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Chicos 53 22-06-2018

Chicos é uma revista literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos teu e-mail e teremos prazer em enviar-te nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

Chicos é uma revista literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos teu e-mail e teremos prazer em enviar-te nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

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N. <strong>53</strong><br />

<strong>22</strong> de junho de <strong>2018</strong><br />

e-zine de literatura e ideias<br />

de Cataguases – MG<br />

Um dedo de prosa<br />

Esta é a nossa edição <strong>53</strong>.<br />

<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos meios<br />

digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te<br />

enviar nossas edições.<br />

A linha editorial é fundamentalmente voltada para a<br />

literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno<br />

e ao mundo. Procura manter, em cada um dos<br />

seus números, uma diversidade temática.<br />

Neste número, Francisco Inácio Peixoto é o poeta da<br />

primeira página. Ele é um dos nossos <strong>Chicos</strong>. Esta<br />

publicação tem este nome em homenagem a eles.<br />

Enquanto a Copa do mundo “rola” lá na Rússia. Por<br />

aqui, Marcelo Torres fala de Nelson Rodrigues e o<br />

goleiro do Liverpool e Antônio Jaime comenta os<br />

escritos de um russo que se radicou em Cataguases.<br />

Este número de início do inverno é o segundo deste<br />

ano. Uma agradável leitura para todos! E até o início<br />

da primavera de <strong>2018</strong>.<br />

Os <strong>Chicos</strong><br />

Capa: Foto Vicente Costa<br />

Editores:<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

José Antonio Pereira<br />

Colaboradores:<br />

Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />

Fotografia - Vicente Costa<br />

Ilustrações - Altamir Soares e Merson<br />

Esta edição é dedicada<br />

aos 70 anos de<br />

Carlos Torres Moura<br />

Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com<br />

Visite-nos em:<br />

http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />

https://independent.academia.edu/<strong>Chicos</strong>Cataletras<br />

https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras<br />

01


<strong>Chicos</strong><br />

44 FERNANDO ABRITTA<br />

Não<br />

Foto de Carlos Moura<br />

03 FRANCISCO INÁCIO<br />

PEIXOTO<br />

Pedreira + alguns poemas<br />

12 FLAUSINA MÁRCIA<br />

DA SILVA<br />

Até amanhã... Sol<br />

13 MATHEUS GUMÉNIN<br />

BARRETO<br />

Primeiro +3 poemas<br />

17 ACIR SIMÕES<br />

Baú de Tesouros<br />

19 RONALDO CAGIANO<br />

Das ruas da Pauliceia; domicílios<br />

que me cabem na desvairada<br />

rotina da cidade<br />

24 ANTÔNIO CARLOS<br />

LEMOS FERREIRA<br />

Para-y-stórico<br />

54 EMERSON TEIXEIRA<br />

CARDOSO<br />

The absent - A Ausente<br />

56 LEONARDO ALMEIDA<br />

FILHO<br />

A festa dos cães<br />

59 JOSÉ ANTONIO<br />

PEREIRA<br />

Já te contei sobre o pior dia<br />

da minha vida?<br />

63 LUIZ ROBERTO<br />

GUEDES<br />

Como ser ninguém na cidade<br />

grande<br />

67 JOSÉ VECCHI DE<br />

CARVALHO<br />

Os olhos de Ruzia<br />

70 ANTÔNIO JAIME<br />

SOARES<br />

A propósito dos 70 anos de<br />

Carlimoura<br />

73 MARCELO TORRES<br />

Nelson Rodrigues e o goleiro<br />

do Liverpool<br />

Foto de Carlos Moura<br />

75 RAQUEL NAVEIRA<br />

Sapatos e sandálias<br />

77 LUIZ RUFFATO<br />

Lendo os clássicos<br />

80 EMERSON TEIXEIRA<br />

CARDOSO<br />

Um escritor católico<br />

82 ANTÔNIO JAIME<br />

SOARES<br />

Memórias de Jorge Guglinski<br />

89 RONALDO CAGIANO<br />

Uma poética do confronto<br />

91 GABRIEL FRANCO<br />

O que é real na internet? Um<br />

guia rápido de sobrevivência<br />

na era da pós-verdade<br />

94 CLIPS<br />

Outros papos ...<br />

02


<strong>Chicos</strong><br />

Francisco<br />

Inácio<br />

Peixoto<br />

Nosso Chico Peixoto<br />

No livro Francisco Inácio Peixoto<br />

em prosa e poesia organizado e apresentado<br />

por Luiz Ruffato. Ruffato diz em<br />

O homem (página 19): “Este volume reúne<br />

toda a prosa e poesia publicadas em<br />

livro por Francisco Inácio Peixoto. Obra<br />

exígua, esparsamente aparecida ao longo<br />

de 54 anos, reúne 17 contos, um relato<br />

de viagens e <strong>22</strong> poemas, há muito fora<br />

de circulação. Nascido em 1909, tornouse<br />

um dos mais importantes autores dentre<br />

os nascidos com a Revista Verde<br />

(1927-1929).”<br />

A obra poética de Francisco Inácio<br />

Peixoto em livro compreende <strong>22</strong> poemas<br />

publicadas em Meia Pataca (1928) em<br />

parceria com Guilhermino Cesar e Erótica<br />

(1981) Por aqui, já republicamos poemas<br />

de sua lavra que apareceram em jornais<br />

no intervalo das duas publicações.<br />

03


Pedreira<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Para Rosário Fusco<br />

Dependurados no espaço<br />

eles ficam ali o dia inteiro<br />

arrancando faíscas<br />

furando buracos na pedreira enorme<br />

que reflete como um espelho<br />

as suas sombras primitivas.<br />

À tarde ouve-se um estrondo<br />

e o eco repete a gargalhada das pedras<br />

que vieram rolando da montanha.<br />

Os homens de pele tostada<br />

descem então dos seus esconderijos<br />

e caminham pras suas casas<br />

vagarosamente<br />

decepcionados<br />

segurando com as mãos cheias de calos<br />

as ferramentas com que procuram<br />

há uma porção de anos<br />

o segredo que lhes dê uma nova revelação de vida.<br />

04


Meia Pataca<br />

<strong>Chicos</strong><br />

De primeiro o lugar se chamava<br />

Arraial do Meia-Pataca<br />

Por causa de terem achado<br />

Num Corguinho por que aqui passava<br />

Meia-pataca de ouro.<br />

Também nunca que acharam mais nada...<br />

Imagino Cataguases<br />

O que seria de você hoje<br />

Se em vez só de meia-pataca<br />

Tivesse mais ouro naquele corguinho...<br />

05


Exercício erótico<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Triângulo isósceles que se inscrevesse no ventre<br />

coxim de pelos ruivos<br />

ou negros ou fulvos<br />

ora seda desfiada ora cerda ou lã<br />

ou espessa crina crespa em campo escuro<br />

que ansiosa mão afaga procurando<br />

a oculta amêndoa<br />

- vértice de dura bissetriz que irá feri-la<br />

Dividindo em dois o deleitável monte.<br />

Charada como resposta<br />

Parece concha<br />

e é concha entreaberta<br />

- que é que é?<br />

É ostra<br />

mas rubra.<br />

<strong>06</strong>


Sesta<br />

<strong>Chicos</strong><br />

De flanco, encolhida como<br />

um feto retornado ao útero<br />

as ancas cheias são<br />

entre tronco e coxas<br />

leiras que os olhos rasgam.<br />

Presto mas sutil<br />

(não lhe desmanchou o sono)<br />

fundo-me, isopétalo, na forma<br />

do corpo, de ébano.<br />

Inconsúteis nos quedamos e indivisos.<br />

Em breve também emigro<br />

entre sonho e sono<br />

para aquém da vida.<br />

Calmaria<br />

Teus peitos enfunados<br />

mesmo sem vento<br />

nem leve brisa<br />

no teu colo nu<br />

mesmo sem nada.<br />

(Basta meu hálito)<br />

07


Noturno<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Nada vem da rua,<br />

só a névoa da lua<br />

frouxa luz de acetileno<br />

(teu única recato).<br />

Dormes<br />

e o sono deixa em mármore<br />

o corpo nu.<br />

Dormes.<br />

No púbis<br />

agora quieta<br />

tarântula<br />

aranha negra.<br />

Remembrança<br />

Das luras da memória<br />

afloram (albiflores)<br />

lírios opalinos (dois)<br />

as coxas sumarentas<br />

e o lobo que te come.<br />

Ou não come: hauresorvecheira<br />

(ainda: faro de mil anos)<br />

o mel de que era feita<br />

a alvenaria perfeita<br />

do corpo intocado<br />

no entanto núbil.<br />

08


Nu, de Martinho de Haro<br />

<strong>Chicos</strong><br />

A moça<br />

no fundo abstrato<br />

as coxas redondas<br />

no redondo do corpo.<br />

Expungido o óbvio triângulo<br />

apenas guarda o intumescido púbis<br />

tarja estreita<br />

estreito pente<br />

tão gentil<br />

09


Nu sentado, de Aldary Toledo<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Dos braços cruzados<br />

da moça desnuda<br />

espoca um seio.<br />

Na mesa um copo vazio<br />

uma flor<br />

e o seio da moça<br />

quase esbarrando na mesa.<br />

Traço fino de Aldary<br />

compõe a natureza-morta<br />

que ele não compôs<br />

pois outros frutos opimos<br />

deixou escondidos em tanta nudez.<br />

Assim só há o copo vazio<br />

a flor<br />

e o seio da moça.<br />

10


Último exercício ou poema do muito amor<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Vou me lembrando:<br />

Nair de coxas de seda<br />

Odete de quem entrevi um dia<br />

a negra belbutina<br />

a sábia Zulmira e Celmira Gláucia Carmem<br />

a loura Abigail que era AEbigueial mas não concedia<br />

Maria<br />

para todos Mariinha<br />

Olinda Guiomar<br />

A devassa Conceição<br />

Alcina e também Marília Filhinha...<br />

- Tantas assim?<br />

Nem tanto nem tanto...<br />

Havia ainda Leonora<br />

que eu chamava Lenora<br />

extinta como a outra como as outras.<br />

Todas se sumiram<br />

Todas se fundiram<br />

Numa só.<br />

- O nome?<br />

Este, não digo<br />

11


<strong>Chicos</strong><br />

Flausina Márcia<br />

Flausina Márcia da Silva poeta nascida em<br />

Cataguases e radicada em Belo Horizonte<br />

onde trabalhou na Secretaria de Cultura de<br />

Minas Gerais.<br />

Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua<br />

Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives<br />

(2014).<br />

Até amanhã... Sol<br />

Até amanhã, sol, domingo<br />

seja azul, passa nuvens, brilha<br />

eu farei reza, rango e bingo<br />

samba é de lei, é maravilha.<br />

Sol, amanhã é um diabão<br />

as bravas gentes brasileiras,<br />

sem pesquisa, ou caminhão,<br />

fazem frente pras barreiras.<br />

Trabalho árduo, o seu, sol,<br />

mas aí não é acampamento.<br />

Aqui, pode escolher no rol<br />

ocupação, comonumentos.<br />

Território monumental!<br />

passa a escritura, Sol.<br />

Se for sociedade,<br />

há identidade.<br />

12


<strong>Chicos</strong><br />

Matheus Guménin<br />

Barreto<br />

Matheus Guménin Barreto poeta e tradutor, nascido<br />

em Cuiabá (MT), pós-graduando da USP,<br />

onde traduz a poesia de Ingeborg Bachmann.<br />

Estudou também na Universidade de Heidelberg<br />

(Alemanha). Publicou traduções de Ingeborg<br />

Bachmann em Dito ao anoitecer (2017) e Lira argenta<br />

(2017), de Bertolt Brecht em Cântico de<br />

Orge (2017). É autor dos livros de poemas A máquina<br />

de carregar nadas (2017, Editora 7Letras) e<br />

Poemas em torno do chão & Primeiros poemas<br />

(<strong>2018</strong>, no prelo).<br />

Primeiro<br />

O toque mesmo nas coisas<br />

para lembrar as mãos da<br />

arquitetura limpa daquilo<br />

que o mundo gestou.<br />

A mão limpa, cartesiana, reta<br />

pelas coisas<br />

para tirar o pó sobre os nomes<br />

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria<br />

e tocar outra vez<br />

como no Dia Primeiro<br />

algo dos nomes<br />

que vibre.<br />

13


O lápis descansado<br />

<strong>Chicos</strong><br />

O lápis a descansar<br />

no colo da mesa branca.<br />

Que arquiteturas, que riscos,<br />

que abismos, que céu se tranca<br />

ao longo do lápis longo<br />

parado, imóvel, preto?<br />

O anúncio de qualquer coisa<br />

entre a mente e o peito.<br />

Que coisas já guarda o lápis?<br />

Guarda o que vem-lhe através?<br />

Só guarda o suave das mãos,<br />

ou o áspero dos pés?<br />

O pé guarda acaso as linhas<br />

das geografias e mapas?<br />

Guarda. E, em as guardando todas:<br />

o que és, de ti não escapa.<br />

Sabe o que o lápis encerra<br />

em si, na madeira morta?<br />

Sabe, e mais sabe o lápis<br />

aquilo que o homem ignora.<br />

14


Sabe o que o lápis encerra<br />

em si, na madeira morta?<br />

Sabe, e mais sabe o lápis<br />

aquilo que o homem ignora.<br />

<strong>Chicos</strong><br />

O que é que o lápis contém<br />

do que ainda nem foi feito?<br />

O anúncio de qualquer coisa<br />

entre a mente e o peito.<br />

Inútil<br />

Inútil<br />

inútil o gesto o plexo o beijo<br />

inútil o desejo e o não-desejo<br />

[igualmente<br />

Inútil inútil o salto e a pausa<br />

Inútil a mão no ombro alheio<br />

[e próprio<br />

Inútil soberanamente inútil<br />

o gesto o plexo o beijo<br />

nas campinas afiadas de verde<br />

nas geometrias escuras da mente<br />

e essa vontade de amar.<br />

15


Uma arquitetura da concha<br />

“Para aquele que deu a concha”<br />

<strong>Chicos</strong><br />

1. Que esta concha entre os dedos recolha<br />

e decante em silêncios a voz<br />

agitada em trovões – mar o crânio –,<br />

que a decante e que a anule depois.<br />

2. Que recolha entre os vórtices secos<br />

todo o eco dos mares confusos,<br />

que o recolha e decante em silêncios<br />

e apascente o traçado dos fusos.<br />

3. Que esta concha entre os dedos anule<br />

o que dentro de alguém é loucura.<br />

Que ela guarde, meu Deus, da loucura,<br />

que é o que acha quem muito procura.<br />

4. Que estas conchas recolham do fundo<br />

já sem fundo das curvas do mar<br />

o olhar tão cansado do homem<br />

– e o devolvam depois, pra guiar.<br />

Estes poemas são do livro<br />

A máquina de carregar nadas.<br />

16


<strong>Chicos</strong><br />

Acir Simões<br />

Acir Simões poeta e contista, nasceu em Cataguases<br />

(MG) em 08.05.1957, mora atualmente<br />

em Belo Horizonte (MG)<br />

Baú de tesouros<br />

Incomodei pergaminhos antigos,<br />

Antologias profanas,<br />

Uma antiga coleção de histórias em quadrinhos,<br />

Versos naufragados,<br />

Mapas da palma da mão<br />

E atlas sem alguns continentes.<br />

17


<strong>Chicos</strong><br />

Tudo inútil.<br />

Não sei onde achar a ilha<br />

Onde repousa meu baú de achados.<br />

Contêm três botões de camisa,<br />

Um palito de fósforo já queimado,<br />

Uma bússola que não aponta para o norte,<br />

Um brinquedo quebrado,<br />

A irrecuperável memória<br />

Das coisas que só não aconteceram<br />

Porque uma gaivota afugentou as ideias do porvir.<br />

Em outro compartimento secreto coloquei,<br />

Em vão desarrumadas,<br />

As poucas breves histórias de glórias.<br />

Em vão acomodei as muitas histórias de perdas e esperas.<br />

E mais ao fundo alberguei meu passado fictício.<br />

Também arrumei de modo provisório<br />

Minhas contradições ( o baú já estava pesado).<br />

Gravei a data do ano de fabricação do baú,<br />

Na tampa, com o cuidado de ser posterior à data<br />

Do seu possível achamento , por algum pirata.<br />

Talvez por causa das vertigens das idas e vinda,<br />

Do rum, ou pelas correntezas do mar e dos sonhos<br />

Esqueci o mapa do meu tesouro dentro do baú enterrado.<br />

18


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,<br />

de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio<br />

Brasília de Produção Literária 2001), O<br />

sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio<br />

Portugal Telecom 2012) e Eles não moram<br />

mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive<br />

atualmente em Portugal.<br />

Das ruas da Pauliceia;<br />

domicílios que me cabem na<br />

desvairada rotina da cidade<br />

Tu cidade irreal , aos poucos somos:<br />

já anseio te rever e já te escondes<br />

Antonio Cícero<br />

De quantas ruas sou feito<br />

(quanto delas me habita)<br />

nesse breve espaço entre o nascer e morrer?<br />

Do cansado leito do rio Pomba<br />

às marginais ácidas do Tietê,<br />

que barcos me levam,<br />

para reconhecer(me) (n)essa cidade?<br />

19


<strong>Chicos</strong><br />

A rua Augusta está tão ausente e longínqua,<br />

como uma estepe inatingível,<br />

[ou como os becos de Minas<br />

que menino agora desvive].<br />

Sobre rastros de antigas procissões<br />

e revolvida pelo séquito<br />

de solenes funerais<br />

que o tempo presente<br />

os homens presentes<br />

a vida presente<br />

sepultaramressurge<br />

sob néons e algaravias<br />

entre o sagrado e o profano<br />

Numa coreografia<br />

(in)tensa de (des)ilusões.<br />

O frio que sinto agora<br />

não vem da rua Lopes Chaves<br />

(lá não enterraram minhas utopias)<br />

mas do bastardo silêncio<br />

que um dia encontrei naquela madrugada<br />

em que atravessei a Doutor Arnaldo<br />

e às portas do Cemitério do Araçá<br />

velhos fantasmas da infância<br />

ruminavam em mim<br />

lutos incuráveis.<br />

20


<strong>Chicos</strong><br />

Nas casas introvertidas<br />

e fossilizadas<br />

que adernam no oceano de<br />

arranha-céus da av. Angélica<br />

ainda contemplo em seus telhados ásperos<br />

uns gatos vadios rondando a noite abissal<br />

imunes aos vampiros escondidos<br />

entre teias de aranha no alpendre.<br />

Na av. 9 de julho<br />

a história rivaliza<br />

com a coirmã portenha:<br />

quantos ainda hão de morrer<br />

nas lutas insensatas da civilização<br />

nas tragédias infaustas do trânsito<br />

sobre o asfalto denegrido de cáries<br />

que as autoridades não restauram?<br />

Artéria fatigada<br />

por onde já não escorre<br />

sequer o sangue coalhado das memórias,<br />

a av Paulista é um escuro corredor<br />

de ventos e assombros;<br />

ontem e hoje se consorciam<br />

para erguer o memorial do esquecimento:<br />

21


<strong>Chicos</strong><br />

em seus prédios, jazigos perdulários,<br />

dormem remotas oferendas,<br />

angústias e avarias<br />

da guerra de cada um.<br />

Passo pela 23 de maio<br />

entre uma legião aborrecida<br />

de animais metálicos<br />

(carruagens de desalento),<br />

gente ensimesmada, como manequins burocráticos,<br />

habitando ônibus, táxis, lotações<br />

rumo aos sarcófagos em que habitam ou trabalham,<br />

recintos cerrados por fechaduras hediondas,<br />

com uma povoação de gerações esquecidas nas paredes<br />

testemunhas<br />

da inexorabilidade do tempo.<br />

Em São Paulo ou Cataguases<br />

(concubinas histéricas de meus devaneios)<br />

as ruas são as mesmas,<br />

mudam-se apenas os nomes<br />

molduram-se outros silêncios<br />

e renovam-se as antigas cicatrizes<br />

no intimo deserto<br />

de cada um:<br />

<strong>22</strong>


<strong>Chicos</strong><br />

o homem apartado ou dividido,<br />

sisudo e incomunicável<br />

como um carrossel alucinado<br />

na confusão de rostos da babélica metrópole<br />

tenta sobreviver ao contorcionismo da espécie,<br />

ilhado entre a civilização e a barbárie<br />

(nessa geografia difusa como todos os fusos do mundo)<br />

numa época de trânsfugas certezas<br />

nesse ir-e-vir desencantado.<br />

Publicado na antologia:<br />

TRANSPASSAR<br />

Poética do movimento<br />

Pelas ruas de São Paulo<br />

SESI-SP editora<br />

23


<strong>Chicos</strong><br />

Antônio Carlos<br />

Lemos Ferreira<br />

Poeta e professor de história em Juiz de Fora<br />

(MG).<br />

“Apaixonado pelo rio barrento que atravessa minha<br />

cidade, Tenho me valido do verso, como<br />

forma de desabafar. Reconheço parecer uma indignidade,<br />

mas sei também ser uma necessidade.<br />

Estar no mundo é uma arte.”<br />

Para-y-stórico<br />

Ao meu Pai: Sr. Geraldinho do Ctc da Central,<br />

que me ensinou a jogar cachorro morto no rio.<br />

Para falar deste Rio querido¹<br />

Tiro licença pra frente e pra trás<br />

Pois, me meto a ser enxerido<br />

A exigir que lhe respeitemos mais<br />

Ao montar estes versos pretendo<br />

Historiar, produzir jogralzinho<br />

Para que aqueles, que estão crescendo,<br />

O percebam com bem mais carinho<br />

¹ - Parahybuna é um nome de origem indígena [que] significa (Para-hy-una) rio de águas escuras. (...) devida a decomposição<br />

das matérias húmicas pelas alcalis. Tem sua origem na Serra da Mantiqueira. A água do rio Paraybuna é potável, principalmente<br />

depois de ser conservada em quietação dentro de bilhas. É de cor levemente amarelada, sem cheiro nem sabor, tendo em suspensão<br />

argila corada pelo oxido férrico e detritos vegetais. ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. 1915, p. 150.<br />

24


<strong>Chicos</strong><br />

Lá no ventre da mãe Barbacena 2<br />

O Pará água escura nasceu<br />

Mas ao certo foi em Antônio Carlos 3<br />

Que sua vinda ao mundo se deu<br />

Vem a tona na Serra vergel<br />

Em compasso borbulha brilhante<br />

Apressados procuram o céu<br />

Olhos d’água se juntam adiante<br />

Água grande reclama a pequena<br />

Cristalino, escoa descendo<br />

Em cascatas, risonho serena<br />

Mantiqueira a Serra rompendo<br />

Viu nascer povoados cidades<br />

Cabangu, Chapéu D’Uvas-Engenho 4<br />

Presenciou perecer uma delas<br />

Sentiu “Dores” da falta de empenho 5<br />

2- Uma brincadeira – Barbacena (antiga Borda do Campo) é “Mãe de Juiz de Fora, bem como São João de Rey é Avó e Ouro Preto Bisavó”.<br />

3- Antigo distrito, atualmente cidade, que pertencia a Barbacena, leva este nome em homenagem ao filho ilustre daquela região e onde estão<br />

as cabeceiras do rio em questão.<br />

4- Engenho do Mato: Nome antigo do Distrito de Chapéu D’Uvas - Este nome é corruptela de Chapetuvas, significando Xá, ver; Pé, caminho;<br />

Uva, água parada; que significa em linguagem indígena: caminho visto ou aberto no pântano. VASCONCELOS, Diogo de. História Média das<br />

Minas Gerais.<br />

5- Dores do Paraibuna - Cidade que teve boa parte de sua área inundada, inclusive a urbana, pela Barragem de Chapéu D’Uvas. Junto dela<br />

também a Colônia de São Firmino.<br />

25


<strong>Chicos</strong><br />

Bate e desce nesta superfície<br />

Está grosso, até muda de cor<br />

Fica lento e atinge a planície<br />

Segue altivo ameaçador<br />

No altiplano, no meio-caminho<br />

Fica adulto é forte e sutil<br />

Está lento silente corado<br />

Entre curvas - serpente viril<br />

Mas, eis, que da Zonamateira<br />

Capital regional fez crescer<br />

Por ter tido entreveros com ela<br />

Castigado e retido há de ser<br />

Howian 6 lhe prepara os estudos<br />

Logo após, em seu leito intervém<br />

Dominado em seu jeito tão forte<br />

Uma calha mais reta o detém<br />

Após tantas pelejas e perdas<br />

dominado ele teve que ser<br />

Com recursos lá do ‘pai dos pobres’<br />

A cidade retorna a crescer<br />

6- Gregório Howian - Nome do Engenheiro armênio, que projetou a retificação do Rio na região central da cidade no início da<br />

década de 1940. Antes de vir para cá chefiou as obras de revitalização do Rio Sena em Paris.<br />

26


<strong>Chicos</strong><br />

Despojado, despido, sem sorte<br />

Jaz um corpo de rio refém<br />

E deitado em seu “Leito de Morte” 8<br />

Suas águas barrentas contem<br />

Da cidade a quem deu luz e guia<br />

Como paga recebe o desdém<br />

Invisível, apertado por vias<br />

Nem suspeita o que ainda advém<br />

Já foi rio selvagem outrora<br />

E senhor da planície: um gigante<br />

Guardião de espécies da flora<br />

E de fauna, também abundante<br />

Afortunado era limpo e piscoso<br />

Tinha bagre, acará, lambari<br />

Hoje sofre sujado oleoso<br />

Colhe esgotos que’inda caem ali<br />

7- O dinheiro da obra de retificação veio do governo federal, ocupado aquela época pelo presidente Getúlio Vargas, apelidado posteriormente,<br />

de Pai dos Pobres e Mãe dos Ricos. Quando vinha à cidade ficava hospedado na fazenda São Mateus. Daqui saiu seu vice, o ex-prefeito da<br />

cidade e ex-presidente do estado, Antônio Carlos Andrada. O nome da praça na região central é em homenagem a ele.<br />

8- Este verso me foi dado pela colega de trabalho e professora de Artes Valéria Flamínia, que por passar cotidianamente na área do Bairro<br />

Retiro. Na altura da Famosa “Boca do Túnel” cunhou esta expressão.<br />

27


<strong>Chicos</strong><br />

Ser barrento, entretanto, estar limpo<br />

Desde, o tempo a muito passado<br />

Bebeu tanta tintura e zinco<br />

Intoxicado com metal pesado<br />

Foi caminho primitivo de índios<br />

Coroados, Puris e mais quem??? 9<br />

Era a via com a qual se servia<br />

Os do Norte; que ao Sul tem seu bem<br />

Tal vertente serviu de passagem<br />

À bandeiras e desbravadores<br />

Que chegaram amigos-mansinhos<br />

E tornaram-se escravizadores<br />

De tropeiros e salteadores<br />

Suas águas ouviram falar<br />

Nas bruacas 10 dos carregadores<br />

Quanta história se tem pra contar<br />

9- Sabemos bem pouco sobre estes nativos, que transitavam pela região. Entretanto, o amigo Marco Geógrafo, estudioso da história<br />

e geopolítica local, tem sido um consultor balizado. Ele pondera que os índios dessa região eram os Croatos e Coropós. Acreditamos<br />

que aqui na cidade apenas tinham passagem, não se fixaram. Entretanto, no Cemitério do Morro da Boiada foram encontrados<br />

vestígios de sua presença. Há uma grande necessidade de nos debruçarmos mais em pesquisas a respeito. Popularmente<br />

são conhecidos como Coroados e Puris. Estes nomes foram dados pelo colonizador. São citados e pronto. Parece que se falou<br />

tudo sobre eles.<br />

10- Nome dado a uma antiga bolsa de couro cru, muito resistente, colocadas uma de cada lado no lombo dos burros ou mulas,<br />

que formavam as tropas e carregavam mantimentos na subida da serra e ouro na descida. Também chamadas Burras.<br />

28


<strong>Chicos</strong><br />

Pelo sul: és como o São Francisco<br />

Foi Portal dessas Minas Gerais<br />

Tanto o ouro, quanto os diamantes<br />

Escoastes... Restaram os anais<br />

Pioneiro, bandeirante Garcia<br />

Cujo nome Pais Leme ostentava 11<br />

Alargou uma trilha que havia<br />

E o Caminho Novo se instalava<br />

O seu vale serviu de pousada<br />

A forasteiros e “Homens de Bem” 12<br />

Recebeu gente escravizada<br />

E forçada a trabalhar sem vintém<br />

Corre o dito... Seu nome nativo<br />

Que em Tupi por preto se traduz<br />

Fale de entes: pelados, cativos<br />

Que ao palato local, não seduz<br />

11- Trata-se do Bandeirante Garcia Rodrigues Paes, que abriu a picada indígena que deu origem ao Caminho Novo no início do<br />

Século XVIII, entre 1701 e 1703. Era filho do também bandeirante Fernão Dias Paes Leme. Entretanto, não carregava o sobrenome<br />

Leme do Pai. Empresta seu nome a uma larga avenida na entrada da cidade através da Zona Norte.<br />

12- - Este termo é atribuído aos homens, que concentravam o poder local. Não havia prefeito. Era mais ou menos como hoje são<br />

os vereadores, só que com mais incumbências nas mãos. Administravam o poder, a lei, a ordem e a justiça. Com consentimento da<br />

Coroa de Portugal. É um termo extremamente segregatório.<br />

29


<strong>Chicos</strong><br />

És gentil com os seus imigrantes<br />

Em suas margens e nos afluentes<br />

Mais hostil com aqueles africanos<br />

E também com os seus descendentes<br />

Foi nas roças da margem esquerda<br />

Que o maior dos seus préstimos deu<br />

Sediou - abrigou a fazenda<br />

Onde a Juiz de Fora nasceu<br />

No casarão que é sede emblemática<br />

Instalou-se um Juiz foragido<br />

E restou-lhe o destino dramático<br />

Seu legado não foi protegido<br />

Do sesmeiro 13 Antônio Vidal 14<br />

Sediou enorme Sesmaria<br />

Naquela várzea, extenso lamaçal<br />

Chapéu D’Uvas até Rancharia 15<br />

13- Dono de Sesmaria (enorme porção de terras doadas a amigos da Corte em troca de aproveitamento da terra, povoamento da<br />

mesma, pagamento de tributos e extermínio dos índios).<br />

14- Riquíssimo comerciante Luso-Espanhol radicado no lugar, dono de uma parte, da enorme porção de terras (sesmarias) situadas<br />

na planície do altiplano do médio Paraibuna, que vai dos limites de Ewbank da Câmara até Simão Pereira, onde futuramente<br />

iria se instalar o Município de Juiz de Fora. Ele adquiriu partes dessa propriedade imensa, de Roberto Carr Ribeiro e tornou-se o<br />

maior donatário da região. Tempos depois, estas terras serão vendidas para a família dos Tostes. Foi ele, que mandou construir a<br />

Capelinha ancestral e trouxe oficialmente a devoção a Santo Antônio para o local.<br />

15- Nome antigo do povoado de Simão Pereira, limítrofe entre os estados de Minas e do Rio de Janeiro.<br />

30


<strong>Chicos</strong><br />

À família dos Antônios Tostes<br />

No lugar, sucedeu aos Vidal<br />

Fez crescer progredir em seu leito<br />

A cidade que não tinha rival<br />

Da Germânia chegou um soldado<br />

Ele encanta com Tostes nativa 16<br />

E ao largo do rio celebram<br />

Suas bodas comemorativas<br />

O capitão o caminho descamba<br />

Onde outrora ninguém não fizera<br />

Atravessa o rio no Zamba 17<br />

A “Variante do Halfeld” impera<br />

Rua Direita, atual Rio Branco<br />

A mais reta e maior lá se fez<br />

Eis que a nova Cidade dos Ricos<br />

Nesta via se firma de vez<br />

16- A jovem Cândida, Filha do Capitão Antônio Dias Tostes. É a segunda, de outras esposas que teve o engenheiro Halfeld. Ele foi<br />

comandante de um pelotão de sapadores (cavadores de trincheiras) do exército prussiano. Ainda não havia a Alemanha.<br />

17- O Engenheiro Guilherme Halfeld foi contratado pelo governador da província das Minas Gerais e faz o trajeto do Caminho<br />

Novo, pela primeira vez, atravessar o Rio através de uma ponte na localidade chamada Zamba, em Cedofeita. A Variante é a atual<br />

Avenida Rio Branco.<br />

31


<strong>Chicos</strong><br />

Reduzido de pioneiro a anônimo<br />

O arraialito ‘Morro da Boiada’ 19<br />

Abençoado pelo Santo Antônio<br />

Do Fujão: devoção sequestrada<br />

Cruza o rio pra dar fundamento<br />

À cidade e a nova Matriz<br />

E o povo do Morro a contento<br />

Foi calado, não disse o que quis 20<br />

Aliás, disse: não foi ouvido<br />

E da capelinha tão original<br />

Só porque já estava ruindo<br />

Ocultou-se a memória ancestral<br />

Vem daí o descaso com a história<br />

Destruir patrimônio importante<br />

A cidade sem identidade<br />

Mal consegue seguir adiante<br />

18- O professor Jair Lessa usa este temo para falar da cidade que nasce do lado direito do Rio. Em contraponto ao Morro da Boiada.<br />

- Juiz de Fora e seus pioneiros. Pag. 48.<br />

19- Ver livro infantil: A Lenda do Morro da Boiada - De Criança para criança – Ilustrado pelas crianças do Bairro Santo Antônio.<br />

Feito em comemoração aos 40 anos da escola do bairro, comentando o trabalho recolhido pelo escritor e poeta, Lindolfo Gomes.<br />

Esta obra tem o claro intuito, de não deixar apagar um importantíssimo testemunho literário, que suponho ser uma Saga de fundação<br />

da cidade de Juiz de Fora.<br />

20- O aprofundamento sobre esta quizila em torno do Santo Fujão está contido no livro: A devoção a Santo Antônio Em Juiz de<br />

Fora - O Santo Fujão – FUNALFA - Deste mesmo autor, no capítulo terceiro. Ali tentamos superar, algo semelhante ao que ocorre<br />

com os Índios na região. Cita-se o termo Capela, Morro da Boiada e Santo Fujão como se tudo o que se pudesse ser dito seja só<br />

isso. Faltam pesquisas.<br />

32


<strong>Chicos</strong><br />

Mas voltemos às margens do rio<br />

Ao que nele passou, sucedeu<br />

Pois, o texto se urde com fio<br />

Por paixão o poeta teceu<br />

Santo Antônio do Paraibuna<br />

Foi o nome que à Vila se deu<br />

Homenagem direta ao rio<br />

Por homônimo, após, se perdeu 21<br />

Santo Antônio do Juiz de Fóra <strong>22</strong><br />

Marcelino, o barão fixou<br />

Sai o santo fica o magistrado<br />

Que tão pouco a cidade legou<br />

Luis Fortes Bustamante e Sá 23<br />

É o juiz de fora pioneiro<br />

A sede passou a Roberto Carr*<br />

Que vendeu ao Vidal fazendeiro<br />

21- A cidade se chamou assim por apenas uma década. Devido à semelhança com o nome da cidade de Paraibuna, já instalada<br />

mais ao sul, suscitou o problema com a duplicidade postal, que forçou a mudança de nome.<br />

<strong>22</strong>- O termo no documento de lei é grafado com acento. O barão é o Barão de São Marcelino.<br />

23- Nome do “Homem de Bem” nomeado Juiz de Fora da cidade do Rio de Janeiro em 1711 a 1713. Depois de aposentado veio<br />

se abrigar nas imensas terras do genro João de Oliveira. Segundo Jair Lessa, pag. 26. Ele era prestigiado, audacioso, bravo e autossuficiente.<br />

Ele serviu de intermediário entre o governo e as forças corsárias, durante a ocupação francesa. Entretanto, o decano,<br />

emérito professor de direito da UFJF Almir de Oliveira, assevera em seu livro: No Vale do Paraibuna. Que ele teria vindo fugido da<br />

capital por ter colaborado com os corsários inimigos na invasão dos franceses - No ano de 17<strong>22</strong> foi expulso de Minas Gerais (Juiz<br />

de Fora) por ter tido encrenca, pegado em armas, contra outro fazendeiro vizinho por causa de extrema com a fazenda do Marmelo<br />

(próximo da atual Usina histórica). E reaparece finalmente em 1728 vendendo aquela fazenda (Juiz de Fora) para *Roberto<br />

Carr Ribeiro, que dez anos depois vende para Antônio Vidal.<br />

33


Do primeiro mui pouco se fala<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Mas no Rio nos sabem dizer<br />

Quando da invasão dos franceses<br />

Juiz de Fora começa a nascer 24<br />

Ao período do ouro escasseado<br />

Sucedem-se o café e o leite<br />

Em fazendas de gado cercado<br />

Ou naquelas, em leras de enfeite 25<br />

Junto a ele uma Vila-Cidade<br />

Promissora haveria de ser<br />

Pioneiros atrai com vontade<br />

De fortuna e posses reter<br />

E por pura ousadia de vera<br />

Uma Urbs 26 o rio transpôs<br />

E a uma área rural tão singela<br />

Outra têxtil indústria se impôs<br />

De Curvelo vem um visionário<br />

Corajoso: quase um prometeu<br />

24- Ver citação do item 23 sobre o que afirma o professor Almir de Oliveira.<br />

25- A maneira de plantar o cafezal enfileirado depois da orientação de D. João VI, fez a lavoura ganhar um aspecto estético bastante<br />

interessante parecendo estradas verdes (leras) em meio ao pasto.<br />

26- Termo em latim que se traduz por cidade. Daí vem o termo urbano.<br />

34


Torna o rio um correligionário<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Energia: luz-primeira irrompeu!*<br />

Igualmente Mariano Procópio<br />

Pioneiro e empreendedor<br />

Tinha estrada, até um ‘trem próprio’ 28<br />

Era amigo do imperador<br />

Aliás, o D. Pedro, ele mesmo 29<br />

Nas barrancas do rio desceu<br />

Na canoa, com a corte a esmo<br />

Esta foto: está lá no museu<br />

O Baiano Batista de Oliveira<br />

Negociante de mente sagaz<br />

No comércio seu Banco prospera<br />

Fica rico e fortuna nos traz<br />

Cafeicultor de posse invejada<br />

Morre triste sem ter sucessor<br />

28- Bernardo Mascarenhas - Natural de Curvelo veio para Juiz de Fora para expandir seus negócios empreendidos com a indústria<br />

Têxtil. Viveu muito pouco, mas foi um gigante. Homem de grande visão e arrojo para sua época. Deu-nos uma indústria têxtil,<br />

a primeira usina hidrelétrica da América Latina, a primeira luz elétrica das Américas. O primeiro Banco privado, e ainda iluminou<br />

Belo Horizonte, a jovem capital de Minas Gerais.<br />

29- Exagero meu. Ele tinha na verdade era uma estação própria. Na frente da casa dele. Onde hoje é o Centro Dnar Rocha. Entretanto,<br />

é bem verdade, que foi por sua enorme influência junto ao império, que a ferrovia sobe a serra, e este enorme investimento<br />

atinge a região.<br />

35


Por fundar o hospital Santa Casa<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Silva Pinto será benfeitor 30<br />

No resgate do rio por vezes<br />

Certamente me valho de alguém<br />

E a literatura de Albino Esteves 31<br />

É patrimônio que a todos convém<br />

Tendo o século vinte aportado<br />

A cidade já é pioneira<br />

O cometa lhe deixa marcado<br />

Tem por nome Manchester Mineira<br />

Um conterrâneo que vistes chegar<br />

Nessa época, já se introduz<br />

É a ‘alma’ poética do lugar<br />

Murilo Mendes a cidade traduz<br />

Além dele também Pedro Nava<br />

Suas memórias: não posso esquecer<br />

Foi buscando em seu “Baú de Ossos”<br />

Que encontrei o que quero dizer<br />

30- .Silva Pinto - Ostentava os títulos de "Guarda Mor" na cidade de Simão Pereira, vereador em Barbacena no ano de 1833, detentor<br />

do cobiçado título de Comendador da Ordem da Rosa e da Imperial Ordem de Cristo. Barão da Bertioga em 1861.<br />

31- Albino Esteves – Jornalista e historiador, natural de Sapucaia, também fundador da Academia Mineira de Letras produziu o<br />

importantíssimo Álbum do Município de Juiz de Fora publicado em 1915. É um marco para a historiografia da cidade. Um trabalho<br />

seminal. Lastreou o rumo de boa parte das afirmações que se fizeram depois dele, para bem ou para mal.<br />

36


<strong>Chicos</strong><br />

Dentre os filhos ilustres que tens<br />

Alfredo Lage destaca-se mais<br />

Foi Mecenas deixou-nos seus bens<br />

Corajoso, ainda não tem rivais<br />

Arcaísmos com renovações<br />

Cidadela assaz contraditória<br />

Vanguardismo apoiado em grilhões<br />

Navegando em sua trajetória<br />

Professoras, artistas, escritoras<br />

Junto a ele: o Ventre Fecundo<br />

Falte o toque da mão genitora...<br />

Sem lugar estaremos no mundo 32<br />

A cidade tem na geografia<br />

Três traçados, bem originais<br />

Rio Branco representa a Via<br />

A Montanha - O Rio ancestrais<br />

32- .Dedico esta estrofe especialmente às mulheres que legaram júbilo à cidade e ás margens do Paraibuna, através da pessoa da<br />

professora Leila Barbosa e da minha madrinha nas letras, Mariza Timpone, que me apresentaram o tema como possibilidade de<br />

pesquisa na área da literatura.<br />

37


<strong>Chicos</strong><br />

Por aqui passou o Tiradentes<br />

Liberdade era seu ideal<br />

Do seu leito sai um confidente 33<br />

Foi o médico Domingos Vidal<br />

Seu traçado também viu surgir<br />

Polo cafeeiro, têxtil, leiteiro,<br />

A educação lhe fez emergir<br />

Como Atenas do povo mineiro<br />

Orgulhoso, de música cercado<br />

Pianos, Tambores, Calangueira<br />

Um bamba no Samba é citado<br />

Seu nome: Geraldo Pereira 34<br />

Da cultura é um vale exemplar<br />

Que orgulha o estado e o país<br />

Mas falhou, pois aqui fez gestar<br />

Ditadura: a causa, mais infeliz<br />

33- .Disse Confidente, pois o in-confidente foi o traidor Joaquim Silvério dos Reis. Domingos Vidal, filho caçula de Antônio Vidal.<br />

Foi nosso representante na Conjuração Mineira. Era médico formado na França e abraçou o movimento mineiro.<br />

34- Geraldo Pereira - compositor e boêmio. Nasceu na região de Torreões - Monte Verde. Saiu daqui com 11 anos e foi morar<br />

com o irmão Mané Araújo no Morro da Mangueira. Foi discípulo do grande Cartola e ajudou a renovar o samba brasileiro. Boa<br />

parte do que hoje cito sobre ele, me foi dado como informação, pelo também compositor e sambista da cidade o Sr. Geraldo<br />

Santana. Negro elegante, altivo vestido de branco com chapéu, apoiado em sua bengala, um ‘gentleman’, ou melhor: um “Preto<br />

Velho” do Calçadão. Saudoso decano e amigo tardio, mais um dos baluartes da cultura popular juizforana a experimentar o ácido<br />

gosto da invisibilidade propiciada por esta cidade a quem porventura, lhe caia em desalinho. Viveu no Rio de Janeiro por um tempo,<br />

onde conviveu com os bambas. Deu sua contribuição e presenciou um pouco da história recente do samba acontecer.<br />

38


O cineasta pioneiro Carriço 35<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Em película te imortalizou<br />

Décio Lopes* discípulo solícito<br />

O filmocídio em jornal denunciou<br />

Dos políticos quase não declino<br />

Muito dito, pouco foi feito<br />

O que mais galgou fama e fascínio<br />

Mais podia ter feito em seu leito<br />

Teve tempo em que um jardineiro<br />

Resolveu colorir a cidade<br />

Girassóis plantou feito um canteiro<br />

Juntou plantas e publicidade<br />

De um deles, recebestes recente<br />

Um desvio, um golpe certeiro<br />

Quem devia ter sido decente<br />

Dá-lhe um Beijo: lhe faz prisioneiro<br />

35- .João Gonçalves Carriço - figura para esta cidade entre os pioneiros. Não só desta cidade, mas também junto com Humberto<br />

Mauro compõe o seleto grupo de precursores do cinema nacional. Ele filmou por três décadas, de trinta a cinquenta, nossa vida<br />

cotidiana. Produziu documentários inestimáveis para a cidade e o país, entretanto, por ter usado tecnologia da época (acetato)<br />

teve boa parte de seu invejável trabalho atirado como lixo perigoso, incendiário e explosivo nas águas do Paraibuna. *Décio Lopes<br />

jovem jornalista, apaixonado pela sétima arte, principalmente pelo Cinema Novo. Conhecera quando garoto, o velho pioneiro,<br />

amigo de seu pai, nos áureos tempos da Cia Dias Cardoso. Travou uma verdadeira batalha, inclusive com os militares, em plena<br />

ditadura fazendo denúncias na imprensa para resgatar o restante da histórica obra de Carriço. Por sua dedicação, coragem e empenho<br />

aquele trabalho foi salvo, da água e do fogo. Foi por ele catalogado. Uma cópia deste precioso acervo encontra-se à disposição<br />

do público no Arquivo Histórico Municipal. Os originais estão na cidade de São Paulo.<br />

39


<strong>Chicos</strong><br />

Lá da terra dos italianos<br />

Copiaram uma solução clássica<br />

Como Roma limpava seus Domus<br />

Da cidade é a “Cloaca Máxima” 36<br />

Vai daqui sujo e desfigurado<br />

E Matias, o recebe antenado<br />

Arrastando esta sina humilhado<br />

Lá deságuas já bem depredado<br />

Mas, de Simão Pereira passando<br />

Sai de Minas, vai aliviado<br />

Já em outro estado entrando<br />

Lá quem sabe serei bem tratado...<br />

Busca então seu destino final<br />

Em Três Rios fundir ser igual<br />

Reunir com os irmãos no Pontal 37<br />

Atingir o oceano e “ser sal”*<br />

36- Em Roma todo o esgoto da cidade foi destinado ao Rio Tibre. Àquela solução higiênica, avançada para a época dá-se este<br />

nome.<br />

37- Nome do ponto de encontro (Foz ou Barra) onde o Rio se junta com o Piabanha e engrossa o “pai” Paraíba do Sul na cidade<br />

de Três Rios - Termo citado pelo poeta Murilo Mendes na única vez em que nomeia o rio. Chama-se epígrafe sobre o Paraibuna. *<br />

“O rio sonhava Ser sal... Ser mar”. Citação de Aymar de Mendonça Lopes.<br />

40


<strong>Chicos</strong><br />

Esperança que é viva se afirma<br />

E norteia o discurso da gente<br />

A palavra que agora mais rima<br />

É a preservação do ambiente<br />

Estender em seu leito mais pontes<br />

Ajustá-lo à modernidade<br />

Não resulta projetá-lo adiante<br />

Na Agenda da Reciprocidade 38<br />

Despoluído será certamente<br />

As bacias são como um funil<br />

Pois, deságuas em uma vertente<br />

Que afeta em cheio o Brasil<br />

Para sujá-lo pediram licença?<br />

Por progresso se fez tal e qual<br />

E na hora da grande faxina<br />

Só lhe resta ajuda federal?<br />

30- .Refiro-me a Agenda 21. Documento do qual Juiz de Fora é signatária, que firma compromissos e cuidados para com o desenvolvimento<br />

urbano sustentável. (Cá entre nós. Muito pouco observado).<br />

41


<strong>Chicos</strong><br />

Onde estão seus brios pioneiros<br />

Promover iniciativa local?<br />

Partindo das educativas<br />

E findando na empresarial?<br />

Quando vão conclamar as crianças<br />

A limpar o seu imaginário<br />

E buscar mais parceiros, finanças<br />

Pra reverter este tíbio cenário<br />

Rio da Integração Regional<br />

Capital desta Zona da Mata<br />

Sua presença nos dá um sinal<br />

Que futuro, com passado se trata<br />

Portinari deixou um mural<br />

Em parede da nossa cidade<br />

Ele pintava pra bem e pra mal<br />

Os retratos da realidade<br />

O casarão que ao juiz abrigara<br />

Demoliram nos anos quarenta<br />

42


Em seu lugar Boite Sayonara 39<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Junto ao rio a memória sedenta<br />

Em seus cento e setenta quilômetros<br />

Todo um Vale foi fecundizado<br />

E depois de servir sem parâmetros<br />

Toma nome de “Nilo Azarado” 40<br />

Fica dito, o que penso a respeito<br />

E foi fruto da necessidade<br />

Escrevi o que tinha no peito<br />

Compartilho com minha cidade<br />

Por certo não sou ufanista<br />

Cético: alguém já falou<br />

Importa a palavra ser dita<br />

Por isso, agora me vou.<br />

39- Por disputas de influência política com a jovem capital do estado e por absoluta incompetência das autoridades locais, veio<br />

abaixo o Casarão sede, que deu nome à cidade. Situava-se às margens do Paraibuna, em frente à Praça Escravo Teófilo, onde é<br />

hoje a Boate Sayonara, nos fundos da qual, ainda podem-se verificar suas fundações. Pasmem! Foi demolido no ano de 1942.<br />

Alegando falta de recursos para a restauração, as autoridades da capital indicaram sua demolição, o prefeito da época executou.<br />

Nem mesmo os protestos liderados pelo jornalista, escritor e poeta Lindolfo Gomes, do qual, o peso de ser fundador da Academia<br />

Mineira de Letras ajudou na empreitada de proteger tamanho patrimônio simbólico do município. Era um inconteste testemunho<br />

geográfico e histórico, de sermos o Portal Sul das Minas Gerais. Restou-nos, uma imagem (raríssima e preciosa) pouco conhecida<br />

do público feita provavelmente, por Henry Klumb, fotógrafo da comitiva do imperador Pedro II, quando empreendeu uma de suas<br />

visitas à cidade em 1861. Há também uma inédita fotografia dos fundos do casarão, que inclusive, atesta que o prédio estava<br />

muito robusto e não precisava ser demolido. Pertence ao arquivo pessoal do pesquisador Wanderley Thomaz. Fica aqui registrado,<br />

um protesto recessivo-proativo: Algum dia... Quem sabe? Por iniciativa pública ou privada, venhamos a reconstruir, nem que seja a<br />

fachada, daquele emblemático Casarão. Penso que fará muito bem à combalida memória identitária desta cidade.<br />

40- Termo empregado pelo historiador Jair Lessa é “azarado Nilo” ao associar o nosso Paraibuna com o fecundo rio do Egito. Faz<br />

um paralelo muito interessante entre os dois, usando de fina ironia, que lhe é muito peculiar. Diz ele, que enquanto o Nilo ao<br />

inundar suas margens traz fertilização e prosperidade: o Paraibuna só traz sapos.<br />

43


<strong>Chicos</strong><br />

Não<br />

nada normal<br />

natural mesmo<br />

nada<br />

No frango dependurado<br />

no abatedouro<br />

ainda pia o pintainho<br />

44


No posto de atendimento<br />

<strong>Chicos</strong><br />

corpo jovem se ajeita<br />

contendo vontades e<br />

necessidades<br />

Na rua a pressa<br />

esconde rosto<br />

do passante ao lado<br />

até o perdeu, cara! passa tudo.<br />

O capital<br />

em saltos acrobáticos<br />

acumulando números<br />

prensa os corpos<br />

frangos+jovens+velhos+tudo<br />

humanos ou não<br />

o tempo jaz<br />

junto de tudo<br />

preso às<br />

mercadorias<br />

Ora, o tempo<br />

também ele<br />

só existe como<br />

criação do homem.<br />

45


Da convivência<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Não abaixar a cabeça.<br />

Violência não se enfrenta com violência.<br />

Buscar apoio nos companheiros.<br />

Evitar estar só.<br />

Com vizinhos, os circundantes,<br />

os próximos<br />

afixar<br />

laços de solidariedade.<br />

(Isso se faz com<br />

afeto e diálogo)<br />

- Sim,<br />

é pouco.<br />

A solidão do egoísmo tem poder.<br />

É preciso mais<br />

e mais não sei.<br />

Seja criado na hora:<br />

Então, humildade<br />

para receber<br />

o novo.<br />

Belchior já cantava:<br />

o novo sempre vem<br />

46


Esquecimento<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Disso não me esqueço:<br />

Como era forte minha Vale<br />

Doce meu rio<br />

Fértil meu vale.<br />

FHC destruiu minha Vale<br />

A vale deles<br />

destruiu meu rio<br />

O rio matou<br />

peixes e várzeas.<br />

Levou fome de<br />

Minas até ao oceano<br />

Minha Vale era<br />

do Rio q foi Doce.<br />

Então, não me esqueço.<br />

47


Recordando<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Olho para traz<br />

o tempo e<br />

afirmo: não somos inúteis.<br />

Não fomos.<br />

Fizemos muito.<br />

Ainda q só<br />

pequena parte do sonhado.<br />

Ora,<br />

é grande nosso sonho:<br />

paz/justiça/igualdade<br />

comida na mesa de todos<br />

teto pra cada um de nós<br />

O resto é felicidade:<br />

cada um q cultive a sua.<br />

48


Banal<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Pior é a banalização do mal.<br />

Tão banal que o vemos assim<br />

Normal<br />

Natural<br />

Que nem<br />

tiririca na horta<br />

49


Noite monótona<br />

<strong>Chicos</strong><br />

aqui explodem bombas<br />

passam jatos<br />

drones<br />

alumiando o céu<br />

com fósforo<br />

líquido cadente<br />

aqui petardos<br />

destroem direitos<br />

agravando<br />

deveres e sobrevivências<br />

ratos mastigam<br />

sangram os fracos,<br />

arrotam arrogância<br />

em risos cínicos.<br />

onde monótona noite,<br />

cara-pálida?<br />

50


<strong>Chicos</strong><br />

: no brilho frio da tv<br />

na luz morta<br />

do tablet<br />

na água quente do chuveiro<br />

na masturbada solidão<br />

do teu closet ?<br />

ainda monótona<br />

essa tua noite,<br />

cara?<br />

até quando?<br />

51


••••t————<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Está difícil<br />

existem pesadelos<br />

que não deixam dormir<br />

então preste atenção desta vez.<br />

Vida não costuma dar outra chance.<br />

Luta começa<br />

quando o primeiro<br />

escravo se rebela:<br />

A vida começa.<br />

Cortesia é para quem é da corte.<br />

Porrada é pra quem é do povo.<br />

Viver é lutar.<br />

52


<strong>Chicos</strong><br />

Como um coquetel molotov<br />

o único que tenho pra lançar<br />

com a força de<br />

tantos anos bem lutados<br />

e dessa esperança contra<br />

todo desespero em nós plantado<br />

dentro do meu peito<br />

só nasce amor e alegria<br />

com risos de crianças.<br />

Morre a esperança quando a gente morre?<br />

Ou<br />

Morremos nós quando ela morre?<br />

Está difícil<br />

existem pesadelos<br />

que não deixam dormir,<br />

mas,<br />

estamos vivos.<br />

A luta é antiga.<br />

É sempre a vida.<br />

<strong>53</strong>


<strong>Chicos</strong><br />

Emerson Teixeira<br />

Cardoso<br />

Nasceu em Cataguases MG, é autor de<br />

Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da<br />

Rua Alferes e outras crônicas (20<strong>06</strong>). Traduziu<br />

O retorno do nativo de Thomas Herdy.<br />

Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se<br />

em Estilete (1967), mimeografado,<br />

editor/fundador do Delirium Tremens (1983)<br />

e Trem Azul (1997).<br />

The absent *<br />

Those who go, go fast<br />

Yesterday she still smiled on the counch<br />

Yesterday she stiill said good bye from the window<br />

Yesterday she still wore the light pink dress<br />

Those who go, go fast<br />

Her big black eyes still shone<br />

Her sweet straight voice still spoke<br />

Her dark hands had blessed gestures<br />

However she was was not in the party today<br />

Not a trace of her indeed<br />

Surely her remembrance not even came like the guests<br />

54


<strong>Chicos</strong><br />

Some of them, almost all, cold and unknown<br />

Those who go, go fast<br />

Faster than the birds that fly on the sky<br />

Faster than the time itself<br />

Faster than the men kindness<br />

Faster than trains running in the dark nights<br />

Faster than the fugitive star that barely makes a trace in the sky<br />

Those who go, go fast<br />

Only in the poet’s heart, wich is diferente from the other hearts<br />

Only in the ever wounded heart of the poets<br />

Is that don’t go faster those who go.<br />

Yestarday she smiled still on the counch<br />

And her heart was big and unhappy<br />

Today in the party se was not<br />

Not even her remenbrance<br />

go fast, so fast those who go.<br />

* A Ausente - Versão para o inglês do poema<br />

original de Augusto Frederico Schimidt<br />

55


<strong>Chicos</strong><br />

Leonardo Almeida<br />

Filho<br />

Nasceu em Campina Grande, 1960 (PB),<br />

professor universitário, escritor, ensaísta,<br />

reside em Brasília desde 1962. Mestre em<br />

literatura brasileira pela Universidade de<br />

Brasília, publicou, em 2008, Graciliano Ramos<br />

e o mundo interior: o desvão imenso do<br />

espírito (EdUnB), entre outros.<br />

A festa dos cães<br />

Ainda dói, ele pensa, mas é uma<br />

dor que parece não ter lugar, que só dói<br />

assim, pulsando, latejando dentro da gente.<br />

Dor mastigada, ele range os dentinhos.<br />

Dor que engasga a gente, ele vislumbra.<br />

Encolheu-se todo, parece uma conchinha<br />

de carne, um bichinho indefeso, e sente<br />

muita dor. Ai, ui, suspira. Não está na marca<br />

do cinturão nas costas, a dor, nem nos<br />

vergões vermelhos nas canelas, mas estranhamente<br />

há dor em toda parte e em lugar<br />

nenhum. Ai, ai, ele geme baixinho.<br />

Não chora, não deixou cair uma lágrima<br />

sequer, nada, nada, seco. Engoliu o choro<br />

que ainda tentou brotar nos olhos, engoliu<br />

com ódio a lágrima que não verteu e desceu<br />

rasgando a garganta pra sumir-se no<br />

mais sem fundo escuro de suas partes<br />

com um gosto forte de sangue que não<br />

há, gosto amargo, sabor de coisa indesejada.<br />

Abandonou-se ao silêncio, deixandose<br />

levar pelos pensamentos que ferviam,<br />

primeiro em fiapos, depois numa grande<br />

tessitura de rancor e desejos de vingança.<br />

Ai, ai, ele bramia e inconscientemente cultivava<br />

ódio.<br />

Naquela tarde, quando o pai chegou<br />

do trabalho um pouco mais cedo, foi encontrá-lo<br />

no fundo do quintal brincando<br />

com o filho do vizinho. Serginho, três anos<br />

mais novo que ele que acabara de completar<br />

nove anos de pequenos recalques e<br />

poucos risos, estava em pé, calção escolar<br />

de pano azul arriado, um sorriso marotamarelado<br />

estampado na face morena de<br />

anjo tupiniquim. Ele, sentado no chão diante<br />

do amigo, sentia uma sensação gostosa<br />

e inexplicável de examinar com uma<br />

fome esquisita a genitália de Serginho,<br />

que se deixava ingenuamente manipular.<br />

56


<strong>Chicos</strong><br />

Com muito cuidado, absorto, alheio às coisas<br />

do mundo ao redor, tocava com visível prazer<br />

nas pequenas partes expostas. Nessa tarefa,<br />

que cumpria com extrema felicidade, observava-se<br />

com deleite, concentrando-se atentamente<br />

em seus próprios gestos, sentindo a<br />

boca encher-se de saliva. Não conseguia entender<br />

de onde vinha aquele desassossego<br />

feliz, aquela espécie de coceira gostosa, um<br />

comichão esquisito, uma necessidade...<br />

Quando convidou o vizinho para brincar<br />

em casa, havia nele a vontade de saciar aquele<br />

desejo que, já há alguns dias, nutria de fazer<br />

justamente aquilo que o pai flagrara com<br />

espanto e cólera. Ainda ontem, ele relembra,<br />

quando viu Serginho mijando na rua enquanto<br />

brincavam de pique-esconde, pegou-se<br />

cismando a olhar com jeito diferente aquela<br />

cena que já presenciara outras tantas vezes,<br />

com outros amigos inclusive, e que, no entanto,<br />

nas diversas vezes presenciadas anteriormente,<br />

nunca antes adquirira esse tom de excitação,<br />

de vontade. Os meninos da rua costumavam<br />

jogar futebol todas as tardes e era comum<br />

mijarem em grupo, sorrindo, brincando<br />

uns com os outros, sem qualquer visgo no<br />

olhar, inocentes. Ele não, passou a perceberse<br />

diferente dos demais. A exposição natural e<br />

espontânea da genitália dos amigos o deixava<br />

vidrado, disfarçando o olhar curioso que buscava<br />

a cena. Não sabia o que se passava, não<br />

tinha ideia do que era aquilo, por que surgia<br />

aquele movimento tão surpreendente dentro<br />

do seu coração? Claro que havia nele a desconfiança<br />

de que aquilo não era abençoado<br />

por ninguém, quase uma certeza de que tal<br />

desejo deveria ser ocultado dos olhares, escondido<br />

de todo mundo. Ouvia comentarem,<br />

com expressões de entojo, sobre o Sidnei, filho<br />

de dona Dalide, a costureira que morava<br />

numa rua próxima à dele, que fazia essas coisas<br />

feias com outros meninos. Um perdido.<br />

Pelo tom das conversas, das censuras, ele sabia<br />

que não deveria caminhar por essa via,<br />

para não perder-se também. Era preciso cuidado,<br />

dizia uma voz dentro dele. Em seus nove<br />

anos, formava-se a criatura dissimulada<br />

que iria carregar vida a fora, mas naquele dia,<br />

naquele exato momento, deixou-se levar por<br />

uma força muito maior que o medo. Naquela<br />

tarde, entregou-se ao desejo e à vontade de<br />

experimentar.<br />

Não houve tempo para fugir do golpe.<br />

O cinturão, guiado pela mão paterna, marcoulhe<br />

as costas num estalo seco e asustador. Pá.<br />

Quando se deu conta do que estava acontecendo,<br />

percebeu que a dor na carne vinha<br />

acompanhada por um sentimento de impotência<br />

absoluta. A culpa e o medo lhe foram<br />

inoculados a cada cipoada que recebia daquele<br />

familiar estranho ensandecido. As únicas<br />

palavras que o pai dispendeu foram: Pra<br />

casa, Serginho. Agora! O resto foi silêncio de<br />

língua e muita fala do couro furado do cinturão<br />

em sua pelezinha infante. O pai, descontrolado,<br />

desferiu-lhe uma surra tremenda, sem<br />

dizer palavra alguma. Agora, encolhido ali na<br />

cama, no cantinho escuro do quarto, ele geme<br />

baixinho a sua dor. Ai, ui, treme mais de<br />

raiva que de frio.<br />

O pai é um sujeito taciturno, normalmente<br />

silencioso, dado a poucos prazeres e poucas<br />

palavras. Fala pouco, come pouco, dorme<br />

pouco. Tudo nele é pouco e parco. Vida comezinha,<br />

metódica. A mãe é mulher de fé, de<br />

cama, mesa e banho. Ao contrário do pai, ela<br />

é muito afetuosa com os filhos. Ele não. Nunca<br />

foi de muito chamego com a prole. Rígido<br />

na criação dos três meninos, não releva falhas,<br />

não perdoa deslizes, não esquece mal-feitos.<br />

Dividindo seu tempo entre o trabalho como<br />

estoquista numa grande empresa de laticínios,<br />

e as horas de televisão, quando assiste<br />

todos os noticiários e programas esportivos,<br />

leva a vida numa linha reta, quase sem alterações.<br />

Homem de pouquíssimas surpresas.<br />

57


<strong>Chicos</strong><br />

É uma figura previsível e é justamente por<br />

esse motivo que ele lembra claramente daquele<br />

domingo excepcional. Daquele dia que<br />

lhe rendeu calafrios por um bom tempo. A<br />

mãe saíra para a missa com os irmãos e ele,<br />

por conta de uma gripe, ficou em casa a base<br />

de remédios caseiros com o pai que lia o jornal.<br />

Sentado na varanda, ele observava os<br />

dois vira-latas da casa, Rex e Ringo, brincando<br />

no gramado, na frente do lote, enquanto o<br />

pai, impaciente, os enxotava exigindo silêncio.<br />

Foi quando o Ringo montou no Rex, como se<br />

monta numa cadela no cio, e começou um vai<br />

-e-vem sexual explícito. Ele achou engraçado<br />

tudo aquilo, engraçado mas não surpreendente,<br />

pois já flagrara os cães nesse tipo de<br />

brincadeira que ele julgava sem maldade alguma.<br />

Assustou-se ao ouvir o pai desferir um<br />

palavrão, coisa inusual em sua boca. Pressentiu<br />

o pior quando o viu jogar com violência o<br />

jornal sobre a cadeira. A festa dos cães havia<br />

despertado algum demônio na cabeça do pai<br />

e desencadeado alguma coisa muito ruim no<br />

seu comportamento, pois levantou-se, foi à<br />

cozinha e voltou com uma faca enorme, aquela<br />

muito afiada que a mãe usava para cortar<br />

carne. Os cães não perceberam sua rápida<br />

aproximação e não houve tempo para reação.<br />

Chutou violentamente Ringo, que saiu ganindo<br />

sua dor, e segurou à força o pobre Rex,<br />

que inutilmente tentou fugir. O animal esperneou,<br />

desesperado, tentando desvencilhar-se<br />

da mão poderosa do seu captor. Tudo em<br />

vão. Estava sacramentado. O homem, sem<br />

qualquer sinal de simpatia, decidido e inexorável<br />

como um carrasco, cortou a garganta<br />

do cão num golpe, jogando-o depois no chão<br />

como um pedaço de carne, uma peça de pelo<br />

negro, um molambo. O cachorro tremia, como<br />

galinha abatida, morrendo aos poucos,<br />

engasgando-se no próprio sangue, que também<br />

jorrava no gramado. O olhar do pai era o<br />

mesmo desta tarde, ele relembra sob calafrios,<br />

quando o flagrou com o Serginho no<br />

quintal: olhar de ódio, de censura absoluta, de<br />

nojo, de desprezo. Olhar de quem busca exterminar,<br />

eliminar, destruir.<br />

Quando a mãe voltou da missa, encontrou<br />

o marido cavando uma cova para o Rex,<br />

enterrando com o cão os sonhos de afeto do<br />

filho do meio, que a tudo assistiu calado,<br />

ocultando a própria dor. Ele aprendeu assim,<br />

desde miudinho, a não esperar absolutamente<br />

nada da figura do pai. Agora, sente dores que<br />

não sabe bem quando vão passar ou mesmo<br />

se vão passar algum dia. Talvez sim, transformem-se<br />

em outra coisa, tão ou mais incômoda<br />

que a dor. Uma coisa entranhada na alma,<br />

como pedra no sapato, fiapo de carne no<br />

dente cariado. Uma coisa que, mais que incomodar,<br />

provocará, instigará, desconcertará.<br />

Sim, por ora, nesta noite terá sonhos muito<br />

estranhos e acordará marcado irremediavelmente,<br />

mais sério, menos alegre e mais convicto<br />

de que viver é mesmo complicado. Por<br />

enquanto ele geme baixinho pela dor nas costas,<br />

no lugar onde a fivela do cinturão lhe<br />

bordou um hematoma. Ai, ui.<br />

58


<strong>Chicos</strong><br />

José Antonio Pereira<br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />

casa da Rua Alferes e outras crônicas (20<strong>06</strong>) e<br />

autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

Já te contei sobre o pior dia da minha vida?<br />

Não há nada nobre em ser superior ao seu semelhante.<br />

A verdadeira nobreza é ser superior ao seu antigo eu.<br />

Ernest Hemingway<br />

Nico sai do bar, bêbado, tropeça no<br />

desnível da calçada e enfia o pé num buraco.<br />

O corpo é projetado para a rua; um carro<br />

numa buzina desesperada, sem tempo de<br />

desviar, o joga de volta à calçada alguns<br />

metros adiante. A voz soa alta e poderosa.<br />

– Cidade escrota! No mesmo instante, o<br />

burburinho das mesas na calçada do bar silencia<br />

e todos ouvem. – Prefeito filadaputa!<br />

Isto aqui é o cu do Judas! Um transeunte<br />

gargalha e debochadamente aponta na direção<br />

do bêbado no chão. Ele dispara, – Tá<br />

rindo do quê, seu palhaço! Sem forças para<br />

se mover, permanece estatelado no chão.<br />

Todos o olham, mas ninguém move um<br />

músculo para ajudá-lo. Ele, entre gemidos e<br />

resmungos, continua desfiando seu rosário<br />

de xingamentos contra a cidade e os seus<br />

moradores. – Povinho fodido! Uma mão o<br />

acolhe e ele silencia. Pela leveza do toque,<br />

sabe de quem é. A voz torna-se melosa pelo<br />

álcool, – Só você mesmo meu anjo da<br />

guarda! Alguma boa alma, com certeza<br />

não estava no bar, acionara o SAMU e uma<br />

ambulância aparece para resgatá-lo. A mão<br />

acolhedora era de Maria que passava casualmente<br />

por ali. Nutria por ela, um carinho<br />

muito grande e de há muito tempo. Não<br />

aceita que ela o acompanhe ao prontosocorro.<br />

O resto de autoestima que tinha e<br />

o respeito por aquela mulher, não permitiram.<br />

Maria caminha pela avenida, vai visitar sua<br />

amiga Marília, penalizada sorri. – Tenho boas<br />

lembranças daquele safado. Balbucia<br />

com certa ternura. Por mais que tente esquecê-lo,<br />

não consegue.<br />

Na adolescência, rejeitada pelos garotos e<br />

enjeitada pelas meninas, Nico fora a única<br />

pessoa que lhe dera atenção. Aquelas delicadezas,<br />

– Primeiro as damas! Olá Maria,<br />

como vai? Belo vestido Maria! Você está<br />

muito bonita. As provocações: – E aí Maria?<br />

Com este decote... cheia de más intenções!<br />

Está de assanhamento com alguém,<br />

59


<strong>Chicos</strong><br />

Nico tinha mais de vinte anos, trabalhava<br />

num escritório de contabilidade e era mais<br />

velho do que ela quatro anos, talvez cinco<br />

ou até mais. A raiva retorna, quando brota<br />

da memória as vezes sem conta em que ele<br />

embriagado a indagava. – Já te contei sobre<br />

o pior dia da minha vida?<br />

Apesar das inúmeras tentativas de esquecêlo,<br />

ele coabita com a literatura sua mente.<br />

Nico gostava da literatura norte-americana.<br />

Dizia que todo bom livro americano acabava<br />

virando um filme. Isto facilitava uma melhor<br />

compreensão da literatura deles. Apresentara<br />

a Maria os poetas Wittman e<br />

Ginsberg; os prosadores Hemingway,<br />

Faulkner, Steinbeck. Maria tinha calafrios<br />

era com Dorothy Parker, de quem só conseguira<br />

ler um livro de contos. E foi o que bastou.<br />

Nico já era um alcoólatra. Sóbrio, conversavam<br />

sobre seus autores favoritos. Maria se<br />

discordasse dele sobre determinado autor,<br />

era imediatamente cortada. – Sua fedelha!<br />

Foi alfabetizada ontem e já se acha catedrática<br />

em literatura. Quando queria encerrar<br />

certas discussões com ele, não se fazia de<br />

rogada. – Lembra da Hazel Morse? E citava<br />

um trecho de Dorothy Parker – Ela começou<br />

a beber sozinha, aos poucos, um drinque<br />

aqui e outro ali o dia todo... Sozinha,<br />

apenas limava o fio da faca, vivia numa bruma<br />

alcóolica. Era o que bastava. Ele ficava<br />

fulo de raiva. – Você não entendeu merda<br />

nenhuma. Né mesmo? E o tonto aqui sou<br />

eu. Vai embora, vai! Você só me amola.<br />

Maria, apesar da repulsa ao alcoolismo,<br />

adorava Nico e intimamente cultivava uma<br />

simpatia pela Hazel. Como também suspeitava<br />

que a big loira era a mulher dos sonhos<br />

dele, tal era o brilho que surgia em seu<br />

olhar de peixe morto, quando se falava dela.<br />

O que ela mais queria naquela ocasião era<br />

ser como a personagem de Dorothy. Já que<br />

a loira era daquelas de deixar homens de<br />

quatro abanando o rabo. – E não sei por<br />

que vocês parecem que só têm olhos para<br />

as loiras. Nico rindo, – Bobinha, somos filhos<br />

de rudes portugueses que fugiram da<br />

fome, escravos negros arrancados à força<br />

da África e uma pitada amarela dos puris e<br />

coroados. Somos mestiços! Loiras não fazem<br />

parte deste nosso mundinho. São aves<br />

exóticas a voar pela nossa imaginação após<br />

uma sessão de cinema.<br />

Certa noite, Maria voltava do footing na<br />

praça, suas amigas a abandonaram, até Marília<br />

viajara. Combinaram de após algumas<br />

voltas pela praça irem a uma brincadeira<br />

dançante na casa de alguém. Não a esperaram.<br />

Vinha pela rua frustrada e meio chorosa,<br />

ao passar pela casa de Nico, das gretas<br />

da janela surgem alguns gemidos. Apurou<br />

os ouvidos e percebeu que eram de dor.<br />

Chamou, – Nico! Ô Nico? O que aconteceu?<br />

Entre dentes, – Um segundo só! A janela se<br />

abriu uma chave é jogada para ela seguida<br />

de uma voz imperativa. – Entre!<br />

– O que houve? – Estava indo para uma<br />

festa, lá no estacionamento da CIMA, e enfiei<br />

o pé num buraco da obra daquele hotel<br />

na avenida. Mas já cuidaram de mim, ainda<br />

dói, mais alguns tragos de uma boa pinga e<br />

estarei anestesiado. – Te deixaram sozinho<br />

aqui? – Não, meus pais viajaram de manhã.<br />

Foram visitar alguns parentes em Juiz de<br />

Fora. Pegue aqueles papéis ali! Vou ler, para<br />

você, trechos de um poema do Thomas<br />

Eliot. Passa a mão numa garrafa de cachaça<br />

e segue manquitolando até o quarto, ajeitase<br />

numa cama imensa. Toma um gole, percebe<br />

Maria reticente na porta do quarto<br />

com um punhado de papéis na mão. – Ô<br />

Maria vai ficar plantada aí? Vem logo e senta<br />

aqui na cama. Maria caminhou receosa<br />

60


<strong>Chicos</strong><br />

e para quebrar o medo, – Nossa, que cama<br />

enorme? – Esta cama era dos meus avós.<br />

Depois que cresci, ela passou a ser minha.<br />

Aqui foi feito meu pai, minhas tias e não sei<br />

mais quem. – Nico, que falta de respeito.<br />

– Maria isto é uma cama, não é um altar de<br />

igreja. Puxa os papeis de Maria e continua.<br />

– Um amigo copiou para mim essa tradução<br />

do poema The Love Song of J. Alfred Prufrock.<br />

Outra golada de cachaça e começou.<br />

– Sigamos então, tu e eu, / Enquanto o poente<br />

no céu se estende / Como um paciente<br />

anestesiado sobre a mesa; / Sigamos por<br />

certas ruas quase ermas, .... Enquanto ele lê,<br />

Maria observa os braços e o peito que está<br />

sem camisa, ele está só de calção. Nunca o<br />

tinha visto assim e passa a olhá-lo de outra<br />

forma, começa a ver uma masculinidade<br />

que começa a mexer com ela. .... E já conheci<br />

também os braços, a todos conheci /<br />

– Alvos e desnudos braços ou de braceletes<br />

anelados / (Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos<br />

se quedam / Com sua leve penugem<br />

castanha!) / Será o perfume de um vestido /<br />

Que me faz divagar tanto? ... Maria não<br />

conseguia se concentrar no poema; estava<br />

completamente atraída pelo corpo de Nico.<br />

Não se conteve, se atirou sobre ele. Nico,<br />

sob o efeito do álcool, não se fez de rogado.<br />

Maria completamente nua, e um homem<br />

à sua mercê, viveu tudo que sua imaginação<br />

viera criando sobre sexo nas conversas<br />

com suas amigas e nos livros que lia<br />

em sua cama enquanto se masturbava.<br />

Sem saber a razão, ela nunca mais teve coragem<br />

de tocar no assunto do que acontecera<br />

naquela noite. Esperava que Nico o fizesse.<br />

Queria sentir o prazer de ter um homem<br />

cheio de desejos a abordando. Mas o<br />

silêncio dele a desconcertava e a enchia de<br />

dúvidas. Dava a ela uma aterrorizante sensação<br />

de que ele não lembrava de nada.<br />

Ela desistira de contar até para Marília sobre<br />

aquela noite, ninguém acreditaria. E a maledicência<br />

de algumas pessoas transformaria<br />

aquilo numa grande dor de cabeça. Continuou<br />

esperando por Nico. Até que um dia<br />

ele a convida para emprestar-lhe alguns livros.<br />

Na varanda da casa, esparramado numa<br />

espreguiçadeira, ele a recebe. – Já te<br />

contei sobre o pior dia da minha vida? Já<br />

meio bêbado ele continua. – Fui convidado<br />

para uma seresta que organizaram lá no estacionamento<br />

daquela revenda de automóveis<br />

que faliu. A CIMA, lembra dela? Vinha<br />

eu todo serelepe pela noite, perfumado até<br />

os ossos, quando ao passar pela obra de<br />

um hotel, na escuridão, aqueles tapumes<br />

jogando a gente da calçada para a rua, enfiei<br />

o pé num buraco. Torceu de tal forma<br />

que até o Aquiles, aquele lá do calcanhar,<br />

urrou de dor. A dor foi tanta que chorando<br />

peguei um taxi para casa. De lá pra cá tenho<br />

uma verdadeira paranoia com calçadas quebradas.<br />

Naquela noite eu ia conhecer o objeto<br />

dos meus maiores desejos. Ela já chamava<br />

minha atenção pelas ruas há muito<br />

tempo. Um dia, ela passou por mim e um<br />

amigo. Comentei o tanto da atração que tinha<br />

por ela. Ele me passou a ficha toda. Disse<br />

mais ainda. – Te apresento numa seresta<br />

que uma amiga está organizando lá no estacionamento<br />

da antiga CIMA. Elas são primas.<br />

E a perdi por causa de um buraco. Pode<br />

uma merda destas? Maria queria matálo.<br />

– Eu te odeio Nico! Com a voz amolecida<br />

pelo álcool ele a retruca com o clichê, –<br />

Amor e ódio são as duas faces da paixão. E<br />

ria. Maria levanta-se, deixa os livros na cadeira<br />

onde estava, – Você Nico, é um grande<br />

filadaputa! E saí. Na rua promete. –<br />

Nunca mais quero olhar na cara deste cretino.<br />

61


<strong>Chicos</strong><br />

Maria chegara à cidade na noite de sexta-<br />

-feira. Viera passar um fim de semana com<br />

familiares após participar de um colóquio<br />

sobre literatura norte-americana numa Universidade<br />

em Juiz de Fora. Já era tarde<br />

quando ligou para Marília, a amiga desde a<br />

adolescência, a única que permanecera toda<br />

a vida ali, onde nasceram. Combinam almoçar<br />

juntas no sábado e passar a tarde num<br />

bar bebericando uma cerveja e colocando a<br />

conversa em dia. No sábado pela manhã<br />

Marília liga, – Mudança de planos minha<br />

amiga. Sairemos à noite, tenho que ir a um<br />

velório. Acho que você não vai querer me<br />

acompanhar. – Quem morreu? Eu conheço?<br />

– Conhece sim! É o Nico. Marília rompe o<br />

silencio. – Maria? Ô Maria, me fale alguma<br />

coisa. E numa voz trêmula, – Claro que vou.<br />

Passe aqui na casa de minha mãe, que vou<br />

contigo. – Acho melhor não. – Marília se<br />

não quer ir comigo, eu vou só. – Tudo<br />

bem! Por volta de meio dia, te apanho na<br />

casa de sua mãe. As duas amigas chegam<br />

ao velório. Abraçadas param diante do caixão,<br />

Maria não acredita no que está vendo.<br />

– Marília? Este não é o Nico! – É sim Maria!<br />

Uma cirrose hepática e um enfisema pulmonar<br />

o destroçaram. Maria está trêmula, a<br />

amiga a apoia para que possa recobrar-se<br />

do impacto, enquanto fala ao pé do ouvido.<br />

– Faz duas semanas que fui visitá-lo, após<br />

insistentes recados por ele enviados a mim.<br />

– E o que ele queria contigo. – Vamos lá<br />

para fora. Saíram. As duas sentaram num<br />

banco vazio, o mais longe possível do velado.<br />

E Maria insistia em saber o que Nico<br />

queria tanto falar com Marilia. – Você e ele<br />

nunca se falaram. Por que deste desejo dele<br />

em falar contigo? Não faz nem um sentido.<br />

– Ele me contou um monte de patacoadas.<br />

Encheu meu saco com cinema e escritores<br />

norte-americanos. Depois de enrolar bastante,<br />

disse que os médicos o liberaram da<br />

internação para que ele morresse em casa,<br />

atenderam a um insistente pedido dele. E<br />

ele queria que eu transmitisse a você algo<br />

que achei muito estranho. – E o que é?<br />

Conte-me logo. – Depois da minha morte<br />

ao encontrá-la, diga-lhe apenas isto: – Se as<br />

duas pessoas se amam uma à outra, não<br />

pode haver final feliz. Nada mais que isto.<br />

– Filadaputa! Esta é uma das primeiras citações<br />

de Ernest Hemingway que ele me<br />

apresentou. Ele a citava tanto, que feito<br />

uma maritaca a repito até hoje. Era isto o<br />

que tinha para me dizer este filadaputa. E<br />

desata a chorar. Toma fôlego, - Aprendi a<br />

xingar filadaputa deste jeito com este grandíssimo<br />

filadaputa. – Credo Maria! Que tanto<br />

filho da puta? Maria volta a chorar. Marília<br />

pega a amiga pela mão e a retira dali. E<br />

vai pensando no juramento que fizera a Nico<br />

de não contar à amiga tudo que ele dissera.<br />

Uma lágrima brota em Marília ao lembrar<br />

das últimas palavras de Nico naquele<br />

encontro. – O ódio de Maria é a minha penitência.<br />

Por todos os pecados que cometi.<br />

Nunca diga nada do que te contei a ela.<br />

62


<strong>Chicos</strong><br />

Luiz Roberto Guedes<br />

Nasceu em São Paulo (SP), poeta e escritor,<br />

escreve para gente grande e gente pequena.<br />

Publicou uma série de livros, principalmente<br />

do gênero fantástico: Treze Noites de Terror<br />

(2002), Anjos do mar (2002), Armadilha para<br />

lobisomem (2005), O livro das mákinas malukas<br />

(2007), Meu mestre de história sobrenatural<br />

(2008), e A Saga do Gato Negro (2016).<br />

Publicou recentemente os contos de Miss Tattoo<br />

– uma quase novela (2016) e o poemário<br />

bilíngue (português/italiano) Erosfera (2017).<br />

Como ser ninguém na cidade grande<br />

Foi o último a desembarcar do<br />

ônibus. Fatigado, frágil como um esqueleto<br />

de vidro trincado. Em sua idade, qualquer<br />

viagem era um desconforto. Rebocando<br />

a mala com rodinhas, cruzou lentamente<br />

o terminal rodoviário. Desabou<br />

num táxi, mandou tocar para o mesmo<br />

hotel de sua última vez em São Paulo, doze<br />

anos atrás.<br />

No rádio, um pastor explicava como<br />

era fácil para o fiel depositar seu dízimo<br />

na conta corrente da igreja, enquanto o<br />

passageiro se dava conta da multiplicação<br />

das manadas de automóveis, motocicletas,<br />

ônibus, caminhões.<br />

O cinza do céu se esfumava no fim da<br />

tarde. Painéis eletrônicos eufemizavam:<br />

QUALIDADE DO AR: REGULAR. E multidões<br />

no compasso da metrópole, em marcha<br />

acelerada nas calçadas. No entanto, o<br />

velocímetro do táxi mantinha-se abaixo de<br />

quarenta por hora, o motorista embalado<br />

pelo gospel do rádio, entregue sua cruz<br />

na mão de Jesus, o amor de Jesus vai curar<br />

sua dor.<br />

Atazanado pelo coro ululante, martelado<br />

por guitarras, buzinas, motores, sirenes,<br />

odores, o velho sentiu a dor de cabeça<br />

como um prego no crânio.<br />

No hotel, deitou-se pouco depois das<br />

dez da noite. Tentou não pensar na operação<br />

do dia seguinte. Mas a ideia de que<br />

um fantástico canhão de raios indolores<br />

desintegraria os cálculos em seus rins o<br />

manteve acordado.<br />

Então, uma britadeira começou a fraturar<br />

asfalto ou cimento nas proximidades<br />

do hotel.<br />

63


<strong>Chicos</strong><br />

Chapas de metal foram atiradas ao chão<br />

com fragor. Em contraponto, uma serra<br />

elétrica somou-se ao concerto diabólico.<br />

Um compressor trepidava sem pausa, basso<br />

profondo, obturando mínimos interstícios<br />

de silêncio.<br />

Agoniado, vedou os ouvidos com chumaços<br />

de algodão. Inútil. O pandemônio<br />

continuou até três e meia da manhã, enquanto<br />

ele amaldiçoava o antropóide administrativo<br />

que lhe infligia aquele suplício,<br />

brutalizando o sono dos cidadãos<br />

contribuintes.<br />

Pela manhã, atordoado e em jejum,<br />

apresentou-se no hospital. Teve que vestir<br />

uma camisola curta, que expunha suas<br />

pernas secas e peladas de ancião, encordoadas<br />

de veias grossas. Foi perscrutado<br />

por máquinas de última geração, como<br />

enfatizou o médico, e alojado num quarto<br />

onde havia outro paciente. Operado sabese<br />

lá de quê, esse homem, tão velho<br />

quanto ele mesmo, gemia sem descanso,<br />

“puta que pariu, Deus, como dói, caralho”.<br />

Apesar do mau presságio, o ultrassom<br />

realizou seu ato de magia tecnológica. Um<br />

bombardeio cruzado de energia ondulatória<br />

volatilizou os cristais em seus rins.<br />

O senhor está novo em folha, disse convencionalmente<br />

o médico.<br />

Clichê de filme B, doutor, o velho disparou.<br />

No dia seguinte, sentiu-se bem o bastante<br />

para tratar de outro assunto. Carregando<br />

um grande envelope pardo, desceu<br />

do táxi diante do edifício refulgente que<br />

abrigava a nova sede da HB Editorial. Um<br />

cubo de vidro de vinte andares, espelhando<br />

prédios distorcidos do outro lado do<br />

rio. O rio imóvel, gelatinoso, mingau negro<br />

estagnado entre duas vias marginais.<br />

O fedor do rio morto evolava em meio ao<br />

tráfego. Viu uma estrutura em construção<br />

lá no extremo da avenida. Os fundamentos<br />

de uma ponte gigantesca, cinematográfica,<br />

coisa de cartão-postal. Era visível<br />

que aquilo estava inteiramente fora da escala<br />

do entorno. Um brontossauro entre<br />

capivaras. O ronco de motores o fez olhar<br />

para o céu. Observou três helicópteros parados<br />

no espaço, feito libélulas em fila, como<br />

aguardando vaga para pouso num heliponto.<br />

“Aqui tem até congestionamento aéreo”,<br />

o velho bufou.<br />

Colocou os óculos escuros e caminhou<br />

para o cubo de vidro.<br />

No balcão da portaria, uma placa de<br />

metal disse em caixa alta: IDENTIFIQUE-SE:<br />

APRESENTE DOCUMENTO. Lembrando<br />

que as placas inglesas sempre pediam<br />

“por favor”, submeteu-se aos procedimentos<br />

de uma das recepcionistas. Fotografado<br />

por uma lente-botão no topo de um<br />

fino caule metálico, viu seu rosto, baixorelevo,<br />

granulado na tela do computador.<br />

A secretária da HB recebeu com estranheza<br />

aquela figura anacrônica. Destoava<br />

do design futurista da recepção. Um velhote<br />

de crespos cabelos brancos, a cabeça<br />

parecendo grande demais para o tronco<br />

franzino, o jaquetão que já devia ser<br />

peça de museu, a gravata-borboleta que,<br />

pelo aspecto, vinha passando de pai para<br />

filho havia gerações.<br />

64


<strong>Chicos</strong><br />

O senhor deseja?, inquiriu em tom<br />

isento de amabilidade, apesar da ascendência<br />

japonesa. “Rita Endo”, era o nome<br />

no crachá.<br />

O velho repetiu sua fala, era “autor da<br />

casa”, sorriu com dentes de porcelana, em<br />

visita de cortesia, frisou a palavra, vinha<br />

apresentar um livro novo, ergueu o envelope.<br />

O senhor devia ter marcado antes com<br />

o doutor Brazão. Não sei se ele poderá lhe<br />

atender, está muito ocupado com os preparativos<br />

para a Bienal do Livro. Queira<br />

me acompanhar.<br />

Caminhando à frente, Rita Endo conduziu<br />

o visitante ao interior da colmeia de<br />

vidro, indicou-lhe um sofá de couro negro<br />

e dirigiu-se à porta decorada com o logotipo<br />

da HB Editorial, no fundo do corredor.<br />

O escritor sentou-se, passeou os olhos<br />

pela galeria de fotos emolduradas nas paredes:<br />

autores nacionais e estrangeiros,<br />

notáveis do catálogo da HB. Numa foto<br />

autografada, o canadense Thom Dykins<br />

exibia a edição brasileira de seu best-seller<br />

Chuva de fogo em Bagdá. Em outra, o editor<br />

HB posava ao lado de um rapaz branquelo,<br />

de rosto ossudo, com jaqueta de<br />

jeans e camiseta com os dizeres RAMO-<br />

NES Gabba Gabba Hey. Quem era mesmo<br />

aquele moço? Rita Endo retornou com um<br />

arremedo de sorriso.<br />

Heraldo Brazão, editor, já o esperava à<br />

porta da sala, efusivo conforme o protocolo.<br />

Salve, João Vitorino Cruz! O Faulkner<br />

do Brasil Central! Então, resolveu sair da<br />

toca? Você está ótimo, igualzinho da última<br />

vez, quando foi mesmo? Doze anos?<br />

Já? Sente aí.<br />

João Vitorino reparou no novo look do<br />

editor — cabeça raspada, queixo duplo,<br />

um discreto brinco de brilhante no lóbulo<br />

da orelha esquerda. Mais pós-moderno do<br />

que doze anos antes. Por trás dele, além<br />

da parede de vidro, o horizonte denteado<br />

de edifícios reluzentes, aço e vidro refletindo<br />

nuvens.<br />

Grande João Vitorino. Parece que você<br />

nos mandou alguns originais nos últimos<br />

anos, não foi? É lamentável, meu caro,<br />

mas este país não lê, não valoriza o autor<br />

nacional. O que você trouxe aí? Morto<br />

sem chão? Qual é o assunto? Hum. Interessante.<br />

É compreensível, você lida com a<br />

realidade que conhece. O tema é sempre<br />

o grande problema de um livro, meu caro.<br />

That’s the trouble. Atualmente, ninguém<br />

quer ouvir falar desse tipo de regionalismo<br />

tardio: massacre de sem-terra, tribo<br />

dizimada, grilagem de terras, assassinato<br />

de missionário, matador de aluguel etc. O<br />

Brasil urbano está de costas pra esse Brasil<br />

do fundão. É pena, mas that’s it. A missão<br />

de um editor hoje é uma verdadeira cruzada.<br />

It’s really hard, my dear. Temos que<br />

definir um produto que vá ao encontro do<br />

gosto, interesses e expectativas desse leitor<br />

moderno, sem tempo para uma literatura<br />

mais exigente. É muito difícil, o mercado<br />

do livro é muito competitivo. Hoje, o<br />

livro tem que ter um apelo forte, uma trama<br />

intrigante, um desfecho impactante.<br />

65


<strong>Chicos</strong><br />

Você tem acompanhado a nova geração<br />

de escritores ingleses? Veja esse rapaz,<br />

o Jake Lovejoy, que vamos lançar<br />

agora na Bienal do Livro. O romance dele,<br />

StarTrip, é a história estúpida de um motorista<br />

de caminhão que resolve reunir novamente<br />

os membros de sua antiga banda<br />

de rock e, depois de várias peripécias,<br />

conseguem gravar um disco que acaba<br />

fazendo sucesso, tudo de modo acidental,<br />

porque ele se envolve com uma aristocrata,<br />

o caso vira assunto dos tabloides sensacionalistas,<br />

e aí, a cada reviravolta, o<br />

protagonista vai se dando bem: vira o instant<br />

darling da mídia e do público, apesar<br />

de ser um pateta, de fazer tudo errado.<br />

É um livro divertidíssimo, very british,<br />

com o típico humor inglês. Vai ser filmado.<br />

Esse autor, de trinta e poucos anos, tem<br />

punch, sabe armar um plot que realmente<br />

agarra o leitor. Já vendeu novecentos mil<br />

exemplares na Inglaterra. Vamos lançar<br />

aqui antes dos americanos.<br />

A parede de vidro vibrou agudamente<br />

ao som de um helicóptero. João Vitorino<br />

viu o engenho vermelho rumando para<br />

um edifício coroado com a marca de uma<br />

corporação global. Um raio amarelo logotipava<br />

a porta do aparelho. Teve a impressão<br />

de ver encenada uma ilustração de algum<br />

livro antigo sobre “o mundo de amanhã”.<br />

Visão déjà vu. O futuro havia chegado,<br />

mas não tinha lugar para ele. Nem para<br />

todos.<br />

Well, deixe o seu livro com a gente, João,<br />

vamos ler com carinho. Daremos uma<br />

notícia em breve, fique sossegado. Então,<br />

quando é que volta pra Mato Grosso? Cedo<br />

assim? Pena. Você podia ficar pra Bienal<br />

do Livro, o Thom Dykins vem aí, o Jake<br />

Lovejoy também. É um puta cara bacana,<br />

muito divertido, very nice guy. Olha, leva<br />

este livro aqui: Como ser ninguém na cidade<br />

grande. É daquele humorista americano,<br />

Mel Feldman, daquela sitcom Suburbia,<br />

da tevê paga, você já viu? Um falso<br />

livro de auto-ajuda, não é genial? Leve<br />

também este outro, A mulher dentro de<br />

mim: é uma espécie de diário do escritor<br />

transexual Fiona Fox-Jones, que já foi<br />

prostituto.<br />

Pois é, meu caro. Grande prazer rever<br />

você. Você tá ótimo. Tá com que idade?<br />

Setenta e sete? Maravilha. Queria eu chegar<br />

a essa idade em grande forma como<br />

você. Mas essa vida que a gente leva, essa<br />

pressão. Feliz é você que vive longe dessa<br />

loucura brava.<br />

Boa viagem, João. Dê notícias. Me<br />

mande alguma coisa ano que vem. Pode<br />

ser que o cenário mude, who knows?<br />

66


<strong>Chicos</strong><br />

José Vecchi de Carvalho<br />

Nasceu em Cataguases, após morar por muito<br />

tempo em Viçosa vive hoje em Paula Candido<br />

todas cidades mineiras. Coautor de A<br />

casa da Rua Alferes e outras crônicas (20<strong>06</strong>),<br />

e autor de Duas Cruzes (contos <strong>2018</strong>).<br />

Os olhos de Ruzia<br />

(para Cidinha Lomeu)<br />

Meu pai chegava cansado, ele e<br />

Ruzia. Chegava à tardinha, quase no escurecer<br />

do morro, todo santo dia. Vinha com os<br />

olhos na gente, sempre tentando dizer alguma<br />

coisa, mas assim, só com os olhos<br />

mesmo e com gestos, um carinho no meu<br />

cabelo, um tapinha no ombro dos meus irmãos<br />

e um olhar ligeiro para a minha mãe.<br />

Não sei como naquele olhar podiam caber<br />

tantas palavras, mas muitas vezes, era assim<br />

que ele e minha mãe conversavam.<br />

Ruzia tinha os olhos fixos, lamentosos,<br />

mas ao me ver acabava de subir a morraria<br />

com mais vontade, o pescoço e a testa num<br />

vaivém de cima pra baixo. Era o seu jeito de<br />

subir o morro. Apertava os passos e mudava<br />

o semblante, ficava alegre mesmo depois<br />

de um dia inteiro de trabalho pesado,<br />

puxando carga de todo tipo, o tempo todo,<br />

sem ter ao menos o que beber ou mastigar.<br />

Minha mãe cuidava do meu pai; eu cuidava<br />

de Ruzia. Ela se aproximava e eu podia ver<br />

que os seus olhos mudavam o brilho, o jeito.<br />

Balançava os beiços moles, mostrando a<br />

idade nos dentes, vinha que vinha aflita pra<br />

comer. Quando mastigava, eu ficava um<br />

tempão ouvindo o barulhinho que ela fazia.<br />

De vez em quando levantava a cabeça, movia<br />

as enormes orelhas e voltava à vasilha<br />

de comida. Eu alisava seu pelo, acarinhava<br />

sua testa comprida, passava a mão em sua<br />

crina que meu pai mantinha bem aparada,<br />

espantava alguma mosca que a incomodava<br />

e conversava um pouco com ela, baixinho<br />

nos ouvidos, pra ninguém escutar, era<br />

sempre um segredo nosso. Ela abanava<br />

uma das orelhas em sinal de estar atenta ao<br />

que eu dizia. E balançava a cabeça, concordando<br />

comigo. Depois ela ia para o pasto<br />

acima de nossa casa e eu corria para dentro<br />

ao encontro do meu pai. Ele me punha no<br />

colo, me fazia rir com o seu jeito de brincar<br />

67


<strong>Chicos</strong><br />

e inventava brinquedos com papelão enquanto<br />

minha mãe inventava histórias pra<br />

distrair a gente. Havia três coisas que eu e<br />

meus irmãos esperávamos todos os dias<br />

com muita ansiedade: os brinquedos do<br />

meu pai, as histórias da minha mãe e o que<br />

comer. Minha mãe inventava histórias e comidas<br />

com o que tinha em casa; às vezes, a<br />

gente só tinha as suas histórias pra comer e<br />

íamos mastigando palavras até chegar o<br />

sono. Eu ficava pertinho do meu pai, gostava<br />

de sentir o seu cheiro de cavalo.<br />

Nos fins de tarde, a carroça chegava<br />

com algumas coisas de comer que a gente<br />

esperava contando as horas, de tanta fome<br />

que a gente tinha. Às vezes, quando não<br />

tinha surgido nenhum carreto, a carroça<br />

vinha vazia. Era quando a nossa mulinha<br />

olhava pro chão e tinha as pálpebras caídas,<br />

semicerradas, como se chorasse. Vinham<br />

os três subindo o morro bem devagar,<br />

parando aqui e ali, só mesmo pra atrasar<br />

a chegada. Meu pai assobiava uma música<br />

estranha e conversava com Ruzia; ela<br />

nem olhava para o velho, mas atendia aos<br />

comandos e ia mais devagar que em outros<br />

dias, se arrastando morro acima. A carroça,<br />

por sua vez, sabendo-se vazia, sem nada<br />

para nos contentar, vinha pachorrenta, ziguezagueando<br />

pela estradinha de terra,<br />

quase muda de tão leve. Ficava se lamentando,<br />

pensando em como seria diferente<br />

se ela fosse um carro de boi, e tentava imitá-lo<br />

entoando uma cantiga enfadonha, um<br />

chronque uinque chronque uinque num<br />

tom grave e num ritmo quase fúnebre.<br />

Quando chegavam, meu pai nos olhava<br />

meio sem graça, acho que via na gente os<br />

olhos tristes de Ruzia, mas logo, logo fazia<br />

alguma brincadeira para despistar o nosso<br />

desapontamento. Ruzia vinha em minha<br />

direção com seus olhos grandes, balançando<br />

os beiços, mostrando os dentes. E quando<br />

para ela também não havia o que comer,<br />

seus olhos permaneciam baços. Eu alisava<br />

seu pelo, falava-lhe ao ouvido e ela<br />

seguia para o pasto. Ia lentamente, cabisbaixa,<br />

de vez em quando, parava, olhava<br />

para trás na esperança de que eu estivesse<br />

apenas brincando, escondendo sua comida.<br />

Depois seguia sem pensar em nada ou,<br />

quando muito, nos tufos de capim.<br />

Tínhamos nossas manias. Eu gostava de<br />

quebrar palavras, juntar pedaços e fazer<br />

outras palavras. Também gostava de anotar<br />

algumas que eu achasse bonitas; Ruzia era<br />

meio fujona e, além disso, pulava de susto<br />

quando ouvia foguetes. E numa das noites<br />

em que se afastou muito dos arredores, o<br />

Brasil tinha vencido mais uma partida rumo<br />

ao tri, um foguetório doido por todo lado.<br />

Ela se assustou, deslizou barranco abaixo<br />

naquele morraréu cheio de buracos e, coitadinha,<br />

quebrou uma perna. Meu pai fez<br />

umas canas com pedaços de bambu para<br />

tentar recuperá-la, mas não adiantou. Passou<br />

umas pomadas, mandou benzer, fez<br />

simpatia, tudo em vão. Ela foi piorando<br />

tanto que eu podia ver a dor nos seus<br />

olhos, já não se aguentava em pé. Não pôde<br />

mais trabalhar com o meu pai e seus<br />

olhos foram ficando cada vez mais cinzentos<br />

e paralisados. Eu continuava tratando<br />

dela, mas não teve jeito, tinha que ser sacrificada.<br />

Num domingo de manhã, meu pai chamou<br />

uns vizinhos e fizeram uma cova enorme<br />

no meio do pasto, parecia uma cisterna.<br />

Eu, meus irmãos e outras crianças lá do<br />

morro ficamos brincando na terra solta enquanto<br />

os homens cavavam.<br />

68


<strong>Chicos</strong><br />

Depois meu pai mandou a gente ir pra casa<br />

pra não ver. Juntou um mundaréu de gente<br />

e, naquele tumulto, escapei dos olhos de<br />

todos e me escondi atrás de um montículo<br />

de cupim. Fiquei olhando à meia distância.<br />

Meu pai trouxe Ruzia, mas não teve coragem.<br />

Ela parecia saber de tudo e ficou virando<br />

o pescoço, me procurando, como se<br />

quisesse fazer o último pedido: uma comida<br />

de domingo, um pouco d’água, um carinho<br />

nos pelos, na crina, ou, quem sabe, um<br />

cochicho nos ouvidos, com uma daquelas<br />

histórias que eu aprendi a inventar com a<br />

minha mãe, pra enganar a fome e a tristeza.<br />

Sem saber o que fazer, acenei de longe pra<br />

ela um aceno de despedida. Um vizinho<br />

disparou. Foi um único tiro. Depois arrastaram<br />

a coitadinha para dentro da cova e a<br />

cobriram com toda aquela terra.<br />

Por algum tempo eu e meus irmãos íamos<br />

até a cova de Ruzia. Eu falava com ela,<br />

rezava por ela, e eles riam de mim. Eles iam<br />

lá só para rir e eu para chorar. Chorava por<br />

causa da Ruzia, porque éramos amigas de<br />

verdade, amigas de trocar carinho e comida.<br />

E naquele morro onde a miséria fez morada,<br />

carinho e comida faziam amigos.<br />

O país vivia um milagre. Um tal bolo tinha<br />

que crescer, mas o morro crescia muito<br />

mais e se enchia de gente e de casebres<br />

iguais ao nosso. Gente que, como nós, não<br />

viu nem sinal do bolo. Minha mãe dizia que<br />

essa história era um conto de fadas às avessas,<br />

com final diverso. Foi nessa época que<br />

começaram a construir sobre a cova de Ruzia.<br />

Fiquei desesperada, queria que meu pai<br />

impedisse a construção, mas ele não podia.<br />

Então minha mãe me disse que iam fazer<br />

um mausoléu para a nossa mulinha. Que eu<br />

ia ter um lugar bonito pra rezar, acender<br />

vela e levar flores pra ela. Eu nem sabia o<br />

que era um mausoléu, mas achei a palavra<br />

bonita e também fiquei contente por ter<br />

um lugar bonito para rezar pela alma da<br />

minha amiga.<br />

Meus pais já tinham planos de ir embora<br />

e eu nem sabia. Eles tinham lá seus segredos<br />

de gente grande. Íamos tentar a sorte<br />

noutro lugar bem longe dali.<br />

Na véspera foi uma correria: arrumação<br />

de malas, trouxas e cacarecos; depois despedidas<br />

de vizinhos, amigos e parentes. São<br />

Paulo, outra palavra que gostei de ouvir.<br />

Batia em meus ouvidos e eu achava que parecia<br />

com mausoléu e aí eu ficava repetindo<br />

são-paulo-mausoléu, mausoléu-são-paulo.<br />

Meu pai vendeu nossa casinha lá no morro<br />

e fomos embora. Não pude ver o final da<br />

obra, mas escrevi as palavras e as levei comigo.<br />

Na viagem meus irmãos foram zombando<br />

de mim e eu chorava feito uma boba.<br />

Minha irmã mais nova também chorava<br />

sem saber o motivo e minha mãe pegou-a<br />

no colo e eu pulei no do meu pai. Aí eu fiquei<br />

quietinha, rindo à toa. Tirei do bolso o<br />

pedaço de papel garatujado e ia repetindo<br />

baixinho, quase em pensamento: são-paulo<br />

-mausoléu-mausoléu-são-paulo-são-paulomausoléu-mausoléu-são-paulo.<br />

Meus irmãos perderam a graça e se calaram.<br />

Acho que dormiram antes de mim.<br />

Eles nem sabiam que eu ia feliz no colo do<br />

meu pai, sentindo nele um cheiro gostoso<br />

de Ruzia.<br />

(conto publicado na coletânea Metamorfoses do<br />

amor, editora Metamorfose, Porto Alegre-RS,<br />

<strong>2018</strong>).<br />

69


<strong>Chicos</strong><br />

Antônio Jaime<br />

Soares<br />

Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />

Participou de um dos movimentos culturais<br />

mais ativo dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />

Depois de morar um longo tempo no Rio de<br />

Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.<br />

Retornou a Cataguases direto para<br />

a Vila.<br />

Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />

(crônicas - 2011)<br />

A propósito dos 70 anos de Carlimoura<br />

Tenho mais de setenta motivos pra<br />

falar bem dele, porém, em sinal de respeito<br />

à paciência do leitor, escolhi uns<br />

poucos, arrolados a seguir.<br />

Ano passado, desejei-lhe um Feliz <br />

e este ano dei boas-vindas ao “clube<br />

dos setenta”, no qual só falta agora Alfredo<br />

Condé, pra ficar nesse quinteto<br />

irreverente a que se reduziu a nossa<br />

turma. Somos uma escadinha: Agenor<br />

Sereno é de 1945, eu, de 46, Lelê Cardoso,<br />

47, Moura, 48, o Condé, 49. Todos<br />

da primeira metade do século passado.<br />

Continuando nos números, conheci<br />

Moura há 58 anos, numa sala de aula.<br />

Ele, um menino de apenas doze anos,<br />

já conversava como gente grande. Trabalhava<br />

(hoje é proibido pra menores)<br />

no guichê da Citran, no Hotel Villas,<br />

vendendo passagens pro Rio – não tinha<br />

rodoviária, os ônibus faziam ponto<br />

ao longo da plataforma da estação, atual<br />

Centro Cultural Eva Nil. O tempo ocioso<br />

ele preenchia com leituras, dos jornais<br />

do dia aos clássicos, desde a Grécia.<br />

Alguma revistinha de Carlos Zéfiro<br />

também podia rolar debaixo do guichê.<br />

E piadas, muitas.<br />

Uma coisa puxa outra e lembrei<br />

agora que no hotel hospedou-se por<br />

um tempo o professor Souza, um astrólogo<br />

que tinha programa na rádio e,<br />

creio, dava consultas sentimentais,<br />

existenciais e tais e quais. E pediu ao<br />

Moura pra prefaciar seu livro, cujo título<br />

era Quero ser Letrado. Não sei se<br />

editou e, anos depois, no Rio, vi sua foto<br />

no jornal Última Hora, com esta chamada:<br />

“Astrólogo é linchado em Caxias”.<br />

70


<strong>Chicos</strong><br />

Eu também trabalhava por ali, uma<br />

zona bem animada, com figuras típicas,<br />

algumas, bem divertidas. Isidro, Linhares,<br />

o sem-braço, Humberto Sapo, Antônio<br />

da Biju, Lolote, os “comunistas”<br />

do beco, viajantes, uma ou outra cafetina<br />

e muita gente de outras cidades, de<br />

passagem. E tinha a passagem<br />

“estudada” da secretária da fábrica<br />

que, ao se aproximar dos hóspedes do<br />

hotel, caprichava no movimento dos<br />

quadris.<br />

Colegas de turma dividindo a mesma<br />

carteira, vizinhos no trabalho e no bairro<br />

Haidée, Carlim (apelido de família) e<br />

eu ficamos amigos. Uns três anos depois,<br />

o convidaram a participar do Cine<br />

Clube Sergei Eisenstein e ele me indicou.<br />

E nos envolvemos naquilo, passando<br />

filmes, fazendo teatro e outras papeatas,<br />

sob as ordens de Paulo Martins.<br />

A coisa evoluiu e passou a se chamar<br />

CAC (Centro de Arte de Cataguases).<br />

Além de nós, participavam Haroldo<br />

Teixeira Cardoso (falecido) e seu irmão<br />

Lelê, Agenor Sereno e suas irmãs Luíza<br />

(falecida), Cândida e Zélia, Xiquim da<br />

Real, Dodoca (falecida), Carlos Weber<br />

(falecido), Sidney Cabral Xavier<br />

(falecido), Silvério Torres e outros. Em<br />

65, rompi com Paulo e eles logo fizeram<br />

o mesmo. As peças teatrais continuaram.<br />

Uns dois anos mais tarde demos<br />

uma trégua e colaboramos nas filmagens<br />

do longa-metragem O Anunciador,<br />

de Paulo, concluído em 1970. As músicas<br />

do filme, a propósito, foram compostas<br />

por Alfredo, duas delas com letras<br />

de Moura, o protagonista da fita,<br />

que formava com o Lião, apelido de Alfredo,<br />

uma parceria de respeito.<br />

E chegou a hora da separação, sem<br />

desunião. Eu no Rio, Moura em Além<br />

Paraíba e Alfredo em Belo Horizonte.<br />

Agenor já morava em Ubá e Lelê ficou<br />

por aqui mesmo. Sempre ligados, hoje,<br />

mais pela internet, como se, a léguas<br />

de distância, dividíssemos a mesma<br />

carteira na escola, o mesmo banco da<br />

praça ou cadeiras vizinhas no cinema.<br />

Ou o balcão da Taberna do Embalo, do<br />

saudoso Turi, na Praça Rui Barbosa,<br />

agora uma praça abstêmia. Os que não<br />

frequentavam a taberna se dispersaram.<br />

Sobre ela, já se falou, mas faltaram<br />

uns causos, feito uma noite em que Niquinha,<br />

bêbado, alisava os cabelos de<br />

Moura, elogiando sua beleza. Eu caçoei,<br />

dizendo que Moura havia arranjado<br />

programa praquela noite. Resposta dele:<br />

“Quem não come o Nica, se trumbica”.<br />

Aos mais jovens explico que havia<br />

um animador de televisão chamado<br />

Chacrinha e um de seus bordões era<br />

“Quem não se comunica, se trumbica”.<br />

A história que Carlim mais gostava<br />

ocorreu fora de lá, numa noite em que<br />

foi com Turi comer uma feijoada cheia<br />

de osso. Conclusão de Turi:<br />

“Desenterraram mais uma vez a ossada<br />

da Dana de Tefé”. E Dana de Tefé, uma<br />

aventureira internacional, com título de<br />

baronesa, cujo cadáver nunca foi encontrado,<br />

ficou sendo sinônimo de feijoada.<br />

71


<strong>Chicos</strong><br />

Ele gosta de sinônimos, por exemplo,<br />

chamar o Rio de antigo Estado da Guanabara.<br />

Outro exemplo: Mané pia-onça, sócio de Turi,<br />

falava da inesquecível Zefinha, de Recife, pra<br />

quem todo mês jogava oitocentos contos em<br />

cima da cama, “procê gastar”. Pois Zefinha<br />

ficou sendo o apelido da esposa de Carlim, a<br />

dedicada e delicada Marilene, colega de trabalho<br />

que conheceu em Além Paraíba e virou<br />

parceira afetiva e efetiva, no melhor estilo<br />

“um amor por toda a vida”.<br />

Além Paraíba e Moura se adotaram e lá ele<br />

tem caros amigos, exerce uma espécie de assessoria<br />

cultural, pelo simples prazer de valorizar<br />

os talentos da terra, realizando eventos e<br />

documentários sobre eles, resultando em filminhos<br />

porretas. No mais, lá como cá, no Rio,<br />

em JF ou nas oropa, está sempre caçoando,<br />

do mesmo modo que agia com Antônio do<br />

hotel e outros. Antônio era garçom e nas horas<br />

vagas ficava à porta apreciando as<br />

“catitas”, como definia as mulheres “boas”<br />

que passavam.<br />

E houve o caso do vigia da Praça Santa Rita,<br />

quando esta adquiriu o aspecto que tem hoje.<br />

O papel do cara era repreender, por exemplo,<br />

quem pusesse o pé em cima do banco. Valendo-se<br />

disso, Moura argumentou: “Quer dizer,<br />

então, que o senhor é um fascista? Um nazista?”.<br />

Resposta: “Sou, sim, faço questão de<br />

ser”. E Moura emendou: “Homossexual? Pederasta?”.<br />

Mesma resposta. A gente “caímos”<br />

na gargalhada, claro.<br />

Finalizando: Moura se comunica. E nunca se<br />

trumbica.<br />

Moura em cartaz no Paissandu, Rio, 1970<br />

72


<strong>Chicos</strong><br />

Marcelo Torres<br />

Marcelo Torres é baiano, torcedor do Vitória,<br />

jornalista, autor de "O bê-á-bá de Brasília", foi<br />

segundo colocado no "Prêmio Nacional de Novelas<br />

Históricas" (Fundação Cultural da Bahia),<br />

com a obra "Aos pés do caboclo" (ainda inédita).<br />

Nelson Rodrigues e o goleiro do Liverpool<br />

No futebol, Nelson Rodrigues teve<br />

dois grandes amores. Um era a seleção brasileira:<br />

se entra em campo com o nome do país,<br />

ele dizia, e com um fundo musical que é o<br />

nosso hino, então é a pátria em calções e<br />

chuteiras.<br />

A outra paixão era o tricolor carioca. Se o Fluminense<br />

jogasse no céu, ele morreria para ver<br />

o seu time. O torcedor do time, segundo Nelson,<br />

não é muito de ir ao estádio, prefere até<br />

ficar em casa, no sofá, lendo um jornal, vendo<br />

televisão.<br />

Porém, jurava ele, de mãos espalmadas, basta<br />

o Fluminense precisar, que aí se dá o milagre:<br />

tricolores — os vivos, os doentes, os mortos<br />

— todos aparecem. Os vivos saem de suas<br />

casas; os doentes pulam de suas camas; os<br />

mortos saltam de suas tumbas.<br />

Ele, ainda moleque em Aldeia Campista, os<br />

pés no chão, a calça furada, a Primeira Guerra<br />

Mundial explodindo, mas a única e definitiva<br />

preocupação era mesmo o tricolor. “Enquanto<br />

morria um mundo e começava outro, eu só<br />

via o Fluminense”.<br />

Foi o que ocorreu no último sábado, quando<br />

o Brasil estava quase parado, o mundo com<br />

dois doidos varridos (um americano e um coreano<br />

puxando cabelinho de um, cabelinho<br />

do outro) e, na Ucrânia, aconteceria a final da<br />

Liga dos Campeões, entre Real Madrid e Liverpool.<br />

Só que o seu Fluminense, quase ao mesmo<br />

tempo, jogaria com a Chapecoense e precisava<br />

do torcedor. Porque, em caso de vitória, o<br />

time poderia dormir na liderança do campeonato.<br />

De quebra, derrubaria um tabu histórico<br />

— o de nunca ter vencido o bravo clube catarinense.<br />

Então, nada de Liverpool e Real Madrid, mais<br />

de 13 mil tricolores saíram de suas casas, de<br />

suas camas, de seus túmulos e foram empurrar<br />

o time no Mário Filho, inclusive Nelson<br />

Rodrigues, que saiu de sua tumba com uma<br />

bengala e pegou um metrô até o templo sagrado<br />

do Maracanã.<br />

Desta feita, lá não encontrou a grã-fina das<br />

narinas de cadáver, que, com uma camiseta<br />

amarela pirateada, estava há três horas parada<br />

numa fila quilométrica em Copacabana,<br />

tentando encher o tanque do seu belíssimo<br />

carro importado.<br />

73


Já na tribuna do Maraca, Nelson encontrou um<br />

velho personagem, o Sobrenatural de Almeida,<br />

que ali estava para torcer pela Chapecoense,<br />

pela manutenção do tabu — isto era o óbvio<br />

ululante — e não tirava os olhos do goleiro do<br />

Fluminense.<br />

Ocorre que, já no segundo escanteio para os<br />

catarinenses, o perigo rondando a cidadela tricolor,<br />

Nelson notou o mau presságio e expulsou<br />

o fantasma a bengaladas: — Vai secar o<br />

diabo! Vai lá ver se eu estou na Ucrânia!<br />

No Rio, a intervenção de Nelson Rodrigues deu<br />

certo para o tricolor, que abriu o placar com o<br />

lépido Pedro. Logo em seguida Marcos Júnior<br />

ampliou. Já em Kiev, o Sobrenatural botou os<br />

pés no estádio e os olhos fixos em Loris Karius,<br />

o jovem goleiro do Liverpool.<br />

Acabou o primeiro ato no Rio, dois a zero para<br />

o tricolor, começou o segundo capítulo lá na<br />

Ucrânia, e ainda estava no zero a zero.<br />

Nelson, embora no Maraca, também estava em<br />

Kiev. “A bola é um reles, um ínfimo, um ridículo<br />

detalhe”, ele dizia. “O que procuramos no futebol<br />

é o drama, é a tragédia, é o horror, é a<br />

compaixão”.<br />

Com cinco minutos no segundo ato do espetáculo,<br />

eis que o Sobrenatural mira as mãos, as<br />

luvas do goleiro Loris Karius, e este, abduzido,<br />

entrega a bola de bandeja para Benzema. O<br />

Real abre o placar e bota uma mão na taça.<br />

Vejam que coisa: numa cena, num só cena, estava<br />

estampado o drama, a tragédia. E também<br />

a compaixão. Tudo caía desgraçadamente como<br />

luva nas mãos do goleiro, cuja atuação era<br />

perfeita até aquele momento.<br />

Os vermelhos, os rapazes de Liverpool, até que<br />

chegaram ao empate, num suspiro, e foram,<br />

solidários, abraçar o arqueiro. Mas não era<br />

mesmo o dia do time dos Beatles. O Real logo<br />

a seguir desempatou, com uma obra-prima,<br />

um gol de bicicleta de Bale, talvez o mais bonito<br />

tento em finais de Liga dos Campeões.<br />

E o mesmo Bale, aos trinta e um, soltou o tiro<br />

de misericórdia, uma bomba nas mãos de<br />

Karius, mas este, coitado, este já sentia todo o<br />

peso do mundo sobre seus ombros, não<br />

aguentou.<br />

74<br />

<strong>Chicos</strong><br />

A bola, como que empurrada pelo Sobrenatural<br />

de Almeida, caiu como um peru depenado<br />

entre a linha e a rede. E o mundo do goleiro<br />

caía junto.<br />

Segundo Nelson, “o problema do arqueiro não<br />

se resume ao desgaste físico, ele sofre um<br />

constante, um ininterrupto desgaste emocional”.<br />

“Debaixo dos três paus, parado, dá ideia de um<br />

chupa-sangue que não faz nada, enquanto os<br />

outros se matam em campo. Ilusão! Na verdade,<br />

mesmo sem jogar, mesmo lendo gibi, o goleiro<br />

faz mais do que o puro e simples esforço<br />

corporal”.<br />

“Ele [goleiro] traz consigo uma sensação de<br />

responsabilidade que, por si só, exaure qualquer<br />

um. Amigos, eis a verdade eterna do futebol:<br />

— o único responsável é o goleiro, ao passo<br />

que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis<br />

natos e hereditários”.<br />

“Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro<br />

podem falhar. Podem falhar e falham vinte,<br />

trinta vezes num único jogo. Só o arqueiro tem<br />

que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode<br />

significar um frango, um gol e, numa palavra, a<br />

derrota”.<br />

“O brasileiro já se esqueceu da febre amarela,<br />

da vacina obrigatória, da espanhola, do assassinato<br />

de Pinheiro Machado. Mas o que ele<br />

não esquece, nem a tiro, é o chamado ‘frango’<br />

de Barbosa”.<br />

“Qualquer um outro estaria morto, enterrado,<br />

com o seguinte epitáfio: — Aqui jaz Fulano,<br />

assassinado por um frango. Ora, eu comecei a<br />

desconfiar da eternidade de Barbosa quando<br />

ele sobreviveu a 50. Então, concluí de mim para<br />

mim: — Esse camarada não morre mais! Não<br />

morreu e, pelo contrário, está cada vez mais<br />

vivo”.<br />

Depois de tudo o que vimos, vamos torcer para<br />

que as palavras de Nelson para Barbosa sirvam<br />

também para o goleiro do Liverpool. Loris<br />

Karius não morreu. Nem para a vida nem para<br />

o futebol. E tem mais: ou minha intuição é uma<br />

ilusão ou esse rapaz ainda vai fazer milagres<br />

aos borbotões. Bola para frente e força, Loris<br />

Karius!


<strong>Chicos</strong><br />

Raquel Naveira<br />

Nasceu em Campo Grande MS, formada em<br />

Direito e Letras, doutoranda em Literatura Portuguesa<br />

na USP. Escreveu vários livros, entre<br />

eles: Abadia (poemas, editora Imago,1996) e<br />

Casa de tecla (poemas, editora Escrituras, 1999),<br />

indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia.<br />

Sapatos e sandálias<br />

Sou apaixonada por sapatos. Tenho<br />

sempre a impressão que bons sapatos me<br />

levarão a bons lugares. Confiro saltos e modelos.<br />

São como joias brilhando na vitrine.<br />

Lembrei-me de um quadro do pintor francês<br />

Ingres intitulado “A Banhista de Valpinçon”,<br />

que se encontra no Louvre. Um nu feminino,<br />

cheio de graça, de clássica beleza. O<br />

erotismo frio, de uma mulher sentada de<br />

costas, com um turbante na cabeça, a pele<br />

de tons cálidos contra uma cortina de veludo<br />

verde escuro. Uma torneira de água acima<br />

dos pés moles. A seu lado, as sandálias<br />

vermelhas, as tiras enfeitadas de renda. O<br />

fascínio despertado pelo pé, parecendo sem<br />

ossos e sem tornozelos, prestes a se adaptar<br />

na sandália encarnada.<br />

Foi assim também no conto “Cinderela”.<br />

O sapatinho de cristal abandonado nos degraus<br />

do palácio do príncipe, durante a fuga,<br />

à meia noite. E o momento mágico em<br />

que tirou do bolso o outro sapatinho, sinal<br />

de reconhecimento, prova irrefutável de sua<br />

identidade. O pé deslizou sem esforço. Se<br />

precisasse forçar não seria o seu tamanho.<br />

O relacionamento estaria fadado ao insucesso.<br />

Traria conflito, angústia.<br />

75


Antigamente, era costume em Israel, em<br />

caso de resgate ou permuta, para validar o<br />

negócio, um tirar a sandália e entregá-la a<br />

outro. Símbolo do direito de propriedade,<br />

tão arraigado no ser humano. A delimitação<br />

dos territórios, das heranças, das nações.<br />

Há uma passagem bíblica em que se recomenda<br />

aos peregrinos do evangelho, sacudir<br />

a poeira das sandálias quando saíssem<br />

de uma casa ou cidade que não aceitasse a<br />

boa nova. É preciso mesmo sacudir a dor<br />

que sentimos quando rejeitados. Sacudir o<br />

pó sem rancor, sem apego, sem discussão.<br />

Sacudir o pó da ilusão e do cansaço. Retomar<br />

a estrada com esperança. Continuar na<br />

missão de peregrino<br />

O calçado tem uma significação funerária.<br />

A morte, afinal, é quando a gente pode<br />

estar deitados de sapatos. Uma amiga sobrevivente<br />

do incêndio do edifício Joelma,<br />

que ardeu no centro de São Paulo, contava<br />

que ao descer correndo as escadas, só via<br />

montanhas de sapatos.<br />

Essa imagem foi utilizada pelo dramaturgo<br />

Arnaldo Antunes como recurso na montagem<br />

da tragédia de Eurípedes, “As Troianas”,<br />

que retrata o final da guerra de Troia a<br />

partir do feminino. Mostra o que ocorre<br />

com as prisioneiras troianas escravizadas,<br />

aguardando no porto o embarque em naus<br />

gregas. Troia consumida pelas chamas sob<br />

tochas. O tom é lamentoso, de desgraça. As<br />

mulheres de luto arrastam pelo palco correntes<br />

feitas de sapatos masculinos, botas<br />

negras indicando o número de homens<br />

<strong>Chicos</strong><br />

mortos e ausentes. A tensão da peça é violenta.<br />

Horrores esperam os vencidos.<br />

Hoje, entrarei em casa descalça como<br />

quem penetra a soleira de um templo sagrado.<br />

O caminhar curto e lento das chinesas<br />

com pés atrofiados em faixas. Estou me<br />

sentindo culpada, louca rainha Maria Antonieta<br />

desejando tantos sapatos. Ainda bem<br />

que para o meu coração só desejei você,<br />

meu par perfeito.<br />

76


<strong>Chicos</strong><br />

Luiz Ruffato<br />

Lendo os Clássicos<br />

Nasceu em Cataguases MG, reside em<br />

São Paulo SP. Entre tantas obras de sua<br />

autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />

de 2001, ganhou o Troféu<br />

APCA oferecido pela Associação Paulista de<br />

Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis<br />

da Fundação Biblioteca Nacional. Esse<br />

livro o tornou um escritor reconhecido no<br />

país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno<br />

Provisório, com a publicação do romance<br />

Domingos Sem Deus, iniciado com<br />

Mamma, son tanto Felice em 2005, composto<br />

por cinco livros sobre o operariado<br />

brasileiro.<br />

O Norte e outros contos (1912-1929)<br />

Evgueni Zamiatine (1884-1937) - Rússia<br />

Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra<br />

Lisboa: Antígona, 2017, 297 páginas<br />

77


<strong>Chicos</strong><br />

A coletânea reúne 10 contos,<br />

bastante irregulares entre si. Contém três<br />

narrativas realmente muito boas: a ascensão<br />

de um sujeito sem escrúpulos, em<br />

"Uma história provinciana", de 1912; o<br />

discurso honesto, e por isso, sem querer,<br />

carregado de ingênua ironia, do novo homem<br />

soviético, em "Tem a palavra o camarada<br />

Tchuríguin", de 1926; e a história<br />

de um crime e castigo, em "Inundação",<br />

de 1929. No entanto, outros textos, como<br />

"O dragão" e "O amparo dos pecadores",<br />

ambos de 1918, "A caverna", de 1920, e "A<br />

história da mais importante coisa", de<br />

1923, são fracos, e só ganham musculatura<br />

por uma questão extraliterária, a crítica<br />

ao obscurantismo comunista, no momento<br />

mesmo em que está sendo implantado.<br />

Há mesmo um conto, "Sobre a cura milagrosa<br />

do noviço Erasmo", de 1920, que<br />

não passa de uma óbvia anedota sem<br />

graça. Completam o livro o idílio extremamente<br />

poético de "O norte", o amor de<br />

seres abandonados e embrutecidos na<br />

inóspita Sibéria, de 1918; e a áspera crítica<br />

à estupidez humana em "O xis", de<br />

1926.<br />

Avaliação: BOM<br />

(Abril, <strong>2018</strong>)<br />

Contos de assombro<br />

Seleção: Alcebiades Diniz<br />

Tradução: Vários<br />

São Paulo: Carambaia, <strong>2018</strong>, <strong>22</strong>0 páginas<br />

78


<strong>Chicos</strong><br />

Coletânea de 18 contos e um ensaio (do<br />

francês Guy de Maupassant) sobre o<br />

"assombro", um conceito bastante elástico,<br />

que o Organizador enfeixa como aquelas narrativas<br />

que "preservam seu efeito de estranheza".<br />

Assim, temos textos que poderíamos<br />

filiar à corrente "diabólica", ou seja, que buscam<br />

representar a figura do Diabo, o próprio,<br />

como o ótimo "Notícia de um homem desconhecido<br />

ou O diabo em Berlim", do alemão<br />

E.T.A. Hoffmann (1776-18<strong>22</strong>); "O pacto infernal<br />

- Pequeno romance", do francês Charles<br />

Nodier (1780-1844); "O diabo e Tom Walker",<br />

do norte-americano Washington Irving (1783<br />

-1859); "Janet, a troncha", do escocês Robert<br />

Louis Stevenson (1850-1894) e "A paz", do<br />

russo Leonid Andrêiev (1871-1919). Em outros,<br />

a presença do Mal é apenas sugerida,<br />

como em "O álbum do Cônego Alberico", do<br />

inglês M.R. James (1862-1936), e "O espelho<br />

negro", do argentino Leopoldo Lugones<br />

(1874-1938). Para mim, os melhores contos<br />

ainda são aqueles em que o fantástico, ou<br />

seja, o inexplicável no qual o cotidiano está<br />

mergulhado, se impõe, como no ótimo "O<br />

cachorro", do russo Ivan Turgueniév (1818-<br />

1883), na aquarela que é"A mulher no espelho<br />

- uma reflexão", da inglesa Virginia Woolf<br />

(1882-1941), ou na obra-prima, "O sopro", do<br />

italiano Luigi Pirandello (1867-1936). Embora,<br />

como disse, no conceito de "assombro" usado<br />

pelo Organizador caiba quase tudo, algumas<br />

narrativas afastam-se bastante da proposta,<br />

como é o caso da fábula moralizante<br />

"Uma jaula de animais ferozes", do francês<br />

Émile Zola (1840-1902); da contundente "Irmã<br />

Aparición", da espanhola Emilia Pardo Bazán<br />

(1851-1921); ou do espiritualista "A plenitude<br />

da vida", da norte-americana Edith Wharton<br />

(1862-1937). O Organizador gentilmente incluiu<br />

três autores brasileiros, mas o resultado<br />

é que são os três contos mais fracos do livro:<br />

"Pavor", de João do Rio (1881-1921), ainda é<br />

digerível, mas a página "O juramento", de<br />

Humberto de Campos (1886-1934), é risível,<br />

para além de totalmente inverossímil (sim, é<br />

necessário verossimilhança mesmo quando se<br />

trata de coisas fantásticas), e "O soldado Jacob",<br />

de Medeiros e Albuquerque (1867-<br />

1934) é um relato de psiquiatria forense (vista<br />

sob um ângulo exótico). E, neste caso, havia<br />

boas opções nacionais, como Machado de<br />

Assis ou Afonso Arinos, por exemplo. Resta<br />

perguntar ainda por que será que o Organizador<br />

optou por um texto atribuído a Edgar<br />

Allan Poe (1809-1949), "Um sonho", abrindo<br />

mão de usar um de seus magníficos, esses<br />

sim, contos de assombro. Por fim, "O arame<br />

farpado", do uruguaio Horácio Quiroga (1879<br />

-1937) é um conto forte, sim, mas que não<br />

tem nada de "assombro" - e Quiroga tem<br />

contos assombrosos, como o magnífico "A<br />

insolação" ou os terríveis "O travesseiro de<br />

plumas" e "A galinha degolada". Mas não se<br />

trata, evidentemente de uma crítica ou reparo,<br />

pois gosto não se discute. Essa antologia<br />

já pode ser colocada entre as referências de<br />

livros sobre o assunto.<br />

Avaliação: MUITO BOM<br />

(Maio, <strong>2018</strong>)<br />

79


<strong>Chicos</strong><br />

Emerson Teixeira<br />

Cardoso<br />

Nasceu em Cataguases MG, é autor de<br />

Símiles (2001) poesia, coautor de A casa da<br />

Rua Alferes e outras crônicas (20<strong>06</strong>). Traduziu<br />

O retorno do nativo de Thomas Herdy.<br />

Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se<br />

em Estilete (1967), mimeografado,<br />

editor/fundador do Delirium Tremens (1983)<br />

e Trem Azul (1997).<br />

Um escritor católico<br />

“O amor é toda a vida da mulher<br />

ao passo que é apenas um momento<br />

na vida do homem”. Uma frase inteligente<br />

que mereceu de Alceu Amoroso Lima o<br />

adendo: A paixão do poder, ao contrário<br />

é toda a vida do homem e apenas um momento<br />

da vida da mulher.<br />

Este ente outros conceitos estão<br />

presentes no livro Idade, sexo e tempo publicado<br />

pela Agir, em 1938, a edição que<br />

tenho em mãos foi encontrada entre muitos<br />

volumes doados à Escola Estadual Isa<br />

Freitas durante uma gincana cultural realizada<br />

em prol de sua biblioteca.<br />

Trata-se de uma série de ensaios<br />

nas quais este autor católico, também crítico<br />

literário, escreveu e que consiste em<br />

valiosa contribuição ao estudo da psicologia<br />

humana. Podemos viver uma idade<br />

em outra idade? Sim podemos. Ou pelo<br />

menos é o que diz (e com muita pertinência)<br />

o autor e acrescenta: “Há homens que<br />

vivem fora do seu tempo, ou ainda contra<br />

o seu tempo, ou seja: há homens mais intemporais<br />

que outros; isto em relação a<br />

questão do tempo.<br />

No que se refere ao capítulo Sexo<br />

ele vai mais fundo, afirma que há homens<br />

que apresentam uma psicologia marcada<br />

pelo sexo, enquanto outros chegam a<br />

mostrar um comportamento neutro quanto<br />

ao aspecto psico-sexual.<br />

O mesmo discurso aparece em relação à<br />

Idade: “Encontra-se famílias que apresentam<br />

bem marcadas os traços da idade que<br />

possuem: crianças, crianças, moços que<br />

primam pela mocidade e também as vezes<br />

ocorre o contrário crianças sem nenhuma<br />

infância, velhos que escondem a idade.<br />

80


<strong>Chicos</strong><br />

Estes fenômenos da psicologia, afirma são<br />

tarefas que devem ser estudadas pela caracterologia,<br />

ramo da moderna, explica<br />

ele, psicologia.<br />

Quem quer que queira aprofundarse<br />

nos mistérios da psicologia sexual e<br />

mesmo que se preocupe com a própria<br />

idade e sua própria sexualidade pode encontrar<br />

nessa obra muita luz. É nela que<br />

se registra de maneira mais fiel a personalidade<br />

deste autor.<br />

O número de edições que acumula<br />

constitui prova inconteste de seu valor. O<br />

exemplar é da 9ª naquele ano de 1958.<br />

Poucas palavras que estão longe de<br />

dizer da beleza do livro e inteligência de<br />

Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataide,<br />

pseudônimo que adotou enquanto crítico<br />

literário. Relaciono abaixo alguns trechos<br />

que selecionei para que o leitor possa julgar<br />

por si mesmo caso não tenha ainda<br />

conhecimento desta obra prima do grande<br />

escritor.<br />

“ Deixamos a mocidade, não de uma<br />

vez, mas aos pedaços, hoje um pouco,<br />

amanhã outro bocado. E um belo dia<br />

quando nos olhamos por acaso no espelho<br />

com mais demora vemos com surpresa<br />

que um estranho de olhos mais tristes,<br />

cabelos mais brancos, rugas mais profundas,<br />

tomou pouco a pouco o lugar daquela<br />

face conhecida e lisa que nos habituáramos<br />

a sentir sem contemplar desde a infância.<br />

Do modo que soubermos suportar<br />

esse primeiro choque vai depender a sorte<br />

da segunda metade de nossa vida.”<br />

“Para amar é preciso, pois aproveitar<br />

o momento propício, a hora exata, o ponto<br />

supremo em que nossa alma é um feixe<br />

de flamas a cujo calor tudo vibra. E esse<br />

momento só a mocidade nos dá, por ser a<br />

idade do amor.”<br />

“É nos livros dos romancistas, mais do<br />

que no tratado dos psicólogos que vamos<br />

encontrar os tipos humanos mais flagrantemente<br />

reais. É num Balzac ou num Tolstoi,<br />

num Proust ou num Mauriac que encontramos<br />

os mais perfeitos estudos da<br />

alma.”<br />

“A criança mais se assemelha ao vegetal<br />

e ao animal do que o próprio adulto.”<br />

“só por analogia, é que se pode<br />

confrontar a inocência infantil com a das<br />

plantas, que se abrem puramente em flor<br />

ou com a dos animais que passeiam pelo<br />

mundo os seus sentidos, incapazes de ultrapassar<br />

os limites de sua natureza instintiva.”<br />

“ Aristóteles dizia que a mocidade termina<br />

aos 50 anos, o que os homens de 51 contestam.”<br />

81


<strong>Chicos</strong><br />

Antônio Jaime<br />

Soares<br />

Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />

Participou de um dos movimentos culturais<br />

mais ativo dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />

Depois de morar um longo tempo no Rio de<br />

Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.<br />

Retornou a Cataguases direto para<br />

a Vila.<br />

Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />

(crônicas - 2011)<br />

Memórias de Jorge Guglinski<br />

Em fins do ano passado, sem muita pompa, comemorou-se o centenário da Revolução Russa. A<br />

propósito, aí está um texto extraído das anotações de um filho da terra que cresceu naquele período<br />

de mudanças e contou como era viver lá.<br />

Duas telas de Guglinki, médico, músico, pintor, inventor e outras coisas mais<br />

Seu português, escrito, é sofrível, mas<br />

encarei. Interessado em política, usos e costumes,<br />

saltei muitas partes em que fala de<br />

amores não correspondidos, assunto para<br />

outra leitura. Trata-se do único russo que conheci,<br />

também sua segunda mulher e o primeiro<br />

filho. Dela, lembro que levava no colo<br />

menina agasalhadinha, feito uma matrioshka,<br />

aquelas bonecas de lá, que cabem umas dentro<br />

das outras. Disse ela que se identificaram<br />

com o Brasil, ao contrário de primos que foram<br />

para o Canadá. Entre as coisas nossas<br />

que não aprovaram, estão as escolas, muito<br />

aquém do padrão europeu. Há tempos, estive<br />

com aquele filho deles e dei-lhe boa-noite:<br />

“Dôbre vê tcha”, única expressão russa que<br />

sei, além de títulos de filmes.<br />

82


<strong>Chicos</strong><br />

Jorge nasceu em Orsk (1915), cidade situada<br />

na margem europeia do Ural, de­pois<br />

foram para Orenburgo, à beira do mesmo rio.<br />

Região “paradisíaca”, única saudade que ficou,<br />

disse ele. Filho de atores, o pai morreu<br />

cedo, casando-se a mãe com um co­lega de<br />

profissão, que lutou ao lado dos vitori­osos<br />

bolcheviques, sem filiar-se ao PC.<br />

“As minhas primeiras aulas de política<br />

e ateísmo, recebi no jardim de infância”,<br />

disse ele, acrescentando: “Sou agnóstico, não<br />

preciso de igreja, mas quando vejo a cidade<br />

sem templos sinto falta destes”. Muitos templos<br />

foram destruídos por Stalin, para transformar<br />

sinos em balas de canhão, aproveitando<br />

o resto em construções. Curiosidade: numa<br />

pescaria, Jorge e amigos não acharam lenha<br />

para assar os peixes e queimaram cruzes<br />

de madeira de um cemitério, agindo perfeitamente<br />

dentro da lei.<br />

Sobre teatro, do qual a família vivia,<br />

disse que “o russo, para assistir aos espetá<br />

­culos (e para se encharcar de vodka, acrescento),<br />

gastava seus últimos rublos, mesmo<br />

em tempo de fome, doenças e outras desgraças”.<br />

O que não garantia boa vida aos artistas,<br />

sobretudo naquela fase de coletivização,<br />

em que todos perderam seus bens. A família<br />

de Jorge (cinco pessoas) morava num só<br />

quarto, com um fogão no meio, servindo tam<br />

­bém como aquecedor. Em outro endereço<br />

havia dois quartos, o primeiro alugado a um<br />

casal, o “quarto de passagem”, guarda-roupa<br />

servindo como divisória. Privacidade zero. Xixi<br />

e cocô em penicos, cujo conteúdo era atirado<br />

numa fossa esvaziada uma vez por semana.<br />

Ou numa latrina coletiva, do lado de fora, que<br />

congelava. Havia casas de banhos públicos,<br />

que frequentavam quando o dinheiro permitia.<br />

“Nos dias quentes, de dois a cinco<br />

graus abaixo de zero”, a molecada brincava<br />

de mijo à distância, que deixa marca na neve,<br />

e peidos - ganhava aquele que soltasse o<br />

mais alto e prolongado. No período 1921/23,<br />

a fome levou até ao canibalismo, daí, talvez, a<br />

balela de que comunistas comiam criancinhas.<br />

Para superar a crise, foi criada a NEP, política<br />

econômica que representava um recuo tático,<br />

restabelecendo a livre iniciativa e a pequena<br />

propriedade, aceitando financiamentos estrangeiros.<br />

Lênin assim a definiu: "Um passo<br />

atrás para dar dois à frente".<br />

O irmão mais velho de Jorge estudava<br />

física em Leningrado, cidade de clima<br />

tenebroso, chamada de “aquele brejo”, e morreu<br />

de pneumonia. A mãe cismou de se mudarem<br />

para lá, poder cuidar do túmulo do ente<br />

querido. Moraram num quarto dentro do<br />

que fora o palácio de um duque fuzilado pela<br />

Revolução. O repertório teatral da companhia<br />

familiar incluía os clássicos de todas as<br />

épocas, coisa bem profissional, mas a concorrência<br />

era grande e não se deram bem, voltando<br />

às origens. Em Leningrado, o menino<br />

Jorge conheceu montanha-russa, chamada<br />

pelos russos de montanha-americana.<br />

Os brechós vendiam de um tudo,<br />

até grampo de cabelo deixado pela avó que<br />

morreu. Roupas, quando desbotavam, eram<br />

viradas pelo avesso, depois remendadas. Para<br />

se ter uma ideia, professoras primárias ganhavam<br />

30 rublos por mês, o preço de um vestido<br />

razoável. Comia-se pouco e mal, mas a fome<br />

aguda passou e foram tocando, até que<br />

Stalin assumiu e, para começar, extinguiu a<br />

NEP, refechando o país ao capital estrangeiro.<br />

Lênin era culto e atuava em equipe,<br />

cercado de gente tão ou mais capacitada; Stalin,<br />

um brutamonte que decidia tudo sozinho,<br />

pondo a culpa nos seus paus-mandados, se a<br />

coisa não dava certo. E eliminava os<br />

“culpados” ou relegava à morte lenta, na Sibéria.<br />

Daí Jorge ter concluído que os atos institucionais<br />

da ditadura militar brasileira eram<br />

“café pequeno”, perto da brutalidade stalinista.<br />

83


<strong>Chicos</strong><br />

E Stalin criou um empréstimo compulsório,<br />

um salário por ano de cada trabalhador<br />

maltrapilho, para devolver em dez anos. Ressuscitou<br />

o passaporte interno, obrigatório no<br />

tempo da monarquia, proibiu Chopin, prostituição,<br />

homossexualismo, batom, baile, beijo<br />

em público, lâmpadas acima de 50 watts etc.<br />

Comida tabelada e racionada, cozida com sebo<br />

de boi, ainda assim, mais fácil comprar de<br />

atravessadores, pagando até dez vezes mais.<br />

Com isso, lá se foram os anéis, a prata da casa<br />

e outras joias, e a fome voltou. De novo, canibalesca.<br />

Fome premeditada por Stalin, para<br />

obrigar o pessoal a aderir à coletivização e se<br />

filiar ao partido, com o retrato dele em todas<br />

as casas.<br />

Mais difícil foi arregimentar os russos<br />

asiáticos e muitas etnias minoritárias, inclu<br />

­sive húngaros cruzados com finlandeses, e<br />

outros, até de língua árabe, que viviam há milênios<br />

de caça e pesca, feito índios, subitamente<br />

obrigados a trabalhar na construção<br />

de ferrovias ou lavouras de algodão. Por um<br />

tempo, Jorge viajou por aquelas bandas, inclusive<br />

de camelo, distribuindo panfletos e<br />

passando filmes de propaganda do governo,<br />

que pouco ou nada agradavam. Muitos desertaram,<br />

indo pedir esmolas nas cidades, onde<br />

chegavam a engatinhar, sem forças para<br />

ficar de pé, comendo restos que lhes atiravam<br />

ou achavam nas sarjetas. A população de gatos,<br />

cachorros, pombos, pardais, ratos e preás<br />

desapareceu dentro dos estômagos humanos<br />

famintos.<br />

Enquanto isso, os famosos expurgos,<br />

mão de ferro, censura sem limite, suicídios<br />

de Iessienin, Maiakóvski e tantos outros.<br />

Por aquela época, início dos anos 30, André<br />

Gide esteve lá e denunciou a propaganda enganosa,<br />

nos jornais europeus. “Vendido ao<br />

capitalismo”, sentenciou Stalin sobre a atitude<br />

gideana (a mesma da brasileira Pagu, que<br />

rompeu com o PC, continuando marxista). O<br />

“Ocidente escravagista” agonizava, enquanto<br />

a Rússia despontava como “a nação mais livre<br />

e progressista do universo, onde tudo era<br />

melhor, mais perfeito, mais justo, mais humano<br />

e invencível”. Alguns simpatizantes que<br />

conheci nos anos 60, em Cataguases, também<br />

pensavam assim.<br />

Na verdade, um desempregado<br />

americano, no tempo da depressão, ganhava<br />

mais que um engenheiro soviético. Jorge observou<br />

que “o mal que Stalin fez à Rússia sobre-pujou<br />

os feitos positivos”, como a contribuição<br />

fundamental para a derrota dos alemães<br />

(exército modernizado por Trotsky, mas<br />

isso a plebe não precisava saber) e criar uma<br />

superpotência, à custa da liberdade e do sacrifício<br />

do povo. Superpotência que apodreceu<br />

por dentro e esfacelou-se. Alguma coisa<br />

estava fora da nova ordem mundial.<br />

A propósito de Adolf Hitler, os jornais<br />

falavam de “um psicopata austríaco que<br />

surgiu na Alemanha e jamais chegaria ao poder,<br />

impedido pela consciência de classe do<br />

operariado”. No entender de Jorge, o que o<br />

diferenciava de Stalin era a ideologia, os métodos<br />

sendo os mesmos. Da Wikipedia: “Estima-se<br />

que entre 20 e 60 milhões de pessoas<br />

tenham morrido durante os trinta anos<br />

do governo de Stalin”. Ele mandava matar os<br />

descontentes e também os suspeitos, por<br />

precaução.<br />

A estratégia de vencer a resistência<br />

do povo pela fome funcionou e em troca os<br />

armazéns do governo passaram a oferecer<br />

melhores produtos, pão de trigo e não mais<br />

de centeio, barato, mas de gosto ruim, óleo<br />

de girassol e cânhamo, em vez de sebo. E o<br />

pão é o “arroz com feijão” do povo russo, comido<br />

com salgados, doces, até frutas. Para<br />

comprar, entretanto, uma hora na fila era<br />

pouco. Outro chamariz para converter campo<br />

­neses em operários foi cobrar deles menos<br />

impostos, sem risco de confisco ou prisões. E<br />

o país se industrializou, meio “nas coxas”, tipo<br />

aviões sem cinto de segurança , como es-<br />

84


<strong>Chicos</strong><br />

-tranhou Francisco Inácio Peixoto, que foi lá<br />

na era pós-Stalin.<br />

Jorge estudou em vários lugares,<br />

trabalhava em outros tantos, a curiosidade<br />

juvenil de apreender tudo, mecânica, violino,<br />

pistom, pintura, teatro, fabricar rádio, máquina<br />

fotográfica, foguete, até pilotar aviões, auxiliado<br />

em muitos casos pela revista “Sei tudo”,<br />

algo como o manual do escoteiro-mirim,<br />

dos sobrinhos do pato Donald. Stalin investiu<br />

em salas de cinema, para fazer propaganda<br />

de seus feitos e defeitos, e Jorge foi também<br />

projecionista. E boêmio, numa fase em que<br />

roubava-se tudo, bandidos armados de faca,<br />

além do dedurismo, que levou ao sumiço de<br />

muita gente boa. Jorge também roubava frutas,<br />

carvão, até um galo, e andava em vagões<br />

de carga, para não pagar.<br />

Quando chegou a hora, ele foi fazer faculdade<br />

em Leningrado, morando na Casa do<br />

Estudante. Não se adaptou ao curso de engenheiro<br />

agrícola, nem seus pulmões, ao clima<br />

que havia matado seu irmão. A já então velha<br />

guarda da revolução não concor­dava com os<br />

atos violentos de Stalin e este mandou matar<br />

um deles, Kirov, o manda-chuva de Leningrado.<br />

As escolas fecharam, música fúnebre no<br />

rádio, lamentos mil pelo criminoso atentado<br />

cometido pelos “inimigos” contra um dos<br />

mais íntegros líderes etc. etc. Tudo forçação<br />

de barra. Isso foi o começo do grande expurgo,<br />

em que todos os mortos e desaparecidos<br />

viravam não pessoas, sumindo do rádio, jornais<br />

e livros.<br />

Jorge reviu Moscou e parentes: três<br />

casais, filho mais novo e tia mais velha amontoados<br />

num cômodo de 9 x 8 metros,<br />

“cozinha” atrás do guarda-roupa (e havia dois<br />

engenheiros na família). Ele gostava de Moscou,<br />

cidade muito limpa, a poder de multas,<br />

mas de­cadente, àquela altura, todos os esforços<br />

do governo canalizados para a construção<br />

daquele metrô rococó, como que ressuscitando<br />

o tempo dos tzares.<br />

Trechos do metrô de Moscou, construído por presos políticos sob vigilância cerrada<br />

Entanto, a Rússia possuía um dos maiores<br />

contingentes de artistas de ponta, no início<br />

do século vinte. Em todos os níveis: pintura,<br />

cinema, teatro, letras, música e mui­to<br />

mais. A Alemanha, idem, e ambas foram sufocadas<br />

por violentas ditaduras, calando, matando,<br />

exilando ou suicidando seus cérebros<br />

privilegiados, ainda hoje sem substitutos à<br />

altura. “Arte degenerada”, dizia Stalin, mantendo<br />

o controle estético-ideológico através<br />

das garras de Jdanov, o todo poderoso comandante<br />

da cultura. Famosos como<br />

Shostakovitch e Eisenstein penaram por<br />

culpa dele, mas outros artistas menos conheci<br />

­dos, sem o apoio da opinião pública, sofreram<br />

ainda maior perseguição.<br />

“1936 foi rico em ondas de processos forjados<br />

contra ‘os inimigos do povo’. A carnificina,<br />

dentro da própria liderança do partido,<br />

85


<strong>Chicos</strong><br />

Motivo: a coletivização não correspondia à<br />

expectativa, ainda que aumentassem as adesões<br />

ao PC, por conta do abrandamento, não<br />

o fim, da fome. E promoveu a radio­difusão<br />

em grande escala, com potentes receptores<br />

centrais que distribuíam a programa­ção por<br />

linhas, como as linhas telefônicas, não só nas<br />

casas, também nas ruas e praças”, disse Jorge.<br />

Ou seja, todos ligados na mesma emoção:<br />

Stalin. E se alguém desligava o rádio enquanto<br />

o chefe falava, era dedurado pelo vizinho.<br />

Também em 1936 o chefe promulgou uma<br />

nova constituição em que ele próprio comandava<br />

os três poderes, com eleições diretas,<br />

voto secreto, não obstante, um candidato único<br />

para cada vaga.<br />

E Jorge foi estudar medicina, em<br />

Gorki (este, assassinado por médicos a mando<br />

de Stálin e homenageado, dando nome<br />

àquela cidade e a um parque em Moscou.<br />

Gorki, a propósito, em sua cidade tinha fama<br />

de ladrão de galinhas). Cada setor da faculdade,<br />

assim como de todas as organizações<br />

com mais de um empregado, tinha um<br />

espião e membros do partido não repetiam<br />

ano, mesmo com notas baixas, para não dar<br />

mau exemplo. Além dos clássicos, não só russos,<br />

liam Darwin, Marx, Engels, Lênin e os pronunciamentos<br />

“históricos” de Stalin. Também<br />

os pré-marxistas Kant, Hegel, Feuerbach, Furrier,<br />

Rousseau e Proudhon, destes, os trechos<br />

de interesse do partido.<br />

Perdeu a virgindade aos 16 anos,<br />

não a timidez, e muito sofreu com as mulheres,<br />

aproximando-se delas em geral sob o<br />

efeito da vodka. Resumindo: foi assaltado por<br />

uma, desvirginou outra, engravidou outra, pegou<br />

gonorreia com outra e por fim se casou<br />

com Lussia (sic), antes de se formarem. Ela<br />

tirou licenciatura média, dando aulas, na cidade<br />

onde moravam seus pais, que dependiam<br />

de seu salário, bem distante de Gorki, e só via<br />

Jorge de tempos em tempos. Perto da licenciatura<br />

plena, ele foi morar lá, estagiando no<br />

hospital local. Não deu, por causa da sogra,<br />

que nem o marido suportava. Então, mudaram-se<br />

para uma cidade mais perto de Gorki,<br />

criando uma filha, com a babá dormindo no<br />

mesmo quarto. De qualquer forma, ele não<br />

resistia a um rabo de saia e aquele casamento<br />

não deu certo. Jorge se confessava<br />

machista, acreditando que o homem foi feito<br />

para perpetuar a espécie, a mulher, para perpetuar<br />

a família.<br />

Numa volta a Moscou, sentiu a atmosfera<br />

pesada, devido aos expurgos, o Teatro<br />

Meyerhold fechado e outros sufocos (em<br />

breve o próprio Meyerhold seria também fechado,<br />

num caixão). E começou a faltar também<br />

bebida. Sem vodka, bebia-se álcool. E<br />

teve início a Segunda Guerra Mundial. Hitler,<br />

agora aliado de Stalin, passou a ser respeitado.<br />

E Stalin invadiu a Finlândia, que resistiu<br />

bravamente. Numa conversa com seu cunhado,<br />

Jorge torceu pelos finlandeses, ouvindo<br />

esta resposta: “Você pensa muito, é melhor<br />

ler os jornais e só dizer o que eles dizem”.<br />

Jorge, contudo, não se conformava. E<br />

não gostava do cunhado, assim como dos filhos<br />

dele. E um dos capetinhas chegou ao<br />

ponto de botar fogo no jornal que Jorge estava<br />

lendo, no sofá comprado em brechó.<br />

Em 1940, formou-se médico, trabalhando<br />

heroicamente em hospitais onde faltava<br />

até pano e papel de receita. Narrou inúmeros<br />

casos clínicos e vou comentar só dois.<br />

Numa noite de plantão, chegou um sujeito<br />

que fora quase esmagado por um caminhão.<br />

Os novatos não sabiam por onde começar e<br />

acordaram o médico mais experiente. Este pediu<br />

um copo e mandou o paciente urinar.<br />

Saiu muito sangue, daí o tratamento ter começado<br />

pelos rins. E uma gestante caucasiana,<br />

num momento em que ficou sozinha no<br />

quarto, pôs-se de cócoras e pariu, dispensando<br />

todo o aparato médico. Índias também<br />

fazem assim, o que o médico Dráuzio Varela<br />

considera correto.<br />

86


<strong>Chicos</strong><br />

Com o início da II Guerra Mundial, Jorge<br />

alistou-se como voluntário, tornando-se<br />

pri­sioneiro dos alemães. Ao final do conflito,<br />

conheceu a segunda esposa, Maria, com<br />

quem teve o filho Alexander, apelidado Sacha,<br />

ainda na Alemanha. Em 1949, junto<br />

com outros refugiados de guerra, mudou-se<br />

para o Brasil, instalando-se em Goiânia, onde<br />

teve seu filho Wladimir. Morou em Jataí,<br />

também em Goiás até 1958. Posteriormente,<br />

Cataguases, onde teve a filha Helena, em<br />

1961.<br />

A morte de Stalin<br />

Consta que Stalin nunca superou<br />

o choque pelo suicídio de sua segunda mulher.<br />

Tinha culpa ele? A seguir, dados resumidos<br />

sobre sua morte (do Google).<br />

Na manhã de 1 de março de<br />

19<strong>53</strong>, depois de um jantar que durou a noite<br />

toda e ter visto um filme, Stalin chegou à<br />

sua casa em Kuntsevo, a 15 km a oeste do<br />

centro de Moscou, com Beria, Malenkov,<br />

Bulganin e Khrushchev, retirando-se para<br />

dormir. Em­bora seus guardas estranhassem<br />

que ele não se levantasse à hora usual, tinham<br />

ordens estritas para não o perturbar e<br />

deixaram-no sozinho o dia inteiro. Cerca<br />

das <strong>22</strong> horas Lozgachev, o comandante de<br />

Kuntsevo, entrou no quarto e viu Stalin caído<br />

de costas no chão perto da cama, de<br />

pijama, e ensopado em urina. Assustado,<br />

perguntou ao chefe o que aconteceu, mas<br />

só obteve respostas ininteligíveis. Lozgachev<br />

usou o tele­fone do quarto para pedir<br />

que mandassem médicos imediatamente,<br />

que só chegaram no início da manhã, mudando<br />

as roupas da cama e deitando-o. O<br />

acamado e aclamado líder morreu quatro<br />

dias depois, em 5 de março, de hemorragia<br />

cerebral (derrame), em circunstâncias ainda<br />

hoje pouco esclarecidas, com 74 anos de<br />

idade, sendo embalsamado a 9 de março.<br />

Avtorkhanov desenvolveu uma detalhada<br />

teoria, publicada inicialmente em 1976,<br />

apon­tando Beria como o principal suspeito<br />

de tê-lo envenenado<br />

Epílogo<br />

O Grande Expurgo foi denunciado<br />

pelo sucessor Nikita Khrush­chev três anos<br />

após a morte de Stalin, no famoso XX Congresso<br />

do Partido Comu­nista da União Sovié­tica<br />

em fevereiro de 1956. Vieram à tona<br />

todos os podres do ditador, “o que resultou<br />

em prejuízo enorme para o país”. No<br />

mesmo discurso, ele revelou que mui­tas<br />

das víti­mas eram ino­centes e foram condenadas<br />

com base em falsas confissões extraídas<br />

medi­ante tortura. E Stalin virou uma<br />

não pessoa, excluído de todas as publicações,<br />

como todos os que apagou, sendo<br />

Trotsky a mais célebre vítima.<br />

Também li há pouco uma biografia<br />

dele e pensava que fosse menos ingênuo.<br />

Razão: morava numa “fortaleza”, no<br />

México, mas não man­dava dar busca nos<br />

estranhos que o visitavam e disso se aproveitou<br />

Ramon Mercader, stalinista despistado,<br />

despis­tando uma marretinha quebragelo<br />

debaixo da capa de chuva, com a qual<br />

arrebentou a cabeça do anfitrião. A propósito,<br />

no filme de Joseph Losey, não sei por<br />

que motivo, a marretinha era peça de decoração<br />

na parede, em cima da lareira. Por essas<br />

e outras infidelidades, Paulo Francis chamou<br />

aquele filme de “O segundo assassinato<br />

de Trotsky”.<br />

87


<strong>Chicos</strong><br />

Conclusão<br />

Falei em índios e sabe-se que, entre<br />

eles, onde come um, comem todos. O mes<br />

­mo entre esquimós, estes (surpresa) considerados<br />

o povo mais feliz do mundo. O homem<br />

dito civilizado, porém, já nos primórdios da<br />

civilização, se sobrava um pouco da colheita<br />

(excedentes de produção, em economês), punha<br />

num barco e ia trocar por outros produtos,<br />

em outras aldeias, mais tarde, trocando<br />

por moedas. E assim nasceu o capitalismo, ali<br />

pelas margens dos rios Tigre e Eufrates. Reverter<br />

esse quadro, sonho de Karl Marx e de<br />

muita gente sensata, não é moleza, tanto que<br />

todas as experiências resultaram em ditaduras.<br />

E como no Brasil tudo acaba em piada,<br />

cito Dercy Gonçalves: “Vivi mais de cem anos<br />

e já vi tudo, menos país comunista dar certo”.<br />

Antes, no tempo da virada, perguntada o que<br />

estava achando daquelas mudanças, respondeu:<br />

“Acho muito bom, já tô até preparando a<br />

minha Perestroika”.<br />

88


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,<br />

de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio<br />

Brasília de Produção Literária 2001), O<br />

sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio<br />

Portugal Telecom 2012) e Eles não moram<br />

mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive<br />

atualmente em Portugal.<br />

Uma poética do confronto<br />

Ano passado, em sua passagem por Portugal,<br />

onde esteve como convidado do Folio –<br />

Festival Internacional de Literatura de Óbidos,<br />

o escritor, professor da UFSCar e tradutor Wilson<br />

Alves-Bezerra dividiu uma mesa com a<br />

editora Raquel Menezes, da Ed. Oficina Raquel,<br />

do Rio, discutindo o papel das pequenas<br />

editoras dentro do panorama oligopolizado<br />

do mercado editorial brasileiro.<br />

A editora apresentava ao público português<br />

os livros de três escritores brasileiros,<br />

chancelados com o selo de sua nova casa em<br />

Lisboa, a Oca Editorial. Além de “Exílio aos<br />

olhos – Exílio às Línguas”, de Wilson, foram<br />

lançados na livraria Ler Devagar as coletâneas<br />

“Sombras dançam neste incêndio”, de Roberto<br />

Piva; “Busca das gemas nos destroços”, de<br />

A f o n s o H e n r i q u e s N e t o ; e<br />

“Transbordamentos”, de Guilherme Zarvos.<br />

Além desses autores que marcam essa travessia<br />

atlântica como pontas de lança da coleção<br />

“Antologia de Poesia”, a bordo dessa iniciativa<br />

comporão o catálogo os escritores de origem<br />

indígena Ailton Krenak, Kaká Werá e Sônia<br />

Guajajara.<br />

“Exílio aos olhos - Exílio às Línguas”<br />

consiste numa obra que externa o olhar agudo<br />

de um poeta que realiza profundas incisões<br />

- num texto visceral, reflexivo e crítico -<br />

no atual momento da vida brasileira. O livro<br />

traz excertos de outra obra, “O pau do Brasil”,<br />

que acaba de ter sua 4ª edição recém-lançada<br />

no Brasil, com selo da caprichosa editora paulista<br />

Urutau, edição que retoma, com textos<br />

adicionais, a temática de confronto proposta<br />

pelo autor, que não doura a pílula nem deixa<br />

pedra sobre pedra ao fazer, à moda de Oswald<br />

Andrade ou Gregório de Mattos, um retrato<br />

necessariamente sarcástico e iconoclasta<br />

da vida brasileira, um punhal semântico e<br />

uma chicotada metafórica em nossas mazelas.<br />

89


Assimila fragmentos de um imaginário público<br />

e privado, em que contribuem<br />

as perspectivas literária, política,<br />

jurídica e administrativa nos<br />

capítulos que seccionam o livro<br />

numa proposta de leituradesacato,<br />

num petardo estético<br />

e ético. Em sua estrutura, que<br />

nos lembra uma ata ou memorando,<br />

o autor cataloga nossos<br />

desencantos e inventaria, num<br />

rol de desagravos, o espólio do<br />

que restou desses 518 anos de<br />

história, sobretudo sob o prisma<br />

da espoliação e do engodo, que<br />

nesses tempos que correm alcançam<br />

seu apogeu, tal o virtuose<br />

de seus maestros, regentes de uma orquestra<br />

desafinada e histriônica.<br />

O poeta se lança a um exercício hermenêutico<br />

da realidade político-socialjudiciária-moral<br />

e humana de um Brasil despedaçado,<br />

em que todos são condôminos<br />

desse período conturbado em que a nação<br />

vive encurralada num beco sem saídas. Diante<br />

de um país travestido numa babel de vozes<br />

dissonantes, na encruzilhada de um destino<br />

que não oferece outra alternativa senão a<br />

tentativa desesperada de fugir ao caos e renascer,<br />

como Fênix, dos escombros de que<br />

somos vítimas, esse livro é uma insurgência e<br />

também um farol.<br />

Obra que faz uma leitura de nossos desconforto,<br />

desmonte ético-político e apequenamento<br />

das instituições, que nos deixam como<br />

herança um rastro de destruição física e<br />

moral, “O pau do Brasil”, nas sucessivas reedições,<br />

vem sofrendo várias releituras, recomposições,<br />

ajustes e adendos textuais e contextuais,<br />

como se fosse um livro-rio, que vai<br />

abarcando no seu leito crítico todas as demandas<br />

e enxurradas dessas tempestades que<br />

nos assolam e aviltam.<br />

Nesse processo em que o olhar do artista<br />

apreende novos sustos e assombros, o<br />

<strong>Chicos</strong><br />

livro vai ganhando mais substância questionadora<br />

e apresentando argumentos<br />

que o transformam num<br />

denso inquérito, num mapeamento<br />

de perdas e danos, em<br />

que a palavra se interpõe como<br />

afronta ao desencanto e ao passivo<br />

a que temos sido submetidos<br />

nesses últimos anos de uma<br />

das nossas mais vergonhosas e<br />

esfoliantes crises.<br />

Na esteira desse território<br />

expandido de incertezas, a<br />

visão crítica e o espírito de inquietação<br />

e intervenção de Wilson<br />

Alves-Bezerra vão carreando<br />

mais húmus, provocados pelos<br />

destroços da realidade, material resultante da<br />

decomposição moral que serve para adubar a<br />

resistência e o desejo de enfrentamento dessa<br />

engenharia nefasta gerada no caldeirão de<br />

contrastes, paradoxos e dilemas. E o livro,<br />

caudatário dessa instabilidade, se enxerta de<br />

uma fúria e ao mesmo tempo de um libelo<br />

contra tudo que aí está.<br />

“O pau do Brasil” atualiza e ratifica o já<br />

dito e interdito em “Exílio aos Olhos – Exílio às<br />

Línguas”, essa escritura-lâmina, emulando suas<br />

incisões na epiderme de um país e na alma<br />

de um povo, fragilizados pela mesma metástase.<br />

Por trás da atitude estética e dos recursos<br />

retóricos e estilísticos do autor, há a dimensão<br />

ética de um artista que busca exorcizar<br />

a esquizofrenia em que lançaram o Brasil e<br />

que só um livro radical e crucialmente poético<br />

como esse foi capaz de alcançar e nos atingir.<br />

Pela sua alta voltagem, pela sua potência devastadora,<br />

pela poderosa gênese de sua luta a<br />

(r)mada com uma palavra que anuncia e repudia<br />

o desastre anunciado e da crise existencial<br />

de um país fraturado, eis um corajoso mergulho<br />

no coração do inferno e uma arrojada viagem<br />

ao redemoinho do pesadelo de uma História<br />

sitiada.<br />

90


<strong>Chicos</strong><br />

Gabriel Franco<br />

Nascido em Cataguases, mora atualmente<br />

em Juiz de Fora. Jornalista e assessor de comunicação.<br />

O que é real na internet?<br />

Um guia rápido de sobrevivência na era da pós-verdade<br />

Queime tudo e cancele seu pacote de dados.<br />

Quando eu lia qualquer notícia em<br />

um blog ou nas redes sociais, eu começava e<br />

terminava com um suspiro. Não era raro eu<br />

largar um texto logo no primeiro ou segundo<br />

parágrafo por duvidar da veracidade das informações<br />

e não querer perder meu tempo.<br />

Eu desenvolvi esse costume após cansar<br />

de me irritar com a quantidade de informações<br />

erradas que encontrava ao longo do dia,<br />

e onde a imensa maioria não tinha nenhuma<br />

fonte ou era desmentida logo no primeiro resultado<br />

de uma busca no Google. Então achei<br />

melhor usar meu tempo para coisas mais produtivas<br />

e pular as besteiras.<br />

Em um mês eu já não lia quase nada, totalmente<br />

por fora do mundo ao meu redor.<br />

A segunda maior fonte de informações da população<br />

é a internet, logo atrás da TV. Hoje, a<br />

internet, é a minha maior fonte; comprar o<br />

jornal todos os dias pela manhã para saber o<br />

que aconteceu no dia anterior é impensável<br />

para uma geração que acha que pode saber<br />

de tudo com apenas dois cliques no celular.<br />

Desta forma fui obrigado a rever minha política<br />

radical de ignorar tudo e começar a separar<br />

o que é sério do que é bobagem.<br />

Muita coisa que eu vou dizer aqui foi retirada<br />

das pesquisas feitas pela First Draft, um<br />

projeto da Universidade de Harvard com o<br />

objetivo de usar pesquisas para combater a<br />

desinformação online. De acordo com a organização,<br />

existem três pontos que devem ser<br />

observados antes mesmo de consideramos o<br />

conteúdo da matéria ou post.<br />

91


<strong>Chicos</strong><br />

1. O tipo de conteúdo<br />

É muito mais difícil inventar informações<br />

sem se enrolar em um artigo do que em um<br />

textão de Facebook. Muitas páginas nas redes<br />

sociais usam uma imagem qualquer retirada<br />

da internet e criam um factoide em cima dela.<br />

Antes de ser desmentida, a “matéria” publicada já tinha<br />

961.300 engajamentos no Facebook.<br />

O mundo não é preto no branco. As coisas<br />

precisam de contexto, de explicação, de fontes<br />

seguras e transparentes. Imagens são elementos<br />

poderosos que possuem muito mais<br />

apelo que palavras, mas também são facilmente<br />

manipuláveis.<br />

Um post verdadeiro sempre vai ser confirmado<br />

por diversas outras fontes, que devem relatar<br />

o mesmo. Na internet, as fontes são pessoas<br />

reais, que estão ali para nos confirmar<br />

seu testemunho. Se não há ninguém para dar<br />

credibilidade, fuja.<br />

2. As motivações do criador do conteúdo<br />

Eu fui assessor de imprensa de um governo<br />

por cinco anos, e uma das coisas que<br />

aprendi em meu breve tempo na área é que<br />

existe uma regrinha de ouro para a administração<br />

pública. Essa regra é seguida a risca<br />

por todos os políticos que conheci:<br />

Nunca admita o erro, nunca concorde com a<br />

oposição.<br />

Pode parecer hediondo (e é, em grande parte),<br />

mas é uma tática de sobrevivência que<br />

aqueles que querem ter uma longa carreira<br />

política desenvolvem. Você não precisa ser<br />

radical nas suas colocações, mas precisa sempre<br />

ter uma solução melhor que a sua oposição,<br />

e uma certeza inabalável do que é o certo<br />

a fazer.<br />

Eleitores não reagem bem a candidatos que<br />

não tem respostas para tudo. Junte isso à importância<br />

de manter uma mensagem clara ao<br />

seu público e temos um grande festival do<br />

curto e grosso. Por mais idiota que essas repostas<br />

sejam, do ponto de vista da relação<br />

eleito e eleitor, elas ainda são melhores que<br />

um “não sei” ou um “depende”. Para a maioria,<br />

a liderança está fortemente associada à<br />

confiança, e a confiança é frequentemente<br />

confundida com arbitrariedade.<br />

Um político que concorda com seus adversários<br />

em diversos pontos será massacrado pelos<br />

mesmos. Pois os dois sendo iguais, aquele<br />

Eles não se odeiam nem nada, é só “parte do trabalho”.<br />

que vê razão na fala do adversário perde a<br />

iniciativa. Mas o que isso tudo tem a ver com<br />

as motivações do criador de um conteúdo?<br />

Tem tudo a ver. Uma página que segue alguma<br />

agenda política, qualquer que ela seja,<br />

sempre vai expor os fatos que reforcem essa<br />

agenda. É a regra da sobrevivência política<br />

sendo aplicada na prática: se uma pauta não<br />

fortalece minha ideologia, não perca tempo<br />

com ela. Mesmo assim, é completamente<br />

possível fazer esse trabalho de maneira ética,<br />

sem falsas informações e sem manipulação.<br />

92


O problema aparece quando essa agenda política<br />

é bizarra, muitas vezes ferindo a Constituição<br />

Federal e os direitos da população. Fica<br />

difícil usar boas fontes e notícias verdadeiras<br />

para defender alguns posicionamentos, sendo<br />

necessário que o conteudista faça distorções<br />

e use do apelo às emoções do leitor para provar<br />

seu ponto. Isso é, literalmente, fake news.<br />

É, literalmente, o significado de pós-verdade.<br />

Sabendo disso, fica claro que se uma pessoa<br />

precisa usar informações inverídicas e descontextualizadas<br />

para fazer valer seu posicionamento,<br />

é porque seus argumentos não se<br />

sustentam diante dos fatos.<br />

3. Como esse conteúdo é disseminado<br />

As redes sociais, de que gostamos tanto, criaram<br />

uma verdadeira máquina de campanhas<br />

de desinformações sistemáticas. Como Claire<br />

Warden disse em seu artigo, as tentativas anteriores<br />

de influenciar a opinião pública basearam-se<br />

em tecnologias de transmissão “umpara-muitos”.<br />

As redes sociais não funcionam<br />

assim. Elas permitem que “células” de propaganda<br />

sejam direcionadas diretamente a usuários<br />

que têm maior probabilidade de aceitar<br />

e compartilhar uma mensagem específica.<br />

Aliada às manchetes sensacionalistas, a bomba<br />

é lançada. De acordo com um estudo feito<br />

pelo MIT, notícias falsas atingem entre 1,5 mil<br />

a 100 mil pessoas através de compartilhamentos,<br />

enquanto notícias verdadeiras costumam<br />

parar em 1 mil. As notícias falsas também<br />

se espalham seis vezes mais rápido que<br />

as corretas.<br />

Vai com calma nesse botão aí.<br />

Uma vez que eles compartilham inadvertidamente<br />

um artigo, uma imagem, um vídeo ou<br />

até um meme enganoso ou fabricado, a próxima<br />

pessoa que o visualizar em seu feed tem<br />

93<br />

<strong>Chicos</strong><br />

boa chance de confiar na veracidade do post<br />

original e passa a compartilhá-lo. Essas<br />

“células”, em seguida, multiplicam-se através do<br />

ecossistema de informações em alta velocidade,<br />

alimentados por redes de usuário-usuário que<br />

acreditamos ser confiáveis.<br />

Portanto, sempre desconfie daquele viral que<br />

seu colega de trabalho compartilhou no almoço.<br />

Não existe um número de curtidas ou compartilhamentos<br />

que torna uma mentira em verdade.<br />

Pela primeira vez, temos a oportunidade<br />

real de democratizar a informação<br />

A internet está permitindo que a relação básica<br />

da comunicação emissor/mensagem/<br />

receptor vire de cabeça para baixo. Nós não<br />

dependemos mais de canais de TV nem de<br />

grandes jornais para saber o que acontece no<br />

mundo, e não somos obrigados a consumir a<br />

informação de grupos de interesse políticos e<br />

financeiros. Mas é exatamente o que estamos<br />

fazendo.<br />

O algoritmo do Facebook, que faz com que<br />

vejamos apenas conteúdo pago com o qual<br />

estejamos inclinados a gostar, é muito mais<br />

tóxico para a saúde da liberdade de informação<br />

do que o jornal das oito. Os grupos de<br />

interesse rapidamente se apoderaram da mídia<br />

digital, com milhares de blogs espalhados<br />

pela rede, acordos com parceiros e influencers,<br />

e muita grana investida em posts patrocinados.<br />

E agora?<br />

Não sei. É esperar para ver. Depois do escândalo<br />

da Cambridge Analytica, o Facebook não<br />

vai poder se manter como está. A empresa já<br />

fechou parcerias com agências que vão avaliar<br />

a veracidade de conteúdos denunciados na<br />

rede, e cortar seu alcance. Só vamos ver os<br />

resultados depois das eleições desse ano, a<br />

primeira prova de fogo do Facebook no Brasil<br />

desde então.


<strong>Chicos</strong><br />

Clips<br />

Carlos Torres Moura<br />

Rendemos nossas homenagens a Carlos Torres<br />

Moura, que recentemente completou 70<br />

anos. Bem-humorado, irrequieto, ativo na cena<br />

cultural de Cataguases e Além Paraíba na<br />

Zona da Mata mineira há décadas.<br />

Em Cataguases lá na incrível década de 60,<br />

fez parte de um grupo, que criou o Cineclube<br />

Serguei Eisenstein. Produziram peças de teatro.<br />

Fizeram música. Pintaram e bordaram na<br />

cidade e adjacências. Em 1970, foi o protagonista<br />

do filme "O anunciador - O homem das<br />

tormentas" rodado em Cataguases.<br />

Em Além Paraíba, onde mora há tempos, com<br />

amigos fundou a incrível Interior Edições e<br />

ultimamente vem produzindo e dirigindo interessantíssimos<br />

documentários sobre a cultura<br />

popular. Roda por todos os cantos daqui<br />

e de Além, com seu olhar inquieto e peculiar,<br />

fotografando o cotidiano.<br />

94


<strong>Chicos</strong><br />

Duas Cruzes<br />

Na manhã de sábado do último dia 12 de<br />

maio, José Vecchi lançou seu Duas Cruzes na<br />

Biblioteca Ascânio Lopes em Cataguases.<br />

Por lá compareceram vários amigos para<br />

prestigiá-lo.<br />

95


<strong>Chicos</strong><br />

Fotos de Augusto José Rios de Carvalho<br />

Uma lua escancarando um sorriso próprio<br />

de lua crescente [...]<br />

Basta uma frase destas prá gente gostar de<br />

um texto, e à medida que se avança nas histórias<br />

contadas por José Vecchi outras observações<br />

idênticas confirmam seu talento de<br />

narrador.<br />

Duas Cruzes, conto que dá título ao livro, remete-nos<br />

aos costumes interioranos e revela<br />

uma ruptura nos laços familiares por questões<br />

políticas e morais. E o que se vai descobrindo<br />

no desenrolar dos contos, nenhum<br />

muito extenso, nos prende pelo seu conteúdo,<br />

em que sobressaem personagens que<br />

surpreendem pela autenticidade e a riqueza<br />

de suas ponderações. Em Conversa sob a solidão<br />

o conflito é revelado pela personagem o<br />

tio que narra a história da traição de Rosa<br />

com o cunhado: normal é bicho. Nasce, procria<br />

e morre. Cruza, cruza aqui e ali. Sem roupa,<br />

sem lei e sem culpa, semas coisas de certo<br />

e errado {...}. Um tio que para preencher as<br />

horas de insônia lia os livros que o sobrinho<br />

mandava, criando assim o hábito de leitura,<br />

lenitivo para os momentos de solidão.<br />

Histórias de idas e vindas como tantas que<br />

conhecemos e até vivemos, mas que o Vecchi<br />

nos conta com graça e estilo a exemplo dos<br />

melhores autores do gênero.<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

96

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