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Sapeca - 13

Misto de sapo e perereca

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<strong>Sapeca</strong><br />

Misto de sapo e perereca<br />

Nº <strong>13</strong> – Fevereiro/2018 – Editor: Tonico Soares<br />

_<br />

_<br />

MUSA DO TRIMESTRE<br />

Evita Perón foi calorosamente recebida no Rio por Eurico Dutra e, em Madri,<br />

pelo ditador Francisco Franco. Em Paris e Roma, menos e no Vaticano, friamente.<br />

Na Suíça, cuidou da fortuna depositada nos bancos de lá. ‘Apenas fui portadora de<br />

uma mensagem de paz e de fraternidade da Argentina ao mundo’, justificou. Ao<br />

passar de navio por Recife, dormiu uma noite, recebida em palácio pelo governador.<br />

Mesmo com dores e vomitando, manteve a pose e participou do banquete, usando<br />

casaco de pele, sendo que lá a temperatura gira em torno de +30 graus. Usando também,<br />

por certo, um lindo porta-seios, como o que V. Ex. vê no reclame acima.


O pavão e a ave de rapina<br />

Desde a Independência, não é incomum o Brasil mudar de regime sem<br />

dar um tiro. Já na Argentina, país mais alfabetizado e politizado, por qualquer<br />

dá-cá-aquela-palha multidão toma conta da Plaza de Mayo, com mortos e feridos.<br />

O tempo de Juan Domingo Perón não foi diferente. Ele começou a despontar<br />

em fins dos anos 30, patente de coronel. Conhecia como poucos as regiões<br />

inóspitas do país, tipo Patagônia, e foi mandado pra Itália, aprender a<br />

guerrear nas montanhas. E descobriu que quando o governante se torna um<br />

mito (Mussolini, no caso) é mais fácil governar, o povo disposto a morrer por ele.<br />

Voltou à Argentina, acumulando cargos administrativos, enquanto o<br />

país continuou simpático ao nazi-fascismo, a ponto de não revidar quando teve<br />

dois navios afundados por submarinos alemães. Só no finzinho da guerra, já<br />

praticamente ganha pelos aliados, pra fazer média com eles, rompeu com os<br />

perdedores. E tome golpes de estado, um deles, em 1945, cassou todos os cargos<br />

de Perón, que foi preso. Quatro dias depois, seus partidários tomaram o<br />

centro de Buenos Aires e o futuro caudilho discursou no famoso balcão da Casa<br />

Rosada, como candidato a presidente da República.<br />

Preparou-se minuciosamente pro cargo. Viúvo, necessitado de uma primeira-dama,<br />

casou-se com Eva Duarte, popular atriz de teatro e radionovelas,<br />

que conheceu num espetáculo no Luna Park. O casamento do pavão com a ave<br />

de rapina, diziam os opositores. A mãe dela teve seis filhos com um homem<br />

casado, que reconheceu todos, menos Evita. Revoltada, jurou: “Serei alguém<br />

na vida” – bom título prum dramalhão. Ao som de tango.<br />

Em 1946, enfim presidente, Perón foi promovido a general. Havia muito<br />

dinheiro, que permitiu construir hospitais, universidades, obras diversas, com<br />

o slogan ‘Perón cumpre’. Como depois faria Juscelino, anistiava os revoltosos,<br />

menos os mais ferrenhos, que se asilavam no Uruguai, país que odiava<br />

Perón. Sempre cultivando seu mito e o de Evita que, no papel de fada-madrinha<br />

dos descamisados, acumulou mais prestígio e fortuna que o marido. E o<br />

culto aos chefes só crescia: os membros da CGT pularam de 80 mil pra meio<br />

milhão, em pouco tempo, dispostos a fazer tudo que seu mestre mandasse.<br />

E mandava e desmandava, com ampla maioria na Câmara. Estilo messiânico,<br />

populista, demagogo, “desenvolvimentista”, dizendo-se indispensável,<br />

único, insubstituível. Não censurava a imprensa, mas reduziu o fornecimento<br />

de papel, obrigando todos os jornais a circularem com, no máximo, oito páginas.<br />

Seu arquirrival era Braden, embaixador dos Estados Unidos, no afã de<br />

impor seus produtos, em detrimento dos ingleses. Na campanha pra reeleição<br />

rolou até o slogan gozativo ‘Perón ou Braden’. Deu Perón, claro, mas os tem-


pos eram outros, dinheiro minguante, tentativas de golpe. Pra complicar, Evita<br />

morreu aos 33 anos, de câncer no útero, não sem antes atirar um cinzeiro no<br />

médico que a desenganou. Cadáver prontamente embalsamado e exposto à<br />

adoração pública, como os de Lênin e Stalin, coisa de ditaduras.<br />

Dona mandona, ela deu tapa na cara de Perón, chamando-o de maricas,<br />

quando ele hesitou a candidatar-se a presidente, alegando que a ocasião ainda<br />

não era propícia. Em troca de favores governamentais, empresários a cobriam<br />

de joias, até uma milionária mansão, pras ‘obras sociais”, que ela embolsava,<br />

oferecendo brinquedos, sidra e pão doce, no Natal. Recebida como uma rainha<br />

no Brasil e na Espanha, não teve igual sorte na França, Itália e com o papa Pio<br />

XII, o mesmo que concedia passaportes a nazistas que se esconderam na Argentina.<br />

Pra não entregar a fortuna de Evita à sogra, Perón ‘provou’ que esta<br />

era louca, ajudado pelo filho dela, seu secretário Juancito, que meteu-se em<br />

negócios fraudulentos com casas pré-fabricadas e ‘cometeu suicídio’.<br />

E prevendo outra guerra mundial, a partir da rivalidade EUA x URSS,<br />

Perón mandou fazer uma bomba de hidrogênio com material mais barato, provocando<br />

gargalhadas na comunidade científica internacional. Seu poder também<br />

encolhia e chegou a hora de renunciar, acuado pelas forças armadas. Asilou-se<br />

num barco paraguaio ancorado no rio da Prata, sem gasolina, pelo que<br />

Stroessner de pronto enviou socorro e Perón foi pra Assunção. Dali, voou pro<br />

Panamá, cheio de americanos, portanto, mais seguro procurar outro porto. Nicarágua,<br />

Venezuela, República Dominicana e, finalmente, Espanha.<br />

Viúvo pela segunda vez, passou a se cercar de adolescentes. Razão:<br />

aquele homenzarrão de voz poderosa tinha ‘pênis infantil’, segundo se soube,<br />

e chegou a morar disfarçadamente com uma garota de 14 anos. No Panamá,<br />

foi ver a apresentação de um grupo de dança argentino e gostou de uma integrante,<br />

Isabelita. Como ele escrevia muito pra jornais, também livros, contratou-a<br />

como datilógrafa, o que acabou em casamento.<br />

Sempre fazia negócios milionários e, na Espanha, foi dono de rede de<br />

postos de gasolina. Vizinho de Ava Gardner, foram amigos, por algum tempo.<br />

Ele ensinou macetes a Isabelita que, em rápida visita a Buenos Aires, apaziguou<br />

uma ala dissidente do partido. Noutra ocasião, tentou voltar com ela, presos<br />

no aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro, e recambiados a Madri.<br />

E houve o momento em que só ele poderia salvar a pátria, retornando ao<br />

poder com apoio dos militares (1973), morrendo um ano depois. A vice, Isabelita,<br />

assumiu, até ser derrubada por outro golpe, que fez inclusive uma guerrinha<br />

perdida contra a Inglaterra, nas Malvinas. E o país redemocratizou-se,<br />

sem, contudo, extirpar “aquele tango que traz dentro de si”, como disse uma<br />

cataguasense. Faltou no livro que li a informação de que Perón expulsou Libertad<br />

Lamarque da Argentina, pra não ofuscar o brilho de Evita.


Continuando na Argentina, com Borges, que odiava Perón<br />

Rivalcir (isso é nome?) Liberato: ‘A paternidade e os espelhos são abomináveis,<br />

porque multiplicam o número de homens’. Melhor ir ao original,<br />

com Jorge Luis Borges: ‘Los espejos y la cópula son abominables, porque<br />

multiplicam el número de los hombres’. Sempre essa mania de censura, no<br />

caso, ao vocábulo cópula, além de inverter a ordem das palavras. Conheci a<br />

frase em 1971, creio que no Pasquim, em português, na ordem certa e sem<br />

censura: ‘Os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número<br />

dos homens’. Na época, discordei do escritor, hoje, do ponto de vista<br />

ecológico, penso que, desde que deixou de ser comida de outros bichos, a humanidade<br />

é a única espécie que não faz falta ao planeta. A seguir, mais Borges.<br />

• No hables a menos que puedas mejorar el silencio.<br />

• Yo no hablo de venganzas ni perdones, el olvido es la única venganza y el<br />

único perdón.<br />

• Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente.<br />

No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso.<br />

• La muerte es una vida vivida. La vida es una muerte que viene.<br />

• Todas las teorías son legítimas y ninguna tiene importancia. Lo que importa<br />

es lo que se hace con ellas.<br />

ese quimérico museo de formas inconstantes, ese montón de espejos rotos.<br />

• Que otros se jacten de las páginas que han escrito; a mi me enorgullecen las<br />

que he leído.<br />

• La duda es uno de los nombres de la inteligencia.<br />

• Para el argentino, la amistad es una pasión y la policía una mafia.<br />

• No eres ambicioso: te contentas con ser feliz.<br />

• Creo que con el tiempo mereceremos no tener gobiernos.<br />

• ¿Quién soy? Estoy tratando de averiguarlo.<br />

• El fútbol es popular porque la estupidez es popular.<br />

Quanto ao futebol, concordo, mas tem um porém: Borges gostava de<br />

touradas, que abomino. Justificava dizendo que os ibéricos aprenderam aquilo<br />

em Creta, minotauro no labirinto, por aí. Em tempo: quando disseram que ele<br />

chamou Isabelita de puta, negou, dizendo que um cidadão educado à inglesa<br />

jamais falaria isso de uma senhora. ‘Mesmo que ela seja’, acrescentou.


Notas<br />

Prefeiturais<br />

• No lado mais arborizado da prefeitura um sabiá abre o bico todas as tardes,<br />

há bastante tempo. A durabilidade do canto se explica pelo fato de a espécie<br />

viver de 25 a 30 anos. Ali também vi na janela um periquito australiano e deu<br />

vontade de dar as boas-vindas, convidando-o a entrar. Li sobre e soube que é o<br />

terceiro bicho mais estimado no mundo, depois do cachorro e do gato. E um<br />

dia vi um urubu pousado no topo daquele prédio, mas deixa isso pra lá.<br />

• Daquela mesma janela vi uma cena digna de um filme: um senhor estacionou<br />

o carro, saltou, contornou pela frente, abriu a porta, deu a mão à sua senhora,<br />

auxiliando-a a se erguer. E, de braços dados, foram orar no santuário. Um indivíduo<br />

de reputação nada estimável, contudo, fiquei enternecido.<br />

• Uma mulher ia lá todo dia levando duas malas com rodinhas e uma bolsa<br />

grande, que uma funcionária guardava, enquanto ela ia dar suas voltas. Motivo:<br />

morava com o irmão e a cunhada, e esta vendia suas roupas, mais seguro<br />

carregá-las consigo. Dizia que a cunhada não usava calçola e um dia, espiando<br />

um jornal, perguntou o que é ‘mulher com IPTU’. A outra corrigiu (a sigla era<br />

TPM) e explicou o significado. Outro dia, um funcionário se aproximou com o<br />

intuito de abraçá-la e ela recusou: ‘Para, senão ou orino toda’.<br />

• Candidato derrotado a prefeito foi lá visitar o ocupante do cargo em fim de<br />

mandato, igualmente derrotado. Chegou justo na hora em que o alcaide adentrava<br />

o gabinete e gritou lá da porta: ‘Fulano, fulano, se ocê tivesse me apoiado<br />

a gente ia mandar nessa disgrama aqui por mais quatro anos’. ‘Mandar’<br />

não é o verbo adequado e ‘disgrama’ é a puta que o pariu, senti vontade de<br />

gritar. Coisa de coroné, essa praga que ainda domina a política brasileira. Não<br />

obstante, com toda aquela grossura, o disgramado foi eleito quatro anos após.<br />

• Certo dia, mulher classe média alta gritou do lado de fora da prefeitura pruma<br />

jornalista ir ver e fotografar seus três lindos cachorrinhos e fazer matéria<br />

pro jornal oficial – como se o município não tivesse coisa mais séria pra resolver.<br />

Pior quando uma foi lá, em lágrimas, com o retratinho de seu amado lulu,<br />

a fim de que o hebdomadário publicasse nota de falecimento do dito cujo. Outra<br />

pediu à chefia de gabinete um carro, num sábado (dia sem expediente), pra<br />

transportar o bolo de casamento de sua filha. E ainda outra foi pedir uma<br />

Kombi ou Van pra levar seus familiares ao enterro de um parente, numa cidade<br />

situada quatro horas depois de São Paulo. E outra falou que tempo bom era<br />

quando o prefeito dava passagem pra Aparecida do Norte. Então tá.


Noites Cariocas<br />

A princípio, Noites Cariocas era um chorinho de Jacob do Bandolim que nos<br />

anos 80 recebeu letra de Hermínio Belo de Carvalho (bebe pra caralho, diz Dori<br />

Caymmi), gravado por Gal Costa. Também uma danceteria no morro da Urca e mais<br />

tarde uma festa promovida por Cairu Teles Nunes, no antigo Teatro Rosário Fusco.<br />

Feijoada, samba, chorinho, bossa nova, tudo nos trinques e os devidos drinques.<br />

De brinde, uma encenação da música Construção, de Chico Buarque, direção<br />

de Jacqueline Gouvêa (operários em obra, um deles leva tijolada na cabeça e morre)<br />

e depoimentos de cariocas que vivem aqui x cataguasenses que viveram no Rio.<br />

Quatro minutos cada, tempo que só eu e um sujeito aí, que não merece ser citado,<br />

cumprimos. Casal do Méier escreveu alentada história do bairro, o que levou uma<br />

boa meia hora. Outro tanto falou um industrial que só bebe cachaça, aos litros, o que<br />

espichou muito o tempo regulamentar, muita gente indo embora antes do final.<br />

O meu falar foi sobre uma fase em área condenada a desaparecer, no famigerado<br />

<strong>13</strong>, número de uma casa abandonada em que morei com Juca Fusco, os fernandos<br />

Abritta e Montalvão, e um que ajudava no conjunto de Ironil, em Cataguais.<br />

Não sei por que cargas d’água apareceu por lá, onde, também não sei a razão, ganhou<br />

o apelido de João carga-dupla. Vivia de tráfico em pequena escala, cuidava da<br />

casa e saía com um blusão de trocador de ônibus, que lhe permitia viajar de graça.<br />

Uma noite, nada pra comer, ele envergou o blusão, tomou um busão (ônibus)<br />

até uma casa onde sua irmã era empregada e voltou com um caldeirão de sopa. A<br />

gente se sentava e dormia no chão de tábuas e, ali, ele estendeu uma folha de jornal,<br />

o caldeirão ao centro. Pegou a única colher, passou ao que estava perto, dizendo:<br />

– Come, meus irmãozim branco.<br />

E foi chorar na área, ao lado do tanque onde os mais pirados se refrescavam<br />

com banhos de caneca, todo mundo pelado. Fui atrás e falei que naquela casa ninguém<br />

era branco nem preto e era ele que merecia comer primeiro. E assim se deu.<br />

Eu almoçava no emprego e só depois passei a jantar, de pensão.<br />

Outra do carga-dupla: dali, fui morar no Grajaú, em rua que terminava ao pé<br />

do morro, sem favelas, só mato, que ficou sendo o fumódromo, quando a patota ia<br />

lá. E um dia, caçando um lugarzinho manero, topamos com o guarda florestal. João,<br />

escolado em bocas de fumo, mestre do disfarce, inventou que estávamos procurando<br />

joão-barandi e o guarda apontou o lado em que poderíamos encontrar. Aí, ali fumouse<br />

à vontade. Detalhe: o nome da erva é jaborandi, usada contra queda de cabelos.<br />

Na casa, ensaiava um conjunto que tocava em bailes, o que atraía maluco de<br />

todo lado, tipo uns hippies que pediram pra passar uma noite lá. Renato, líder do<br />

conjunto, não permitiu porque tinha uma garota menor de idade no meio, aí foram<br />

dormir na praia do Arpoador. Noites depois, baixa lá a polícia atrás da garota. Não a<br />

encontraram, contudo, certa fragrância de canabis sativa bastou pra levá-los a dar<br />

busca na casa, encontrando oito trouxinhas e fomos espremidos no camburão até o


distrito policial, recebidos com malícia pelo delegado, depois de contar quantos<br />

éramos: ‘Onze, um time de futebol! Vocês vão é mofar na cadeia, vagabundos!’.<br />

Carteira assinada, só Renato e eu possuíamos, o resto, estudantes e/ou filhinhos<br />

de papai, ou vagabundos, mesmo. A notícia chegou ao pai do líder, alfaiate na<br />

área (e de Ataulfo Alves), que conhecia os três que nos pegaram. Prometeu uma calça<br />

pra cada um (achei pouco, um policial americano pediria no mínimo uma caixa<br />

de uísque) e fomos dispensados. Ao voltar, alguém se lembrou que ainda jaziam três<br />

trouxinhas debaixo da caixa d’água, motivo pra darmos um viva à liberdade.<br />

Numa tarde de sábado, lá estiveram Capinam e Macalé, gente de certa fama<br />

que gostou da gente, o primeiro tendo voltado pra rodar um filme super-8 sobre a<br />

casa e a turma. Ficamos felizes feito pinto no lixo. Na primeira visita, Macalé, ao<br />

violão, cantou Já era e Tigre de papel, ambas com letras do outro, outra era Gotham<br />

City, que Montalvão pediu pra ouvir, pedido recusado. E perguntei a Capinam por<br />

que Torquato Neto estava esculhambando na imprensa o então exilado em Londres<br />

Caetano Veloso. ‘Homossexualismo mal resolvido’, respondeu.<br />

E aconteceu de eu ir trabalhar com Capin no ano seguinte e aconteceu também<br />

de Torquato se suicidar, o que muito lamentei, o cara era poeta porreta. Esteve<br />

preso, foi torturado, depois baixou no hospício, choque na cabeça, cruz credo! Capinam<br />

levou uma surra do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), dispensou um<br />

salariozão e voltou pra Salvador. Formou-se em medicina e a última notícia que tive<br />

é que era presidente do Movimento Negro da Bahia, com frequentes idas à África.<br />

O cineasta Afrânio Vital também rodou um curta-metragem lá, chamado<br />

1971. Maria Alcina ia vez ou outra e dormiu uma noite num meio-sofá, sem travesseiro,<br />

que não tinha (e não usava, ‘pra não ficar corcunda’). Depois gravou quatro<br />

músicas daqueles ‘vagabundos’, entre eles o futuro crítico musical Roberto M. Moura.<br />

O Abritta pode ter mais a dizer, digo apenas que valeu a experiência e não serei<br />

eu a sentir saudade, feito compositores antigos enricados com canções que exaltavam<br />

a felicidade de ter só um pandeiro e uma chinela. Pra rimar com favela.<br />

Cena do filme 1971: Montalvão peladão, Telma, Tonico, Luíza, Abritta e Woodstock.


Entrevista com Francisco Inácio Peixoto<br />

Que diz sobre a famosa revista Verde e sua turma?<br />

Nada além do que já foi dito e escrito. Leia-se, por exemplo, a apresentação<br />

que fez Guilhermino César – remanescente do grupo – para a edição facsimilada<br />

da revista, lançada pela Metal Leve S. A., graças à iniciativa de seu<br />

presidente, José Mindlin. De minha parte, por motivos que julgo óbvios, não<br />

bati palmas à ‘ressurreição’ da revista, embora não as negue à benemerência<br />

do Sr. Mindlin. Quanto à sua turma, parte morreu e parte se dispersou. Só eu,<br />

quase falecido também, permaneço (permaneci) em Cataguases.<br />

Tendo obtido sempre sucesso como escritor, por que tarda tanto a publicar<br />

livros e até mesmo a colaborar na imprensa?<br />

Nunca obtive sucesso como escritor. Sempre tive o voo curto. Os poucos<br />

livros publicados, à exceção de um, foram-no às expensas minhas. Vender,<br />

não se venderam. Incumbi-me eu de esgotá-los. Jamais os vi nos balcões<br />

das livrarias, o que demonstra, além de tudo, que foram mal distribuídos, ou<br />

sequer distribuídos. Apenas um livro – a tradução de Oblomov, de Gontcharov,<br />

foi publicado por conta das Edições O Cruzeiro. Guardo disto triste lembrança,<br />

pois o livro, sem minha tão solicitada revisão, saiu com uma enormidade<br />

incrível de erros, entre outras imperdoáveis falhas. A enormidade parece<br />

que passou despercebida. Mas já ressalvei o erro deplorável, na hipótese de<br />

uma segunda edição. Dificilmente me ocorreu ou ocorre ser solicitado para<br />

colaborar na imprensa indígena e, muito menos, alhures. E por que seria?<br />

Além do que sou desajustado por preguiça antiga.<br />

É conhecida a grande amizade que o ligou a Marques Rebelo. Que diz,<br />

em linhas gerais, sobre ele?<br />

Deixo que o próprio Marques diga e, pela segunda vez, transcrevo trecho<br />

de carta sua: ‘Chico, se eu morrer amanhã, você ficará livre de minhas<br />

cóleras e paixões, mas perderá a pessoa que mais acredita em você e lhe quer<br />

bem”.<br />

Tendo sido inovador no início de sua carreira literária, como encara os<br />

inovadores de agora?<br />

Claro que acho imprescindíveis os inovadores. Se nem sempre posso<br />

aplaudi-los, louvo-os. Se não pelo que escrevem, pelo muito que lutam.<br />

Acha que pode haver uma linha definida a ser seguida pelos contistas<br />

ou cada qual deve encontrar seu próprio caminho?


Claro que não há linhas definidas. Que cada qual encontre o seu próprio<br />

caminho.<br />

Mesmo um escritor muito moderno deve ter conhecimento profundo dos<br />

clássicos?<br />

Muito moderno? Escritor muito moderno? A pergunta, tal como foi formulada,<br />

me confunde. Dou resposta à outra parte, implícita no questionário: o<br />

conhecimento dos clássicos não é o que iria condicioná-los ao eterno.<br />

Qual é o gênero literário de sua predileção?<br />

Não tenho predileção por gêneros literários.<br />

A seu ver, o que explica o fato de Cataguases ser a cidade do interior<br />

brasileiro que mais oferece valores às letras, de geração em geração?<br />

Resumo a reposta: Cataguases sempre foi, e agora mais do que nunca,<br />

um equívoco.<br />

Entrevista extraída do livro Palavra puxa palavra, de José Afrânio Moreira Duarte, Editora do Escritor, São Paulo, 1982.<br />

<br />

Francisco Inácio Peixoto, Cataguases-MG, 1909-1986. Estudou no ginásio local<br />

e faculdades de BH e RJ. De volta, advogou por quatro anos e pensou em tentar a carreira<br />

diplomática, estabelecendo-se como diretor de fábrica e, por um tempo, de banco.<br />

Teve contos incluídos em 4 antologias, uma delas na Argentina. Disse ter se tornado um<br />

chômeur (desempregado) travestido de fazendeiro. A partir da Verde, publicou os livros<br />

Meia-Pataca, poemas (com Guilhermino César), Dona Flor e A janela, contos, Passaporte<br />

proibido (impressões de viagem à Tcheco-eslováquia e à Rússia) e Erótica, poemas.<br />

Sua tradução de Oblomov, de Gontcharov, além de mal editada, foi plagiada, fato<br />

divulgado na imprensa, em 2004. Segundo a Folha de São Paulo, o plágio vai da primeira<br />

à última página, até os erros são os mesmos da primeira edição. Coisa de uma<br />

editora chamada Germinal, culpada de outros plágios. As filhas do plagiado recorreram.<br />

‘Casa de Francisco Inácio<br />

Peixoto, projeto de Oscar<br />

Niemeyer, tem a frente voltada<br />

para o Rio Pomba, que<br />

passa nos fundos da casa’.<br />

Assim está escrito no Google. Estranhei,<br />

depois li que Niemeyer desenhou a<br />

varanda no andar superior pra ficar na frente,<br />

feito nos velhos casarões, e o Chico inverteu.<br />

Pra preservar sua privacidade?


Resposta à altura<br />

Entre outros, o Peixoto trouxe cá Roberto Burle Marx, que ajardinou sua casa,<br />

o colégio e o Hotel Cataguais. A propósito, no Rio duas dondocas se aproximaram<br />

dele, num banquete. Uma delas, com gestos langorosos, voz anasalada, uma afetação<br />

melosa, esticando as vogais, disse ao paisagista: ‘Você sabe que minhas plantas<br />

adoram ópera? Mas preferem A Flauta Mágica, não se dão bem com as italianas.<br />

Crescem que é uma coisa’. E a outra: ‘Pois as minhas preferem Brahms, principalmente<br />

o ciclo Magelone. E as suas, Roberto?’. Este respondeu sem floreios:<br />

– As minhas preferem bosta.<br />

Um amigo como nenhum outro<br />

Dei sorte, no Rio, de conviver com artistas, mais em função do trabalho.<br />

Alguns músicos e pintores, e bastante gente de cinema. Poetas e prosadores,<br />

muito poucos. Comentei isso com um amigo que trabalhava com o hoje acadêmico<br />

Antônio Torres, a fim de conhecê-lo, e Torres falou que não valia a<br />

pena. Mas valeu uma boa hora que papeamos num encontro casual, apresentado<br />

por aquele amigo. Lembrei que na véspera havia revisto na TV o filme O<br />

incidente (1967), de Larry Peerce, cineasta de quem não tive mais notícia.<br />

O suficiente pra deixar Torres empolgado, discorrendo um tempão sobre<br />

a fita, que vi primeiro no Cine Edgard. Vai aí a sinopse da distribuidora:<br />

‘Num fim de noite, dois jovens aterrorizam os passageiros num vagão do metrô<br />

de Nova York’. É pouco, ante o clima de tensão e alta dramaturgia com<br />

que o diretor conduz a trama. O ponto alto é quando um negro forte (negro<br />

terno e gravata, ‘maioria silenciosa’, lembrou meu interlocutor) reage às provocações<br />

dos safados. E estes agarram sua esposa, deixando-o incapaz de agir.<br />

Confesso que não li nenhum livro de Torres, até por não confiar muito<br />

em meus colegas de profissão. Talento profissional é uma coisa, talento literário,<br />

outra bem diferente. Entanto, ele fez carreira como escritor, chegando à<br />

ABL, queridinho da nobelizada Doris Lessing, é pouco, pois uma coisa e outra<br />

não significam necessariamente um grande escritor. O que há de mais coincidente<br />

entre nós é o fato de termos ido ao circo a primeira vez, sendo o mesmo<br />

circo: Águias Humanas, ele no interior da Bahia, eu, das Minas Gerais.<br />

Entretanto, esse pouco contato com profissionais das letras foi mais que<br />

compensado quando conheci um intelectual pra valer, chamado Manfredo<br />

Marguilles. Um senhor parecido com Jean-Paul Sartre, sem ser vesgo, com o


qual poderia discutir de igual pra igual, de filosofia a física quântica. Nasceu<br />

em Bucareste, morou cinco anos em Moscou, preso em campo de concentração<br />

na Polônia, conseguindo fugir pra Viena, Hamburgo, Antuérpia, de onde<br />

escapou pro Chile, via Canal do Panamá e, por fim, Rio de Janeiro. Precisa<br />

nem dizer que, nessa odisseia, lá se foram os anéis e outros bens de família.<br />

Com isso, acrescentou russo, espanhol e português (sem sotaque) ao seu<br />

repertório de línguas, que incluía romeno, latim, italiano, francês, alemão e<br />

inglês. Sua enciclopédia de referência era a alemã, sem dispensar a britânica.<br />

Um dia o encontrei na praia com dois jornais pra ler: Le Monde e Deustche<br />

Zeitung. Este assim se define: Nachrichten aus Politik, Kultur, Wirtschaft und<br />

Sport. Entendeu, leitor? E escrevia em cirílico, o alfabeto russo, com a facilidade<br />

que digito estas mal traçadas. Por certo, conhecia também hebraico, contudo,<br />

nesse quesito, aquele povo é muito fechado e, como disse o inglês A. J.<br />

P. Taylor, na questão judaica, ser contra ou a favor dá encrenca.<br />

Frequentávamos o mesmo bar e uma noite, todas as mesas cheias, ele<br />

me acenou convidando a compartilhar a que dividia com um diplomata e<br />

Jayme Maurício, crítico de arte que apresentou o concretismo a Manuel Bandeira.<br />

O assunto era ópera, em pleno Carnaval. Como já conhecia algumas,<br />

fiquei à vontade e amigo dele, um prazer renovado a cada opinião sua sobre<br />

letras e artes, coisas e loisas. Um dia senti que seu astral não parecia bom e<br />

perguntei se estava nervoso. ‘Nervoso, não, estou belicoso’ – foi a resposta.<br />

Vinha da casa de um amigo onde amigos se reuniam aos sábados, como<br />

fazia Plínio Doyle. Reclamava daqueles escritores que só escreviam livros<br />

‘pra eles mesmos lerem’, um deles, Marcos Konder Reis. De carona, o cineasta<br />

Paulo Cezar Saraceni, com quem falei em Cataguais sobre a falta que<br />

Manfredo faz, morto no começo dos anos 90, enquanto amarrava o sapato.<br />

O chauffeur por certo ficou a esperar na rua, a fim de conduzi-lo ao City<br />

Bank, onde trabalhava como economista, até chegar a empregada, que o encontrou<br />

no chão, chamou a ambulância etc. e tal. E assim ‘uma biblioteca se<br />

incendeia’, pra lembrar a bela metáfora de um escritor africano dirigida a Lygia<br />

Fagundes Telles, em caso de morte de todo idoso naquele continente cuja<br />

cultura é basicamente oral. Manfredo também nada deixou escrito.<br />

Vivia bem, degustando o seu caviar, roupas compradas nas férias anuais<br />

na Europa, voltando por Nova Iorque. O apartamento, porém, um quarto e sala<br />

que nem o meu, paredes forradas de livros e discos de música erudita. Num<br />

gavetão, dezenas de relógios de pulso, puro ouro, talvez pra compensar o ouro<br />

perdido em negociações com os nazistas. Amigo pra não se esquecer e, quase<br />

trinta anos post mortem, lembro-me dele toda manhã. Ao calçar os sapatos.


Da turma, vi Drummond umas vezes e conheci essa aí , Rita Moutinho.<br />

E vi um livro sobre o Sabadoyle em que Enrique de Resende comparece.<br />

Sabadoyle<br />

No dia 25 de dezembro de 1964 Carlos Drummond de Andrade telefonou<br />

ao amigo e bibliófilo Plínio Doyle, pedindo-lhe pra fazer uma consulta na<br />

sua biblioteca. Gostou e repetiu a visita no sábado seguinte. Aos poucos, a ele<br />

foram-se juntando outros escritores, seduzidos pelos mesmos atrativos: os livros,<br />

a boa conversa e o carisma do anfitrião. Eram apenas as ‘reuniões na casa<br />

do Plínio’, até que, dez anos depois, o poeta Raul Bopp se integrou ao grupo<br />

e cunhou o neologismo Sabadoyle. No Natal de 1972, resolveram registrar<br />

os eventos em ata e coube a Drummond lavrar a inaugural, eis um trecho:<br />

Dezembro, 23. Pelas estantes<br />

Flui um rumor de vozes dialogantes.<br />

Esta, indecisa, em tom desconfiado,<br />

é, vê-se logo, do bruxo Machado:<br />

‘Mudaria o Natal ou mudei eu?’<br />

‘Não sei, Mestre, responde-lhe Dirceu<br />

(o de Marília). Vale perguntar<br />

ao nosso prezadíssimo Alencar.’<br />

‘Também não sei. Vidrado em Iracema,<br />

só penso nela, que é o maior poema.’<br />

‘Perdão, protesta Rosa, pois enfim<br />

joia, mas joia mesmo, é Diadorim.’<br />

Em outra data, Drummond registrou:<br />

500 tardes… Plínio recebendo<br />

com o mesmo jeitão paciente gregos<br />

e goianos:<br />

o vasto bigodudo que vem da Bahia,<br />

o douto sociólogo que vem de Brasília,<br />

o vago poetinha que vem de Deus-me-<br />

Livre<br />

e traz na algibeira um infame poema<br />

que não ousa mostrar.<br />

<br />

<strong>Sapeca</strong> saiu trimestral de novo. Acontece, quando tem assunto.

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