A dança da mente : Pina Bausch e psicanálise - pucrs
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A DANÇA DA MENTE<br />
PINA BAUSCH E PSICANÁLISE<br />
Maria Tereza Furtado Travi
Chanceler<br />
Dom Dadeus Grings<br />
Reitor<br />
Joaquim Clotet<br />
Vice-Reitor<br />
Evilázio Teixeira<br />
Conselho Editorial<br />
Ana Maria Lisboa de Mello<br />
Bettina Steren dos Santos<br />
Eduardo Campos Pellan<strong>da</strong><br />
Elaine Turk Faria<br />
Érico João Hammes<br />
Gilberto Keller de Andrade<br />
Helenita Rosa Franco<br />
Ir. Armando Luiz Bortolini<br />
Jane Rita Caetano <strong>da</strong> Silveira<br />
Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente<br />
Jurandir Malerba<br />
Lauro Kopper Filho<br />
Luciano Klöckner<br />
Marília Costa Morosini<br />
Nuncia Maria S. de Constantino<br />
Renato Tetelbom Stein<br />
Ruth Maria Chittó Gauer<br />
EDIPUCRS<br />
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor<br />
Jorge Campos <strong>da</strong> Costa – Editor-Chefe
Maria Tereza Furtado Travi<br />
A DANÇA DA MENTE<br />
PINA BAUSCH E PSICANÁLISE<br />
Porto Alegre<br />
2012
© EDIPUCRS, 2012<br />
Rodrigo Valls<br />
Patrícia Aragão<br />
Rodrigo Valls<br />
T782d Travi, Maria Tereza Furtado<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> : <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e <strong>psicanálise</strong> [recurso<br />
eletrônico] / Maria Tereza Furtado Travi. – Dados<br />
eletrônicos – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2011.<br />
69 p.<br />
ISBN 978-85-397-0152-0<br />
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader<br />
Publicação eletrônica<br />
Modo de acesso: World Wide Web:<br />
<br />
1. Dança. 2. Psicanálise. 3. <strong>Bausch</strong>, <strong>Pina</strong> – Crítica e<br />
Interpretação. 4. Freud, Sigmund – Crítica e Interpretação.<br />
I. Título.<br />
CDD 793.32<br />
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibi<strong>da</strong> a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especial<strong>mente</strong> por sistemas gráficos, microfílmicos,<br />
fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Ve<strong>da</strong><strong>da</strong> a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra<br />
em qualquer sistema de processamento de <strong>da</strong>dos. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas <strong>da</strong> obra e à sua editoração. A violação dos direitos<br />
autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjunta<strong>mente</strong> com busca e apreensão e indenizações diversas<br />
(arts. 101 a 110 <strong>da</strong> Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
AGRADECIMENTOS<br />
Meus sinceros agradecimentos a:<br />
Cibele Sastre<br />
Cátia Olivier Mello<br />
Minha família, em especial à minha mãe, Nina
A todos os coautores deste trabalho,<br />
que colaboraram para fazer de mim o que<br />
sou hoje.
Minha vi<strong>da</strong> começa pelo meio como eu sempre<br />
começo pelo meio, aí vai o meio. Depois o<br />
princípio aparecerá ou não.<br />
Clarice Lispector<br />
As coisas mais belas estão quase sempre<br />
escondi<strong>da</strong>s. É preciso apanhá-las e cultivá-las e<br />
deixá-las crescer bem devagar.<br />
<strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>
SUMÁRIO<br />
APRESENTAÇÃO .................................................................... 9<br />
1 A DANÇA DE PINA BAUSCH ............................................ 13<br />
1.1 A Dança-teatro Alemã .................................................... 13<br />
1.2 Uma observadora ........................................................... 19<br />
1.3 Wuppertal Tanztheater e o Processo de Criação<br />
<strong>Bausch</strong>iano ............................................................................. 22<br />
1.3.1 As perguntas que buscam o sujeito .......................... 22<br />
1.3.2 A Repetição .................................................................. 27<br />
2 A PSICANÁLISE DE FREUD ......................................... 33<br />
2.1 Freud tenta explicar ........................................................ 33<br />
2.2 O Processo Psicanalítico ................................................ 38<br />
2.3 Outros Conceitos Importantes ....................................... 42<br />
3 METODOLOGIA ................................................................ 46<br />
4 MENTES BRILHANTES ................................................... 49<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................. 61<br />
REFERÊNCIAS ..................................................................... 64
APRESENTAÇÃO<br />
A arte e o inconsciente sempre foram áreas que despertaram meu<br />
interesse. Talvez por isso tenha buscado, inicial<strong>mente</strong>, na minha vi<strong>da</strong><br />
profissional, a graduação de Comunicação Social, com especialização<br />
em Publici<strong>da</strong>de e Propagan<strong>da</strong>. Durante to<strong>da</strong> a facul<strong>da</strong>de, ouvi que boa<br />
propagan<strong>da</strong> é aquela que busca atingir o inconsciente do consumidor,<br />
que surpreende por traduzir seus desejos mais escondidos, ou até<br />
mesmo proibidos.<br />
Depois de três anos trabalhando neste meio, deixei a Publici<strong>da</strong>de<br />
e cheguei à Dança. Mais especifica<strong>mente</strong> à Dança Contemporânea. O<br />
que me atraiu nessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de <strong><strong>da</strong>nça</strong> foi justa<strong>mente</strong> a possibili<strong>da</strong>de<br />
de o bailarino exteriorizar seus sentimentos de forma mais livre e<br />
criativa. A Dança Contemporânea, ao meu olhar, considera o corpo em<br />
sua totali<strong>da</strong>de, trata o bailarino como ser humano complexo, com um<br />
conjunto de experiências multidisciplinares, com um corpo híbrido em<br />
teorias e vivências.<br />
A concepção de corpo mais comu<strong>mente</strong> encontra<strong>da</strong> em práticas de<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong> durante muito tempo foi um reflexo do corpo construído a partir dos<br />
valores renascentistas: um corpo técnico, treinado, clássico, individual e<br />
virtuoso. O “corpo objeto” era considerado um mero instrumento <strong>da</strong> arte,<br />
o qual era adestrado, através de um treino rigoroso, com a intenção de<br />
criar uma imagem de perfeição, de acordo com a vontade do professor e/<br />
ou coreógrafo, um corpo engessado ou em uma “camisa de força”.<br />
Desde o surgimento <strong>da</strong> Dança Moderna e Contemporânea, esse<br />
conceito de corpo <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte vem se modificando, e houve mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>s<br />
significativas na relação coreógrafo/bailarino. Hoje, o corpo é ca<strong>da</strong> vez<br />
mais considerado um retrato de inúmeras influências, sejam elas culturais,<br />
sociais, físicas ou emocionais. O bailarino não é mais considerado um<br />
mero “objeto”, e sim uma pessoa, com história e valores próprios, com um<br />
imaginário e emoções peculiares.
10<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
Essa concepção de “corpo único”, física e emocional<strong>mente</strong> falando,<br />
passou a ser uma importante ferramenta para a criação coreográfica. Isto<br />
é, os coreógrafos passaram a explorar a história e o imaginário pessoal dos<br />
bailarinos, transformando esse material em arte, mais especifica<strong>mente</strong>,<br />
em movimento. A <strong><strong>da</strong>nça</strong> adquiriu a possibili<strong>da</strong>de de ser coreografa<strong>da</strong> em<br />
conjunto (bailarino e coreógrafo), como uma reconstrução <strong>da</strong> história dos<br />
dois, tendo, nesse processo, uma <strong>da</strong>s fontes de sua riqueza. As vivências<br />
cruzam-se, somam-se, dialogam tecendo uma trama que vira <strong><strong>da</strong>nça</strong>.<br />
Segundo Mônica Dantas (2005, p. 34), “a arte contemporânea tem por<br />
singulari<strong>da</strong>de embaralhar os limites tradicionais <strong>da</strong>s técnicas...”. Penso que a<br />
Dança Contemporânea, ao diluir as fronteiras entre as disciplinas artísticas,<br />
cria um novo papel para o bailarino. Esse novo papel, conforme afirma Dantas<br />
(2005, p. 34), reflete-se, em um primeiro momento, na nomenclatura:<br />
... poderíamos expandir a ideia de <strong><strong>da</strong>nça</strong>rino<br />
contemporâneo para a de intérprete ou performer, uma<br />
vez que esses artistas são solicitados a atuar de maneiras<br />
diversas, segundo o contexto de ca<strong>da</strong> coreografia.<br />
Essas diversas formas de atuar solicita<strong>da</strong>s ao intérprete <strong>da</strong> Dança<br />
Contemporânea trazem a necessi<strong>da</strong>de de uma formação com novas<br />
abor<strong>da</strong>gens: teatro, música, canto, artes marciais; além de diferentes técnicas<br />
de <strong><strong>da</strong>nça</strong> e estudo com diferentes coreógrafos. To<strong>da</strong>s essas práticas criam<br />
o corpo <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte contemporâneo. Um corpo eclético ou “corpos de aluguel”<br />
(DANTAS, 2005, p. 35).<br />
Além disso, esse novo papel do intérprete de Dança Contemporânea<br />
reflete-se também na situação de cocriador <strong>da</strong> coreografia. O coreógrafo<br />
de vanguar<strong>da</strong> não considera seus <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos apenas como receptáculos<br />
de ideias e movimentos, mas sim como colaboradores <strong>da</strong> composição<br />
coreográfica, como coautores.<br />
Cabe ressaltar que a Dança Contemporânea - e esse é outro fator<br />
de meu interesse - não separa o bailarino <strong>da</strong> sua condição de ser humano,<br />
impregnado de histórias, conflitos, afetivi<strong>da</strong>des e padrões mentais. São<br />
esses elementos subjetivos que, manifestados predominante<strong>mente</strong> em<br />
linguagem não verbal, servirão de matéria-prima para a composição<br />
coreográfica. O coreógrafo, ao estimular o bailarino a manifestar a<br />
sua memória corporal e afetiva, estará acessando a história pessoal<br />
<strong>da</strong>quele intérprete. Coreógrafo e bailarino devem estar sempre atentos<br />
a este processo de “tempestade mental e corporal”, para reconhecer
11<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
os movimentos e as imagens que vêm à tona e podem servir para a<br />
composição final. Assim, mais do que nunca, a <strong><strong>da</strong>nça</strong> assume o papel de<br />
representar, de simbolizar o universo do ser humano.<br />
Em 2006, conheci o trabalho <strong>da</strong> coreógrafa alemã <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e de<br />
sua companhia, a Wuppertal Tanztheater. <strong>Pina</strong> é considera<strong>da</strong> um ícone <strong>da</strong><br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro, pois criou um processo de composição coreográfica peculiar<br />
e possuía uma incrível capaci<strong>da</strong>de de transformar o individual em universal.<br />
Líder de uma notável corrente artística, <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> dirigiu o Wuppertal<br />
Tanztheater na Alemanha de 1973 a 2009. A partir do material humano que<br />
possuía (seus atores-bailarinos de trinta ou quarenta anos de i<strong>da</strong>de), <strong>Pina</strong><br />
desenvolveu seus trabalhos desconstruindo pequenos gestos cotidianos,<br />
partindo <strong>da</strong> repetição, transformando em pequenas células de movimento,<br />
depois cenas, gerando uma grande composição-espetáculo.<br />
Acompanhando o trabalho <strong>da</strong> coreógrafa, através de leituras,<br />
vídeos e aulas com bailarinos de sua companhia, comecei a investigar se<br />
existem semelhanças entre o processo criativo bauschiano e o processo<br />
psicanalítico, especial<strong>mente</strong> no que se refere ao acesso ao inconsciente,<br />
através <strong>da</strong> associação livre. Não foquei o processo de análise dos atos<br />
falhos e dos sonhos, formas também considera<strong>da</strong>s portas ao inconsciente.<br />
Fiz terapia durante seis anos. Meus pais trabalham nesta área.<br />
Comecei a perceber uma série de fatores comuns na forma como <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong><br />
trabalhava com seus bailarinos e o terapeuta com seus pacientes. Porém,<br />
ca<strong>da</strong> um com finali<strong>da</strong>des distintas: <strong>Pina</strong> buscava a arte; o terapeuta, a saúde<br />
emocional, através do autoconhecimento. Como bailarina, identifiquei-me<br />
com a forma de <strong>Pina</strong> ver a <strong><strong>da</strong>nça</strong>, o corpo <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte, o sujeito que <strong><strong>da</strong>nça</strong>.<br />
Um estranhamento, um “incômodo” comum que senti na terapia e na <strong><strong>da</strong>nça</strong>teatro<br />
despertaram meu interesse em estu<strong>da</strong>r essas duas áreas. Revelo<br />
também que, talvez, por identificação com estas figuras importantes do meu<br />
desenvolvimento quis buscar afini<strong>da</strong>des entre o que eu amo - a <strong><strong>da</strong>nça</strong> - e<br />
o que meus pais fazem. Valorizando suas ativi<strong>da</strong>des, aproximo-me deles,<br />
usando <strong>Pina</strong> como parceira desse processo.<br />
A Psicanálise, ciência que estu<strong>da</strong> o funcionamento <strong>da</strong> <strong>mente</strong> e dos<br />
problemas mentais, foi cria<strong>da</strong> por Sigmund Freud no início do século XIX.<br />
Freud constatou que os fenômenos mentais não poderiam ser explicados<br />
so<strong>mente</strong> através <strong>da</strong> consciência. Havia cadeias de associações repletas<br />
de lacunas que, pressupôs, poderiam conter lembranças reprimi<strong>da</strong>s. Essa<br />
constatação gerou grandes polêmicas na época, pois a Medicina era<br />
quase que exclusiva<strong>mente</strong> volta<strong>da</strong> aos aspectos orgânicos e biológicos
12<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
do ser humano. E principal<strong>mente</strong>: como aceitar o fato de que não<br />
controlamos nossa <strong>mente</strong>? Que não temos acesso a espaços<br />
obscuros, que não sabemos por que sentimos ou fazemos inúmeras<br />
coisas em nossas vi<strong>da</strong>s. É como <strong><strong>da</strong>nça</strong>r em um palco sem iluminação,<br />
ou com pequenos focos no escuro. Daí tantos tombos e saltos que<br />
machucam, hematomas na alma.<br />
Este trabalho relaciona duas áreas: a <strong><strong>da</strong>nça</strong> e a Psicanálise;<br />
sendo a primeira seu foco principal, tendo especifica<strong>mente</strong> como objeto<br />
de estudo o processo de criação bauschiano. O problema <strong>da</strong> presente<br />
pesquisa é: existe semelhança entre o processo criativo bauschiano e<br />
o processo psicanalítico no que se refere ao acesso ao inconsciente<br />
através <strong>da</strong> associação livre? Procuro, através de conceitos-chave <strong>da</strong><br />
Psicanálise – como visão de sujeito, repetição e associação livre –<br />
investigar o processo criativo de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>, estabelecendo relações e<br />
traçando possíveis semelhanças entre as duas áreas estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />
Inicial<strong>mente</strong>, faço uma breve abor<strong>da</strong>gem sobre a história <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong><br />
e o surgimento <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro, com a finali<strong>da</strong>de de contextualizar o<br />
período em que <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> iniciou seus estudos. Em segui<strong>da</strong>, abordo o<br />
processo de criação bauschiano e elementos relacionados ao Wuppertal<br />
Tanztheater. No capítulo seguinte, transito na área <strong>da</strong> Psicanálise,<br />
fazendo um breve histórico do seu surgimento e de seus principais<br />
conceitos, <strong>da</strong>ndo ênfase à associação livre como método de trabalho.<br />
Por fim, busco estabelecer as relações entre as duas áreas<br />
estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s, com o objetivo de investigar se existe semelhança entre o<br />
processo criativo bauschiano e o processo psicanalítico no que se refere<br />
ao acesso ao inconsciente através <strong>da</strong> associação livre. No decorrer <strong>da</strong><br />
pesquisa, percebi que, além <strong>da</strong> associação livre, outros elementos <strong>da</strong><br />
Psicanálise podem estar relacionados aos procedimentos de criação<br />
de <strong>Bausch</strong>. Aspectos como transferência, resistência, sublimação,<br />
visão de sujeito e repetição são também fatores que aproximam as<br />
duas áreas estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s.
1 A DANÇA DE PINA BAUSCH<br />
1.1 A DANÇA-TEATRO ALEMÃ<br />
A história do teatro pode ser traça<strong>da</strong> desde o início<br />
<strong>da</strong> civilização europeia... Ele tem sempre sido<br />
parte de, e protegi<strong>da</strong> por, uma cultura basea<strong>da</strong> na<br />
linguagem verbal; uma cultura que por muito tempo<br />
estava convenci<strong>da</strong> de que tudo, ou quase tudo,<br />
poderia ser dito com palavras. A história <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong><br />
é muito mais difícil de se juntar, devido ao fato de<br />
que <strong><strong>da</strong>nça</strong> não pode ser grava<strong>da</strong> na escrita. [...]<br />
[Hoje] há ain<strong>da</strong> a tendência de se considerar atores<br />
como os intelectuais do palco, e <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos como<br />
seres espontâneos capazes de entrar em contato<br />
com as forças escondi<strong>da</strong>s do universo. Nossas<br />
<strong>mente</strong>s ain<strong>da</strong> se apegam à ideia de que dentro de<br />
ca<strong>da</strong> homem há uma divisão entre <strong>mente</strong> e corpo...<br />
(BAUSCH, apud FERNANDES, 2007, p. 27).<br />
Desde os primórdios <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, a necessi<strong>da</strong>de de<br />
comunicação acompanha o desenvolvimento do ser humano. Antes<br />
mesmo de pronunciar as primeiras palavras, o homem fazia sons e<br />
gestos para expressar ideias e emoções. Segundo Eliana Camina<strong>da</strong><br />
(1999, p. 21), “a linguagem gestual mimética é a mais antiga forma<br />
de comunicação do ser humano, presente há milhares de anos em<br />
suas primeiras manifestações”.<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong>, em sua forma mais elementar, era realiza<strong>da</strong> com<br />
movimentos que imitavam as forças <strong>da</strong> natureza, as quais eram<br />
considera<strong>da</strong>s mais poderosas do que os homens. Ao praticar esses<br />
movimentos, o homem acreditava tomar posse desses poderes.<br />
Dessa forma, pode-se afirmar que a <strong><strong>da</strong>nça</strong>, no seu primórdio, foi uma<br />
manifestação naturalista. As primeiras manifestações de <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong>tam<br />
do período paleolítico, 1.000.000 anos a.C., com as <strong><strong>da</strong>nça</strong>s circulares<br />
sem contato.<br />
A partir <strong>da</strong>í, o homem passou a <strong><strong>da</strong>nça</strong>r para homenagear a<br />
natureza, agra<strong>da</strong>r aos deuses, festejar a colheita, comemorar a caça<br />
bem-sucedi<strong>da</strong>, etc. A <strong><strong>da</strong>nça</strong> passou a ter inúmeros significados e
14<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
diversas motivações. Surgiram as <strong><strong>da</strong>nça</strong>s lunares, as <strong><strong>da</strong>nça</strong>s fúnebres, as<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>s com máscaras, as <strong><strong>da</strong>nça</strong>s religiosas, as <strong><strong>da</strong>nça</strong>s de iniciação, as<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>s guerreiras, entre outras. To<strong>da</strong>via, independente<strong>mente</strong> do tipo e <strong>da</strong><br />
época, to<strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> nasce <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de expressão, de comunicação,<br />
de algo consciente ou inconsciente.<br />
É importante salientar que não é foco desta pesquisa descrever<br />
sobre o trabalho de ca<strong>da</strong> coreógrafo ou teórico envolvido na história <strong>da</strong><br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>. Porém, a seguir, irei mencionar alguns nomes que julgo importantes<br />
para oferecer um panorama, buscando esclarecer e fun<strong>da</strong>mentar este<br />
estudo. Cabe ressaltar ain<strong>da</strong> que o fato de discorrer mais sobre uns do<br />
que sobre outros não tem a intenção de <strong>da</strong>r mais ou menos valor sobre<br />
eles dentro <strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>.<br />
Para Denise Siqueira, a <strong><strong>da</strong>nça</strong> pode ser defini<strong>da</strong> como “um sistema<br />
simbólico composto de gestos e movimentos cultural<strong>mente</strong> construídos<br />
que faz parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des desde os tempos arcaicos” (2006, p.<br />
93). Tal sistema tem o objetivo de transmitir mensagens <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s<br />
esferas: artística, estética, religiosa ou militar. Em se tratando <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong><br />
como prática social e de diversão, é na Renascença italiana que se pode<br />
traçar o início do Ballet Clássico, quando esse ain<strong>da</strong> era uma <strong><strong>da</strong>nça</strong><br />
realiza<strong>da</strong> nos salões <strong>da</strong> corte, com acompanhamento musical ao vivo e<br />
luxuosos figurinos. Na França de Luis XIV, o Ballet passou dos salões<br />
para o teatro, desenvolvendo vocabulário e treinamento específicos, bem<br />
como coreografias monta<strong>da</strong>s e executa<strong>da</strong>s por bailarinos profissionais. A<br />
partir <strong>da</strong>í, inúmeros artistas, músicos e compositores contribuíram para<br />
o crescimento do Ballet, com a criação de passos, acessórios, figurinos,<br />
nomenclatura, metodologia de ensino e balés de repertório.<br />
No final do século XIX, o Ballet começa a sofrer uma que<strong>da</strong> de sua<br />
populari<strong>da</strong>de. Nos primeiros anos do século XX, surge a Dança Moderna,<br />
tendo em Isadora Duncan, (1877-1927) nos Estados Unidos, e Rudolf<br />
Laban (1879-1958), na Europa, dois de seus principais representantes.<br />
Diante <strong>da</strong> comoção causa<strong>da</strong> pela Primeira Guerra Mundial e pela crise<br />
de 1929 em Nova Iorque, artistas de diferentes áreas buscaram exprimir<br />
em suas obras o sofrimento e o caos, bem como os esforços para superar<br />
to<strong>da</strong>s essas tragédias. Na <strong><strong>da</strong>nça</strong>, essa manifestação deu-se com Duncan,<br />
a Denishawnschool (fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1915 em Los Angeles), Martha Graham<br />
(1894-1991), Doris Humphrey (1895-1958), entre outros coreógrafos que<br />
negaram a <strong><strong>da</strong>nça</strong> clássica, em busca de novas significações e linguagens.
15<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> moderna propria<strong>mente</strong> dita se criou e se<br />
desenvolveu, do ponto de vista crítico, rejeitando a<br />
indiferença <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> clássica pelas paixões profun<strong>da</strong>s<br />
e pela história, rejeitando sua ausência de significação<br />
humana e também o código imutável de movimentos<br />
que a transformara em uma língua morta (GARAUDY,<br />
1980, p. 136).<br />
Com esse objetivo, a Dança Moderna buscou expressar<br />
intensa<strong>mente</strong> as angústias de sua época, criando novos movimentos,<br />
métodos e formas capazes de exprimi-las. Isadora Duncan chegou a se<br />
denominar inimiga do Ballet, acreditando ser a ver<strong>da</strong>deira <strong><strong>da</strong>nça</strong> aquela<br />
que leva à liber<strong>da</strong>de. São marcas registra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Dança Moderna do início<br />
do século XX: pés descalços, cabelos soltos, figurinos largos, que<strong>da</strong>s,<br />
torções do tronco, contrações, inspiração e expiração marca<strong>da</strong>s, braços<br />
soltos; enfim, liber<strong>da</strong>de de movimentação e expressão.<br />
A meu ver, a Dança Moderna representou um primeiro momento de<br />
ruptura com uma forma de <strong><strong>da</strong>nça</strong> estabeleci<strong>da</strong> e reconheci<strong>da</strong> social<strong>mente</strong>.<br />
A partir dela, muitas outras maneiras de entender a <strong><strong>da</strong>nça</strong> foram surgindo<br />
e, consequente<strong>mente</strong>, outros modos de construção do corpo <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte. Até<br />
mesmo dentro dos criadores <strong>da</strong> Dança Moderna, existiram distintas vertentes<br />
no que se refere à técnica e ao significado <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>. Segundo Carla Lima,<br />
“com a <strong><strong>da</strong>nça</strong> moderna, foi o modelo do conhecimento do corpo que mudou:<br />
nem objeto físico nem corpo biológico, mas um corpo energético, feixe de<br />
forças” (2008, p. 89).<br />
E depois <strong>da</strong> Dança Moderna? Se pensarmos, metaforica<strong>mente</strong>, o<br />
Ballet Clássico como uma gaveta que estava emperra<strong>da</strong> e foi aberta à<br />
força, espalhando tudo que havia dentro, podemos pensar que os artistas<br />
<strong>da</strong> Dança Moderna na<strong>da</strong> quiseram aproveitar do que havia caído ao chão.<br />
Desejavam o contrário <strong>da</strong>quilo tudo. Na segun<strong>da</strong> metade do século XX,<br />
alguns coreógrafos começaram a olhar para aqueles elementos ali jogados<br />
e quebrados de outro modo. Por que não reaproveitá-los, misturar coisas<br />
novas, experimentar de forma diferente?<br />
Roger Garaudy afirma que “a <strong><strong>da</strong>nça</strong>, como to<strong>da</strong>s as artes, é uma<br />
tentativa de resposta às questões coloca<strong>da</strong>s por uma época” (1980, p. 136).<br />
Segundo esse autor,<br />
após a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, frente a um novo<br />
desmoronamento dos valores, surge um questionamento
16<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> moderna, que se radicaliza durante<br />
os anos 50 e 60” (1980, p. 136).<br />
Fenômeno esse liderado nos Estados Unidos por Alwin Nikolais<br />
(1910-1993) e Merce Cunningham (1919-2009) e, na Alemanha, por Mary<br />
Wigman (1886-1973) e Kurt Jooss (1901-79); além do próprio Laban,<br />
conforme abor<strong>da</strong>rei mais adiante.<br />
A partir dos anos 50, começa a surgir a então chama<strong>da</strong> Dança<br />
Contemporânea, apoia<strong>da</strong> na crescente contaminação <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> por outras<br />
esferas <strong>da</strong> arte, tendo como resultado o surgimento de uma nova linguagem e<br />
de um novo conceito de corpo <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte. Os limites impostos por convenções<br />
e métodos fechados na <strong><strong>da</strong>nça</strong> são esgarçados. Promovem-se rupturas<br />
profun<strong>da</strong>s nas concepções <strong>da</strong> técnica corporal, favorecendo a hibridização<br />
entre os mais diversos estilos e gêneros de <strong><strong>da</strong>nça</strong>. O movimento “pósmoderno”<br />
institui-se definitiva<strong>mente</strong> e seu pluralismo atinge formas ca<strong>da</strong><br />
vez mais ricas como um mosaico que vai sendo construído aos poucos. As<br />
fronteiras entre linguagens são abandona<strong>da</strong>s e a criação anterior<strong>mente</strong> tão<br />
fixa em princípios bem definidos abre-se para uma enorme multiplici<strong>da</strong>de de<br />
experiências, em que inclusive não há a negação de correntes anteriores;<br />
mas, sim, releituras, rea<strong>da</strong>ptações, reaproveitamentos.<br />
A Dança Contemporânea resulta de apropriações de outras<br />
linguagens, outras formas de arte, sem ter compromisso com regras<br />
ou métodos específicos. Além disso, há uma mu<strong><strong>da</strong>nça</strong> na formação do<br />
bailarino no sentido de buscar um treinamento diversificado, com base em<br />
diferentes técnicas de <strong><strong>da</strong>nça</strong>, bem como em outras áreas – como teatro,<br />
ioga, pilates, artes marciais, etc. Soma-se a isso o fato de que a Dança<br />
Contemporânea estabelece uma democracia no sentido de que o corpo<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>nte não é obrigado a atender padrões físicos preestabelecidos,<br />
considerados ideais para a <strong><strong>da</strong>nça</strong>.<br />
No século XX, a <strong><strong>da</strong>nça</strong> saiu de um extremo a outro: do<br />
engessamento estético e técnico à liber<strong>da</strong>de estética<br />
<strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> em si e dos corpos que <strong><strong>da</strong>nça</strong>m. Por vezes, a<br />
noção de democratização era tão forte – todos podiam<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>r e de qualquer forma – que se perdia de vista<br />
qualquer tipo de critério de avaliação <strong>da</strong> performance dos<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos; não havia uma “melhor” forma de se fazer<br />
na<strong>da</strong>, tudo era válido e aceitável. Podíamos ver corpos<br />
treinados e corpos não treinados em performances que<br />
ocorriam em locais inusitados, distantes do tradicional<br />
teatro (BARBOSA, 2009, p. 11).
17<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
A cena contemporânea, no que se refere aos processos de criação<br />
coreográfica e às coreografias em si, também sofreu mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>s. Houve<br />
uma valorização de movimentos cotidianos, naturais, minimalistas, torções,<br />
que<strong>da</strong>s. Não existia mais a necessi<strong>da</strong>de de respeitar um biótipo, uma<br />
estética específica. O corpo <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte poderia ser feio, curvado, obeso. O<br />
importante passou a ser a expressão, a liber<strong>da</strong>de de exprimir emoções e<br />
anseios através <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>. Todos os corpos eram bem-vindos.<br />
Dessa forma, para melhor compreender o processo criativo de<br />
<strong>Bausch</strong>, julgo importante abor<strong>da</strong>r o contexto do qual a coreógrafa foi<br />
“herdeira”. Em janeiro de 1933, Adolf Hitler chega ao poder na Alemanha,<br />
que passa a ser domina<strong>da</strong> pelo Nacional Socialismo. A <strong><strong>da</strong>nça</strong> alemã torna-se<br />
impopular devido ao Nazismo, tendo no período entreguerras sua principal<br />
inspiração, <strong>da</strong>ndo origem ao movimento chamado Expressionismo. A dor<br />
e o sofrimento causados tornaram-se arte expressionista, tendo na <strong><strong>da</strong>nça</strong>teatro<br />
uma <strong>da</strong>s mais importantes formas de representação.<br />
O expressionismo nasceu de uma revolta política,<br />
intelectual e moral contra um mundo do qual os artistas<br />
pressentiam a agonia. Não era so<strong>mente</strong> um movimento<br />
artístico, mas uma visão do mundo. Nesse contexto, a<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong> alemã ganhou espaço como eco <strong>da</strong>s preocupações<br />
expressas na pintura, na literatura e no emergente cinema<br />
expressionista (SIQUEIRA, 2006, p. 100).<br />
Neste período, a Alemanha enfrentou uma profun<strong>da</strong> crise econômica<br />
e tornou-se centro de uma febril produção artística, onde emanou uma<br />
estética sombria, pesa<strong>da</strong>, com conteúdo pessimista. Segundo Carla Lima<br />
(2008, p. 44), “o movimento expressionista buscou uma quebra dos limites<br />
rígidos existentes nas diferentes linguagens”, e consequente<strong>mente</strong> gerou<br />
uma aproximação entre as artes de forma crescente. O artista de vanguar<strong>da</strong><br />
buscava novas poéticas, novas maneiras de mesclar linguagens e se<br />
expressar com o corpo, adotando uma posição de ruptura com os valores<br />
do século XIX.<br />
As revoluções (Francesa e Industrial) confirmaram<br />
tempos melhores para a humani<strong>da</strong>de, marcados, no<br />
século XIX, por um profundo otimismo pe<strong>da</strong>gógico,<br />
pela racionalização do Estado, pela dessacralização <strong>da</strong><br />
natureza pela técnica. Os filósofos brin<strong>da</strong>ram ao ‘Império<br />
<strong>da</strong> razão’ em contraposição ao ‘Império <strong>da</strong> fé’, visto como<br />
obsoleto, arcaico, obscuro (LIMA, 2008, p. 44).
18<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
Na arte, o que se pregava era uma volta para a reali<strong>da</strong>de, no sentido<br />
de que o artista deveria retratar a reali<strong>da</strong>de de forma objetiva e ver<strong>da</strong>deira,<br />
na tentativa de uma convergência absoluta entre a representação e a coisa<br />
representa<strong>da</strong>. Já o movimento vanguardista do século XX contesta essa<br />
arte regi<strong>da</strong> pela semelhança. Ao invés do espelhamento, os artistas de<br />
vanguar<strong>da</strong> apresentam imagens distorci<strong>da</strong>s, dilata<strong>da</strong>s, deforma<strong>da</strong>s, não fiéis<br />
aos modelos. Segundo Carla Lima, “o modelo sofre o desgaste, a erosão, o<br />
retalhamento...” (2008, p. 46).<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> moderna alemã tem então sua história engaja<strong>da</strong> no<br />
movimento expressionista, sendo a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro uma <strong>da</strong>s especifici<strong>da</strong>des<br />
dentro <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de deste movimento de vanguar<strong>da</strong>, que <strong>da</strong>rá origem<br />
ao surgimento <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> pós-moderna. Segundo Sayonara Pereira, o fato<br />
de a Alemanha não possuir uma tradição muito grande no Ballet Clássico,<br />
e também por ter sido palco de vários movimentos<br />
anteriores que refletiam a relação do homem com a<br />
natureza, pode ser uma justificativa para o país ter tido<br />
a abertura para ser o berço do Tanztheater (2009, p. 2).<br />
Surge assim, nos anos 20 e 30, a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro alemã a partir dos<br />
trabalhos de Rudolf Laban e seus discípulos Mary Wigman e Kurt Jooss.<br />
Laban considerava o <strong><strong>da</strong>nça</strong>rino um ser que pensava, sentia e fazia.<br />
Segundo ele, a <strong><strong>da</strong>nça</strong> deveria ser experiencia<strong>da</strong> e entendi<strong>da</strong>, senti<strong>da</strong><br />
e percebi<strong>da</strong> pelo indivíduo como um ser completo. Com esse objetivo,<br />
Laban desenvolveu seu sistema de movimento, unindo o rigor científico<br />
<strong>da</strong> observação e notação (Laban Notation) com a necessi<strong>da</strong>de expressiva<br />
<strong>da</strong>s ações. Trabalhava com a improvisação, e seus alunos muitas vezes<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>vam sem música, usavam a voz e recitavam poemas, recorrendo a<br />
movimentos cotidianos ou abstratos. A esse método de trabalho, Laban deu<br />
o nome de Tanz-Ton-Wort (Dança-Tom-Palavra).<br />
Ain<strong>da</strong> nesse vértice, na <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro, existe um novo entendimento<br />
do corpo cênico, fazendo com que os intérpretes e seus orientadores<br />
busquem recursos e métodos não só em outras formas de arte, mas<br />
também em abor<strong>da</strong>gens corporais somáticas. Essa mistura de referências<br />
sempre esteve presente nas artes orientais, por exemplo. Em países como<br />
Japão e Índia, os artistas deveriam, desde pequenos, saber <strong><strong>da</strong>nça</strong>r e<br />
cantar. To<strong>da</strong>via, nos países ocidentais, so<strong>mente</strong> a partir do século XX que<br />
as apropriações entre as artes promoveram novas terminologias e houve<br />
essa contaminação de maneira crescente.
19<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
Mary Wigman, aluna de Laban, contribuiu de forma relevante<br />
para o desenvolvimento <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro. Criou a Ausdrucktanz (<strong><strong>da</strong>nça</strong><br />
expressionista), “no momento em que as artes plásticas viviam o auge<br />
do expressionismo na Alemanha” (CYPRIANO, 2005, p. 23). A <strong><strong>da</strong>nça</strong> de<br />
Wigman representou uma rebelião contra o Ballet Clássico, inspirando-se<br />
em lutas e necessi<strong>da</strong>des humanas universais. A coreógrafa buscava retratar<br />
estados emocionais primitivos, sendo que sua principal característica era<br />
encenar situações que estivessem além <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana. Para tanto,<br />
“refutou o movimento ‘belo’, procurando a ver<strong>da</strong>de do corpo cênico...”<br />
(RODRIGUES, 2008, p. 02).<br />
Kurt Jooss, outro aluno de Laban, compreendia a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro como<br />
uma ação grupal dramática e, em suas coreografias, desenvolvia temas<br />
sociopolíticos. O treinamento de seus <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos incluía música, educação<br />
<strong>da</strong> fala e <strong><strong>da</strong>nça</strong>, mesclando elementos do Ballet Clássico com as teorias de<br />
Laban de harmonia espacial e quali<strong>da</strong>des de movimento. O público viu o<br />
estilo de Jooss como uma forma “moderniza<strong>da</strong> de ballet”, em que o mundo<br />
era representado de maneira realista. “Mesa Verde” (1932) é considera<strong>da</strong><br />
sua obra-prima, pois o coreógrafo fez uso <strong>da</strong> temática de denúncia social<br />
de forma inovadora, o que o tornou um pioneiro com muitos seguidores. Um<br />
deles foi <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>.<br />
1.2 UMA OBSERVADORA<br />
Philippine <strong>Bausch</strong> nasceu no dia 27 de julho de 1940 na ci<strong>da</strong>de de<br />
Solingen, sudoeste <strong>da</strong> Alemanha. Na infância, desfrutou de liber<strong>da</strong>de e<br />
independência, pois seus pais viviam ocupados na luta para sobreviver ao<br />
período pós-guerra. “Filha de proprietários de restaurante, desde pequena<br />
<strong>Bausch</strong> estabeleceu uma forma de comunicação com o mundo através<br />
do olhar” (CYPRIANO, 2005, p. 24). Ela observava to<strong>da</strong> aquela gente,<br />
entrando e saindo do restaurante, e imaginava o que poderia se passar<br />
em suas <strong>mente</strong>s. <strong>Pina</strong> era desde cedo uma curiosa que desenvolveu<br />
profundo e intuitivo senso de observação sobre o que existia dentro <strong>da</strong><br />
cabeça <strong>da</strong>s pessoas, sobre suas subjetivi<strong>da</strong>des, sobre a humani<strong>da</strong>de de<br />
maneira geral.<br />
“Entretanto, o olhar de <strong>Bausch</strong> também contempla os arredores;<br />
procura o entorno, a paisagem” (CYPRIANO, 2005, p. 24). Ela buscava<br />
conhecer o contexto em que as coisas aconteciam, procurava ter contato<br />
com tudo que estava à sua volta. Segundo <strong>Bausch</strong>, o lugar onde o ser
20<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
humano vive é de grande importância para se entender as influências que<br />
agem sobre ele e na construção de sua personali<strong>da</strong>de.<br />
Com 15 anos, <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> iniciou seus estudos em <strong><strong>da</strong>nça</strong> na<br />
Folkwang Hochschule, escola fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Kurt Jooss em 1926, na ci<strong>da</strong>de<br />
de Essen. A jovem bailarina já chamava a atenção dos professores que não<br />
lhe poupavam elogios. Seu diferencial rendeu-lhe, em 1958, uma bolsa de<br />
estudos na Juilliard School em Nova Iorque, através de um programa de<br />
intercâmbio alemão. “Aos vinte anos, <strong>Bausch</strong> já tinha estreito contato com<br />
a Dança Moderna norte-americana e com a escola alemã de Dança-teatro”<br />
(CYPRIANO, 2005, p. 25).<br />
Mary Wigman manteve seu estúdio de <strong><strong>da</strong>nça</strong> de forma mais intimista,<br />
isto é, ensinando basica<strong>mente</strong> a sua técnica. Já Kurt Jooss, na Folkwang<br />
Hochschule, abriu as portas para outras disciplinas, outras linguagens. A<br />
escola existe até hoje e reúne aulas de música, teatro, <strong><strong>da</strong>nça</strong>, design e<br />
ciência em um ensino interdisciplinar. Essa mistura de linguagens, essa<br />
plurali<strong>da</strong>de de técnicas, deve ter favorecido a visão de <strong>Bausch</strong> sobre a<br />
possibili<strong>da</strong>de de romper fronteiras entre as artes.<br />
Em 1962, <strong>Bausch</strong> retorna à Alemanha a convite de Jooss para<br />
integrar o elenco <strong>da</strong> Folkwang. Sete anos depois, torna-se diretora <strong>da</strong><br />
companhia, devido à aposentadoria de seu mestre. <strong>Pina</strong> conquistou<br />
grande prestígio com a Folkwang, realizando turnês internacionais e<br />
recebendo prêmios que lhe destacaram na área <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>. “Foi por conta<br />
desse sucesso que, em 1973, Arno Wustenhofer, diretor <strong>da</strong> Ópera de<br />
Wuppertal (um teatro público) convidou-a para dirigir a companhia de<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> casa...” (CYPRIANO, 2005, p. 25).<br />
Sobre a influência de Kurt Jooss em sua vi<strong>da</strong> e em sua <strong><strong>da</strong>nça</strong>,<br />
<strong>Pina</strong> afirma:<br />
[...] Um dia Kurt Jooss declarou que a característica<br />
principal <strong>da</strong> sua maneira de trabalhar era levar em conta<br />
a personali<strong>da</strong>de individual de ca<strong>da</strong> bailarino. Olha, isso é<br />
a coisa mais importante que tenho em comum com Jooss.<br />
Esta vontade de trabalhar sempre com o sujeito (BAUSCH<br />
apud LIMA, 2008, p. 30).<br />
Julgo importante mencionar também, como uma <strong>da</strong>s influências no<br />
trabalho de <strong>Bausch</strong>, o teatro de Bertolt Brecht (1898-1956). Segundo Juliana<br />
Silveira (2009, p. 46), “o teatro didático de Brecht buscava experimentar<br />
diferentes formas de constituição social do sujeito através <strong>da</strong> arte.” Esse
21<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
é um dos procedimentos que mais se assemelham aos de <strong>Bausch</strong>. Brecht<br />
construiu seu modo de fazer teatro em oposição aos preceitos instaurados<br />
pelo drama neoclássico, que buscava a identificação psicológica entre<br />
ator, personagem e espectador. O teatro brechtiano buscava questionar<br />
aquilo que no teatro burguês era considerado parte <strong>da</strong> natureza humana.<br />
Brecht aperfeiçoou técnicas de encenação existentes para fun<strong>da</strong>r<br />
o Teatro Épico, caracterizado sobretudo como um projeto estético-político,<br />
cuja intenção é confrontar o público para fazê-lo questionar-se, ter uma<br />
visão crítica sobre a razão de ser <strong>da</strong>s coisas. Conforme afirma Grebler<br />
(2010, p. 1), “Brecht deseja que o espectador ‘se estranhe’ em relação à<br />
sua própria vi<strong>da</strong> para que seja capaz de produzir atitudes transformadoras<br />
para si e para a socie<strong>da</strong>de.”<br />
A esse estranhamento Brecht deu o nome de distanciamento, o qual<br />
tinha no gestus seu elemento concretizador. Para Bonfitto (2002, P. 65):<br />
“... Brecht refere-se ao ‘gesto’ não como sendo um recurso ligado so<strong>mente</strong><br />
ao corpo do ator, mas como um conceito aplicável a outros elementos<br />
do espetáculo: o “gesto” <strong>da</strong> música, o “gesto” dos figurinos, do texto...”.<br />
Similar<strong>mente</strong>, <strong>Bausch</strong> buscava também provocar esse estranhamento no<br />
público, bem como em seus bailarinos, durante o processo de criação de<br />
suas obras. Brecht e <strong>Pina</strong> estimulavam o exercício crítico, que pode levar as<br />
pessoas a reconhecerem que o homem e a socie<strong>da</strong>de não são definitivos e<br />
imutáveis, mas passíveis de transformações.<br />
Silveira (2009, p. 47) afirma que:<br />
O diretor e dramaturgo alemão propõe um espectador<br />
ativo, que consiga olhar critica<strong>mente</strong> para a sua<br />
reali<strong>da</strong>de, pois o homem deve ser visto como um ser<br />
em processo, capaz de transformar-se e de transformar<br />
o mundo. O procedimento que Brecht usa para gerar<br />
a consciência crítica é o efeito de distanciamento:<br />
distanciar um acontecimento ou um caráter significa antes<br />
de tudo retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que<br />
parece óbvio, o conhecido, o natural, e lançar o espanto<br />
e a curiosi<strong>da</strong>de. A finali<strong>da</strong>de dessa técnica do efeito de<br />
distanciamento consistia em emprestar ao espectador<br />
uma atitude crítica, de investigação relativa<strong>mente</strong> aos<br />
acontecimentos que deveriam ser apresentados.<br />
Grebler (2010, p. 2) traz-nos alguns fatores semelhantes ao teatro<br />
de Brecht e às obras de <strong>Bausch</strong>. São eles: teatralização e literalização <strong>da</strong>
22<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
cena (vozes grava<strong>da</strong>s, uso de microfones, cartazes), uso do cenário antiilusionista,<br />
que não apoia nem explica a cena (o palco alienado por materiais<br />
orgânicos), abor<strong>da</strong>gem do ator distanciado do personagem e interesse pela<br />
descrição de pessoas comuns. Segundo Carla Lima (2008, p. 59), “para<br />
Bertolt Brecht, o teatro deveria ser a base para a adoção de uma postura<br />
crítica e analítica em relação à socie<strong>da</strong>de e às relações de poder”.<br />
Retomando a trajetória de <strong>Pina</strong>, o início não foi fácil. A coreógrafa<br />
enfrentou a resistência dos bailarinos de Wuppertal. Segundo Wustenhofer,<br />
<strong>Pina</strong> não era aceita na casa e era critica<strong>da</strong> por todos<br />
os lados [...] Vários bailarinos queriam abandonar a<br />
montagem logo nos primeiros meses de trabalho. O<br />
público deixava em massa o teatro... (CYPRIANO,<br />
2005, p. 26).<br />
O público <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de estava acostumado a assistir a obras de Ballet<br />
Clássico. O trabalho de <strong>Pina</strong> representou algo forte, pesado, que talvez<br />
tocasse as pessoas de forma incômo<strong>da</strong> e dolorosa. <strong>Bausch</strong> relata suas<br />
dificul<strong>da</strong>des iniciais:<br />
Pela primeira vez eu sentia medo dos meus bailarinos.<br />
[...] E eu tentava fazer-me entender, mas não conseguia.<br />
[...] Tive uma crise tremen<strong>da</strong>, tinha vontade de parar, de<br />
deixar de trabalhar. Decidi nunca mais pôr os pés no<br />
teatro. E, assim, comecei a trabalhar algumas horas no<br />
estúdio de Jan Minarik (bailarino com quem trabalhou até<br />
2001), com os poucos bailarinos que ain<strong>da</strong> aceitavam a<br />
minha maneira de montar um espetáculo. Foi ali, naquele<br />
estúdio, que começamos a experimentar um modo de<br />
trabalhar diferente, novo (<strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> apud CYPRIANO,<br />
2005, p. 26).<br />
1.3 WUPPERTAL TANZTHEATER E O PROCESSO DE CRIAÇÃO<br />
BAUSCHIANO<br />
1.3.1 As perguntas que buscam o sujeito<br />
Qual seria o motivo desse medo que <strong>Pina</strong> sentia em relação a seus<br />
bailarinos? Por que sua forma de trabalhar incomo<strong>da</strong>va tanto, bailarinos e
23<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
plateia? <strong>Pina</strong>, com seu talento e sensibili<strong>da</strong>de, começou a desenvolver um<br />
modo muito específico de coreografar, que convi<strong>da</strong>va os bailarinos a se<br />
apresentarem enquanto seres humanos, com suas vivências, inseguranças<br />
e recor<strong>da</strong>ções. Ou seja, aquele corpo <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte que antes era apenas um<br />
instrumento <strong>da</strong> técnica, uma ferramenta para o virtuosismo e a música,<br />
começa a se transformar em agente colaborador do processo criativo,<br />
bem como a ser considerado enquanto pessoa, com suas fragili<strong>da</strong>des e<br />
virtudes, desejos e medos, fantasias e delírios.<br />
Nesse contexto, os bailarinos, para <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>, não necessitavam<br />
ter um tipo físico atlético, magro, como exige o Ballet Clássico, por exemplo.<br />
Para ela, outras quali<strong>da</strong>des eram mais importantes: a sensibili<strong>da</strong>de,<br />
a expressão, a capaci<strong>da</strong>de de se entregar e se expor. Afirma: “não me<br />
parece lógico avaliar bailarinos por padrões de concurso de Miss Universo.<br />
Personali<strong>da</strong>de conta muito mais que balança ou fita métrica” (AZEVEDO,<br />
2009, p. 85). Mas até que ponto os bailarinos estão preparados para essa<br />
exposição e doação? No relato de Janusz Subicz, um dos bailarinos de<br />
<strong>Bausch</strong>, tem-se um exemplo <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de e curiosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> coreógrafa:<br />
<strong>Pina</strong> trabalha sempre, até nos momentos aparente<strong>mente</strong><br />
mais distendidos. Quando estamos sentados à mesa no<br />
restaurante, sinto que ela continua a trabalhar, pelo modo<br />
como nos olha. Observa a maneira como um de nós mexe<br />
o dedo, fixa outro que ri e fala, encanta-se repentina<strong>mente</strong><br />
com um gesto qualquer. E muitas vezes, escreve, escreve,<br />
escreve, escreve... (SUBICZ apud LIMA, 2008, p. 113).<br />
Segundo Carla Lima, Barba Azul foi o divisor de águas na carreira<br />
de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>, pois foi nesse espetáculo, estreado em 8 de janeiro de<br />
1977, que a coreógrafa começa a delinear seu processo criativo a partir de<br />
perguntas a seus bailarinos. A partir de Barba Azul, <strong>Pina</strong> “demarca o lugar do<br />
inconsciente em sua prática, apresentando o sujeito e sua estrutura cindi<strong>da</strong>,<br />
no qual coabitam a falta de lógica e a contradição” (LIMA, 2008, p. 35).<br />
As influências na formação de <strong>Bausch</strong> - Kurt Jooss e os trabalhos<br />
norte-americanos de interartes - utilizavam-se <strong>da</strong>s relações humanas,<br />
dos movimentos cotidianos e <strong>da</strong> quebra <strong>da</strong>s fronteiras entre as diferentes<br />
formas de arte. A coreógrafa, incorporando essas influências de forma<br />
crítica, criou um processo peculiar de trabalho. Segundo Ciane Fernandes,<br />
as peças de <strong>Bausch</strong> “apresentam um caos grupal generalizado, sob certa<br />
ordem, favorecendo processo sobre produto e provocando experiências
24<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
inespera<strong>da</strong>s em <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos e plateia” (2007, p. 23). O processo de criação<br />
<strong>da</strong> coreógrafa fun<strong>da</strong>menta-se em perguntas em que ca<strong>da</strong> intérprete é<br />
convi<strong>da</strong>do a reviver cenas e sentimentos <strong>da</strong> infância, seus medos, suas<br />
inseguranças, seus desejos; enfim, ca<strong>da</strong> bailarino é convi<strong>da</strong>do a se<br />
apresentar enquanto ser humano.<br />
Lembranças de infância, sonhos, medos, habili<strong>da</strong>des,<br />
amor, como fazer certa coisa, como ensinar outra,<br />
memórias de viagens, frases ouvi<strong>da</strong>s em certa situação,<br />
frases nunca fala<strong>da</strong>s, enfim, um universo de possibili<strong>da</strong>des<br />
onde a ca<strong>da</strong> intérprete é coloca<strong>da</strong> a necessi<strong>da</strong>de e<br />
importância de se revelar enquanto indivíduo capaz de<br />
imprimir sua visão pessoal à cena (HOGHE, 1989, p. 08).<br />
<strong>Pina</strong> explorava a vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> dos bailarinos transformando-a em<br />
material coreográfico. As questões coloca<strong>da</strong>s por <strong>Bausch</strong> poderiam ser<br />
referentes a experiências sensoriais, cinestésicas, <strong>da</strong>s memórias, <strong>da</strong> mitologia,<br />
<strong>da</strong> religião, do mundo <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> ou <strong>da</strong> natureza. A intenção era provocar através<br />
de um bombardeio de perguntas, suscitando respostas verbais, gestuais ou<br />
corporais, que seriam transforma<strong>da</strong>s em sequências coreográficas. Segundo<br />
Carla Lima, as perguntas de <strong>Pina</strong> “lançam os bailarinos no oceano <strong>da</strong><br />
subjetivi<strong>da</strong>de, na pesquisa de si mesmos” (2009, p. 02).<br />
O objetivo <strong>da</strong> coreógrafa era tocar proposita<strong>da</strong><strong>mente</strong> no que<br />
amedronta, nas antigas feri<strong>da</strong>s, culpas; nas zonas dolorosas, como<br />
chamava <strong>Bausch</strong>. Segundo <strong>Pina</strong>, “as coisas mais belas estão quase sempre<br />
escondi<strong>da</strong>s. É preciso apanhá-las e cultivá-las e deixá-las crescer bem<br />
devagar” (LIMA, 2009, p. 03).<br />
A bailarina Anne Marie Benati relata como se sentiu no início do<br />
trabalho com <strong>Pina</strong>:<br />
Quando principiei a trabalhar nesse gênero de<br />
improvisações, era tão duro que às vezes julgava<br />
enlouquecer: tinha uma formação clássica, estava<br />
habitua<strong>da</strong> a um treino físico cotidiano. Com <strong>Pina</strong>, pelo<br />
contrário, tínhamos que ficar sentados, a pensar e a<br />
falar, durante muito tempo que me parecia interminável.<br />
Fisica<strong>mente</strong>, era uma loucura, meu corpo não conseguia<br />
aceitar aquela paragem força<strong>da</strong> (BENATI apud LIMA,<br />
2009, p. 03).
25<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
O interessante de se comentar em relação ao depoimento dessa<br />
bailarina de <strong>Bausch</strong> é o quanto os intérpretes não estão acostumados a<br />
se colocar enquanto pessoas na <strong><strong>da</strong>nça</strong>. O “normal” é treinar o físico e não<br />
a <strong>mente</strong>. O Ballet Clássico, por exemplo, é um tipo de <strong><strong>da</strong>nça</strong> impessoal,<br />
padrão. Não importa o que o bailarino sente ou pensa sobre aquele<br />
assunto que está sendo <strong><strong>da</strong>nça</strong>do, bem como não existe a participação<br />
do bailarino na criação <strong>da</strong>s movimentações. Tudo já vem pronto, definido,<br />
é uma <strong><strong>da</strong>nça</strong> fecha<strong>da</strong>. Isso, por um lado, é mais fácil, mais seguro, pois<br />
o bailarino não precisa se expor, falar a respeito de seus sentimentos.<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> é um lugar do sujeito, em que o corpo<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>nte, simultanea<strong>mente</strong>, reconstrói um passado e inventa um futuro.<br />
Essa escrita feita através de movimentos cria uma colcha de retalhos, com<br />
presenças e ausências, lembranças e esquecimento, excessos e falta. A<br />
coreógrafa elabora suas coreografias sempre considerando “o corpo e o<br />
inconsciente como um reservatório de pulsões” (LIMA, 2008, p. 89).<br />
Para <strong>Bausch</strong>, a consciência corporal aproxima-se mais de uma<br />
inconsciência corporal, no sentido de visitar espaços onde o afeto se deu<br />
e reviver os sentimentos gerados. Ou seja, elaborar ressignificações. Os<br />
caminhos <strong>da</strong> coreógrafa são sempre pontilhados, abertos, com várias<br />
possibili<strong>da</strong>des de entra<strong>da</strong> e saí<strong>da</strong>. Nesse processo, os paradoxos, erros,<br />
incertezas, experimentações não são sinais de fraqueza, mas sim de que<br />
a vi<strong>da</strong> está presente.<br />
Quando lança suas perguntas aos bailarinos, no início de seu<br />
processo criativo, raras são as intervenções de <strong>Pina</strong>. Ela entrega um bom<br />
tempo a seus coautores. No início, os bailarinos se perguntavam: “para<br />
que perder horas, todos sentados a falar?” (LIMA, 2008, p. 101). Em um<br />
segundo momento, o processo centraliza-se na coreógrafa no que se<br />
refere à seleção e ordenação do material em cena. Ou seja, <strong>Pina</strong> faz a<br />
composição cênica, definindo o que será apresentado, a ordem, a relação<br />
entre as várias imagens, a escolha <strong>da</strong> trilha, a cenografia e os figurinos.<br />
Dominique Mercy, um dos bailarinos mais antigos <strong>da</strong> companhia de<br />
<strong>Bausch</strong>, relata:<br />
compreendi que, através desse método, começava a<br />
descobrir algo muito importante sobre mim mesmo e<br />
sobre minha nova maneira de fazer teatro. Compreendi<br />
que, até aí, tinha simples<strong>mente</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>do (MERCY apud<br />
LIMA, 2008, p. 102).
26<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
Sobre as respostas de seus bailarinos, <strong>Pina</strong> pensa ser preciso,<br />
antes de qualquer coisa, estar em paz com as palavras e, calma<strong>mente</strong>,<br />
deixá-las surgir.<br />
As perguntas feitas pela coreógrafa direcionam-se para aquilo do sujeito<br />
que não se mostra com facili<strong>da</strong>de. Logo, exige trabalho, desprendimento,<br />
paciência, insistência; pois existe uma resistência. Segundo Carla Lima,<br />
o processo de construção dos espetáculos de <strong>Bausch</strong> fun<strong>da</strong>menta-se<br />
em “narrativas fragmenta<strong>da</strong>s, apoia<strong>da</strong>s em associações livres, numa fala<br />
aparente<strong>mente</strong> ilógica” (2008, p. 108).<br />
“O corpo na <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Bausch</strong> é um corpo carregado de<br />
memória e linguagem” (CAMPOS, 2008, p. 02). O passado é trazido à<br />
cena através de uma elaboração por parte dos bailarinos. Porém, o que é<br />
levado ao público é resultado <strong>da</strong> criação de <strong>Pina</strong>, que consegue captar o<br />
que há de universal em ca<strong>da</strong> manifestação particular. Daí seu talento em<br />
falar do ser humano e de se fazer compreender por diferentes culturas. A<br />
coreógrafa preserva a essência dos significados expressos pelos bailarinos<br />
no momento de criação dos movimentos, bem como as intensi<strong>da</strong>des<br />
pulsionais que geraram aqueles gestos. E capta <strong>da</strong>quilo, para levar ao<br />
palco, o que é comum a todos nós. Sobre <strong>Bausch</strong>, Laíse Bezerra coloca:<br />
“<strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos como pessoas - esta foi sua maior revolução” (2010, p. 04).<br />
Carla Lima afirma que “o sujeito nasce e é formado, marcado por<br />
condições que desconhece, sem nem mesmo saber o fato de estar sendo<br />
marcado” (2008, p. 82). Isto é, ele já nasce inserido em um contexto que o<br />
precede. Dessa forma, quando se fala em uma <strong><strong>da</strong>nça</strong> do sujeito, trata-se<br />
de uma <strong><strong>da</strong>nça</strong> que carrega influências que existiam antes mesmo desse<br />
sujeito. Por essa razão, a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Bausch</strong> é considera<strong>da</strong> um tecer<br />
do meio, já que leva em conta o antes, o durante e o depois de ca<strong>da</strong> um.<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> de <strong>Bausch</strong> é descodifica<strong>da</strong>, vive em uma zona de indefinição.<br />
Tudo pode virar coreografia. Não há o rigor de uma técnica específica, bem<br />
como a preocupação em se fazer <strong><strong>da</strong>nça</strong> ou teatro. As fronteiras entre as artes<br />
é “pontilha<strong>da</strong>”, permitindo essa interação constante. Segundo Laíse Bezzera<br />
(2010, p. 06), “... tudo se passa no entre, assim, não podemos separar o que<br />
cabe à <strong><strong>da</strong>nça</strong> e o que cabe ao teatro”. O trabalho de <strong>Pina</strong> consegue articular<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong> e teatro realizando o imbricamento de ambas as áreas. Mas apesar<br />
dessa “deformação”, tanto do teatro como <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>, a coreógrafa consegue<br />
preservar a substância inicial dessas artes que não deixam de existir como tal<br />
em suas obras.
27<br />
Segundo Solange Caldeira:<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
O Tanztheater de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> apresenta uma estética de<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong> que confronta a significação cultural e histórica de<br />
corpos. O corpo é o texto de <strong>Bausch</strong>. Corpos para ela são<br />
documentos com seus assuntos. A escolha de seu elenco<br />
é seleção determinante de to<strong>da</strong> sua produção - pois são<br />
os coautores de suas peças. <strong>Bausch</strong> os escolhe em razão<br />
<strong>da</strong> expressão <strong>da</strong>s histórias de seus corpos individuais e<br />
em relação à sua história cultural. Isso talvez explique<br />
por que seus vinte e poucos bailarinos são de dezessete<br />
nacionali<strong>da</strong>des diferentes (2008, p. 10).<br />
O que <strong>Pina</strong> buscava em seus bailarinos, além de disciplina e talento,<br />
era personali<strong>da</strong>de, capaci<strong>da</strong>de de falar de si, de colocar seus sentimentos<br />
como matéria-prima de suas criações. To<strong>da</strong>via, além <strong>da</strong> visão de explorar<br />
questões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de seus intérpretes, havia, nas obras de <strong>Pina</strong>, outro<br />
elemento marcante: a repetição enquanto instrumento estético e construtor<br />
de significados.<br />
1.3.2 A Repetição<br />
As coreografias de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> mesclam gestos cotidianos e<br />
movimentos técnicos. Em vários momentos, os gestos cotidianos, através<br />
<strong>da</strong> incessante repetição, ganham novos significados ou abstrações; não<br />
necessaria<strong>mente</strong> relacionados às funções diárias para as quais servem.<br />
Isso ocorre não apenas em relação aos gestos utilizados, mas também às<br />
palavras eventual<strong>mente</strong> pronuncia<strong>da</strong>s pelos bailarinos em algumas obras<br />
de <strong>Bausch</strong>. Segundo Ciane Fernandes (2007, p. 28):<br />
Quando um gesto é feito pela primeira vez no palco,<br />
ele pode ser (mal) interpretado como uma expressão<br />
espontânea. Mas quando o mesmo gesto é repetido<br />
várias vezes, ele é clara<strong>mente</strong> exposto como um elemento<br />
estético. Nas primeiras repetições, o gesto gradual<strong>mente</strong><br />
se mostra dissociado de uma fonte emocional espontânea.<br />
Eventual<strong>mente</strong>, as exaustivas repetições provocam<br />
sentimentos e experiências em ambos, bailarinos e plateia.<br />
Significados são transitórios, emergindo, dissolvendo e<br />
sofrendo mutações em meio a repetições.
28<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
A repetição dos gestos é um caminho para a transformação <strong>da</strong> forma,<br />
para a criação de novas e inespera<strong>da</strong>s sintaxes e para a invenção de novas<br />
estéticas. Mas <strong>Pina</strong> vai além. A coreógrafa faz uso <strong>da</strong> repetição também<br />
como método de inverter os efeitos convencionais atribuídos à mesma. Ou<br />
seja: <strong>Bausch</strong> critica a ideia de que qualquer processo de aprendizagem social<br />
formal implique a necessi<strong>da</strong>de de uma disciplina basea<strong>da</strong> na repetição.<br />
(...) é através <strong>da</strong> disciplina repetitiva que observamos<br />
um disciplinamento dos corpos, e essa disciplinarização<br />
é uma <strong>da</strong>s formas sociais que permeiam e dominam<br />
maneiras pessoais de percepção e expressão. É através<br />
<strong>da</strong> repetição que há um disciplinamento dos corpos para a<br />
utili<strong>da</strong>de e produtivi<strong>da</strong>de (BEZERRA, 2010, p. 06).<br />
No espetáculo Bandoneon (1980), <strong>Pina</strong> abor<strong>da</strong> a ideia <strong>da</strong> “repetição<br />
liga<strong>da</strong> ao erro”, buscando romper com a convenção de que o aprendizado<br />
por repetição sempre deve ocorrer para se atingir a perfeição (BEZERRA,<br />
2010, p. 07). Neste mesmo trabalho, a repetição é relaciona<strong>da</strong> “à dor implícita<br />
na disciplina e no treinamento corporal”, sendo trata<strong>da</strong> como dolorosos<br />
atos de autocontrole e adestramento (BEZERRA, 2010, p. 07). De acordo<br />
com Laise Bezerra, a coreógrafa trata a repetição como algo de natureza<br />
controladora sobre corpos reprimidos (2010, p. 07). Ou seja, para <strong>Pina</strong>, a<br />
repetição deveria levar à criação, à transformação, e não ser a simples e<br />
mecânica reprodução.<br />
Segundo Ciane Fernandes (2007, p. 30), “através <strong>da</strong> repetição, a<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Bausch</strong> contém ambos os interesses: o de Wigman, com<br />
a expressão pessoal e psicológica, e o de Jooss, com questões sociais e<br />
políticas”. Nas obras de <strong>Bausch</strong>, o corpo, através <strong>da</strong> repetição de palavras,<br />
gestos e experiências passa<strong>da</strong>s, toma consciência de seu papel enquanto<br />
tópico simbólico e social em constante transformação.<br />
Através <strong>da</strong> repetição, <strong>Bausch</strong> não apenas expõe a<br />
natureza simbólica <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro, mas também explora<br />
o mapa corporal adquirido através <strong>da</strong> repetição desde a<br />
infância. Seus <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos frequente<strong>mente</strong> repetem em<br />
cena momentos <strong>da</strong>quela fase de suas vi<strong>da</strong>s, mostrando<br />
como incorporaram padrões sociais. Em outras palavras,<br />
eles repetem os momentos nos quais começaram a<br />
repetir movimentos e comportamentos de outras pessoas<br />
(FERNANDES, 2007, p. 30).
29<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
Recor<strong>da</strong>ção e repetição são então dois recursos fun<strong>da</strong>mentais nas<br />
obras de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>, desde o processo de criação dos trabalhos até a<br />
composição <strong>da</strong> cena final que irá para o palco. Segundo Márcia de Campos,<br />
concor<strong>da</strong>ndo com a proposta de <strong>Pina</strong>,<br />
a repetição característica <strong>da</strong> pulsão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é a repetição<br />
diferencial, que ao contrário <strong>da</strong> reprodução, <strong>da</strong> qual<br />
resultaria um estereótipo, torna-se uma fonte de constantes<br />
transformações (2008, p. 06).<br />
Clarificando, a repetição aparece nas obras de <strong>Bausch</strong> de diferentes<br />
formas:<br />
− No processo de criação, em que as respostas dos bailarinos às<br />
questões propostas por <strong>Pina</strong> são, de certa forma, reconstruções<br />
(repetições) de experiências passa<strong>da</strong>s, atualiza<strong>da</strong>s no presente.<br />
− A repetição é um método utilizado pela coreógrafa para transformar<br />
esse material fornecido pelos bailarinos em uma forma estética que<br />
constrói o produto artístico com base nos registros <strong>da</strong>s singulari<strong>da</strong>des.<br />
Segundo Letícia Rodrigues, “o material colhido <strong>da</strong>s improvisações é<br />
obsessiva<strong>mente</strong> repetido, gerando sequências que são organiza<strong>da</strong>s<br />
através de procedimentos de recortes e colagem, gerando uma<br />
interpretação basea<strong>da</strong> na transitorie<strong>da</strong>de do significado atribuído aos<br />
gestos” (2009, p. 03).<br />
− A repetição é utiliza<strong>da</strong> como recurso cênico, através de cenas que se<br />
repetem durante o espetáculo, exata<strong>mente</strong> iguais ou modifica<strong>da</strong>s,<br />
mas remetendo a um momento anterior.<br />
− Por fim, a repetição aparece na escolha dos temas abor<strong>da</strong>dos nas<br />
obras: relações humanas, masculino e feminino, infância, amor;<br />
como se, de certo modo, ca<strong>da</strong> obra fosse uma releitura ou um<br />
complemento <strong>da</strong> peça anterior.<br />
Ciane Fernandes (2007, p. 46) coloca que:<br />
No processo criativo de <strong>Bausch</strong>, a repetição não<br />
confirma nem nega os vocabulários impostos nos corpos<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>ntes. Ao invés disso, é usa<strong>da</strong> precisa<strong>mente</strong> para<br />
desarranjar tais construções gestuais <strong>da</strong> técnica ou <strong>da</strong><br />
própria socie<strong>da</strong>de. A repetição torna-se um instrumento<br />
criativo através do qual os <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos reconstroem,
30<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
desestabilizam e transformam suas próprias histórias<br />
enquanto corpos estéticos e sociais.<br />
Penso ser interessante comentar que o Ballet Clássico é um estilo de<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong> que também usa muito a repetição: nos movimentos, no treinamento,<br />
na construção de enredos. Os movimentos são padronizados, o treinamento<br />
tem nomenclatura específica, os exercícios e formatos de aulas são<br />
parecidos, as histórias sempre envolvem o bem, com o príncipe, o bom<br />
moço e a princesa; e o mal, com bruxas, feitiços, mortes. Porém, parece-me<br />
que a repetição, nesse caso, não tem o objetivo de desconstruir padrões<br />
estéticos e sociais, mas sim reforçá-los. E soma-se a isso o fato de que as<br />
experiências passa<strong>da</strong>s dos bailarinos – vivências, sentimentos e desejos –<br />
não fazem parte do processo criativo, bem como do trabalho final.<br />
Entre as razões para a resistência dos bailarinos ao trabalho de<br />
<strong>Bausch</strong>, está justa<strong>mente</strong> este método usado pela coreógrafa, em que há<br />
uma valorização não apenas do desempenho técnico, mas principal<strong>mente</strong><br />
<strong>da</strong>s individuali<strong>da</strong>des e especifici<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> um.<br />
Segundo Fabio Cypriano (2005, p. 27):<br />
... trabalhar com <strong>Bausch</strong> é um exercício de autoanálise,<br />
algo dificil<strong>mente</strong> compreendido pelos artistas <strong>da</strong> época.<br />
Estes foram treinados em técnicas como o Ballet<br />
Clássico, em que os <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos incorporam personagens,<br />
geral<strong>mente</strong> estereotipados. <strong>Bausch</strong>, ao contrário, expõe no<br />
palco os bailarinos em sua fragili<strong>da</strong>de mais aparente, em<br />
suas próprias personali<strong>da</strong>des, e não como performers que<br />
representam tecnica<strong>mente</strong> um papel.<br />
Além <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de expor seus sentimentos,<br />
<strong>Pina</strong> também provocou um rompimento com o virtuosismo tradicional do<br />
corpo na <strong><strong>da</strong>nça</strong>. Para ela, não era o mensurável o mais importante. Ou<br />
seja, não são quantos giros o bailarino consegue <strong>da</strong>r, ou o quanto ele eleva<br />
a perna ou a altura do seu salto que o torna um intérprete interessante<br />
para os trabalhos de <strong>Bausch</strong>. A coreógrafa valorizava a sensibili<strong>da</strong>de, a<br />
capaci<strong>da</strong>de de doação e coragem de se expor dos bailarinos.<br />
Ain<strong>da</strong> sobre a repetição, cabe comentar breve<strong>mente</strong> o que coloca<br />
Deleuze. Repetir não é, para este autor, generali<strong>da</strong>de; ou seja, fazer tudo<br />
igual. Quando um conceito estabelece uma generali<strong>da</strong>de, ele poderá sofrer<br />
algumas substituições particulares e não deixará de ser generali<strong>da</strong>de.
31<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
A repetição, segundo Deleuze, é fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na ideia de ser uma conduta<br />
necessária, insubstituível e singular. A alma entra nesse critério; “não há<br />
possibili<strong>da</strong>de de trocar de alma” (DELEUZE, 2006, p. 20).<br />
Repetir é atuar em relação a algo único, que não tem semelhança.<br />
Repete o singular, o original, e esta é uma característica <strong>da</strong> obra de arte.<br />
Nesse sentido, ca<strong>da</strong> vez que se apresenta uma coreografia, é uma repetição,<br />
mas única, original, pois esse processo não envolve só a cabeça, mas<br />
também a alma, que é o “objeto amoroso <strong>da</strong> repetição” (DELEUZE, 2006,<br />
p. 20). Isso torna a repetição uma transgressão, não uma generali<strong>da</strong>de.<br />
Revela uma reali<strong>da</strong>de mais profun<strong>da</strong> e artística. A generali<strong>da</strong>de relacionase<br />
com as leis e a repetição, com a alma. Não é propósito deste trabalho<br />
desenvolver os conceitos desse autor tão complexo e importante dentro <strong>da</strong>s<br />
áreas estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s, mas trazer algumas de suas reflexões tão oportunas.<br />
Nos dicionários de língua portuguesa, a definição de “repetir” ou<br />
“repetição” vem associa<strong>da</strong> a “fazer nova<strong>mente</strong>”, “imitar”, “reproduzir”. Mas<br />
a pergunta que fica, com base nas reflexões propostas por Deleuze, é:<br />
se considerarmos que ca<strong>da</strong> um possui múltiplas vozes que formam seu<br />
modo de ser e agir, é possível alguém repetir exata<strong>mente</strong> o que outro<br />
fez? Se pensarmos na ação isola<strong>da</strong>, sim. Por exemplo: dois bailarinos<br />
podem fazer a mesma sequência coreográfica cria<strong>da</strong> por <strong>Bausch</strong>. O que<br />
a coreógrafa quer e valoriza é justa<strong>mente</strong> uma repetição que vai além de<br />
simples<strong>mente</strong> executar os mesmos passos, mas sim colocar naquilo que<br />
outro fez o que é seu. Dessa forma, se pensarmos a repetição em termos<br />
de “alma”, considerando que to<strong>da</strong> ação tem uma parcela de individuali<strong>da</strong>de,<br />
de particulari<strong>da</strong>de que é diferente em ca<strong>da</strong> um, penso que seja coerente<br />
dizer que não existe a repetição total, mas apenas a parcial, liga<strong>da</strong> ao ato,<br />
à ação em si.<br />
Essa constatação pode servir para qualquer ação. Porém,<br />
considerando a prática <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>, no momento que um movimento passa de<br />
um corpo para outro, a repetição já está contamina<strong>da</strong> por to<strong>da</strong> a bagagem<br />
do corpo que vai repetir possui. Essa contaminação é inevitável já que,<br />
na <strong><strong>da</strong>nça</strong>, o corpo é o instrumento dessa arte. O mesmo corpo que sofre,<br />
come, dorme, lê, relaciona-se com as pessoas é o corpo <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte.<br />
Percebo que algumas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de <strong><strong>da</strong>nça</strong> tentam anular essa<br />
parcela <strong>da</strong> repetição que é resultado <strong>da</strong>s individuali<strong>da</strong>des. No Ballet<br />
Clássico ou no Sapateado Irlandês, existe a busca pela padronização dos<br />
corpos a tal ponto que a repetição deve ser ao máximo foca<strong>da</strong> na ação,<br />
no movimento de simples<strong>mente</strong> reproduzir algo. Não deve aparecer o
32<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
que ca<strong>da</strong> bailarino sente ou pensa sobre o que está fazendo. Na Dança<br />
Moderna e Contemporânea, especial<strong>mente</strong> na <strong><strong>da</strong>nça</strong> de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>,<br />
ocorre justa<strong>mente</strong> o contrário. Os movimentos são meios de expressão<br />
<strong>da</strong>s individuali<strong>da</strong>des. O bailarino é convi<strong>da</strong>do a repetir a ação, com suas<br />
particulari<strong>da</strong>des não sendo necessaria<strong>mente</strong> deixa<strong>da</strong>s de lado.<br />
<strong>Pina</strong> desenvolveu, então, sua <strong><strong>da</strong>nça</strong> sob dois pilares fun<strong>da</strong>mentais:<br />
o sujeito em constante transformação, com fragili<strong>da</strong>des e sentimentos,<br />
resultado de um contexto sociocultural e inúmeras influências; e a<br />
repetição, enquanto recurso criativo e estético. Suas perguntas buscavam<br />
esse sujeito único, convi<strong>da</strong>ndo-o a “repetir” sua história através <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>.
2 A PSICANÁLISE DE FREUD<br />
2.1 FREUD TENTA EXPLICAR<br />
Os problemas mentais sempre foram alvo de curiosi<strong>da</strong>de, medo,<br />
magia e mistério dentro <strong>da</strong>s mais diversas culturas e socie<strong>da</strong>des, desde<br />
os primórdios <strong>da</strong> história humana. Os métodos empregados para entender<br />
a <strong>mente</strong>, a doença ou a loucura percorreram uma longa trajetória, desde<br />
as investigações através de trepanações cerebrais, exorcismos, bruxarias,<br />
benzeduras e os mais diversos rituais; até tratamentos que incluíam prisões,<br />
masmorras, porões, correntes e maus-tratos de todos os tipos.<br />
Em 1789, período marcado por revoluções de pensamentos e condutas,<br />
especial<strong>mente</strong> na França, dois psiquiatras, Pinel e Esquirol, provocaram uma<br />
importante reforma na visão do tratamento dos doentes mentais. Retiraram<br />
os grilhões e correntes usados para conter a loucura e humanizaram, de uma<br />
forma mais ampla, o atendimento hospitalar psiquiátrico.<br />
A Medicina, até meados do século XIX, era quase que exclusiva<strong>mente</strong><br />
volta<strong>da</strong> aos aspectos orgânicos e biológicos do ser humano. As formas<br />
de pensar e sentir a vi<strong>da</strong> ficavam a cargo dos filósofos. Os chamados<br />
neuropsiquiatras tentavam o uso de medicações naturais, hidroterapias,<br />
choques insulínicos e outros métodos que pudessem auxiliar no alívio do<br />
sofrimento de seus pacientes.<br />
A origem <strong>da</strong> palavra Psicanálise vem de “psi”, do grego, que significa<br />
sopro, sopro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, alma, sede dos pensamentos, emoções, desejos.<br />
Ou seja: a parte “imaterial do ser” (BARROS, 2003, p. 18). A Medicina<br />
começa, então, a preocupar-se em tratar também os males que não estão<br />
no corpo físico.<br />
Nesse mesmo período, um famoso neurologista francês chamado<br />
Charcot iniciou um trabalho novo para controlar as crises de seus pacientes:<br />
a hipnose. Suas brilhantes descobertas feitas em Paris chegaram aos<br />
ouvidos de um jovem médico austríaco, interessado em pesquisas <strong>da</strong> área<br />
neuropsiquiátrica: Sigmund Freud.<br />
Freud, considerado o criador <strong>da</strong> Psicanálise, nasceu em Freiberg,<br />
hoje Pribor, na República Tcheca, em 6 de maio de 1856. Quando tinha<br />
quatro anos, mudou-se com a família para Viena, onde viveu quase to<strong>da</strong><br />
a sua vi<strong>da</strong>. Seu pai era um comerciante de lã e têxteis. Sua mãe era<br />
a segun<strong>da</strong> esposa do pai, sendo vinte anos mais jovem que o marido.
34<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
Desse casamento, nasceram sete filhos, dos quais Freud era o mais<br />
velho e o preferido <strong>da</strong> mãe.<br />
De acordo com Zimerman (2001, p. 157), “Freud concluiu com<br />
brilhantismo seu curso médico, aos 25 anos, na Universi<strong>da</strong>de de Viena,<br />
tendo feito um longo aprendizado em neurologia...”. Segundo Greenson<br />
(1981, p. 8), Freud<br />
... tinha um dom para o raciocínio teórico e imaginativo:<br />
misturava ambos para relacionar a técnica às descobertas<br />
clínicas e aos processos terapêuticos. Feliz<strong>mente</strong>, Freud<br />
possuía aquela complexa combinação de temperamento<br />
e traços de caráter que fizeram dele um conquistador,<br />
um “aventureiro” <strong>da</strong> <strong>mente</strong> e um pesquisador científico<br />
cui<strong>da</strong>doso. Ele teve a audácia e a inventivi<strong>da</strong>de para<br />
explorar, entusiástica e criativa<strong>mente</strong>, regiões novas na<br />
<strong>mente</strong>. Quando a experiência demonstrava estar erra<strong>da</strong>,<br />
ele tinha a humil<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>r sua técnica e teoria.<br />
Freud já havia entrado em contato com o método <strong>da</strong> hipnose, através<br />
de relatos e trocas de experiências feitas com J. Breuer, outro neurologista<br />
interessado no estudo <strong>da</strong> histeria. O relato do caso de Ana O., que ficou famoso<br />
na história <strong>da</strong> investigação psicanalítica, instigou mais ain<strong>da</strong> a curiosi<strong>da</strong>de e o<br />
interesse científico de Freud. Aprendeu a técnica do hipnotismo e tentou utilizála<br />
durante algum tempo. Mas, como não estava satisfeito com os resultados,<br />
começou a tentar, junto com seus pacientes, um acesso ao passado através<br />
de uma fala de certa forma induzi<strong>da</strong> por ele.<br />
Um dia, uma paciente, Elisabeth Von R., solicitou que ele a deixasse<br />
falar livre<strong>mente</strong>, sem pressões de qualquer tipo nesse momento. Freud<br />
percebeu a importância de deixar o paciente falar livre<strong>mente</strong>, de forma<br />
espontânea. Chamou esse processo de associação livre e descobriu<br />
que a resistência a lembranças do passado provinha de repressões que<br />
proibiam a recor<strong>da</strong>ção desses fatos. Não poderiam ser lembrados traumas,<br />
acontecimentos que real<strong>mente</strong> tivessem ocorrido, em especial na área <strong>da</strong><br />
sexuali<strong>da</strong>de, como também era proibido pela repressão lembrar fantasias<br />
existentes no passado, que pudessem causar sofrimento.<br />
Tudo isso provocou uma mu<strong><strong>da</strong>nça</strong> fun<strong>da</strong>mental no estudo <strong>da</strong><br />
<strong>mente</strong>, estabelecendo-se os primórdios do conceito de inconsciente,<br />
instância em que se instalava a luta entre as pressões instintivas e<br />
repressoras, provocando o conflito psíquico e, consequente<strong>mente</strong>, o<br />
sintoma. Em 1900, Freud publica o livro A interpretação dos sonhos,
35<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
em que tenta conferir um tratamento científico à interpretação onírica,<br />
aspecto fun<strong>da</strong>mental para a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> teoria psicanalítica.<br />
Como destaca Zimerman (1999, p. 44), esse livro representa um marco<br />
para a Psicanálise, já que abrange aspectos pioneiros no estudo dos sonhos,<br />
permitindo que neles se percebessem os acontecimentos recentes (restos<br />
diurnos) e antigos (conteúdo latente dos sonhos). Freud constatou também,<br />
pelo exame dos sonhos de seus pacientes, a presença <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de infantil<br />
e de manifestações do conflito edípico, definindo o sonho como um caminho<br />
precioso de acesso ao inconsciente, através <strong>da</strong> interpretação, que veio a se<br />
tornar um dos mais importantes pilares <strong>da</strong> técnica psicanalítica.<br />
Freud põe em xeque a noção de consciência. Com ele, postula-se<br />
uma nova questão: a <strong>da</strong> consciência como embuste, ilusão. Até as pesquisas<br />
freudianas, o inconsciente era apenas o não consciente. É Freud quem dá<br />
provas <strong>da</strong> existência positiva de um inconsciente dotado de quali<strong>da</strong>des<br />
próprias que permitem defini-lo. Freud fala de três termos quando descreve<br />
os fenômenos mentais, como fazendo parte do aparelho psíquico. São eles:<br />
o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. Denomina de inconsciente<br />
o processo psíquico cuja existência, segundo ele, é-se obrigado a supor e<br />
que está sendo ativado no momento, embora no momento não se saiba<br />
na<strong>da</strong> a seu respeito. Considera que a maioria dos processos conscientes são<br />
conscientes apenas num curto espaço de tempo. Demonstra, por exemplo,<br />
que, nos lapsos de língua, há uma intenção inconsciente que não foi leva<strong>da</strong><br />
a cabo. Ao inconsciente que está apenas latente e que, portanto, facil<strong>mente</strong><br />
pode tornar-se consciente, chama de pré-consciente.<br />
Freud constatou que os fenômenos mentais não poderiam ser<br />
explicados so<strong>mente</strong> através <strong>da</strong> consciência. Havia cadeias de associações<br />
repletas de lacunas que, pressupôs, poderiam conter lembranças reprimi<strong>da</strong>s.<br />
Empregou pela primeira vez a palavra “inconsciente” em uma nota de<br />
ro<strong>da</strong>pé, no caso de Emmy von N. em que tentava entender os problemas<br />
mentais através <strong>da</strong> neurologia.<br />
Freud procura explicar as razões de atitudes ou palavras produzi<strong>da</strong>s,<br />
aparente<strong>mente</strong>, sem sentido. Chama a atenção para as parapraxias,<br />
como os lapsos de linguagem, para os sonhos e os sintomas <strong>da</strong>s doenças<br />
mentais. Salientou que a consciência contém apenas uma pequena porção<br />
do conteúdo mental e que a maioria dos conteúdos se encontra em estado<br />
inconsciente. O ponto crucial é que os pensamentos latentes possuem<br />
características estranhas à consciência, têm leis próprias e constituem um<br />
sistema separado, operando à base de outros princípios que não os dos<br />
elementos conscientes.
36<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
A interpretação de uma ideia reprimi<strong>da</strong> proposta pelo analista poderá<br />
ser registra<strong>da</strong> no pré-consciente do paciente, não desencadeando reação<br />
emocional alguma. Provavel<strong>mente</strong>, não remova a repressão existente.<br />
Só ocorrerá, segundo Freud, alguma modificação, se houver uma ligação<br />
entre os aspectos inconscientes dessa ideia com os pré-conscientes.<br />
Continuando a análise <strong>da</strong>s características do inconsciente, Freud o<br />
descreve como o local de impulsos em busca de libertação, que, mesmo<br />
contraditórios, não influenciam um ao outro. Acredita não existirem<br />
negação, dúvi<strong>da</strong> ou graus de incerteza no inconsciente. A atemporali<strong>da</strong>de<br />
é outra característica do inconsciente que se desloca entre passado,<br />
presente e futuro.<br />
Segundo Greenson (1981, p. 9), “não há uma <strong>da</strong>ta exata para<br />
a descoberta <strong>da</strong> associação livre”. Para esse autor, o método foi se<br />
desenvolvendo aos poucos entre os anos de 1892 e 1896, quando,<br />
gradual<strong>mente</strong>, a hipnose foi sendo abandona<strong>da</strong>. A associação livre passou<br />
a ser um importante meio de permitir que os pensamentos involuntários do<br />
paciente entrassem na situação terapêutica.<br />
Freud descreve a aplicação <strong>da</strong> associação livre <strong>da</strong> seguinte forma:<br />
Sem exercer qualquer outro tipo de influência, ele convi<strong>da</strong><br />
os pacientes a se deitarem confortavel<strong>mente</strong> num divã<br />
enquanto ele próprio se senta numa cadeira que fica por trás<br />
do paciente, fora do seu campo de visão. Ele nem mesmo<br />
lhes pede que fechem os olhos e evita tocá-los de qualquer<br />
forma evitando também qualquer outro procedimento que<br />
pudesse lembrar a hipnose. A sessão então se desenrola<br />
como uma conversa entre duas pessoas igual<strong>mente</strong><br />
acor<strong>da</strong><strong>da</strong>s, mas uma delas é poupa<strong>da</strong> de qualquer esforço<br />
muscular e de qualquer impressão sensorial, dispersiva<br />
que poderia desviar sua atenção de sua própria ativi<strong>da</strong>de<br />
mental. A fim de assegurar estas ideias e associações,<br />
ele pede ao paciente que “se deixe levar” naquilo que<br />
está dizendo, “como você faria numa conversa em que<br />
estivesse falando casual<strong>mente</strong>, muito desligado e sem<br />
pensar” (FREUD apud GREENSON, 1981, p. 10).<br />
O método de livre associação criado por Freud, e até hoje empregado<br />
na terapia psicanalítica, tem a intenção de estimular o paciente a dizer o<br />
que lhe vem à <strong>mente</strong>, escapando <strong>da</strong> censura - repressão, negação ou<br />
projeção, etc. - aciona<strong>da</strong> pelo ego inconsciente, com vistas a impedir
37<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
o acesso do paciente e do analista ao latente doloroso do discurso do<br />
analisado. No tratamento, interpretação é a comunicação feita ao paciente<br />
pelo terapeuta com vistas a facilitar o seu acesso ao sentido latente,<br />
segundo a técnica e o momento do tratamento. Embora a interpretação,<br />
como parte <strong>da</strong> técnica psicanalítica, já esteja presente desde o início <strong>da</strong><br />
Psicanálise, ela só foi denomina<strong>da</strong> e delimita<strong>da</strong> mais tarde, quando a<br />
técnica começou a se definir e a interpretação assumiu o papel de principal<br />
ação terapêutica.<br />
Sobre o conceito de interpretação, Zimerman coloca:<br />
... nos trabalhos de Freud sobre técnica psicanalítica,<br />
interpretar aparece como uma forma de o analista explicar<br />
o significado de um desejo inconsciente que surja através<br />
de sonhos, lapsos, atos falhos, alguma resistência<br />
e na associação de idéias conti<strong>da</strong>s no discurso do<br />
analisando. (2001, p. 220-221).<br />
Inúmeros artigos, livros e estudos já foram realizados sobre<br />
interpretação em Psicanálise. Valeria salientar que o processo de interpretação<br />
não abrange o conjunto de intervenções do analista no tratamento, como<br />
estímulo para falar, tranquilização, explicações de mecanismos ou símbolos,<br />
construções, assinalamentos ou confrontações, apesar <strong>da</strong> compreensão de<br />
que to<strong>da</strong>s essas formas possam assumir, no contexto <strong>da</strong> situação analítica,<br />
um valor interpretativo.<br />
Nesse sentido, o analista passa a ser o leitor do discurso do seu<br />
paciente, capaz de, junto com ele, contextualizar o que está sendo dito e de, no<br />
decorrer <strong>da</strong> sessão, retirar do texto apresentado, as hipóteses interpretativas.<br />
Após os estudos de Freud, de um século atrás, outros autores psicanalíticos,<br />
médicos e fisiologistas acrescentaram importantes descobertas ao processo<br />
do sonho, entretanto estes conceitos iniciais foram e são fun<strong>da</strong>mentais para<br />
interpretação dos sonhos, durante uma análise, até hoje.<br />
Em síntese, para a Psicanálise, o inconsciente se expressa na fala<br />
independente<strong>mente</strong> <strong>da</strong> vontade do sujeito e além do seu conhecimento<br />
consciente. A pessoa diz mais do que pensa e do que quer dizer. A fala<br />
tem a característica de ser inevitavel<strong>mente</strong> ambígua, sendo um modo <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong>de do inconsciente se revelar e se ocultar ao mesmo tempo. É o<br />
inconsciente de um paciente sendo decodificado pelo outro, o do terapeuta,<br />
através dos registros de seu inconsciente, ambos formados por inúmeras<br />
vozes que constituem a história de ca<strong>da</strong> um.
38<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
A função do analista é, sobretudo, permitir que a situação analítica se<br />
desenvolva, devendo, para isso, escutar cui<strong>da</strong>dosa<strong>mente</strong> as associações<br />
do paciente, observando sua conduta e percebendo suas próprias reações.<br />
Isso não significa que o analista deva permanecer silencioso durante to<strong>da</strong> a<br />
sessão. É importante que transmita, em suas intervenções e interpretações,<br />
uma atmosfera de tolerância e um estímulo afetuoso para que o paciente<br />
expresse tudo o que lhe vier à <strong>mente</strong>.<br />
Sabe-se que isso, no entanto, não é o suficiente, já que o paciente, em<br />
maior ou menor grau, manifesta alguma resistência em relação à regressão<br />
provoca<strong>da</strong> pelo processo analítico. Caso o analista perceba um aumento no<br />
nível de resistência como, por exemplo, quando o paciente deixa de falar<br />
ou ocupa a análise só com sonhos, ou ain<strong>da</strong> demonstra qualquer um dos<br />
muitos e diferentes signos de resistência reconhecíveis, esse então deve<br />
ser o mais importante foco do trabalho analítico, até que se possa interpretar<br />
aquele momento <strong>da</strong> terapia.<br />
2.2 O PROCESSO PSICANALÍTICO<br />
A cura pela palavra, ou seja, a possibili<strong>da</strong>de de tratar doenças através<br />
do diálogo, foi cria<strong>da</strong>, conforme já citei no item anterior, por Sigmund Freud<br />
no final do século XIX. Em 1896, Freud utilizou, pela primeira vez, o termo<br />
“psico-análise”, isto é, conversas “com alma” (psique). O jovem médico<br />
sistematizou o uso do diálogo com o objetivo de minorar sofrimentos e<br />
perturbações mentais.<br />
A terapia psicanalítica tem como principal objetivo desfazer as causas<br />
<strong>da</strong> neurose. Em outras palavras: procura descobrir e solucionar os conflitos<br />
neuróticos do paciente, de forma que aspectos inconscientes que ficaram<br />
excluídos do processo de amadurecimento possam se tornar conscientes.<br />
Esse pode ser um processo extrema<strong>mente</strong> doloroso para o paciente, pois<br />
é necessário reviver e relembrar sentimentos, sensações e situações<br />
traumáticas. Conforme colocado anterior<strong>mente</strong>, para que o analista tenha<br />
acesso a esse conteúdo inconsciente do paciente, faz-se uso <strong>da</strong> associação<br />
livre, considera<strong>da</strong> o método fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> <strong>psicanálise</strong>, também chama<strong>da</strong><br />
“regra básica” (GREENSON, 1981, p. 27).<br />
Quando o paciente, sofrendo de uma neurose, procura tratamento<br />
psicanalítico com o desejo consciente de mu<strong>da</strong>r alguma coisa, existem<br />
forças inconscientes dentro dele que vão contra essa mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>. A essas<br />
forças dá-se o nome de resistências. Durante o tratamento, o paciente irá
39<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
repetir as mesmas manobras defensivas que realiza em sua vi<strong>da</strong>. A análise<br />
dessas resistências é o que a técnica psicanalítica busca em primeiro lugar.<br />
Segundo GREENSON (1981, p. 40),<br />
O termo “analisar” é uma expressão compacta que<br />
abrange aquelas técnicas que aumentam a compreensão<br />
interna. Em geral, inclui quatro procedimentos<br />
diferentes: confrontação, esclarecimento, interpretação<br />
e elaboração (working through). [...] O procedimento<br />
analítico mais importante é a interpretação; todos os<br />
outros procedimentos estão a ela subordinados, teórica e<br />
pratica<strong>mente</strong>. Todos os procedimentos analíticos ou são<br />
medi<strong>da</strong>s que levam a uma interpretação ou medi<strong>da</strong>s que<br />
tornam eficiente uma interpretação.<br />
A associação livre é, então, um dos métodos fun<strong>da</strong>mentais para se<br />
alcançar uma interpretação eficiente dos conflitos trazidos pelo paciente.<br />
Greenson (1981, p. 35) afirma que “a associação livre tem priori<strong>da</strong>de sobre<br />
todos os outros meios de produção de material na situação analítica”. O<br />
paciente é convi<strong>da</strong>do a associar livre<strong>mente</strong> durante to<strong>da</strong> a consulta, mas<br />
pode também relatar sonhos e acontecimentos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> cotidiana. O<br />
analista pede ao paciente que tente deixar as coisas aparecerem e dizê-las<br />
sem preocupação com lógica, ordem, vergonha, censura. A “regra” é deixar<br />
as coisas virem à <strong>mente</strong>. Para conseguir isso, o paciente precisa suportar<br />
a incerteza, a ansie<strong>da</strong>de, a depressão, as frustrações e humilhações que<br />
podem surgir no decorrer de sua fala. Porém, é crucial que o paciente se<br />
deixe levar por suas emoções durante a sessão psicanalítica para que seu<br />
discurso possa ser uma experiência genuína.<br />
Para poder chegar mais perto <strong>da</strong> associação livre, o<br />
paciente deve ser capaz de abandonar seu contato<br />
com a reali<strong>da</strong>de, parcial e temporaria<strong>mente</strong>. Mas deve<br />
ser capaz de <strong>da</strong>r informação precisa, de recor<strong>da</strong>r e de<br />
ser compreensível. Deve ser capaz de oscilar entre o<br />
raciocínio do processo primário. Esperamos que ele se<br />
deixe levar pelas suas fantasias, comunicá-las o melhor<br />
que puder, com palavras e sentimentos que poderão<br />
ser entendidos pelo analista. [...] Exigimos do paciente<br />
que seja capaz de ouvir e entender nossas intervenções<br />
e também associar livre<strong>mente</strong> sobre o que dissemos<br />
(GREENSON, 1981, p. 403).
40<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
O processo psicanalítico, em resumo, através <strong>da</strong> associação livre<br />
e <strong>da</strong> interpretação, busca produzir modificações duradouras no interior<br />
do paciente. Para tanto, busca-se tornar conscientes os conteúdos<br />
inconscientes. Porém, apenas essa toma<strong>da</strong> de consciência não é suficiente<br />
para provocar mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>s fun<strong>da</strong>mentais no interior do paciente. É preciso<br />
que ocorra a elaboração desses conflitos.<br />
Segundo Sandler, o conceito clínico de elaboração foi introduzido por<br />
Freud em um trabalho sobre “Recor<strong>da</strong>r, repetir e elaborar” em 1914. O autor<br />
coloca que:<br />
Aí Freud assinalou que o objetivo do tratamento, durante<br />
a primeira fase <strong>da</strong> <strong>psicanálise</strong>, tinha sido a recor<strong>da</strong>ção do<br />
acontecimento traumático patogênico [...], e a ab-reação do<br />
afeto representado, associado àquele acontecimento. Com<br />
o abandono <strong>da</strong> hipnose, a tarefa terapêutica passou a ser<br />
a de recuperar o conteúdo mental esquecido significativo<br />
e os afetos a ele ligados mediante as associações livres<br />
do paciente, e isso exigia “dispêndio de trabalho” por<br />
parte do paciente por causa de suas resistências contra<br />
o afloramento <strong>da</strong>quilo que estava reprimido (SANDLER,<br />
1976, p. 111).<br />
Através <strong>da</strong> recor<strong>da</strong>ção de situações traumáticas, o paciente busca<br />
“repetir” lembranças e sensações importantes para o trabalho analítico.<br />
E, ao interpretar as resistências que o paciente desenvolveu para efetuar<br />
essas recor<strong>da</strong>ções, o analista tem por objetivo mostrar como o passado se<br />
repete no presente. Porém, cabe salientar que mesmo que o analista traga<br />
às claras as resistências e as mostre ao paciente, isso não é suficiente<br />
para o tratamento progredir. É necessário que o paciente enten<strong>da</strong> como<br />
essas situações mal resolvi<strong>da</strong>s no passado se repetem no presente de<br />
forma semelhante.<br />
Assim, para Freud, a “elaboração” representava o trabalho<br />
que se faz necessário (tanto para o analista como para<br />
o paciente) a fim de superar as resistências à mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>,<br />
devi<strong>da</strong>s estas principal<strong>mente</strong> à tendência <strong>da</strong>s pulsões<br />
instintuais de se apegarem a padrões habituais de<br />
descarga. A elaboração representava o trabalho analítico<br />
que se somava ao trabalho requerido para desven<strong>da</strong>r os<br />
conflitos e as resistências. A compreensão interna profun<strong>da</strong><br />
(insight) intelectual sem a elaboração não era considera<strong>da</strong>
41<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
suficiente para a tarefa terapêutica, pois que persistiria a<br />
tendência de os padrões anteriores de funcionamento se<br />
repetirem segundo suas formas habituais (SANDLER,<br />
1976, p. 112-113).<br />
O objetivo <strong>da</strong> elaboração é efetivar a compreensão interna, ou seja,<br />
provocar mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>s significativas e duradouras no paciente. O analista tem<br />
o papel de estruturar e articular o material produzido pelo paciente, de forma<br />
a identificar as resistências que se repetem ao longo dos acontecimentos<br />
e que impedem a compreensão interna para gerar mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>s. E, mais<br />
importante: fazer com que o paciente identifique essas resistências também<br />
e, assim, consiga adotar um novo comportamento.<br />
Freud costumava considerar a elaboração, tanto a realiza<strong>da</strong><br />
espontanea<strong>mente</strong> como a resultante <strong>da</strong> análise, como um trabalho psíquico.<br />
O trabalho consistia em transformar e transmitir as energias recebi<strong>da</strong>s pelo<br />
aparelho psíquico. A forma de dominar a energia psíquica, para Freud, era<br />
ligando-a a representações. Nesta forma de ver, a elaboração transforma<br />
uma quanti<strong>da</strong>de física de energia psíquica em quali<strong>da</strong>de psíquica. Ou seja,<br />
ligando determinado afeto à outra representação, nova, esse afeto poderá<br />
entrar no psiquismo, adquirindo novos sentidos.<br />
Para ilustrar o processo de elaboração, pensemos em uma menina<br />
que desenvolveu uma competição inconsciente com a irmã mais velha,<br />
que via como preferi<strong>da</strong> <strong>da</strong> mãe, mais bonita, mais inteligente. Ao entrar<br />
para escola de <strong><strong>da</strong>nça</strong> sentia-se uma perdedora, incapaz de ser admira<strong>da</strong><br />
e de também competir. Ela nunca seria a bailarina principal. A convivência<br />
com colegas e, pela ação paciente <strong>da</strong> professora, começou a destacarse<br />
em algumas coreografias, sentindo-se bonita e ama<strong>da</strong>. Em outras,<br />
tinha uma posição secundária, como outras colegas, que enfrentavam<br />
isso natural<strong>mente</strong>. Aos poucos foi percebendo que poderia ser ama<strong>da</strong> e<br />
admira<strong>da</strong> em algumas situações, sendo a fonte de atenção, como poderia<br />
ficar em uma posição secundária em outras situações e continuar sentindose<br />
queri<strong>da</strong>, fazendo parte do grupo. Essa elaboração transformou uma<br />
energia psíquica causadora de sofrimento, presente na relação com a<br />
irmã, pela ligação em uma nova representação, surgi<strong>da</strong> com “as irmãs” do<br />
grupo de <strong><strong>da</strong>nça</strong>. Tornou-se mais amigável, mais alegre e criativa. Melhorou<br />
a relação com a irmã mais velha e, principal<strong>mente</strong>, consigo mesma.<br />
A elaboração, segundo Sandler (1976, p. 115), pode ocorrer fora <strong>da</strong><br />
sessão analítica. O autor coloca que a elaboração “é o tempo necessário<br />
ao real experimentar e reexperimentar, em termos intelectuais assim como
42<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
afetivos, de modo a efetuar-se a modificação construtiva”. Em síntese, a<br />
elaboração busca “educar” o paciente no sentido de reconhecer onde um<br />
determinado conflito ou uma determina<strong>da</strong> neurose repete-se em diferentes<br />
situações de sua vi<strong>da</strong>. E, a partir disso, tentar agir de outra forma.<br />
2.3 OUTROS CONCEITOS IMPORTANTES<br />
Para falar de Psicanálise, alguns conceitos devem ser esclarecidos<br />
visando melhor compreensão do assunto, bem como para posterior relação<br />
com a obra de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>. Nos itens anteriores deste capítulo, abordei<br />
os conceitos de associação livre, interpretação e elaboração. Somam-se<br />
a esses elementos, outros pilares que constroem a prática psicanalítica.<br />
Inicio trazendo a questão do silêncio na sessão terapêutica. Conforme já<br />
co<strong>mente</strong>i, o terapeuta fica em silêncio para deixar o paciente falar. E quando<br />
o paciente silencia? O que isso pode representar?<br />
Segundo Zimerman, o silêncio por parte do paciente pode demonstrar<br />
uma dificul<strong>da</strong>de de expressar seus sentimentos com palavras. Para o<br />
autor, “ao lado de uma manifestação resistencial, o silêncio também exerce<br />
uma importante função de comunicação não verbal na interação analistaanalisando”<br />
(1999, p. 369). Logo, o paciente silencioso não deve ser<br />
simples<strong>mente</strong> considerado como resistente à análise, apesar de que um<br />
silêncio demasiado extenso pode significar um obstáculo a ser vencido para<br />
o desenvolvimento do tratamento.<br />
Outra possível causa do silêncio do paciente trazi<strong>da</strong> por Zimerman é<br />
a elaboração dos insights. Segundo ele, em alguns casos, em momentos<br />
mais adiantados <strong>da</strong> análise, “ocorriam pausas silenciosas prolonga<strong>da</strong>s<br />
que correspondiam a um movimento interno de elaboração de insights<br />
parciais...” (1999, p. 370). Ou seja, o paciente cala para falar por dentro,<br />
refletir, compreender o que está sendo tratado.<br />
A comunicação não verbal na situação psicanalítica pode ser<br />
considera<strong>da</strong> tão importante quanto o discurso verbal. Existem emoções<br />
que as palavras não expressam. Cabe ao terapeuta saber reconhecer essa<br />
outra forma de linguagem, decodificando as mensagens implícitas no que<br />
está atrás do verbo ou do silêncio. As expressões faciais, o modo de sentar,<br />
os gestos, a roupa; tudo é comunicação. Soma-se a isso a forma de falar,<br />
levando em conta alternâncias na intensi<strong>da</strong>de e timbre de voz.<br />
Outro conceito que julgo importante trazer é o de transferência.<br />
A relação paciente e analista apresenta uma série de características
43<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
peculiares. Uma delas é o fenômeno <strong>da</strong> transferência que, segundo<br />
Zimerman, representa:<br />
... o conjunto de to<strong>da</strong>s as formas pelas quais o paciente<br />
vivencia com a pessoa do psicanalista, na experiência<br />
emocional <strong>da</strong> relação analítica, to<strong>da</strong>s as “representações”<br />
que ele tem do seu próprio self, as “relações objetais” que<br />
habitam o seu psiquismo e os conteúdos psíquicos que<br />
estão organizados como “fantasias inconscientes”, com<br />
as respectivas distorções perceptivas, de modo a permitir<br />
“interpretações” do psicanalista, as quais possibilitem a<br />
integração do presente com o passado, o imaginário com<br />
o real, o inconsciente com o consciente” (1999, p. 331).<br />
Na transferência, o paciente coloca no analista sentimentos e<br />
situações traumáticas de forma que possa revivê-las e elaborá-las. Para<br />
Greenson, a característica principal <strong>da</strong> relação transferencial é o fato<br />
<strong>da</strong> “vivência de sentimentos - em relação a uma pessoa - que não está<br />
endereça<strong>da</strong> àquela pessoa e que, na ver<strong>da</strong>de, está à outra” (1981, p.<br />
168). Ou seja, uma determina<strong>da</strong> pessoa no presente, que no caso <strong>da</strong><br />
situação terapêutica é o analista, é reativa<strong>da</strong> como se fosse uma pessoa<br />
do passado, com a qual o paciente possui questões ou conflitos a serem<br />
resolvidos. Greenson coloca ain<strong>da</strong> que “a transferência é uma repetição,<br />
uma nova edição de um relacionamento objetal antigo” (1981, p. 168).<br />
Na relação transferencial, o paciente coloca inconsciente<strong>mente</strong><br />
o analista no lugar de alguma outra pessoa, com o objetivo de reviver<br />
uma determina<strong>da</strong> situação traumática e, a partir <strong>da</strong>í, tentar elaborála.<br />
Para Sandler, esse fenômeno caracteriza-se por “to<strong>da</strong> uma série de<br />
experiências psicológicas” que são revivi<strong>da</strong>s, “não como pertencente ao<br />
passado, mas aplica<strong>da</strong> à pessoa do médico, no momento atual” (1976,<br />
p. 34). Por exemplo, o paciente que possui muita raiva do chefe transfere<br />
esse sentimento para o terapeuta com a finali<strong>da</strong>de de elaborar esse conflito<br />
ao invés de brigar no trabalho.<br />
Um terceiro conceito que constitui um dos pilares <strong>da</strong> Psicanálise é o<br />
de setting. Para que o tratamento psicanalítico ocorra de maneira adequa<strong>da</strong><br />
e eficiente, é necessária a criação de um ambiente favorável, com regras e<br />
combinações claras entre paciente e terapeuta. Para Zimerman, setting pode<br />
ser conceituado como “a soma de todos os procedimentos que organizam,<br />
normatizam e possibilitam o processo psicanalítico” (1999, p. 301). Isso é,<br />
corresponde às atitudes conti<strong>da</strong>s no contrato analítico, bem como àquelas
44<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
defini<strong>da</strong>s durante a evolução <strong>da</strong> análise, como dias e horários <strong>da</strong>s sessões,<br />
valor <strong>da</strong> consulta e período de férias.<br />
O setting é fun<strong>da</strong>mental para que o paciente sinta-se à vontade para<br />
trazer seus conflitos, reproduzir antigas e novas experiências emocionais e,<br />
estabelecendo o vínculo transferencial, usar a sua parte adulta para crescer.<br />
O setting, de maneira geral, é então o cenário <strong>da</strong> Psicanálise, o espaço e as<br />
condições que permitem a situação analítica.<br />
Cabe salientar que a neutrali<strong>da</strong>de do analista é também um fator crucial<br />
no tratamento. Freud comparou o terapeuta a um espelho: “o psicanalista deve<br />
ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes na<strong>da</strong>,<br />
exceto o que lhes é mostrado” (ZIMERMAN, 1999, p. 296). O analista deve<br />
deixar de lado seus valores e critérios de julgamento, para adotar uma postura<br />
imparcial diante do paciente. Além disso, informações sobre a vi<strong>da</strong> pessoal<br />
do terapeuta não devem fazer parte <strong>da</strong> situação analítica, já que as mesmas<br />
demonstram preferências e pontos de vista. Zimerman afirma que, apesar <strong>da</strong><br />
neutrali<strong>da</strong>de, o terapeuta pode desenvolver uma relação de afeto com seus<br />
pacientes, “desde que ele não fique envolvido nas malhas <strong>da</strong> patologia...”<br />
(1999, p. 297).<br />
Por fim, trago o conceito definido como a pedra angular <strong>da</strong> prática<br />
psicanalítica: a resistência. Inicial<strong>mente</strong>, a resistência era considera<strong>da</strong><br />
qualquer obstáculo ao tratamento psicanalítico. Freud afirmou que tudo que<br />
interrompe o trabalho analítico é uma resistência. Hoje, esse conceito foi<br />
ampliado, sendo que resistência não se restringe apenas ao bloqueio de<br />
lembranças penosas, mas também à censura de impulsos inaceitáveis, de<br />
natureza sexual, que surgem distorcidos. Existem vários tipos de resistência,<br />
mas, de um modo geral:<br />
... a resistência no analisando é conceitua<strong>da</strong> como a<br />
resultante de forças, dentro dele, que se opõem ao<br />
analista, ou aos processos e procedimentos <strong>da</strong> análise,<br />
isto é, que obstaculizam as funções de recor<strong>da</strong>r, associar,<br />
elaborar, bem como o desejo de mu<strong>da</strong>r” (ZIMERMAN,<br />
1999, p. 310).<br />
Quando resistimos a alguma coisa, estamos nos opondo a ela. No<br />
caso <strong>da</strong> situação terapêutica, a resistência compreende to<strong>da</strong>s aquelas<br />
forças dentro do analisando que se opõem aos procedimentos <strong>da</strong> análise.<br />
Segundo Greenson, a resistência também dificulta o paciente de “obter e<br />
assimilar a compreensão interna” (1981, p. 64), indo contra seu desejo de<br />
mu<strong>da</strong>r. Greenson afirma também que “a resistência pode ser consciente,
45<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
pré-consciente ou inconsciente e pode ser expressa por meio de emoções,<br />
atitudes, ideias, impulsos, pensamentos, fantasias ou ações” (1981, p. 64).<br />
O que nos faz resistir a determina<strong>da</strong>s emoções, a certas lembranças<br />
e a outras não? Para Sandler, as ideias reprimi<strong>da</strong>s “eram considera<strong>da</strong>s<br />
como sendo “to<strong>da</strong>s de natureza dolorosa, capazes de despertar os afetos de<br />
vergonha, de autocensura e de dor física e o sentimento de ser prejudicado”<br />
(1976, p. 65). Em outras palavras, a resistência ocorre diante <strong>da</strong>quelas<br />
lembranças penosas, como também contra impulsos inaceitáveis.
3 METODOLOGIA<br />
A meu ver, escrever sobre arte é algo extrema<strong>mente</strong> subjetivo. A<br />
própria escolha pelo trabalho <strong>da</strong> coreógrafa <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> já demonstra minha<br />
predileção por uma linha de pensamento e uma forma de fazer <strong><strong>da</strong>nça</strong>. Já<br />
a Psicanálise entrou nesse trabalho como meio de melhor compreender o<br />
método de criação bauschiano. Porém, independente<strong>mente</strong> disso, falar de<br />
Psicanálise é falar <strong>da</strong> <strong>mente</strong> humana. E aí também existe um alto grau de<br />
subjetivi<strong>da</strong>de. Dessa forma, esse trabalho é, antes de tudo, autoral; seja na<br />
escolha <strong>da</strong>s referências, seja na escolha <strong>da</strong>s citações ou <strong>da</strong>s palavras. Até<br />
porque, como refere Sílvio Zamboni, “a discussão, a aceitação, a elaboração<br />
dos princípios em arte não são tão formais e organiza<strong>da</strong>s como ocorre nas<br />
comuni<strong>da</strong>des científicas” (2006, p. 32).<br />
O presente trabalho consiste em uma pesquisa científica de ordem<br />
qualitativa, com metodologia basea<strong>da</strong> em referenciais teóricos sobre o tema.<br />
Procurei fun<strong>da</strong>mentar minha escrita em diversos autores que estu<strong>da</strong>ram<br />
sobre ambas as áreas abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s: a <strong><strong>da</strong>nça</strong> de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e a Psicanálise.<br />
Meu principal instrumento de pesquisa foi a revisão bibliográfica, através<br />
<strong>da</strong> qual busquei refletir, confrontar, comparar diferentes pontos de vista.<br />
Dentro <strong>da</strong> área <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>, alguns dos autores pesquisados<br />
foram: Carla Lima, Ciane Fernandes, Fabio Cypriano, Sayonara Pereira e<br />
Solange Caldeira. Já na parte sobre Psicanálise, utilizei as obras completas<br />
de Sigmund Freud, Carlos Martins de Barros, David Zimerman, Joseph<br />
Sandler e Ralph Greenson.<br />
Busquei conceitos-chave <strong>da</strong> Psicanálise, como visão de sujeito,<br />
repetição, associação livre, setting, transferência, resistência e sublimação,<br />
para investigar o processo criativo de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>. Para tanto, realizei uma<br />
breve abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>, do surgimento <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro,<br />
bem como uma análise do processo de criação bauschiano e elementos<br />
relacionados ao Wuppertal Tanztheater. Sobre a Psicanálise, fiz um breve<br />
histórico de seu surgimento e de características <strong>da</strong> situação analítica,<br />
<strong>da</strong>ndo ênfase à associação livre. Por fim, procurei estabelecer as relações<br />
entre os dois campos estu<strong>da</strong>dos, comparando métodos, processos,<br />
dificul<strong>da</strong>des e objetivos; com a finali<strong>da</strong>de de responder ao problema <strong>da</strong><br />
pesquisa: existe semelhança entre o processo criativo bauschiano e<br />
o processo psicanalítico no que se refere ao acesso ao inconsciente<br />
através <strong>da</strong> associação livre?
47<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
A pesquisa qualitativa é aquela que busca investigar um<br />
determinado universo de significados, com o objetivo de compreender um<br />
fenômeno que acontece na reali<strong>da</strong>de social. Segundo Mirian Goldenberg<br />
(2004, p. 63), “... é evidente o valor <strong>da</strong> pesquisa qualitativa para estu<strong>da</strong>r<br />
questões difíceis de quantificar, como sentimentos, motivações, crenças e<br />
atitudes individuais”. Uwe Flick (2004, p. 34) traz a ideia de que,<br />
... as diferentes formas com as quais os indivíduos<br />
revestem de significado os objetos, os eventos, as<br />
experiências, etc. formam o ponto de parti<strong>da</strong> central para<br />
a pesquisa qualitativa. A reconstrução desses pontos de<br />
vista subjetivos torna-se o instrumento para a análise<br />
dos mundos sociais.<br />
Nesse viés, este projeto caracteriza-se por uma pesquisa qualitativa,<br />
porque investiguei se existem semelhanças entre dois fenômenos sociais de<br />
áreas com teorias e práticas distintas: o processo de criação coreográfica de<br />
<strong>Bausch</strong> e o processo psicanalítico. Ain<strong>da</strong> segundo Zamboni:<br />
Nas ciências exatas é mais fácil se colocarem questões<br />
lógicas pertinentes a uma ou várias teorias compatíveis,<br />
e se explicar racional<strong>mente</strong> o novo conjunto que compõe<br />
o novo paradigma. Em arte, os novos parâmetros não<br />
podem ser colocados como teses matemáticas, basea<strong>da</strong>s<br />
em <strong>da</strong>dos racionalizáveis, para convencer os indivíduos a<br />
aceitarem os novos padrões. (2006, p. 33)<br />
Entre as fontes documentais, utilizei a observação de vídeos de<br />
<strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>, disponíveis na Internet. Segundo Marina de Andrade Marconi<br />
(2002, p. 88), “a observação aju<strong>da</strong> o pesquisador a obter provas a respeito<br />
de objetivos sobre os quais os indivíduos não têm consciência, mas que<br />
orientam seu comportamento”. Segundo Uwe Flick (2004, p. 166),<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong> a forma como ca<strong>da</strong> vez mais as imagens<br />
apresenta<strong>da</strong>s na televisão e nos filmes influenciam as<br />
reali<strong>da</strong>des cotidianas, a questão sobre o que esses<br />
veículos podem nos dizer a respeito <strong>da</strong> construção social<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de está ganhando maior importância”.
48<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
Soma-se a esses veículos a Internet, a qual vem ganhando<br />
surpreendente força como meio de comunicação e pesquisa. Ou<br />
seja, a presente pesquisa lança mão de diversas formas de aceso ao<br />
conhecimento do tema proposto, como só poderia ser no atual momento<br />
de desenvolvimento <strong>da</strong> informação.
4 MENTES BRILHANTES<br />
Arte e Psicanálise são áreas que já há algum tempo são objetos de<br />
estudo e relação. O que existe de semelhante ou atraente entre esses dois<br />
campos sempre despertou interesse para pesquisas e questionamentos.<br />
O louco é mais criativo? Existe relação entre doença mental e criativi<strong>da</strong>de?<br />
Grandes artistas, como Van Gogh e Beethoven, eram talentosos em parte<br />
por suas <strong>mente</strong>s “anormais”? Essas e outras questões vêm acompanhando<br />
estudos sobre arte e Psicanálise.<br />
Tania Rivera (2002, p. 14) afirma que a arte é uma “maneira<br />
disfarça<strong>da</strong>, sempre desvia<strong>da</strong>” de expressão do inconsciente. O artista<br />
aspira a uma autoliberação e, através de sua obra, ele partilha com outros<br />
indivíduos que sofrem com a mesma restrição inevitável a seus desejos.<br />
As forças pulsionais em jogo na criação artística são as mesmas, segundo<br />
Freud, que levam à psiconeurose e à formação de instituições sociais.<br />
Rivera coloca ain<strong>da</strong> que, para a Psicanálise, o mais importante<br />
(mais do que a abor<strong>da</strong>gem de obras artísticas) é “o processo de criação<br />
artística, na medi<strong>da</strong> em que convoca e põe em questão a própria<br />
concepção psicanalítica do funcionamento psíquico” (2002, p. 30). A<br />
ênfase <strong>da</strong> Psicanálise na questão do desejo talvez seja, <strong>da</strong> mesma forma<br />
que na arte, um convite à deriva, ao movimento, posto que o desejo não<br />
se localiza ou nomeia, mas se esquiva sempre e ressurge em outra parte.<br />
Sigmund Freud e <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> não se conheceram. Ela nasceu no<br />
ano seguinte em que ele faleceu. Porém, percebo que ambos possuíam<br />
uma grande curiosi<strong>da</strong>de pelo que se passava na <strong>mente</strong> humana, pelo<br />
comportamento <strong>da</strong>s pessoas. Eram dotados de extrema sensibili<strong>da</strong>de e<br />
imaginação. Tinham o desejo de investigar as relações humanas e tudo o<br />
que as envolve. <strong>Bausch</strong> afirmou:<br />
a única coisa que eu fiz todo o tempo foi assistir às pessoas.<br />
Eu tenho apenas visto relações humanas, ou tentado vêlas<br />
e falar sobre elas. É nisso que eu estou interessa<strong>da</strong>.<br />
Não conheço na<strong>da</strong> mais importante” (FERNANDES,<br />
2007, p. 75).<br />
<strong>Pina</strong> recebeu de herança uma Psicanálise mais sóli<strong>da</strong>, uma socie<strong>da</strong>de<br />
que buscava valorizar tanto a <strong>mente</strong> quanto o corpo. Isto é, uma época em que,
50<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
ca<strong>da</strong> vez menos, acreditava-se na dicotomia entre corpo e <strong>mente</strong>. Nenhuma<br />
doença afeta apenas o corpo ou apenas a <strong>mente</strong>, mas sempre ambos.<br />
Segundo Giselle de Brito:<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> moderna na Alemanha se desenvolveu<br />
principal<strong>mente</strong> como uma busca por essências que<br />
respondessem à grande ansie<strong>da</strong>de e inquietude<br />
características do contexto histórico <strong>da</strong> Primeira Guerra<br />
Mundial e <strong>da</strong>s então recentes elaborações <strong>da</strong> Psicanálise<br />
de Freud. A resposta a esses fatos foi um movimento para<br />
dentro. Para os <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos, como para to<strong>da</strong> uma geração de<br />
artistas expressionistas, a única ver<strong>da</strong>de viria <strong>da</strong>s emoções<br />
internas, já que a reali<strong>da</strong>de não se mostrava confiável<br />
(2006, p. 21).<br />
Ferenczi, psicanalista húngaro, associava a cura à devolução ao<br />
paciente <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de pensar com originali<strong>da</strong>de. Segundo Carlos Alberto<br />
de Barros, “paciente e terapeuta devem estar disponíveis para a improvisação,<br />
abertos para o não pensado e dispostos a criar novas alternativas e<br />
possibili<strong>da</strong>des” (2003, p. 33). Ou seja, a criativi<strong>da</strong>de nos pensamentos e<br />
ações era considera<strong>da</strong> fator importante para a cura dos transtornos mentais. A<br />
doença mental vem sempre acompanha<strong>da</strong> <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de de “fazer diferente”,<br />
havendo um fechamento do indivíduo a novas alternativas. Passa a existir um<br />
obstáculo entre a pessoa e seu processo criativo.<br />
Uma <strong>da</strong>s principais diferenças entre os homens e os animais é a<br />
capaci<strong>da</strong>de de emocionar-se. Essa característica permite aos seres humanos<br />
sentir, identificar, negar, expressar as emoções ou defender-se delas. Através<br />
<strong>da</strong>s “conversas com alma”, buscava-se a cura pela palavra. Freud demonstrou<br />
que o sofrimento psíquico é, de certa forma, criado pela pessoa, mantido<br />
por ela, e cultivado como se fosse necessário. E que pode ser curado ou<br />
amenizado no ato de conversar.<br />
Freud, em seu artigo O inconsciente, assinala que<br />
é nas lacunas <strong>da</strong>s manifestações conscientes que<br />
temos que procurar o caminho do inconsciente, isto<br />
é, onde a construção lógica falha é que a ver<strong>da</strong>de do<br />
sujeito inconsciente aparece e diz algo sobre o seu<br />
desejo (LIMA, 2008, p. 21).<br />
Tanto a Psicanálise como a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> consideram<br />
o sujeito não como o sujeito cartesiano, do “penso, logo existo”, mas o
51<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
sujeito que não detém total conhecimento de si, portador de uma ver<strong>da</strong>de<br />
inacaba<strong>da</strong>. Freud e <strong>Pina</strong> consideravam o ser humano como resultado de<br />
múltiplas experiências e sentimentos, conscientes ou não. Segundo Carla<br />
Lima (2008, p. 41), “o sujeito cartesiano é também produtor de ideias cujo<br />
sentido é inequívoco e seguro...”. Ou seja, é um sujeito de certeza.<br />
A Psicanálise, enquanto saber que postula a existência de um<br />
sujeito do inconsciente, traz-nos a ideia de que não temos total controle<br />
do que pensamos e sentimos. Esse é o sujeito <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, em permanente<br />
transformação. E é esse o sujeito convocado por <strong>Bausch</strong>, o qual “na<strong>da</strong> no<br />
lago obscuro de um saber que não se sabe” (LIMA, 2008, p. 72). É nesse<br />
lugar do não saber que <strong>Pina</strong> busca suas inspirações; no lugar do esquecido,<br />
do recalcado, do jogado fora do saber consciente.<br />
Ain<strong>da</strong> sobre o sujeito comum à Psicanálise e à <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de<br />
<strong>Bausch</strong>, é importante salientar que o mesmo é considerado como resultado<br />
do meio onde nasce, cresce e vive. Todos nós nascemos já inseridos em<br />
uma ordem simbólica que antecede a nossa chega<strong>da</strong>. Ordem essa que já<br />
cria meios e possibili<strong>da</strong>des para a nossa inserção. Desse modo, o sujeito<br />
nasce e cresce assujeitado ao contexto. Logo, sua formação, seus valores<br />
e experiências terão sempre uma estreita ligação com tudo que o cerca.<br />
Segundo Kazuo Ohno, um dos criadores <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> Butoh, “nós carregamos<br />
os mortos em nossas costas e eles nos guiam” (LIMA, 2008, p. 83). Somos<br />
então um paradoxo, portador do passado e do futuro ao mesmo tempo.<br />
Com base nas características desse sujeito, a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de<br />
<strong>Bausch</strong> é chama<strong>da</strong> de um fazer do meio, pois considera o antes, o durante<br />
e o depois; passado, presente e futuro. A meu ver, é possível dizer que o<br />
mesmo faz a Psicanálise. O paciente é analisado levando em conta todo o<br />
caminho percorrido até então, onde ele está hoje e para onde quer ir.<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong>, enquanto arte, pode ser um meio de expressão dessas<br />
experiências e sentimentos do sujeito. Laban afirmou que:<br />
o homem se movimenta a fim de satisfazer uma<br />
necessi<strong>da</strong>de. Com sua movimentação tem por objetivo<br />
atingir algo que lhe é valioso. Entretanto, há também<br />
valores intangíveis que inspiram os movimentos<br />
(ALMEIDA, 2009, p. 20).<br />
<strong>Pina</strong>, assim como a Psicanálise, buscava “extrair” do sujeito esses<br />
sentimentos inconscientes, aquelas emoções que residem na falha <strong>da</strong><br />
consciência. Para conseguir tal tarefa árdua e dolorosa, a coreógrafa, como
52<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
já citei no segundo capítulo deste trabalho, instigava seus bailarinos com<br />
perguntas a respeito de suas vi<strong>da</strong>s. Diferente<strong>mente</strong> <strong>da</strong> Psicanálise, em<br />
que o terapeuta não inicia lançando perguntas, mas deixando o paciente<br />
falar o que deseja. No tratamento terapêutico, a “pergunta” encontra-se no<br />
ambiente analítico, mas é o paciente que escolhe o assunto a ser abor<strong>da</strong>do.<br />
A associação livre, principal técnica psicanalítica, pode ser<br />
considera<strong>da</strong> também um método utilizado por <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> no seu processo<br />
de criação coreográfica. Apesar de <strong>Pina</strong> iniciar perguntando e do terapeuta<br />
iniciar escutando, tanto em um processo quanto em outro, a busca pelo<br />
acesso ao inconsciente ocorre através de uma fala dos bailarinos e do<br />
paciente com características comuns: ausência de censura, julgamentos,<br />
relações lógicas, ordem cronológica, regras, fórmulas. É uma fala, dentro do<br />
possível, sem filtros, é o deixar-se levar. Segundo Márcia de Campos:<br />
A associação livre proposta pela Psicanálise abre caminho<br />
para um inconsciente que é estruturado por contigui<strong>da</strong>de,<br />
de forma que, se prestarmos mais atenção, concluiremos<br />
que as associações não são tão livres assim, pois percorrem<br />
o caminho <strong>da</strong>s representações que foram previa<strong>mente</strong><br />
conecta<strong>da</strong>s e que juntas adquirem um sentido (2008, p. 4).<br />
A Psicanálise apropria-se dessa fala com o objetivo de transformála<br />
em novos comportamentos, em elaboração. A <strong><strong>da</strong>nça</strong> de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong><br />
quer transformá-la em movimento, em arte. Segundo Hoghe (1989, p 14),<br />
<strong>Bausch</strong>, quando formulava suas perguntas aos bailarinos, salientava que<br />
“critérios como certo ou errado não têm agora nenhuma importância”.<br />
A coreógrafa dizia aos seus intérpretes: “pense sem preocupações,<br />
um pouco assim... como vem” (HOGHE, 1989, p. 14). A meu ver, essa<br />
busca pela ausência de restrições na fala dos bailarinos assemelha-se<br />
ao discurso do paciente na sessão terapêutica, quando esse coloca em<br />
palavras emoções, conflitos e situações diversas. E me parece que <strong>Pina</strong><br />
concor<strong>da</strong>ria com Freud quando o mesmo afirma que a autocrítica pode<br />
impedir que determinados sentimentos se manifestem.<br />
Sendo assim, possivel<strong>mente</strong> muitos desejos <strong>da</strong> pessoa<br />
poderiam ser sufocados em função de um senso crítico<br />
exagerado, o que provavel<strong>mente</strong> poderia limitar no<br />
intérprete a experiência <strong>da</strong> potenciali<strong>da</strong>de expressiva e<br />
criativa (BRITO, 2006, p. 59).
53<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
Julgo interessante comentar que a Psicanálise procura colocar em<br />
palavras o que “não pode ser dito”, enquanto que a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Bausch</strong><br />
deseja representar imagens, histórias, sentimentos que transcendem as<br />
palavras. Isto é: a Psicanálise apropria-se do abstrato para verbalizá-lo, e a<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Pina</strong> apropria-se <strong>da</strong> palavra para abstraí-la em movimento,<br />
com o objetivo de ampliar o leque de interpretações que podem ser feitas a<br />
respeito. A Psicanálise, ao verbalizar a doença mental, o conflito emocional<br />
busca selecionar as interpretações que mais servem à melhora do paciente.<br />
Segundo Giselle de Brito, na <strong><strong>da</strong>nça</strong>:<br />
O exercício <strong>da</strong> associação livre parece descolar o sujeito<br />
<strong>da</strong> sua lógica de pensamento delibera<strong>da</strong> e intencional,<br />
jogando-o numa possibili<strong>da</strong>de de lógica aleatória, sem<br />
uma ordem defini<strong>da</strong>. As ideias podem fluir sem a tentativa<br />
de se mol<strong>da</strong>r a um raciocínio específico, causando no<br />
sujeito um estranhamento em relação à construção<br />
de sua lógica mental, pois mesmo não possuindo uma<br />
lógica coerente imediata, algum tipo de lógica vai se<br />
estabelecendo pelas conexões de aleatorie<strong>da</strong>de e pela<br />
interpretação que se tem delas (2006, p. 55).<br />
A associação livre traz a repetição de emoções e sentimentos<br />
vividos em situações passa<strong>da</strong>s. Isso ocorre dentro <strong>da</strong> sessão analítica,<br />
bem como no processo criativo bauschiano quando os bailarinos revivem<br />
suas histórias pessoais ao responderem as perguntas <strong>da</strong> coreógrafa.<br />
Dessa forma, penso ser coerente dizer que a repetição é um outro aspecto,<br />
além <strong>da</strong> associação livre, que está presente tanto na Psicanálise quanto<br />
na <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Bausch</strong>.<br />
Segundo Ciane Fernandes (2007, p. 127-128):<br />
Nas obras de <strong>Bausch</strong>, o futuro não repete nem se afasta<br />
do passado, mas segue “trabalhando retroativa<strong>mente</strong><br />
através” dele, transformando-o ao repeti-lo. O conceito de<br />
“trabalhando através” foi inicial<strong>mente</strong> colocado por Sigmund<br />
Freud, em contraste aos de “repetição” e de “lembrança”.<br />
A repetição ocorre quando o paciente reproduz em suas<br />
ações, não em sua memória nem consciência, o passado<br />
reprimido e esquecido. Tal comportamento apenas traz<br />
mais de si mesmo, mantendo os traumas passados e<br />
esquecidos no inconsciente. “Lembrança” é a reprodução<br />
de uma situação passa<strong>da</strong> na memória do paciente, o qual<br />
sabe que se trata de algo distinto de sua vi<strong>da</strong> atual, sem
54<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
interferir em suas resistências. “Trabalhando através”<br />
refere-se a um contínuo processo de viver através<br />
<strong>da</strong>s resistências e repressões como num playground,<br />
recuperando memórias perdi<strong>da</strong>s e transformando as<br />
reações repetitivas em consciência quanto às resistências<br />
e seu poder.<br />
Apesar de possuir uma finali<strong>da</strong>de distinta <strong>da</strong> Psicanálise, a <strong><strong>da</strong>nça</strong>teatro<br />
de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> utiliza-se desse mesmo princípio de reconstrução<br />
simbólica de experiências dos bailarinos. Segundo Ciane Fernandes,<br />
as questões propostas por <strong>Pina</strong> “instigam a memória emocional e sua<br />
transformação em linguagem simbólica” (2007, p. 49). Freud, em seu<br />
texto Construções em análise, comparou o trabalho do psicanalista ao<br />
do arqueólogo, pois ambos procuram reconstruir algo que se perdeu.<br />
“Assim, o analista edifica uma história do sujeito a partir dos restos e<br />
lacunas, efetivando a construção do infantil ali onde a rememoração<br />
falha” (LIMA, 2009, p. 5).<br />
Percebo que os espetáculos de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> também se constroem<br />
a partir dessas narrativas fragmenta<strong>da</strong>s, resultantes <strong>da</strong>s associações livres<br />
dos bailarinos. Segundo Carla Lima, o processo de criação <strong>da</strong>s obras de<br />
<strong>Bausch</strong> também<br />
se dá a partir dessa estranha urdidura do esquecimento.<br />
Assim, a lei do esquecimento se exerce no interior <strong>da</strong><br />
tessitura de seus espetáculos, construindo narrativas,<br />
em torno de algo que escapa (2009, p. 6).<br />
A coreógrafa inicia sua caminha<strong>da</strong> pelas bor<strong>da</strong>s, delineando o<br />
inatingível, dentro do campo <strong>da</strong>s sensações, dos afetos; fazendo uso, não só<br />
do movimento, mas também <strong>da</strong> mesma isca usa<strong>da</strong> na Psicanálise: a palavra.<br />
A associação livre, nas obras de <strong>Pina</strong>, não se encontra apenas no<br />
processo criativo <strong>da</strong> coreógrafa. O formato dos espetáculos, as temáticas<br />
escolhi<strong>da</strong>s e a ordem <strong>da</strong>s cenas demonstram uma nova forma de encenação,<br />
caracteriza<strong>da</strong>, muitas vezes, por ações fragmenta<strong>da</strong>s e enredos paralelos.<br />
Segundo Patrícia Spindler, <strong>Bausch</strong><br />
trabalha com a técnica <strong>da</strong> colagem com associação livre,<br />
em que pequenas cenas ou sequências de movimento<br />
são fragmenta<strong>da</strong>s, repeti<strong>da</strong>s, alterna<strong>da</strong>s ou realiza<strong>da</strong>s<br />
simultanea<strong>mente</strong>, sem um definido desenvolvimento na<br />
direção de uma conclusão resolutiva (2007, p. 83).
55<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
Eliana Rodrigues Silva afirma que, na obra de <strong>Pina</strong>, é possível<br />
perceber uma “estrutura episódica” aparente<strong>mente</strong> sem um fio condutor<br />
comum, que se encaixa “com a definição <strong>da</strong> nova narrativa <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> pósmoderna...”<br />
(2005, p. 123). A autora acrescenta ain<strong>da</strong>, indo ao encontro de<br />
Spindler, que “estratégias de associação livre entre as cenas, de montagem<br />
aleatória, de fragmentação e muita repetição são usa<strong>da</strong>s continua<strong>mente</strong>”<br />
(2005, p. 124).<br />
Dessa mesma forma, acontece a fala do paciente: fragmenta<strong>da</strong>,<br />
repeti<strong>da</strong>, alterna<strong>da</strong>. Essa escrita do inconsciente encontra-se então na<br />
Psicanálise e na <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Pina</strong>, elabora<strong>da</strong> através <strong>da</strong>s associações<br />
livres e <strong>da</strong> repetição de sentimentos e situações passa<strong>da</strong>s. Porém, além<br />
do método <strong>da</strong> associação livre como forma de acesso ao inconsciente,<br />
percebo outros fatores comuns na situação psicanalítica e no processo de<br />
criação bauschiano. Um deles é a criação de um espaço e combinações<br />
que privilegiam e induzem o desenvolvimento do tratamento terapêutico,<br />
no caso <strong>da</strong> Psicanálise; e <strong>da</strong> criação de movimentos, no caso de <strong>Pina</strong>.<br />
Em ambas as áreas, existe um ambiente facilitador para que o sujeito se<br />
entregue como tal, com suas peculiari<strong>da</strong>des e conflitos. Forma-se o setting<br />
ou o palco com características semelhantes para que isso aconteça.<br />
Hoghe (1989, p. 28) afirma que “<strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> cria uma situação de<br />
trabalho na qual é possível o ser humano poder reconhecer-se também em<br />
seus receios”. Ou seja, como a Psicanálise, a coreógrafa busca um entorno<br />
que colabora para que o sujeito apresente-se de forma mais autêntica.<br />
Percebo que o “incômodo” provocado pelo setting também é comum tanto<br />
na <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Bausch</strong> quanto na Psicanálise. Da mesma forma que<br />
o paciente pode sentir-se constrangido, estranho, temeroso em colocarse<br />
aberta<strong>mente</strong> no tratamento, os bailarinos de <strong>Pina</strong> sentiam-se, muitas<br />
vezes, tensos e incomo<strong>da</strong>dos pelo processo de criação <strong>da</strong> coreógrafa.<br />
Julgo interessante colocar alguns relatos de bailarinos <strong>da</strong> companhia<br />
de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong>, sobre a dificul<strong>da</strong>de de trabalhar com a coreógrafa nos<br />
primeiros momentos. Dominique Mercy coloca que:<br />
Às vezes, não respondemos porque a pergunta nos toca<br />
demasiado, perturba-nos, emociona-nos. Mas sabemos<br />
que há sempre uma maneira de ir mais além, mais longe,<br />
sabemos que temos que lutar contra esse pudor. Tenho a<br />
certeza de que, se <strong>Pina</strong> nos faz a mesma pergunta mais<br />
do que uma vez, em períodos diferentes, é porque intui<br />
tudo isso: sabe que nas nossas respostas há sempre<br />
uma possibili<strong>da</strong>de de ir mais fundo, de obter algo que
56<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
anterior<strong>mente</strong> nos escapou, ou que, por medo de nós<br />
próprios, quisemos deixar escapar (MERCY apud LIMA,<br />
2008, p. 104).<br />
O treinamento em <strong><strong>da</strong>nça</strong>, comu<strong>mente</strong> feito por exercícios práticos e<br />
virtuosismos, acompanhados de suor e fadiga física, no caso de <strong>Bausch</strong>, são<br />
aliados a horas e horas de conversa, escuta, espera, reflexão, silêncio. Mas,<br />
de início, como em um tratamento psicanalítico, novos modos de trabalho<br />
que exigem um alto grau de exposição do sujeito causam resistências.<br />
Quando a coreógrafa começou a criar seus espetáculos a partir de perguntas,<br />
Dominique Mercy, bailarino de <strong>Pina</strong>, questionou: “para que perder horas,<br />
todos sentados a falar?” (LIMA, 2008, p. 101).<br />
Do mesmo modo que o analista faz perguntas e conduz uma<br />
reflexão dolorosa para o paciente, <strong>Bausch</strong> provocava seus bailarinos. Suas<br />
perguntas direcionam-se para aquilo que do sujeito não se mostra com<br />
facili<strong>da</strong>de; exige trabalho, desprendimento, insistência e coragem. E, como<br />
afirma Carla Lima, exige tudo isso “porque há resistência” (2008, p. 104),<br />
como existe na situação analítica.<br />
A bailarina Anne Marie Benati coloca:<br />
Durante os ensaios, responder é por vezes difícil,<br />
mesmo impossível. É preciso dizer a ver<strong>da</strong>de e não<br />
se consegue. Então, o que dizemos soa falso. Quando<br />
chega a minha vez, dou por isso, porque sinto logo o<br />
entulho no estômago. Sinto a exigência profun<strong>da</strong> de<br />
dizer a ver<strong>da</strong>de, mas escondo-me por detrás de gestos<br />
e palavras que não me pertencem. Experimento uma<br />
sensação de mal-estar. Isto é, receio que todos deem<br />
por isso, <strong>Pina</strong> em primeiro lugar (Anne Marie Benati apud<br />
LIMA, 2008, p. 104).<br />
Josephine Ann Endicott, também bailarina <strong>da</strong> companhia, relata:<br />
Às vezes temos a impressão que <strong>Pina</strong> faz sempre as<br />
mesmas perguntas. E parece-nos que não aguentamos<br />
mais. Um tema proposto frequente<strong>mente</strong>, por exemplo:<br />
“o que se faz quando se está sozinho?”. Depois, no final,<br />
percebemos que a formulação é sempre diferente. As<br />
respostas variam: de acordo com a atmosfera do espetáculo<br />
que se está a ensaiar, segundo o estado de alma de ca<strong>da</strong><br />
um de nós, segundo o nosso grau de disponibili<strong>da</strong>de,
57<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
segundo o nível de relação que nos liga nesse momento<br />
a <strong>Pina</strong>, aos outros bailarinos e, sobretudo, a nós próprios<br />
(Josephine Ann Endicott apud LIMA, 2008, p. 104).<br />
A partir dos depoimentos dos bailarinos, percebo que existia uma<br />
resistência dentro deles semelhante à senti<strong>da</strong> pelo paciente na situação<br />
terapêutica. O exercício de recor<strong>da</strong>r momentos dolorosos a partir <strong>da</strong>s<br />
perguntas de <strong>Bausch</strong> era algo penoso e difícil, como acontece na análise.<br />
Além disso, <strong>Pina</strong> apresentava a seus intérpretes um modo de fazer<br />
diferente, uma outra forma de criar <strong><strong>da</strong>nça</strong>. De certa maneira, é o mesmo<br />
papel do terapeuta: descobrir junto com o paciente um novo modo de sentir<br />
e fazer as coisas. Esse tipo de mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>, profun<strong>da</strong> e de valores por demasia<br />
enraizados, gera insegurança e medo diante do desconhecido, do novo. E<br />
sobre essa busca pelo que surpreende, pelo novo, <strong>Pina</strong> coloca:<br />
Às vezes só podemos esclarecer algo encarando o que<br />
não sabemos. E às vezes as perguntas que fazemos<br />
levam a coisas muito antigas, que não procedem só em<br />
nossa cultura nem só tratam do aqui e agora. É como se<br />
recuperássemos um saber que sempre tivemos, mas que<br />
nem sempre é consciente e presente (BAUSCH apud<br />
LIMA, 2008, p. 120).<br />
Para José Gil, o método de criação bauschiano faz,<br />
vir à superfície cama<strong>da</strong>s soterra<strong>da</strong>s de emoções e<br />
sentimentos que nenhum outro tipo de movimento<br />
(Ballet, Dança Moderna: os dois campos de onde em<br />
geral vêm os bailarinos de Wuppertal) - consegue<br />
alcançar (2009, p. 173).<br />
Pergunto se, possivel<strong>mente</strong>, os bailarinos estabeleciam com <strong>Pina</strong><br />
uma relação transferencial, como o paciente com seu analista. Isso, a meu<br />
ver, é algo muito particular de ca<strong>da</strong> intérprete e variável conforme o tipo de<br />
relação que ca<strong>da</strong> um possuía com a coreógrafa. To<strong>da</strong>via, julgo interessante<br />
comentar que o fenômeno <strong>da</strong> transferência, característico <strong>da</strong> Psicanálise,<br />
possui estreita ligação com o ato de repetir, tão utilizado por <strong>Pina</strong> como<br />
método de criação coreográfica. Segundo Sandler, o paciente, na análise, “é<br />
obrigado a repetir o material reprimido como uma vivência contemporânea,<br />
ao invés de [...] recordá-lo como algo pertencente ao passado” (1976, p. 36).<br />
A repetição do passado, sob forma de transferências contemporâneas, era,
58<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
para Freud, consequência <strong>da</strong> “compulsão a repetir” (SANDLER, 1976, p. 36),<br />
como uma tentativa de ressignificar, para chegar a uma nova elaboração.<br />
Se não posso saber o quanto existia de transferência por parte dos<br />
bailarinos para a figura de <strong>Pina</strong>, penso, então, ser coerente dizer que o<br />
ato de <strong><strong>da</strong>nça</strong>r, de exteriorizar sentimentos passados, de reviver essas<br />
emoções no presente através de movimentos são formas de relações<br />
transferenciais; não com uma pessoa, mas com uma ação. Ação na qual<br />
o intérprete de <strong><strong>da</strong>nça</strong> dialoga simultanea<strong>mente</strong> com três consciências (ou<br />
inconsciências): a do coreógrafo, a do público e a sua própria.<br />
Segundo Márcia de Campos:<br />
Uma <strong>da</strong>s marcas <strong>da</strong> representação é a capaci<strong>da</strong>de de<br />
presentificar o passado. A recor<strong>da</strong>ção coloca o fato no<br />
passado, propõe um distanciamento, enquanto que a<br />
repetição atualiza estratos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica que não<br />
podem ser lembrados, <strong>da</strong>í serem atuados. A ação é,<br />
portanto, uma maneira de lembrar sem se <strong>da</strong>r conta<br />
ou, visto de outra maneira, uma repetição para não<br />
esquecer. A memória <strong>da</strong> infância já não é mais a infância,<br />
mas o presente <strong>da</strong> análise, algo que se apresenta no<br />
atual como um nó a ser desatado (2008, p. 4).<br />
Se a transferência não se estabelece so<strong>mente</strong> com a figura de <strong>Pina</strong>,<br />
a ação de transformar sentimentos passados em <strong><strong>da</strong>nça</strong> pode ser, de certa<br />
forma, um caminho para reviver esses sentimentos. A possibili<strong>da</strong>de de que<br />
isso ocorra se deve ao fato de <strong>Pina</strong> conceber ao gesto o estatuto de palavra,<br />
utilizando-o “com seu potencial de comunicação, conferindo às imagens<br />
sensoriais diversas capaci<strong>da</strong>de de gerar significados” (CAMPOS, 2008, p. 4).<br />
Outra possibili<strong>da</strong>de é a ocorrência do fenômeno <strong>da</strong> sublimação.<br />
Segundo Zimerman,<br />
Freud utilizou esse termo para designar alguma ativi<strong>da</strong>de<br />
humana bem-sucedi<strong>da</strong>, principal<strong>mente</strong> no campo<br />
artístico, [...] que aparente<strong>mente</strong> não teria nenhuma<br />
relação direta com a sexuali<strong>da</strong>de (2001, p. 396).<br />
A pessoa retira a energia e a capaci<strong>da</strong>de criativa <strong>da</strong> pulsão sexual e<br />
coloca em outra ativi<strong>da</strong>de. A arte, no caso <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> para os bailarinos de<br />
<strong>Bausch</strong>, assim como para todos os artistas, pode ser um ato sublimatório.<br />
Para Márcia de Campos, a <strong><strong>da</strong>nça</strong> é
59<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
entre as manifestações artísticas a que mais se aproxima<br />
<strong>da</strong> satisfação pela via sexual, já que, por utilizar como<br />
instrumento o próprio corpo, acaba por encontrar meios<br />
de comover a corporei<strong>da</strong>de (2008, p. 8).<br />
O corpo fala <strong><strong>da</strong>nça</strong>ndo.<br />
A questão <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de, também é fato<br />
comum no papel de <strong>Pina</strong> e do analista. Ambos precisam abandonar<br />
seus valores e pontos de vista para observar sem vícios e censuras. O<br />
terapeuta, de início, escuta; <strong>Pina</strong> provoca, lança a pergunta-chave. Na<br />
situação analítica, é o paciente que fornece a direção do discurso, sendo<br />
conduzido pelo analista. É interessante notar que tanto a coreógrafa<br />
quanto o terapeuta não sabem exata<strong>mente</strong> aonde irão chegar. No caso<br />
<strong>da</strong> coreógrafa, segundo José Gil, ela:<br />
tem uma ideia, mas limita<strong>da</strong>, reduzi<strong>da</strong> quase<br />
exclusiva<strong>mente</strong> a significações abstratas. A “hipótese”<br />
só se tornará uma ideia (de movimento) quando se<br />
desenvolver em associações de sentido, quando se ligar<br />
a gestos, quando os gestos e o movimento se exprimirem<br />
desde o começo em emoções (2009, p. 174).<br />
<strong>Pina</strong> não escolhe as perguntas aleatoria<strong>mente</strong>. Mas quando as<br />
lança a seus bailarinos não sabe que caminho irão percorrer. O início<br />
<strong>da</strong> criação de um novo espetáculo sempre é o mais fatigante, pois um<br />
território desconhecido começa a ser desven<strong>da</strong>do. Segundo Hoghe,<br />
“mesmo quando ain<strong>da</strong> não se pode delinear a direção em que a peça<br />
irá desenvolver-se, as perguntas buscam - giram em torno de uma coisa<br />
determina<strong>da</strong>” (1989, p. 15). Acredito que a situação analítica tenha um<br />
começo semelhante. O terapeuta pode ter uma vaga ideia do diagnóstico<br />
do paciente, levantar consigo mesmo algumas suposições, hipóteses<br />
interpretativas. Porém, nem ele, nem o próprio paciente sabem ao certo<br />
aonde irão chegar com o tratamento.<br />
Mesmo com muitos aspectos semelhantes entre o processo<br />
psicanalítico e o processo de criação bauschiano no que se refere ao<br />
acesso ao inconsciente - uso <strong>da</strong> associação livre, resistência, transferência,<br />
sublimação e setting - penso que não podemos dizer que a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de<br />
<strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> possua fim terapêutico. Não só pelo fato de a coreógrafa não<br />
possuir formação para tal procedimento, mas também porque sua principal<br />
busca é pela arte, pelo movimento que emociona. To<strong>da</strong>via, pode acontecer
60<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
de seu modo de trabalhar gerar algum nível de elaboração de um conflito<br />
emocional de um de seus bailarinos, por todos esses aspectos comuns à<br />
situação terapêutica.<br />
Ilustro esse pensamento com a história, cita<strong>da</strong> por Carlos Vieira<br />
(2009), de Olivier Messien, compositor francês, preso em um campo de<br />
concentração nazista, no verão de 1940. Frente à morte eminente, forma<br />
um quarteto de músicos dentro do campo e compõe uma sinfonia. A<br />
estreia ocorre dentro do próprio campo. A música possui notas repletas<br />
de agonia e dor, e Messien, dessa maneira, sublima, elabora, converte<br />
sua dor em expressão artística, musical. Ele “re-presenta”, torna presente<br />
e ressignificado o trauma. Predominam as pulsões de vi<strong>da</strong>, gerando<br />
criativi<strong>da</strong>de. É nesse espaço que <strong>Pina</strong> cria e <strong><strong>da</strong>nça</strong>.
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
O que me fez ter vontade de iniciar esta pesquisa foi um incômodo<br />
comum. Uma sensação estranha que senti na terapia e na <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro. Um<br />
sentimento, ao mesmo tempo, difícil e interessante. Então, resolvi investigar<br />
se a Psicanálise e a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> possuíam alguma<br />
semelhança no que se refere ao processo criativo bauschiano e o processo<br />
psicanalítico, mais especifica<strong>mente</strong> em relação ao acesso ao inconsciente<br />
através <strong>da</strong> associação livre. A meu ver, por sua riqueza e criativi<strong>da</strong>de, a<br />
obra de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> poderia ser investiga<strong>da</strong> por inúmeras óticas. Escolhi<br />
a Psicanálise pelos motivos pessoais já citados e por ser essa uma área<br />
também rica e criativa.<br />
Como escreve o filósofo historiador Michel Foucault, “o saber não<br />
serve para consolar, ele decepciona, inquieta, secciona, fere” (SPINDLER,<br />
2007, p. 13). E é isso que a Psicanálise e a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Bausch</strong> buscam:<br />
desmanchar o corpo organizado, a <strong>mente</strong> quieta. E conseguem. Quando<br />
iniciei esta pesquisa, conforme citei, meu problema era investigar se existia<br />
semelhança no processo criativo bauschiano e o processo psicanalítico,<br />
no que se refere ao acesso ao inconsciente através <strong>da</strong> associação livre.<br />
No decorrer do trabalho, percebi que essa semelhança existe não só na<br />
aplicação do exercício <strong>da</strong> associação livre, mas também em outros aspectos.<br />
O processo de montagem <strong>da</strong>s obras de <strong>Pina</strong> assemelha-se à<br />
situação analítica em questões como criação de setting, resistência,<br />
transferência, sublimação, repetição; além <strong>da</strong> própria associação livre.<br />
Evidente<strong>mente</strong>, não se pode afirmar que a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong><br />
seja terapêutica, pois essa não é a área de estudo e formação <strong>da</strong><br />
coreógrafa, nem é esse o seu objetivo. Mas percebo nos relatos dos<br />
bailarinos <strong>da</strong> companhia que eles tinham sentimentos bastante parecidos<br />
com os do paciente em análise. Também se sentiam aliviados e criativos<br />
durante o processo desenvolvido e <strong><strong>da</strong>nça</strong>do.<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> buscava o sujeito <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, <strong>da</strong><br />
interrogação. Esse mesmo sujeito <strong>da</strong> Psicanálise, que se apresenta<br />
vulnerável, com falhas e disposto a se conhecer. <strong>Pina</strong> procurava bailarinos<br />
experientes na <strong><strong>da</strong>nça</strong> e na vi<strong>da</strong>, pois o mais importante para ela era<br />
a personali<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um. A Psicanálise trabalha com isto: vi<strong>da</strong> e<br />
personali<strong>da</strong>de, com a busca <strong>da</strong> saúde mental.
62<br />
A <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>da</strong> <strong>mente</strong> <strong>Pina</strong> <strong>Bausch</strong> e Psicanálise<br />
Já é sabido que doença mental e criativi<strong>da</strong>de possuem uma estreita<br />
relação. Segundo o psicólogo Eugen Bleuler, contemporâneo de Freud,<br />
o elo entre geniali<strong>da</strong>de e doença mental justifica-se no fato <strong>da</strong>s “idéias<br />
fluírem com mais rapidez e, sobretudo, de as inibições desaparecerem”,<br />
o que “estimula as capaci<strong>da</strong>des artísticas” (KRAFT, 2004). Artistas cujas<br />
obras são referências mundiais possuíram uma conturba<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> emocional.<br />
Entre eles, posso citar Nietzsche, que enlouqueceu; Fernando Pessoa, que<br />
tinha problemas relacionados à bebi<strong>da</strong>; Van Gogh, que se suicidou; Cecília<br />
Meirelles, que sofria de depressão crônica; e Maiakoviski, que também se<br />
matou. Mas então, grosso modo, para ser criativo, é preciso ser louco?<br />
Nesses casos citados, o célebre dom criativo caminhava lado a lado com<br />
uma “instabili<strong>da</strong>de psíquica clara<strong>mente</strong> dota<strong>da</strong> de traços patológicos”, que<br />
incluíam alterações extremas de humor, dependência de álcool e drogas,<br />
manias e depressão severa (KRAFT, 2004).<br />
O que é saúde mental? Essa é uma pergunta feita desde que o<br />
homem passou a prestar atenção em si mesmo e nos outros. O conceito<br />
que implica uma ideia de “normali<strong>da</strong>de” é extrema<strong>mente</strong> complexo. Envolve<br />
aspectos culturais, sociais, religiosos, época e história. Por inúmeras<br />
vezes, autores tentaram unificar a ideia de saúde mental. Penso que seja<br />
difícil fazer isso sem contextualizar o sujeito. Segundo a Organização<br />
Mundial <strong>da</strong> Saúde (OMS), cita<strong>da</strong> por Sadock (2007, p. 31): saúde mental é<br />
o “estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Porém, o próprio<br />
autor ressalta que essa definição é limita<strong>da</strong>, pois define saúde física e<br />
mental simples<strong>mente</strong> como a ausência de doenças físicas e mentais. Na<br />
mesma obra, consta a definição do Mental health: a report of the surgeon<br />
general: saúde mental é<br />
a realização bem-sucedi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s funções mentais, em<br />
termos de raciocínio, humor e comportamento, que resulta<br />
em ativi<strong>da</strong>des produtivas, relacionamentos satisfatórios<br />
e capaci<strong>da</strong>de de se a<strong>da</strong>ptar a mu<strong><strong>da</strong>nça</strong>s e enfrentar<br />
adversi<strong>da</strong>des (SADOCK, 2007, p. 31).<br />
A partir dessas ideias, penso que a imagem excessiva<strong>mente</strong> utiliza<strong>da</strong><br />
e romantiza<strong>da</strong> do gênio maluco desacredita, em certa medi<strong>da</strong>, o trabalho, o<br />
caráter e o estado mental dos que li<strong>da</strong>m com arte. O fato de muitos artistas<br />
com enfermi<strong>da</strong>des psíquicas terem recusado tratamento no passado talvez<br />
tenha contribuído para essa visão distorci<strong>da</strong>. Sem aju<strong>da</strong> terapêutica, correse<br />
o risco de que os transtornos acentuem-se. O sujeito ultrapassa uma
63<br />
Maria Tereza Furtado Travi<br />
fronteira que acaba gerando uma incapaci<strong>da</strong>de de produzir e criar. A doença<br />
toma conta <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, impedindo-o de ser e fazer diferente.<br />
Acredito que a obra de <strong>Pina</strong> possua essa estreita relação com<br />
a Psicanálise, no que se refere a aspectos semelhantes de métodos e<br />
processos, principal<strong>mente</strong> porque ambas têm a mesma visão de sujeito.<br />
E a criativi<strong>da</strong>de de <strong>Bausch</strong>, a meu ver, vem justa<strong>mente</strong> dessa capaci<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> coreógrafa de observar e perceber esse sujeito, com seu pensamento<br />
flexível e sua sensibili<strong>da</strong>de, com o dom de unir coisas que, à primeira vista,<br />
não apresentam qualquer conexão entre si. O trabalho de <strong>Pina</strong>, assim como<br />
a Psicanálise, contempla dois eixos fun<strong>da</strong>mentais: o eixo vertical, que é o<br />
<strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de enquanto fonte de estudo e análise; e o eixo horizontal, que<br />
representa o contexto no qual o sujeito localiza-se, relaciona-se.<br />
Conforme mencionei anterior<strong>mente</strong>, a Psicanálise procura colocar<br />
em palavras o que “não pode ser dito”, enquanto que a <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de<br />
<strong>Bausch</strong> deseja representar o que transcende as palavras. Enquanto o<br />
processo psicanalítico busca apropriar-se do abstrato para verbalizá-lo, a<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro de <strong>Pina</strong> apropria-se <strong>da</strong> palavra para abstraí-la em movimento,<br />
com o objetivo de ampliar o leque de interpretações que podem ser feitas<br />
a respeito. Já Psicanálise, ao colocar em palavras a doença mental, busca<br />
selecionar as interpretações que mais servem à melhora do paciente. A<br />
Psicanálise elabora com palavras, e <strong>Pina</strong>, com estética e <strong><strong>da</strong>nça</strong>-teatro.<br />
Por fim, julgo importante comentar que <strong>Pina</strong>, assim como o terapeuta,<br />
reconhecia, na tênue linha que divide a loucura e a normali<strong>da</strong>de, um<br />
campo fértil para expressão dos sentimentos. É nesse espaço do entre, do<br />
desconhecido, do quase que <strong>Pina</strong> transita. Porém, a coreógrafa, de forma<br />
semelhante ao analista, com sua sensibili<strong>da</strong>de e autoconhecimento, tinha a<br />
capaci<strong>da</strong>de de visitar o terreno dos conflitos psíquicos e sair dele, trazendo<br />
a matéria-prima para sua obra. Isto é, <strong>Pina</strong> tinha a clara ideia de que não<br />
poderia se deixar contaminar total<strong>mente</strong> pelas emoções, traumas e situações<br />
penosas relata<strong>da</strong>s pelos bailarinos. Ela caminhava no campo que divide<br />
e une, simultanea<strong>mente</strong>, consciente e inconsciente; ligando, sobrepondo,<br />
brincando, jogando e ressignificando os dois lados, sempre com o objetivo<br />
de transgredir, questionar conceitos social<strong>mente</strong> preestabelecidos. Propôs,<br />
através <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>, surpreender, trabalhar com o estranhamento e, aí,<br />
modificar o olhar.<br />
Sem pretensão de esgotar o assunto pesquisado, este trabalho é o<br />
primeiro passo para um estudo mais amplo, instigante e rico. É um salto em<br />
um palco que começa a se iluminar.
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