Chicos 53 22-06-2018
Chicos é uma revista literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos teu e-mail e teremos prazer em enviar-te nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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N. <strong>53</strong><br />
<strong>22</strong> de junho de <strong>2018</strong><br />
e-zine de literatura e ideias<br />
de Cataguases – MG<br />
Um dedo de prosa<br />
Esta é a nossa edição <strong>53</strong>.<br />
<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos meios<br />
digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te<br />
enviar nossas edições.<br />
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a<br />
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno<br />
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos<br />
seus números, uma diversidade temática.<br />
Neste número, Francisco Inácio Peixoto é o poeta da<br />
primeira página. Ele é um dos nossos <strong>Chicos</strong>. Esta<br />
publicação tem este nome em homenagem a eles.<br />
Enquanto a Copa do mundo “rola” lá na Rússia. Por<br />
aqui, Marcelo Torres fala de Nelson Rodrigues e o<br />
goleiro do Liverpool e Antônio Jaime comenta os<br />
escritos de um russo que se radicou em Cataguases.<br />
Este número de início do inverno é o segundo deste<br />
ano. Uma agradável leitura para todos! E até o início<br />
da primavera de <strong>2018</strong>.<br />
Os <strong>Chicos</strong><br />
Capa: Foto Vicente Costa<br />
Editores:<br />
Emerson Teixeira Cardoso<br />
José Antonio Pereira<br />
Colaboradores:<br />
Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />
Fotografia - Vicente Costa<br />
Ilustrações - Altamir Soares e Merson<br />
Esta edição é dedicada<br />
aos 70 anos de<br />
Carlos Torres Moura<br />
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com<br />
Visite-nos em:<br />
http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />
https://independent.academia.edu/<strong>Chicos</strong>Cataletras<br />
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras<br />
01
<strong>Chicos</strong><br />
44 FERNANDO ABRITTA<br />
Não<br />
Foto de Carlos Moura<br />
03 FRANCISCO INÁCIO<br />
PEIXOTO<br />
Pedreira + alguns poemas<br />
12 FLAUSINA MÁRCIA<br />
DA SILVA<br />
Até amanhã... Sol<br />
13 MATHEUS GUMÉNIN<br />
BARRETO<br />
Primeiro +3 poemas<br />
17 ACIR SIMÕES<br />
Baú de Tesouros<br />
19 RONALDO CAGIANO<br />
Das ruas da Pauliceia; domicílios<br />
que me cabem na desvairada<br />
rotina da cidade<br />
24 ANTÔNIO CARLOS<br />
LEMOS FERREIRA<br />
Para-y-stórico<br />
54 EMERSON TEIXEIRA<br />
CARDOSO<br />
The absent - A Ausente<br />
56 LEONARDO ALMEIDA<br />
FILHO<br />
A festa dos cães<br />
59 JOSÉ ANTONIO<br />
PEREIRA<br />
Já te contei sobre o pior dia<br />
da minha vida?<br />
63 LUIZ ROBERTO<br />
GUEDES<br />
Como ser ninguém na cidade<br />
grande<br />
67 JOSÉ VECCHI DE<br />
CARVALHO<br />
Os olhos de Ruzia<br />
70 ANTÔNIO JAIME<br />
SOARES<br />
A propósito dos 70 anos de<br />
Carlimoura<br />
73 MARCELO TORRES<br />
Nelson Rodrigues e o goleiro<br />
do Liverpool<br />
Foto de Carlos Moura<br />
75 RAQUEL NAVEIRA<br />
Sapatos e sandálias<br />
77 LUIZ RUFFATO<br />
Lendo os clássicos<br />
80 EMERSON TEIXEIRA<br />
CARDOSO<br />
Um escritor católico<br />
82 ANTÔNIO JAIME<br />
SOARES<br />
Memórias de Jorge Guglinski<br />
89 RONALDO CAGIANO<br />
Uma poética do confronto<br />
91 GABRIEL FRANCO<br />
O que é real na internet? Um<br />
guia rápido de sobrevivência<br />
na era da pós-verdade<br />
94 CLIPS<br />
Outros papos ...<br />
02
<strong>Chicos</strong><br />
Francisco<br />
Inácio<br />
Peixoto<br />
Nosso Chico Peixoto<br />
No livro Francisco Inácio Peixoto<br />
em prosa e poesia organizado e apresentado<br />
por Luiz Ruffato. Ruffato diz em<br />
O homem (página 19): “Este volume reúne<br />
toda a prosa e poesia publicadas em<br />
livro por Francisco Inácio Peixoto. Obra<br />
exígua, esparsamente aparecida ao longo<br />
de 54 anos, reúne 17 contos, um relato<br />
de viagens e <strong>22</strong> poemas, há muito fora<br />
de circulação. Nascido em 1909, tornouse<br />
um dos mais importantes autores dentre<br />
os nascidos com a Revista Verde<br />
(1927-1929).”<br />
A obra poética de Francisco Inácio<br />
Peixoto em livro compreende <strong>22</strong> poemas<br />
publicadas em Meia Pataca (1928) em<br />
parceria com Guilhermino Cesar e Erótica<br />
(1981) Por aqui, já republicamos poemas<br />
de sua lavra que apareceram em jornais<br />
no intervalo das duas publicações.<br />
03
Pedreira<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Para Rosário Fusco<br />
Dependurados no espaço<br />
eles ficam ali o dia inteiro<br />
arrancando faíscas<br />
furando buracos na pedreira enorme<br />
que reflete como um espelho<br />
as suas sombras primitivas.<br />
À tarde ouve-se um estrondo<br />
e o eco repete a gargalhada das pedras<br />
que vieram rolando da montanha.<br />
Os homens de pele tostada<br />
descem então dos seus esconderijos<br />
e caminham pras suas casas<br />
vagarosamente<br />
decepcionados<br />
segurando com as mãos cheias de calos<br />
as ferramentas com que procuram<br />
há uma porção de anos<br />
o segredo que lhes dê uma nova revelação de vida.<br />
04
Meia Pataca<br />
<strong>Chicos</strong><br />
De primeiro o lugar se chamava<br />
Arraial do Meia-Pataca<br />
Por causa de terem achado<br />
Num Corguinho por que aqui passava<br />
Meia-pataca de ouro.<br />
Também nunca que acharam mais nada...<br />
Imagino Cataguases<br />
O que seria de você hoje<br />
Se em vez só de meia-pataca<br />
Tivesse mais ouro naquele corguinho...<br />
05
Exercício erótico<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Triângulo isósceles que se inscrevesse no ventre<br />
coxim de pelos ruivos<br />
ou negros ou fulvos<br />
ora seda desfiada ora cerda ou lã<br />
ou espessa crina crespa em campo escuro<br />
que ansiosa mão afaga procurando<br />
a oculta amêndoa<br />
- vértice de dura bissetriz que irá feri-la<br />
Dividindo em dois o deleitável monte.<br />
Charada como resposta<br />
Parece concha<br />
e é concha entreaberta<br />
- que é que é?<br />
É ostra<br />
mas rubra.<br />
<strong>06</strong>
Sesta<br />
<strong>Chicos</strong><br />
De flanco, encolhida como<br />
um feto retornado ao útero<br />
as ancas cheias são<br />
entre tronco e coxas<br />
leiras que os olhos rasgam.<br />
Presto mas sutil<br />
(não lhe desmanchou o sono)<br />
fundo-me, isopétalo, na forma<br />
do corpo, de ébano.<br />
Inconsúteis nos quedamos e indivisos.<br />
Em breve também emigro<br />
entre sonho e sono<br />
para aquém da vida.<br />
Calmaria<br />
Teus peitos enfunados<br />
mesmo sem vento<br />
nem leve brisa<br />
no teu colo nu<br />
mesmo sem nada.<br />
(Basta meu hálito)<br />
07
Noturno<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nada vem da rua,<br />
só a névoa da lua<br />
frouxa luz de acetileno<br />
(teu única recato).<br />
Dormes<br />
e o sono deixa em mármore<br />
o corpo nu.<br />
Dormes.<br />
No púbis<br />
agora quieta<br />
tarântula<br />
aranha negra.<br />
Remembrança<br />
Das luras da memória<br />
afloram (albiflores)<br />
lírios opalinos (dois)<br />
as coxas sumarentas<br />
e o lobo que te come.<br />
Ou não come: hauresorvecheira<br />
(ainda: faro de mil anos)<br />
o mel de que era feita<br />
a alvenaria perfeita<br />
do corpo intocado<br />
no entanto núbil.<br />
08
Nu, de Martinho de Haro<br />
<strong>Chicos</strong><br />
A moça<br />
no fundo abstrato<br />
as coxas redondas<br />
no redondo do corpo.<br />
Expungido o óbvio triângulo<br />
apenas guarda o intumescido púbis<br />
tarja estreita<br />
estreito pente<br />
tão gentil<br />
09
Nu sentado, de Aldary Toledo<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Dos braços cruzados<br />
da moça desnuda<br />
espoca um seio.<br />
Na mesa um copo vazio<br />
uma flor<br />
e o seio da moça<br />
quase esbarrando na mesa.<br />
Traço fino de Aldary<br />
compõe a natureza-morta<br />
que ele não compôs<br />
pois outros frutos opimos<br />
deixou escondidos em tanta nudez.<br />
Assim só há o copo vazio<br />
a flor<br />
e o seio da moça.<br />
10
Último exercício ou poema do muito amor<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Vou me lembrando:<br />
Nair de coxas de seda<br />
Odete de quem entrevi um dia<br />
a negra belbutina<br />
a sábia Zulmira e Celmira Gláucia Carmem<br />
a loura Abigail que era AEbigueial mas não concedia<br />
Maria<br />
para todos Mariinha<br />
Olinda Guiomar<br />
A devassa Conceição<br />
Alcina e também Marília Filhinha...<br />
- Tantas assim?<br />
Nem tanto nem tanto...<br />
Havia ainda Leonora<br />
que eu chamava Lenora<br />
extinta como a outra como as outras.<br />
Todas se sumiram<br />
Todas se fundiram<br />
Numa só.<br />
- O nome?<br />
Este, não digo<br />
11
<strong>Chicos</strong><br />
Flausina Márcia<br />
Flausina Márcia da Silva poeta nascida em<br />
Cataguases e radicada em Belo Horizonte<br />
onde trabalhou na Secretaria de Cultura de<br />
Minas Gerais.<br />
Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua<br />
Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives<br />
(2014).<br />
Até amanhã... Sol<br />
Até amanhã, sol, domingo<br />
seja azul, passa nuvens, brilha<br />
eu farei reza, rango e bingo<br />
samba é de lei, é maravilha.<br />
Sol, amanhã é um diabão<br />
as bravas gentes brasileiras,<br />
sem pesquisa, ou caminhão,<br />
fazem frente pras barreiras.<br />
Trabalho árduo, o seu, sol,<br />
mas aí não é acampamento.<br />
Aqui, pode escolher no rol<br />
ocupação, comonumentos.<br />
Território monumental!<br />
passa a escritura, Sol.<br />
Se for sociedade,<br />
há identidade.<br />
12
<strong>Chicos</strong><br />
Matheus Guménin<br />
Barreto<br />
Matheus Guménin Barreto poeta e tradutor, nascido<br />
em Cuiabá (MT), pós-graduando da USP,<br />
onde traduz a poesia de Ingeborg Bachmann.<br />
Estudou também na Universidade de Heidelberg<br />
(Alemanha). Publicou traduções de Ingeborg<br />
Bachmann em Dito ao anoitecer (2017) e Lira argenta<br />
(2017), de Bertolt Brecht em Cântico de<br />
Orge (2017). É autor dos livros de poemas A máquina<br />
de carregar nadas (2017, Editora 7Letras) e<br />
Poemas em torno do chão & Primeiros poemas<br />
(<strong>2018</strong>, no prelo).<br />
Primeiro<br />
O toque mesmo nas coisas<br />
para lembrar as mãos da<br />
arquitetura limpa daquilo<br />
que o mundo gestou.<br />
A mão limpa, cartesiana, reta<br />
pelas coisas<br />
para tirar o pó sobre os nomes<br />
sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria<br />
e tocar outra vez<br />
como no Dia Primeiro<br />
algo dos nomes<br />
que vibre.<br />
13
O lápis descansado<br />
<strong>Chicos</strong><br />
O lápis a descansar<br />
no colo da mesa branca.<br />
Que arquiteturas, que riscos,<br />
que abismos, que céu se tranca<br />
ao longo do lápis longo<br />
parado, imóvel, preto?<br />
O anúncio de qualquer coisa<br />
entre a mente e o peito.<br />
Que coisas já guarda o lápis?<br />
Guarda o que vem-lhe através?<br />
Só guarda o suave das mãos,<br />
ou o áspero dos pés?<br />
O pé guarda acaso as linhas<br />
das geografias e mapas?<br />
Guarda. E, em as guardando todas:<br />
o que és, de ti não escapa.<br />
Sabe o que o lápis encerra<br />
em si, na madeira morta?<br />
Sabe, e mais sabe o lápis<br />
aquilo que o homem ignora.<br />
14
Sabe o que o lápis encerra<br />
em si, na madeira morta?<br />
Sabe, e mais sabe o lápis<br />
aquilo que o homem ignora.<br />
<strong>Chicos</strong><br />
O que é que o lápis contém<br />
do que ainda nem foi feito?<br />
O anúncio de qualquer coisa<br />
entre a mente e o peito.<br />
Inútil<br />
Inútil<br />
inútil o gesto o plexo o beijo<br />
inútil o desejo e o não-desejo<br />
[igualmente<br />
Inútil inútil o salto e a pausa<br />
Inútil a mão no ombro alheio<br />
[e próprio<br />
Inútil soberanamente inútil<br />
o gesto o plexo o beijo<br />
nas campinas afiadas de verde<br />
nas geometrias escuras da mente<br />
e essa vontade de amar.<br />
15
Uma arquitetura da concha<br />
“Para aquele que deu a concha”<br />
<strong>Chicos</strong><br />
1. Que esta concha entre os dedos recolha<br />
e decante em silêncios a voz<br />
agitada em trovões – mar o crânio –,<br />
que a decante e que a anule depois.<br />
2. Que recolha entre os vórtices secos<br />
todo o eco dos mares confusos,<br />
que o recolha e decante em silêncios<br />
e apascente o traçado dos fusos.<br />
3. Que esta concha entre os dedos anule<br />
o que dentro de alguém é loucura.<br />
Que ela guarde, meu Deus, da loucura,<br />
que é o que acha quem muito procura.<br />
4. Que estas conchas recolham do fundo<br />
já sem fundo das curvas do mar<br />
o olhar tão cansado do homem<br />
– e o devolvam depois, pra guiar.<br />
Estes poemas são do livro<br />
A máquina de carregar nadas.<br />
16
<strong>Chicos</strong><br />
Acir Simões<br />
Acir Simões poeta e contista, nasceu em Cataguases<br />
(MG) em 08.05.1957, mora atualmente<br />
em Belo Horizonte (MG)<br />
Baú de tesouros<br />
Incomodei pergaminhos antigos,<br />
Antologias profanas,<br />
Uma antiga coleção de histórias em quadrinhos,<br />
Versos naufragados,<br />
Mapas da palma da mão<br />
E atlas sem alguns continentes.<br />
17
<strong>Chicos</strong><br />
Tudo inútil.<br />
Não sei onde achar a ilha<br />
Onde repousa meu baú de achados.<br />
Contêm três botões de camisa,<br />
Um palito de fósforo já queimado,<br />
Uma bússola que não aponta para o norte,<br />
Um brinquedo quebrado,<br />
A irrecuperável memória<br />
Das coisas que só não aconteceram<br />
Porque uma gaivota afugentou as ideias do porvir.<br />
Em outro compartimento secreto coloquei,<br />
Em vão desarrumadas,<br />
As poucas breves histórias de glórias.<br />
Em vão acomodei as muitas histórias de perdas e esperas.<br />
E mais ao fundo alberguei meu passado fictício.<br />
Também arrumei de modo provisório<br />
Minhas contradições ( o baú já estava pesado).<br />
Gravei a data do ano de fabricação do baú,<br />
Na tampa, com o cuidado de ser posterior à data<br />
Do seu possível achamento , por algum pirata.<br />
Talvez por causa das vertigens das idas e vinda,<br />
Do rum, ou pelas correntezas do mar e dos sonhos<br />
Esqueci o mapa do meu tesouro dentro do baú enterrado.<br />
18
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Cagiano<br />
Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,<br />
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio<br />
Brasília de Produção Literária 2001), O<br />
sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio<br />
Portugal Telecom 2012) e Eles não moram<br />
mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive<br />
atualmente em Portugal.<br />
Das ruas da Pauliceia;<br />
domicílios que me cabem na<br />
desvairada rotina da cidade<br />
Tu cidade irreal , aos poucos somos:<br />
já anseio te rever e já te escondes<br />
Antonio Cícero<br />
De quantas ruas sou feito<br />
(quanto delas me habita)<br />
nesse breve espaço entre o nascer e morrer?<br />
Do cansado leito do rio Pomba<br />
às marginais ácidas do Tietê,<br />
que barcos me levam,<br />
para reconhecer(me) (n)essa cidade?<br />
19
<strong>Chicos</strong><br />
A rua Augusta está tão ausente e longínqua,<br />
como uma estepe inatingível,<br />
[ou como os becos de Minas<br />
que menino agora desvive].<br />
Sobre rastros de antigas procissões<br />
e revolvida pelo séquito<br />
de solenes funerais<br />
que o tempo presente<br />
os homens presentes<br />
a vida presente<br />
sepultaramressurge<br />
sob néons e algaravias<br />
entre o sagrado e o profano<br />
Numa coreografia<br />
(in)tensa de (des)ilusões.<br />
O frio que sinto agora<br />
não vem da rua Lopes Chaves<br />
(lá não enterraram minhas utopias)<br />
mas do bastardo silêncio<br />
que um dia encontrei naquela madrugada<br />
em que atravessei a Doutor Arnaldo<br />
e às portas do Cemitério do Araçá<br />
velhos fantasmas da infância<br />
ruminavam em mim<br />
lutos incuráveis.<br />
20
<strong>Chicos</strong><br />
Nas casas introvertidas<br />
e fossilizadas<br />
que adernam no oceano de<br />
arranha-céus da av. Angélica<br />
ainda contemplo em seus telhados ásperos<br />
uns gatos vadios rondando a noite abissal<br />
imunes aos vampiros escondidos<br />
entre teias de aranha no alpendre.<br />
Na av. 9 de julho<br />
a história rivaliza<br />
com a coirmã portenha:<br />
quantos ainda hão de morrer<br />
nas lutas insensatas da civilização<br />
nas tragédias infaustas do trânsito<br />
sobre o asfalto denegrido de cáries<br />
que as autoridades não restauram?<br />
Artéria fatigada<br />
por onde já não escorre<br />
sequer o sangue coalhado das memórias,<br />
a av Paulista é um escuro corredor<br />
de ventos e assombros;<br />
ontem e hoje se consorciam<br />
para erguer o memorial do esquecimento:<br />
21
<strong>Chicos</strong><br />
em seus prédios, jazigos perdulários,<br />
dormem remotas oferendas,<br />
angústias e avarias<br />
da guerra de cada um.<br />
Passo pela 23 de maio<br />
entre uma legião aborrecida<br />
de animais metálicos<br />
(carruagens de desalento),<br />
gente ensimesmada, como manequins burocráticos,<br />
habitando ônibus, táxis, lotações<br />
rumo aos sarcófagos em que habitam ou trabalham,<br />
recintos cerrados por fechaduras hediondas,<br />
com uma povoação de gerações esquecidas nas paredes<br />
testemunhas<br />
da inexorabilidade do tempo.<br />
Em São Paulo ou Cataguases<br />
(concubinas histéricas de meus devaneios)<br />
as ruas são as mesmas,<br />
mudam-se apenas os nomes<br />
molduram-se outros silêncios<br />
e renovam-se as antigas cicatrizes<br />
no intimo deserto<br />
de cada um:<br />
<strong>22</strong>
<strong>Chicos</strong><br />
o homem apartado ou dividido,<br />
sisudo e incomunicável<br />
como um carrossel alucinado<br />
na confusão de rostos da babélica metrópole<br />
tenta sobreviver ao contorcionismo da espécie,<br />
ilhado entre a civilização e a barbárie<br />
(nessa geografia difusa como todos os fusos do mundo)<br />
numa época de trânsfugas certezas<br />
nesse ir-e-vir desencantado.<br />
Publicado na antologia:<br />
TRANSPASSAR<br />
Poética do movimento<br />
Pelas ruas de São Paulo<br />
SESI-SP editora<br />
23
<strong>Chicos</strong><br />
Antônio Carlos<br />
Lemos Ferreira<br />
Poeta e professor de história em Juiz de Fora<br />
(MG).<br />
“Apaixonado pelo rio barrento que atravessa minha<br />
cidade, Tenho me valido do verso, como<br />
forma de desabafar. Reconheço parecer uma indignidade,<br />
mas sei também ser uma necessidade.<br />
Estar no mundo é uma arte.”<br />
Para-y-stórico<br />
Ao meu Pai: Sr. Geraldinho do Ctc da Central,<br />
que me ensinou a jogar cachorro morto no rio.<br />
Para falar deste Rio querido¹<br />
Tiro licença pra frente e pra trás<br />
Pois, me meto a ser enxerido<br />
A exigir que lhe respeitemos mais<br />
Ao montar estes versos pretendo<br />
Historiar, produzir jogralzinho<br />
Para que aqueles, que estão crescendo,<br />
O percebam com bem mais carinho<br />
¹ - Parahybuna é um nome de origem indígena [que] significa (Para-hy-una) rio de águas escuras. (...) devida a decomposição<br />
das matérias húmicas pelas alcalis. Tem sua origem na Serra da Mantiqueira. A água do rio Paraybuna é potável, principalmente<br />
depois de ser conservada em quietação dentro de bilhas. É de cor levemente amarelada, sem cheiro nem sabor, tendo em suspensão<br />
argila corada pelo oxido férrico e detritos vegetais. ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. 1915, p. 150.<br />
24
<strong>Chicos</strong><br />
Lá no ventre da mãe Barbacena 2<br />
O Pará água escura nasceu<br />
Mas ao certo foi em Antônio Carlos 3<br />
Que sua vinda ao mundo se deu<br />
Vem a tona na Serra vergel<br />
Em compasso borbulha brilhante<br />
Apressados procuram o céu<br />
Olhos d’água se juntam adiante<br />
Água grande reclama a pequena<br />
Cristalino, escoa descendo<br />
Em cascatas, risonho serena<br />
Mantiqueira a Serra rompendo<br />
Viu nascer povoados cidades<br />
Cabangu, Chapéu D’Uvas-Engenho 4<br />
Presenciou perecer uma delas<br />
Sentiu “Dores” da falta de empenho 5<br />
2- Uma brincadeira – Barbacena (antiga Borda do Campo) é “Mãe de Juiz de Fora, bem como São João de Rey é Avó e Ouro Preto Bisavó”.<br />
3- Antigo distrito, atualmente cidade, que pertencia a Barbacena, leva este nome em homenagem ao filho ilustre daquela região e onde estão<br />
as cabeceiras do rio em questão.<br />
4- Engenho do Mato: Nome antigo do Distrito de Chapéu D’Uvas - Este nome é corruptela de Chapetuvas, significando Xá, ver; Pé, caminho;<br />
Uva, água parada; que significa em linguagem indígena: caminho visto ou aberto no pântano. VASCONCELOS, Diogo de. História Média das<br />
Minas Gerais.<br />
5- Dores do Paraibuna - Cidade que teve boa parte de sua área inundada, inclusive a urbana, pela Barragem de Chapéu D’Uvas. Junto dela<br />
também a Colônia de São Firmino.<br />
25
<strong>Chicos</strong><br />
Bate e desce nesta superfície<br />
Está grosso, até muda de cor<br />
Fica lento e atinge a planície<br />
Segue altivo ameaçador<br />
No altiplano, no meio-caminho<br />
Fica adulto é forte e sutil<br />
Está lento silente corado<br />
Entre curvas - serpente viril<br />
Mas, eis, que da Zonamateira<br />
Capital regional fez crescer<br />
Por ter tido entreveros com ela<br />
Castigado e retido há de ser<br />
Howian 6 lhe prepara os estudos<br />
Logo após, em seu leito intervém<br />
Dominado em seu jeito tão forte<br />
Uma calha mais reta o detém<br />
Após tantas pelejas e perdas<br />
dominado ele teve que ser<br />
Com recursos lá do ‘pai dos pobres’<br />
A cidade retorna a crescer<br />
6- Gregório Howian - Nome do Engenheiro armênio, que projetou a retificação do Rio na região central da cidade no início da<br />
década de 1940. Antes de vir para cá chefiou as obras de revitalização do Rio Sena em Paris.<br />
26
<strong>Chicos</strong><br />
Despojado, despido, sem sorte<br />
Jaz um corpo de rio refém<br />
E deitado em seu “Leito de Morte” 8<br />
Suas águas barrentas contem<br />
Da cidade a quem deu luz e guia<br />
Como paga recebe o desdém<br />
Invisível, apertado por vias<br />
Nem suspeita o que ainda advém<br />
Já foi rio selvagem outrora<br />
E senhor da planície: um gigante<br />
Guardião de espécies da flora<br />
E de fauna, também abundante<br />
Afortunado era limpo e piscoso<br />
Tinha bagre, acará, lambari<br />
Hoje sofre sujado oleoso<br />
Colhe esgotos que’inda caem ali<br />
7- O dinheiro da obra de retificação veio do governo federal, ocupado aquela época pelo presidente Getúlio Vargas, apelidado posteriormente,<br />
de Pai dos Pobres e Mãe dos Ricos. Quando vinha à cidade ficava hospedado na fazenda São Mateus. Daqui saiu seu vice, o ex-prefeito da<br />
cidade e ex-presidente do estado, Antônio Carlos Andrada. O nome da praça na região central é em homenagem a ele.<br />
8- Este verso me foi dado pela colega de trabalho e professora de Artes Valéria Flamínia, que por passar cotidianamente na área do Bairro<br />
Retiro. Na altura da Famosa “Boca do Túnel” cunhou esta expressão.<br />
27
<strong>Chicos</strong><br />
Ser barrento, entretanto, estar limpo<br />
Desde, o tempo a muito passado<br />
Bebeu tanta tintura e zinco<br />
Intoxicado com metal pesado<br />
Foi caminho primitivo de índios<br />
Coroados, Puris e mais quem??? 9<br />
Era a via com a qual se servia<br />
Os do Norte; que ao Sul tem seu bem<br />
Tal vertente serviu de passagem<br />
À bandeiras e desbravadores<br />
Que chegaram amigos-mansinhos<br />
E tornaram-se escravizadores<br />
De tropeiros e salteadores<br />
Suas águas ouviram falar<br />
Nas bruacas 10 dos carregadores<br />
Quanta história se tem pra contar<br />
9- Sabemos bem pouco sobre estes nativos, que transitavam pela região. Entretanto, o amigo Marco Geógrafo, estudioso da história<br />
e geopolítica local, tem sido um consultor balizado. Ele pondera que os índios dessa região eram os Croatos e Coropós. Acreditamos<br />
que aqui na cidade apenas tinham passagem, não se fixaram. Entretanto, no Cemitério do Morro da Boiada foram encontrados<br />
vestígios de sua presença. Há uma grande necessidade de nos debruçarmos mais em pesquisas a respeito. Popularmente<br />
são conhecidos como Coroados e Puris. Estes nomes foram dados pelo colonizador. São citados e pronto. Parece que se falou<br />
tudo sobre eles.<br />
10- Nome dado a uma antiga bolsa de couro cru, muito resistente, colocadas uma de cada lado no lombo dos burros ou mulas,<br />
que formavam as tropas e carregavam mantimentos na subida da serra e ouro na descida. Também chamadas Burras.<br />
28
<strong>Chicos</strong><br />
Pelo sul: és como o São Francisco<br />
Foi Portal dessas Minas Gerais<br />
Tanto o ouro, quanto os diamantes<br />
Escoastes... Restaram os anais<br />
Pioneiro, bandeirante Garcia<br />
Cujo nome Pais Leme ostentava 11<br />
Alargou uma trilha que havia<br />
E o Caminho Novo se instalava<br />
O seu vale serviu de pousada<br />
A forasteiros e “Homens de Bem” 12<br />
Recebeu gente escravizada<br />
E forçada a trabalhar sem vintém<br />
Corre o dito... Seu nome nativo<br />
Que em Tupi por preto se traduz<br />
Fale de entes: pelados, cativos<br />
Que ao palato local, não seduz<br />
11- Trata-se do Bandeirante Garcia Rodrigues Paes, que abriu a picada indígena que deu origem ao Caminho Novo no início do<br />
Século XVIII, entre 1701 e 1703. Era filho do também bandeirante Fernão Dias Paes Leme. Entretanto, não carregava o sobrenome<br />
Leme do Pai. Empresta seu nome a uma larga avenida na entrada da cidade através da Zona Norte.<br />
12- - Este termo é atribuído aos homens, que concentravam o poder local. Não havia prefeito. Era mais ou menos como hoje são<br />
os vereadores, só que com mais incumbências nas mãos. Administravam o poder, a lei, a ordem e a justiça. Com consentimento da<br />
Coroa de Portugal. É um termo extremamente segregatório.<br />
29
<strong>Chicos</strong><br />
És gentil com os seus imigrantes<br />
Em suas margens e nos afluentes<br />
Mais hostil com aqueles africanos<br />
E também com os seus descendentes<br />
Foi nas roças da margem esquerda<br />
Que o maior dos seus préstimos deu<br />
Sediou - abrigou a fazenda<br />
Onde a Juiz de Fora nasceu<br />
No casarão que é sede emblemática<br />
Instalou-se um Juiz foragido<br />
E restou-lhe o destino dramático<br />
Seu legado não foi protegido<br />
Do sesmeiro 13 Antônio Vidal 14<br />
Sediou enorme Sesmaria<br />
Naquela várzea, extenso lamaçal<br />
Chapéu D’Uvas até Rancharia 15<br />
13- Dono de Sesmaria (enorme porção de terras doadas a amigos da Corte em troca de aproveitamento da terra, povoamento da<br />
mesma, pagamento de tributos e extermínio dos índios).<br />
14- Riquíssimo comerciante Luso-Espanhol radicado no lugar, dono de uma parte, da enorme porção de terras (sesmarias) situadas<br />
na planície do altiplano do médio Paraibuna, que vai dos limites de Ewbank da Câmara até Simão Pereira, onde futuramente<br />
iria se instalar o Município de Juiz de Fora. Ele adquiriu partes dessa propriedade imensa, de Roberto Carr Ribeiro e tornou-se o<br />
maior donatário da região. Tempos depois, estas terras serão vendidas para a família dos Tostes. Foi ele, que mandou construir a<br />
Capelinha ancestral e trouxe oficialmente a devoção a Santo Antônio para o local.<br />
15- Nome antigo do povoado de Simão Pereira, limítrofe entre os estados de Minas e do Rio de Janeiro.<br />
30
<strong>Chicos</strong><br />
À família dos Antônios Tostes<br />
No lugar, sucedeu aos Vidal<br />
Fez crescer progredir em seu leito<br />
A cidade que não tinha rival<br />
Da Germânia chegou um soldado<br />
Ele encanta com Tostes nativa 16<br />
E ao largo do rio celebram<br />
Suas bodas comemorativas<br />
O capitão o caminho descamba<br />
Onde outrora ninguém não fizera<br />
Atravessa o rio no Zamba 17<br />
A “Variante do Halfeld” impera<br />
Rua Direita, atual Rio Branco<br />
A mais reta e maior lá se fez<br />
Eis que a nova Cidade dos Ricos<br />
Nesta via se firma de vez<br />
16- A jovem Cândida, Filha do Capitão Antônio Dias Tostes. É a segunda, de outras esposas que teve o engenheiro Halfeld. Ele foi<br />
comandante de um pelotão de sapadores (cavadores de trincheiras) do exército prussiano. Ainda não havia a Alemanha.<br />
17- O Engenheiro Guilherme Halfeld foi contratado pelo governador da província das Minas Gerais e faz o trajeto do Caminho<br />
Novo, pela primeira vez, atravessar o Rio através de uma ponte na localidade chamada Zamba, em Cedofeita. A Variante é a atual<br />
Avenida Rio Branco.<br />
31
<strong>Chicos</strong><br />
Reduzido de pioneiro a anônimo<br />
O arraialito ‘Morro da Boiada’ 19<br />
Abençoado pelo Santo Antônio<br />
Do Fujão: devoção sequestrada<br />
Cruza o rio pra dar fundamento<br />
À cidade e a nova Matriz<br />
E o povo do Morro a contento<br />
Foi calado, não disse o que quis 20<br />
Aliás, disse: não foi ouvido<br />
E da capelinha tão original<br />
Só porque já estava ruindo<br />
Ocultou-se a memória ancestral<br />
Vem daí o descaso com a história<br />
Destruir patrimônio importante<br />
A cidade sem identidade<br />
Mal consegue seguir adiante<br />
18- O professor Jair Lessa usa este temo para falar da cidade que nasce do lado direito do Rio. Em contraponto ao Morro da Boiada.<br />
- Juiz de Fora e seus pioneiros. Pag. 48.<br />
19- Ver livro infantil: A Lenda do Morro da Boiada - De Criança para criança – Ilustrado pelas crianças do Bairro Santo Antônio.<br />
Feito em comemoração aos 40 anos da escola do bairro, comentando o trabalho recolhido pelo escritor e poeta, Lindolfo Gomes.<br />
Esta obra tem o claro intuito, de não deixar apagar um importantíssimo testemunho literário, que suponho ser uma Saga de fundação<br />
da cidade de Juiz de Fora.<br />
20- O aprofundamento sobre esta quizila em torno do Santo Fujão está contido no livro: A devoção a Santo Antônio Em Juiz de<br />
Fora - O Santo Fujão – FUNALFA - Deste mesmo autor, no capítulo terceiro. Ali tentamos superar, algo semelhante ao que ocorre<br />
com os Índios na região. Cita-se o termo Capela, Morro da Boiada e Santo Fujão como se tudo o que se pudesse ser dito seja só<br />
isso. Faltam pesquisas.<br />
32
<strong>Chicos</strong><br />
Mas voltemos às margens do rio<br />
Ao que nele passou, sucedeu<br />
Pois, o texto se urde com fio<br />
Por paixão o poeta teceu<br />
Santo Antônio do Paraibuna<br />
Foi o nome que à Vila se deu<br />
Homenagem direta ao rio<br />
Por homônimo, após, se perdeu 21<br />
Santo Antônio do Juiz de Fóra <strong>22</strong><br />
Marcelino, o barão fixou<br />
Sai o santo fica o magistrado<br />
Que tão pouco a cidade legou<br />
Luis Fortes Bustamante e Sá 23<br />
É o juiz de fora pioneiro<br />
A sede passou a Roberto Carr*<br />
Que vendeu ao Vidal fazendeiro<br />
21- A cidade se chamou assim por apenas uma década. Devido à semelhança com o nome da cidade de Paraibuna, já instalada<br />
mais ao sul, suscitou o problema com a duplicidade postal, que forçou a mudança de nome.<br />
<strong>22</strong>- O termo no documento de lei é grafado com acento. O barão é o Barão de São Marcelino.<br />
23- Nome do “Homem de Bem” nomeado Juiz de Fora da cidade do Rio de Janeiro em 1711 a 1713. Depois de aposentado veio<br />
se abrigar nas imensas terras do genro João de Oliveira. Segundo Jair Lessa, pag. 26. Ele era prestigiado, audacioso, bravo e autossuficiente.<br />
Ele serviu de intermediário entre o governo e as forças corsárias, durante a ocupação francesa. Entretanto, o decano,<br />
emérito professor de direito da UFJF Almir de Oliveira, assevera em seu livro: No Vale do Paraibuna. Que ele teria vindo fugido da<br />
capital por ter colaborado com os corsários inimigos na invasão dos franceses - No ano de 17<strong>22</strong> foi expulso de Minas Gerais (Juiz<br />
de Fora) por ter tido encrenca, pegado em armas, contra outro fazendeiro vizinho por causa de extrema com a fazenda do Marmelo<br />
(próximo da atual Usina histórica). E reaparece finalmente em 1728 vendendo aquela fazenda (Juiz de Fora) para *Roberto<br />
Carr Ribeiro, que dez anos depois vende para Antônio Vidal.<br />
33
Do primeiro mui pouco se fala<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Mas no Rio nos sabem dizer<br />
Quando da invasão dos franceses<br />
Juiz de Fora começa a nascer 24<br />
Ao período do ouro escasseado<br />
Sucedem-se o café e o leite<br />
Em fazendas de gado cercado<br />
Ou naquelas, em leras de enfeite 25<br />
Junto a ele uma Vila-Cidade<br />
Promissora haveria de ser<br />
Pioneiros atrai com vontade<br />
De fortuna e posses reter<br />
E por pura ousadia de vera<br />
Uma Urbs 26 o rio transpôs<br />
E a uma área rural tão singela<br />
Outra têxtil indústria se impôs<br />
De Curvelo vem um visionário<br />
Corajoso: quase um prometeu<br />
24- Ver citação do item 23 sobre o que afirma o professor Almir de Oliveira.<br />
25- A maneira de plantar o cafezal enfileirado depois da orientação de D. João VI, fez a lavoura ganhar um aspecto estético bastante<br />
interessante parecendo estradas verdes (leras) em meio ao pasto.<br />
26- Termo em latim que se traduz por cidade. Daí vem o termo urbano.<br />
34
Torna o rio um correligionário<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Energia: luz-primeira irrompeu!*<br />
Igualmente Mariano Procópio<br />
Pioneiro e empreendedor<br />
Tinha estrada, até um ‘trem próprio’ 28<br />
Era amigo do imperador<br />
Aliás, o D. Pedro, ele mesmo 29<br />
Nas barrancas do rio desceu<br />
Na canoa, com a corte a esmo<br />
Esta foto: está lá no museu<br />
O Baiano Batista de Oliveira<br />
Negociante de mente sagaz<br />
No comércio seu Banco prospera<br />
Fica rico e fortuna nos traz<br />
Cafeicultor de posse invejada<br />
Morre triste sem ter sucessor<br />
28- Bernardo Mascarenhas - Natural de Curvelo veio para Juiz de Fora para expandir seus negócios empreendidos com a indústria<br />
Têxtil. Viveu muito pouco, mas foi um gigante. Homem de grande visão e arrojo para sua época. Deu-nos uma indústria têxtil,<br />
a primeira usina hidrelétrica da América Latina, a primeira luz elétrica das Américas. O primeiro Banco privado, e ainda iluminou<br />
Belo Horizonte, a jovem capital de Minas Gerais.<br />
29- Exagero meu. Ele tinha na verdade era uma estação própria. Na frente da casa dele. Onde hoje é o Centro Dnar Rocha. Entretanto,<br />
é bem verdade, que foi por sua enorme influência junto ao império, que a ferrovia sobe a serra, e este enorme investimento<br />
atinge a região.<br />
35
Por fundar o hospital Santa Casa<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Silva Pinto será benfeitor 30<br />
No resgate do rio por vezes<br />
Certamente me valho de alguém<br />
E a literatura de Albino Esteves 31<br />
É patrimônio que a todos convém<br />
Tendo o século vinte aportado<br />
A cidade já é pioneira<br />
O cometa lhe deixa marcado<br />
Tem por nome Manchester Mineira<br />
Um conterrâneo que vistes chegar<br />
Nessa época, já se introduz<br />
É a ‘alma’ poética do lugar<br />
Murilo Mendes a cidade traduz<br />
Além dele também Pedro Nava<br />
Suas memórias: não posso esquecer<br />
Foi buscando em seu “Baú de Ossos”<br />
Que encontrei o que quero dizer<br />
30- .Silva Pinto - Ostentava os títulos de "Guarda Mor" na cidade de Simão Pereira, vereador em Barbacena no ano de 1833, detentor<br />
do cobiçado título de Comendador da Ordem da Rosa e da Imperial Ordem de Cristo. Barão da Bertioga em 1861.<br />
31- Albino Esteves – Jornalista e historiador, natural de Sapucaia, também fundador da Academia Mineira de Letras produziu o<br />
importantíssimo Álbum do Município de Juiz de Fora publicado em 1915. É um marco para a historiografia da cidade. Um trabalho<br />
seminal. Lastreou o rumo de boa parte das afirmações que se fizeram depois dele, para bem ou para mal.<br />
36
<strong>Chicos</strong><br />
Dentre os filhos ilustres que tens<br />
Alfredo Lage destaca-se mais<br />
Foi Mecenas deixou-nos seus bens<br />
Corajoso, ainda não tem rivais<br />
Arcaísmos com renovações<br />
Cidadela assaz contraditória<br />
Vanguardismo apoiado em grilhões<br />
Navegando em sua trajetória<br />
Professoras, artistas, escritoras<br />
Junto a ele: o Ventre Fecundo<br />
Falte o toque da mão genitora...<br />
Sem lugar estaremos no mundo 32<br />
A cidade tem na geografia<br />
Três traçados, bem originais<br />
Rio Branco representa a Via<br />
A Montanha - O Rio ancestrais<br />
32- .Dedico esta estrofe especialmente às mulheres que legaram júbilo à cidade e ás margens do Paraibuna, através da pessoa da<br />
professora Leila Barbosa e da minha madrinha nas letras, Mariza Timpone, que me apresentaram o tema como possibilidade de<br />
pesquisa na área da literatura.<br />
37
<strong>Chicos</strong><br />
Por aqui passou o Tiradentes<br />
Liberdade era seu ideal<br />
Do seu leito sai um confidente 33<br />
Foi o médico Domingos Vidal<br />
Seu traçado também viu surgir<br />
Polo cafeeiro, têxtil, leiteiro,<br />
A educação lhe fez emergir<br />
Como Atenas do povo mineiro<br />
Orgulhoso, de música cercado<br />
Pianos, Tambores, Calangueira<br />
Um bamba no Samba é citado<br />
Seu nome: Geraldo Pereira 34<br />
Da cultura é um vale exemplar<br />
Que orgulha o estado e o país<br />
Mas falhou, pois aqui fez gestar<br />
Ditadura: a causa, mais infeliz<br />
33- .Disse Confidente, pois o in-confidente foi o traidor Joaquim Silvério dos Reis. Domingos Vidal, filho caçula de Antônio Vidal.<br />
Foi nosso representante na Conjuração Mineira. Era médico formado na França e abraçou o movimento mineiro.<br />
34- Geraldo Pereira - compositor e boêmio. Nasceu na região de Torreões - Monte Verde. Saiu daqui com 11 anos e foi morar<br />
com o irmão Mané Araújo no Morro da Mangueira. Foi discípulo do grande Cartola e ajudou a renovar o samba brasileiro. Boa<br />
parte do que hoje cito sobre ele, me foi dado como informação, pelo também compositor e sambista da cidade o Sr. Geraldo<br />
Santana. Negro elegante, altivo vestido de branco com chapéu, apoiado em sua bengala, um ‘gentleman’, ou melhor: um “Preto<br />
Velho” do Calçadão. Saudoso decano e amigo tardio, mais um dos baluartes da cultura popular juizforana a experimentar o ácido<br />
gosto da invisibilidade propiciada por esta cidade a quem porventura, lhe caia em desalinho. Viveu no Rio de Janeiro por um tempo,<br />
onde conviveu com os bambas. Deu sua contribuição e presenciou um pouco da história recente do samba acontecer.<br />
38
O cineasta pioneiro Carriço 35<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Em película te imortalizou<br />
Décio Lopes* discípulo solícito<br />
O filmocídio em jornal denunciou<br />
Dos políticos quase não declino<br />
Muito dito, pouco foi feito<br />
O que mais galgou fama e fascínio<br />
Mais podia ter feito em seu leito<br />
Teve tempo em que um jardineiro<br />
Resolveu colorir a cidade<br />
Girassóis plantou feito um canteiro<br />
Juntou plantas e publicidade<br />
De um deles, recebestes recente<br />
Um desvio, um golpe certeiro<br />
Quem devia ter sido decente<br />
Dá-lhe um Beijo: lhe faz prisioneiro<br />
35- .João Gonçalves Carriço - figura para esta cidade entre os pioneiros. Não só desta cidade, mas também junto com Humberto<br />
Mauro compõe o seleto grupo de precursores do cinema nacional. Ele filmou por três décadas, de trinta a cinquenta, nossa vida<br />
cotidiana. Produziu documentários inestimáveis para a cidade e o país, entretanto, por ter usado tecnologia da época (acetato)<br />
teve boa parte de seu invejável trabalho atirado como lixo perigoso, incendiário e explosivo nas águas do Paraibuna. *Décio Lopes<br />
jovem jornalista, apaixonado pela sétima arte, principalmente pelo Cinema Novo. Conhecera quando garoto, o velho pioneiro,<br />
amigo de seu pai, nos áureos tempos da Cia Dias Cardoso. Travou uma verdadeira batalha, inclusive com os militares, em plena<br />
ditadura fazendo denúncias na imprensa para resgatar o restante da histórica obra de Carriço. Por sua dedicação, coragem e empenho<br />
aquele trabalho foi salvo, da água e do fogo. Foi por ele catalogado. Uma cópia deste precioso acervo encontra-se à disposição<br />
do público no Arquivo Histórico Municipal. Os originais estão na cidade de São Paulo.<br />
39
<strong>Chicos</strong><br />
Lá da terra dos italianos<br />
Copiaram uma solução clássica<br />
Como Roma limpava seus Domus<br />
Da cidade é a “Cloaca Máxima” 36<br />
Vai daqui sujo e desfigurado<br />
E Matias, o recebe antenado<br />
Arrastando esta sina humilhado<br />
Lá deságuas já bem depredado<br />
Mas, de Simão Pereira passando<br />
Sai de Minas, vai aliviado<br />
Já em outro estado entrando<br />
Lá quem sabe serei bem tratado...<br />
Busca então seu destino final<br />
Em Três Rios fundir ser igual<br />
Reunir com os irmãos no Pontal 37<br />
Atingir o oceano e “ser sal”*<br />
36- Em Roma todo o esgoto da cidade foi destinado ao Rio Tibre. Àquela solução higiênica, avançada para a época dá-se este<br />
nome.<br />
37- Nome do ponto de encontro (Foz ou Barra) onde o Rio se junta com o Piabanha e engrossa o “pai” Paraíba do Sul na cidade<br />
de Três Rios - Termo citado pelo poeta Murilo Mendes na única vez em que nomeia o rio. Chama-se epígrafe sobre o Paraibuna. *<br />
“O rio sonhava Ser sal... Ser mar”. Citação de Aymar de Mendonça Lopes.<br />
40
<strong>Chicos</strong><br />
Esperança que é viva se afirma<br />
E norteia o discurso da gente<br />
A palavra que agora mais rima<br />
É a preservação do ambiente<br />
Estender em seu leito mais pontes<br />
Ajustá-lo à modernidade<br />
Não resulta projetá-lo adiante<br />
Na Agenda da Reciprocidade 38<br />
Despoluído será certamente<br />
As bacias são como um funil<br />
Pois, deságuas em uma vertente<br />
Que afeta em cheio o Brasil<br />
Para sujá-lo pediram licença?<br />
Por progresso se fez tal e qual<br />
E na hora da grande faxina<br />
Só lhe resta ajuda federal?<br />
30- .Refiro-me a Agenda 21. Documento do qual Juiz de Fora é signatária, que firma compromissos e cuidados para com o desenvolvimento<br />
urbano sustentável. (Cá entre nós. Muito pouco observado).<br />
41
<strong>Chicos</strong><br />
Onde estão seus brios pioneiros<br />
Promover iniciativa local?<br />
Partindo das educativas<br />
E findando na empresarial?<br />
Quando vão conclamar as crianças<br />
A limpar o seu imaginário<br />
E buscar mais parceiros, finanças<br />
Pra reverter este tíbio cenário<br />
Rio da Integração Regional<br />
Capital desta Zona da Mata<br />
Sua presença nos dá um sinal<br />
Que futuro, com passado se trata<br />
Portinari deixou um mural<br />
Em parede da nossa cidade<br />
Ele pintava pra bem e pra mal<br />
Os retratos da realidade<br />
O casarão que ao juiz abrigara<br />
Demoliram nos anos quarenta<br />
42
Em seu lugar Boite Sayonara 39<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Junto ao rio a memória sedenta<br />
Em seus cento e setenta quilômetros<br />
Todo um Vale foi fecundizado<br />
E depois de servir sem parâmetros<br />
Toma nome de “Nilo Azarado” 40<br />
Fica dito, o que penso a respeito<br />
E foi fruto da necessidade<br />
Escrevi o que tinha no peito<br />
Compartilho com minha cidade<br />
Por certo não sou ufanista<br />
Cético: alguém já falou<br />
Importa a palavra ser dita<br />
Por isso, agora me vou.<br />
39- Por disputas de influência política com a jovem capital do estado e por absoluta incompetência das autoridades locais, veio<br />
abaixo o Casarão sede, que deu nome à cidade. Situava-se às margens do Paraibuna, em frente à Praça Escravo Teófilo, onde é<br />
hoje a Boate Sayonara, nos fundos da qual, ainda podem-se verificar suas fundações. Pasmem! Foi demolido no ano de 1942.<br />
Alegando falta de recursos para a restauração, as autoridades da capital indicaram sua demolição, o prefeito da época executou.<br />
Nem mesmo os protestos liderados pelo jornalista, escritor e poeta Lindolfo Gomes, do qual, o peso de ser fundador da Academia<br />
Mineira de Letras ajudou na empreitada de proteger tamanho patrimônio simbólico do município. Era um inconteste testemunho<br />
geográfico e histórico, de sermos o Portal Sul das Minas Gerais. Restou-nos, uma imagem (raríssima e preciosa) pouco conhecida<br />
do público feita provavelmente, por Henry Klumb, fotógrafo da comitiva do imperador Pedro II, quando empreendeu uma de suas<br />
visitas à cidade em 1861. Há também uma inédita fotografia dos fundos do casarão, que inclusive, atesta que o prédio estava<br />
muito robusto e não precisava ser demolido. Pertence ao arquivo pessoal do pesquisador Wanderley Thomaz. Fica aqui registrado,<br />
um protesto recessivo-proativo: Algum dia... Quem sabe? Por iniciativa pública ou privada, venhamos a reconstruir, nem que seja a<br />
fachada, daquele emblemático Casarão. Penso que fará muito bem à combalida memória identitária desta cidade.<br />
40- Termo empregado pelo historiador Jair Lessa é “azarado Nilo” ao associar o nosso Paraibuna com o fecundo rio do Egito. Faz<br />
um paralelo muito interessante entre os dois, usando de fina ironia, que lhe é muito peculiar. Diz ele, que enquanto o Nilo ao<br />
inundar suas margens traz fertilização e prosperidade: o Paraibuna só traz sapos.<br />
43
<strong>Chicos</strong><br />
Não<br />
nada normal<br />
natural mesmo<br />
nada<br />
No frango dependurado<br />
no abatedouro<br />
ainda pia o pintainho<br />
44
No posto de atendimento<br />
<strong>Chicos</strong><br />
corpo jovem se ajeita<br />
contendo vontades e<br />
necessidades<br />
Na rua a pressa<br />
esconde rosto<br />
do passante ao lado<br />
até o perdeu, cara! passa tudo.<br />
O capital<br />
em saltos acrobáticos<br />
acumulando números<br />
prensa os corpos<br />
frangos+jovens+velhos+tudo<br />
humanos ou não<br />
o tempo jaz<br />
junto de tudo<br />
preso às<br />
mercadorias<br />
Ora, o tempo<br />
também ele<br />
só existe como<br />
criação do homem.<br />
45
Da convivência<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Não abaixar a cabeça.<br />
Violência não se enfrenta com violência.<br />
Buscar apoio nos companheiros.<br />
Evitar estar só.<br />
Com vizinhos, os circundantes,<br />
os próximos<br />
afixar<br />
laços de solidariedade.<br />
(Isso se faz com<br />
afeto e diálogo)<br />
- Sim,<br />
é pouco.<br />
A solidão do egoísmo tem poder.<br />
É preciso mais<br />
e mais não sei.<br />
Seja criado na hora:<br />
Então, humildade<br />
para receber<br />
o novo.<br />
Belchior já cantava:<br />
o novo sempre vem<br />
46
Esquecimento<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Disso não me esqueço:<br />
Como era forte minha Vale<br />
Doce meu rio<br />
Fértil meu vale.<br />
FHC destruiu minha Vale<br />
A vale deles<br />
destruiu meu rio<br />
O rio matou<br />
peixes e várzeas.<br />
Levou fome de<br />
Minas até ao oceano<br />
Minha Vale era<br />
do Rio q foi Doce.<br />
Então, não me esqueço.<br />
47
Recordando<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Olho para traz<br />
o tempo e<br />
afirmo: não somos inúteis.<br />
Não fomos.<br />
Fizemos muito.<br />
Ainda q só<br />
pequena parte do sonhado.<br />
Ora,<br />
é grande nosso sonho:<br />
paz/justiça/igualdade<br />
comida na mesa de todos<br />
teto pra cada um de nós<br />
O resto é felicidade:<br />
cada um q cultive a sua.<br />
48
Banal<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Pior é a banalização do mal.<br />
Tão banal que o vemos assim<br />
Normal<br />
Natural<br />
Que nem<br />
tiririca na horta<br />
49
Noite monótona<br />
<strong>Chicos</strong><br />
aqui explodem bombas<br />
passam jatos<br />
drones<br />
alumiando o céu<br />
com fósforo<br />
líquido cadente<br />
aqui petardos<br />
destroem direitos<br />
agravando<br />
deveres e sobrevivências<br />
ratos mastigam<br />
sangram os fracos,<br />
arrotam arrogância<br />
em risos cínicos.<br />
onde monótona noite,<br />
cara-pálida?<br />
50
<strong>Chicos</strong><br />
: no brilho frio da tv<br />
na luz morta<br />
do tablet<br />
na água quente do chuveiro<br />
na masturbada solidão<br />
do teu closet ?<br />
ainda monótona<br />
essa tua noite,<br />
cara?<br />
até quando?<br />
51
••••t————<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Está difícil<br />
existem pesadelos<br />
que não deixam dormir<br />
então preste atenção desta vez.<br />
Vida não costuma dar outra chance.<br />
Luta começa<br />
quando o primeiro<br />
escravo se rebela:<br />
A vida começa.<br />
Cortesia é para quem é da corte.<br />
Porrada é pra quem é do povo.<br />
Viver é lutar.<br />
52
<strong>Chicos</strong><br />
Como um coquetel molotov<br />
o único que tenho pra lançar<br />
com a força de<br />
tantos anos bem lutados<br />
e dessa esperança contra<br />
todo desespero em nós plantado<br />
dentro do meu peito<br />
só nasce amor e alegria<br />
com risos de crianças.<br />
Morre a esperança quando a gente morre?<br />
Ou<br />
Morremos nós quando ela morre?<br />
Está difícil<br />
existem pesadelos<br />
que não deixam dormir,<br />
mas,<br />
estamos vivos.<br />
A luta é antiga.<br />
É sempre a vida.<br />
<strong>53</strong>
<strong>Chicos</strong><br />
Emerson Teixeira<br />
Cardoso<br />
Nasceu em Cataguases MG, é autor de<br />
Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da<br />
Rua Alferes e outras crônicas (20<strong>06</strong>). Traduziu<br />
O retorno do nativo de Thomas Herdy.<br />
Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se<br />
em Estilete (1967), mimeografado,<br />
editor/fundador do Delirium Tremens (1983)<br />
e Trem Azul (1997).<br />
The absent *<br />
Those who go, go fast<br />
Yesterday she still smiled on the counch<br />
Yesterday she stiill said good bye from the window<br />
Yesterday she still wore the light pink dress<br />
Those who go, go fast<br />
Her big black eyes still shone<br />
Her sweet straight voice still spoke<br />
Her dark hands had blessed gestures<br />
However she was was not in the party today<br />
Not a trace of her indeed<br />
Surely her remembrance not even came like the guests<br />
54
<strong>Chicos</strong><br />
Some of them, almost all, cold and unknown<br />
Those who go, go fast<br />
Faster than the birds that fly on the sky<br />
Faster than the time itself<br />
Faster than the men kindness<br />
Faster than trains running in the dark nights<br />
Faster than the fugitive star that barely makes a trace in the sky<br />
Those who go, go fast<br />
Only in the poet’s heart, wich is diferente from the other hearts<br />
Only in the ever wounded heart of the poets<br />
Is that don’t go faster those who go.<br />
Yestarday she smiled still on the counch<br />
And her heart was big and unhappy<br />
Today in the party se was not<br />
Not even her remenbrance<br />
go fast, so fast those who go.<br />
* A Ausente - Versão para o inglês do poema<br />
original de Augusto Frederico Schimidt<br />
55
<strong>Chicos</strong><br />
Leonardo Almeida<br />
Filho<br />
Nasceu em Campina Grande, 1960 (PB),<br />
professor universitário, escritor, ensaísta,<br />
reside em Brasília desde 1962. Mestre em<br />
literatura brasileira pela Universidade de<br />
Brasília, publicou, em 2008, Graciliano Ramos<br />
e o mundo interior: o desvão imenso do<br />
espírito (EdUnB), entre outros.<br />
A festa dos cães<br />
Ainda dói, ele pensa, mas é uma<br />
dor que parece não ter lugar, que só dói<br />
assim, pulsando, latejando dentro da gente.<br />
Dor mastigada, ele range os dentinhos.<br />
Dor que engasga a gente, ele vislumbra.<br />
Encolheu-se todo, parece uma conchinha<br />
de carne, um bichinho indefeso, e sente<br />
muita dor. Ai, ui, suspira. Não está na marca<br />
do cinturão nas costas, a dor, nem nos<br />
vergões vermelhos nas canelas, mas estranhamente<br />
há dor em toda parte e em lugar<br />
nenhum. Ai, ai, ele geme baixinho.<br />
Não chora, não deixou cair uma lágrima<br />
sequer, nada, nada, seco. Engoliu o choro<br />
que ainda tentou brotar nos olhos, engoliu<br />
com ódio a lágrima que não verteu e desceu<br />
rasgando a garganta pra sumir-se no<br />
mais sem fundo escuro de suas partes<br />
com um gosto forte de sangue que não<br />
há, gosto amargo, sabor de coisa indesejada.<br />
Abandonou-se ao silêncio, deixandose<br />
levar pelos pensamentos que ferviam,<br />
primeiro em fiapos, depois numa grande<br />
tessitura de rancor e desejos de vingança.<br />
Ai, ai, ele bramia e inconscientemente cultivava<br />
ódio.<br />
Naquela tarde, quando o pai chegou<br />
do trabalho um pouco mais cedo, foi encontrá-lo<br />
no fundo do quintal brincando<br />
com o filho do vizinho. Serginho, três anos<br />
mais novo que ele que acabara de completar<br />
nove anos de pequenos recalques e<br />
poucos risos, estava em pé, calção escolar<br />
de pano azul arriado, um sorriso marotamarelado<br />
estampado na face morena de<br />
anjo tupiniquim. Ele, sentado no chão diante<br />
do amigo, sentia uma sensação gostosa<br />
e inexplicável de examinar com uma<br />
fome esquisita a genitália de Serginho,<br />
que se deixava ingenuamente manipular.<br />
56
<strong>Chicos</strong><br />
Com muito cuidado, absorto, alheio às coisas<br />
do mundo ao redor, tocava com visível prazer<br />
nas pequenas partes expostas. Nessa tarefa,<br />
que cumpria com extrema felicidade, observava-se<br />
com deleite, concentrando-se atentamente<br />
em seus próprios gestos, sentindo a<br />
boca encher-se de saliva. Não conseguia entender<br />
de onde vinha aquele desassossego<br />
feliz, aquela espécie de coceira gostosa, um<br />
comichão esquisito, uma necessidade...<br />
Quando convidou o vizinho para brincar<br />
em casa, havia nele a vontade de saciar aquele<br />
desejo que, já há alguns dias, nutria de fazer<br />
justamente aquilo que o pai flagrara com<br />
espanto e cólera. Ainda ontem, ele relembra,<br />
quando viu Serginho mijando na rua enquanto<br />
brincavam de pique-esconde, pegou-se<br />
cismando a olhar com jeito diferente aquela<br />
cena que já presenciara outras tantas vezes,<br />
com outros amigos inclusive, e que, no entanto,<br />
nas diversas vezes presenciadas anteriormente,<br />
nunca antes adquirira esse tom de excitação,<br />
de vontade. Os meninos da rua costumavam<br />
jogar futebol todas as tardes e era comum<br />
mijarem em grupo, sorrindo, brincando<br />
uns com os outros, sem qualquer visgo no<br />
olhar, inocentes. Ele não, passou a perceberse<br />
diferente dos demais. A exposição natural e<br />
espontânea da genitália dos amigos o deixava<br />
vidrado, disfarçando o olhar curioso que buscava<br />
a cena. Não sabia o que se passava, não<br />
tinha ideia do que era aquilo, por que surgia<br />
aquele movimento tão surpreendente dentro<br />
do seu coração? Claro que havia nele a desconfiança<br />
de que aquilo não era abençoado<br />
por ninguém, quase uma certeza de que tal<br />
desejo deveria ser ocultado dos olhares, escondido<br />
de todo mundo. Ouvia comentarem,<br />
com expressões de entojo, sobre o Sidnei, filho<br />
de dona Dalide, a costureira que morava<br />
numa rua próxima à dele, que fazia essas coisas<br />
feias com outros meninos. Um perdido.<br />
Pelo tom das conversas, das censuras, ele sabia<br />
que não deveria caminhar por essa via,<br />
para não perder-se também. Era preciso cuidado,<br />
dizia uma voz dentro dele. Em seus nove<br />
anos, formava-se a criatura dissimulada<br />
que iria carregar vida a fora, mas naquele dia,<br />
naquele exato momento, deixou-se levar por<br />
uma força muito maior que o medo. Naquela<br />
tarde, entregou-se ao desejo e à vontade de<br />
experimentar.<br />
Não houve tempo para fugir do golpe.<br />
O cinturão, guiado pela mão paterna, marcoulhe<br />
as costas num estalo seco e asustador. Pá.<br />
Quando se deu conta do que estava acontecendo,<br />
percebeu que a dor na carne vinha<br />
acompanhada por um sentimento de impotência<br />
absoluta. A culpa e o medo lhe foram<br />
inoculados a cada cipoada que recebia daquele<br />
familiar estranho ensandecido. As únicas<br />
palavras que o pai dispendeu foram: Pra<br />
casa, Serginho. Agora! O resto foi silêncio de<br />
língua e muita fala do couro furado do cinturão<br />
em sua pelezinha infante. O pai, descontrolado,<br />
desferiu-lhe uma surra tremenda, sem<br />
dizer palavra alguma. Agora, encolhido ali na<br />
cama, no cantinho escuro do quarto, ele geme<br />
baixinho a sua dor. Ai, ui, treme mais de<br />
raiva que de frio.<br />
O pai é um sujeito taciturno, normalmente<br />
silencioso, dado a poucos prazeres e poucas<br />
palavras. Fala pouco, come pouco, dorme<br />
pouco. Tudo nele é pouco e parco. Vida comezinha,<br />
metódica. A mãe é mulher de fé, de<br />
cama, mesa e banho. Ao contrário do pai, ela<br />
é muito afetuosa com os filhos. Ele não. Nunca<br />
foi de muito chamego com a prole. Rígido<br />
na criação dos três meninos, não releva falhas,<br />
não perdoa deslizes, não esquece mal-feitos.<br />
Dividindo seu tempo entre o trabalho como<br />
estoquista numa grande empresa de laticínios,<br />
e as horas de televisão, quando assiste<br />
todos os noticiários e programas esportivos,<br />
leva a vida numa linha reta, quase sem alterações.<br />
Homem de pouquíssimas surpresas.<br />
57
<strong>Chicos</strong><br />
É uma figura previsível e é justamente por<br />
esse motivo que ele lembra claramente daquele<br />
domingo excepcional. Daquele dia que<br />
lhe rendeu calafrios por um bom tempo. A<br />
mãe saíra para a missa com os irmãos e ele,<br />
por conta de uma gripe, ficou em casa a base<br />
de remédios caseiros com o pai que lia o jornal.<br />
Sentado na varanda, ele observava os<br />
dois vira-latas da casa, Rex e Ringo, brincando<br />
no gramado, na frente do lote, enquanto o<br />
pai, impaciente, os enxotava exigindo silêncio.<br />
Foi quando o Ringo montou no Rex, como se<br />
monta numa cadela no cio, e começou um vai<br />
-e-vem sexual explícito. Ele achou engraçado<br />
tudo aquilo, engraçado mas não surpreendente,<br />
pois já flagrara os cães nesse tipo de<br />
brincadeira que ele julgava sem maldade alguma.<br />
Assustou-se ao ouvir o pai desferir um<br />
palavrão, coisa inusual em sua boca. Pressentiu<br />
o pior quando o viu jogar com violência o<br />
jornal sobre a cadeira. A festa dos cães havia<br />
despertado algum demônio na cabeça do pai<br />
e desencadeado alguma coisa muito ruim no<br />
seu comportamento, pois levantou-se, foi à<br />
cozinha e voltou com uma faca enorme, aquela<br />
muito afiada que a mãe usava para cortar<br />
carne. Os cães não perceberam sua rápida<br />
aproximação e não houve tempo para reação.<br />
Chutou violentamente Ringo, que saiu ganindo<br />
sua dor, e segurou à força o pobre Rex,<br />
que inutilmente tentou fugir. O animal esperneou,<br />
desesperado, tentando desvencilhar-se<br />
da mão poderosa do seu captor. Tudo em<br />
vão. Estava sacramentado. O homem, sem<br />
qualquer sinal de simpatia, decidido e inexorável<br />
como um carrasco, cortou a garganta<br />
do cão num golpe, jogando-o depois no chão<br />
como um pedaço de carne, uma peça de pelo<br />
negro, um molambo. O cachorro tremia, como<br />
galinha abatida, morrendo aos poucos,<br />
engasgando-se no próprio sangue, que também<br />
jorrava no gramado. O olhar do pai era o<br />
mesmo desta tarde, ele relembra sob calafrios,<br />
quando o flagrou com o Serginho no<br />
quintal: olhar de ódio, de censura absoluta, de<br />
nojo, de desprezo. Olhar de quem busca exterminar,<br />
eliminar, destruir.<br />
Quando a mãe voltou da missa, encontrou<br />
o marido cavando uma cova para o Rex,<br />
enterrando com o cão os sonhos de afeto do<br />
filho do meio, que a tudo assistiu calado,<br />
ocultando a própria dor. Ele aprendeu assim,<br />
desde miudinho, a não esperar absolutamente<br />
nada da figura do pai. Agora, sente dores que<br />
não sabe bem quando vão passar ou mesmo<br />
se vão passar algum dia. Talvez sim, transformem-se<br />
em outra coisa, tão ou mais incômoda<br />
que a dor. Uma coisa entranhada na alma,<br />
como pedra no sapato, fiapo de carne no<br />
dente cariado. Uma coisa que, mais que incomodar,<br />
provocará, instigará, desconcertará.<br />
Sim, por ora, nesta noite terá sonhos muito<br />
estranhos e acordará marcado irremediavelmente,<br />
mais sério, menos alegre e mais convicto<br />
de que viver é mesmo complicado. Por<br />
enquanto ele geme baixinho pela dor nas costas,<br />
no lugar onde a fivela do cinturão lhe<br />
bordou um hematoma. Ai, ui.<br />
58
<strong>Chicos</strong><br />
José Antonio Pereira<br />
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />
casa da Rua Alferes e outras crônicas (20<strong>06</strong>) e<br />
autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />
Já te contei sobre o pior dia da minha vida?<br />
Não há nada nobre em ser superior ao seu semelhante.<br />
A verdadeira nobreza é ser superior ao seu antigo eu.<br />
Ernest Hemingway<br />
Nico sai do bar, bêbado, tropeça no<br />
desnível da calçada e enfia o pé num buraco.<br />
O corpo é projetado para a rua; um carro<br />
numa buzina desesperada, sem tempo de<br />
desviar, o joga de volta à calçada alguns<br />
metros adiante. A voz soa alta e poderosa.<br />
– Cidade escrota! No mesmo instante, o<br />
burburinho das mesas na calçada do bar silencia<br />
e todos ouvem. – Prefeito filadaputa!<br />
Isto aqui é o cu do Judas! Um transeunte<br />
gargalha e debochadamente aponta na direção<br />
do bêbado no chão. Ele dispara, – Tá<br />
rindo do quê, seu palhaço! Sem forças para<br />
se mover, permanece estatelado no chão.<br />
Todos o olham, mas ninguém move um<br />
músculo para ajudá-lo. Ele, entre gemidos e<br />
resmungos, continua desfiando seu rosário<br />
de xingamentos contra a cidade e os seus<br />
moradores. – Povinho fodido! Uma mão o<br />
acolhe e ele silencia. Pela leveza do toque,<br />
sabe de quem é. A voz torna-se melosa pelo<br />
álcool, – Só você mesmo meu anjo da<br />
guarda! Alguma boa alma, com certeza<br />
não estava no bar, acionara o SAMU e uma<br />
ambulância aparece para resgatá-lo. A mão<br />
acolhedora era de Maria que passava casualmente<br />
por ali. Nutria por ela, um carinho<br />
muito grande e de há muito tempo. Não<br />
aceita que ela o acompanhe ao prontosocorro.<br />
O resto de autoestima que tinha e<br />
o respeito por aquela mulher, não permitiram.<br />
Maria caminha pela avenida, vai visitar sua<br />
amiga Marília, penalizada sorri. – Tenho boas<br />
lembranças daquele safado. Balbucia<br />
com certa ternura. Por mais que tente esquecê-lo,<br />
não consegue.<br />
Na adolescência, rejeitada pelos garotos e<br />
enjeitada pelas meninas, Nico fora a única<br />
pessoa que lhe dera atenção. Aquelas delicadezas,<br />
– Primeiro as damas! Olá Maria,<br />
como vai? Belo vestido Maria! Você está<br />
muito bonita. As provocações: – E aí Maria?<br />
Com este decote... cheia de más intenções!<br />
Está de assanhamento com alguém,<br />
59
<strong>Chicos</strong><br />
Nico tinha mais de vinte anos, trabalhava<br />
num escritório de contabilidade e era mais<br />
velho do que ela quatro anos, talvez cinco<br />
ou até mais. A raiva retorna, quando brota<br />
da memória as vezes sem conta em que ele<br />
embriagado a indagava. – Já te contei sobre<br />
o pior dia da minha vida?<br />
Apesar das inúmeras tentativas de esquecêlo,<br />
ele coabita com a literatura sua mente.<br />
Nico gostava da literatura norte-americana.<br />
Dizia que todo bom livro americano acabava<br />
virando um filme. Isto facilitava uma melhor<br />
compreensão da literatura deles. Apresentara<br />
a Maria os poetas Wittman e<br />
Ginsberg; os prosadores Hemingway,<br />
Faulkner, Steinbeck. Maria tinha calafrios<br />
era com Dorothy Parker, de quem só conseguira<br />
ler um livro de contos. E foi o que bastou.<br />
Nico já era um alcoólatra. Sóbrio, conversavam<br />
sobre seus autores favoritos. Maria se<br />
discordasse dele sobre determinado autor,<br />
era imediatamente cortada. – Sua fedelha!<br />
Foi alfabetizada ontem e já se acha catedrática<br />
em literatura. Quando queria encerrar<br />
certas discussões com ele, não se fazia de<br />
rogada. – Lembra da Hazel Morse? E citava<br />
um trecho de Dorothy Parker – Ela começou<br />
a beber sozinha, aos poucos, um drinque<br />
aqui e outro ali o dia todo... Sozinha,<br />
apenas limava o fio da faca, vivia numa bruma<br />
alcóolica. Era o que bastava. Ele ficava<br />
fulo de raiva. – Você não entendeu merda<br />
nenhuma. Né mesmo? E o tonto aqui sou<br />
eu. Vai embora, vai! Você só me amola.<br />
Maria, apesar da repulsa ao alcoolismo,<br />
adorava Nico e intimamente cultivava uma<br />
simpatia pela Hazel. Como também suspeitava<br />
que a big loira era a mulher dos sonhos<br />
dele, tal era o brilho que surgia em seu<br />
olhar de peixe morto, quando se falava dela.<br />
O que ela mais queria naquela ocasião era<br />
ser como a personagem de Dorothy. Já que<br />
a loira era daquelas de deixar homens de<br />
quatro abanando o rabo. – E não sei por<br />
que vocês parecem que só têm olhos para<br />
as loiras. Nico rindo, – Bobinha, somos filhos<br />
de rudes portugueses que fugiram da<br />
fome, escravos negros arrancados à força<br />
da África e uma pitada amarela dos puris e<br />
coroados. Somos mestiços! Loiras não fazem<br />
parte deste nosso mundinho. São aves<br />
exóticas a voar pela nossa imaginação após<br />
uma sessão de cinema.<br />
Certa noite, Maria voltava do footing na<br />
praça, suas amigas a abandonaram, até Marília<br />
viajara. Combinaram de após algumas<br />
voltas pela praça irem a uma brincadeira<br />
dançante na casa de alguém. Não a esperaram.<br />
Vinha pela rua frustrada e meio chorosa,<br />
ao passar pela casa de Nico, das gretas<br />
da janela surgem alguns gemidos. Apurou<br />
os ouvidos e percebeu que eram de dor.<br />
Chamou, – Nico! Ô Nico? O que aconteceu?<br />
Entre dentes, – Um segundo só! A janela se<br />
abriu uma chave é jogada para ela seguida<br />
de uma voz imperativa. – Entre!<br />
– O que houve? – Estava indo para uma<br />
festa, lá no estacionamento da CIMA, e enfiei<br />
o pé num buraco da obra daquele hotel<br />
na avenida. Mas já cuidaram de mim, ainda<br />
dói, mais alguns tragos de uma boa pinga e<br />
estarei anestesiado. – Te deixaram sozinho<br />
aqui? – Não, meus pais viajaram de manhã.<br />
Foram visitar alguns parentes em Juiz de<br />
Fora. Pegue aqueles papéis ali! Vou ler, para<br />
você, trechos de um poema do Thomas<br />
Eliot. Passa a mão numa garrafa de cachaça<br />
e segue manquitolando até o quarto, ajeitase<br />
numa cama imensa. Toma um gole, percebe<br />
Maria reticente na porta do quarto<br />
com um punhado de papéis na mão. – Ô<br />
Maria vai ficar plantada aí? Vem logo e senta<br />
aqui na cama. Maria caminhou receosa<br />
60
<strong>Chicos</strong><br />
e para quebrar o medo, – Nossa, que cama<br />
enorme? – Esta cama era dos meus avós.<br />
Depois que cresci, ela passou a ser minha.<br />
Aqui foi feito meu pai, minhas tias e não sei<br />
mais quem. – Nico, que falta de respeito.<br />
– Maria isto é uma cama, não é um altar de<br />
igreja. Puxa os papeis de Maria e continua.<br />
– Um amigo copiou para mim essa tradução<br />
do poema The Love Song of J. Alfred Prufrock.<br />
Outra golada de cachaça e começou.<br />
– Sigamos então, tu e eu, / Enquanto o poente<br />
no céu se estende / Como um paciente<br />
anestesiado sobre a mesa; / Sigamos por<br />
certas ruas quase ermas, .... Enquanto ele lê,<br />
Maria observa os braços e o peito que está<br />
sem camisa, ele está só de calção. Nunca o<br />
tinha visto assim e passa a olhá-lo de outra<br />
forma, começa a ver uma masculinidade<br />
que começa a mexer com ela. .... E já conheci<br />
também os braços, a todos conheci /<br />
– Alvos e desnudos braços ou de braceletes<br />
anelados / (Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos<br />
se quedam / Com sua leve penugem<br />
castanha!) / Será o perfume de um vestido /<br />
Que me faz divagar tanto? ... Maria não<br />
conseguia se concentrar no poema; estava<br />
completamente atraída pelo corpo de Nico.<br />
Não se conteve, se atirou sobre ele. Nico,<br />
sob o efeito do álcool, não se fez de rogado.<br />
Maria completamente nua, e um homem<br />
à sua mercê, viveu tudo que sua imaginação<br />
viera criando sobre sexo nas conversas<br />
com suas amigas e nos livros que lia<br />
em sua cama enquanto se masturbava.<br />
Sem saber a razão, ela nunca mais teve coragem<br />
de tocar no assunto do que acontecera<br />
naquela noite. Esperava que Nico o fizesse.<br />
Queria sentir o prazer de ter um homem<br />
cheio de desejos a abordando. Mas o<br />
silêncio dele a desconcertava e a enchia de<br />
dúvidas. Dava a ela uma aterrorizante sensação<br />
de que ele não lembrava de nada.<br />
Ela desistira de contar até para Marília sobre<br />
aquela noite, ninguém acreditaria. E a maledicência<br />
de algumas pessoas transformaria<br />
aquilo numa grande dor de cabeça. Continuou<br />
esperando por Nico. Até que um dia<br />
ele a convida para emprestar-lhe alguns livros.<br />
Na varanda da casa, esparramado numa<br />
espreguiçadeira, ele a recebe. – Já te<br />
contei sobre o pior dia da minha vida? Já<br />
meio bêbado ele continua. – Fui convidado<br />
para uma seresta que organizaram lá no estacionamento<br />
daquela revenda de automóveis<br />
que faliu. A CIMA, lembra dela? Vinha<br />
eu todo serelepe pela noite, perfumado até<br />
os ossos, quando ao passar pela obra de<br />
um hotel, na escuridão, aqueles tapumes<br />
jogando a gente da calçada para a rua, enfiei<br />
o pé num buraco. Torceu de tal forma<br />
que até o Aquiles, aquele lá do calcanhar,<br />
urrou de dor. A dor foi tanta que chorando<br />
peguei um taxi para casa. De lá pra cá tenho<br />
uma verdadeira paranoia com calçadas quebradas.<br />
Naquela noite eu ia conhecer o objeto<br />
dos meus maiores desejos. Ela já chamava<br />
minha atenção pelas ruas há muito<br />
tempo. Um dia, ela passou por mim e um<br />
amigo. Comentei o tanto da atração que tinha<br />
por ela. Ele me passou a ficha toda. Disse<br />
mais ainda. – Te apresento numa seresta<br />
que uma amiga está organizando lá no estacionamento<br />
da antiga CIMA. Elas são primas.<br />
E a perdi por causa de um buraco. Pode<br />
uma merda destas? Maria queria matálo.<br />
– Eu te odeio Nico! Com a voz amolecida<br />
pelo álcool ele a retruca com o clichê, –<br />
Amor e ódio são as duas faces da paixão. E<br />
ria. Maria levanta-se, deixa os livros na cadeira<br />
onde estava, – Você Nico, é um grande<br />
filadaputa! E saí. Na rua promete. –<br />
Nunca mais quero olhar na cara deste cretino.<br />
61
<strong>Chicos</strong><br />
Maria chegara à cidade na noite de sexta-<br />
-feira. Viera passar um fim de semana com<br />
familiares após participar de um colóquio<br />
sobre literatura norte-americana numa Universidade<br />
em Juiz de Fora. Já era tarde<br />
quando ligou para Marília, a amiga desde a<br />
adolescência, a única que permanecera toda<br />
a vida ali, onde nasceram. Combinam almoçar<br />
juntas no sábado e passar a tarde num<br />
bar bebericando uma cerveja e colocando a<br />
conversa em dia. No sábado pela manhã<br />
Marília liga, – Mudança de planos minha<br />
amiga. Sairemos à noite, tenho que ir a um<br />
velório. Acho que você não vai querer me<br />
acompanhar. – Quem morreu? Eu conheço?<br />
– Conhece sim! É o Nico. Marília rompe o<br />
silencio. – Maria? Ô Maria, me fale alguma<br />
coisa. E numa voz trêmula, – Claro que vou.<br />
Passe aqui na casa de minha mãe, que vou<br />
contigo. – Acho melhor não. – Marília se<br />
não quer ir comigo, eu vou só. – Tudo<br />
bem! Por volta de meio dia, te apanho na<br />
casa de sua mãe. As duas amigas chegam<br />
ao velório. Abraçadas param diante do caixão,<br />
Maria não acredita no que está vendo.<br />
– Marília? Este não é o Nico! – É sim Maria!<br />
Uma cirrose hepática e um enfisema pulmonar<br />
o destroçaram. Maria está trêmula, a<br />
amiga a apoia para que possa recobrar-se<br />
do impacto, enquanto fala ao pé do ouvido.<br />
– Faz duas semanas que fui visitá-lo, após<br />
insistentes recados por ele enviados a mim.<br />
– E o que ele queria contigo. – Vamos lá<br />
para fora. Saíram. As duas sentaram num<br />
banco vazio, o mais longe possível do velado.<br />
E Maria insistia em saber o que Nico<br />
queria tanto falar com Marilia. – Você e ele<br />
nunca se falaram. Por que deste desejo dele<br />
em falar contigo? Não faz nem um sentido.<br />
– Ele me contou um monte de patacoadas.<br />
Encheu meu saco com cinema e escritores<br />
norte-americanos. Depois de enrolar bastante,<br />
disse que os médicos o liberaram da<br />
internação para que ele morresse em casa,<br />
atenderam a um insistente pedido dele. E<br />
ele queria que eu transmitisse a você algo<br />
que achei muito estranho. – E o que é?<br />
Conte-me logo. – Depois da minha morte<br />
ao encontrá-la, diga-lhe apenas isto: – Se as<br />
duas pessoas se amam uma à outra, não<br />
pode haver final feliz. Nada mais que isto.<br />
– Filadaputa! Esta é uma das primeiras citações<br />
de Ernest Hemingway que ele me<br />
apresentou. Ele a citava tanto, que feito<br />
uma maritaca a repito até hoje. Era isto o<br />
que tinha para me dizer este filadaputa. E<br />
desata a chorar. Toma fôlego, - Aprendi a<br />
xingar filadaputa deste jeito com este grandíssimo<br />
filadaputa. – Credo Maria! Que tanto<br />
filho da puta? Maria volta a chorar. Marília<br />
pega a amiga pela mão e a retira dali. E<br />
vai pensando no juramento que fizera a Nico<br />
de não contar à amiga tudo que ele dissera.<br />
Uma lágrima brota em Marília ao lembrar<br />
das últimas palavras de Nico naquele<br />
encontro. – O ódio de Maria é a minha penitência.<br />
Por todos os pecados que cometi.<br />
Nunca diga nada do que te contei a ela.<br />
62
<strong>Chicos</strong><br />
Luiz Roberto Guedes<br />
Nasceu em São Paulo (SP), poeta e escritor,<br />
escreve para gente grande e gente pequena.<br />
Publicou uma série de livros, principalmente<br />
do gênero fantástico: Treze Noites de Terror<br />
(2002), Anjos do mar (2002), Armadilha para<br />
lobisomem (2005), O livro das mákinas malukas<br />
(2007), Meu mestre de história sobrenatural<br />
(2008), e A Saga do Gato Negro (2016).<br />
Publicou recentemente os contos de Miss Tattoo<br />
– uma quase novela (2016) e o poemário<br />
bilíngue (português/italiano) Erosfera (2017).<br />
Como ser ninguém na cidade grande<br />
Foi o último a desembarcar do<br />
ônibus. Fatigado, frágil como um esqueleto<br />
de vidro trincado. Em sua idade, qualquer<br />
viagem era um desconforto. Rebocando<br />
a mala com rodinhas, cruzou lentamente<br />
o terminal rodoviário. Desabou<br />
num táxi, mandou tocar para o mesmo<br />
hotel de sua última vez em São Paulo, doze<br />
anos atrás.<br />
No rádio, um pastor explicava como<br />
era fácil para o fiel depositar seu dízimo<br />
na conta corrente da igreja, enquanto o<br />
passageiro se dava conta da multiplicação<br />
das manadas de automóveis, motocicletas,<br />
ônibus, caminhões.<br />
O cinza do céu se esfumava no fim da<br />
tarde. Painéis eletrônicos eufemizavam:<br />
QUALIDADE DO AR: REGULAR. E multidões<br />
no compasso da metrópole, em marcha<br />
acelerada nas calçadas. No entanto, o<br />
velocímetro do táxi mantinha-se abaixo de<br />
quarenta por hora, o motorista embalado<br />
pelo gospel do rádio, entregue sua cruz<br />
na mão de Jesus, o amor de Jesus vai curar<br />
sua dor.<br />
Atazanado pelo coro ululante, martelado<br />
por guitarras, buzinas, motores, sirenes,<br />
odores, o velho sentiu a dor de cabeça<br />
como um prego no crânio.<br />
No hotel, deitou-se pouco depois das<br />
dez da noite. Tentou não pensar na operação<br />
do dia seguinte. Mas a ideia de que<br />
um fantástico canhão de raios indolores<br />
desintegraria os cálculos em seus rins o<br />
manteve acordado.<br />
Então, uma britadeira começou a fraturar<br />
asfalto ou cimento nas proximidades<br />
do hotel.<br />
63
<strong>Chicos</strong><br />
Chapas de metal foram atiradas ao chão<br />
com fragor. Em contraponto, uma serra<br />
elétrica somou-se ao concerto diabólico.<br />
Um compressor trepidava sem pausa, basso<br />
profondo, obturando mínimos interstícios<br />
de silêncio.<br />
Agoniado, vedou os ouvidos com chumaços<br />
de algodão. Inútil. O pandemônio<br />
continuou até três e meia da manhã, enquanto<br />
ele amaldiçoava o antropóide administrativo<br />
que lhe infligia aquele suplício,<br />
brutalizando o sono dos cidadãos<br />
contribuintes.<br />
Pela manhã, atordoado e em jejum,<br />
apresentou-se no hospital. Teve que vestir<br />
uma camisola curta, que expunha suas<br />
pernas secas e peladas de ancião, encordoadas<br />
de veias grossas. Foi perscrutado<br />
por máquinas de última geração, como<br />
enfatizou o médico, e alojado num quarto<br />
onde havia outro paciente. Operado sabese<br />
lá de quê, esse homem, tão velho<br />
quanto ele mesmo, gemia sem descanso,<br />
“puta que pariu, Deus, como dói, caralho”.<br />
Apesar do mau presságio, o ultrassom<br />
realizou seu ato de magia tecnológica. Um<br />
bombardeio cruzado de energia ondulatória<br />
volatilizou os cristais em seus rins.<br />
O senhor está novo em folha, disse convencionalmente<br />
o médico.<br />
Clichê de filme B, doutor, o velho disparou.<br />
No dia seguinte, sentiu-se bem o bastante<br />
para tratar de outro assunto. Carregando<br />
um grande envelope pardo, desceu<br />
do táxi diante do edifício refulgente que<br />
abrigava a nova sede da HB Editorial. Um<br />
cubo de vidro de vinte andares, espelhando<br />
prédios distorcidos do outro lado do<br />
rio. O rio imóvel, gelatinoso, mingau negro<br />
estagnado entre duas vias marginais.<br />
O fedor do rio morto evolava em meio ao<br />
tráfego. Viu uma estrutura em construção<br />
lá no extremo da avenida. Os fundamentos<br />
de uma ponte gigantesca, cinematográfica,<br />
coisa de cartão-postal. Era visível<br />
que aquilo estava inteiramente fora da escala<br />
do entorno. Um brontossauro entre<br />
capivaras. O ronco de motores o fez olhar<br />
para o céu. Observou três helicópteros parados<br />
no espaço, feito libélulas em fila, como<br />
aguardando vaga para pouso num heliponto.<br />
“Aqui tem até congestionamento aéreo”,<br />
o velho bufou.<br />
Colocou os óculos escuros e caminhou<br />
para o cubo de vidro.<br />
No balcão da portaria, uma placa de<br />
metal disse em caixa alta: IDENTIFIQUE-SE:<br />
APRESENTE DOCUMENTO. Lembrando<br />
que as placas inglesas sempre pediam<br />
“por favor”, submeteu-se aos procedimentos<br />
de uma das recepcionistas. Fotografado<br />
por uma lente-botão no topo de um<br />
fino caule metálico, viu seu rosto, baixorelevo,<br />
granulado na tela do computador.<br />
A secretária da HB recebeu com estranheza<br />
aquela figura anacrônica. Destoava<br />
do design futurista da recepção. Um velhote<br />
de crespos cabelos brancos, a cabeça<br />
parecendo grande demais para o tronco<br />
franzino, o jaquetão que já devia ser<br />
peça de museu, a gravata-borboleta que,<br />
pelo aspecto, vinha passando de pai para<br />
filho havia gerações.<br />
64
<strong>Chicos</strong><br />
O senhor deseja?, inquiriu em tom<br />
isento de amabilidade, apesar da ascendência<br />
japonesa. “Rita Endo”, era o nome<br />
no crachá.<br />
O velho repetiu sua fala, era “autor da<br />
casa”, sorriu com dentes de porcelana, em<br />
visita de cortesia, frisou a palavra, vinha<br />
apresentar um livro novo, ergueu o envelope.<br />
O senhor devia ter marcado antes com<br />
o doutor Brazão. Não sei se ele poderá lhe<br />
atender, está muito ocupado com os preparativos<br />
para a Bienal do Livro. Queira<br />
me acompanhar.<br />
Caminhando à frente, Rita Endo conduziu<br />
o visitante ao interior da colmeia de<br />
vidro, indicou-lhe um sofá de couro negro<br />
e dirigiu-se à porta decorada com o logotipo<br />
da HB Editorial, no fundo do corredor.<br />
O escritor sentou-se, passeou os olhos<br />
pela galeria de fotos emolduradas nas paredes:<br />
autores nacionais e estrangeiros,<br />
notáveis do catálogo da HB. Numa foto<br />
autografada, o canadense Thom Dykins<br />
exibia a edição brasileira de seu best-seller<br />
Chuva de fogo em Bagdá. Em outra, o editor<br />
HB posava ao lado de um rapaz branquelo,<br />
de rosto ossudo, com jaqueta de<br />
jeans e camiseta com os dizeres RAMO-<br />
NES Gabba Gabba Hey. Quem era mesmo<br />
aquele moço? Rita Endo retornou com um<br />
arremedo de sorriso.<br />
Heraldo Brazão, editor, já o esperava à<br />
porta da sala, efusivo conforme o protocolo.<br />
Salve, João Vitorino Cruz! O Faulkner<br />
do Brasil Central! Então, resolveu sair da<br />
toca? Você está ótimo, igualzinho da última<br />
vez, quando foi mesmo? Doze anos?<br />
Já? Sente aí.<br />
João Vitorino reparou no novo look do<br />
editor — cabeça raspada, queixo duplo,<br />
um discreto brinco de brilhante no lóbulo<br />
da orelha esquerda. Mais pós-moderno do<br />
que doze anos antes. Por trás dele, além<br />
da parede de vidro, o horizonte denteado<br />
de edifícios reluzentes, aço e vidro refletindo<br />
nuvens.<br />
Grande João Vitorino. Parece que você<br />
nos mandou alguns originais nos últimos<br />
anos, não foi? É lamentável, meu caro,<br />
mas este país não lê, não valoriza o autor<br />
nacional. O que você trouxe aí? Morto<br />
sem chão? Qual é o assunto? Hum. Interessante.<br />
É compreensível, você lida com a<br />
realidade que conhece. O tema é sempre<br />
o grande problema de um livro, meu caro.<br />
That’s the trouble. Atualmente, ninguém<br />
quer ouvir falar desse tipo de regionalismo<br />
tardio: massacre de sem-terra, tribo<br />
dizimada, grilagem de terras, assassinato<br />
de missionário, matador de aluguel etc. O<br />
Brasil urbano está de costas pra esse Brasil<br />
do fundão. É pena, mas that’s it. A missão<br />
de um editor hoje é uma verdadeira cruzada.<br />
It’s really hard, my dear. Temos que<br />
definir um produto que vá ao encontro do<br />
gosto, interesses e expectativas desse leitor<br />
moderno, sem tempo para uma literatura<br />
mais exigente. É muito difícil, o mercado<br />
do livro é muito competitivo. Hoje, o<br />
livro tem que ter um apelo forte, uma trama<br />
intrigante, um desfecho impactante.<br />
65
<strong>Chicos</strong><br />
Você tem acompanhado a nova geração<br />
de escritores ingleses? Veja esse rapaz,<br />
o Jake Lovejoy, que vamos lançar<br />
agora na Bienal do Livro. O romance dele,<br />
StarTrip, é a história estúpida de um motorista<br />
de caminhão que resolve reunir novamente<br />
os membros de sua antiga banda<br />
de rock e, depois de várias peripécias,<br />
conseguem gravar um disco que acaba<br />
fazendo sucesso, tudo de modo acidental,<br />
porque ele se envolve com uma aristocrata,<br />
o caso vira assunto dos tabloides sensacionalistas,<br />
e aí, a cada reviravolta, o<br />
protagonista vai se dando bem: vira o instant<br />
darling da mídia e do público, apesar<br />
de ser um pateta, de fazer tudo errado.<br />
É um livro divertidíssimo, very british,<br />
com o típico humor inglês. Vai ser filmado.<br />
Esse autor, de trinta e poucos anos, tem<br />
punch, sabe armar um plot que realmente<br />
agarra o leitor. Já vendeu novecentos mil<br />
exemplares na Inglaterra. Vamos lançar<br />
aqui antes dos americanos.<br />
A parede de vidro vibrou agudamente<br />
ao som de um helicóptero. João Vitorino<br />
viu o engenho vermelho rumando para<br />
um edifício coroado com a marca de uma<br />
corporação global. Um raio amarelo logotipava<br />
a porta do aparelho. Teve a impressão<br />
de ver encenada uma ilustração de algum<br />
livro antigo sobre “o mundo de amanhã”.<br />
Visão déjà vu. O futuro havia chegado,<br />
mas não tinha lugar para ele. Nem para<br />
todos.<br />
Well, deixe o seu livro com a gente, João,<br />
vamos ler com carinho. Daremos uma<br />
notícia em breve, fique sossegado. Então,<br />
quando é que volta pra Mato Grosso? Cedo<br />
assim? Pena. Você podia ficar pra Bienal<br />
do Livro, o Thom Dykins vem aí, o Jake<br />
Lovejoy também. É um puta cara bacana,<br />
muito divertido, very nice guy. Olha, leva<br />
este livro aqui: Como ser ninguém na cidade<br />
grande. É daquele humorista americano,<br />
Mel Feldman, daquela sitcom Suburbia,<br />
da tevê paga, você já viu? Um falso<br />
livro de auto-ajuda, não é genial? Leve<br />
também este outro, A mulher dentro de<br />
mim: é uma espécie de diário do escritor<br />
transexual Fiona Fox-Jones, que já foi<br />
prostituto.<br />
Pois é, meu caro. Grande prazer rever<br />
você. Você tá ótimo. Tá com que idade?<br />
Setenta e sete? Maravilha. Queria eu chegar<br />
a essa idade em grande forma como<br />
você. Mas essa vida que a gente leva, essa<br />
pressão. Feliz é você que vive longe dessa<br />
loucura brava.<br />
Boa viagem, João. Dê notícias. Me<br />
mande alguma coisa ano que vem. Pode<br />
ser que o cenário mude, who knows?<br />
66
<strong>Chicos</strong><br />
José Vecchi de Carvalho<br />
Nasceu em Cataguases, após morar por muito<br />
tempo em Viçosa vive hoje em Paula Candido<br />
todas cidades mineiras. Coautor de A<br />
casa da Rua Alferes e outras crônicas (20<strong>06</strong>),<br />
e autor de Duas Cruzes (contos <strong>2018</strong>).<br />
Os olhos de Ruzia<br />
(para Cidinha Lomeu)<br />
Meu pai chegava cansado, ele e<br />
Ruzia. Chegava à tardinha, quase no escurecer<br />
do morro, todo santo dia. Vinha com os<br />
olhos na gente, sempre tentando dizer alguma<br />
coisa, mas assim, só com os olhos<br />
mesmo e com gestos, um carinho no meu<br />
cabelo, um tapinha no ombro dos meus irmãos<br />
e um olhar ligeiro para a minha mãe.<br />
Não sei como naquele olhar podiam caber<br />
tantas palavras, mas muitas vezes, era assim<br />
que ele e minha mãe conversavam.<br />
Ruzia tinha os olhos fixos, lamentosos,<br />
mas ao me ver acabava de subir a morraria<br />
com mais vontade, o pescoço e a testa num<br />
vaivém de cima pra baixo. Era o seu jeito de<br />
subir o morro. Apertava os passos e mudava<br />
o semblante, ficava alegre mesmo depois<br />
de um dia inteiro de trabalho pesado,<br />
puxando carga de todo tipo, o tempo todo,<br />
sem ter ao menos o que beber ou mastigar.<br />
Minha mãe cuidava do meu pai; eu cuidava<br />
de Ruzia. Ela se aproximava e eu podia ver<br />
que os seus olhos mudavam o brilho, o jeito.<br />
Balançava os beiços moles, mostrando a<br />
idade nos dentes, vinha que vinha aflita pra<br />
comer. Quando mastigava, eu ficava um<br />
tempão ouvindo o barulhinho que ela fazia.<br />
De vez em quando levantava a cabeça, movia<br />
as enormes orelhas e voltava à vasilha<br />
de comida. Eu alisava seu pelo, acarinhava<br />
sua testa comprida, passava a mão em sua<br />
crina que meu pai mantinha bem aparada,<br />
espantava alguma mosca que a incomodava<br />
e conversava um pouco com ela, baixinho<br />
nos ouvidos, pra ninguém escutar, era<br />
sempre um segredo nosso. Ela abanava<br />
uma das orelhas em sinal de estar atenta ao<br />
que eu dizia. E balançava a cabeça, concordando<br />
comigo. Depois ela ia para o pasto<br />
acima de nossa casa e eu corria para dentro<br />
ao encontro do meu pai. Ele me punha no<br />
colo, me fazia rir com o seu jeito de brincar<br />
67
<strong>Chicos</strong><br />
e inventava brinquedos com papelão enquanto<br />
minha mãe inventava histórias pra<br />
distrair a gente. Havia três coisas que eu e<br />
meus irmãos esperávamos todos os dias<br />
com muita ansiedade: os brinquedos do<br />
meu pai, as histórias da minha mãe e o que<br />
comer. Minha mãe inventava histórias e comidas<br />
com o que tinha em casa; às vezes, a<br />
gente só tinha as suas histórias pra comer e<br />
íamos mastigando palavras até chegar o<br />
sono. Eu ficava pertinho do meu pai, gostava<br />
de sentir o seu cheiro de cavalo.<br />
Nos fins de tarde, a carroça chegava<br />
com algumas coisas de comer que a gente<br />
esperava contando as horas, de tanta fome<br />
que a gente tinha. Às vezes, quando não<br />
tinha surgido nenhum carreto, a carroça<br />
vinha vazia. Era quando a nossa mulinha<br />
olhava pro chão e tinha as pálpebras caídas,<br />
semicerradas, como se chorasse. Vinham<br />
os três subindo o morro bem devagar,<br />
parando aqui e ali, só mesmo pra atrasar<br />
a chegada. Meu pai assobiava uma música<br />
estranha e conversava com Ruzia; ela<br />
nem olhava para o velho, mas atendia aos<br />
comandos e ia mais devagar que em outros<br />
dias, se arrastando morro acima. A carroça,<br />
por sua vez, sabendo-se vazia, sem nada<br />
para nos contentar, vinha pachorrenta, ziguezagueando<br />
pela estradinha de terra,<br />
quase muda de tão leve. Ficava se lamentando,<br />
pensando em como seria diferente<br />
se ela fosse um carro de boi, e tentava imitá-lo<br />
entoando uma cantiga enfadonha, um<br />
chronque uinque chronque uinque num<br />
tom grave e num ritmo quase fúnebre.<br />
Quando chegavam, meu pai nos olhava<br />
meio sem graça, acho que via na gente os<br />
olhos tristes de Ruzia, mas logo, logo fazia<br />
alguma brincadeira para despistar o nosso<br />
desapontamento. Ruzia vinha em minha<br />
direção com seus olhos grandes, balançando<br />
os beiços, mostrando os dentes. E quando<br />
para ela também não havia o que comer,<br />
seus olhos permaneciam baços. Eu alisava<br />
seu pelo, falava-lhe ao ouvido e ela<br />
seguia para o pasto. Ia lentamente, cabisbaixa,<br />
de vez em quando, parava, olhava<br />
para trás na esperança de que eu estivesse<br />
apenas brincando, escondendo sua comida.<br />
Depois seguia sem pensar em nada ou,<br />
quando muito, nos tufos de capim.<br />
Tínhamos nossas manias. Eu gostava de<br />
quebrar palavras, juntar pedaços e fazer<br />
outras palavras. Também gostava de anotar<br />
algumas que eu achasse bonitas; Ruzia era<br />
meio fujona e, além disso, pulava de susto<br />
quando ouvia foguetes. E numa das noites<br />
em que se afastou muito dos arredores, o<br />
Brasil tinha vencido mais uma partida rumo<br />
ao tri, um foguetório doido por todo lado.<br />
Ela se assustou, deslizou barranco abaixo<br />
naquele morraréu cheio de buracos e, coitadinha,<br />
quebrou uma perna. Meu pai fez<br />
umas canas com pedaços de bambu para<br />
tentar recuperá-la, mas não adiantou. Passou<br />
umas pomadas, mandou benzer, fez<br />
simpatia, tudo em vão. Ela foi piorando<br />
tanto que eu podia ver a dor nos seus<br />
olhos, já não se aguentava em pé. Não pôde<br />
mais trabalhar com o meu pai e seus<br />
olhos foram ficando cada vez mais cinzentos<br />
e paralisados. Eu continuava tratando<br />
dela, mas não teve jeito, tinha que ser sacrificada.<br />
Num domingo de manhã, meu pai chamou<br />
uns vizinhos e fizeram uma cova enorme<br />
no meio do pasto, parecia uma cisterna.<br />
Eu, meus irmãos e outras crianças lá do<br />
morro ficamos brincando na terra solta enquanto<br />
os homens cavavam.<br />
68
<strong>Chicos</strong><br />
Depois meu pai mandou a gente ir pra casa<br />
pra não ver. Juntou um mundaréu de gente<br />
e, naquele tumulto, escapei dos olhos de<br />
todos e me escondi atrás de um montículo<br />
de cupim. Fiquei olhando à meia distância.<br />
Meu pai trouxe Ruzia, mas não teve coragem.<br />
Ela parecia saber de tudo e ficou virando<br />
o pescoço, me procurando, como se<br />
quisesse fazer o último pedido: uma comida<br />
de domingo, um pouco d’água, um carinho<br />
nos pelos, na crina, ou, quem sabe, um<br />
cochicho nos ouvidos, com uma daquelas<br />
histórias que eu aprendi a inventar com a<br />
minha mãe, pra enganar a fome e a tristeza.<br />
Sem saber o que fazer, acenei de longe pra<br />
ela um aceno de despedida. Um vizinho<br />
disparou. Foi um único tiro. Depois arrastaram<br />
a coitadinha para dentro da cova e a<br />
cobriram com toda aquela terra.<br />
Por algum tempo eu e meus irmãos íamos<br />
até a cova de Ruzia. Eu falava com ela,<br />
rezava por ela, e eles riam de mim. Eles iam<br />
lá só para rir e eu para chorar. Chorava por<br />
causa da Ruzia, porque éramos amigas de<br />
verdade, amigas de trocar carinho e comida.<br />
E naquele morro onde a miséria fez morada,<br />
carinho e comida faziam amigos.<br />
O país vivia um milagre. Um tal bolo tinha<br />
que crescer, mas o morro crescia muito<br />
mais e se enchia de gente e de casebres<br />
iguais ao nosso. Gente que, como nós, não<br />
viu nem sinal do bolo. Minha mãe dizia que<br />
essa história era um conto de fadas às avessas,<br />
com final diverso. Foi nessa época que<br />
começaram a construir sobre a cova de Ruzia.<br />
Fiquei desesperada, queria que meu pai<br />
impedisse a construção, mas ele não podia.<br />
Então minha mãe me disse que iam fazer<br />
um mausoléu para a nossa mulinha. Que eu<br />
ia ter um lugar bonito pra rezar, acender<br />
vela e levar flores pra ela. Eu nem sabia o<br />
que era um mausoléu, mas achei a palavra<br />
bonita e também fiquei contente por ter<br />
um lugar bonito para rezar pela alma da<br />
minha amiga.<br />
Meus pais já tinham planos de ir embora<br />
e eu nem sabia. Eles tinham lá seus segredos<br />
de gente grande. Íamos tentar a sorte<br />
noutro lugar bem longe dali.<br />
Na véspera foi uma correria: arrumação<br />
de malas, trouxas e cacarecos; depois despedidas<br />
de vizinhos, amigos e parentes. São<br />
Paulo, outra palavra que gostei de ouvir.<br />
Batia em meus ouvidos e eu achava que parecia<br />
com mausoléu e aí eu ficava repetindo<br />
são-paulo-mausoléu, mausoléu-são-paulo.<br />
Meu pai vendeu nossa casinha lá no morro<br />
e fomos embora. Não pude ver o final da<br />
obra, mas escrevi as palavras e as levei comigo.<br />
Na viagem meus irmãos foram zombando<br />
de mim e eu chorava feito uma boba.<br />
Minha irmã mais nova também chorava<br />
sem saber o motivo e minha mãe pegou-a<br />
no colo e eu pulei no do meu pai. Aí eu fiquei<br />
quietinha, rindo à toa. Tirei do bolso o<br />
pedaço de papel garatujado e ia repetindo<br />
baixinho, quase em pensamento: são-paulo<br />
-mausoléu-mausoléu-são-paulo-são-paulomausoléu-mausoléu-são-paulo.<br />
Meus irmãos perderam a graça e se calaram.<br />
Acho que dormiram antes de mim.<br />
Eles nem sabiam que eu ia feliz no colo do<br />
meu pai, sentindo nele um cheiro gostoso<br />
de Ruzia.<br />
(conto publicado na coletânea Metamorfoses do<br />
amor, editora Metamorfose, Porto Alegre-RS,<br />
<strong>2018</strong>).<br />
69
<strong>Chicos</strong><br />
Antônio Jaime<br />
Soares<br />
Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />
Participou de um dos movimentos culturais<br />
mais ativo dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />
Depois de morar um longo tempo no Rio de<br />
Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.<br />
Retornou a Cataguases direto para<br />
a Vila.<br />
Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />
(crônicas - 2011)<br />
A propósito dos 70 anos de Carlimoura<br />
Tenho mais de setenta motivos pra<br />
falar bem dele, porém, em sinal de respeito<br />
à paciência do leitor, escolhi uns<br />
poucos, arrolados a seguir.<br />
Ano passado, desejei-lhe um Feliz <br />
e este ano dei boas-vindas ao “clube<br />
dos setenta”, no qual só falta agora Alfredo<br />
Condé, pra ficar nesse quinteto<br />
irreverente a que se reduziu a nossa<br />
turma. Somos uma escadinha: Agenor<br />
Sereno é de 1945, eu, de 46, Lelê Cardoso,<br />
47, Moura, 48, o Condé, 49. Todos<br />
da primeira metade do século passado.<br />
Continuando nos números, conheci<br />
Moura há 58 anos, numa sala de aula.<br />
Ele, um menino de apenas doze anos,<br />
já conversava como gente grande. Trabalhava<br />
(hoje é proibido pra menores)<br />
no guichê da Citran, no Hotel Villas,<br />
vendendo passagens pro Rio – não tinha<br />
rodoviária, os ônibus faziam ponto<br />
ao longo da plataforma da estação, atual<br />
Centro Cultural Eva Nil. O tempo ocioso<br />
ele preenchia com leituras, dos jornais<br />
do dia aos clássicos, desde a Grécia.<br />
Alguma revistinha de Carlos Zéfiro<br />
também podia rolar debaixo do guichê.<br />
E piadas, muitas.<br />
Uma coisa puxa outra e lembrei<br />
agora que no hotel hospedou-se por<br />
um tempo o professor Souza, um astrólogo<br />
que tinha programa na rádio e,<br />
creio, dava consultas sentimentais,<br />
existenciais e tais e quais. E pediu ao<br />
Moura pra prefaciar seu livro, cujo título<br />
era Quero ser Letrado. Não sei se<br />
editou e, anos depois, no Rio, vi sua foto<br />
no jornal Última Hora, com esta chamada:<br />
“Astrólogo é linchado em Caxias”.<br />
70
<strong>Chicos</strong><br />
Eu também trabalhava por ali, uma<br />
zona bem animada, com figuras típicas,<br />
algumas, bem divertidas. Isidro, Linhares,<br />
o sem-braço, Humberto Sapo, Antônio<br />
da Biju, Lolote, os “comunistas”<br />
do beco, viajantes, uma ou outra cafetina<br />
e muita gente de outras cidades, de<br />
passagem. E tinha a passagem<br />
“estudada” da secretária da fábrica<br />
que, ao se aproximar dos hóspedes do<br />
hotel, caprichava no movimento dos<br />
quadris.<br />
Colegas de turma dividindo a mesma<br />
carteira, vizinhos no trabalho e no bairro<br />
Haidée, Carlim (apelido de família) e<br />
eu ficamos amigos. Uns três anos depois,<br />
o convidaram a participar do Cine<br />
Clube Sergei Eisenstein e ele me indicou.<br />
E nos envolvemos naquilo, passando<br />
filmes, fazendo teatro e outras papeatas,<br />
sob as ordens de Paulo Martins.<br />
A coisa evoluiu e passou a se chamar<br />
CAC (Centro de Arte de Cataguases).<br />
Além de nós, participavam Haroldo<br />
Teixeira Cardoso (falecido) e seu irmão<br />
Lelê, Agenor Sereno e suas irmãs Luíza<br />
(falecida), Cândida e Zélia, Xiquim da<br />
Real, Dodoca (falecida), Carlos Weber<br />
(falecido), Sidney Cabral Xavier<br />
(falecido), Silvério Torres e outros. Em<br />
65, rompi com Paulo e eles logo fizeram<br />
o mesmo. As peças teatrais continuaram.<br />
Uns dois anos mais tarde demos<br />
uma trégua e colaboramos nas filmagens<br />
do longa-metragem O Anunciador,<br />
de Paulo, concluído em 1970. As músicas<br />
do filme, a propósito, foram compostas<br />
por Alfredo, duas delas com letras<br />
de Moura, o protagonista da fita,<br />
que formava com o Lião, apelido de Alfredo,<br />
uma parceria de respeito.<br />
E chegou a hora da separação, sem<br />
desunião. Eu no Rio, Moura em Além<br />
Paraíba e Alfredo em Belo Horizonte.<br />
Agenor já morava em Ubá e Lelê ficou<br />
por aqui mesmo. Sempre ligados, hoje,<br />
mais pela internet, como se, a léguas<br />
de distância, dividíssemos a mesma<br />
carteira na escola, o mesmo banco da<br />
praça ou cadeiras vizinhas no cinema.<br />
Ou o balcão da Taberna do Embalo, do<br />
saudoso Turi, na Praça Rui Barbosa,<br />
agora uma praça abstêmia. Os que não<br />
frequentavam a taberna se dispersaram.<br />
Sobre ela, já se falou, mas faltaram<br />
uns causos, feito uma noite em que Niquinha,<br />
bêbado, alisava os cabelos de<br />
Moura, elogiando sua beleza. Eu caçoei,<br />
dizendo que Moura havia arranjado<br />
programa praquela noite. Resposta dele:<br />
“Quem não come o Nica, se trumbica”.<br />
Aos mais jovens explico que havia<br />
um animador de televisão chamado<br />
Chacrinha e um de seus bordões era<br />
“Quem não se comunica, se trumbica”.<br />
A história que Carlim mais gostava<br />
ocorreu fora de lá, numa noite em que<br />
foi com Turi comer uma feijoada cheia<br />
de osso. Conclusão de Turi:<br />
“Desenterraram mais uma vez a ossada<br />
da Dana de Tefé”. E Dana de Tefé, uma<br />
aventureira internacional, com título de<br />
baronesa, cujo cadáver nunca foi encontrado,<br />
ficou sendo sinônimo de feijoada.<br />
71
<strong>Chicos</strong><br />
Ele gosta de sinônimos, por exemplo,<br />
chamar o Rio de antigo Estado da Guanabara.<br />
Outro exemplo: Mané pia-onça, sócio de Turi,<br />
falava da inesquecível Zefinha, de Recife, pra<br />
quem todo mês jogava oitocentos contos em<br />
cima da cama, “procê gastar”. Pois Zefinha<br />
ficou sendo o apelido da esposa de Carlim, a<br />
dedicada e delicada Marilene, colega de trabalho<br />
que conheceu em Além Paraíba e virou<br />
parceira afetiva e efetiva, no melhor estilo<br />
“um amor por toda a vida”.<br />
Além Paraíba e Moura se adotaram e lá ele<br />
tem caros amigos, exerce uma espécie de assessoria<br />
cultural, pelo simples prazer de valorizar<br />
os talentos da terra, realizando eventos e<br />
documentários sobre eles, resultando em filminhos<br />
porretas. No mais, lá como cá, no Rio,<br />
em JF ou nas oropa, está sempre caçoando,<br />
do mesmo modo que agia com Antônio do<br />
hotel e outros. Antônio era garçom e nas horas<br />
vagas ficava à porta apreciando as<br />
“catitas”, como definia as mulheres “boas”<br />
que passavam.<br />
E houve o caso do vigia da Praça Santa Rita,<br />
quando esta adquiriu o aspecto que tem hoje.<br />
O papel do cara era repreender, por exemplo,<br />
quem pusesse o pé em cima do banco. Valendo-se<br />
disso, Moura argumentou: “Quer dizer,<br />
então, que o senhor é um fascista? Um nazista?”.<br />
Resposta: “Sou, sim, faço questão de<br />
ser”. E Moura emendou: “Homossexual? Pederasta?”.<br />
Mesma resposta. A gente “caímos”<br />
na gargalhada, claro.<br />
Finalizando: Moura se comunica. E nunca se<br />
trumbica.<br />
Moura em cartaz no Paissandu, Rio, 1970<br />
72
<strong>Chicos</strong><br />
Marcelo Torres<br />
Marcelo Torres é baiano, torcedor do Vitória,<br />
jornalista, autor de "O bê-á-bá de Brasília", foi<br />
segundo colocado no "Prêmio Nacional de Novelas<br />
Históricas" (Fundação Cultural da Bahia),<br />
com a obra "Aos pés do caboclo" (ainda inédita).<br />
Nelson Rodrigues e o goleiro do Liverpool<br />
No futebol, Nelson Rodrigues teve<br />
dois grandes amores. Um era a seleção brasileira:<br />
se entra em campo com o nome do país,<br />
ele dizia, e com um fundo musical que é o<br />
nosso hino, então é a pátria em calções e<br />
chuteiras.<br />
A outra paixão era o tricolor carioca. Se o Fluminense<br />
jogasse no céu, ele morreria para ver<br />
o seu time. O torcedor do time, segundo Nelson,<br />
não é muito de ir ao estádio, prefere até<br />
ficar em casa, no sofá, lendo um jornal, vendo<br />
televisão.<br />
Porém, jurava ele, de mãos espalmadas, basta<br />
o Fluminense precisar, que aí se dá o milagre:<br />
tricolores — os vivos, os doentes, os mortos<br />
— todos aparecem. Os vivos saem de suas<br />
casas; os doentes pulam de suas camas; os<br />
mortos saltam de suas tumbas.<br />
Ele, ainda moleque em Aldeia Campista, os<br />
pés no chão, a calça furada, a Primeira Guerra<br />
Mundial explodindo, mas a única e definitiva<br />
preocupação era mesmo o tricolor. “Enquanto<br />
morria um mundo e começava outro, eu só<br />
via o Fluminense”.<br />
Foi o que ocorreu no último sábado, quando<br />
o Brasil estava quase parado, o mundo com<br />
dois doidos varridos (um americano e um coreano<br />
puxando cabelinho de um, cabelinho<br />
do outro) e, na Ucrânia, aconteceria a final da<br />
Liga dos Campeões, entre Real Madrid e Liverpool.<br />
Só que o seu Fluminense, quase ao mesmo<br />
tempo, jogaria com a Chapecoense e precisava<br />
do torcedor. Porque, em caso de vitória, o<br />
time poderia dormir na liderança do campeonato.<br />
De quebra, derrubaria um tabu histórico<br />
— o de nunca ter vencido o bravo clube catarinense.<br />
Então, nada de Liverpool e Real Madrid, mais<br />
de 13 mil tricolores saíram de suas casas, de<br />
suas camas, de seus túmulos e foram empurrar<br />
o time no Mário Filho, inclusive Nelson<br />
Rodrigues, que saiu de sua tumba com uma<br />
bengala e pegou um metrô até o templo sagrado<br />
do Maracanã.<br />
Desta feita, lá não encontrou a grã-fina das<br />
narinas de cadáver, que, com uma camiseta<br />
amarela pirateada, estava há três horas parada<br />
numa fila quilométrica em Copacabana,<br />
tentando encher o tanque do seu belíssimo<br />
carro importado.<br />
73
Já na tribuna do Maraca, Nelson encontrou um<br />
velho personagem, o Sobrenatural de Almeida,<br />
que ali estava para torcer pela Chapecoense,<br />
pela manutenção do tabu — isto era o óbvio<br />
ululante — e não tirava os olhos do goleiro do<br />
Fluminense.<br />
Ocorre que, já no segundo escanteio para os<br />
catarinenses, o perigo rondando a cidadela tricolor,<br />
Nelson notou o mau presságio e expulsou<br />
o fantasma a bengaladas: — Vai secar o<br />
diabo! Vai lá ver se eu estou na Ucrânia!<br />
No Rio, a intervenção de Nelson Rodrigues deu<br />
certo para o tricolor, que abriu o placar com o<br />
lépido Pedro. Logo em seguida Marcos Júnior<br />
ampliou. Já em Kiev, o Sobrenatural botou os<br />
pés no estádio e os olhos fixos em Loris Karius,<br />
o jovem goleiro do Liverpool.<br />
Acabou o primeiro ato no Rio, dois a zero para<br />
o tricolor, começou o segundo capítulo lá na<br />
Ucrânia, e ainda estava no zero a zero.<br />
Nelson, embora no Maraca, também estava em<br />
Kiev. “A bola é um reles, um ínfimo, um ridículo<br />
detalhe”, ele dizia. “O que procuramos no futebol<br />
é o drama, é a tragédia, é o horror, é a<br />
compaixão”.<br />
Com cinco minutos no segundo ato do espetáculo,<br />
eis que o Sobrenatural mira as mãos, as<br />
luvas do goleiro Loris Karius, e este, abduzido,<br />
entrega a bola de bandeja para Benzema. O<br />
Real abre o placar e bota uma mão na taça.<br />
Vejam que coisa: numa cena, num só cena, estava<br />
estampado o drama, a tragédia. E também<br />
a compaixão. Tudo caía desgraçadamente como<br />
luva nas mãos do goleiro, cuja atuação era<br />
perfeita até aquele momento.<br />
Os vermelhos, os rapazes de Liverpool, até que<br />
chegaram ao empate, num suspiro, e foram,<br />
solidários, abraçar o arqueiro. Mas não era<br />
mesmo o dia do time dos Beatles. O Real logo<br />
a seguir desempatou, com uma obra-prima,<br />
um gol de bicicleta de Bale, talvez o mais bonito<br />
tento em finais de Liga dos Campeões.<br />
E o mesmo Bale, aos trinta e um, soltou o tiro<br />
de misericórdia, uma bomba nas mãos de<br />
Karius, mas este, coitado, este já sentia todo o<br />
peso do mundo sobre seus ombros, não<br />
aguentou.<br />
74<br />
<strong>Chicos</strong><br />
A bola, como que empurrada pelo Sobrenatural<br />
de Almeida, caiu como um peru depenado<br />
entre a linha e a rede. E o mundo do goleiro<br />
caía junto.<br />
Segundo Nelson, “o problema do arqueiro não<br />
se resume ao desgaste físico, ele sofre um<br />
constante, um ininterrupto desgaste emocional”.<br />
“Debaixo dos três paus, parado, dá ideia de um<br />
chupa-sangue que não faz nada, enquanto os<br />
outros se matam em campo. Ilusão! Na verdade,<br />
mesmo sem jogar, mesmo lendo gibi, o goleiro<br />
faz mais do que o puro e simples esforço<br />
corporal”.<br />
“Ele [goleiro] traz consigo uma sensação de<br />
responsabilidade que, por si só, exaure qualquer<br />
um. Amigos, eis a verdade eterna do futebol:<br />
— o único responsável é o goleiro, ao passo<br />
que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis<br />
natos e hereditários”.<br />
“Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro<br />
podem falhar. Podem falhar e falham vinte,<br />
trinta vezes num único jogo. Só o arqueiro tem<br />
que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode<br />
significar um frango, um gol e, numa palavra, a<br />
derrota”.<br />
“O brasileiro já se esqueceu da febre amarela,<br />
da vacina obrigatória, da espanhola, do assassinato<br />
de Pinheiro Machado. Mas o que ele<br />
não esquece, nem a tiro, é o chamado ‘frango’<br />
de Barbosa”.<br />
“Qualquer um outro estaria morto, enterrado,<br />
com o seguinte epitáfio: — Aqui jaz Fulano,<br />
assassinado por um frango. Ora, eu comecei a<br />
desconfiar da eternidade de Barbosa quando<br />
ele sobreviveu a 50. Então, concluí de mim para<br />
mim: — Esse camarada não morre mais! Não<br />
morreu e, pelo contrário, está cada vez mais<br />
vivo”.<br />
Depois de tudo o que vimos, vamos torcer para<br />
que as palavras de Nelson para Barbosa sirvam<br />
também para o goleiro do Liverpool. Loris<br />
Karius não morreu. Nem para a vida nem para<br />
o futebol. E tem mais: ou minha intuição é uma<br />
ilusão ou esse rapaz ainda vai fazer milagres<br />
aos borbotões. Bola para frente e força, Loris<br />
Karius!
<strong>Chicos</strong><br />
Raquel Naveira<br />
Nasceu em Campo Grande MS, formada em<br />
Direito e Letras, doutoranda em Literatura Portuguesa<br />
na USP. Escreveu vários livros, entre<br />
eles: Abadia (poemas, editora Imago,1996) e<br />
Casa de tecla (poemas, editora Escrituras, 1999),<br />
indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia.<br />
Sapatos e sandálias<br />
Sou apaixonada por sapatos. Tenho<br />
sempre a impressão que bons sapatos me<br />
levarão a bons lugares. Confiro saltos e modelos.<br />
São como joias brilhando na vitrine.<br />
Lembrei-me de um quadro do pintor francês<br />
Ingres intitulado “A Banhista de Valpinçon”,<br />
que se encontra no Louvre. Um nu feminino,<br />
cheio de graça, de clássica beleza. O<br />
erotismo frio, de uma mulher sentada de<br />
costas, com um turbante na cabeça, a pele<br />
de tons cálidos contra uma cortina de veludo<br />
verde escuro. Uma torneira de água acima<br />
dos pés moles. A seu lado, as sandálias<br />
vermelhas, as tiras enfeitadas de renda. O<br />
fascínio despertado pelo pé, parecendo sem<br />
ossos e sem tornozelos, prestes a se adaptar<br />
na sandália encarnada.<br />
Foi assim também no conto “Cinderela”.<br />
O sapatinho de cristal abandonado nos degraus<br />
do palácio do príncipe, durante a fuga,<br />
à meia noite. E o momento mágico em<br />
que tirou do bolso o outro sapatinho, sinal<br />
de reconhecimento, prova irrefutável de sua<br />
identidade. O pé deslizou sem esforço. Se<br />
precisasse forçar não seria o seu tamanho.<br />
O relacionamento estaria fadado ao insucesso.<br />
Traria conflito, angústia.<br />
75
Antigamente, era costume em Israel, em<br />
caso de resgate ou permuta, para validar o<br />
negócio, um tirar a sandália e entregá-la a<br />
outro. Símbolo do direito de propriedade,<br />
tão arraigado no ser humano. A delimitação<br />
dos territórios, das heranças, das nações.<br />
Há uma passagem bíblica em que se recomenda<br />
aos peregrinos do evangelho, sacudir<br />
a poeira das sandálias quando saíssem<br />
de uma casa ou cidade que não aceitasse a<br />
boa nova. É preciso mesmo sacudir a dor<br />
que sentimos quando rejeitados. Sacudir o<br />
pó sem rancor, sem apego, sem discussão.<br />
Sacudir o pó da ilusão e do cansaço. Retomar<br />
a estrada com esperança. Continuar na<br />
missão de peregrino<br />
O calçado tem uma significação funerária.<br />
A morte, afinal, é quando a gente pode<br />
estar deitados de sapatos. Uma amiga sobrevivente<br />
do incêndio do edifício Joelma,<br />
que ardeu no centro de São Paulo, contava<br />
que ao descer correndo as escadas, só via<br />
montanhas de sapatos.<br />
Essa imagem foi utilizada pelo dramaturgo<br />
Arnaldo Antunes como recurso na montagem<br />
da tragédia de Eurípedes, “As Troianas”,<br />
que retrata o final da guerra de Troia a<br />
partir do feminino. Mostra o que ocorre<br />
com as prisioneiras troianas escravizadas,<br />
aguardando no porto o embarque em naus<br />
gregas. Troia consumida pelas chamas sob<br />
tochas. O tom é lamentoso, de desgraça. As<br />
mulheres de luto arrastam pelo palco correntes<br />
feitas de sapatos masculinos, botas<br />
negras indicando o número de homens<br />
<strong>Chicos</strong><br />
mortos e ausentes. A tensão da peça é violenta.<br />
Horrores esperam os vencidos.<br />
Hoje, entrarei em casa descalça como<br />
quem penetra a soleira de um templo sagrado.<br />
O caminhar curto e lento das chinesas<br />
com pés atrofiados em faixas. Estou me<br />
sentindo culpada, louca rainha Maria Antonieta<br />
desejando tantos sapatos. Ainda bem<br />
que para o meu coração só desejei você,<br />
meu par perfeito.<br />
76
<strong>Chicos</strong><br />
Luiz Ruffato<br />
Lendo os Clássicos<br />
Nasceu em Cataguases MG, reside em<br />
São Paulo SP. Entre tantas obras de sua<br />
autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />
de 2001, ganhou o Troféu<br />
APCA oferecido pela Associação Paulista de<br />
Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis<br />
da Fundação Biblioteca Nacional. Esse<br />
livro o tornou um escritor reconhecido no<br />
país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno<br />
Provisório, com a publicação do romance<br />
Domingos Sem Deus, iniciado com<br />
Mamma, son tanto Felice em 2005, composto<br />
por cinco livros sobre o operariado<br />
brasileiro.<br />
O Norte e outros contos (1912-1929)<br />
Evgueni Zamiatine (1884-1937) - Rússia<br />
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra<br />
Lisboa: Antígona, 2017, 297 páginas<br />
77
<strong>Chicos</strong><br />
A coletânea reúne 10 contos,<br />
bastante irregulares entre si. Contém três<br />
narrativas realmente muito boas: a ascensão<br />
de um sujeito sem escrúpulos, em<br />
"Uma história provinciana", de 1912; o<br />
discurso honesto, e por isso, sem querer,<br />
carregado de ingênua ironia, do novo homem<br />
soviético, em "Tem a palavra o camarada<br />
Tchuríguin", de 1926; e a história<br />
de um crime e castigo, em "Inundação",<br />
de 1929. No entanto, outros textos, como<br />
"O dragão" e "O amparo dos pecadores",<br />
ambos de 1918, "A caverna", de 1920, e "A<br />
história da mais importante coisa", de<br />
1923, são fracos, e só ganham musculatura<br />
por uma questão extraliterária, a crítica<br />
ao obscurantismo comunista, no momento<br />
mesmo em que está sendo implantado.<br />
Há mesmo um conto, "Sobre a cura milagrosa<br />
do noviço Erasmo", de 1920, que<br />
não passa de uma óbvia anedota sem<br />
graça. Completam o livro o idílio extremamente<br />
poético de "O norte", o amor de<br />
seres abandonados e embrutecidos na<br />
inóspita Sibéria, de 1918; e a áspera crítica<br />
à estupidez humana em "O xis", de<br />
1926.<br />
Avaliação: BOM<br />
(Abril, <strong>2018</strong>)<br />
Contos de assombro<br />
Seleção: Alcebiades Diniz<br />
Tradução: Vários<br />
São Paulo: Carambaia, <strong>2018</strong>, <strong>22</strong>0 páginas<br />
78
<strong>Chicos</strong><br />
Coletânea de 18 contos e um ensaio (do<br />
francês Guy de Maupassant) sobre o<br />
"assombro", um conceito bastante elástico,<br />
que o Organizador enfeixa como aquelas narrativas<br />
que "preservam seu efeito de estranheza".<br />
Assim, temos textos que poderíamos<br />
filiar à corrente "diabólica", ou seja, que buscam<br />
representar a figura do Diabo, o próprio,<br />
como o ótimo "Notícia de um homem desconhecido<br />
ou O diabo em Berlim", do alemão<br />
E.T.A. Hoffmann (1776-18<strong>22</strong>); "O pacto infernal<br />
- Pequeno romance", do francês Charles<br />
Nodier (1780-1844); "O diabo e Tom Walker",<br />
do norte-americano Washington Irving (1783<br />
-1859); "Janet, a troncha", do escocês Robert<br />
Louis Stevenson (1850-1894) e "A paz", do<br />
russo Leonid Andrêiev (1871-1919). Em outros,<br />
a presença do Mal é apenas sugerida,<br />
como em "O álbum do Cônego Alberico", do<br />
inglês M.R. James (1862-1936), e "O espelho<br />
negro", do argentino Leopoldo Lugones<br />
(1874-1938). Para mim, os melhores contos<br />
ainda são aqueles em que o fantástico, ou<br />
seja, o inexplicável no qual o cotidiano está<br />
mergulhado, se impõe, como no ótimo "O<br />
cachorro", do russo Ivan Turgueniév (1818-<br />
1883), na aquarela que é"A mulher no espelho<br />
- uma reflexão", da inglesa Virginia Woolf<br />
(1882-1941), ou na obra-prima, "O sopro", do<br />
italiano Luigi Pirandello (1867-1936). Embora,<br />
como disse, no conceito de "assombro" usado<br />
pelo Organizador caiba quase tudo, algumas<br />
narrativas afastam-se bastante da proposta,<br />
como é o caso da fábula moralizante<br />
"Uma jaula de animais ferozes", do francês<br />
Émile Zola (1840-1902); da contundente "Irmã<br />
Aparición", da espanhola Emilia Pardo Bazán<br />
(1851-1921); ou do espiritualista "A plenitude<br />
da vida", da norte-americana Edith Wharton<br />
(1862-1937). O Organizador gentilmente incluiu<br />
três autores brasileiros, mas o resultado<br />
é que são os três contos mais fracos do livro:<br />
"Pavor", de João do Rio (1881-1921), ainda é<br />
digerível, mas a página "O juramento", de<br />
Humberto de Campos (1886-1934), é risível,<br />
para além de totalmente inverossímil (sim, é<br />
necessário verossimilhança mesmo quando se<br />
trata de coisas fantásticas), e "O soldado Jacob",<br />
de Medeiros e Albuquerque (1867-<br />
1934) é um relato de psiquiatria forense (vista<br />
sob um ângulo exótico). E, neste caso, havia<br />
boas opções nacionais, como Machado de<br />
Assis ou Afonso Arinos, por exemplo. Resta<br />
perguntar ainda por que será que o Organizador<br />
optou por um texto atribuído a Edgar<br />
Allan Poe (1809-1949), "Um sonho", abrindo<br />
mão de usar um de seus magníficos, esses<br />
sim, contos de assombro. Por fim, "O arame<br />
farpado", do uruguaio Horácio Quiroga (1879<br />
-1937) é um conto forte, sim, mas que não<br />
tem nada de "assombro" - e Quiroga tem<br />
contos assombrosos, como o magnífico "A<br />
insolação" ou os terríveis "O travesseiro de<br />
plumas" e "A galinha degolada". Mas não se<br />
trata, evidentemente de uma crítica ou reparo,<br />
pois gosto não se discute. Essa antologia<br />
já pode ser colocada entre as referências de<br />
livros sobre o assunto.<br />
Avaliação: MUITO BOM<br />
(Maio, <strong>2018</strong>)<br />
79
<strong>Chicos</strong><br />
Emerson Teixeira<br />
Cardoso<br />
Nasceu em Cataguases MG, é autor de<br />
Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da<br />
Rua Alferes e outras crônicas (20<strong>06</strong>). Traduziu<br />
O retorno do nativo de Thomas Herdy.<br />
Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se<br />
em Estilete (1967), mimeografado,<br />
editor/fundador do Delirium Tremens (1983)<br />
e Trem Azul (1997).<br />
Um escritor católico<br />
“O amor é toda a vida da mulher<br />
ao passo que é apenas um momento<br />
na vida do homem”. Uma frase inteligente<br />
que mereceu de Alceu Amoroso Lima o<br />
adendo: A paixão do poder, ao contrário<br />
é toda a vida do homem e apenas um momento<br />
da vida da mulher.<br />
Este ente outros conceitos estão<br />
presentes no livro Idade, sexo e tempo publicado<br />
pela Agir, em 1938, a edição que<br />
tenho em mãos foi encontrada entre muitos<br />
volumes doados à Escola Estadual Isa<br />
Freitas durante uma gincana cultural realizada<br />
em prol de sua biblioteca.<br />
Trata-se de uma série de ensaios<br />
nas quais este autor católico, também crítico<br />
literário, escreveu e que consiste em<br />
valiosa contribuição ao estudo da psicologia<br />
humana. Podemos viver uma idade<br />
em outra idade? Sim podemos. Ou pelo<br />
menos é o que diz (e com muita pertinência)<br />
o autor e acrescenta: “Há homens que<br />
vivem fora do seu tempo, ou ainda contra<br />
o seu tempo, ou seja: há homens mais intemporais<br />
que outros; isto em relação a<br />
questão do tempo.<br />
No que se refere ao capítulo Sexo<br />
ele vai mais fundo, afirma que há homens<br />
que apresentam uma psicologia marcada<br />
pelo sexo, enquanto outros chegam a<br />
mostrar um comportamento neutro quanto<br />
ao aspecto psico-sexual.<br />
O mesmo discurso aparece em relação à<br />
Idade: “Encontra-se famílias que apresentam<br />
bem marcadas os traços da idade que<br />
possuem: crianças, crianças, moços que<br />
primam pela mocidade e também as vezes<br />
ocorre o contrário crianças sem nenhuma<br />
infância, velhos que escondem a idade.<br />
80
<strong>Chicos</strong><br />
Estes fenômenos da psicologia, afirma são<br />
tarefas que devem ser estudadas pela caracterologia,<br />
ramo da moderna, explica<br />
ele, psicologia.<br />
Quem quer que queira aprofundarse<br />
nos mistérios da psicologia sexual e<br />
mesmo que se preocupe com a própria<br />
idade e sua própria sexualidade pode encontrar<br />
nessa obra muita luz. É nela que<br />
se registra de maneira mais fiel a personalidade<br />
deste autor.<br />
O número de edições que acumula<br />
constitui prova inconteste de seu valor. O<br />
exemplar é da 9ª naquele ano de 1958.<br />
Poucas palavras que estão longe de<br />
dizer da beleza do livro e inteligência de<br />
Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataide,<br />
pseudônimo que adotou enquanto crítico<br />
literário. Relaciono abaixo alguns trechos<br />
que selecionei para que o leitor possa julgar<br />
por si mesmo caso não tenha ainda<br />
conhecimento desta obra prima do grande<br />
escritor.<br />
“ Deixamos a mocidade, não de uma<br />
vez, mas aos pedaços, hoje um pouco,<br />
amanhã outro bocado. E um belo dia<br />
quando nos olhamos por acaso no espelho<br />
com mais demora vemos com surpresa<br />
que um estranho de olhos mais tristes,<br />
cabelos mais brancos, rugas mais profundas,<br />
tomou pouco a pouco o lugar daquela<br />
face conhecida e lisa que nos habituáramos<br />
a sentir sem contemplar desde a infância.<br />
Do modo que soubermos suportar<br />
esse primeiro choque vai depender a sorte<br />
da segunda metade de nossa vida.”<br />
“Para amar é preciso, pois aproveitar<br />
o momento propício, a hora exata, o ponto<br />
supremo em que nossa alma é um feixe<br />
de flamas a cujo calor tudo vibra. E esse<br />
momento só a mocidade nos dá, por ser a<br />
idade do amor.”<br />
“É nos livros dos romancistas, mais do<br />
que no tratado dos psicólogos que vamos<br />
encontrar os tipos humanos mais flagrantemente<br />
reais. É num Balzac ou num Tolstoi,<br />
num Proust ou num Mauriac que encontramos<br />
os mais perfeitos estudos da<br />
alma.”<br />
“A criança mais se assemelha ao vegetal<br />
e ao animal do que o próprio adulto.”<br />
“só por analogia, é que se pode<br />
confrontar a inocência infantil com a das<br />
plantas, que se abrem puramente em flor<br />
ou com a dos animais que passeiam pelo<br />
mundo os seus sentidos, incapazes de ultrapassar<br />
os limites de sua natureza instintiva.”<br />
“ Aristóteles dizia que a mocidade termina<br />
aos 50 anos, o que os homens de 51 contestam.”<br />
81
<strong>Chicos</strong><br />
Antônio Jaime<br />
Soares<br />
Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />
Participou de um dos movimentos culturais<br />
mais ativo dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />
Depois de morar um longo tempo no Rio de<br />
Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.<br />
Retornou a Cataguases direto para<br />
a Vila.<br />
Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />
(crônicas - 2011)<br />
Memórias de Jorge Guglinski<br />
Em fins do ano passado, sem muita pompa, comemorou-se o centenário da Revolução Russa. A<br />
propósito, aí está um texto extraído das anotações de um filho da terra que cresceu naquele período<br />
de mudanças e contou como era viver lá.<br />
Duas telas de Guglinki, médico, músico, pintor, inventor e outras coisas mais<br />
Seu português, escrito, é sofrível, mas<br />
encarei. Interessado em política, usos e costumes,<br />
saltei muitas partes em que fala de<br />
amores não correspondidos, assunto para<br />
outra leitura. Trata-se do único russo que conheci,<br />
também sua segunda mulher e o primeiro<br />
filho. Dela, lembro que levava no colo<br />
menina agasalhadinha, feito uma matrioshka,<br />
aquelas bonecas de lá, que cabem umas dentro<br />
das outras. Disse ela que se identificaram<br />
com o Brasil, ao contrário de primos que foram<br />
para o Canadá. Entre as coisas nossas<br />
que não aprovaram, estão as escolas, muito<br />
aquém do padrão europeu. Há tempos, estive<br />
com aquele filho deles e dei-lhe boa-noite:<br />
“Dôbre vê tcha”, única expressão russa que<br />
sei, além de títulos de filmes.<br />
82
<strong>Chicos</strong><br />
Jorge nasceu em Orsk (1915), cidade situada<br />
na margem europeia do Ural, depois<br />
foram para Orenburgo, à beira do mesmo rio.<br />
Região “paradisíaca”, única saudade que ficou,<br />
disse ele. Filho de atores, o pai morreu<br />
cedo, casando-se a mãe com um colega de<br />
profissão, que lutou ao lado dos vitoriosos<br />
bolcheviques, sem filiar-se ao PC.<br />
“As minhas primeiras aulas de política<br />
e ateísmo, recebi no jardim de infância”,<br />
disse ele, acrescentando: “Sou agnóstico, não<br />
preciso de igreja, mas quando vejo a cidade<br />
sem templos sinto falta destes”. Muitos templos<br />
foram destruídos por Stalin, para transformar<br />
sinos em balas de canhão, aproveitando<br />
o resto em construções. Curiosidade: numa<br />
pescaria, Jorge e amigos não acharam lenha<br />
para assar os peixes e queimaram cruzes<br />
de madeira de um cemitério, agindo perfeitamente<br />
dentro da lei.<br />
Sobre teatro, do qual a família vivia,<br />
disse que “o russo, para assistir aos espetá<br />
culos (e para se encharcar de vodka, acrescento),<br />
gastava seus últimos rublos, mesmo<br />
em tempo de fome, doenças e outras desgraças”.<br />
O que não garantia boa vida aos artistas,<br />
sobretudo naquela fase de coletivização,<br />
em que todos perderam seus bens. A família<br />
de Jorge (cinco pessoas) morava num só<br />
quarto, com um fogão no meio, servindo tam<br />
bém como aquecedor. Em outro endereço<br />
havia dois quartos, o primeiro alugado a um<br />
casal, o “quarto de passagem”, guarda-roupa<br />
servindo como divisória. Privacidade zero. Xixi<br />
e cocô em penicos, cujo conteúdo era atirado<br />
numa fossa esvaziada uma vez por semana.<br />
Ou numa latrina coletiva, do lado de fora, que<br />
congelava. Havia casas de banhos públicos,<br />
que frequentavam quando o dinheiro permitia.<br />
“Nos dias quentes, de dois a cinco<br />
graus abaixo de zero”, a molecada brincava<br />
de mijo à distância, que deixa marca na neve,<br />
e peidos - ganhava aquele que soltasse o<br />
mais alto e prolongado. No período 1921/23,<br />
a fome levou até ao canibalismo, daí, talvez, a<br />
balela de que comunistas comiam criancinhas.<br />
Para superar a crise, foi criada a NEP, política<br />
econômica que representava um recuo tático,<br />
restabelecendo a livre iniciativa e a pequena<br />
propriedade, aceitando financiamentos estrangeiros.<br />
Lênin assim a definiu: "Um passo<br />
atrás para dar dois à frente".<br />
O irmão mais velho de Jorge estudava<br />
física em Leningrado, cidade de clima<br />
tenebroso, chamada de “aquele brejo”, e morreu<br />
de pneumonia. A mãe cismou de se mudarem<br />
para lá, poder cuidar do túmulo do ente<br />
querido. Moraram num quarto dentro do<br />
que fora o palácio de um duque fuzilado pela<br />
Revolução. O repertório teatral da companhia<br />
familiar incluía os clássicos de todas as<br />
épocas, coisa bem profissional, mas a concorrência<br />
era grande e não se deram bem, voltando<br />
às origens. Em Leningrado, o menino<br />
Jorge conheceu montanha-russa, chamada<br />
pelos russos de montanha-americana.<br />
Os brechós vendiam de um tudo,<br />
até grampo de cabelo deixado pela avó que<br />
morreu. Roupas, quando desbotavam, eram<br />
viradas pelo avesso, depois remendadas. Para<br />
se ter uma ideia, professoras primárias ganhavam<br />
30 rublos por mês, o preço de um vestido<br />
razoável. Comia-se pouco e mal, mas a fome<br />
aguda passou e foram tocando, até que<br />
Stalin assumiu e, para começar, extinguiu a<br />
NEP, refechando o país ao capital estrangeiro.<br />
Lênin era culto e atuava em equipe,<br />
cercado de gente tão ou mais capacitada; Stalin,<br />
um brutamonte que decidia tudo sozinho,<br />
pondo a culpa nos seus paus-mandados, se a<br />
coisa não dava certo. E eliminava os<br />
“culpados” ou relegava à morte lenta, na Sibéria.<br />
Daí Jorge ter concluído que os atos institucionais<br />
da ditadura militar brasileira eram<br />
“café pequeno”, perto da brutalidade stalinista.<br />
83
<strong>Chicos</strong><br />
E Stalin criou um empréstimo compulsório,<br />
um salário por ano de cada trabalhador<br />
maltrapilho, para devolver em dez anos. Ressuscitou<br />
o passaporte interno, obrigatório no<br />
tempo da monarquia, proibiu Chopin, prostituição,<br />
homossexualismo, batom, baile, beijo<br />
em público, lâmpadas acima de 50 watts etc.<br />
Comida tabelada e racionada, cozida com sebo<br />
de boi, ainda assim, mais fácil comprar de<br />
atravessadores, pagando até dez vezes mais.<br />
Com isso, lá se foram os anéis, a prata da casa<br />
e outras joias, e a fome voltou. De novo, canibalesca.<br />
Fome premeditada por Stalin, para<br />
obrigar o pessoal a aderir à coletivização e se<br />
filiar ao partido, com o retrato dele em todas<br />
as casas.<br />
Mais difícil foi arregimentar os russos<br />
asiáticos e muitas etnias minoritárias, inclu<br />
sive húngaros cruzados com finlandeses, e<br />
outros, até de língua árabe, que viviam há milênios<br />
de caça e pesca, feito índios, subitamente<br />
obrigados a trabalhar na construção<br />
de ferrovias ou lavouras de algodão. Por um<br />
tempo, Jorge viajou por aquelas bandas, inclusive<br />
de camelo, distribuindo panfletos e<br />
passando filmes de propaganda do governo,<br />
que pouco ou nada agradavam. Muitos desertaram,<br />
indo pedir esmolas nas cidades, onde<br />
chegavam a engatinhar, sem forças para<br />
ficar de pé, comendo restos que lhes atiravam<br />
ou achavam nas sarjetas. A população de gatos,<br />
cachorros, pombos, pardais, ratos e preás<br />
desapareceu dentro dos estômagos humanos<br />
famintos.<br />
Enquanto isso, os famosos expurgos,<br />
mão de ferro, censura sem limite, suicídios<br />
de Iessienin, Maiakóvski e tantos outros.<br />
Por aquela época, início dos anos 30, André<br />
Gide esteve lá e denunciou a propaganda enganosa,<br />
nos jornais europeus. “Vendido ao<br />
capitalismo”, sentenciou Stalin sobre a atitude<br />
gideana (a mesma da brasileira Pagu, que<br />
rompeu com o PC, continuando marxista). O<br />
“Ocidente escravagista” agonizava, enquanto<br />
a Rússia despontava como “a nação mais livre<br />
e progressista do universo, onde tudo era<br />
melhor, mais perfeito, mais justo, mais humano<br />
e invencível”. Alguns simpatizantes que<br />
conheci nos anos 60, em Cataguases, também<br />
pensavam assim.<br />
Na verdade, um desempregado<br />
americano, no tempo da depressão, ganhava<br />
mais que um engenheiro soviético. Jorge observou<br />
que “o mal que Stalin fez à Rússia sobre-pujou<br />
os feitos positivos”, como a contribuição<br />
fundamental para a derrota dos alemães<br />
(exército modernizado por Trotsky, mas<br />
isso a plebe não precisava saber) e criar uma<br />
superpotência, à custa da liberdade e do sacrifício<br />
do povo. Superpotência que apodreceu<br />
por dentro e esfacelou-se. Alguma coisa<br />
estava fora da nova ordem mundial.<br />
A propósito de Adolf Hitler, os jornais<br />
falavam de “um psicopata austríaco que<br />
surgiu na Alemanha e jamais chegaria ao poder,<br />
impedido pela consciência de classe do<br />
operariado”. No entender de Jorge, o que o<br />
diferenciava de Stalin era a ideologia, os métodos<br />
sendo os mesmos. Da Wikipedia: “Estima-se<br />
que entre 20 e 60 milhões de pessoas<br />
tenham morrido durante os trinta anos<br />
do governo de Stalin”. Ele mandava matar os<br />
descontentes e também os suspeitos, por<br />
precaução.<br />
A estratégia de vencer a resistência<br />
do povo pela fome funcionou e em troca os<br />
armazéns do governo passaram a oferecer<br />
melhores produtos, pão de trigo e não mais<br />
de centeio, barato, mas de gosto ruim, óleo<br />
de girassol e cânhamo, em vez de sebo. E o<br />
pão é o “arroz com feijão” do povo russo, comido<br />
com salgados, doces, até frutas. Para<br />
comprar, entretanto, uma hora na fila era<br />
pouco. Outro chamariz para converter campo<br />
neses em operários foi cobrar deles menos<br />
impostos, sem risco de confisco ou prisões. E<br />
o país se industrializou, meio “nas coxas”, tipo<br />
aviões sem cinto de segurança , como es-<br />
84
<strong>Chicos</strong><br />
-tranhou Francisco Inácio Peixoto, que foi lá<br />
na era pós-Stalin.<br />
Jorge estudou em vários lugares,<br />
trabalhava em outros tantos, a curiosidade<br />
juvenil de apreender tudo, mecânica, violino,<br />
pistom, pintura, teatro, fabricar rádio, máquina<br />
fotográfica, foguete, até pilotar aviões, auxiliado<br />
em muitos casos pela revista “Sei tudo”,<br />
algo como o manual do escoteiro-mirim,<br />
dos sobrinhos do pato Donald. Stalin investiu<br />
em salas de cinema, para fazer propaganda<br />
de seus feitos e defeitos, e Jorge foi também<br />
projecionista. E boêmio, numa fase em que<br />
roubava-se tudo, bandidos armados de faca,<br />
além do dedurismo, que levou ao sumiço de<br />
muita gente boa. Jorge também roubava frutas,<br />
carvão, até um galo, e andava em vagões<br />
de carga, para não pagar.<br />
Quando chegou a hora, ele foi fazer faculdade<br />
em Leningrado, morando na Casa do<br />
Estudante. Não se adaptou ao curso de engenheiro<br />
agrícola, nem seus pulmões, ao clima<br />
que havia matado seu irmão. A já então velha<br />
guarda da revolução não concordava com os<br />
atos violentos de Stalin e este mandou matar<br />
um deles, Kirov, o manda-chuva de Leningrado.<br />
As escolas fecharam, música fúnebre no<br />
rádio, lamentos mil pelo criminoso atentado<br />
cometido pelos “inimigos” contra um dos<br />
mais íntegros líderes etc. etc. Tudo forçação<br />
de barra. Isso foi o começo do grande expurgo,<br />
em que todos os mortos e desaparecidos<br />
viravam não pessoas, sumindo do rádio, jornais<br />
e livros.<br />
Jorge reviu Moscou e parentes: três<br />
casais, filho mais novo e tia mais velha amontoados<br />
num cômodo de 9 x 8 metros,<br />
“cozinha” atrás do guarda-roupa (e havia dois<br />
engenheiros na família). Ele gostava de Moscou,<br />
cidade muito limpa, a poder de multas,<br />
mas decadente, àquela altura, todos os esforços<br />
do governo canalizados para a construção<br />
daquele metrô rococó, como que ressuscitando<br />
o tempo dos tzares.<br />
Trechos do metrô de Moscou, construído por presos políticos sob vigilância cerrada<br />
Entanto, a Rússia possuía um dos maiores<br />
contingentes de artistas de ponta, no início<br />
do século vinte. Em todos os níveis: pintura,<br />
cinema, teatro, letras, música e muito<br />
mais. A Alemanha, idem, e ambas foram sufocadas<br />
por violentas ditaduras, calando, matando,<br />
exilando ou suicidando seus cérebros<br />
privilegiados, ainda hoje sem substitutos à<br />
altura. “Arte degenerada”, dizia Stalin, mantendo<br />
o controle estético-ideológico através<br />
das garras de Jdanov, o todo poderoso comandante<br />
da cultura. Famosos como<br />
Shostakovitch e Eisenstein penaram por<br />
culpa dele, mas outros artistas menos conheci<br />
dos, sem o apoio da opinião pública, sofreram<br />
ainda maior perseguição.<br />
“1936 foi rico em ondas de processos forjados<br />
contra ‘os inimigos do povo’. A carnificina,<br />
dentro da própria liderança do partido,<br />
85
<strong>Chicos</strong><br />
Motivo: a coletivização não correspondia à<br />
expectativa, ainda que aumentassem as adesões<br />
ao PC, por conta do abrandamento, não<br />
o fim, da fome. E promoveu a radiodifusão<br />
em grande escala, com potentes receptores<br />
centrais que distribuíam a programação por<br />
linhas, como as linhas telefônicas, não só nas<br />
casas, também nas ruas e praças”, disse Jorge.<br />
Ou seja, todos ligados na mesma emoção:<br />
Stalin. E se alguém desligava o rádio enquanto<br />
o chefe falava, era dedurado pelo vizinho.<br />
Também em 1936 o chefe promulgou uma<br />
nova constituição em que ele próprio comandava<br />
os três poderes, com eleições diretas,<br />
voto secreto, não obstante, um candidato único<br />
para cada vaga.<br />
E Jorge foi estudar medicina, em<br />
Gorki (este, assassinado por médicos a mando<br />
de Stálin e homenageado, dando nome<br />
àquela cidade e a um parque em Moscou.<br />
Gorki, a propósito, em sua cidade tinha fama<br />
de ladrão de galinhas). Cada setor da faculdade,<br />
assim como de todas as organizações<br />
com mais de um empregado, tinha um<br />
espião e membros do partido não repetiam<br />
ano, mesmo com notas baixas, para não dar<br />
mau exemplo. Além dos clássicos, não só russos,<br />
liam Darwin, Marx, Engels, Lênin e os pronunciamentos<br />
“históricos” de Stalin. Também<br />
os pré-marxistas Kant, Hegel, Feuerbach, Furrier,<br />
Rousseau e Proudhon, destes, os trechos<br />
de interesse do partido.<br />
Perdeu a virgindade aos 16 anos,<br />
não a timidez, e muito sofreu com as mulheres,<br />
aproximando-se delas em geral sob o<br />
efeito da vodka. Resumindo: foi assaltado por<br />
uma, desvirginou outra, engravidou outra, pegou<br />
gonorreia com outra e por fim se casou<br />
com Lussia (sic), antes de se formarem. Ela<br />
tirou licenciatura média, dando aulas, na cidade<br />
onde moravam seus pais, que dependiam<br />
de seu salário, bem distante de Gorki, e só via<br />
Jorge de tempos em tempos. Perto da licenciatura<br />
plena, ele foi morar lá, estagiando no<br />
hospital local. Não deu, por causa da sogra,<br />
que nem o marido suportava. Então, mudaram-se<br />
para uma cidade mais perto de Gorki,<br />
criando uma filha, com a babá dormindo no<br />
mesmo quarto. De qualquer forma, ele não<br />
resistia a um rabo de saia e aquele casamento<br />
não deu certo. Jorge se confessava<br />
machista, acreditando que o homem foi feito<br />
para perpetuar a espécie, a mulher, para perpetuar<br />
a família.<br />
Numa volta a Moscou, sentiu a atmosfera<br />
pesada, devido aos expurgos, o Teatro<br />
Meyerhold fechado e outros sufocos (em<br />
breve o próprio Meyerhold seria também fechado,<br />
num caixão). E começou a faltar também<br />
bebida. Sem vodka, bebia-se álcool. E<br />
teve início a Segunda Guerra Mundial. Hitler,<br />
agora aliado de Stalin, passou a ser respeitado.<br />
E Stalin invadiu a Finlândia, que resistiu<br />
bravamente. Numa conversa com seu cunhado,<br />
Jorge torceu pelos finlandeses, ouvindo<br />
esta resposta: “Você pensa muito, é melhor<br />
ler os jornais e só dizer o que eles dizem”.<br />
Jorge, contudo, não se conformava. E<br />
não gostava do cunhado, assim como dos filhos<br />
dele. E um dos capetinhas chegou ao<br />
ponto de botar fogo no jornal que Jorge estava<br />
lendo, no sofá comprado em brechó.<br />
Em 1940, formou-se médico, trabalhando<br />
heroicamente em hospitais onde faltava<br />
até pano e papel de receita. Narrou inúmeros<br />
casos clínicos e vou comentar só dois.<br />
Numa noite de plantão, chegou um sujeito<br />
que fora quase esmagado por um caminhão.<br />
Os novatos não sabiam por onde começar e<br />
acordaram o médico mais experiente. Este pediu<br />
um copo e mandou o paciente urinar.<br />
Saiu muito sangue, daí o tratamento ter começado<br />
pelos rins. E uma gestante caucasiana,<br />
num momento em que ficou sozinha no<br />
quarto, pôs-se de cócoras e pariu, dispensando<br />
todo o aparato médico. Índias também<br />
fazem assim, o que o médico Dráuzio Varela<br />
considera correto.<br />
86
<strong>Chicos</strong><br />
Com o início da II Guerra Mundial, Jorge<br />
alistou-se como voluntário, tornando-se<br />
prisioneiro dos alemães. Ao final do conflito,<br />
conheceu a segunda esposa, Maria, com<br />
quem teve o filho Alexander, apelidado Sacha,<br />
ainda na Alemanha. Em 1949, junto<br />
com outros refugiados de guerra, mudou-se<br />
para o Brasil, instalando-se em Goiânia, onde<br />
teve seu filho Wladimir. Morou em Jataí,<br />
também em Goiás até 1958. Posteriormente,<br />
Cataguases, onde teve a filha Helena, em<br />
1961.<br />
A morte de Stalin<br />
Consta que Stalin nunca superou<br />
o choque pelo suicídio de sua segunda mulher.<br />
Tinha culpa ele? A seguir, dados resumidos<br />
sobre sua morte (do Google).<br />
Na manhã de 1 de março de<br />
19<strong>53</strong>, depois de um jantar que durou a noite<br />
toda e ter visto um filme, Stalin chegou à<br />
sua casa em Kuntsevo, a 15 km a oeste do<br />
centro de Moscou, com Beria, Malenkov,<br />
Bulganin e Khrushchev, retirando-se para<br />
dormir. Embora seus guardas estranhassem<br />
que ele não se levantasse à hora usual, tinham<br />
ordens estritas para não o perturbar e<br />
deixaram-no sozinho o dia inteiro. Cerca<br />
das <strong>22</strong> horas Lozgachev, o comandante de<br />
Kuntsevo, entrou no quarto e viu Stalin caído<br />
de costas no chão perto da cama, de<br />
pijama, e ensopado em urina. Assustado,<br />
perguntou ao chefe o que aconteceu, mas<br />
só obteve respostas ininteligíveis. Lozgachev<br />
usou o telefone do quarto para pedir<br />
que mandassem médicos imediatamente,<br />
que só chegaram no início da manhã, mudando<br />
as roupas da cama e deitando-o. O<br />
acamado e aclamado líder morreu quatro<br />
dias depois, em 5 de março, de hemorragia<br />
cerebral (derrame), em circunstâncias ainda<br />
hoje pouco esclarecidas, com 74 anos de<br />
idade, sendo embalsamado a 9 de março.<br />
Avtorkhanov desenvolveu uma detalhada<br />
teoria, publicada inicialmente em 1976,<br />
apontando Beria como o principal suspeito<br />
de tê-lo envenenado<br />
Epílogo<br />
O Grande Expurgo foi denunciado<br />
pelo sucessor Nikita Khrushchev três anos<br />
após a morte de Stalin, no famoso XX Congresso<br />
do Partido Comunista da União Soviética<br />
em fevereiro de 1956. Vieram à tona<br />
todos os podres do ditador, “o que resultou<br />
em prejuízo enorme para o país”. No<br />
mesmo discurso, ele revelou que muitas<br />
das vítimas eram inocentes e foram condenadas<br />
com base em falsas confissões extraídas<br />
mediante tortura. E Stalin virou uma<br />
não pessoa, excluído de todas as publicações,<br />
como todos os que apagou, sendo<br />
Trotsky a mais célebre vítima.<br />
Também li há pouco uma biografia<br />
dele e pensava que fosse menos ingênuo.<br />
Razão: morava numa “fortaleza”, no<br />
México, mas não mandava dar busca nos<br />
estranhos que o visitavam e disso se aproveitou<br />
Ramon Mercader, stalinista despistado,<br />
despistando uma marretinha quebragelo<br />
debaixo da capa de chuva, com a qual<br />
arrebentou a cabeça do anfitrião. A propósito,<br />
no filme de Joseph Losey, não sei por<br />
que motivo, a marretinha era peça de decoração<br />
na parede, em cima da lareira. Por essas<br />
e outras infidelidades, Paulo Francis chamou<br />
aquele filme de “O segundo assassinato<br />
de Trotsky”.<br />
87
<strong>Chicos</strong><br />
Conclusão<br />
Falei em índios e sabe-se que, entre<br />
eles, onde come um, comem todos. O mes<br />
mo entre esquimós, estes (surpresa) considerados<br />
o povo mais feliz do mundo. O homem<br />
dito civilizado, porém, já nos primórdios da<br />
civilização, se sobrava um pouco da colheita<br />
(excedentes de produção, em economês), punha<br />
num barco e ia trocar por outros produtos,<br />
em outras aldeias, mais tarde, trocando<br />
por moedas. E assim nasceu o capitalismo, ali<br />
pelas margens dos rios Tigre e Eufrates. Reverter<br />
esse quadro, sonho de Karl Marx e de<br />
muita gente sensata, não é moleza, tanto que<br />
todas as experiências resultaram em ditaduras.<br />
E como no Brasil tudo acaba em piada,<br />
cito Dercy Gonçalves: “Vivi mais de cem anos<br />
e já vi tudo, menos país comunista dar certo”.<br />
Antes, no tempo da virada, perguntada o que<br />
estava achando daquelas mudanças, respondeu:<br />
“Acho muito bom, já tô até preparando a<br />
minha Perestroika”.<br />
88
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Cagiano<br />
Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,<br />
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio<br />
Brasília de Produção Literária 2001), O<br />
sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio<br />
Portugal Telecom 2012) e Eles não moram<br />
mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive<br />
atualmente em Portugal.<br />
Uma poética do confronto<br />
Ano passado, em sua passagem por Portugal,<br />
onde esteve como convidado do Folio –<br />
Festival Internacional de Literatura de Óbidos,<br />
o escritor, professor da UFSCar e tradutor Wilson<br />
Alves-Bezerra dividiu uma mesa com a<br />
editora Raquel Menezes, da Ed. Oficina Raquel,<br />
do Rio, discutindo o papel das pequenas<br />
editoras dentro do panorama oligopolizado<br />
do mercado editorial brasileiro.<br />
A editora apresentava ao público português<br />
os livros de três escritores brasileiros,<br />
chancelados com o selo de sua nova casa em<br />
Lisboa, a Oca Editorial. Além de “Exílio aos<br />
olhos – Exílio às Línguas”, de Wilson, foram<br />
lançados na livraria Ler Devagar as coletâneas<br />
“Sombras dançam neste incêndio”, de Roberto<br />
Piva; “Busca das gemas nos destroços”, de<br />
A f o n s o H e n r i q u e s N e t o ; e<br />
“Transbordamentos”, de Guilherme Zarvos.<br />
Além desses autores que marcam essa travessia<br />
atlântica como pontas de lança da coleção<br />
“Antologia de Poesia”, a bordo dessa iniciativa<br />
comporão o catálogo os escritores de origem<br />
indígena Ailton Krenak, Kaká Werá e Sônia<br />
Guajajara.<br />
“Exílio aos olhos - Exílio às Línguas”<br />
consiste numa obra que externa o olhar agudo<br />
de um poeta que realiza profundas incisões<br />
- num texto visceral, reflexivo e crítico -<br />
no atual momento da vida brasileira. O livro<br />
traz excertos de outra obra, “O pau do Brasil”,<br />
que acaba de ter sua 4ª edição recém-lançada<br />
no Brasil, com selo da caprichosa editora paulista<br />
Urutau, edição que retoma, com textos<br />
adicionais, a temática de confronto proposta<br />
pelo autor, que não doura a pílula nem deixa<br />
pedra sobre pedra ao fazer, à moda de Oswald<br />
Andrade ou Gregório de Mattos, um retrato<br />
necessariamente sarcástico e iconoclasta<br />
da vida brasileira, um punhal semântico e<br />
uma chicotada metafórica em nossas mazelas.<br />
89
Assimila fragmentos de um imaginário público<br />
e privado, em que contribuem<br />
as perspectivas literária, política,<br />
jurídica e administrativa nos<br />
capítulos que seccionam o livro<br />
numa proposta de leituradesacato,<br />
num petardo estético<br />
e ético. Em sua estrutura, que<br />
nos lembra uma ata ou memorando,<br />
o autor cataloga nossos<br />
desencantos e inventaria, num<br />
rol de desagravos, o espólio do<br />
que restou desses 518 anos de<br />
história, sobretudo sob o prisma<br />
da espoliação e do engodo, que<br />
nesses tempos que correm alcançam<br />
seu apogeu, tal o virtuose<br />
de seus maestros, regentes de uma orquestra<br />
desafinada e histriônica.<br />
O poeta se lança a um exercício hermenêutico<br />
da realidade político-socialjudiciária-moral<br />
e humana de um Brasil despedaçado,<br />
em que todos são condôminos<br />
desse período conturbado em que a nação<br />
vive encurralada num beco sem saídas. Diante<br />
de um país travestido numa babel de vozes<br />
dissonantes, na encruzilhada de um destino<br />
que não oferece outra alternativa senão a<br />
tentativa desesperada de fugir ao caos e renascer,<br />
como Fênix, dos escombros de que<br />
somos vítimas, esse livro é uma insurgência e<br />
também um farol.<br />
Obra que faz uma leitura de nossos desconforto,<br />
desmonte ético-político e apequenamento<br />
das instituições, que nos deixam como<br />
herança um rastro de destruição física e<br />
moral, “O pau do Brasil”, nas sucessivas reedições,<br />
vem sofrendo várias releituras, recomposições,<br />
ajustes e adendos textuais e contextuais,<br />
como se fosse um livro-rio, que vai<br />
abarcando no seu leito crítico todas as demandas<br />
e enxurradas dessas tempestades que<br />
nos assolam e aviltam.<br />
Nesse processo em que o olhar do artista<br />
apreende novos sustos e assombros, o<br />
<strong>Chicos</strong><br />
livro vai ganhando mais substância questionadora<br />
e apresentando argumentos<br />
que o transformam num<br />
denso inquérito, num mapeamento<br />
de perdas e danos, em<br />
que a palavra se interpõe como<br />
afronta ao desencanto e ao passivo<br />
a que temos sido submetidos<br />
nesses últimos anos de uma<br />
das nossas mais vergonhosas e<br />
esfoliantes crises.<br />
Na esteira desse território<br />
expandido de incertezas, a<br />
visão crítica e o espírito de inquietação<br />
e intervenção de Wilson<br />
Alves-Bezerra vão carreando<br />
mais húmus, provocados pelos<br />
destroços da realidade, material resultante da<br />
decomposição moral que serve para adubar a<br />
resistência e o desejo de enfrentamento dessa<br />
engenharia nefasta gerada no caldeirão de<br />
contrastes, paradoxos e dilemas. E o livro,<br />
caudatário dessa instabilidade, se enxerta de<br />
uma fúria e ao mesmo tempo de um libelo<br />
contra tudo que aí está.<br />
“O pau do Brasil” atualiza e ratifica o já<br />
dito e interdito em “Exílio aos Olhos – Exílio às<br />
Línguas”, essa escritura-lâmina, emulando suas<br />
incisões na epiderme de um país e na alma<br />
de um povo, fragilizados pela mesma metástase.<br />
Por trás da atitude estética e dos recursos<br />
retóricos e estilísticos do autor, há a dimensão<br />
ética de um artista que busca exorcizar<br />
a esquizofrenia em que lançaram o Brasil e<br />
que só um livro radical e crucialmente poético<br />
como esse foi capaz de alcançar e nos atingir.<br />
Pela sua alta voltagem, pela sua potência devastadora,<br />
pela poderosa gênese de sua luta a<br />
(r)mada com uma palavra que anuncia e repudia<br />
o desastre anunciado e da crise existencial<br />
de um país fraturado, eis um corajoso mergulho<br />
no coração do inferno e uma arrojada viagem<br />
ao redemoinho do pesadelo de uma História<br />
sitiada.<br />
90
<strong>Chicos</strong><br />
Gabriel Franco<br />
Nascido em Cataguases, mora atualmente<br />
em Juiz de Fora. Jornalista e assessor de comunicação.<br />
O que é real na internet?<br />
Um guia rápido de sobrevivência na era da pós-verdade<br />
Queime tudo e cancele seu pacote de dados.<br />
Quando eu lia qualquer notícia em<br />
um blog ou nas redes sociais, eu começava e<br />
terminava com um suspiro. Não era raro eu<br />
largar um texto logo no primeiro ou segundo<br />
parágrafo por duvidar da veracidade das informações<br />
e não querer perder meu tempo.<br />
Eu desenvolvi esse costume após cansar<br />
de me irritar com a quantidade de informações<br />
erradas que encontrava ao longo do dia,<br />
e onde a imensa maioria não tinha nenhuma<br />
fonte ou era desmentida logo no primeiro resultado<br />
de uma busca no Google. Então achei<br />
melhor usar meu tempo para coisas mais produtivas<br />
e pular as besteiras.<br />
Em um mês eu já não lia quase nada, totalmente<br />
por fora do mundo ao meu redor.<br />
A segunda maior fonte de informações da população<br />
é a internet, logo atrás da TV. Hoje, a<br />
internet, é a minha maior fonte; comprar o<br />
jornal todos os dias pela manhã para saber o<br />
que aconteceu no dia anterior é impensável<br />
para uma geração que acha que pode saber<br />
de tudo com apenas dois cliques no celular.<br />
Desta forma fui obrigado a rever minha política<br />
radical de ignorar tudo e começar a separar<br />
o que é sério do que é bobagem.<br />
Muita coisa que eu vou dizer aqui foi retirada<br />
das pesquisas feitas pela First Draft, um<br />
projeto da Universidade de Harvard com o<br />
objetivo de usar pesquisas para combater a<br />
desinformação online. De acordo com a organização,<br />
existem três pontos que devem ser<br />
observados antes mesmo de consideramos o<br />
conteúdo da matéria ou post.<br />
91
<strong>Chicos</strong><br />
1. O tipo de conteúdo<br />
É muito mais difícil inventar informações<br />
sem se enrolar em um artigo do que em um<br />
textão de Facebook. Muitas páginas nas redes<br />
sociais usam uma imagem qualquer retirada<br />
da internet e criam um factoide em cima dela.<br />
Antes de ser desmentida, a “matéria” publicada já tinha<br />
961.300 engajamentos no Facebook.<br />
O mundo não é preto no branco. As coisas<br />
precisam de contexto, de explicação, de fontes<br />
seguras e transparentes. Imagens são elementos<br />
poderosos que possuem muito mais<br />
apelo que palavras, mas também são facilmente<br />
manipuláveis.<br />
Um post verdadeiro sempre vai ser confirmado<br />
por diversas outras fontes, que devem relatar<br />
o mesmo. Na internet, as fontes são pessoas<br />
reais, que estão ali para nos confirmar<br />
seu testemunho. Se não há ninguém para dar<br />
credibilidade, fuja.<br />
2. As motivações do criador do conteúdo<br />
Eu fui assessor de imprensa de um governo<br />
por cinco anos, e uma das coisas que<br />
aprendi em meu breve tempo na área é que<br />
existe uma regrinha de ouro para a administração<br />
pública. Essa regra é seguida a risca<br />
por todos os políticos que conheci:<br />
Nunca admita o erro, nunca concorde com a<br />
oposição.<br />
Pode parecer hediondo (e é, em grande parte),<br />
mas é uma tática de sobrevivência que<br />
aqueles que querem ter uma longa carreira<br />
política desenvolvem. Você não precisa ser<br />
radical nas suas colocações, mas precisa sempre<br />
ter uma solução melhor que a sua oposição,<br />
e uma certeza inabalável do que é o certo<br />
a fazer.<br />
Eleitores não reagem bem a candidatos que<br />
não tem respostas para tudo. Junte isso à importância<br />
de manter uma mensagem clara ao<br />
seu público e temos um grande festival do<br />
curto e grosso. Por mais idiota que essas repostas<br />
sejam, do ponto de vista da relação<br />
eleito e eleitor, elas ainda são melhores que<br />
um “não sei” ou um “depende”. Para a maioria,<br />
a liderança está fortemente associada à<br />
confiança, e a confiança é frequentemente<br />
confundida com arbitrariedade.<br />
Um político que concorda com seus adversários<br />
em diversos pontos será massacrado pelos<br />
mesmos. Pois os dois sendo iguais, aquele<br />
Eles não se odeiam nem nada, é só “parte do trabalho”.<br />
que vê razão na fala do adversário perde a<br />
iniciativa. Mas o que isso tudo tem a ver com<br />
as motivações do criador de um conteúdo?<br />
Tem tudo a ver. Uma página que segue alguma<br />
agenda política, qualquer que ela seja,<br />
sempre vai expor os fatos que reforcem essa<br />
agenda. É a regra da sobrevivência política<br />
sendo aplicada na prática: se uma pauta não<br />
fortalece minha ideologia, não perca tempo<br />
com ela. Mesmo assim, é completamente<br />
possível fazer esse trabalho de maneira ética,<br />
sem falsas informações e sem manipulação.<br />
92
O problema aparece quando essa agenda política<br />
é bizarra, muitas vezes ferindo a Constituição<br />
Federal e os direitos da população. Fica<br />
difícil usar boas fontes e notícias verdadeiras<br />
para defender alguns posicionamentos, sendo<br />
necessário que o conteudista faça distorções<br />
e use do apelo às emoções do leitor para provar<br />
seu ponto. Isso é, literalmente, fake news.<br />
É, literalmente, o significado de pós-verdade.<br />
Sabendo disso, fica claro que se uma pessoa<br />
precisa usar informações inverídicas e descontextualizadas<br />
para fazer valer seu posicionamento,<br />
é porque seus argumentos não se<br />
sustentam diante dos fatos.<br />
3. Como esse conteúdo é disseminado<br />
As redes sociais, de que gostamos tanto, criaram<br />
uma verdadeira máquina de campanhas<br />
de desinformações sistemáticas. Como Claire<br />
Warden disse em seu artigo, as tentativas anteriores<br />
de influenciar a opinião pública basearam-se<br />
em tecnologias de transmissão “umpara-muitos”.<br />
As redes sociais não funcionam<br />
assim. Elas permitem que “células” de propaganda<br />
sejam direcionadas diretamente a usuários<br />
que têm maior probabilidade de aceitar<br />
e compartilhar uma mensagem específica.<br />
Aliada às manchetes sensacionalistas, a bomba<br />
é lançada. De acordo com um estudo feito<br />
pelo MIT, notícias falsas atingem entre 1,5 mil<br />
a 100 mil pessoas através de compartilhamentos,<br />
enquanto notícias verdadeiras costumam<br />
parar em 1 mil. As notícias falsas também<br />
se espalham seis vezes mais rápido que<br />
as corretas.<br />
Vai com calma nesse botão aí.<br />
Uma vez que eles compartilham inadvertidamente<br />
um artigo, uma imagem, um vídeo ou<br />
até um meme enganoso ou fabricado, a próxima<br />
pessoa que o visualizar em seu feed tem<br />
93<br />
<strong>Chicos</strong><br />
boa chance de confiar na veracidade do post<br />
original e passa a compartilhá-lo. Essas<br />
“células”, em seguida, multiplicam-se através do<br />
ecossistema de informações em alta velocidade,<br />
alimentados por redes de usuário-usuário que<br />
acreditamos ser confiáveis.<br />
Portanto, sempre desconfie daquele viral que<br />
seu colega de trabalho compartilhou no almoço.<br />
Não existe um número de curtidas ou compartilhamentos<br />
que torna uma mentira em verdade.<br />
Pela primeira vez, temos a oportunidade<br />
real de democratizar a informação<br />
A internet está permitindo que a relação básica<br />
da comunicação emissor/mensagem/<br />
receptor vire de cabeça para baixo. Nós não<br />
dependemos mais de canais de TV nem de<br />
grandes jornais para saber o que acontece no<br />
mundo, e não somos obrigados a consumir a<br />
informação de grupos de interesse políticos e<br />
financeiros. Mas é exatamente o que estamos<br />
fazendo.<br />
O algoritmo do Facebook, que faz com que<br />
vejamos apenas conteúdo pago com o qual<br />
estejamos inclinados a gostar, é muito mais<br />
tóxico para a saúde da liberdade de informação<br />
do que o jornal das oito. Os grupos de<br />
interesse rapidamente se apoderaram da mídia<br />
digital, com milhares de blogs espalhados<br />
pela rede, acordos com parceiros e influencers,<br />
e muita grana investida em posts patrocinados.<br />
E agora?<br />
Não sei. É esperar para ver. Depois do escândalo<br />
da Cambridge Analytica, o Facebook não<br />
vai poder se manter como está. A empresa já<br />
fechou parcerias com agências que vão avaliar<br />
a veracidade de conteúdos denunciados na<br />
rede, e cortar seu alcance. Só vamos ver os<br />
resultados depois das eleições desse ano, a<br />
primeira prova de fogo do Facebook no Brasil<br />
desde então.
<strong>Chicos</strong><br />
Clips<br />
Carlos Torres Moura<br />
Rendemos nossas homenagens a Carlos Torres<br />
Moura, que recentemente completou 70<br />
anos. Bem-humorado, irrequieto, ativo na cena<br />
cultural de Cataguases e Além Paraíba na<br />
Zona da Mata mineira há décadas.<br />
Em Cataguases lá na incrível década de 60,<br />
fez parte de um grupo, que criou o Cineclube<br />
Serguei Eisenstein. Produziram peças de teatro.<br />
Fizeram música. Pintaram e bordaram na<br />
cidade e adjacências. Em 1970, foi o protagonista<br />
do filme "O anunciador - O homem das<br />
tormentas" rodado em Cataguases.<br />
Em Além Paraíba, onde mora há tempos, com<br />
amigos fundou a incrível Interior Edições e<br />
ultimamente vem produzindo e dirigindo interessantíssimos<br />
documentários sobre a cultura<br />
popular. Roda por todos os cantos daqui<br />
e de Além, com seu olhar inquieto e peculiar,<br />
fotografando o cotidiano.<br />
94
<strong>Chicos</strong><br />
Duas Cruzes<br />
Na manhã de sábado do último dia 12 de<br />
maio, José Vecchi lançou seu Duas Cruzes na<br />
Biblioteca Ascânio Lopes em Cataguases.<br />
Por lá compareceram vários amigos para<br />
prestigiá-lo.<br />
95
<strong>Chicos</strong><br />
Fotos de Augusto José Rios de Carvalho<br />
Uma lua escancarando um sorriso próprio<br />
de lua crescente [...]<br />
Basta uma frase destas prá gente gostar de<br />
um texto, e à medida que se avança nas histórias<br />
contadas por José Vecchi outras observações<br />
idênticas confirmam seu talento de<br />
narrador.<br />
Duas Cruzes, conto que dá título ao livro, remete-nos<br />
aos costumes interioranos e revela<br />
uma ruptura nos laços familiares por questões<br />
políticas e morais. E o que se vai descobrindo<br />
no desenrolar dos contos, nenhum<br />
muito extenso, nos prende pelo seu conteúdo,<br />
em que sobressaem personagens que<br />
surpreendem pela autenticidade e a riqueza<br />
de suas ponderações. Em Conversa sob a solidão<br />
o conflito é revelado pela personagem o<br />
tio que narra a história da traição de Rosa<br />
com o cunhado: normal é bicho. Nasce, procria<br />
e morre. Cruza, cruza aqui e ali. Sem roupa,<br />
sem lei e sem culpa, semas coisas de certo<br />
e errado {...}. Um tio que para preencher as<br />
horas de insônia lia os livros que o sobrinho<br />
mandava, criando assim o hábito de leitura,<br />
lenitivo para os momentos de solidão.<br />
Histórias de idas e vindas como tantas que<br />
conhecemos e até vivemos, mas que o Vecchi<br />
nos conta com graça e estilo a exemplo dos<br />
melhores autores do gênero.<br />
Emerson Teixeira Cardoso<br />
96