Revista do Historiador - APH 193
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mas dívidas. Por isso, para se safar, juntou-se a<br />
uma companhia de ópera improvisada que veio<br />
realizar uma turnê caça-níqueis pela América<br />
<strong>do</strong> Sul. Há situações piores. Na sua divertida<br />
autobiografia (A Lua é um balão, Ed. Nova<br />
Época), o ator David Niven (1910-1983) escreve<br />
que, ao dar os primeiros passos como “extra”<br />
no cinema, dividia com colegas um trago<br />
<strong>do</strong> uísque intitula<strong>do</strong> “Neblina da Charneca”<br />
para ganhar mais desenvoltura em cena. Pelo<br />
nome, não devia ser um néctar.<br />
ReBelião na Plateia - Estamos na<br />
noite de 30 de junho de 1886, quarta-feira, com<br />
a lua nova no céu carioca. Das nove altas janelas<br />
na fachada <strong>do</strong> Theatro Dom Pedro II (*), no<br />
centro histórico <strong>do</strong> Rio, jorrava profusamente<br />
a iluminação a gás. A casa era imponente,<br />
a melhor da cidade, com 2.500 lugares, cuja<br />
guarda das cadeiras de jacarandá com assento<br />
de palhinha denotava o luxo: três recortes no<br />
encosto, <strong>do</strong>s quais, o <strong>do</strong> centro, esmalta<strong>do</strong> em<br />
preto e branco, anunciava a letra e o número.<br />
No piso superior, sobre a porta principal de<br />
quatro bandeiras, se localizava a tribuna imperial,<br />
onde a família real se comprazia com os<br />
espetáculos ou espiava os súditos assestan<strong>do</strong><br />
na plateia os minúsculos binóculos próprios<br />
de acompanhar óperas.<br />
No entanto, por trás <strong>do</strong> habitual frufru mundano<br />
dessas ocasiões, as coisas não corriam<br />
bem nos basti<strong>do</strong>res. Isto se devia ao amor próprio<br />
feri<strong>do</strong> <strong>do</strong> maestro Leopol<strong>do</strong> Miguez, que<br />
havia si<strong>do</strong> contrata<strong>do</strong> pelos empresários da<br />
companhia para conduzir as apresentações na<br />
etapa brasileira. Até então, a excursão, iniciada<br />
em Buenos Aires, transcorria sem sobressaltos.<br />
Mas na capital paulista começaram os<br />
problemas. A atuação <strong>do</strong> maestro não foi convenientemente<br />
apreciada, tanto por parte <strong>do</strong><br />
público como da imprensa. Produziu repercussões<br />
desagradáveis que chegaram ao Rio de<br />
Janeiro. O maestro, desgostoso, renunciou ao<br />
Arturo Toscanini<br />
trabalho, provocan<strong>do</strong> uma agressiva reação de<br />
apoio da população carioca. Isto deve ser credita<strong>do</strong><br />
ao respeito de que o maestro Miguez<br />
desfrutava na cidade e, talvez, à clássica rivalidade<br />
entre Rio e São Paulo que, em princípio,<br />
já estava instalada. (Aliás, o episódio está muito<br />
bem recorda<strong>do</strong> no blog “Ópera Sempre”, de<br />
Henrique Marques Porto). Para piorar a situação,<br />
um <strong>do</strong>s responsáveis pelo espetáculo, que<br />
está cita<strong>do</strong> apenas como Superti no noticiário<br />
a respeito, decidiu chutar o pau da barraca,<br />
como se diz hoje em dia. Anunciou, acirran<strong>do</strong><br />
os ânimos, que, ele próprio, sen<strong>do</strong> também regente,<br />
substituiria o brasileiro.<br />
Naquela noite, em que seria apresentada a<br />
ópera “Aída”, de Giuseppe Verdi (1831-1901),<br />
a abertura das cortinas foi saudada com uma<br />
vaia ensurdece<strong>do</strong>ra, que teria dura<strong>do</strong> cerca de<br />
30 minutos. Para nos apropriarmos de uma<br />
frase adequada, repetida à exaustão por Nelson<br />
Rodrigues, conforme fazia com todas as<br />
metáforas geniais que criava, a plateia urrava.<br />
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