela me obrigou a fazê-lo.<br />

Ela o olhava com olhos muito abertos e doídos. E de repente se quebrou em um montão de cristais<br />

cinzas. Robert estendeu os braços para ela, mas os cristais lhe cortaram as mãos.<br />

Despertou ofegando e procurando-a, com a imagem do sonho muito presente em sua mente. Céu santo!<br />

Ia fazer aquilo a ela. Traí-la no tribunal diante de todo mundo, igual tinha feito o pai dela.<br />

Minnie estava aconchega<strong>da</strong> de lado. Dormia com a mão apoia<strong>da</strong> no quadril dele e a cabeça em seu<br />

ombro. Até adormeci<strong>da</strong> confiava nele.<br />

Não podia fazê-lo. Não podia lhe fazer isso.<br />

Saiu <strong>da</strong> cama com cui<strong>da</strong>do. À luz de uma vela trêmula, escreveu uma carta contando-lhe tudo, o que<br />

tinha planejado e por que tinha querido fazê-lo.<br />

Tenho que dizer a ver<strong>da</strong>de sobre ti, escreveu. Não vejo o modo de evitar isso. Mas não venha hoje ao<br />

julgamento. Sinto muito que devo dizer, mas não venha ao julgamento.<br />

Amo-te.<br />

Tremeu-lhe a mão. Desejava desespera<strong>da</strong>mente escrever uma última frase.<br />

“Perdoe-me, por favor”.<br />

Mas não sabia como ia poder perdoá-lo. Nem sequer estava seguro de poder pedir-lhe. Antes de sair<br />

para reunir-se com os advogados de Oliver, despertou à donzela pessoal de Minnie e lhe deu a carta.<br />

– Aconteça o que acontecer, procure com que leia isto assim que desperte e nem um instante depois. É<br />

urgente.<br />

O resto <strong>da</strong> manhã passou em uma nuvem. Pareceu-lhe que esperava eternamente até que começasse o<br />

julgamento, mas uma vez que começou, as provas <strong>da</strong> acusação lhe pareceram uma sucessão sem sentido<br />

de testemunhos e análise. O nervosismo de Robert cresceu.


A seu redor, os jornalistas tomavam notas em taquigrafia. A defesa apresentou seu caso. Esse era o<br />

momento em que Minnie teria entrado na sala acompanha<strong>da</strong> por sua mãe. Mas, a Deus obrigado, ela não<br />

chegou.<br />

Por fim o chamaram ao estrado e lhe pareceu que todo o resto desaparecia: a sala, os jurados, os<br />

jornalistas que olhavam com interesse ávido. Não havia ninguém exceto ele e o procurador que conduzia<br />

o interrogatório.<br />

As perguntas foram singelas a princípio. Seu nome, seu título, sua i<strong>da</strong>de, a última vez que se sentou no<br />

Parlamento. E depois:<br />

– Sabe quem escreveu os santinhos pelos quais se processam ao acusado? – perguntou o procurador.<br />

– Sim – respondeu Robert. – Fui eu.<br />

Um murmúrio de surpresa se ergueu entre a multidão.<br />

– Ajudou-o alguém?<br />

– Fiz com que as distribuíssem um homem que não sabia ler, encarreguei que as imprimissem a mais<br />

de cem milhas <strong>da</strong>qui. Nenhum membro <strong>da</strong> casa que tenho aqui em Leicester sabia na<strong>da</strong> delas. Assegureime<br />

disso.<br />

– Ninguém? O senhor Marshall tampouco?<br />

– O senhor Marshall menos que ninguém – disse Robert, determinante. – Verá, escrevi-as porque tinha<br />

me <strong>da</strong>do conta de que tinha havido uma série de condenações por rebelião criminal nesta ci<strong>da</strong>de,<br />

condenando a pessoas que não pareciam ter sido acusa<strong>da</strong>s devi<strong>da</strong>mente segundo a lei. Queria que<br />

saíssem à luz os responsáveis por isso. Escrevi os santinhos porque a mim não podiam julgar, mas eu<br />

jamais teria envolvido nenhuma outra pessoa na jurisdição de Leicester. Não queria pôr a ninguém em<br />

perigo.<br />

– Por que lhe importa tanto o senhor Marshall? – perguntou o procurador. – Só era um empregado,<br />

não é assim?<br />

– Não – respondeu Robert, cortante. – Jamais lhe paguei um salário. Atribuí-lhe uns recursos. E se<br />

por acaso não bastasse que me interesse pelo bem-estar de meus empregados, ele, além disso, é meu<br />

irmão.<br />

Ouviram-se coices e murmúrios. Robert tinha estado tão concentrado nas perguntas que não tinha<br />

observado a sala. Fez-o nesse momento. Os jornalistas <strong>da</strong> primeira fila o olharam um instante aturdidos.<br />

Logo sorriram encantados, ao <strong>da</strong>r-se conta de que a história era ain<strong>da</strong> mais interessante do que tinham<br />

suposto. Começaram a escrever com fúria. Robert sorriu olhando-os, até que seus olhos se posaram na<br />

parte de trás <strong>da</strong> sala.<br />

Ali, senta<strong>da</strong> na última fila, estava Minnie. Devia ter entrado enquanto ele falava. A seu lado estava<br />

sua mãe.<br />

Não tinha recebido sua mensagem? Por que tinha ido ali?<br />

– Excelência – a voz do procurador soava lenta, muito lenta. E, entretanto, Robert não podia escapar<br />

a ela. Nem sequer podia mover-se de seu assento. – Você joga xadrez?<br />

Os olhos de Minnie se cravaram nos seus.<br />

– Não – ele não podia afastar a vista dela.<br />

– jogou alguma vez?


– Umas quantas vezes, quando era jovem. O suficiente para saber as regras do jogo. Mas não sei muito<br />

mais.<br />

– Pode explicar como chegou a escrever de um “ataque à descoberta” em seus santinhos e como o fez<br />

em uns termos que parecem copiados de um manual não muito conhecido de estratégias de xadrez?<br />

– Sim, posso.<br />

A sala inteira ficou em silêncio.<br />

– Casualmente, quando escrevi isso, tinha falado com uma pessoa perita em xadrez. Não o senhor<br />

Marshall.<br />

– E quem foi essa pessoa?<br />

Minnie saberia nesse momento o que ocorria. Entenderia por que lhe tinha pedido que fosse à sala.<br />

Saberia que lhe tinha estendido uma armadilha, que a tinha traído em público e lhe tinha feito o que lhe<br />

tinha prometido não fazer. Teria que havê-la despertado essa manhã e haver-lhe dito pessoalmente.<br />

Ela o olhava com expressão estranha. E de repente, curiosamente, levou-se dois dedos aos lábios e os<br />

ergueu em direção a ele.<br />

“Sinto muito, Minnie”.<br />

– Em 1851, uma moça de doze anos chama<strong>da</strong> Minerva Lane esteve a ponto de ganhar o primeiro<br />

torneio internacional de xadrez.<br />

Em 1851, Minerva Lane tinha sido traí<strong>da</strong> e desonra<strong>da</strong> por seu pai. E agora Robert estava repetindo<br />

aquilo.<br />

– Conhece você Minerva Lane?<br />

Robert se obrigou a olhá-la aos olhos quando cravou a faca. Ela tinha a cara cinza e os olhos muito<br />

abertos. Baixou muito lentamente os dedos que tinha beijado.<br />

As palavras foram como partes de cristal na boca de Robert, mas as pronunciou de todos os modos.<br />

– Estou casado com ela.


CAPÍTULO 26<br />

SABER O QUE IA ACONTECER não aju<strong>da</strong>va. Era tanta a ansie<strong>da</strong>de de Minnie, que nem sequer<br />

sentia os batimentos de seu coração. Quando Robert falou, seu corpo inteiro se converteu em gelo. E<br />

quando todos se voltaram para ver quem olhava, quando todos os olhos se cravaram nela, olhos<br />

acusadores, um pânico absoluto se apoderou <strong>da</strong> jovem. Os murmúrios cresceram até tornarem-se<br />

ensurdecedores.<br />

– Essa é ela – disse alguém.<br />

Minnie não recor<strong>da</strong>va como respirar. Espasmos sem ar fechavam seus pulmões. Ficou em pé, mas a<br />

multidão a rodeava gritando e uivando. Pontos escuros, que se faziam ca<strong>da</strong> vez maiores, encheram sua<br />

visão. Quão último viu foi ao Robert levantando-se no estrado <strong>da</strong>s testemunhas e saltando por cima <strong>da</strong><br />

bor<strong>da</strong>. Em segui<strong>da</strong> tudo ficou às escuras.<br />

Não soube bem quando recuperou a consciência. Voltou para a reali<strong>da</strong>de lentamente, como um sonho<br />

que cobrasse vi<strong>da</strong> gradualmente. Notou o balanço gentil de uma carruagem, os braços de seu marido em<br />

torno dela, sua respiração no pescoço dela. Suas mãos. Ouviu que lhe murmurava palavras de carinho,<br />

mas ela não podia abrir os olhos.<br />

A reali<strong>da</strong>de chegava em partes. Sentiu que a conduziam esca<strong>da</strong> acima. Percebeu a suavi<strong>da</strong>de que a<br />

rodeava. E a voz de Robert estava ali, inclusive na metade dos sonhos inquietos. Formou um murmúrio<br />

apagado em seu ouvido até que a inquietação desapareceu e ficou adormeci<strong>da</strong>.<br />

Quando despertou, era tarde. Jazia na cama. Não na cama dos dois, aquela era a sua, a cama que<br />

tinham preparado nos aposento <strong>da</strong> duquesa. Era a primeira vez que estava naquele colchão e não gostou.<br />

Tinham-lhe tirado o vestido de dia de se<strong>da</strong> azul e o espartilho, as anáguas e a tinham deixado de<br />

camisa. Não estava rodea<strong>da</strong> por uma multidão, mas havia tornado a desmaiar. Em público. Outras<br />

lembranças seguiram rapi<strong>da</strong>mente a esse. O tribunal. Robert sentado na parte dianteira. Robert olhando-a<br />

nos olhos quando contava seu segredo a todo mundo.<br />

Não estava furiosa, sentia-se estranhamente vazia. Suspirou e se sentou na cama.<br />

Recor<strong>da</strong>va ter caído. Mas o curioso era que não conseguia recor<strong>da</strong>r ter chegado ao chão. Devagar,<br />

com cui<strong>da</strong>do, tirou os pés <strong>da</strong> cama. Pousou-os no chão e provou se sustentavam seu peso. Sustentaramno.<br />

E então seus olhos se pousaram em uma figura que havia em uma poltrona ao outro lado do quarto.<br />

Uma figura feminina.<br />

– Lydia – murmurou. – O que faz aqui?<br />

A outra se levantou.<br />

– Seu marido enviou alguém para me buscar – seu rosto parecia escurecido. – Me contaram o que<br />

aconteceu. Ele disse que me necessitava e… e vim.<br />

– Mas…


– Sinto-o muito – Lydia se situou a seu lado. – Durante muito tempo, só podia pensar que tinha<br />

mentido para mim e que não podia confiar em ti. Que você não confiava em mim – Lydia se sentou a seu<br />

lado. – Disse que não tinha me contado na<strong>da</strong>, mas eu sabia. Sabia que tinha esses desmaios e que odiava<br />

as multidões. Eu tinha te visto desmaiar diante de todo mundo. Se o tivesse pensado, teria compreendido<br />

o que acontecia. Fui odiosa.<br />

Minnie olhou para sua amiga.<br />

– Não diga isso.<br />

– Como não vou dizê-lo? Quando se inteirou de que eu estava grávi<strong>da</strong> e me disse que tudo sairia bem,<br />

não era mentira. E tampouco era mentira quando abortei e você passou horas lendo para mim enquanto eu<br />

estava na cama temendo morrer também. Eu gostaria que houvesse me dito isso, mas… – baixou a voz. –<br />

Entre nós, na<strong>da</strong> nunca foi mentira. E eu deveria estar ao seu lado como você esteve ao meu muito antes.<br />

Lydia a abraçou com tanta força que Minnie pensou que nunca a soltaria. E não queria que o fizesse.<br />

– Também o sinto porque não tive oportuni<strong>da</strong>de de te dizer: “Eu te disse” – continuou isso Lydia com<br />

um tom de voz mais prosaico.<br />

Olharam-se nos olhos e puseram-se a rir.<br />

– É ver<strong>da</strong>de. E você tinha razão. Foi… – Minnie franziu o cenho. – Que ruído é esse?<br />

Lydia se voltou.<br />

– Esse? Esse é seu marido falando com pessoas em seu quarto.<br />

Seu quarto? Aquela era o quarto dos dois. Até o momento, não tinham usado quartos separados.<br />

Tinham dormido juntos inclusive os últimos dias, em que seu marido tinha estado de um humor sombrio.<br />

O quarto em que estava nesse momento nunca tinha usado antes.<br />

Ouvia-o falar… não tão alto para entender o que dizia, mas a um volume no qual captava a cadência<br />

de sua voz e o ritmo <strong>da</strong>s ordens que <strong>da</strong>va.<br />

– Lydia – perguntou. – Onde está meu marido?<br />

Teria jurado que ele a tinha levado para casa. Tinha man<strong>da</strong>do procurar Lydia. A última vez que<br />

Minnie desmaiou, ele estava presente quando despertou, embora soubesse que o golpe à reputação dela o<br />

obrigaria a lhe oferecer matrimônio. Por que não estava ali nesse momento?<br />

Lydia moveu a cabeça.<br />

– No outro quarto.<br />

– Deveria estar aqui. Estava aqui – Minnie tirou uma bata do armário, a pôs e se aproximou <strong>da</strong> porta<br />

que comunicava as dois quartos. Girou o trinco e a porta se abriu.<br />

Havia três serventes no quarto. O criado pessoal dele e dois lacaios. E vários baús. Robert estava<br />

sentado de costas a ela, vendo os criados trabalharem. Um dos lacaios acabava de sair do quarto de<br />

vestir com os braços carregados com coletes de se<strong>da</strong> de diferentes cores. Deixou-os em um baú e Minnie<br />

teve a sensação de que seu mundo se detinha.<br />

– Robert, posso saber o que faz? – perguntou.<br />

Ele ficou imóvel de costas para ela. Os serventes baixaram à vista e começaram a trabalhar mais<br />

depressa e em silêncio. Apenas seus olhares de soslaio denotavam seu interesse.


– Recuperaste-te muito rápido – respondeu ele, de costas ain<strong>da</strong>. – Pensava que já teria ido antes que te<br />

levantasse.<br />

– Ido? Mas aonde vai?<br />

Ele se levantou por fim e se voltou. Mas seguiu sem olhá-la.<br />

– Vou.<br />

Minnie tinha sentido pânico quando ele tinha falado diante de to<strong>da</strong>s aquelas pessoas. A multidão a<br />

tinha observado e isso tinha despertado seu antigo terror. Mas por horrível que fosse, desmaiar era fácil.<br />

Uma vez que acontecia, já não tinha que lutar com a situação em questão. Agora, entretanto, era<br />

impossível escapar a aquilo. Aquilo… aquilo simplesmente doía.<br />

– Vai? Aonde? Quanto tempo?<br />

– Fiz-te uma promessa – disse ele ao fim. – E a quebrei em pe<strong>da</strong>ços. Não quero nem imaginar quão<br />

furiosa deve estar comigo – apertou a mandíbula. – Não te reterei à força. Não te suplicarei – sorriu com<br />

tristeza. – Quero te facilitar as coisas.<br />

Sua cabeça <strong>da</strong>va voltas.<br />

– Assim sem mais?<br />

– Sem cenas nem discussões. Sem necessi<strong>da</strong>de de quebrar coisas – ele a olhou ao fim e sorriu com<br />

cansaço. – Terá tudo o que queira; apenas tem que pedi-lo.<br />

Os lacaios tinham começado a empacotar ain<strong>da</strong> mais depressa, como se quisessem provar assim que<br />

não ouviam na<strong>da</strong> do que se diziam.<br />

Minnie entrou devagar no quarto e se colocou diante de Robert.<br />

– Não compreendo. Está dizendo…?<br />

– Sei o que aconteceu na sala. Você apenas se casou comigo porque te disse que te protegeria. E acabo<br />

de…<br />

– Um momento, Robert – Minnie fez um gesto com a mão aos serventes. – Acredito que será melhor<br />

que saiam todos. De fato, acredito que estaria bem que limpassem esta parte <strong>da</strong> casa por uma hora no<br />

mínimo.<br />

Houve uma pausa. Um lacaio olhou os lenços e laços para pescoço que tinha nos braços. Outro olhou<br />

para o duque, que apertou os dentes e não disse na<strong>da</strong>.<br />

Minnie deu umas palma<strong>da</strong>s.<br />

– Deixem tudo e saiam.<br />

Os serventes obedeceram.<br />

Minnie se voltou para Lydia, que olhava a cena com olhos muito abertos <strong>da</strong> soleira que conectava<br />

ambas os quartos. Ergueu as mãos.<br />

– Eu já fui – disse. – Veem ver-me logo, Minnie.<br />

Lançou um olhar de dureza a Robert e ela também desapareceu.<br />

Minnie esperou, escutando, até que os passos de sua amiga se perderam na distância.<br />

Então pôs as mãos no peito de seu marido e empurrou com força.<br />

– Robert, idiota, em que demônios está pensando?


– Tinha que fazê-lo – ele a olhou fixamente. – Tinha que fazê-lo.<br />

Era meu irmão e tinha que…<br />

– Oh, homem estúpido! – lhe deu outro empurrão e ele cambaleou para trás e suas pernas se chocaram<br />

com a cama. – Não estou falando disso. – Deixei-te uma nota – disse ele. – Esta manhã. Deveria ter<br />

falado contigo antes. Teria que haver despertado. Custou-me muito pensar com clari<strong>da</strong>de. Sinto-me<br />

doente ao pensar no que tiveste que passar apenas por que…<br />

– Deram-me sua nota – o interrompeu ela. – A li. Decidi que tinha razão.<br />

– Deci… decidiu o que? – ele piscou e a olhou sem compreender.<br />

– Deram-me sua nota – repetiu ela. – A li. Decidi que seu primeiro impulso era correto. Não serviria<br />

de na<strong>da</strong> esconder minha identi<strong>da</strong>de. Fizéssemos o que fizéssemos, saberia cedo ou tarde. Eu apenas<br />

estaria exposta a um pouco de humilhação. O que era isso comparado com a vi<strong>da</strong> de seu irmão?<br />

– Minnie! – ele parecia horrorizado. – Mas você… Lhe pôs a mão no ombro.<br />

– Você tinha que dizer a todos a ver<strong>da</strong>de de meu passado para salvar a seu irmão. Imagina que eu<br />

teria insistido em que guar<strong>da</strong>sse silêncio quando estava isso em jogo? Sim, essa cena foi horrível. Não,<br />

não quero voltar a passar por isso nunca mais. Eu não gosto que as pessoas me olhem. Não posso<br />

respirar. Não posso pensar claramente – o olhou. – Foi horrível, mas não foi o fim do mundo. E você crê<br />

que isso significa o fim de nosso matrimônio?<br />

Robert piscou.<br />

– Não… não é assim? – pôr fim a olhou nos olhos. Parecia surpreso, atônito inclusive. – Mas você<br />

está zanga<strong>da</strong> comigo. Noto-o.<br />

– Pois claro que estou zanga<strong>da</strong>. Ele moveu a cabeça.<br />

– E… vais partir?<br />

– Pois claro que estou zanga<strong>da</strong> – repetiu ela. – Porque pensava que significava algo para ti. E você<br />

está disposto a partir somente porque não pode te incomo<strong>da</strong>r em arrumar as coisas.<br />

– Não me posso incomo<strong>da</strong>r… – repetiu ele, com voz atônita. Olhou-a. voltou-se e olhou os baús<br />

feitos pela metade e o montão de lenços para o pescoço que tinha deixado o lacaio em cima <strong>da</strong> cômo<strong>da</strong>.<br />

– Eu apenas… – disse com voz suave e cansa<strong>da</strong>. – Não compreendo. Te magoei. Sabia que ia fazer<br />

isso e o fiz de todos os modos. Como posso arrumar isso? Não posso te dizer que não te zangue. Tem o<br />

direito de se zangar. Merece se zangar.<br />

Aquele era o homem cuja mãe se afastou dele quando era menino.<br />

Era o homem cujo pai o havia visto apenas como uma ferramenta para tirar dinheiro de outros. Robert<br />

tinha perdoado Minnie de seu engano anterior, mas tinha tão poucas expectativas de ser perdoado por sua<br />

vez que nem sequer podia pedi-lo.<br />

Minnie estendeu o braço e lhe tocou a mão.<br />

– Sabe por que estou furiosa? Porque você preferiria ir antes de tentar fazer funcionar nosso<br />

matrimônio. Ele a olhou nos olhos.<br />

– Eu…<br />

– Sei. Não quer brigar. Mas as brigas não destroem um matrimônio. Não fazer as pazes, sim.<br />

Robert tragou saliva.


– Você quer brigar?<br />

– Sim. E quero que diga que foste terrível e que foi muito errado o que fez.<br />

Ele se encolheu.<br />

– É ver<strong>da</strong>de. Sei que fui muito mal.<br />

– Quero acreditar em ti quando pede perdão. Quero saber em meu coração que você nunca me faria<br />

mal. Quero que me prometa que a próxima vez que ocorra isto, antes deverás falar comigo e decidiremos<br />

juntos o que terá que fazer.<br />

Robert a olhava com a cabeça inclina<strong>da</strong> para um lado.<br />

– E depois de que tenha feito tudo isso, quero te perdoar – os olhos dela se encheram de lágrimas.<br />

– Mas por que quer fazer tudo isso?<br />

– Porque te amo – respondeu ela. – Te amo, amo-te.<br />

Ele respirou fundo.<br />

– Tem certeza?<br />

Minnie assentiu.<br />

– Já vejo – disse ele.<br />

E saiu do quarto sem acrescentar mais na<strong>da</strong>.


CAPÍTULO 27<br />

Minnie OLHOU A PORTA POR ONDE tinha saído Robert com a mente converti<strong>da</strong> em um redemoinho<br />

confuso. Por que tinha saído? Aonde ia? O que ia fazer ela?<br />

Aproximou-se <strong>da</strong> janela para ver se ele ia sair de casa, olhou para fora e retrocedeu <strong>da</strong>ndo um coice.<br />

Havia uma pequena multidão na porta, um montão de chapéus marrons e negros que formavam um<br />

semicírculo de três filas de largura. Um homem ergueu a vista, viu-a e assinalou com o dedo.<br />

Minnie retrocedeu com o coração galopante.<br />

Se Robert saía de casa, não seria capaz de segui-lo.<br />

Voltou para seu quarto. Em cima <strong>da</strong> cômo<strong>da</strong> havia um jornal. Desdobrou-o com curiosi<strong>da</strong>de e<br />

descobriu que era um jornal dessa tarde. Não podia fazer mais de meia hora que tinha saído.<br />

O Duque de Clermont tem escrito santinhos, anunciava o titular. Em letras menores, lia-se: A duquesa<br />

é uma antiga campeã de xadrez.<br />

Minnie voltou a ler aquilo e moveu a cabeça por quão inócuo parecia.<br />

– Bom – murmurou, – suponho que “duquesa é antiga farsante que se vestiu de menino e enganou a<br />

centenas de pessoas” não cabia. Três hurras pelo tamanho restritos <strong>da</strong>s manchetes.<br />

O artigo em si era surpreendentemente imparcial. As piores acusações que lhe tinham jogado no<br />

passado, as de monstro, mentirosa, antinatural e semente do diabo, estavam ausentes. Seu passado ficava<br />

resumido em um parágrafo curto. Era escan<strong>da</strong>loso, sim, mas o tempo tinha tirado poder e força <strong>da</strong>s<br />

palavras de seu pai.<br />

O senhor Lane declarou que todo o plano tinha sido ideia de sua filha, mas nunca se encontraram<br />

provas que apoiassem a afirmação de que uma moça de doze anos tivesse planejado aquele<br />

empreendimento fraudulento.<br />

Minnie se sentia como se tivesse aberto a porta em que acreditava ter um monstro gigante e tivesse<br />

descoberto que apenas media cinco polega<strong>da</strong>s de altura. Havia coisas que se podiam dizer <strong>da</strong> filha de um<br />

criminoso e que não se diziam <strong>da</strong> esposa de um duque.<br />

A narração do julgamento <strong>da</strong>quele dia era igualmente estranha.<br />

Ler sobre seu desmaio foi uma experiência estranha. Parecia-lhe estar observando suas emoções a<br />

distância. Podia ouvir os coices <strong>da</strong>s pessoas na sala do tribunal, mas agora entendia que eram de<br />

surpresa e não de condenação. Podia ver-se empalidecer sem sentir um suor frio na pele e sem que sua<br />

respiração se voltasse superficial.<br />

Isso lhe permitiu ler o que tinha acontecido depois. Ela tinha desmaiado. Um homem próximo lhe<br />

tinha cuspido e a duquesa mãe o tinha golpeado na cabeça com seu guar<strong>da</strong>-chuva. Logo tinha observado<br />

de cima a baixo todos os que a ameaçavam aproximando-se, mantendo-os longe.<br />

Robert tinha saltado por cima de três bancos para chegar até ela. Minnie supôs que a parte dos três<br />

bancos seria um exagero.


Quando o duque tirava sua esposa do tribunal, dignou-se a responder algumas pergunta. Afirmou que<br />

conhecia a identi<strong>da</strong>de de sua esposa antes de seu matrimônio, uma afirmação que resulta incontestável<br />

tendo em conta que, no registro matrimonial, sua esposa figura como Minerva Lane. Sua Excelência<br />

explicou sua escolha de esposa com as seguintes palavras: “por que ia tomar uma esposa convencional se<br />

podia levar uma extraordinária?”.<br />

Minnie deixou o jornal e fechou os olhos, que lhe ardiam por causa <strong>da</strong>s lágrimas. Quase podia ouvilo<br />

dizendo essas palavras. Não lhe custava na<strong>da</strong> imaginá-lo elevando os olhos ao céu e olhando com<br />

irritação aos jornalistas. Seu corpo tinha a lembrança dos braços dele embora sua mente não o<br />

recor<strong>da</strong>sse.<br />

Não estava segura do que significava tudo aquilo, mas estava segura de uma coisa.<br />

Ele voltaria.<br />

Seguiu lendo o jornal. O artigo tinha somente umas colunas de longitude. Uma nota relaciona<strong>da</strong><br />

mencionava que, depois do julgamento, o capitão George Stevens tinha sido detido e acusado de aceitar<br />

subornos em troca de cumprir com seu dever oficial. Minnie sorriu fracamente. Bem!<br />

Abriu-se a porta. Robert apareceu na soleira abraçando um livro contra o peito.<br />

– Terá que me desculpar se não fiz isto bem – disse com calma. – Mas é a primeira vez que o faço.<br />

O que é que faz?<br />

Ele entrou no quarto e deixou o livro encadernado em couro sobre a cômo<strong>da</strong> que havia perto dela.<br />

Era a cartilha que lhe tinha <strong>da</strong>do no dia anterior. Robert olhou primeiro o livro e depois para ela.<br />

– Decidi o que significam estas letras – disse. – E me ocorreu que lhe podia dizer isso<br />

Minnie demorou um momento em <strong>da</strong>r-se conta de que estava nervoso. Ele a olhou de soslaio e abriu o<br />

livro pela primeira página.<br />

– “A” – disse– é de “Amor”. Por todos os modos que te amo.<br />

Ela sentiu mais forte ain<strong>da</strong> a ardência <strong>da</strong>s lágrimas. Piscou, pois não queria que nublassem sua visão.<br />

Queria vê-lo, perceber todos os detalhes de seu cabelo claro revolto e o modo como mordia o lábio<br />

inferior.<br />

Robert afastou a vista.<br />

– Isto é estúpido – murmurou. Tentou fechar o livro, mas Minnie se deu conta do que fazia e<br />

introduziu rapi<strong>da</strong>mente a mão entre as páginas abertas.<br />

– Não! – protestou. – Não o é.<br />

A mão dele cobriu a sua. Tragou saliva.<br />

– Não tem na<strong>da</strong> de estúpido que me diga que me ama. Jamais.<br />

– Oh! – exclamou ele. Deu a impressão de que demorava um momento em absorver aquilo e voltou<br />

para a cartilha. – “A” é de “Amor”. De muitos modos. Tantos que são mais de vinte e nove, mas como<br />

nosso alfabeto não tem mais, terei que me restringir. Ao menos no momento.<br />

Passou a página até a letra B, que estava ilumina<strong>da</strong> como se fosse um manuscrito medieval. Uma série<br />

de bouganvilles formavam um lado <strong>da</strong> letra, e na curva superior <strong>da</strong> B havia uma coruja.<br />

– A “B” é de “Balança”. Para pesar meus erros. Porque vou cometer erros, algo que suponho não te<br />

pegará de surpresa – a olhou e passou a página. – A “C” é por “Confissão”. Confesso que não sei como


fazê-lo. Não sei como seu marido e não sei como ser pai. Quão único aprendi de meu pai foi como não<br />

fazê-lo, e isso não está acostumado a ser um bom guia, mas… Voltou a passar página.<br />

– A “D” é de “Determinação” – passou uma página mais. – A “E” é por “Eterni<strong>da</strong>de”, porque isso<br />

será o que quero que volte a me render outra vez. A “F” é de “Favor”, porque terá que fazer o favor de<br />

me perdoar até que comece a fazer bem isto.<br />

Agora o está fazendo bem – disse Minnie com um sorriso. – Continue.<br />

Robert assentiu e passou a página.<br />

– A “G” é de “Graça”. E a “H” … Tinha que ter escrito isto, porque não sei o que vem agora.<br />

Esqueci-o.<br />

Minnie sorriu.<br />

Ele franziu o cenho com perplexi<strong>da</strong>de.<br />

– Sério. Não sei o que vem agora. Tinha pensado algo em minha cabeça para quase to<strong>da</strong>s e ia ser<br />

brilhante, e quando terminasse, você se jogaria em meus braços e tudo estaria arrumado.<br />

Minnie se aproximou e passou várias páginas até chegar a M. Era a página pela qual estava aberto o<br />

livro quando o viu na cristaleira. A M estava grafa<strong>da</strong> em azuis e negros com um toque dourado, o desenho<br />

dos arbustos de amoras formava a silhueta escura <strong>da</strong> letra contra um céu iluminado pela luz <strong>da</strong> lua. Esse<br />

M possivelmente evocava à meia-noite.<br />

– Esta é a mais importante – disse. – A “M” é de Minnie”. Sou tua inclusive quando cometer erros.<br />

Robert se aproximou dela e a estreitou em seus braços.<br />

– Minnie – disse. – Minha Minerva. O que eu faria sem ti?<br />

– Há outra letra que é igualmente importante – ela voltou para<br />

“A” de “Amor”. Porque te amo. Amo-te pela bon<strong>da</strong>de de seu coração, amo-te por sua honradez, amote<br />

porque quer abolir a nobreza, amo-te, Robert – o abraçou com força. – E não vou te expulsar de meu<br />

lado por um erro.<br />

– Mas…<br />

Ela negou com a cabeça.<br />

– Falaremos disso logo. No momento, Robert, há outras coisas que exigem nossa atenção.<br />

– Sim – respondeu ele.<br />

– Há uma nuvem de jornalistas lá embaixo e acabamos de dizer ao mundo quem sou em reali<strong>da</strong>de.<br />

– Livrarei-me deles.<br />

Minnie ergueu uma mão.<br />

– Não – disse. – Acredito que isso não será necessário.<br />

– PENSA APRESENTAR À DUQUESA EM SOCIEDADE?<br />

– O que opina disto a duquesa mãe?<br />

Por que escreveu esses santinhos? É parte de um estratagema parlamentar?<br />

Quando Robert entrou no salão principal de sua casa poucas horas depois, encontrou-se com um<br />

montão de perguntas lança<strong>da</strong>s aos gritos, uma em cima <strong>da</strong> outra, formando uma cacofonia indistinguível.


O sol se pôs, os abajures de azeite iluminavam a estadia e os corpos que enchiam a sala tinham subido a<br />

temperatura mais do que resultava confortável.<br />

Os jornalistas tinham sido convi<strong>da</strong>dos a entrar quinze minutos antes e, ao que parece, sentiam-se já o<br />

bastante confortáveis para gritar em sua casa.<br />

Esperou até que Oliver entrou atrás dele e levantou a mão. As perguntas aos gritos continuaram, mas<br />

como Robert não deu nenhuma resposta, a animação acabou por arrefecer.<br />

– Cavalheiros – disse, quando todos guar<strong>da</strong>ram silêncio. – Me permitam que explique o que vai<br />

acontecer. Convidei-os a minha casa. Ofereci chá e bolachas.<br />

Mais de uma mão sacudiu discretamente miolos de alguma jaqueta depois desse comentário.<br />

– Se respeitarem as normas que imponho, responderei a to<strong>da</strong>s suas perguntas. Mas ao homem que<br />

levante a voz mais do que o necessário, tirarão <strong>da</strong>qui pela orelha. Ao que respon<strong>da</strong> de volta será<br />

mostra<strong>da</strong> a porta. Se, se comportarem como uma multidão enfureci<strong>da</strong>, serão tratados igualmente.<br />

Entretanto, se atuarem como pessoas civiliza<strong>da</strong>s, responderemos a to<strong>da</strong>s suas perguntas.<br />

– Excelência – gritou um homem <strong>da</strong> parte de trás. – Por que essas regras? Teme algo em particular?<br />

Robert moveu a cabeça com gesto grave.<br />

– Oliver – fez um gesto atrás de si. – Por favor, mostre a porta ao cavalheiro.<br />

– Espere! Eu não di…<br />

Robert ignorou os protestos do jornalista e deixou que outros vissem como o acompanhavam para<br />

fora. Quando se fechou a porta atrás dele, voltou-se para os outros. Havia possivelmente uns vinte,<br />

acomo<strong>da</strong>dos em cadeiras leva<strong>da</strong>s de outras salas. Todos tinham seus cadernos preparados. Quarenta<br />

olhos o olhavam curiosos.<br />

– Verão, não há segun<strong>da</strong>s oportuni<strong>da</strong>des – disse Robert. Ouviu que se abria a porta atrás dele. –<br />

Oliver, quer fazer o favor de demonstrar o modo correto de fazer uma pergunta?<br />

Seu irmão se aproximou do jornalista mais próximo e levantou a mão em silêncio.<br />

Robert o assinalou com um gesto.<br />

– Pergunta do cavalheiro na lateral.<br />

– Excelência – disse Oliver com um tom de conversa normal. – Por que pôs estas regras? Tem medo<br />

de algo?<br />

– Excelente pergunta – disse Robert. – Estabeleci estas normas porque dentro de uns momentos<br />

entrará aqui minha esposa, a duquesa, e não tenho intenção de que se encontre com uma multidão que fala<br />

gritando.<br />

Os homens se sentaram mais retos ao ouvir isso.<br />

– Verão – continuou Robert, – o que me importa é a maneira de perguntar. Podem fazer to<strong>da</strong>s as<br />

perguntas que queiram, embora possivelmente declinemos responder as mais pessoais. Quem quer<br />

começar?<br />

Os jornalistas se olharam entre eles, como se tivessem medo de fazê-lo errado. Depois de uns<br />

momentos, um homem situado na parte de trás, ergueu a mão. Robert assentiu.<br />

– Excelência – perguntou o homem. – Por que se casou com Minerva Lane?


– Queria uma duquesa que fosse bonita, inteligente e valente mais do que queria uma de alto berço.<br />

Não necessitava dinheiro. E o fato de que, além disso, estivesse apaixonado por ela ajudou bastante –<br />

assinalou a outro homem. – Sua vez.<br />

– É ela que usava calças em seu matrimônio?<br />

Robert suspeitava que ouviria aquela pergunta uma e outra vez até que a respondesse para a<br />

satisfação de todos.<br />

– Querem saber o primeiro que fez com meu dinheiro? – perguntou. – Visitar uma costureira em Paris.<br />

Aquilo produziu risa<strong>da</strong>s.<br />

– Me acreditem – continuou Robert, – uma mulher tão bonita como minha esposa com saias e<br />

espartilho não tem nenhuma intenção de usar calças.<br />

Os jornalistas anotaram aquelas palavras. Minnie tinha acertado.<br />

“Têm uma ideia mental do que deve ser uma mulher”, havia dito a Robert. “Por uma parte, é um<br />

montão de mentiras. Mas pode utilizar essas mentiras em seu favor. Mostre-lhes que eu correspondo a<br />

esse padrão em um aspecto e não questionarão se não tiver de fazê-lo em outros. E em meu caso é muito<br />

fácil. Eu gosto <strong>da</strong> roupa bonita. Se podemos lhes fazer ver isso, não perguntarão mais na<strong>da</strong>”.<br />

– Tudo isso está muito bem – disse outro homem quando Robert lhe deu permissão para perguntar, –<br />

mas você crê que a jovem Minerva Lane induziu a seu pai a enganar aos outros, que ela foi a causa de sua<br />

condenação e de sua morte? E em caso afirmativo, arrependeu-se disso?<br />

Robert apertou os dentes e sentiu que ficava furioso, mas se obrigou a manter a calma.<br />

– Não – respondeu. – Seu pai abriu as contas falsas. Seu pai mentiu a seus compatriotas quando ela<br />

não estava presente. O sentido comum sugere que, quando o apanharam e enfrentava o cárcere, optou por<br />

seguir mentindo para salvar-se, sem lhe importar a quem prejudicasse no processo. A duquesa de<br />

Clermont já sofreu bastante pelas falsi<strong>da</strong>des de seu pai. Neste tema, vou reclamar meu direito de marido<br />

– sorriu. – Darei uma surra a qualquer um que sugira outra coisa.<br />

Sua declaração foi segui<strong>da</strong> do som de uma dúzia de lápis arranhando o papel.<br />

“Se disser isso”, havia-lhe dito Minnie, “tem que saber que terá que fazê-lo ao menos uma vez”.<br />

Robert estava desejando que chegasse esse momento.<br />

– Falando <strong>da</strong> duquesa – disse, – acredito que é hora de que vá procurá-la.<br />

Voltou-se, consciente dos sussurros que se elevaram a suas costas. Abriu a porta lateral e saiu.<br />

Minnie esperava na sala adjacente com as mãos entrelaça<strong>da</strong>s e caminhando de parede a parede.<br />

Robert se deteve ao vê-la. Usava um vestido que não conhecia e que sem dúvi<strong>da</strong> tinha comprado em<br />

Paris. Era uma roupa de cor escarlate brilhante, o tipo de vestido que enfatizava suas curvas e atrairia<br />

to<strong>da</strong>s as olha<strong>da</strong>s. E usava os rubis que lhe tinha <strong>da</strong>do.<br />

Usava também um xale de ren<strong>da</strong>s negro sobre os braços, que além disso estavam nus, e flores no<br />

cabelo. A tudo isso tinha acrescentado algo que somente ele tinha visto em quadros do século anterior.<br />

Desenhou uma simples pinta negra perto do canto dos lábios. Isso atraía a vista para a cicatriz e fazia<br />

com que a teia de aranha branca <strong>da</strong> bochecha parecesse uma decoração intenciona<strong>da</strong> em vez <strong>da</strong><br />

lembrança de um ato de violência insensato. O moderno vestido, combinado com aquela mo<strong>da</strong> antiga,<br />

contribuíam para que parecesse uma mulher de nenhum século concreto.<br />

Robert se deu conta de que ficou parado olhando-a.


– Sabe? – perguntou com voz rouca. – Está espetacular.<br />

– De ver<strong>da</strong>de? A sua mãe não gosta do lunar postiço – repôs ela–. Há muitos?<br />

Robert se aproximou dela.<br />

– Quase vinte. Mas lhes coloquei medo para que se mostrem civilizados. Está certa de que quer fazer<br />

isto?<br />

Minnie respirou fundo.<br />

– Sim. Muito.<br />

Tomou sua mão.<br />

– Porque eu estou disposto a enviá-los ao diabo – a mão dela estava fria e suarenta e sua respiração<br />

era muito rápi<strong>da</strong>. – E eu estarei a seu lado em todo momento – disse ele. – Ninguém se aproximará de ti.<br />

Prometo-o.<br />

– Sei – lhe apertou a mão e caminharam juntos. Minnie se deteve na entra<strong>da</strong>. Robert não soube se era<br />

por nervosismo ou se o fazia para causar impressão.<br />

Em qualquer caso, conseguiu-o claramente. Os jornalistas lançaram coices de increduli<strong>da</strong>de… como<br />

se esperassem que ela aparecesse na porta vesti<strong>da</strong> com calças e levita. E todos ficaram de pé.<br />

Minnie sorriu. Robert, que a levava pela mão, sentiu que o pulso dela se acelerava no punho e notou<br />

que lhe cravava os dedos na palma quando todos aqueles olhos se pousaram nela. Sabia o muito que lhe<br />

custava sorrir. Sabia também que, se eles tivessem gritado naquele momento, se tivessem feito algum<br />

ruído, ela teria desmaiado ali mesmo. Mas os homens estavam silenciosos como mortos porque não<br />

queriam que os expulsassem.<br />

Robert a levou ao divã situado na parte dianteira <strong>da</strong> sala, sentou-a e se sentou por sua vez.<br />

O divã estava sobre uma plataforma um pouco levanta<strong>da</strong>.<br />

Minnie olhou a seu redor.<br />

– Bem – comentou. – Suponho que isto é o mais perto que vou estar de um trono.<br />

A frase arrancou uma gargalha<strong>da</strong> surpreendi<strong>da</strong> aos jornalistas.<br />

– Terão que me desculpar, cavalheiros – a voz dela era tão fraca que todos tinham que esforçar-se<br />

para ouvi-la. – pedi silêncio porque minha voz não é muito alta e estou nervosa.<br />

Um jornalista levantou a mão.<br />

– Tem medo <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des que possamos descobrir?<br />

– Não – respondeu ela. – Meu medo tem uma origem mais primitiva. Quando tinha doze anos… – fez<br />

uma pausa e respirou fundo. – Bem, acredito que todos vocês sabem o que ocorreu quando tinha doze<br />

anos, <strong>da</strong>s declarações de meu pai no tribunal e até a multidão que me rodeou depois.<br />

Produziram-me esta cicatriz.<br />

Tocou-se a bochecha.<br />

– Após, custa-me respirar quando estou com um grupo grande de pessoas. Não posso suportar que me<br />

olhe muita gente sem recor<strong>da</strong>r aquilo. De fato, sinto-me muito agradeci<strong>da</strong> porque tenham que escrever em<br />

seus cadernos. É muito melhor que se me olhassem em massa – sorriu, mas seus dedos seguiam agarrando<br />

com força os de Robert.


Os jornalistas escreviam com fúria. Eles não detectavam o que Robert via claramente: a palidez <strong>da</strong>s<br />

bochechas dela e o rosa claro dos lábios que estavam acostumados a ser mais escuros.<br />

– Ain<strong>da</strong> agora – disse Minnie, – tantos anos depois, pensar nisso faz com que me tremam as mãos – se<br />

soltou de Robert e ergueu a mão como prova. – Se houvesse dez pessoas mais aqui, não sei se poderia<br />

fazer isto. E se estivessem gritando, possivelmente desmaiaria– lhes dedicou outro sorriso - Isso foi o<br />

que aconteceu hoje no tribunal.<br />

– E como assistirá a bailes e festas, ao tipo de reuniões onde as duquesas estão obriga<strong>da</strong>s a ir?<br />

– Estou segura de que receberei muitos convites amáveis de meus pares para esses acontecimentos.<br />

Tinha ensaiado essa resposta com o Robert. Tinham-na repetido uma e outra vez até que ca<strong>da</strong> palavra<br />

tinha ficado perfeita.<br />

– Também estou segura – continuou ela– de que todo mundo compreenderá que, quando rechaçar<br />

esses convites, não será por desprezo. Não obstante, ao longo dos próximos anos, meu marido e eu<br />

organizaremos uma série de eventos mais íntimos. Fiscalizarei algumas <strong>da</strong>s obras de beneficência de meu<br />

marido e confio em que chegarei a conhecer meus pares desse modo.<br />

– E não teme que a rechacem por seus antecedentes?<br />

– Estou segura de que haverá pessoas que não quererão me conhecer. Mas minha situação sem dúvi<strong>da</strong><br />

implica que meu círculo de conhecidos será, necessariamente, exclusivo. Se alguma mulher desejar não<br />

estar incluí<strong>da</strong> nele, contará com meu beneplácito para isso – sorriu aos homens.<br />

Estes escreviam em taquigrafia o que dizia ela. Suas palavras apareceriam tal qual na metade dos<br />

jornais <strong>da</strong> nação. Mas, enquanto escreviam, uns poucos homens levantaram a cabeça para olhá-la.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong> ela se mostrava feminina; tinha-lhes contado uma debili<strong>da</strong>de e tinha feito com que se<br />

sentissem confortáveis. Mas o jornalista de cabelo cinza que havia em um lateral, que Robert acreditava<br />

que se chamava Parret, olhava-a com grande interesse. Levava muitos anos escrevendo de política e<br />

crônicas de socie<strong>da</strong>de e provavelmente tinha reconhecido o que Robert já sabia. Que a duquesa de<br />

Clermont acabava de lançar um desafio às <strong>da</strong>mas de Londres. Não ia suplicar sua companhia nem ia se<br />

arrastar para que tivessem uma boa opinião dela. Sua amizade seria uma honra singular e original que ela<br />

outorgaria com cautela.<br />

Parret ergueu a mão.<br />

– Excelência, seu talento com o xadrez foi pura sorte infantil? Um engano?<br />

Minnie sorriu. E seu sorriso, essa vez, foi genuíno.<br />

– Não. Não foi um engano.<br />

O jornalista arqueou uma sobrancelha e a observou.<br />

– Há dito que estava nervosa. Não o parece.<br />

– Antes, quando estava ansiosa, dizia-me que não sentia na<strong>da</strong>. Isso me aju<strong>da</strong>va um pouco até que<br />

podia afastar o nervosismo – tomou a mão de Robert. – Agora sei que não estou sozinha. E isso me aju<strong>da</strong><br />

ain<strong>da</strong> mais.<br />

Robert pensou que tinha razão. Não estava sozinha.<br />

Não era somente a mão dela na sua e seus corpos lado a lado no divã. Era a sensação de que<br />

confrontavam juntos não só aquela prova, a não ser a vi<strong>da</strong>. Não seria fácil. Nem sempre seria divertido.<br />

Mas inclusive nos piores momentos, tudo seria melhor com ela ao lado.


“Não estou sozinha”. Robert se deixou embargar por essa certeza. A seu lado, Oliver sorria<br />

fracamente. Minnie pôs a outra mão em cima <strong>da</strong> de Robert e ele a olhou um segundo nos olhos. Quando<br />

terminassem aquilo, quando os jornalistas partissem para contar ao mundo que o duque e a duquesa de<br />

Clermont eram uma força a ter em conta, lhe demonstraria quão certo era que não estava sozinha.<br />

Decidiu que lhe deixaria o colar posto. Todo o resto…<br />

– Excelência – perguntou alguém, interrompendo seu devaneio. – Podemos falar dos santinhos? Qual<br />

era sua intenção ao escrevê-los?<br />

– Ah, sim! – respondeu Robert. – É muito simples. Sou duque. E como tal, considero-me responsável<br />

não só de meu bem-estar, mas sim do de todo o país – sorriu, olhou para seu irmão nos olhos e inclinouse.<br />

– Se silenciarmos aos que querem falar, como vou fazer meu trabalho? A detenção do capitão Stevens<br />

foi apenas o começo.<br />

Minnie lhe apertou a mão.<br />

– Não sei quanto poderei obter em minha vi<strong>da</strong> – disse Robert, – mas isto é somente o princípio.


EPÍLOGO<br />

Quatro anos depois<br />

PODIA PARECER UM DIA COMO OUTRO QUALQUER para algumas pessoas, mas Robert sabia<br />

que não era. A atmosfera resultava tensa. A seu lado, um cavalheiro apertou o punho e se voltou para<br />

frente. Oliver e seu pai estavam sentados ao outro lado, olhando. Lydia e seu marido se acomo<strong>da</strong>ram em<br />

poltronas no outro lado <strong>da</strong> sala. Lydia sabia pouco de xadrez, mas olhava com a mão na boca. Havia um<br />

total de oito pessoas, sem contar às duas que ocupavam o centro do salão.<br />

Mas oito pessoas não eram tantas para pôr Minnie nervosa. De fato, parecia que ela se esqueceu de<br />

tudo. Estava senta<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> mesa pequena que tinham instalado em meio <strong>da</strong> sala e <strong>da</strong>va a impressão de<br />

ser a única dos presentes que não estava na<strong>da</strong> nervosa.<br />

Tinha tomado Londres por assalto, o que implicava que, como em qualquer assalto, havia pessoas que<br />

se refugiavam em sua casa quando a viam chegar. Mas em conjunto, as pessoas que importavam não<br />

tinham fugido. A curiosi<strong>da</strong>de pela duquesa de Clermont tinha podido mais que a hostili<strong>da</strong>de. Ela tinha<br />

organizado reuniões exclusivas, em números limitados, e as pessoas tinha acudido. Gente importante.<br />

Minnie tinha ido relaxando gradualmente em seu papel. Seguia sem ir a grandes festas e seguia<br />

tentando evitar que a olhasse o povo nas ruas. Mas em encontros como aquele, todos podiam vê-la como<br />

era em reali<strong>da</strong>de. Usava um espetacular vestido de se<strong>da</strong> azul e não parecia na<strong>da</strong> altera<strong>da</strong>, embora o<br />

homem que tinha em frente tinha começado a suar.<br />

Ao fim ele pegou uma peça. Sustentou-a um instante na mão e voltou a colocá-la no tabuleiro. Gustav<br />

Hernst, que tinha sido o ganhador do primeiro Torneio Internacional de Xadrez de Londres quinze anos<br />

atrás, tinha movido peça.<br />

Minnie estudou o tabuleiro. Depois de um momento de contemplação, ergueu uma peça e, com todo<br />

mundo olhando, beijou-a.<br />

Hernst moveu a cabeça e tombou seu rei no tabuleiro. Desabou-se em sua poltrona.<br />

– Segue sendo muito boa – disse. – Muito. Deveria ter ganhado de você a última vez que jogamos –<br />

seu acento alemão mal se notava. – Mas não pude resistir.<br />

Minnie ficou de pé e lhe estendeu a mão.<br />

– Uma boa parti<strong>da</strong> – disse.<br />

– Uma parti<strong>da</strong> excelente. Me alegro de que seu marido me haja convi<strong>da</strong>do. O que passou faz tantos<br />

anos… não deveria ter passado. Não deveriam ter parado a parti<strong>da</strong>, e menos quando você estava a ponto<br />

de ganhá-la. Aquilo sempre me incomodou. Foi um prazer emen<strong>da</strong>r a situação.<br />

Minnie olhou então para Robert. Depois desses anos de matrimônio, o calor que sentia quando ele a<br />

olhava nos olhos não tinha diminuído. Mas era ain<strong>da</strong> mais profundo, à medi<strong>da</strong> que a familiari<strong>da</strong>de lhe<br />

tinha feito conhecê-la mais. Lhe sorriu e estendeu a mão.<br />

– Venham – disse. – Há refrescos preparados no salão principal.


Quando todos saíram, deixou que Oliver se fizesse de guia e eles ficaram para trás. Uma vez que os<br />

outros desapareceram no corredor, abriram uma porta.<br />

A duquesa viúva de Clermont se negou a ver o que ela considerava um espetáculo alegando que era<br />

indecoroso. Mas Robert suspeitava que havia outro motivo por sua parte.<br />

E na ver<strong>da</strong>de, o jovem Evan, de apenas três anos, estava sentado em seus joelhos olhando a cartilha.<br />

– Alma! – proclamou feliz.<br />

– Que mais começa com A?<br />

– Avó – disse Evan.<br />

A mulher soprou.<br />

– Adulador. Agora uma com a C, por favor.<br />

Evan franziu o cenho.<br />

– Cinza – disse ao fim de um instante. – Você tem cabelo cinza, sabia?<br />

– Isso é uma calúnia <strong>da</strong> pior espécie – respondeu a mãe de Robert com calma. Mas abraçou a seu neto<br />

e baixou a cabeça para inalar seu aroma. – Mãe – disse Robert. – Estão servindo refrescos no salão<br />

principal.<br />

Ela ergueu a vista.<br />

– Oh! – exclamou, com o cenho franzido. – Estou… ocupa<strong>da</strong> – voltou a baixar a cabeça e um sorriso<br />

apareceu em seus lábios. – Muito ocupa<strong>da</strong>.


NOTA DA AUTORA<br />

Eu dou a meus livros nomes em código, que estou acostumado a revelar em minha página na Web.<br />

Este se chamava “Campeã de xadrez”, e como isso descrevia muito, não queria usá-lo no título. Mas<br />

agora já sabem.<br />

To<strong>da</strong>s as obras de ficção histórica alteram a história embora seja minimamente. Neste livro tive que<br />

mu<strong>da</strong>r a história em vários casos e quero dizer quais foram.<br />

O primeiro caso, e o mais óbvio, é o do primeiro torneio internacional de xadrez, que se realizou em<br />

Londres em 1851. Ganhou Adolf Anderssen, não Gustav Hernst; e não houve na<strong>da</strong> estranho relacionado<br />

com o torneio, nem nenhum menino ou menina de doze anos participou dele.<br />

A descrição do que aconteceu a Minnie quando as pessoas descobriram que era uma garota, e a traiu<br />

seu pai, tirei-a de um recorte de jornal que li faz anos. Falava de um homem que na ver<strong>da</strong>de era uma<br />

mulher. Congregou-se uma multidão e o golpearam. Naquela época se controlavam muito os gêneros.<br />

O terceiro caso é algo que depois mu<strong>da</strong>ria o mundo, os descobrimentos científicos que são objeto <strong>da</strong><br />

conferência que dá Sebastian no livro. Eu queria que fosse um cientista controvertido e seguidor de<br />

Darwin, mas também queria que fizesse descobrimentos próprios igualmente revolucionários. Aqueles<br />

que seguem a história <strong>da</strong> ciência, saberão que, em nosso mundo, a genética foi descoberta por Gregor<br />

Mendel em um ensaio que apresentou em 1866 e que não foi divulgado. Ninguém estabeleceu a conexão<br />

entre o descobrimento de Mendel e a teoria <strong>da</strong> evolução, embora o que publicou Mendel foi basicamente<br />

uma teoria <strong>da</strong> transmissão de genes de uma geração a outra. Até princípios do século XX não se<br />

redescobriu o trabalho de Mendel e nem este foi valorizado quanto se devia.<br />

Em meu livro adjudiquei o trabalho de Mendel ao de Sebastian. Esses descobrimentos se poderiam<br />

ter feito naquela época. Mas o descobrimento <strong>da</strong> genética por alguém que tinha contato direto com<br />

Charles Darwin, trocaria radicalmente o ritmo do progresso científico. Nesse sentido, o mundo que eu<br />

descrevi divergiria necessariamente do mundo no que vivemos depois <strong>da</strong> época desses livros. (Em<br />

reali<strong>da</strong>de, o trabalho de Sebastian começava com a cor <strong>da</strong>s bocas de dragão, que diferentemente <strong>da</strong>s<br />

pêras de Mendel, são incompletamente dominantes entre elas).<br />

A quarta alteração é que, nos protestos de 1863 em Leicester, não foi necessário que um duque<br />

escrevesse santinhos e radicalizasse às pessoas. Esta era já bastante radical. Por exemplo, em 1863, os<br />

operários já tinham organizado uma cooperativa de mantimentos em Leicester. Hoje em dia, uma<br />

cooperativa de mantimentos parece algo muito corrente. Em seu tempo, foi um gigantesco passo adiante.<br />

Os operários pagavam os donos <strong>da</strong>s fábricas, que a sua vez possuíam quase to<strong>da</strong>s as lojas.<br />

Uma cooperativa de mantimentos, em que os operários punham dinheiro e o utilizavam para comprar<br />

fruta e verdura a preços razoáveis, foi um grande avanço nas ci<strong>da</strong>des industriais. Permitia aos operários<br />

pagar menos em troca de mais, e a cooperativa de mantimentos de Leicester foi uma <strong>da</strong>s primeiras, e <strong>da</strong>s<br />

mais eficazes que se criaram. Stevens a descreve como “radical” e, na ver<strong>da</strong>de, teria parecido isso a<br />

alguns donos de fábricas. Tudo o que reduzia a dependência dos operários com seus amos era “radical”.<br />

Outro tema de descontentamento civil foi a questão <strong>da</strong>s vacinas. As vacinas se fizeram obrigatórias na<br />

Inglaterra em 1853, e muitas pessoas as odiavam. Foram objeto de uma grande desobediência civil. As<br />

razões que se alegaram em seu momento eram muito diferentes às que se dão hoje contra as vacinas.<br />

(Para começar, vacinar às pessoas antes <strong>da</strong> teoria do estudo dos micróbios suportava todo tipo de<br />

complicações que já não existem hoje. Pensem nas enfermi<strong>da</strong>des que se transmitem hoje ao reutilizar


agulhas). E incluí essa pequena porção do debate histórico apenas para representar a época, não para<br />

dizer na<strong>da</strong> sobre o debate moderno.<br />

Se em 1863 podia haver um duque que lutasse pela abolição <strong>da</strong> nobreza, é algo que eu não posso<br />

saber. Em qualquer caso, não sei se Robert teria estado contente com o ritmo <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças na Inglaterra.<br />

Hoje aos lordes não os julga mais a Câmara dos Lordes; já não têm poder de vetar as leis aprova<strong>da</strong>s pela<br />

Câmara dos Comuns; e, só demoraram uns poucos séculos em chegar a esse ponto.<br />

Oliver pede “azeite de carvão” quando o metem no cárcere. Chamá-lo assim é um pouco atrevido por<br />

minha parte. Nos Estados Unidos o conhecemos como “querosene”. No Reino Unido o chamam<br />

“parafina”. Utilizar este último término me parecia confuso para os leitores jovens que associam a<br />

parafina com a substância de cera que se usa hoje em dia nas manicures. Na déca<strong>da</strong> de 1860, a parafina/<br />

querosene/ azeite de carvão era tão novo que ain<strong>da</strong> não tinha passado às unhas. A substância se descrevia<br />

como “azeite de carvão”. Neste caso, decidi tomar essa liber<strong>da</strong>de e optar por um nome pelo qual<br />

poderiam havê-lo chamado nessa época e que não confundiria a ninguém.<br />

Obrigado


PRIMEIRO CAPÍTULO DE: A VANTAGEM DA<br />

HERDEIRA<br />

Cambridgeshire, Inglaterra, 1867<br />

A MAIORIA DOS NÚMEROS que a senhorita Jane Vitória<br />

Fairfield tinha encontrado em sua vi<strong>da</strong> tinham resultado inofensivos. Por exemplo, a costureira que lhe<br />

provava um vestido a tinha cravado sete vezes ao colocar quarenta e três alfinetes, mas a dor tinha<br />

desaparecido logo. Os doze buracos de seu espartilho eram um inferno, sim, mas um inferno necessário;<br />

sem eles, não poderia reduzir sua cintura de um contorno terrível de trinta e seis polega<strong>da</strong>s a outro,<br />

também terrível, de trinta e uma.<br />

O dois não era um número espantoso, nem sequer referido ao número <strong>da</strong>s irmãs Johnson que estavam<br />

atrás dela vendo a costureira cravar com alfinetes o vestido à figura tão pouco elegante de Jane.<br />

Nem sequer embora as irmãs tivessem soltado risinhos nervosos ao menos seis vezes na última meia<br />

hora. Não, esses números eram meramente irritantes… mosquitos aos quais se podia espantar com um<br />

leque banhado em ouro.<br />

Não, todos os problemas de Jane se podiam expressar com dois números diferentes a esses. O<br />

primeiro era cem mil, e era um veneno absoluto.<br />

Respirou tão profun<strong>da</strong>mente como lhe permitia o espartilho e saudou com uma inclinação de cabeça à<br />

senhorita Geraldine e à senhorita Genevieve Johnson. Aquelas jovens não podiam fazer na<strong>da</strong> errado aos<br />

olhos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Foram embeleza<strong>da</strong>s com vestidos de dia quase idênticos; um de musselina azul e o<br />

outro verde pálido. Levavam leques idênticos, ambos com cenas bucólicas pinta<strong>da</strong>s. As duas eram<br />

bonitas ao estilo mais tópico de boneca de porcelana <strong>da</strong> China: olhos azul Wedgwood e cabelo loiro<br />

claro que se frisava formando cachos de cabelo brilhantes. O contorno de suas cinturas era muito inferior<br />

às vinte polega<strong>da</strong>s. O único modo de distinguir às irmãs era que Geraldine Johnson tinha um lunar<br />

perfeitamente colocado e perfeitamente natural na bochecha direita e Genevieve tinha outro igualmente<br />

perfeito na esquer<strong>da</strong>.<br />

As primeiras semanas depois de conhecer Jane tinham sido amáveis com ela.<br />

Jane suspeitava que deviam ser bastante agradáveis quando não as pressionavam até limites extremos.<br />

Mas Jane tinha um talento para empurrar às garotas amáveis a deixar de sê-lo.<br />

A costureira colocou o último alfinete.<br />

– Aqui está – anunciou. – Agora olhe-se no espelho e me diga se quer trocar algo, mover parte <strong>da</strong>s<br />

ren<strong>da</strong>s, talvez, ou utilizar menos.<br />

Pobre senhora Sandeston! Pronunciava aquelas palavras igual falaria do tempo um homem a quem<br />

fossem pendurar essa tarde. Com melancolia, como se a ideia de menos ren<strong>da</strong>s fosse um luxo, algo que<br />

apenas conheceria graças a um extraordinário e improvável ato explícito de clemência.


Jane caminhou para frente e observou o efeito de seu novo vestido. Nem sequer teve que fingir um<br />

sorriso, pois este se estendeu por seu rosto como manteiga derreti<strong>da</strong> sobre pão quente. O vestido era<br />

odioso. Ver<strong>da</strong>deiramente odioso. Nunca antes se investiu tanto dinheiro com tão pouco gosto. Olhou sua<br />

imagem no espelho com regozijo. A imagem lhe devolveu o olhar: cabelo moreno, olhos escuros,<br />

coquetes e misteriosos.<br />

– O que pensam? – perguntou, voltando-se. – Deveria ter mais ren<strong>da</strong>s?<br />

A atormenta<strong>da</strong> senhora Sandeston lançou um gemido a seus pés.<br />

Tinha motivos. O vestido mostrava já três tipos diferentes de ren<strong>da</strong>s. Jar<strong>da</strong>s e jar<strong>da</strong>s de gaze azul<br />

rodeavam a cintura formando on<strong>da</strong>s grossas. Uma peça fina de ren<strong>da</strong>s belga marcava o decote e um<br />

chantilly negro com um desenho de flores criava manchas negras ao longo <strong>da</strong>s mangas. O tecido era uma<br />

bela se<strong>da</strong> estampa<strong>da</strong>, mas não se veria muito debaixo do polido de ren<strong>da</strong>s.<br />

O vestido era uma abominação de ren<strong>da</strong>s e Jane adorava.<br />

Supunha que uma ver<strong>da</strong>deira amiga lhe haveria dito que tirasse to<strong>da</strong> a ren<strong>da</strong>s.<br />

Genevieve assentiu.<br />

– Mais ren<strong>da</strong>s. Definitivamente, acredito que necessita mais. Um quarto tipo, possivelmente?<br />

Santo céu! Jane não sabia onde ia pôr mais ren<strong>da</strong>s.<br />

– Um cinturão engenhoso de ren<strong>da</strong>s? – insinuou Geraldine.<br />

Uma curiosa forma de amizade, a que compartilhava Jane com as gêmeas Johnson. Eram bonitas por<br />

seu bom gosto; em consequência, nunca falhavam ao guiar mal a Jane. Mas o faziam com tanta<br />

amabili<strong>da</strong>de, que era quase um prazer que rissem dela.<br />

E como Jane queria que a aconselhassem errado, apreciava seus esforços.<br />

Elas mentiam a Jane, que a sua vez mentia. E posto que Jane queria ser objeto de mofa, o acerto<br />

funcionava maravilhosamente para as três.<br />

Às vezes Jane se perguntava como seria a relação se as três fossem sinceras. Se as Johnson poderiam<br />

converter-se em amigas de ver<strong>da</strong>de em vez de ser inimizades encantadoras e educa<strong>da</strong>s.<br />

Geraldine olhou o vestido e assentiu com decisão.<br />

– Apoio plenamente o cinturão de ren<strong>da</strong>s. Daria ao vestido um ar de indefinível digni<strong>da</strong>de de que<br />

carece neste momento.<br />

A senhora Sandeston emitiu um som estrangulado.<br />

Jane apenas se perguntava às vezes se podiam ser amigas. Normalmente recor<strong>da</strong>va as razões pelas<br />

quais não podia ter amigas de ver<strong>da</strong>de.<br />

As cem mil razões.<br />

Por isso assentiu às sugestões horríveis <strong>da</strong>s irmãs.<br />

– O que lhes parece essa tira de ren<strong>da</strong>s maltês que vimos antes… o dourado com as condecorações?<br />

– Certamente – assentiu Geraldine. – O maltês.<br />

As irmãs se olharam por cima de seus leques. As suas eram olha<strong>da</strong>s ardilosas que diziam claramente:<br />

“vamos ver o que podemos conseguir que faça hoje a herdeira <strong>da</strong>s plumas”.<br />

– Senhorita Fairfield – a senhora Sandeston juntou as mãos imitando sem pensar o gesto de rezar. – O<br />

suplico. Tenha em conta que se pode obter um efeito muito superior empregando menos enfeites. Uma


onita peça de ren<strong>da</strong>s é a peça central de um vestido formoso, deslumbrante em sua simplici<strong>da</strong>de. Mas<br />

muitas ren<strong>da</strong>s...<br />

– Muito pouco e ninguém saberá o que tem a oferecer – interveio Genevieve com calma. – Geraldine<br />

e eu só temos dez mil libras ca<strong>da</strong> uma e nossos vestidos devem refletir isso.<br />

Geraldine apertou seu leque.<br />

– Assim é – murmurou.<br />

– Mas você, Jane, tem uma dote de cem mil libras esterlinas. Tem que procurar que a gente saiba.<br />

Na<strong>da</strong> expressa tanto a riqueza como as ren<strong>da</strong>s.<br />

– E na<strong>da</strong> expressa tanto a ren<strong>da</strong>s como… mais ren<strong>da</strong>s – acrescentou Geraldine.<br />

As irmãs trocaram outro olhar.<br />

Jane sorriu.<br />

– Obrigado. Não sei o que faria sem vocês. Fostes muito boas comigo, ensinando-me isso tudo. Eu<br />

não sei o que está na mo<strong>da</strong> nem que mensagem transmite minha roupa. Sem seus conselhos, com certeza<br />

faria tudo errado.<br />

A senhora Sandeston fez um ruído estrangulado com a garganta, mas não disse na<strong>da</strong> mais.<br />

Cem mil libras esterlinas. Essa era uma <strong>da</strong>s razões pelas quais Jane estava ali, observando aquelas<br />

mulheres encantadoras e perfeitas trocarem sorrisos maliciosos que acreditavam que ela não<br />

compreendia. Inclinaram-se uma para a outra e sussurraram, com as bocas ocultas detrás dos leques, e<br />

logo a olharam e riram ao uníssono. Consideravam-na um bufão carente de bom gosto, sentido comum e<br />

razão.<br />

Isso não lhe vinha na<strong>da</strong> mal.<br />

Não lhe doía saber que a chamavam amiga em sua cara e depois contavam suas estupidezes a todos<br />

que viam. Não lhe doía que a empurrassem a usar mais e mais ren<strong>da</strong>s, mais joias, mais bijuteria, apenas<br />

para divertir-se mais. Não lhe importava que to<strong>da</strong> a população de Cambridge risse dela.<br />

Não podia lhe importar. Depois de tudo, Jane tinha escolhido aquilo.<br />

Sorriu-lhes como se seus risos fossem amostras de amizade sincera.<br />

– O maltês.<br />

Cem mil libras. Havia pesos mais esmagadores que o de cem mil libras esterlinas.<br />

– Tem que te pôr esse vestido na próxima quarta-feira – sugeriu Geraldine. – Está convi<strong>da</strong><strong>da</strong> ao jantar<br />

do marquês do Bradenton, ver<strong>da</strong>de?<br />

Insistimos – as irmãs moveram os leques acima e abaixo, acima e abaixo.<br />

Jane sorriu.<br />

– É obvio. Não perderia isso por na<strong>da</strong> do mundo.<br />

– Haverá um homem novo. Um filho de um duque. Nascido fora do casamento, desgraça<strong>da</strong>mente, mas<br />

reconhecido. É quase tão bom como um autêntico.<br />

Maldição! Jane odiava conhecer homens novos e o filho bastardo de um duque soava muito perigoso.<br />

Teria uma alta opinião de si mesmo e uma baixa opinião de sua carteira. Era precisamente o tipo de<br />

homem que veria as cem mil libras Jane e decidiria que podia lhe perdoar to<strong>da</strong>s aquelas ren<strong>da</strong>s. Esse<br />

tipo de homem perdoaria muitos defeitos se levasse o dote dela na sua conta bancária.


– Oh? – perguntou sem comprometer-se.<br />

– O senhor Oliver Marshall – disse Genevieve. – O vi na rua.<br />

Não é…<br />

Sua irmã lhe deu uma ligeira cotovela<strong>da</strong> e Genevieve pigarreou.<br />

– Quero dizer que parece bastante elegante. Seus óculos são muito distintos e seu cabelo é muito…<br />

brilhante e… acobreado.<br />

Ao Jane não custou na<strong>da</strong> imaginar-se a aquele espécime aparentado com duques. Teria barriga.<br />

Usaria coletes ridículos e um relógio de bolso que consultaria continuamente. Estaria orgulhoso de seus<br />

privilégios e amargurado com o mundo por ter nascido fora do casamento.<br />

– Seria perfeito para ti, Jane – declarou Geraldine. – É obvio, como nossos dotes são menores, não<br />

lhe interessaremos.<br />

Jane forçou um sorriso.<br />

– Não sei o que faria sem vocês – disse com sinceri<strong>da</strong>de. – Se não cui<strong>da</strong>ssem de mim, poderia…<br />

Sem elas dedicando-se a convertê-la no bobo <strong>da</strong> corte, Jane podia um dia impressionar um homem,<br />

apesar de seus esforços pelo contrário. E isso seria um desastre.<br />

– Cui<strong>da</strong>m-me tão bem que tenho a sensação de que são minhas irmãs – disse. E pensou nas meioirmãs<br />

de algum conto de fa<strong>da</strong>s horripilante.<br />

– Nós sentimos o mesmo – Geraldine lhe sorriu. – É como se fosse nossa irmã.<br />

Houve quase tantos sorrisos na sala como ren<strong>da</strong>s havia no vestido. Jane pediu perdão em silencio por<br />

sua mentira.<br />

Aquelas mulheres não eram em na<strong>da</strong> como sua irmã. Dizer isso era insultar o nome <strong>da</strong> irmã. E se<br />

havia algo sagrado para Jane, era isso. Tinha uma irmã, uma irmã pela qual faria qualquer coisa. Por<br />

Emily mentiria, enganaria e compraria um vestido com quatro tipos de ren<strong>da</strong>s.<br />

Cem mil libras não eram um grande peso. Mas se uma senhorita queria permanecer solteira, se<br />

precisava seguir com sua irmã até que esta fosse maior de i<strong>da</strong>de e pudesse abandonar a casa do tutor <strong>da</strong>s<br />

duas, esse número se convertia em uma impossibili<strong>da</strong>de.<br />

Quase tanto como quatrocentos e oitenta, o número de dias que Jane tinha que permanecer solteira.<br />

Quatrocentos e oitenta dias até que sua irmã fosse maior de i<strong>da</strong>de. Então poderia abandonar a casa e<br />

Jane, a que lhe permitiam seguir ali com a condição de que se casasse com o primeiro bom partido que o<br />

pedisse, poderia deixar de fingir. Emily e ela seriam livres por fim.<br />

Jane estava disposta a sorrir, a levar jar<strong>da</strong>s e jar<strong>da</strong>s de ren<strong>da</strong>s e Napoleão Bonaparte a sua irmã se<br />

assim podia protegê-la.<br />

Mas o que tinha que fazer nos próximos quatrocentos e oitenta dias era procurar um marido, buscá-lo<br />

assiduamente e não casar-se.<br />

Quatrocentos e oitenta dias nos quais não se atrevia a casar-se e cem mil libras esterlinas para o<br />

homem que a desposasse.<br />

Essas duas cifras descreviam as dimensões de sua prisão.<br />

Por isso Jane sorriu de novo a Geraldine, agradeci<strong>da</strong> por seu conselho e porque a aconselhasse mal<br />

uma vez mais. Sorriu, e seu sorriso foi sincero.


A SÉRIE OS IRMÃOS SINISTROS<br />

A Paixão <strong>da</strong> Governanta<br />

A <strong>Guerra</strong> <strong>da</strong> <strong>Duquesa</strong><br />

A Vantagem <strong>da</strong> Herdeira<br />

A Conspiração <strong>da</strong> Condessa<br />

O Escân<strong>da</strong>lo <strong>da</strong> Sufragista


Courtney Milan: A <strong>Guerra</strong> <strong>da</strong> <strong>Duquesa</strong><br />

Título original: “The Duchess War”<br />

©2<strong>01</strong>3 Courtney Milan<br />

A <strong>Guerra</strong> <strong>da</strong> <strong>Duquesa</strong> (Os Irmãos Sinistros 1): Courtney Milan<br />

Tradução e Revisão: GTR<br />

Formatação Epub e Mobi: Starbooksdigital


{1}<br />

Hell - Inferno

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