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Chicos 54 - 22.09.2018

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições.

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22 de setembro 2018<br />

<strong>54</strong><br />

Prosa<br />

e<br />

Verso<br />

em<br />

Cataguases


Nº <strong>54</strong><br />

22 de setembro de 2018<br />

e-zine de literatura e ideias<br />

de Cataguases – MG<br />

Um dedo de prosa<br />

Esta é a nossa edição <strong>54</strong>.<br />

<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos meios<br />

digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te<br />

enviar nossas edições ou visite-nos nos links listados<br />

nesta página.<br />

A linha editorial é fundamentalmente voltada para a<br />

literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno<br />

e ao mundo. Procura manter, em cada um dos<br />

seus números, uma diversidade temática.<br />

Neste número, a primeira página é ocupada pelo talentoso<br />

tradutor Álvaro Antunes.<br />

Estamos indignados com o discurso troglodita que<br />

assola o país, o doloroso incêndio do Museu Nacional<br />

retrata a horrível quadra que atravessamos.<br />

Este número de início da primavera é dedicado a Luzia<br />

“nosso mais remoto vestígio de humanidade” como<br />

bem traduziu a poeta Helen Massote em seus<br />

versos.<br />

Uma agradável leitura para todos! E até o início do<br />

verão.<br />

Os <strong>Chicos</strong><br />

Capa: Foto Vicente Costa<br />

Editores:<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

José Antonio Pereira<br />

Colaboradores:<br />

Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />

Fotografia - Vicente Costa<br />

Ilustrações - Altamir Soares e Merson<br />

Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com<br />

Visite-nos em:<br />

http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />

https://independent.academia.edu/<strong>Chicos</strong>Cataletras<br />

https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras<br />

01


<strong>Chicos</strong><br />

03 ÁLVARO ANTUNES<br />

C. Valerius Catullus, Carmina<br />

59 LUIZ RUFFATO<br />

Lendo os clássicos<br />

16 FLAUSINA MÁRCIA<br />

DA SILVA<br />

Insignificada<br />

18 MARCELO BENINI<br />

Afluentes + 3 poemas<br />

21 ACIR SIMÕES<br />

Saxofonista<br />

23 RONALDO CAGIANO<br />

Natureza morta + 4 poemas<br />

27 GLEISON DORNELAS<br />

Para não morrer + 1 poema<br />

29 ANTÔNIO CARLOS<br />

LEMOS FERREIRA<br />

Ladainha do China Seco<br />

35 HELEN MASSOTE<br />

Tudo o que eu achei<br />

Levado pelo vento<br />

36 INEZ ANDRADE PAES<br />

Flâmula + 2 poemas<br />

38 LULJETA LLESHANAKU<br />

Alguns poemas<br />

Altamir Soares<br />

44 CLAUDIO SESÍN<br />

Cielos de Oruro<br />

45 JOSÉ ANTONIO<br />

PEREIRA<br />

E o que ela faz que eu não faço?<br />

47 ELTÂNIA ANDRÉ<br />

Teatro a céu aberto<br />

50 JOSÉ VECCHI DE<br />

CARVALHO<br />

Gervásio<br />

<strong>54</strong> ANTÔNIO JAIME<br />

SOARES<br />

Uma pobre coitada<br />

55 RAQUEL NAVEIRA<br />

Comedores de batatas<br />

57 JOSÉ ANTONIO<br />

PEREIRA<br />

Cabeça de mula<br />

65 EMERSON TEIXEIRA<br />

CARDOSO<br />

A importância de Machado de<br />

Assis no seu centenário de<br />

morte*<br />

67 LEONARDO CAMPOS<br />

Uma leitura sobre a Terceira<br />

margem do rio e Avôhai<br />

69 EDMAR MONTEIRO<br />

FILHO<br />

’A noite dos pássaros’ um<br />

exercício original e virtuoso<br />

71 RONALDO CAGIANO<br />

Hóspede do degredo<br />

74 ANDRESSA<br />

BARICHELLO<br />

Rotina interrompida<br />

76 ANTÔNIO JAIME<br />

SOARES<br />

“Verde”<br />

77 CLIPS<br />

Outros papos ...<br />

02


<strong>Chicos</strong><br />

Álvaro Antunes<br />

Álvaro A. Antunes nasceu em<br />

Além Paraíba, Minas Gerais. Mora e<br />

trabalha no Reino Unido, desde 1989.<br />

É tradutor e professor de ciência da<br />

computação na Universidade de Manchester.<br />

Álvaro Antunes publicou quatro<br />

traduções pela Interior Edições, de<br />

Além Paraíba, em Minas Gerais: Os papéis<br />

de Aspern, de Henry James, em<br />

1984, A caça ao turpente, de Lewis<br />

Carroll, também em 1984, Cantos de<br />

Giacomo Leopardi, em 1985 (primeira<br />

tradução integral), Tudo que restou,<br />

de Safo, em 1987 e uma tradução de<br />

The Seafarer de Ezra Pound, no SLMG.<br />

03


C. Valerius Catullus, Carmina<br />

<strong>Chicos</strong><br />

1<br />

Cui dono lepidum nouum libellum<br />

arida modo pumice expolitum?<br />

Corneli, tibi: namque tu solebas<br />

meas esse aliquid putare nugas<br />

iam tum, cum ausus es unus Italorum<br />

omne aeuum tribus explicare cartis<br />

doctis, Iuppiter, et laboriosis.<br />

quare habe tibi quidquid hoc libelli<br />

qualecumque; quod, patrona virgo<br />

plus uno maneat perenne saeclo.<br />

1<br />

Pra quem dar este livrello, belo, pura<br />

manha da nova idade, que a pedra-pomes<br />

polissedou? te dou, Cornélio, que os ares<br />

meus, minhas tolices, toleraste -- tu que,<br />

pioneiro entre nós, ousaste toda era e<br />

todo povo numa história só contar:<br />

três tomos (árduos!) do sabor do saber.<br />

toma o meu livrello, valha o que valer;<br />

virgem que me conduz, concede que dure,<br />

que a luz do sol de outro século o macule.<br />

04


<strong>Chicos</strong><br />

2<br />

Passer, deliciae meae puellae,<br />

quicum ludere, quem in sinu tenere,<br />

cui primum digitum dare adpetenti<br />

et acris solet incitare morsus,<br />

cum desiderio meo nitenti<br />

carum nescio quid libet iocari<br />

(et solaciolum sui doloris,<br />

credo, ut tum gravis adquiescat ardor),<br />

tecum ludere sicut ipsa possem<br />

et tristis animi levare curas!<br />

2<br />

Pardal, delícia amor do meu amor,<br />

no peitinho, apertado, brinca, pica<br />

a ponta do dedinho — toma? ai! —<br />

provocando a mordida que queria;<br />

o desejo brilhando-me no olho<br />

ela sabe tecer, torcer, turvar<br />

como um consolo dela, bela, má,<br />

sei lá se, teso, um peso há que calar:<br />

se eu pudesse brincar assim contigo<br />

e ensolarar de sim minh'alma escura.<br />

05


<strong>Chicos</strong><br />

2b<br />

...<br />

Tam gratum est mihi quam ferunt puellae<br />

pernici aureolum fuisse malum,<br />

quod zonam solvit diu ligatam.<br />

2b<br />

...<br />

me descobrir feliz como a menina<br />

quando a maçã dourada desatou seu<br />

cinto de virgem há tanto trançado.<br />

06


<strong>Chicos</strong><br />

3<br />

Lugete, o Veneres Cupidinesque<br />

et quantum est hominum venustiorum!<br />

passer mortuus est meae puellae,<br />

passer, deliciae meae puellae,<br />

quem plus illa oculis suis amabat;<br />

nam mellitus erat, suamque norat<br />

ipsa tam bene quam puella matrem,<br />

nec sese a gremio illius movebat,<br />

sed circumsiliens modo huc modo illuc<br />

ad solam dominam usque pipiabat.<br />

qui nunc it per iter tenebricosum<br />

illuc unde negant redire quemquam.<br />

at vobis male sit, malae tenebrae<br />

Orci, quae omnia bella devoratis;<br />

tam bellum mihi passerem abstulistis.<br />

o factum male! o miselle passer!<br />

tua nunc opera meae puellae<br />

flendo turgiduli rubent ocelli.<br />

07


<strong>Chicos</strong><br />

3<br />

Que venham prantos, de Vênus e Cupidos,<br />

de você, você, de quem venera o belo: o<br />

pardal morreu que era só do meu amor,<br />

pardal, delícia amor do meu amor,<br />

que ela mais que a luz dos olhos seus queria --<br />

que era doce, mais que o mel, e que a seguia<br />

com o passo de menina atrás da mãe.<br />

no colo quietinho, quentinho, calado;<br />

pulando, voando, pra cá e pra lá;<br />

e só pra ela (ama me ama) ele pia:<br />

agora, sozinho, a estrada escura o traga,<br />

de onde, dizem, ninguém retornará.<br />

malditas escuridões do Orco, porcas<br />

que devorais nosso bálsamo de belo:<br />

meu pardal sem par, tão belo, rapinastes.<br />

que maldade! tão pequeno um passarinho!<br />

agora — o que fizestes... — o meu amor —<br />

olhinhos inchados, vermelhos de lágrima.<br />

08


<strong>Chicos</strong><br />

4<br />

Phasellus ille, quem videtis, hospites,<br />

ait fuisse navium celerrimus,<br />

neque ullius natantis impetum trabis<br />

nequisse praeterire, sive palmulis<br />

opus foret volare sive linteo.<br />

et hoc negat minacis Hadriatici<br />

negare litus insulasve Cycladas<br />

Rhodumque nobilem horridamque Thraciam<br />

Propontida trucemve Ponticum sinum,<br />

ubi iste post phasellus antea fuit<br />

comata silva: nam Cytorio in iugo<br />

loquente saepe sibilum edidit coma.<br />

Amastri Pontica et Cytore buxifer,<br />

tibi haec fuisse et esse cognitissima<br />

ait phasellus; ultima ex origine<br />

tuo stetisse dicit in cacumine,<br />

tuo imbuisse palmulas in aequore,<br />

et inde tot per impotentia freta<br />

erum tulisse, laeva sive dextera<br />

vocaret aura, sive utrumque Iuppiter<br />

simul secundus incidisset in pedem;<br />

neque ulla vota litoralibus diis<br />

sibi esse facta, cum veniret a mari<br />

novissimo hunc ad usque limpidum lacum.<br />

sed haec prius fuere: nunc recondita<br />

senet quiete seque dedicat tibi,<br />

gemelle Castor et gemelle Castoris.<br />

09


<strong>Chicos</strong><br />

4<br />

O barco, amigo meu, que vês, dormindo, ali<br />

diz que foi, uma vez, a mais veloz das naves,<br />

e que nenhuma quilha-gume, lenha alguma,<br />

que não sobrepujasse: no rasgar dos remos<br />

ou no linho retenso das velas, voava.<br />

ninguém nega: o cruel Adriático, as mínimas<br />

Cíclades, não o negam, ou Rodes a nobre,<br />

nem na Trácia a Propôntida horrenda o nega,<br />

as estranhas entranhas do Ponto assassino,<br />

onde ele, ali, que é hoje um barco um dia foi<br />

a floresta frondosa que encima o Citoro,<br />

ele às folhas falando, seda a ciciar.<br />

Pôntica Amástris, Citoro sé de carvalhos,<br />

meu barco diz que disso sabes muito bem,<br />

que no momento exato em que se viu brotar<br />

teu cume o viu, crescer, intumescer em troncos,<br />

tuas águas tocar, molhar seu remo virgem.<br />

de lá, por mar e atormentado mar, seu amo<br />

trouxe, por vento destro e por sinistro, Júpiter<br />

na popa, um golpe, engravidando ambas as velas.<br />

não implorou a deus do mar nenhum ao vir por<br />

mares sem marca a este casto, claro lago.<br />

mas tudo isso já passou. agora, amado,<br />

descansa em calma, envelhece, leve e pesado,<br />

e decidiu se dar em oferenda a ti,<br />

gêmeo Castor, e a ti, que és gêmeo de Castor.<br />

10


<strong>Chicos</strong><br />

6<br />

Flavi, delicias tuas Catullo,<br />

ni sint illepidae atque inelegantes,<br />

uelles dicere nec tacere posses.<br />

uerum nescio quid febriculosi<br />

scorti diligis: hoc pudet fateri.<br />

nam te non uiduas iacere noctes<br />

nequiquam tacitum cubile clamat<br />

sertis ac Syrio fragrans oliuo,<br />

puluinusque peraeque et hic et ille<br />

attritus, tremulique quassa lecti<br />

argutatio inambulatioque.<br />

nam non stupra ualet nihil tacere.<br />

cur? non tam latera ecfututa pandas,<br />

ni tu quid facias ineptiarum.<br />

quare, quidquid habes boni malique,<br />

dic nobis. uolo te ac tuos amores<br />

ad caelum lepido uocare uersu.<br />

11


<strong>Chicos</strong><br />

6<br />

Flávio, se ela não fosse sem graça e grossa,<br />

dessa delícia tua ao teu Catulo<br />

não calarias, quererias contar.<br />

Que tipo de puta com tifo contigo<br />

se esgarça não sei: a vergonha te engasga.<br />

Mas se a língua anda lerda, a cama proclama,<br />

fragrante de flor e de ungüentos da Síria,<br />

que, pra você, noites solteiras não mais,<br />

(travesseiro marcado, olha esse, e o outro,<br />

de um lado, de outro, manchado, encharcado)<br />

ainda tremendo, rangendo, ela ralha:<br />

toalha não há que cubra essa bandalha.<br />

e pra quê? as ancas mancas trombeteiam:<br />

que peça, tropeça, vexame a vexame.<br />

anda, vá lá, me conta, o mau e o bem bom,<br />

solta o verbo, que a leveza do meu verso<br />

a ti e ao teu amor ao céu alçará.<br />

12


<strong>Chicos</strong><br />

7<br />

Quaeris, quot mihi basiationes<br />

tuae, Lesbia, sint satis superque.<br />

quam magnus numerus Libyssae harenae<br />

lasarpiciferis iacet Cyrenis<br />

oraclum Iouis inter aestuosi<br />

et Batti ueteris sacrum sepulcrum;<br />

aut quam sidera multa, cum tacet nox,<br />

furtiuos hominum uident amores:<br />

tam te basia multa basiare<br />

uesano satis et super Catullo est,<br />

quae nec pernumerare curiosi<br />

possint nec mala fascinare lingua.<br />

7<br />

Quer saber quantos beijos teus me bastam,<br />

Lésbia, e quantos são mais do que demais?<br />

são quantos grãos de areia líbia o vento<br />

por entre os sílfios de Cirene arrasta,<br />

do oráculo de Júpiter ardendo,<br />

ao sacro túmulo do velho rei;<br />

quantas estrelas, quando a noite cala,<br />

velam o medo mudo amor dos homens;<br />

tantos beijos beijar sacia o insano<br />

Catulo e quase são mais que demais:<br />

confundindo o contar do intrometido,<br />

minguando a língua má de quem mandinga.<br />

13


<strong>Chicos</strong><br />

8<br />

Miser Catulle, desinas ineptire,<br />

et quod uides perisse perditum ducas.<br />

fulsere quondam candidi tibi soles,<br />

cum uentitabas quo puella ducebat<br />

amata nobis quantum amabitur nulla.<br />

ibi illa multa cum iocosa fiebant,<br />

quae tu uolebas nec puella nolebat,<br />

fulsere uere candidi tibi soles.<br />

nunc iam illa non uult: tu quoque impotens, noli<br />

nec quae fugit sectare, nec miser uiue,<br />

sed obstinata mente perfer, obdura.<br />

uale puella, iam Catullus obdurat,<br />

nec te requiret nec rogabit inuitam.<br />

at tu dolebis, cum rogaberis nulla.<br />

scelesta, uae te, quae tibi manet uita?<br />

quis nunc te adibit? cui uideberis bella?<br />

quem nunc amabis? cuius esse diceris?<br />

quem basiabis? cui labella mordebis<br />

at tu, Catulle, destinatus obdura.<br />

14


<strong>Chicos</strong><br />

8<br />

Pobre Catulo, chega de loucura, chega.<br />

acabou-se. o que era doce se perdeu.<br />

os sóis que te banharam de ouro nunca mais,<br />

do teu tempo de escravo a menina feliz<br />

amada por nós como outra jamais o será;<br />

e era tanto o que rias, e tanto o querias,<br />

e que nunca fazia a menina infeliz.<br />

os sóis que te banharam, de ouro sei que foram.<br />

mas ela nao quer mais: impotente que sejas<br />

não imita quem foge, não fuja, não minta,<br />

a cabeça clara, dura, cala, resiste,<br />

vai, menina, vai, porque o Catulo resiste,<br />

não vai te pedir, não vai te mandar, não vai,<br />

e quando ninguém mais te quiser, vai sofrer.<br />

maldita, que migalha de vida te resta?<br />

quem vem te ver? e pra que, pra quem, te enfeitar?<br />

quem vais amar? e quem vais chamar de teu dono?<br />

quem vais beijar? que lábio terás pra morder?<br />

mas tu, Catulo, pedra pura, tu resistes.<br />

15


<strong>Chicos</strong><br />

Flausina Márcia<br />

Flausina Márcia da Silva, nasceu em Cataguases<br />

(MG), mora em Belo Horizonte (MG).<br />

Autora, entre outros dos livros de poesia:<br />

Vagalume (2002), Sua Casa Minha Cruz<br />

(2003) e Poemas Declives (2014).<br />

Insignificada<br />

meu poema brega<br />

é um louva-deus<br />

honra ao mérito<br />

e sonhos meus.<br />

é feito tristeza<br />

muito sentida<br />

não de sofrer<br />

moda batida<br />

é faz-de-conta<br />

uma alegria<br />

vívida decerto<br />

em erro de guia<br />

16


<strong>Chicos</strong><br />

meu poema brega<br />

é de usar batom<br />

um pouco de cuspe<br />

nas sobrancelhas<br />

escaravelhos de poe<br />

é sujeito mimado<br />

insurreto e honrado<br />

com velas e choros<br />

em altos de morros<br />

corações de tambor<br />

meu poema brega<br />

não gosta de mim<br />

tenho pouco nariz<br />

e olhos traiçoeiros<br />

verdes, de Braga<br />

esquece, galera<br />

vê se estou lá, na<br />

esquina do calor<br />

com frio na alma<br />

eu não sou assim<br />

Sou de amar sem barulho.<br />

Julho/2018<br />

17


<strong>Chicos</strong><br />

Marcelo Benini<br />

Marcelo Benini, nasceu em Cataguases<br />

(MG), mora em Brasília (DF). É autor de O<br />

Capim Sobre o Coleiro (Poesia 2010), Fazenda<br />

de Cacos (Poesia 2014), Currais Concretos<br />

(Poesia 2018) e o O Homem Interdito<br />

(Crônicas 2012).<br />

Afluentes<br />

É tardo o instante em que duas águas se banham<br />

Rios incomuns<br />

Mas desse breve ato de coito e torvelinho<br />

Há o rio seguinte<br />

Das manhãs de onças e lobos<br />

Nas praias ensolaradas dos curumins<br />

Tudo é largo pela primeira vez.<br />

18


Lenda da fundação da cidade de Cataguases<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Em princípio, nas jabuticabeiras<br />

Só nasciam bolas de gude<br />

Para espanto dos botocudos<br />

Coroados, puris e coropós<br />

O sol foi amolecendo os frutos<br />

Ano após ano<br />

E no dia sete de setembro<br />

De mil oitocentos e setenta e sete<br />

Uma bola de gude explodiu nas mãos<br />

De um curimim<br />

Que ao levar os dedos à boca<br />

Encerrou para sempre o jogo<br />

De bilosca entre os índios de Vera Cruz<br />

19


Mal estar<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Massa de céu e barro<br />

Socada em pilão até virar carne<br />

Vilmente arrojados<br />

Em que pesem chuva, vento e sol<br />

Soem existir<br />

Carregados da nostalgia do céu<br />

E da pulsão do barro.<br />

Bambuzal em chamas<br />

Desabam catedrais secas<br />

Por bruxarias e sombras condenadas<br />

E cadáveres de saruê<br />

Estralam os ossos<br />

A inquisição das varas<br />

Em bailarinas chamas que transpõem aceros<br />

Por injúria e volume agrestes<br />

Queimam os bambuzais.<br />

De seu último livro Currais Concretos<br />

20


<strong>Chicos</strong><br />

Acir Simões<br />

Acir Simões, nasceu em Cataguases (MG),<br />

mora em Belo Horizonte (MG). È poeta e contista<br />

Saxofonista<br />

São cinco horas da tarde e nada de o saxofonista que mora<br />

No prédio em frente aparecer.<br />

Eu na varanda e o morador um andar<br />

Após o saxofonista me olha desafiador.<br />

É o mesmo que acha o saxofonista um vagabundo.<br />

E eu que sou amigo do saxofonista, sem nunca conhecê-lo,<br />

E que aplaudiu de cá da varanda as notas e arranjos,<br />

Também sou vagabundo,<br />

De acordo com o olhar severo do homem que mora acima do saxofonista.<br />

(Estranho como certos olhares nos inibem, nos censuram<br />

21


<strong>Chicos</strong><br />

De acordo com o olhar severo do homem que mora acima do saxofonista.<br />

(Estranho como certos olhares nos inibem, nos censuram<br />

E geram o medo que tem a incorrigível tendência a crescer como as unhas.)<br />

Foi a volta da pessoa amada que silenciou o saxofonista?<br />

Foi doença? Artrose nos dedos? AVC lhe entortando a boca?<br />

Talvez mudou.<br />

Talvez tenha sido expulso<br />

Pelo olhar severo do vizinho de cima.<br />

Mas é certo: quando mudar o vizinho de cima, nada ficará para contar sua<br />

história.<br />

Nem o rastro de hipocrisia do olhar severo.<br />

O saxofonista, não. Suas canções se eternizarão,<br />

Enquanto viverem os que o ouviram.<br />

22


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Ronaldo Cagiano, nasceu em Cataguases<br />

(MG), mora em Portugal. Autor, entre outros,<br />

de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio<br />

Brasília de Produção Literária 2001), O<br />

sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio<br />

Portugal Telecom 2012) e Eles não moram<br />

mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016).<br />

Natureza morta<br />

Aquela incômoda cômoda<br />

albergando nossa foto de casamento<br />

Abismo<br />

Essa imensa vagina<br />

a nos (a)trair.<br />

23


<strong>Chicos</strong><br />

Imagens<br />

para Inês Lourenço<br />

Na parede<br />

nenhum resquício do que foram<br />

a família, o tempo, os diplomas.<br />

Só o calendário do<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

ainda resiste<br />

com sua serventia<br />

de aterro sanitário<br />

para as moscas que dão vida<br />

àquele albergue de fantasmas.<br />

Do passado<br />

só restam lembranças:<br />

entre a mobília capenga<br />

a mãe em um trono Singer<br />

seu ritual de agulhas<br />

seu duelo de alfinetes<br />

seu diálogo com retroses<br />

o pai arrumando a antena<br />

para ouvir a Hora do Ângelus<br />

e assistir ao Repórter Esso<br />

Na escuridão<br />

do ontem irremovível,<br />

verdades cravadas.<br />

24


<strong>Chicos</strong><br />

Rotina<br />

O último trem vara meus instintos<br />

– a vida segue como um tiro.<br />

Tanussi Cardoso<br />

Do pátio da velha estação<br />

(esqueleto desativado onde hibernam morcegos) procuro<br />

no tempo escuro e abissal<br />

a histriônica locomotiva da infância<br />

penetrando a cidade como um raio.<br />

Fera metálica atravancando a avenida<br />

beirava o córrego como uma centopeia<br />

arengueira recolhendo os olhares de mulheres nas janelas<br />

adestrando o galope dos moleques<br />

que, disputando com a máquina alucinada,<br />

venciam a corrida contra alguma coisa que não sabiam<br />

Aquele trem no vai e vem<br />

com seu barulho contumaz<br />

emerge – feito o passado latente –<br />

dos escaninhos da noite<br />

Animal sem metafísica<br />

insistente como o presente<br />

ainda impõe a melodia insolente<br />

dos apitos<br />

enquanto<br />

desconheço a tirania do futuro<br />

25


<strong>Chicos</strong><br />

Ruínas<br />

Cadáver de um prédio<br />

corpo inconcluso<br />

organismo em ruínas<br />

apedrejado pela incúria pública<br />

Contemplo o esqueleto de cimento<br />

contrastando com a opulência da avenida feérica<br />

com suas vísceras à mostra<br />

como um cão faminto<br />

sem força para rosnar<br />

sem alma<br />

sem nada<br />

desossada estrutura, palavra<br />

sem cal<br />

nem mal<br />

Lugar sem nome<br />

vazio que se impõe<br />

ovário vertical germinando indiferenças<br />

túmulo de histórias<br />

Apenas um espantalho inútil<br />

na lavoura de espantos da metrópole<br />

passam por ti os homens<br />

não se movem<br />

nem têm medo<br />

26


<strong>Chicos</strong><br />

Gleison Dornellas<br />

Gleison Dornelas, nasceu em Cataguases (MG)<br />

poeta e professor, é autor de Um minuto na eternidade<br />

(2012)<br />

Para não morrer<br />

Meu mundo me encurtou o espaço!<br />

Meu andar não mais me espera.<br />

Sou de um tempo e de uma era<br />

que não faz sentido o que faço.<br />

Meus pensamentos ultrapassados<br />

pelos mitos, tabus, mentiras e moda.<br />

Meu tempo não tem espaço<br />

e o que eu penso, incomoda.<br />

Meu futuro é o passado.<br />

Meus conceitos viajam no silêncio<br />

de dor, de amor descompassado.<br />

Meu poema encontra meu ser.<br />

Neste poema guardo-me quedo,<br />

suavemente, para não morrer.<br />

27


Trajetória ao zero<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Enredado em paixões, entregue às críticas,<br />

estou resoluto a extinguir o enigma<br />

que o tempo e a traça não corroem.<br />

Sei, e espero, ofendido ser pela<br />

insônia dentro dos meus próprios<br />

sonhos... em que acordo sempre.<br />

Eu sei, e estou certo das incertezas.<br />

Todavia, não temerei o zero;<br />

nem me ocultarei do nada.<br />

Não mais espero o prolongar do meu segredo...<br />

eu sei, ainda é cedo.<br />

As trajetórias são de perdição<br />

e os seus fins são de glória.<br />

Se derrotar é uma vitória<br />

se a batalha não é em vão.<br />

Eu agora dispenso o medo.<br />

Não posso a noite esperar<br />

para revelar meu segredo.<br />

A brasa da soledade não se apaga.<br />

Ao espaço, gritarei o meu segredo...<br />

onde o som não se propaga.<br />

28


<strong>Chicos</strong><br />

Antônio Carlos<br />

Lemos Ferreira<br />

Nasceu e mora Juiz de Fora (MG). Poeta e professor<br />

de história.<br />

“Apaixonado pelo rio barrento que atravessa minha<br />

cidade, Tenho me valido do verso, como<br />

forma de desabafar. Reconheço parecer uma indignidade,<br />

mas sei também ser uma necessidade.<br />

Estar no mundo é uma arte.”<br />

Ladainha do China Seco<br />

Lá na Boiada<br />

Aquele morro ancestral<br />

C’o esse nome especial<br />

Onde começa a cidade<br />

Era sobrenatural...<br />

Lá os tropeiro...<br />

Davam pouso a animalia<br />

A Carumba eles cumia<br />

E puxava cantoria<br />

Depois ia descansá...<br />

Esse lurgá...<br />

Tinha u’as casinha branca<br />

Cubetinha assim de têia<br />

Uma bem pertim da ôtra<br />

E formava um Arraiá<br />

29


Era tão belo...<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Tinha uma capelinha<br />

O santo era de pau<br />

E também um cemitério<br />

Que tinha fama de mau...<br />

Lá nesse morro<br />

Hoje toca berimbau<br />

Lá também tem capoeira<br />

Tem D’angola e Regional<br />

Era assombrado...<br />

Tinh’umas bolas de fogo<br />

E galinha colorida<br />

Ói... lá nas altura riba<br />

Diz o povo Ai, Ai, meu Deus...<br />

Mas Santo Antônho...<br />

De lá era padroeiro<br />

Era fiel escudêro<br />

Se invocado era certêro<br />

Contra aquelas maldição<br />

Ai! Ai! me valha!!!<br />

Meu santo casamentêro<br />

Me socorre vem ligêro<br />

Taz a sua proteção<br />

Mas além disso...<br />

Tinha coisa in’da pior<br />

Dava medo bem maior<br />

Era o que o povo contava<br />

Que no morro aconteceu...<br />

30


O China Seco<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Era um corpo pele e osso<br />

Que na pedra foi jogado<br />

Ele não foi sepultado<br />

Também num apodreceu<br />

Desse epísódio...<br />

O povo não se esqueceu<br />

Foi o nome que lhe dêro<br />

Foi no tempo do império<br />

Sua fama assim se deu...<br />

Lá no lurgá<br />

Tem históra e jografia<br />

Mas lá nem o gato mia<br />

O segredo ainda vigia<br />

Tudo isso que ocorreu...<br />

I’nda tem mais...<br />

Quando houve uma mudança<br />

A cidade teve andança<br />

Abandonô suas lembrança<br />

E o rio atravessô...<br />

Do ôtro lado ...<br />

Faltô santo padroêro<br />

Pra cumeçá a cidade<br />

E vieram então ligêro<br />

De cá o santo levô...<br />

O Santo Antônho ...<br />

Que já era lá do morro<br />

De’n da sua capelinha<br />

31


O Santo Antônho ...<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Que já era lá do morro<br />

De’n da sua capelinha<br />

Onde tinha moradia<br />

Num gostô foi disso não<br />

E fez milagre!!!<br />

Virô o Santo Fujão...<br />

Foi e vortô duas vezes<br />

Carregado de mansinho<br />

Dentro d’uma procissão<br />

Foi e vortôo!!!...<br />

Por que era aqui do Morro<br />

Padroêro dos tropêro<br />

Daquele povo miúdo<br />

A quem dava proteção<br />

Num diantô...<br />

Viajarô ele de novo<br />

Dessa vez fôro os graúdo<br />

Recrutáro seu serviço<br />

Na igreja principal<br />

Onde é hoje a catedral...<br />

Guardarô o santo...<br />

Pra deixá de ser Fujão<br />

Ele foi iscravizado<br />

Fica sempre vigiado<br />

E tá preso desde então...<br />

32


<strong>Chicos</strong><br />

Esta cidade...<br />

I’nda tem essa mania<br />

De tratá com grosseria<br />

Quem por uma ninharia<br />

Lhe causa disilusão...<br />

E sem remédio!!!<br />

Ficarô os boiadêro<br />

Pois sem o seu padroêro<br />

Sem o santo e sem dinhêro<br />

Abandonáro o Lurgá...<br />

A ti Caboclo...<br />

Que deixô pra nós a lenda<br />

Quero que Vc. Entenda<br />

Que valeu a oferenda<br />

Sua voz vai perdurá<br />

Do ôuto lado...<br />

Desse rio Paraibuna<br />

Foi surgir Juiz de Fora<br />

Cujo nome e a história<br />

N’outra hora Eu vô contá...<br />

Iê viva Meu Deus!!!!!!!!!!!<br />

Eh! Viva meu Deus Camará....<br />

Eh! Morro da Boiada Ô Lerê!!!<br />

Eh! Morro da Boiada Ô Lerê!!!<br />

33


No posto de atendimento<br />

<strong>Chicos</strong><br />

corpo jovem se ajeita<br />

contendo vontades e<br />

necessidades<br />

Na rua a pressa<br />

esconde rosto<br />

do passante ao lado<br />

até o perdeu, cara! passa tudo.<br />

O capital<br />

em saltos acrobáticos<br />

acumulando números<br />

prensa os corpos<br />

frangos+jovens+velhos+tudo<br />

humanos ou não<br />

o tempo jaz<br />

junto de tudo<br />

preso às<br />

mercadorias<br />

Ora, o tempo<br />

também ele<br />

só existe como<br />

criação do homem.<br />

34


<strong>Chicos</strong><br />

Helen Massote<br />

Helen Massote,, nasceu em Belo Horizonte (MG)<br />

mora no Rio de Janeiro (RJ) poeta e cronista, trabalha<br />

no Portal Fiocruz.<br />

Tudo o que eu achei<br />

Levado pelo vento<br />

Pela janela da<br />

Casa dos Pássaros<br />

Entraram cantos de muitas línguas<br />

Sem falantes vivos<br />

No mapa de todas as tribos<br />

Uma revoada de borboletas redivivas<br />

Trouxe de volta<br />

Sha Amum que repousou solene<br />

Ao lado do trono de Daomé<br />

Onde Luzia, nosso mais remoto<br />

Vestígio de humanidade<br />

Agora se refugiou.<br />

35


<strong>Chicos</strong><br />

Inez Andrade Paes<br />

Inez Andrade Paes, nasceu em Pemba<br />

(Moçambique). Autora de O Mar que Toca em Ti<br />

(Crônica de viagem - 2002); Paredes Abertas ao<br />

Céu (Poesia - 2011); Libreto em três atos, constituindo<br />

a Cantoriana Marítima - Acto I Mar falante,<br />

Acto II Transparente Luva de Água, Acto III<br />

Flores de Acanto em Marfileno Lençol ; D Estrada<br />

Vermelha (Poesia 2015); Da Eterna vontade<br />

(Poesia 2015) : À Margem de Todos os Rostos<br />

(2017). Coordena desde 2012 o Prêmio Literário<br />

Glória de Sant”Anna.<br />

Flâmula<br />

ergues‐te e voas<br />

da cansada tarde<br />

de restolho de ouro quebrado ao vento<br />

36


Nadina<br />

<strong>Chicos</strong><br />

de caracóis largos e negros<br />

passeava a menina pela casa<br />

olhava o chão que a encantava<br />

não pelo espaço<br />

mas pelo passo<br />

que de pequeno alargava<br />

com o sapato que calçava<br />

***<br />

há pássaros que nos dizem do amor<br />

quando poisam nas flores<br />

e espalham pólen<br />

por todos nós<br />

37


<strong>Chicos</strong><br />

Luljeta Lleshanaku<br />

Luljeta (ler Liublieta) nasceu em Elbasan, Albânia,<br />

em 1968. Cresceu em prisão domiciliar<br />

durante a ditadura de Enver Hoxha. Na<br />

queda do regime, em 1990, cursou Filologia<br />

Albanesa na Universidade de Tirana, a seguir<br />

trabalhou como professora, editora e jornalista.<br />

A sua poesia destaca-se na mais recente<br />

poesia albanesa pelas fortes imagens, humor<br />

e sensibilidade e por uma particular ênfase<br />

na condição humana no leste europeu.<br />

Quando pela primeira vez olhei uma pintura verdadeira<br />

dei alguns passos atrás instintivamente<br />

sobre os calcanhares<br />

procurando o local exato de<br />

onde pudesse explorar sua profundidade.<br />

Foi diferente com as pessoas:<br />

Construí-as,<br />

amei-as, mas não cheguei a amá-las plenamente.<br />

Nenhuma chegou tão alto quanto o teto azul.<br />

Como numa casa inacabada, parecia haver uma folha de plástico por cima delas,<br />

por vez do telhado<br />

no princípio do outono chuvoso da minha compreensão.<br />

38


O mistério das orações<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Na minha família<br />

as orações eram ditas em segredo,<br />

suavemente, murmuradas sob cobertores por<br />

narizes obstruídos,<br />

um suspiro antes e um suspiro depois<br />

finos e estéreis como um curativo.<br />

No exterior da casa<br />

havia apenas uma escada de madeira<br />

para subir, encostada à parede durante todo o ano,<br />

pronta a usar em Agosto para reparar as telhas antes das chuvas.<br />

Nenhum anjo subiu<br />

e nenhum anjo desceu –<br />

somente homens sofrendo de ciática.<br />

Oravam para obter um vislumbre Dele<br />

na esperança de poder renegociar contratos<br />

ou adiar prazos.<br />

39


<strong>Chicos</strong><br />

"Senhor, dai-me força", diziam eles<br />

pois eram descendentes de Esaú<br />

e tinham que se contentar com a bênção<br />

deixada por Jacob,<br />

a bênção da espada.<br />

Em minha casa, rezar era considerado uma fraqueza<br />

como fazer amor.<br />

E tal como fazer amor<br />

era seguido pela longa<br />

noite fria do corpo.<br />

40


Prisioneiros<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Prisioneiros<br />

culpados ou não<br />

parecem sempre iguais quando são libertados –<br />

patriarcas destronados.<br />

Este acabou de passar cabisbaixo<br />

pelo portão, apesar de não ser alto<br />

seus gestos como os de um Beduíno<br />

entrando na tenda<br />

transportando às costas o dia inteiro.<br />

Cortinas de algodão, paredes de pedra, o cheiro a cal queimada<br />

levam-no de volta para o momento<br />

em que a guerra fria terminou.<br />

No outro dia, o seu lençol foi pendurado no pátio<br />

como se a ostentar a mancha de sangue<br />

depois da noite de núpcias.<br />

41


<strong>Chicos</strong><br />

Rostos manchados pelo sol<br />

cercam-no, todos olhos e ouvidos:<br />

"Com o que é que sonhaste a noite passada?"<br />

Os sonhos de um prisioneiro<br />

são pergaminhos<br />

feitos sagrados pelas passagens em falta.<br />

Sua irmã ainda está a descobrir os seus estranhos hábitos:<br />

pedaços de pão escondidos nos bolsos, e sob a cama<br />

o implacável corte da madeira para o inverno.<br />

Porquê este medo?<br />

O que pode ser pior do que a vida na prisão?<br />

Ter escolhas<br />

mas ser incapaz de escolher.<br />

42


Eles apressam-se a morrer<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Eles estão a morrer um após o outro;<br />

lançar terra sobre eles tornou-se tão comum<br />

como aspergir sal na comida.<br />

São todos eles da mesma geração, a minha família,<br />

ou mais precisamente, da mesma época,<br />

e os filhos de uma época são como cães amarrados a um trenó:<br />

na sua busca pelo ouro<br />

ou correm todos ou caem juntos.<br />

Não é matemática,<br />

é como um pente, um pente que domará um cabelo em rebelião<br />

após um namorico louco, ante o espelho.<br />

Versão de João Luís Barreto Guimarães a partir<br />

do inglês Child of nature (New Directions, New<br />

York, 2010), traduzidos do albanês por Henry<br />

Israeli e Shpresa Qatipi.<br />

43


<strong>Chicos</strong><br />

Claudio Sesín<br />

Claudio Luis Sesín nasceu em Villa<br />

Dolores, Valle Viejo, passou sua infância<br />

e cresceu em Pomán, Província de<br />

Catamarca, Argentina. Publicou entre<br />

outros La Barbárie (1993) El libro de<br />

los poemas casuales (2008) em edição<br />

bilíngue espanhol-português<br />

Cielos de Oruro<br />

Mirar la inmensidad cuando acontece<br />

al resplandor de un mediodía ardiente,<br />

sabiendo que la tarde em el poniente<br />

abre un golpe de frío que entumece.<br />

Mirar a Oruro como a dos mitades,<br />

el tren cruza su tiempo ensimismado<br />

hacia arriba la paz, lo cotidiano,<br />

mientras llegan sus hijos a esa tarde.<br />

Los mineros de Oruro soterrados,<br />

generaciones sin cielo, pan o lumbre,<br />

son espíritu en tumbo de los hombres<br />

bajando sus laderas descuidados,<br />

a beber un alcohol desmemoriado,<br />

como ñinos perdidos de sus nombres.<br />

44


<strong>Chicos</strong><br />

José Antonio Pereira<br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />

casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e<br />

autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

E o que ela faz que eu não faço?<br />

Um velho vem descendo pela calçada.<br />

Dois amigos conversam na porta da padaria<br />

e observam os movimentos da manhã. O<br />

velho para, olha atentamente a vitrine de<br />

uma loja popular, gira lentamente para<br />

olhar o andar da jovem mulher em todo seu<br />

frescor. Se aproxima dos dois que já o observavam<br />

à distância. Jarbas dirige-se a ele<br />

com a intimidade de quem o conhece há<br />

muito tempo. – Uai Tão, você está olhando<br />

o quê? Antes da dona Cota falecer, você<br />

dizia pra ela que não enxergava direito. –<br />

Bom dia Jarbas! Bom dia senhor! Este rapaz<br />

sempre foi mal-educado, nem te apresentou<br />

a mim e vai cuspindo suas asneiras. –<br />

José! Este é meu velho amigo Sebastião,<br />

vulgo Tão. – Vulgo o cacete! Eu lá sou bandido<br />

ô Jarbas. – Deixa de onda Tão! Te conheço<br />

há muito tempo, você é um velho<br />

malandro. Vamos tomar um café aqui na<br />

padaria. Hoje você não paga nada, é nosso<br />

convidado. Vamos sentar e prosear um pouco.<br />

O José, tanto quanto eu, gosta de ouvir<br />

um camarada cheio de lábia como você.<br />

Sentaram-se numa mesa mais ao fundo. O<br />

movimento era maior junto ao balcão onde<br />

vários fregueses compravam pães para o<br />

café da manhã. É domingo, a cidade acorda<br />

preguiçosamente, ninguém tem pressa. Cada<br />

um vai pedindo o café ao seu jeito. José<br />

já apresentado ao velho. Dirige-se a ele. –<br />

Senhor Sebastião... E é bruscamente interrompido<br />

por ele. – Senhor Sebastião o cacete!<br />

Pode me chamar de Tão. Jarbas entra na<br />

conversa. – José! O Tão é casca grossa, não<br />

gosta de formalidades. Coisa de zonista. –<br />

Zonista o cacete! Olha o respeito menino.<br />

– E não era não? Não saía da zona. – Pois<br />

é meninos, não sou chegado em floreios.<br />

Este panaca do Jarbas vive falando pra todo<br />

mundo que eu era devoto da Santahelena.<br />

Que desrespeito com a santa. Aquele puteiro<br />

lá era conhecido como a ilha. – E como<br />

chamava a ilha? Não era ilha de Santa Helena?<br />

– Era! – Então pronto. Trazem para<br />

a mesa uma cesta com pães de queijo.<br />

Tão aspira lentamente, – Que cheiro! Que<br />

delícia! Eu gosto de andar pelas manhãs de<br />

domingo no verão. As mulheres saem com<br />

aquele suave e refrescante cheiro de banho<br />

recente, as padarias soltando suas fornadas<br />

de pães, o cheiro do café. Que delícia!<br />

45


Jarbas que olhava duas mulheres que acabaram<br />

de entrar, com o cotovelo cutuca o<br />

velho. – Olha só o mulherio Tão! Você dá<br />

conta? – Dô conta não! Já fui bom nisso.<br />

Mas, hoje em dia... broxei! – Conta pra nós<br />

seu caso com a Vanda. – Não estou a fim<br />

não. Jarbas sabe que é só começar que o<br />

velho vai se empolgar. – Então conto eu, depois<br />

você continua. Zé, a Vanda era a namorada<br />

do Tão lá na ilha. – Namorada o<br />

cacete! Amante. – Tudo bem! Amante? Você<br />

era de uma fidelidade canina a ela. O<br />

Tão, José! Batia cartão, segunda, quarta e<br />

sexta. Sem faltar um dia. – Cada dia uma<br />

mulher diferente. – Pois é, até o dia em<br />

que apareceu Vanda. Ele se empolgou todo.<br />

– Peraí! Não é bem assim não. Te conheço.<br />

Você vai foder com a história toda. Você<br />

Jarbas é muito sacana.<br />

Tão tomado de um inesperado pudor, põese<br />

a contar ao seu jeito a história. – Vanda<br />

era uma mulher bonita, recatada e cristã.<br />

Apesar da bronca do Murruda, ela tinha<br />

permissão do patrão, não trabalhava nem<br />

sábado nem domingo. – Quem é Murruda?<br />

Indaga José. – Era o faz tudo do estabelecimento.<br />

Porteiro, segurança e muito provavelmente<br />

cafetão de algumas meninas do<br />

pedaço. Retruca Jarbas. Tão já irritado, interpela<br />

Jarbas. – Porra Jarbas! A história é<br />

minha. Cacete, deixa de se meter. Respira<br />

com raiva, morde o pão de queijo e vira um<br />

gole de café goela abaixo. Nota que José e<br />

Jarbas estão de olho nas jovens recém chegadas,<br />

sentadas exatamente às suas costas.<br />

– Estão de olho nas meninas, né seus safados!<br />

Como eu ia dizendo, Vanda, mal clareava<br />

o dia pegava na rodoviária o primeiro<br />

ônibus para o Rio. E só voltava na segunda<br />

feira. Nunca permitiu que ninguém a acompanhasse.<br />

Aquilo me intrigava também. Ela<br />

voltava com uma energia nova. Mas nas segundas,<br />

era o cão chupando manga! Um<br />

mau humor dos infernos.<br />

46<br />

<strong>Chicos</strong><br />

A primeira vez que a vi, me chamou a atenção<br />

seu jeito. Caminhava de cabeça erguida,<br />

um olhar firme, parecia um galo de terreiro.<br />

Não se dirigia a ninguém se não fosse chamada.<br />

Sempre sentada na mesma mesa. Jarbas<br />

o interrompe. – Dizem por aí que o<br />

Murruda afirmava toda vez que o Tão chegava<br />

procurando por Vanda. Fodeu! O Tão<br />

encafifou com a Vanda. Freguês quando<br />

apaixona é foda. Dá confusão. – Vai-te a<br />

merda Jarbas! – Uai Tão? Dizem por aí<br />

que você saiu na porrada com um magrelo<br />

por causa dela. – Cacete! Nada disto é verdade.<br />

Tinha um cara meio chapado, enchendo<br />

o saco dela. E o Murruda não estava por<br />

perto. Apenas fui em socorro dela. Coisa<br />

que um cavalheiro sempre faz. E fica mudo.<br />

Jarbas continua a história. – José! A melhor<br />

do Tão eu é que vou te contar. Ele chegou<br />

na ilha uma noite e a Vanda não estava,<br />

ou estava atendendo alguém. Uma das mulheres<br />

da casa resolveu abordá-lo. E o assediou<br />

oferecendo seus serviços. Para cada<br />

serviço ofertado, ele negava com um movimento<br />

de cabeça. A mulher lá pelas tantas<br />

já de saco cheio. – Mas o que ela faz que<br />

eu não faço? – Ela faz fiado!<br />

O velho estava vermelho de raiva, parecia<br />

que ia explodir ali mesmo. A mão de uma<br />

das moças ao lado que já se preparavam<br />

para sair, toca-lhe delicadamente a cabeça,<br />

ele vira e olha e dá de cara um sorriso que o<br />

desmonta. Numa voz macia, a dona do delicado<br />

gesto, diz a ele. – Que gracinha tiozinho!<br />

Quem ama é fiel! As duas saem educadamente<br />

desejando um bom dia aos três.<br />

José quebra o silêncio e tenta apaziguar os<br />

ânimos. – Sô Sebastião, eu acredito no senhor!<br />

O velho com a boca suja de manteiga<br />

levanta-se. – Quer saber de uma coisa.<br />

Vocês dois, vão pra puta que os pariu! E<br />

sai erguendo o braço esquerdo com a mão<br />

aberta movimentando para trás da nuca,<br />

demonstrando sua indignação.


<strong>Chicos</strong><br />

Eltânia André<br />

Eltânia André, nasceu em Cataguases (MG).<br />

Mora em Portugal. È autora de Manhãs adiadas<br />

(Dobra Editorial, SP, 2012), Para fugir<br />

d o s v i v o s ( E d . P a t u á , S P ,<br />

2015), Diolindas (Ed. Penalux, SP, 2016, escrito<br />

em parceria com Ronaldo Cagiano) e<br />

Duelos (Ed. Patuá, SP. 2018).<br />

Teatro a céu aberto<br />

NARRADOR: Ofegante; para no ponto de ônibus<br />

em frente ao prédio da Gazeta. Uma multidão<br />

transita pela Avenida Paulista como na<br />

maioria dos dias. Era apenas um, poderia ficar<br />

anônimo, camuflado, quieto; sobretudo, seguro.<br />

Sentou-se na beirada do canteiro para reativar,<br />

acalmar a respiração, o brioche não lhe<br />

caiu bem, correu léguas (bela palavra, mané –<br />

interferiu o personagem) para afugentar o perigo.<br />

Descansaria o resto da tarde, reconfortante<br />

banho, uma deliciosa imersão na piscina<br />

de plástico do irmão mais novo, acostumouse<br />

à água fria; perfume na medida certa para<br />

agradar a Nara, sua Julieta, paixão que morava<br />

na rua de baixo, próximo...;<br />

ROMEU: quero falar, camarada, falar bem alto:<br />

você não é da minha roça, nunca enfrentou<br />

tocaia ou os gambés, não entende de almas,<br />

seu negócio é com as letras, com as leituras,<br />

não tem condição de falar por mim, eu, o<br />

Leão-da-Comunidade, essa selva cheia de cicatrizes<br />

em que você não colocou os pés;<br />

(linguagem poética é também dos pobres e<br />

miseráveis, meus caros colegas das Academias,<br />

interveio o narrador)<br />

NARRADOR: Que intolerância, senhor Romeu!<br />

Sou bem capaz de lhe desvendar, peço ajuda<br />

aos russos, aos neorrealistas, aos surrealistas,<br />

aos pós-qualquer-coisa, vou até aos barrocos,<br />

os exilados nalgum passado remoto; a Freud<br />

e aos pós-freudianos, tem lacanianos aos<br />

montes estudando há anos o fenômeno da...;<br />

ROMEU: seu Mané, não vem tirar onda não<br />

que eu coloco uma mortalha na sua boca<br />

cheia de dentes, não enche que hoje eu quero<br />

é pensar no amor, nas sardas da Narinha, que<br />

se espalham pelo seu corpinho, será minha<br />

mulher, vou propor casamento! Acho que estou<br />

de quatro por ela. Já fiz o meu de hoje,<br />

sobrevivente, e tive que ir sozinho, não consegui<br />

parceiro com moto. Tenho encomenda de<br />

47


vários celulares, os idiotas não entendem, não<br />

importa se o aparelho é velho ou novo, entram<br />

aos pedaços, nas bocetas-velhas-deguerra,<br />

nas bocetas das anas e das goretes<br />

NARRADOR: (Opa, entrando na literatura pós-<br />

Bukowski, muito bom, está na moda, boa costura<br />

para apreender novos leitores, linguagem<br />

chula na medida certa virou cult... e ó, está na<br />

moda nas rodas literárias, “é muito fácil parecer<br />

moderno/ enquanto se é o maior idiota<br />

jamais nascido”);<br />

ROMEU: são nossas graneleiras – elas já pariram,<br />

já abortaram infelizes: são mães, são esposas<br />

dos laranjas. Entram nos cuzões de homens<br />

barbados – cofres humanos – ou na comida,<br />

na surdina, no mercado negro dos valentes,<br />

vale tudo, o importante é entrar peça<br />

por peça, mãos certas. Meu último bote foi<br />

numa dona, cheguei a pensar que iria me dar<br />

trabalho, não queria obedecer ao medo, mas<br />

cedeu como se deve ceder à força do dragão;<br />

semana passada estava com uma Uzi, quase<br />

dentro da minha boca, tive que pedir pinico<br />

ao jumento do Bagaço, ele não veio sozinho,<br />

quase me caguei, tive que entregar parceiro,<br />

deve estar comendo terra com a boca cheia<br />

de formiga. Sou novo, quero viver mais e enquanto<br />

for, entende isso Seu Coisa?<br />

NARRADOR: Não, mas li Dante três vezes;<br />

dormia embalado pelo ritmo das rimas e a<br />

vida à italiana, li Joyce no original na adolescência,<br />

doutorado em “o não uso de reticências<br />

na literatura russa”;<br />

ROMEU: não estou nem aí para esse lambe<br />

escritorzinhos estrangeiros, eu quero é me<br />

enroscar na Narinha, depiladinha, hoje é hoje,<br />

amanhã nem sei. Ela foi fazer o exame, menstruação<br />

atrasada, estou vibrando de felicidade,<br />

o futuro do meu filho quero outro. Aqui,<br />

seu fulano estudioso da inutilidade, não tem<br />

ficção não, a vida é hoje, amanhã é muito longe,<br />

escreve isso que é bem noieira [sim, mas<br />

vou colocar sic., seu bosta – diz o narrador<br />

<strong>Chicos</strong><br />

por impulso, arrependido pelo improviso, tapa<br />

a boca como se a limpasse com um guardanapo<br />

de linho]. Ando descalço para não fazer<br />

barulho, há inimigos por todos os lados,<br />

vivo contando as horas.<br />

NARRADOR: Saiba, senhor Romeu, que o potencial<br />

móvel não está na vida, mas na escrita.<br />

Quero te eternizar e recolhê-lo dessa sonata<br />

de cadáveres que é o seu futuro e os das criaturas<br />

do seu convívio, já fizemos isso através<br />

de gigantescas pesquisas nas academias, nos<br />

laboratórios, venho de tantas eras...<br />

ROMEU: olha aqui bem próximo, dentro dos<br />

meus olhos vermelhos, vê o medo? Não! Recolhe<br />

suas anotações, enquanto toma seu<br />

drink gelado, ajusta as vigas, os parágrafos,<br />

quer escrever bonito, fazer pompas com a minha<br />

história, mas digo: você, Seu Coisa, não<br />

tem condição. Vê nas minhas costas essas<br />

marcas? Balas alojadas, estão na carne e não<br />

no papel. Sabe aquela caburé? Se precisasse,<br />

matava. É assim, eu ou ela. É a nossa guerra.<br />

Somos inimigos, qualquer um é alvo.<br />

NARRADOR: Senhor Leão, preciso recriá-lo<br />

para que viva seu exílio glorioso, ponto de<br />

vista transcendental, o Fabiano tinha a vida<br />

seca, o mestre o fez rei, a cachorra morreu<br />

para saciar o leitor... O mundo parcial, provisório,<br />

fragmentado em outros e outros, a remoção<br />

de si e exposição do seu “Eu”, os leitores<br />

admiram, emocionam-se, serei seu Virgílio,<br />

mostrarei os caminhos, quando do perigo,<br />

esconder-te-ei nas entrelinhas, inferno, purgatório<br />

e o céu, sua Nara, seu filho – tudo numa<br />

visão elegante e contemporânea. Concorda?<br />

ROMEU: Olha aqui, almofadinha duma figa,<br />

não estou para aporrinhação, mato esse tal de<br />

Dante também. Na vida real nós não damos<br />

as cartas. Medo, conhece de perto?<br />

NARRADOR: Sei, você está se referindo à angústia<br />

do narrador, suas contorções morais e<br />

estéticas.<br />

48


ROMEU: é para rir, homem, estou falando daqui<br />

deste maldito ponto de ônibus, está vendo<br />

ali deitado no chão, ele sim sofreu contorções<br />

de todo tipo. É a pedra. É o pó. É a cachaça,<br />

sacou?<br />

NARRADOR: É óbvio. Lembrei-me de Cioran,<br />

o gênio precoce, “há pessoas que vêm condenadas<br />

a saborear apenas o veneno das coisas,<br />

pessoas para quem toda surpresa é uma surpresa<br />

dolorosa e toda experiência, uma nova<br />

oportunidade de tortura”;<br />

ROMEU: taí, agora o tio está falando a minha<br />

língua, é quase um refresco, você me comoveu,<br />

Seu Coisa. Tenho dezenove anos, fiz semana<br />

passada, sou velho, sei bem o que é envelhecer,<br />

dor, experiência, tortura; isso tudo<br />

que você disse há pouco.<br />

NARRADOR: Senhor Romeu, vou colocar o<br />

Cioran em sua boca, palavra por palavra, todavia,<br />

adaptadas, tenho esse poder, usarei<br />

como quiser e o compreenderei com minha<br />

onisciência. Você dirá: Véio, nem todas as<br />

pessoas lá do morro ou do mundo perderam<br />

a ingenuidade; por isso pensam existir felicidade...<br />

ROMEU: estamos começando a nos entender,<br />

eu perdi a ingenuidade, talvez tenha sido de<br />

madrugada, deixa para lá que eu não sei filosofar,<br />

sei que bem cedo era o telefone sem fio<br />

do tráfico, ficava na esquina observando e levando<br />

alarmes para os manos, nem entendia<br />

direito, mas já me engrandecia, daí meu apelido.<br />

A vida do meu filho, outra. Agora é minha<br />

vez de inverter, você seu escritorzinho de<br />

meia-tigela, seu merda, repetirá a ordem do<br />

dia, com o olhar: Medo. Conhece? Diga sem<br />

adaptações: sou um ignorante e só sei dizer<br />

do mundo que invento e me cago de medo<br />

quando vejo, mesmo de longe, um arrastão<br />

de pivetes. Sacou?<br />

<strong>Chicos</strong><br />

NARRADOR: [ele parou alguns segundos,<br />

quase um choro, quase um homem de bem...]<br />

Há a pergunta com a resposta implícita: a literatura<br />

muda o mundo? Mediei incontáveis<br />

debates com autores da América, Ásia, Europa,<br />

África… mas o governo prefere investir em<br />

aumentar presídios.<br />

ROMEU: Saia! Enjoei dessa lengalenga sem<br />

sentido, preciso seguir sem você, se tentar me<br />

impedir eu atiro e o sangue escorrerá pelas<br />

páginas. Ia ser bom, não matei nem morri hoje.<br />

Saia!<br />

NARRADOR: Desculpe-me senhor Romeu,<br />

mas você me fez lembrar de um grande momento<br />

da literatura: Serafim Ponte Grande<br />

expulsa Pinto Calçudo do romance.<br />

ROMEU: Não entendi nada, boca suja, está<br />

doido, cheirou muito? Saia!<br />

NARRADOR: Então, só resta o grande final,<br />

sem grandes surpresas, mas com a densidade<br />

das palavras, escolhidas na colheita perfeita.<br />

Você entrará para o reino dos mortos, porque<br />

aqui a sua vida vale a equivalência da realidade.<br />

E o leitor que se excite (ou se exercite).<br />

Seremos ou não, a sombra pálida, o nada<br />

confirmado ou o tudo adiado, fruto da moenda<br />

irreversível do tempo, quando leitor e crítica,<br />

senhores do nosso destino, dirão de que<br />

barro somos feitos ou o que seremos: memória<br />

ou anonimato.<br />

ROMEU: espera... espera um pouco, não, não,<br />

por favor não me encerre de pronto, lembrei<br />

de uma coisa que talvez interesse, quando<br />

moleque na escola eu li O menino de asas...<br />

Quase um fim.<br />

De<br />

DUELOS<br />

49


<strong>Chicos</strong><br />

José Vecchi de Carvalho<br />

José Vecchi de Carvalho, nasceu em Cataguases<br />

(MG), mora em Paula Candido (MG).<br />

Coautor de A casa da Rua Alferes e outras<br />

crônicas (2006), e autor de Duas Cruzes<br />

(contos 2018).<br />

Gervásio<br />

Duas e meia da tarde e nada. A<br />

calçada estreita e irregular da minha rua<br />

guarda marcas de Gervásio: a roupa sempre<br />

sóbria, a calça de tom escuro, a camisa bege,<br />

às vezes cinza ou cáqui, sapatos simples,<br />

pretos ou marrons.<br />

Eu ficava na entrada da vendinha de meu<br />

pai observando as pessoas. Ele era um dos<br />

últimos a passar. O andar apressado. Parecia<br />

que o seu tempo era exíguo e que tinha<br />

muito por fazer. Os únicos dias em que ele<br />

não tinha pressa eram às quartas-feiras e<br />

aos sábados. Às quartas, ele e um pequeno<br />

grupo de colegas se reuniam num cômodo<br />

nos fundos da venda, um átrio entre o ofício<br />

e a casa. A portas fechadas, discutiam<br />

em torno de duas mesinhas que eu unia<br />

para eles. Ali havia um corredor estreito<br />

que ia dar dentro de nossa casa.<br />

Aos sábados, chegava calmamente, ficava<br />

sozinho e quieto. Às vezes, um ou outro conhecido<br />

parava, dizia algumas palavras,<br />

oferecia uma bebida... nada. Ele ficava horas<br />

e horas sozinho, parecia se alimentar de cigarro,<br />

café e pensamento.<br />

Os operários da fábrica não se distinguiam,<br />

eram muito iguais em tudo: o brilho de<br />

óleo e suor no rosto, pedaços de algodão e<br />

de linha presos nos cabelos, na roupa, no<br />

pescoço, o cheiro forte do óleo das máquinas<br />

de tecelagem impregnando corpo e alma.<br />

Eu saía da escola ao meio-dia e, depois<br />

do almoço, ia para a venda. Às quinze para<br />

as duas passava muita gente. Todos para a<br />

fábrica. Às duas e pouco, um outro tanto<br />

passava em sentido contrário. Era a troca<br />

de turnos. Lufa-lufa, estouro-de-boiada.<br />

Cercado por um pequeno grupo, vinha Gervásio.<br />

Havia algo que o diferenciava: talvez<br />

sua pressa, seu jeito de falar com os colegas,<br />

os gestos, as pausas, o crescendo e o<br />

diminuindo, os assuntos, as ideias, o entusiasmo...<br />

também seu semblante não era comum.<br />

Tinha o olhar profundo, principalmente,<br />

quando estava sozinho.<br />

50


<strong>Chicos</strong><br />

Parecia estar olhando para alguma coisa que<br />

só ele avistava, talvez alguma coisa dentro de<br />

si mesmo, ou das pessoas. Todas. O mundo.<br />

Aos sábados, depois do trabalho, ele parava<br />

para comprar cigarros. Era quando parecia<br />

não ter pressa nenhuma, por diminuta que<br />

pudesse ser. Ele recostava o cotovelo no antigo<br />

balcão escuro de madeira e tirava longos<br />

tragos no cigarro, intercalados com goles de<br />

café. Nesse momento, nunca falava. Apenas<br />

mirava o nada com seus olhos distantes rompendo<br />

a fumaça azulada do cigarro. Parecia<br />

romper, também, o mundo de algodão, de<br />

fios, de pano, de óleo, de máquinas, de gente,<br />

de riqueza e de miséria. Depois de algum<br />

tempo, quando o movimento de pessoas diminuía,<br />

ele se aproximava de meu pai e eles<br />

conversavam um pouco.<br />

Havia uns assuntos sobre os quais ele gostava<br />

de falar e meu pai gostava de ouvir. Antes das<br />

reuniões, ele falava sempre com o meu pai,<br />

que escutava atentamente. Meu pai falava<br />

pouco, a conclusões. Eu não entendia muito<br />

bem. Até porque eles falavam baixinho e os<br />

ruídos do bilhar e das pessoas conversando<br />

impediam que se entendesse o que estava<br />

sendo dito. Se havia algo de errado, meu pai<br />

devia ser cúmplice. Mas acho que não, era só<br />

um pensamento que passava por mim muito<br />

depressa. Meu pai era um homem bom, todos<br />

diziam. Gervásio era seu melhor amigo, talvez<br />

único. Eles deviam ser homens bons. Talvez<br />

houvesse um jogo, um carteado, algo proibido,<br />

coisas de entretenimento, e meu pai encobria.<br />

Ele não fazia parte do grupo. Tãosomente<br />

guardava papéis, jornais recortados,<br />

anotações e até uns livros, tudo numa caixa<br />

trancada e intocável. Anotações do jogo? Coisas<br />

assim. Nada era passado ao meu pai na<br />

frente das pessoas. Após as reuniões, todos<br />

saíam do pequeno cômodo, menos Gervásio.<br />

Era quando meu pai entrava e se demorava<br />

um pouco. Às vezes, eu olhava pela fresta da<br />

porta entreaberta e via quando ele seguia pelo<br />

corredor estreito que dava num quarto, antes<br />

ocupado pelo meu irmão mais velho, onde<br />

ficavam objetos antigos, desses que podem<br />

ser jogados fora, mas que a gente vai<br />

deixando, deixando... com a sensação de um<br />

dia precisar. Era lá que ficava a caixa de madeira,<br />

dentro de um baú que guardava ferramentas,<br />

peças e utensílios em pleno desuso.<br />

Impressionavam-me as coisas com ar de mistério,<br />

mas nunca fui além do que me era permitido.<br />

Não porque eu fosse uma criança<br />

obediente, quietinha como eles costumavam<br />

dizer de mim, mas pelo respeito ao mistério e<br />

às pessoas que o guardavam. Um dia perguntei<br />

ao meu pai o que é que ficava guardado<br />

naquela caixa. Ele apenas me olhou com os<br />

olhos de Gervásio e eu não fiz mais perguntas.<br />

Nunca mais.<br />

Talvez eu tenha que dizer que, ainda menino,<br />

nutria por Gervásio uma reverência quase mitológica.<br />

Certa vez, um sujeito não muito estranho<br />

tecera, sobre ele, comentários com os<br />

quais eu não concordava. Apesar de não entender<br />

tudo o que ele dissera, dava para saber<br />

que estava falando mal. Reagi às blasfêmias.<br />

Meu pai me chamou a atenção, disse<br />

pra eu não me meter. Calei-me. Fiquei a observar<br />

o sujeito, num movimento de olhar e<br />

desolhar. Com a cara emburrada. Com o rabo<br />

dos olhos.<br />

Gervásio nunca me dera nada, nenhum brinquedo,<br />

nenhuma bala. Apenas chegava, punha<br />

a mão em meus ombros, me fazia perguntas<br />

sobre a escola, sobre papagaio, pião,<br />

bilosca, sobre futebol, garrafão, bandeirinha,<br />

pique-pega e me deixava falar e contar vantagens.<br />

Fora isso, entre nós era só silêncio. Havíamos<br />

desenvolvido um perfeito código particular<br />

de comunicação, ele apenas olhava para<br />

mim e eu já sabia o que ele queria: café,<br />

cigarro, água, ou a conta. Às vezes perguntava<br />

por Rosalvo, só com os olhos e alguns<br />

51


gestos faciais. Eu respondia, da mesma forma:<br />

“no banheiro”, ou, “ainda não chegou”,<br />

ou, “mandou te dizer que vai atrasar”. Ele deixava<br />

escapar um sorriso quase despercebido,<br />

era só mesmo um leve movimento dos lábios<br />

que nem sequer se desprendiam um do outro.<br />

Era apenas um sinal de que havia entendido<br />

e o agradecimento pela resposta. Tudo<br />

numa única, rápida e silenciosa expressão.<br />

Vez por outra ele aparecia aos domingos, depois<br />

do almoço. Falava comigo algumas coisas.<br />

Poucas. Mais ouvia. Depois, trancavam-se,<br />

ele e meu pai, no quarto onde ficavam suas<br />

coisas. Dali, costumavam sair no final do dia,<br />

quando as luzes da rua estavam já acesas.<br />

Naquela tarde ele não passou. Postei-me na<br />

soleira da porta esperando. Não passou nunca<br />

mais. Veio o último operário, uma última<br />

paina sobrevoava a calçada; e nem sinal de<br />

Gervásio. Nunca mais parou para comprar cigarros.<br />

Nunca mais me disse nada com o seu<br />

silêncio. Outras pessoas também não devem<br />

ter passado, mas não notei. Alguns passavam<br />

cabisbaixos. Uns poucos pareciam procurar<br />

por mim, olhavam como se quisessem dizer<br />

alguma coisa, mas eu não podia entendê-los.<br />

Meu pai viajara naquela manhã bem cedo.<br />

Fora a negócio... hã, a negócio!<br />

Lembro-me que na noite anterior àquele dia,<br />

muita gente estranha estivera na venda, uns<br />

bebendo e observando cada movimento, outros<br />

puxando assunto com meu pai, fazendo<br />

perguntas. Falavam de atividades suspeitas,<br />

clandestinas, sediciosas. Subversivas!? Um<br />

grupo de baderneiros estava tramando algo<br />

contra a fábrica. Grave. Problemas pra muita<br />

gente. Aqueles homens estranhos queriam<br />

impedir arruaças, badernas. Queriam manter a<br />

paz. Diziam. Manter os costumes pacatos da<br />

cidade de gente boa e simples. Era preciso<br />

impedir o barulho para que todos ouvissem<br />

os teares e as lançadeiras, com suas vozes<br />

roucas no alto dos pedestais.<br />

<strong>Chicos</strong><br />

As luzes nos postes se apagaram. A vila toda<br />

escura. O canto de uma coruja. Mau agouro.<br />

Ruídos de gente correndo. Ruídos de tudo.<br />

Gritos. Tudo confuso. Os olhos dos presentes<br />

ficaram como os meus nas noites em que<br />

meus tios contavam casos de assombração.<br />

Os corpos eram só arrepios. O ar ficara como<br />

a caixa intocável de meu pai. Aqueles homens<br />

estranhos não apresentavam sinais de medo.<br />

Eram cheios de si. E de armas. O nome de<br />

Gervásio era citado vez por outra. Não estava.<br />

Nem estivera. Rosalvo passara rapidamente,<br />

falara qualquer coisa com um e outro e saíra<br />

de fininho. Os homens estranhos saíram em<br />

seguida. Depressa. Logo depois, foram-se todos<br />

os demais.<br />

Meu pai fechara as portas. Nessa noite, ele<br />

ficara muito nervoso. Dormir? Quase nada.<br />

Andava. Ajeitava algumas coisas. Barulho no<br />

pequeno quintal. Olhava pela veneziana da<br />

janela. Gatos, talvez. Tudo escuro e vazio. O<br />

vento balançava as roupas no varal. Minha<br />

mãe acordava aos sobressaltos. Noite venusiana.<br />

Pela manhã, entrei no antigo quarto do meu<br />

irmão. O velho baú estava lá, aberto. Procurei<br />

pela caixa de meu pai. Não estava. Tudo se<br />

fez sibilino. Obscuro. Não fui à escola. Pela<br />

primeira vez minha mãe falara pra eu ficar em<br />

casa. Na quarta-feira seguinte não houve reunião.<br />

No sábado, ninguém interessante para<br />

comprar cigarros. Meu pai ficou muito tempo<br />

sem aparecer. Às vezes, vinha alguém de São<br />

Paulo e deixava alguma coisa com a minha<br />

mãe: carta, dinheiro. Ela parara de cantar<br />

quando cozia ou lavava.<br />

Certo dia, meu avô disse que iríamos embora.<br />

Minha mãe não se continha e eu nem sabia se<br />

era bom ou ruim, mas me agradava a ideia de<br />

rever meu pai e, quem sabe, seus amigos. Viajar<br />

também devia ser muito bom. Estava excitado<br />

e trêmulo. Era a minha primeira vez. Um<br />

dia voltaria e contaria aos colegas as novidades<br />

de lá.<br />

52


<strong>Chicos</strong><br />

Ficamos trinta e um anos. Até a morte de meu<br />

pai. Coração. Essas coisas de cidade grande.<br />

Minha mãe soluçava com o rosto colado em<br />

seu peito. Eu olhava fixo aquele semblante<br />

quase gervasiano. O silêncio era. Todo.<br />

Hoje não há mais a vendinha do meu pai.<br />

Nossa casa guarda pouco do que era. Eu<br />

mesmo contribuí para algumas alterações e<br />

reformas. Fiz um muro baixo e um pequeno<br />

portão, um caminho cimentado que leva a<br />

uma modesta varanda, onde minha mãe expõe<br />

avencas, samambaias e copos-de-leite;<br />

onde me sento aos domingos pela manhã para<br />

ler o jornal ao som de uma música que não<br />

toca no rádio. À esquerda de quem chega,<br />

minha mãe plantou magnólias e outras plantas<br />

ali nasceram e foram ficando sem que ninguém<br />

as incomodasse; à frente, próximo ao<br />

muro, plantei dois oitis, um de cada lado do<br />

portão; à direita, um gramado envolvendo um<br />

caminho de pedras preserva o estreito corredor<br />

que vai dar nos fundos, passagem para os<br />

de-casa. Às vezes, recosto-me no muro. Fico<br />

horas olhando a calçada, como agora. As imagens<br />

e impressões que ainda trago se misturam<br />

e se alternam com as de hoje em meu<br />

pensamento. Um vento forte produz em mim<br />

uma sensação infantil de alegria; depois, uma<br />

brisa de agosto evoca a solidão e o silêncio<br />

dos sótãos. Olho com desinteresse o movimento<br />

na rua. A calçada. Sem graça. Ela também<br />

não é a mesma. Nela procuro marcas de<br />

Gervásio. Também nas pessoas. As pessoas?<br />

Muitas, muito mais; diversas, bem diversas,<br />

mas iguais. Os carros e as motos escondendo<br />

as pessoas. Escondendo a pessoa. O gado<br />

conduzido.<br />

53


<strong>Chicos</strong><br />

Antônio Jaime<br />

Soares<br />

Antonio Jaime Soares, nasceu em Cataguases<br />

(MG) lá na Chave. Participou de um dos movimentos<br />

culturais mais ativos dos anos 60<br />

em Cataguases, o CAC. Depois de morar um<br />

longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre<br />

outras foi redator de publicidade. Retornou<br />

a Cataguases, direto para a Vila.<br />

Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />

(crônicas - 2011)<br />

Uma pobre-coitada<br />

Menino, eu a via saltar do trem<br />

com as irmãs, lá na roça, em visita a parentes.<br />

Décadas depois, aconteceu de a<br />

gente trabalhar na Assistência Social, eu,<br />

organizando uma biblioteca, ela, nos<br />

‘serviços gerais’. Chegava às seis da manhã,<br />

a limpar todas as salas antes do pessoal<br />

‘mais importante’ dar as caras, água<br />

fervendo na cozinha, pra ganhar tempo e<br />

o café sair na hora.<br />

Depois, a faxina externa, uma área cagada<br />

de pombos, outra, já cheia de assistidos<br />

que usavam um sanitário em que nem<br />

sempre davam descarga, che-gando a fazer<br />

suas necessidades no chão, que ela<br />

limpava com nojo, até vomi-tou uma vez.<br />

Pausa de dez ao meio-dia, em casa, mas<br />

não almoçava, dizendo que preferia jantar.<br />

Na verdade, por falta de dinheiro.<br />

Sempre humilhada pelos colegas, até foi<br />

chamada de ‘perereca do brejo’ por um<br />

dos ‘importantes’. Já eu, dei umas coisas<br />

de casa que não me faziam falta e ela ficou<br />

contente.<br />

Não era mais pobre, por morar com<br />

irmãs em casa própria, herdada dos pais, e<br />

tinha um carro que bebia muita gasolina,<br />

trocado por moto, também antiga. O salário<br />

ia todo pra faculdade do filho, na área<br />

de saúde, razão por que à noite cuidava<br />

de um ve-lho paralítico. Aos domingos,<br />

gostava de pescar.<br />

O carro, herdou do marido, não a pensão,<br />

que deve ter ido pra outra.<br />

Marido que batia nela, quando bêbado,<br />

num tempo em que algumas aceitavam<br />

isso passivamente. Antes, a mãe também<br />

batia, pelo hábito da moça ter mais de um<br />

namorado – isso ela contava rindo. Aquele<br />

emprego, conse-guiu por intermédio de<br />

algum político e fez o concurso da prefeitura,<br />

sem pas-sar. Se passasse ou aquela<br />

equipe continuasse por mais um mandato,<br />

o filho for-mado, ela teria finalmente uma<br />

vida tranquila. Não deu, pois é. Caiu na<br />

rua e quebrou um braço, voltou da licença<br />

e logo foi impedida por um AVC fatal.<br />

Os que a humilhavam devem estar<br />

bem colocados.<br />

<strong>54</strong>


<strong>Chicos</strong><br />

Raquel Naveira<br />

Raquel Naveira, nasceu em Campo Grande<br />

(MS), formada em Direito e Letras, doutoranda<br />

em Literatura Portuguesa na USP. Escreveu<br />

vários livros, entre eles: Abadia (poemas,<br />

editora Imago,1996) e Casa de tecla (poemas,<br />

editora Escrituras, 1999), indicados ao Prêmio<br />

Jabuti de Poesia.<br />

Comedores de batatas<br />

Coloco na travessa as batatas<br />

quentes, lisas, fumegantes. Preparei um prato<br />

especial nesta noite fria de junho.<br />

A batata é uma planta perene, selvagem,<br />

de flores e frutos e, no subterrâneo do solo,<br />

guarda a surpresa dos tubérculos comestíveis,<br />

gemas amarelas, ricas em amido e carboidrato.<br />

Sua origem remonta há milhares<br />

de anos, as ramas espalhadas pela Cordilheira<br />

dos Andes, à beira do Lago Titicaca,<br />

cultivada pelos antigos incas. Os invasores<br />

espanhóis dizimaram os incas e levaram para<br />

a Europa esse tesouro. Alimento fundamental,<br />

o preferido em muitas áreas urbanas,<br />

capaz de trazer solução para a fome do<br />

mundo.<br />

Que quadro impressionante é o<br />

“Comedores de Batatas”, de Van Gogh!<br />

Usando uma paleta de cores escuras como<br />

preto, marrom e ocre, retratou uma cena do<br />

cotidiano camponês medieval, com sua miséria,<br />

escassez, falta de recursos. A mesa<br />

rústica, as batatas numa vasilha de cerâmica<br />

ao centro, sob a chama trêmula de um lampião<br />

que ilumina as faces de criaturas rudes,<br />

sôfregas, interrogativas. As mãos grosseiras<br />

da mulher partindo os pedaços. Escreveu o<br />

artista em carta ao seu irmão Théo que se<br />

aplicara conscientemente em dar a ideia de<br />

que essas pessoas que comem as batatas<br />

com as mãos, também lavraram a terra. Que<br />

o trabalho manual, árduo, trouxe-lhes a nutrição<br />

honesta. E assim, entre goles de café<br />

nas canecas e bocados de massa, a luta se<br />

desenvolve, sofrida e fraterna.<br />

Essas figuras preocupadas com a pouca<br />

comida são a representação da fome. Nos<br />

lugares com fome de ética, o povo padece<br />

fome. Tudo passa, menos a fome do homem,<br />

sempre desesperada, sempre renovada.<br />

O pão é a necessidade de cada dia. O<br />

homem é escravo da sua enorme fome.<br />

55


E há tantas fomes: fome na alma, fome por<br />

amor, fome de conhecimento, fome de justiça,<br />

fome de imortalidade. Fome: puro instinto.<br />

Com fome, o homem é surdo e bruto.<br />

Escreveu o poeta russo Maiakóvski que gente<br />

era pra brilhar aqui e na eternidade, brilhar<br />

como farol. E continuou: “Gente é pra<br />

brilhar não pra morrer de fome.” Essa frase<br />

foi citada por Caetano Veloso em sua canção<br />

“Gente”. Já Solano Trindade, num poema<br />

onomatopaico, que imita o barulho do<br />

trem, afirma que o trem sujo correndo parecia<br />

dizer: “Tem gente com fome/ Tem gente<br />

com fome”. E quando vai parando lentamente<br />

nas estações começa a gemer: “Se<br />

tem gente com fome/ dá de comer/ dá de<br />

comer...” Sim, os poetas nos levam a refletir<br />

sobre a fome como desgraça social, fome<br />

como vazio, fome que tira a dignidade. A<br />

banda Titãs gritou alto e bom som que gente<br />

não quer só comida, a gente quer comida,<br />

diversão, arte, vida de qualidade. A gente<br />

quer prazer, alívio da dor, felicidade, ser<br />

inteiro, íntegro, ter nossos desejos e vontades<br />

supridos em vários níveis, até o espiritual,<br />

até o caminho das estrelas. Sentimo-nos<br />

sensíveis às mais diversas causas, choramos,<br />

empunhamos bandeiras, enquanto milhares<br />

de seres humanos morrem de fome ao nosso<br />

lado e não vertemos sequer uma lágrima<br />

por eles.<br />

Andando como um personagem de Joyce<br />

pelas ruas de Dublin, na Irlanda, deparamonos<br />

com um memorial à Grande Fome que<br />

ocorreu entre 1845 a 1851. São esculturas<br />

de figuras esquálidas preparando-se para<br />

deixar a ilha no primeiro navio. Três milhões<br />

de irlandeses dependiam das batatas como<br />

único alimento. A peste contaminou as lavouras<br />

e se espalhou por toda a Europa.<br />

Trata-se até hoje de assunto controverso,<br />

<strong>Chicos</strong><br />

envolto em confrontos políticos, verdadeiro<br />

genocídio por omissão do governo colonizador<br />

britânico. Contam os historiadores<br />

que era impossível descrever as privações<br />

dos trabalhadores irlandeses. Viviam em<br />

barracos, sem camas ou cobertores e suas<br />

únicas propriedades eram porcos e pilhas<br />

de excrementos. Sem batatas, a fome e a<br />

morte foram inevitáveis.<br />

Quando Josué entrou na Terra Prometida,<br />

cessou o maná, o alimento branco como<br />

pluma, que caía do céu na travessia do deserto.<br />

Eles então comeram do trigo, das novidades<br />

dos frutos das lavouras de Canaã,<br />

onde jorravam leite e mel. Longe dali, num<br />

continente desconhecido e vermelho, pulsava<br />

na carnadura do planeta o segredo das<br />

batatas.<br />

“_Tenho fome e sede de você, da sua presença,<br />

estava com saudade...”, murmuro em<br />

voz baixa, a terrina nas mãos. “_Divido com<br />

você minha comida, as generosas batatas.<br />

Para você, eu cozinho.”<br />

56


<strong>Chicos</strong><br />

José Antonio Pereira<br />

José Antonio Pereira, nasceu em Cataguases<br />

MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras<br />

crônicas (2006) e autor de Fantasias de<br />

Meia Pataca (2013).<br />

Cabeça de mula<br />

Jovem, eu e meus amigos vivíamos<br />

na busca do ser. A dúvida era shakespeariana,<br />

mas embalados pela contracultura e sua poesia,<br />

pela música de Bob Dylan e o movimento<br />

hippie, interiorizávamos nossas reflexões em<br />

busca de todos os “eus” que nos habitavam.<br />

Misturamos tudo, naqueles caleidoscópicos<br />

anos de nossa juventude. Meditávamos e<br />

éramos contemplativos com a natureza. Fiquei<br />

anos sem comer carnes, ingenuamente<br />

fizemos a fortuna de alguns inescrupulosos<br />

donos de restaurantes vegetarianos. Até que<br />

um dia me vi comendo um suculento contrafilé<br />

na mesa de Dona Clélia. Foi o dia em que<br />

percebi que sucumbira, já fazia tempos que<br />

abandonara a dieta vegetariana, seduzido pelo<br />

aroma do manjericão e orégano da farta<br />

mesa italiana.<br />

Frequentamos o místico, onde buscávamos<br />

um Deus, aquele que estava dentro de nós,<br />

como dizia São Lucas. Cultivávamos os ritos; a<br />

fé era embalada pela meditação, a música e a<br />

interação entre nós. Flertamos com o budismo,<br />

onde apreendíamos que devíamos sempre<br />

buscar o caminho do meio, o equilíbrio. A<br />

cítara de Ravi Shankar embalando a busca da<br />

serenidade. Como minha mãe, embora envergonhado,<br />

nunca deixei de ser devoto de N.<br />

S. Aparecida, a quem também já fiz promessas.<br />

Volúvel, fui devoto de N. S. do Rosário,<br />

padroeira dos negros; menino pobre, frequentava<br />

sua igrejinha, seduzido pela brinquedoteca<br />

que o padre Vinicius montara num<br />

armário da sacristia. Ali na missa do galo me<br />

empolgava com os primeiros acordes e cânticos<br />

da folia de reis.<br />

O pé direito alto, o cheiro do círio, a pouca<br />

luz da igreja de São Bento bem perto do Viaduto<br />

Santa Ifigênia, me seduziam. Algumas<br />

vezes fugindo do calor do meio dia, entrei naquela<br />

igreja ora imaginando ouvir seus frades<br />

entoando um canto gregoriano, ora imaginando<br />

ouvir Bach num órgão de tubos imensos,<br />

coisa que nem sabia se a igreja tinha. Os<br />

frades, ensaiando suas vozes, estes, eu ouvia.<br />

57


Noutro tempo, comprei um apartamentinho<br />

de uns 70 metros quadrados num bairro<br />

de Cataguases - Gabriel nasceu nele. Não<br />

percebi que não caberíamos ali dentro. Crianças<br />

demandam espaços. Apesar do tamanho<br />

minúsculo o valor do imóvel consumiria<br />

entre vinte e trinta por cento de meus<br />

salários por mais de trinta anos.<br />

Este é o paradoxo. Diziam que o apartamento<br />

era meu, mas teria que pagá-lo até<br />

chegar os 60 anos. Pouco importava o que<br />

ocorreria em minha vida, aqueles altos e<br />

baixos que todos têm na vida profissional e<br />

pessoal. Esta é a contradição entre salário e<br />

renda. O banco extraía renda do financiamento,<br />

que era reajustado regularmente,<br />

meu saldo devedor não parava de crescer.<br />

Eu pagava com o salário, que era erodido<br />

mês a mês, com miseráveis reajustes sazonais.<br />

O pior era que eu acreditava estar<br />

“subindo na vida”, embora a propriedade,<br />

que alienada pelo banco, era apenas uma<br />

promessa futura submetida às contingências<br />

do destino. O tragicômico era que Roseli<br />

teria a posse definitiva caso eu morresse.<br />

Até nisso o diabo do banco pensara embutindo<br />

um seguro na prestação do apartamento.<br />

Nem me dera conta que valia mais<br />

morto do que vivo para os meus. Custei a<br />

entender que salario não é renda. Só percebi<br />

isto ao parar para pensar quando um<br />

preposto do patrão, tentou me convencer<br />

que o que me pagavam era mais do que eu<br />

merecia e o patrão um filantropo.<br />

Imaginem o custo psíquico dessa contradição<br />

à qual nos submetemos diariamente.<br />

Ansiedade, expectativa, angústia mesclada<br />

com esforço, força de vontade e etecetera e<br />

tal. Isto é o diabo da sociedade do mérito, a<br />

diabólica meritocracia, à qual a merda do<br />

mercado submete seus devotos e tenta nos<br />

<strong>Chicos</strong><br />

convencer a viver esta loucura. Eles nos oferecem<br />

ilusões de posse. Despertam em nós<br />

desejos. E através de uma troca perversa,<br />

metem cabeça adentro da gente a possibilidade<br />

da ascensão social. Iludidos, acreditamos<br />

que seremos iguais e viveremos como<br />

aqueles que vivem exclusivamente da renda<br />

e do lucro. É aí, que nos ferramos. Nos tornamos<br />

doentes, a meritocracia é uma doença<br />

contemporânea. Haja rivotril! Criaram e<br />

tragaram a todos para uma armadilha em<br />

que o ter substituiu o ser. Quem primeiro<br />

traduziu isto foi John Steinbeck: O homem<br />

moderno é constituído de cabeça, tronco e<br />

automóvel.<br />

Na cultura do ter, a humanidade cultiva o<br />

direito de matar seu igual. É normal, sempre<br />

foi. Já se matou e absolveu em legítima defesa<br />

da honra. Hoje, o inimigo que no discurso<br />

é difuso, na prática dorme ou mora ao<br />

lado, é o seu concorrente. Você estará sempre<br />

disputando alguma coisa com alguém,<br />

o emprego, o espaço na rua... Mataram a<br />

rebeldia do inconformista. A TV, como alguém<br />

já disse: “...esta incrível maquininha<br />

de fazer idiotas...” cria esta cilada comunicativa<br />

onde embute uma espécie de direito<br />

universal à felicidade, mas o que fica claro é<br />

que sem dinheiro, não existe felicidade.<br />

Vou mudando os canais da TV, a pregação<br />

do pastor alucinado, mais um favelado morre<br />

no morro ocupado, o Museu Nacional<br />

arde em chamas, um candidato fascista é<br />

esfaqueado, levas de lumpens tupiniquins<br />

tentam convencer os alemães que Hitler era<br />

esquerdista....<br />

Só pode ter acontecido uma coisa. Eu fiquei<br />

velho e burro. E como dizia meu pai me repreendendo<br />

em meus erros de adolescente:<br />

Você acredita em mula com cabeça? Estou<br />

bem diante de uma.<br />

58


<strong>Chicos</strong><br />

Luiz Ruffato<br />

Luiz Ruffato, nasceu em Cataguases<br />

(MG), mora em São Paulo (SP). Entre<br />

tantas obras de sua autoria destacam<br />

-se: Eles eram muitos cavalos (2001),<br />

Concluiu o projeto Inferno Provisório,<br />

com a publicação do romance<br />

Domingos Sem Deus (2011), iniciado<br />

com Mamma, son tanto Felice (2005),<br />

composto por cinco livros sobre o operariado<br />

brasileiro.<br />

Lendo os Clássicos<br />

Berlin Alexanderplatz (1929)<br />

Alfred Döblin (1878-1957) - ALEMANHA<br />

Tradução: Irene Aron<br />

São Paulo: Martins Fontes, 2009, 534 páginas<br />

59


Em fins de 1927, Franz Biberkopf,<br />

"homem de trinta e poucos anos", (p. 27),<br />

"rude, grandalhão, de aparência repulsiva" (p.<br />

47), "antigo operário de construção e de<br />

transportes" (p. 9) que esteve "com os prussianos<br />

na trincheira" (p. 37), deixa a penitenciária<br />

após cumprir quatro anos de prisão por<br />

ter assassinado a mulher, Ida, "bonita moça<br />

de uma família de serralheiros" (p. 47). Disposto<br />

a se reintegrar na sociedade, tenta arrumar<br />

algum emprego honesto como vendedor<br />

ambulante, primeiro de jornais, depois de<br />

gravatas, mas afinal acaba se aproximando de<br />

obscuros personagens que transitam à margem<br />

da Alexanderplatz, centro nevrálgico de<br />

Berlim, naquele momento uma cidade em<br />

profunda mudança urbanística. Já no começo<br />

do ano seguinte, Franz envolve-se com Lina,<br />

uma prostituta polaca que o sustenta financeiramente,<br />

mete-se com política (vende jornais<br />

nazistas, frequenta círculos operários comunistas),<br />

e, pelas mãos de um tal Reinhold,<br />

entra quase sem querer para um bando de<br />

ladrões. Após uma malsucedida tentativa de<br />

roubo, Reinhold empurra Franz do carro em<br />

que se encontravam, ele é atropelado e perde<br />

um braço. Durante a restabelecimento, Franz<br />

reencontra o casal Eva e Herbert, antigos<br />

<strong>Chicos</strong><br />

companheiros que o apresentam a Mieze,<br />

com quem passa a viver, explorando-a como<br />

cafetão. Franz perdoa Reinhold, volta ao bando,<br />

mas Reinhold, desejando se apropriar de<br />

Mieze, e diante da reação negativa dela, termina<br />

por assassiná-la. Após algumas peripécias,<br />

Franz é preso, suspeito - por causa de<br />

seu passado - de ter participado da morte de<br />

Mieze. Profundamente deprimido, é internado<br />

em uma manicômio e, quando de lá sai,<br />

vai trabalhar como auxiliar de porteiro em<br />

uma fabrica. Contado dessa matéria, permanece<br />

à tona apenas a matéria romanesca -<br />

mas o livro é muito, muito mais que isso.<br />

Usando técnicas de colagem, utilizando métodos<br />

psicanalíticos para abordar a essência<br />

dos personagens, e formulando moderníssimas<br />

técnicas narrativas*, o Autor constrói um<br />

universo magnífico, que compreende sim a<br />

história de Franz Biberkopf, mas ao mesmo<br />

antecipa, com incrível clarividência, o clima<br />

do entreguerras, uma Alemanha ressentida,<br />

caótica, que exibe nas ruas as cicatrizes da I<br />

Guerra Mundial, povoada por homens e mulheres<br />

totalmente amorais, que vivem suas<br />

vidas como protagonistas de histórias alheias.<br />

Essa apatia que iria redundar no horror da II<br />

Guerra Mundial...<br />

* O Autor foi acusado de imitar o irlandês<br />

James Joyce (1882-1941), em particular seu<br />

romance, Ulysses, de 1922, fato que repudiou<br />

veementemente. Na verdade, embora<br />

haja pontos em comum, os dois livros diferem<br />

radicalmente no trato com as questões<br />

de espaço e tempo, primordiais em ambas<br />

as narrativas. "Uma mesma época pode dar<br />

ensejo a coisas parecidas e até mesmo<br />

iguais em lugares diferentes, independentemente<br />

umas das outras", anotou, com total<br />

r a z ã o ( p á g . 5 2 5 ) .<br />

(Julho, 2018)<br />

60


<strong>Chicos</strong><br />

Entre aspas:<br />

"(...) estar vivo exige mais do que um simples pãozinho com manteiga". (pág. 10)<br />

"(...) a coisa principal no ser humano são seus olhos e seus pés. É preciso ver o mundo e caminhar<br />

até ele". (pág. 25)<br />

"Sucede com o homem o mesmo que com o fogo: quando arde, ele tem que devorar, e se não<br />

consegue devorar, ele apaga, tem que se extinguir". (pág. 342)<br />

Curiosidades:<br />

& Há uma passagem que em tudo lembra<br />

o tema principal de um romance de Luigi Pirandello<br />

(1867-1936), O falecido Mattia Pascal,<br />

publicado em 1904, portanto 25 anos antes:<br />

"Em Pottsdam (...) havia um sujeito que<br />

depois foi chamado de cadáver ambulante.<br />

(...) o sujeito, um certo Bornemann, saindo a<br />

passeio de Neugard, encontra um morto boiando<br />

na água, no rio Spree (...) e diz: 'Na verdade,<br />

já estou morto', vai até lá, rouba-lhe os<br />

documentos, agora está morto. E a senhora<br />

Bornemann: 'E eu o que faço? Não há mais o<br />

que fazer, ele está morto, será que é meu<br />

marido, ora, graças a Deus é ele, não se perde<br />

nada com um homem desses, o que se<br />

lucra com um cara desses, a metade da vida<br />

na cadeia, lixo imprestável'. (...) Ele vai para<br />

Anklam (...), torna-se peixeiro (...) e se chama<br />

Finke. Bornemann, então, não existe mais".<br />

(pág. 371-2).<br />

& Valeria a pena um estudo relacionando<br />

Berlin Alexanderplatz com o romance O<br />

agressor (1943), do brasileiro Rosário Fusco<br />

(1910-1977)<br />

Sobre o Brasil:<br />

Na pág. 93, aparecem referências ao café do<br />

Brasil. "Café puro em grãos 2,29, Santos garante<br />

mistura pura e excelente para uso doméstico,<br />

forte e econômico no preparo, Van<br />

Campinas, mistura forte, de paladar puro (...)".<br />

Na pág. 186, a referência é ao tabaco : "(...)<br />

qualidades de primeira para todos os gostos:<br />

Brasil, Havana, México (...)".<br />

61


<strong>Chicos</strong><br />

Jane Eyre (1847)<br />

Charlote Brontë (1816-1855) - INGLATERRA<br />

Tradução: Adriana Lisboa<br />

Rio de Janeiro: Zahar, 2018, 535 páginas<br />

Jane Eyre tem 30 anos quando resolve<br />

escrever sua autobiografia. O que lemos neste<br />

livro é o relato de sua trajetória, entre os<br />

10 e os 20 anos, sendo talvez dois terços das<br />

mais de 500 páginas dedicados a um único<br />

ano passado na propriedade de Thornfield<br />

Hall, quando se apaixona pelo patrão, Edward<br />

Fairfax de Rochester. Jane conta que, logo<br />

após nascer, os pais morrem, ambos de febre<br />

tifóide, e ela vai morar com a família do tio<br />

materno, Sr. Reed, na propriedade de Gateshead<br />

Hall. Mas o tio também morre e ela passa<br />

a ser hostilizada pela viúva, Sra. Reed, e<br />

pelos primos. Por reagir com veemência à<br />

forma injusta com que é tratada, Jane é encaminhada<br />

para Lowood, uma instituição de caridade<br />

para educação de órfãs, situada a oitenta<br />

quilômetros de Gateshead Hall. Em<br />

Lowood, com "alimentação frugal, roupas<br />

simples, acomodações sem sofisticação, hábitos<br />

árduos e ativos" (p. 51), vivem oitenta moças,<br />

sob a tirania do administrador, Sr. Blocklehurst.<br />

A "natureza insalubre do local, a<br />

qualidade e a quantidade de comidas das crianças,<br />

a água salobra e fétida usada em seu<br />

preparo, as roupas e acomodações miseráveis<br />

das alunas" (pág. 107) concorre para um surto<br />

de tifo, que dizima as estudantes e chama a<br />

atenção para a situação de indigência da escola.<br />

Ali, Jane permanece por oito anos, seis<br />

como aluna, dois como professora, sem nunca<br />

ter saído do lugar e sem nunca ter recebido<br />

visitas, tendo como referências apenas a<br />

diretora, Srta. Temple, e Helen Burns, uma colega<br />

que sucumbe ao tifo. Buscando outros<br />

ares, Jane se candidata a uma vaga de educadora<br />

e muda-se para a propriedade de<br />

Thornfield Hall, um lugar com "aspecto de<br />

uma casa saída do passado - um altar à memória"<br />

(p. 131). Ali passa um ano como professora<br />

de Adèle, uma menina francesa, talvez<br />

filha natural do senhor da propriedade, Sr.<br />

Rochester: "o estreito crescente do meu destino<br />

parecia se alargar; os vazios da existência<br />

eram preenchidos. Minha saúde física melhorou;<br />

ganhei peso e força" (pág. 179), confessa<br />

62


<strong>Chicos</strong><br />

Jane. Jane e Rochester se apaixonam perdidamente<br />

e, apesar da diferença social (ele rico,<br />

ela pobre) e de idade (quase vinte anos),<br />

resolvem se casar. No dia da cerimônia, entretanto,<br />

é revelado um impedimento - Rochester<br />

havia se casado anteriormente na Jamaica<br />

e mantém a mulher, louca, apartada<br />

num quarto secreto da mansão. Decepcionada<br />

e desiludida, embora ainda atraída por Rochester,<br />

Jane foge literalmente com a roupa<br />

do corpo. Após dois dias de viagem de diligência,<br />

chega a Whitcross e, sem conhecer<br />

ninguém, quase morre de fome. É salva à<br />

porta de uma casa situada num ermo, propriedade<br />

conhecida como Marsh End, acolhida<br />

pelos Rivers - St. John, que se se prepara para<br />

ser missionário na Índia, e suas irmãs Diana<br />

e Mary. Jane vive um ano como professora de<br />

uma escola paroquial, e neste intervalo recebe<br />

a notícia de que herdara uma fortuna - 20<br />

mil libras - de um tio paterno, que se mudara<br />

para a ilha da Madeira. Descobre então ser<br />

prima de St. John e suas irmãs e decide dividir<br />

o dinheiro igualmente com eles. St. John a<br />

pede em casamento, ela recusa-o por não<br />

amá-lo, e busca saber o destino de Rochester.<br />

Encontra a mansão de Thornfield Hall em ruínas,<br />

é informada de que a mulher de Rochester<br />

morreu e que ele ficou cego e teve amputada<br />

uma das mãos. Jane o procura em outra<br />

propriedade da família, Ferndean, reata a relação,<br />

casam-se e têm um filho. Apesar de<br />

certo romantismo - a redenção quase milagrosa<br />

da pobreza pela fortuna deixada por<br />

um tio desconhecido -, o livro não afunda<br />

nunca "num estado sentimental patético"<br />

(pág. 320), e também, apesar de professar<br />

uma fé inabalável na Providência Divina<br />

"mantive fiel aos princípios e à lei, e desprezei<br />

e esmaguei os insanos impulsos de um momento<br />

desmedido. Deus me guiou a fazer<br />

uma escolha acertada: agradeço à Sua providência<br />

pela orientação" (pág. 419), o que sobressai<br />

deste romance é o impressionante<br />

libelo feminista*. Jane Eyre, embora frágil física<br />

e socialmente, não aceita ser tratada como<br />

inferior. O fato de se casar no final com<br />

Rochester - que poderia ser compreendido<br />

como uma resignação às convenções -, não é<br />

possível de assim ser entendido: afinal, o marido,<br />

cego e maneta, depende dela em tudo<br />

para sobreviver, invertendo assim os papéis<br />

destinados tradicionalmente ao homem e à<br />

mulher. Com ironia e bom-humor, a narradora<br />

antecipa, à pág. 429, por meio da fala da<br />

srta. Oliver, que "tinha certeza de que minha<br />

história prévia, se conhecida, daria um ótimo<br />

romance". E deu mesmo...<br />

Alguns momentos do discurso feminista:<br />

& "Ninguém sabe quantas rebeliões, para<br />

além das rebeliões políticas, fermentam nas<br />

massas de vida que as pessoas enterram.<br />

Das mulheres se espera que sejam muito<br />

calmas, de modo geral. Mas as mulheres<br />

sentem como os homens. Necessitam exercício<br />

para suas faculdades e espaço para os<br />

seus esforços, assim como seus irmãos; sofrem<br />

com uma restrição rígida demais, com<br />

uma estagnação absoluta demais, exatamente<br />

como sofreriam os homens. E é uma<br />

estreiteza de visão por parte de seus companheiros<br />

mais privilegiados dizer que elas<br />

deveriam se confinar a preparar pudim e<br />

tricotar meias, a tocar piano e bordar bolsas.<br />

É insensato condená-las ou rir delas se<br />

buscam fazer mais ou aprender mais do<br />

que os costume determinou necessário ao<br />

seu sexo." (p. 136-137)<br />

63


<strong>Chicos</strong><br />

& Quando Rochester pensando no casamento<br />

próximo diz a Jane que a cobrirá de jóias e<br />

riqueza, ela responde: "Só quero uma mente<br />

tranquila (...) e não sobrecarregada por inúmeras<br />

obrigações. Lembra-se do que falou<br />

sobre Céline Varens? Sobre os diamantes e as<br />

caxemiras que lhe deu? Não serei sua Céline<br />

Varens inglesa [Céline Varens tinha sido uma<br />

amante de Rochester, em Paris]. Continuarei<br />

sendo a educadora de Adèle; desse modo terei<br />

moradia e alimento, além de trinta libras<br />

por ano. Meu guarda-roupa virá desse dinheiro,<br />

e o senhor não me dará nada além<br />

de... (...) seu afeto". (p. 316)<br />

"Não seria estranho (...) ser acorrentada para<br />

o resto da vida a um homem que só me considera<br />

um instrumento útil?" (p. 482)<br />

(Agosto, 2018)<br />

Avaliação: MUITO BOM<br />

Entre aspas:<br />

"Se as pessoas fossem sempre gentis e obedientes com aqueles que são cruéis e injustos, as pessoas<br />

más sempre fariam as coisas ao seu modo; nunca teriam medo, e assim nunca haveriam de<br />

mudar, só piorar cada vez mais. Quando recebemos um golpe sem razão, devemos revidar com<br />

muita força (...), Com tanta força que a pessoa que nos agrediu aprenda a nunca mais fazer isso."<br />

(pág. 77)<br />

"A maioria dos seres nascidos em liberdade se submete a qualquer coisa por um salário." (pág.<br />

165)<br />

"O remorso é o veneno da vida." (pág. 167)<br />

"O sentimento sem julgamento é (...) uma bebida insípida, mas o julgamento sem o tempero do<br />

sentimento é um alimento demasiado amargo e penoso para a deglutição humana." (pág. 279)<br />

"Preconceitos (...) são mais difíceis de erradicar num coração cujo solo nunca foi revirado ou fertilizado<br />

pelos estudos; eles crescem ali, firmes como ervas daninhas em meio a pedras." (pág. 398)<br />

64


<strong>Chicos</strong><br />

Emerson Teixeira<br />

Cardoso<br />

Emerson Teixeira Cardoso, nasceu em Cataguases<br />

MG.<br />

Autor de Símiles (Poesia<br />

2001), coautor de A casa da Rua Alferes e<br />

outras crônicas (2006). Traduziu O retorno<br />

do nativo de Thomas Herdy. Ativo em publicações<br />

literárias. Iniciou-se em Estilete<br />

(1967), mimeografado, editor/fundador do<br />

Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />

A importância de Machado de Assis<br />

no seu centenário de morte*<br />

Há cem anos morria Joaquim<br />

Maria Machado de Assis. O registro de<br />

óbito do cidadão carioca, do indivíduo, do<br />

funcionário público, marido, contribuinte<br />

não deixava nenhuma dúvida: finou-se,<br />

acabou-se, descansou desta longa vida.<br />

Mas verificou-se em seu próprio tempo, o<br />

que os seus amigos mais certos já sabiam;<br />

o mito, a lenda do grande escritor lhe dariam<br />

certa sobrevida. Talvez quisesse desmentir<br />

o fato consumado de sua morte<br />

biológica.<br />

Se o escritor carioca que morreu há<br />

cem anos continua a receber mais flores<br />

do que recebeu em vida, é porque a distância<br />

de um século não conseguiu ofuscar<br />

o artista.<br />

Cem anos passados as homenagens<br />

não param: filmes, teses, peças, são produzidas<br />

a partir de suas obras. Seus livros<br />

alcançam recordes de vendas; palestras<br />

acontecem por toda parte; novas traduções<br />

o levam a terras longínquas. Para<br />

quem foi reconhecidamente um grande<br />

pessimista as comemorações neste seu<br />

centenário não deixam de significar uma<br />

certa vitória. O adultério, a loucura, a<br />

morte são temas que perpassam sua obra.<br />

A dúvida machadiana, a análise interior<br />

talvez até fosse uma tentativa de vencer a<br />

solidão, a angustia resultante dos fracassados<br />

esforços humanos. Um cético desde o<br />

princípio, para quem a moral feminina<br />

descansava num âmbito de mentiras.<br />

Nisto se parecia com Proust. Ou buscaria<br />

no Otelo de Shakespeare o modelo ideal<br />

de suas personagens?<br />

65


Compensação de tímidos: Machado,<br />

Flaubert e Proust muito depois do célebre<br />

dramaturgo também criaram personagens<br />

femininos idênticos na ambição e na frivolidade.<br />

No imaginário desses três as mulheres<br />

são criaturas que mantêm aqueles<br />

que as amam num inferno de dor e ciúmes.<br />

Topar o desafio de falar de sua importância<br />

literária nos cem anos de sua morte,<br />

para mim deve-se principalmente a uma<br />

circunstância particular. Fiz o meu curso<br />

secundário numa escola pública e certos<br />

ensinamentos ali apanhados até hoje me<br />

acompanham. Não são poucas vezes que<br />

repasso a meus alunos quando os oriento<br />

para assuntos literários. De Bentinho a<br />

Brás Cubas, de Capitu a Virgília, Marcela e<br />

à heroína dos olhos dissimulados e oblíquos<br />

(que nem ele, o próprio autor sabia o<br />

que era) viajei numa ciranda de personagens<br />

de romances e contos, sem deixar<br />

nem mesmo de sentir seus arroubos mais<br />

românticos externados no poema à sua<br />

Carolina que de acordo com seus biógrafos<br />

nem era assim tão graciosa.<br />

Ainda que incipientes, as noções ali<br />

<strong>Chicos</strong><br />

apreendidas foram-se alongando à medida<br />

que, estimulado por novos estudos ou<br />

por natural curiosidade, fui descobrindo<br />

outros significados mesmo sabendo que a<br />

profundidade daquela obra ainda reclamava<br />

novas exegeses. Modelo incomum<br />

de unanimidade inteligente conseguiu reunir<br />

em vida em torno de sua pessoa, a<br />

nata da inteligência brasileira na academia<br />

que criou. Para justificar a importância dela<br />

tornou-se o seu primeiro presidente.<br />

Representou o melhor que que se produziu<br />

literariamente em seu tempo estando a<br />

frente dele.<br />

Muitas homenagens ainda estarão<br />

acontecendo hoje, neste seu centenário.<br />

Serão poucas ainda para se fazer justiça ao<br />

artista que foi e ao legado artístico que<br />

deixou.<br />

Publicado no Cataguases<br />

em 27 de abril de 2008<br />

* Neste 29.09.2018 completa-se 110 anos<br />

da morte de Machado de Assis.<br />

66


<strong>Chicos</strong><br />

Leonardo Campos<br />

Leonardo Campos, nasceu em Cataguases<br />

MG. Autor de Alma de brinquedo (Poesia<br />

2010), Teve suas primeiras publicações literárias<br />

no jornal Fronte Cultural de Chapecó<br />

(SC). Vencedor do 6º Concurso Alfenense de<br />

Poesia. Finalista no IX Concurso Nacional de<br />

Poesias Augusto dos Anjos e XI Concurso<br />

Nacional de Poesia Castro Alves.<br />

Uma leitura sobre a<br />

Terceira margem do rio e Avôhai<br />

O pai, ao se despedir de seus<br />

entes para investir na enigmática terceira<br />

margem de um rio do sertão de Minas, se<br />

transmuta, sobe à canoa e provoca na família<br />

uma contínua vigília. A respeito de<br />

seu destino, das suas intenções em se refugiar<br />

rio ao meio, rio ao fundo, rio ao<br />

longo, mãe e filhos se tornam impotentes<br />

ao não obter respostas para tal intento do<br />

pai. Não havia volta para aquela retirada.<br />

Como nos diz o conto de Guimarães Rosa,<br />

com convicção e seriedade, “o pai toma o<br />

chapéu e decide um adeus”.<br />

Já mais próximo do equador, no sertão<br />

nordestino, “um velho cruza a soleira, de<br />

botas longas, de barbas longas, de ouro o<br />

brilho do seu colar”. Nos versos de Avôhai<br />

do compositor Zé Ramalho, o velho caçador<br />

é um ser recriado e também indivisível,<br />

talvez como a partícula mais elementar<br />

de um átomo, habitando em uma atmosfera<br />

à margem do senso comum, onde<br />

os sentidos humanos tenham a estranha<br />

dificuldade de estabelecer conclusões.<br />

Nas duas realidades, a questão metafísica<br />

e a perda repentinamente do pai dialogam<br />

com o sofrimento e dúvidas humanas.<br />

E se toda dúvida favorece a expiação,<br />

esse sofrimento é tão logo a dúvida convertida<br />

em reflexos e, por assim ser, multiplicada,<br />

perdurando como penumbra a fadar<br />

o ser vivente ao padecimento terreno.<br />

Assim se traduzem as experiências de vida<br />

na Terceira margem do rio e em Avôhai.<br />

No rio, a tristeza dos quem ficaram, a (in)<br />

certeza de quem partiu, como na canção<br />

do Trem das sete, de Raul Seixas, traduzindo<br />

a viagem definitiva dos que partem e o<br />

adeus dos que ficam. E na psicodélica estação<br />

do último trem do sertão resta apenas<br />

“quem vai chorar, quem vai sorrir”.<br />

67


<strong>Chicos</strong><br />

Estes fenômenos da psicologia, afirma são<br />

tarefas que devem ser estudadas pela caracterologia,<br />

ramo da moderna, explica<br />

ele, psicologia.<br />

Em Avôhai, a expressão biográfica<br />

de Zé Ramalho, que perdeu logo aos dois<br />

anos de idade o pai afogado enquanto<br />

atravessava um açude é a linha inspiradora<br />

da canção. Por quanto o avô o criava, a<br />

imagem do pai persistia e se recriava em<br />

sua mente no transcorrer de toda a infância<br />

e juventude, fazendo nascer o avôhai<br />

(avô e pai) transmutado em um único ser.<br />

Metade física avô, metade alma pai, que<br />

se esfacelou nas águas barrentas de um<br />

açude do sertão nordestino, virando sombra,<br />

recordação e, sobretudo, inspiração<br />

na cabeça do pequeno Zé.<br />

Nota-se que é difícil romper com a<br />

lembrança impregnada pelo amor, amor<br />

construído através da convivência, do apego<br />

ou do próprio costume. Como fala o<br />

menino em a terceira margem: “A gente<br />

teve de se acostumar com aquilo. Às penas,<br />

que, com aquilo, a gente mesmo nunca<br />

se acostumou”. A terceira margem e<br />

Avôhai problematizam a diversidade do<br />

homem simples, do habitante do sertão,<br />

sertão universal, sertão transversal, tematizando<br />

questões além águas, além tempos,<br />

além nós.<br />

Neste cenário, os dois personagens levados<br />

pelas águas extrapolam a plana<br />

condição humana para habitar atmosferas<br />

várias, vencendo idades, quiçá séculos, para<br />

envelhecerem no intervalo calmo e obscuro<br />

de um entretempo tão meticulosamente<br />

construído em estórias e canções<br />

dos sertões brasileiros. E assim evoluindo,<br />

passaram essas entidades a visitar, a partir<br />

de outras vias, seus acometidos familiares,<br />

pois se aquilo “são os olhos, são as asas,<br />

cabelos de Avôhai”, na Terceira margem, o<br />

menino já sabia que o pai “agora virara<br />

cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal<br />

e magro”. Já perdurava a visão ou a simples<br />

ilusão!?<br />

Mais do que não libertar a morte,<br />

Avôhai revela os calabouços da mente que<br />

recorda e põe no outro a existência ausente.<br />

Mais do que uma condição de perda, o<br />

rio flutuante de Rosa revela a ponte para o<br />

desconhecido do próprio ser humano,<br />

buscando promover o auto conhecimento<br />

em tempos onde a imagem figurativa no<br />

espelho é somente carne sobre carne, a<br />

imagem fora de cá, fora de lá: lugar nenhum.<br />

68


<strong>Chicos</strong><br />

Edmar Monteiro<br />

Filho<br />

Edmar Monteiro Filho, nasceu no Rio de<br />

Janeiro (RJ), mora em Amparo (SP), escreve e<br />

publica desde 1980. Vencedor dos prêmios<br />

Guimarães Rosa, Cruz e Souza, Cidade de Belo<br />

Horizonte e Luiz Vilela e finalista do Prêmio<br />

São Paulo de Literatura. Publicou dez livros,<br />

entre prosa e poesia. Atualmente é doutorando<br />

em Teoria e História Literária pela UNI-<br />

CAMP.<br />

‘A Noite é dos Pássaros’: um exercício original e virtuoso<br />

Queiramos ou não admiti-lo, somos<br />

uma Nação fundada sobre a escravidão, e<br />

não apenas dos povos africanos, oficialmente<br />

extinta há pouco mais de cem anos, mas também<br />

dos povos que aqui viviam antes da chegada<br />

da esquadra de Cabral, em 1500. De fato,<br />

não estamos sozinhos num concerto mundial<br />

em que a violência tem origem nas diferenças<br />

não apenas de cor da pele como também<br />

de crença, de origem, de convicção política<br />

e tantas outras. Mas sofremos especialmente<br />

as consequências de um feixe de misérias<br />

ocasionadas pelo tratamento de seres<br />

humanos como bestas durante centenas de<br />

anos. Ainda hoje, há os escravos com carteira<br />

assinada, os escravos sem segurança, sem garantias,<br />

os escravos humilhados pela necessidade<br />

absoluta.<br />

Aquele que domina e escraviza entende o<br />

outro como inferior, criatura vinculada ao<br />

conceito de utilidade, seja para realizar as tarefas<br />

que o dominador não deseja ou não está<br />

apto a realizar, seja para dar prazer ou simplesmente<br />

alimentar a vaidade de deter a<br />

posse de outro ser humano – ainda que, no<br />

mais das vezes, tal domínio venha justificado<br />

pela negação da humanidade do escravizado.<br />

Assim, a escravidão nasce da diferença que se<br />

autoriza a suprimir a dignidade ao outro, na<br />

medida em lhe retira não apenas a liberdade,<br />

mas a autodeterminação.<br />

A necessidade de levar a civilização ou a salvação<br />

a povos considerados inferiores muitas<br />

vezes serviu de pretexto para escravizá-los,<br />

com base numa concepção que se traduz pela<br />

máxima: “minhas ideias e meus costumes<br />

são melhores e mais verdadeiros que o do<br />

outro e, por isso, é preciso impô-los para o<br />

seu próprio bem”. No caso dos portugueses<br />

que chegaram às terras brasileiras, a ideia de<br />

civilização entrou em choque com certos costumes<br />

impeditivos da sua própria existência,<br />

casos do incesto, do homicídio e da antropofagia.<br />

Por isso, a existência do sacrifício humano<br />

e do canibalismo acabaram suscitando<br />

não apenas o repúdio e a proibição, mas<br />

69


<strong>Chicos</strong><br />

também a imposição de outras atitudes igualmente<br />

contrárias à convivência, como o genocídio<br />

e a escravização.<br />

Ainda que a antropofagia praticada pelos<br />

povos indígenas em tempos coloniais seja<br />

o eixo temático do precioso romance “A Noite<br />

é dos Pássaros”, do escritor paraense Nicodemos<br />

Sena, seu enfoque é outro. Trata-se –<br />

nas palavras do próprio autor – de uma experiência<br />

que parte da história para avançar pela<br />

literatura, buscando a atmosfera dos mitos<br />

indígenas e “despindo-os da roupagem imposta<br />

pelo colonizador”, de modo a construir<br />

uma narrativa que mergulha firmemente “na<br />

penumbra dos sonhos”. O relato aborda as<br />

peripécias do naturalista português Alexandre<br />

Rodrigo Ferreira, feito prisioneiro dos tupinambás<br />

em 1751. Conforme o costume, o cativo<br />

recebe o tratamento de hóspede, enquanto<br />

aguarda o momento em que será<br />

morto e devorado, como forma de vingança<br />

pelos inúmeros membros da tribo mortos pelos<br />

portugueses. Seus dias se passam em angustiosa<br />

espera, lendo e relendo um desgastado<br />

volume que narra as aventuras do mercenário<br />

alemão Hans Staden, que viveu situação<br />

semelhante à sua, sobreviveu ao sacrifício<br />

e retornou ao país natal para redigir as memórias<br />

do cativeiro. Para amenizar sua angústia,<br />

Alexandre conta com uma importante aliada<br />

na figura da jovem Potira, filha do chefe<br />

tupinambá, que por ele se apaixona e promete<br />

salvá-lo do ignóbil destino que o espera.<br />

A pesquisa extensa realizada pelo autor,<br />

os enxertos da língua tupi nas falas dos personagens,<br />

a detalhada descrição da vida na<br />

aldeia, estabelecem um conjunto rico e verossímil,<br />

que foge do meramente exótico ao se<br />

apoiar a todo instante nas inserções da mitologia<br />

indígena no enredo. A beleza da poesia<br />

tupi, liberada do exotismo romântico, mas em<br />

diálogo reconhecido com obras fundamentais<br />

da nossa literatura, desde “Caramuru”, passando<br />

por “I-Juca Pirama”, até chegar aos modernos<br />

“Cobra Norato” e “Macunaíma”, transforma<br />

“A Noite é dos Pássaros” num exercício<br />

original e virtuoso, no qual História e mito,<br />

fantasia e registro fiel do real e a força da linguagem<br />

estão a serviço de uma narrativa de<br />

amor e de costumes. E, como se não bastasse,<br />

serve ainda ao propósito de suscitar interessantes<br />

reflexões acerca do verdadeiro significado<br />

da cultura em sua ampla diversidade.<br />

Difícil não enxergar na revoada final dos<br />

pássaros uma espécie de polifonia de cores e<br />

significados dentro de uma suntuosa sinfonia.<br />

70


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Ronaldo Cagiano, nasceu em Cataguases<br />

(MG), mora em Portugal. Autor, dentre outros,<br />

de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio<br />

Brasília de Produção Literária 2001), O<br />

sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio<br />

Portugal Telecom 2012) e Eles não moram<br />

mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016).<br />

Hóspede do degredo<br />

É tão razoável representar uma espécie de encarceramento<br />

por uma outra como representar qualquer coisa<br />

que realmente existe por qualquer coisa que não existe.<br />

Daniel Defoe<br />

Escritora mineira nascida em Guarani,<br />

formada em Letras pela UFRJ e radicada em<br />

Londres há mais de uma década, para onde<br />

foi estudar Shakespeare, Nara Vidal acaba de<br />

publicar "Sorte" (Ed. Moinhos, BH, 2018, 100<br />

pgs), uma pequena obra prima, que emoldura,<br />

numa narrativa vigorosa e envolvente, o<br />

drama do deslocamento e da humilhação sofrido<br />

pelas mulheres, tão ancestral quanto a<br />

própria história dos povos. Autora, dentre<br />

outros, de “O curioso mundo de Amelie”, “O<br />

arco-íris em preto e branco”, “Viajar sem dinheiro<br />

& gafes internacionais” e “A loucura<br />

dos outros” (Ed. Reformatório, SP), criou em<br />

Londres o Capitolina Books, um projeto vitorioso<br />

e vitrine para a nossa literatura, que traduz<br />

e divulga autores brasileiros na Inglaterra<br />

e Europa.<br />

“Sorte” estrutura-se em capítulos curtos,<br />

em cuja trama o leitor depara-se com<br />

uma arquitetura formal sofisticada e repleta<br />

de imagens e simbologias, sua leitura galvaniza<br />

tanto pela temática quanto pelo estilo que<br />

funde contenção e densidade, abarcando<br />

uma realidade que carrega outros dramas e<br />

conflitos íntimos e históricos. Um livro metafórico<br />

em todos os sentidos, em que a autora<br />

transpõe os domínios do realismo para instaurar<br />

um trânsito de transcendência, onirismo<br />

e magia, ao tomar como pano de fundo a<br />

fuga de uma personagem da situação de fome<br />

da Irlanda no início do século 19. Note-se,<br />

ainda, sua destreza em mesclar realidade e<br />

ficção, história e memória, que dão um tom<br />

de drama e denúncia, além do caráter epopeico<br />

(e ao mesmo tempo epifânico) ao relato.<br />

71


<strong>Chicos</strong><br />

Acreditando nas promessas de um novo<br />

eldorado no Brasil, o "Hy-Brasil" (aqui representado<br />

por uma ilha movediça e cheia de<br />

mistérios, que aparece a cada sete anos, como<br />

se fosse uma panaceia para os sofrimentos),<br />

vamos encontrar Margareth a fugir de<br />

um destino crucial traçado desde o ventre.<br />

Acossada pela miséria do país, a doença do<br />

pai (um homem castrador, machista e arrogante)<br />

vitimado pelo tifo, e por uma gravidez,<br />

sai da Irlanda em direção<br />

ao Rio de Janeiro.<br />

Ao chegar, percebe que<br />

foi vítima de mais uma<br />

cilada, quando o estado<br />

brasileiro, para atrair<br />

força de trabalho para<br />

suas terras numa economia<br />

incipiente, recebia<br />

levas de imigrantes,<br />

mas estes são tratados<br />

como escravos,<br />

submetidos a outros<br />

degredos, como a opção<br />

de serem enviados<br />

os homens para as<br />

guerras travadas no Cone<br />

Sul, na época em<br />

que o conflito cisplatino<br />

opunha Brasil e Argentina.<br />

A sedução do estrangeiro<br />

para quem<br />

fugia de condições miseráveis<br />

em seu país<br />

que vivia a fome da batata, atrai a família Cunningham,<br />

mas tudo se transformava em degredo<br />

e sevícia, diante da ilusão abortada ao<br />

chegar à nova terra.<br />

Eis uma obra que não minimiza o olhar<br />

crítico, mas em clave de sutileza poética, sobre<br />

a má sorte dos que precisam fazer uma<br />

travessia para fugir ao deserto em que vivem,<br />

mas acabam por serem lançados numa outra<br />

aridez, além da territorial e geográfica, pois o<br />

pior apartheid será o sofrimento psicológico e<br />

a perda da identidade. "Sorte" mapeia esse<br />

passivo íntimo que atinge tanta gente desde<br />

os primórdios da civilização: deslocamento,<br />

perdas, solidão, desilusão, guerras, fome, doenças,<br />

um corolário de enfrentamento da<br />

opressão tanto política quanto religiosa e moral,<br />

onde quer que vivam.<br />

Nesse percurso trágico reside um grande<br />

simbolismo: a fuga de Margareth e sua família,<br />

vivendo uma outra<br />

insularidade, além<br />

da pobreza na Irlanda, a<br />

material, financeira e a<br />

afetiva. Pois aí é movida<br />

ainda pelo castigo, por<br />

estar grávida, tendo<br />

que abandonar filho tão<br />

logo chega ao Brasil,<br />

um desiderato comum<br />

a tantas mulheres estigmatizadas<br />

e proscritas<br />

pela igreja naqueles<br />

tempos bárbaros de<br />

pseudomoralismo e<br />

controle rígido dos costumes,<br />

quando as freiras<br />

são agentes que<br />

consumam a tortura<br />

maior, que é a venda<br />

dos bebês.<br />

A autora trabalha<br />

habilidosamente a mitologia<br />

em torno não só<br />

desses refugiados de um tempo tão distante -<br />

mas tão análogos aos sírios de hoje, que sofrem<br />

e morrem nas águas do mundo e não<br />

sabem o que vão encontrar do outro lado -<br />

porque são expulsos de suas terras pelas contingências<br />

que os humilham, amedrontam e<br />

apequenam, quando os aguardam países e<br />

realidades movediças e a imprevisibilidade da<br />

sorte, apostando na loteria do "allea jacta est"<br />

da sobrevivência. Essa travessia do Atlântico,<br />

72


<strong>Chicos</strong><br />

que durante 36 dias colocará em risco a vida<br />

de Margareth e suas irmãs Martha e Mary, e<br />

também seus irmãos, num périplo angustiante<br />

e imprevisível, é o pano de fundo para um<br />

delicado questionamento sobre o destino de<br />

pessoas e nações que, em suas experiências<br />

traumáticas, vivem sempre empurrados pelas<br />

circunstâncias pessoais e históricas, obrigados<br />

a viverem seus confrontos com o mundo, mas<br />

na tentativa de escapar deles, numa espécie<br />

de Pessach às avessas, fogem de um cativeiro<br />

para cair em outra armadilha; vítimas das circunstâncias,<br />

tornam-se hóspedes compulsórios<br />

de um eterno degredo, pois substituem<br />

uma experiência existencial devastadora e excludente<br />

por outra tão aviltante e apartadora,<br />

colhidos pelo alçapão das instabilidades políticas<br />

e econômicas.<br />

Uma narrativa sóbria, elegante, sem derramamentos,<br />

pontuada por uma história de crueza,<br />

mas povoada de sensibilidade e reflexão,<br />

em que tempos cronológicos e psicológicos<br />

são coerentemente trabalhados pela autora<br />

em simbiótica relação, traçando um contundente<br />

perfil da violência que se manifesta em<br />

todas as geografias e sentidos, conferindo à<br />

novela a expressão de libelo. "Sorte", em sua<br />

impactante e não edulcorada verdade, vem<br />

traçar um roteiro ficcional sobre a gênese do<br />

nosso processo civilizatório, ao tocar em<br />

questões ligadas à vida, à morte, ao sofrimento<br />

dos excluídos e à vileza que afetaram, marcaram<br />

e dividiram uma família pela desterritorialidade<br />

e pela itinerância. A história culmina<br />

num simbólico e dramático epílogo às margens<br />

do mí(s)tico e velho Pomba, essas águas<br />

que atravessam a zona da mata de Minas e,<br />

que como diria um poema de João Cabral,<br />

"esse rio/ está na memória/ como um cão vivo/<br />

dentro de uma sala." Na memória ficam<br />

seus personagens e sua luta e errância para<br />

fugir à dor e ao esquecimento, como essa<br />

Mariava, escrava que tem seu papel na história,<br />

como repositório desse imaginário e dessa<br />

esperança que nunca se realiza, mas que<br />

carrega uma dimensão humana transcendental.<br />

Trecho:<br />

Os gritos pela casa, quase diariamente, eram a sua admiração<br />

pelos conflitos napoleônicos. O pai sempre frustrado já que a<br />

agitação nunca chegou na Irlanda. “Nem a guerra quer este país.”<br />

Bradava com revolta e esperança de outro horizonte. Qualquer um.<br />

“Até Brasil, a ilha movediça, é melhor que isso aqui. Não fosse<br />

minha perna, pegava vocês e ia pra Brasil, a ilha da fantasia.”<br />

73


<strong>Chicos</strong><br />

Andressa Barichello<br />

Andressa Barichello, nasceu em São Paulo<br />

(SP), mora em Portugal. É autora do livro<br />

Crônicas do Cotidiano e outras<br />

mais (Scortecci, 2014). É co-fundadora do<br />

projeto fotoverbe-se.com.<br />

Rotina interrompida<br />

No livro A Pomba, publicado pela primeira vez<br />

em 1987, Patrick Suskind constrói alegorias singelas<br />

para tratar da frágil condição humana.<br />

A Feira do Livro de Lisboa é uma grande<br />

festa da primavera. O parque Eduardo VII é<br />

formado por um longo terreno que, em linha,<br />

cresce ao pé do Marquês do Pombal. Nessa<br />

extensão verde que se assemelha a uma rua,<br />

diversas editoras montam seus stands e é<br />

possível encontrar muitos tipos de livros. Tudo<br />

isso para dizer que encontrei o livro A<br />

Pomba, de Patrick Suskind, em meio a outros<br />

tantos enquanto explorava uma prateleira.<br />

Pela quarta capa é possível descobrir que<br />

o enredo é a história de um homem, Jonathan<br />

Noel, que após encontrar uma pomba à porta<br />

de casa experimenta uma espécie de revolução<br />

em sua rotina. O personagem adulto é<br />

também uma criança órfã sobrevivente da<br />

Segunda-Guerra. Após passar pelo exército e<br />

por algumas poucas experiências de relacionamento<br />

pessoal, instala-se na cidade de Paris.<br />

Também são dados biográficos desse personagem,<br />

trabalhar em um banco e morar no<br />

mesmo quarto há trinta anos. Com uma vida<br />

modesta e sem ambições, a ideia de sucesso e<br />

conforto mistura-se para Jonathan Noel com<br />

a ideia de cumprimentos de deveres e de repetição.<br />

É justamente como quebra a essa repetição<br />

que uma pomba surge e, além de emporcalhar<br />

o corredor do edifício, cruza olhares<br />

aterradores com o protagonista e serve de<br />

gatilho para o desenrolar de muitas fantasias.<br />

Em alguma medida é possível pensar que a<br />

pomba é também protagonista da história já<br />

que sua presença é fundamental e ao redor<br />

dela orbitam grandes questões. Ao mesmo<br />

tempo, o animal também soa como uma metáfora<br />

ou gancho escolhido pelo autor para<br />

dar – ou devolver – o protagonismo para o<br />

personagem central da história, o homem, ou<br />

melhor, o humano.<br />

A obra, de 96 páginas, desafia enquadramentos.<br />

Trata-se de um romance, mas há elementos<br />

do conto. Alguns poderiam classificála<br />

como uma novela? Chama atenção a perspicácia<br />

de Patrick Suskind para em poucas páginas<br />

construir um contexto sólido e bem ambientado<br />

e ainda criar muitas imagens que,<br />

por dizerem tanto, talvez justifiquem um texto<br />

curto para o gênero. A prosa enxuta não<br />

prejudica a complexidade, a existência de<br />

conflitos secundários e diversos momentos de<br />

clímax ao longo da leitura.<br />

74


<strong>Chicos</strong><br />

Talvez não seja pecado dizer que o texto,<br />

muito flexível, flerta até com características da<br />

crônica; a história parte de um acontecimento<br />

aparentemente banal desafiado pela perspectiva<br />

do autor, com presença de humor, ironia<br />

e momentos de lirismo. Também remete ao<br />

gênero crônica a presença de personagens<br />

cuja caracterização não é aprofundada mas é<br />

suficiente a situar o leitor e torná-lo predisposto<br />

às emoções da história.<br />

Apesar de contar com cenas bem descritas<br />

que permitem a construção de um filme mental<br />

durante a leitura, a potência do livro parece<br />

estar no impacto sensorial ou psicológica<br />

que a linguagem imprime até aos pequenos<br />

detalhes. Exemplo disso é a cena em que Jonathan<br />

Noel descreve os olhos da pomba.<br />

Trata-se de uma descrição com apelo imagético<br />

(já que descreve aspecto desses olhos)<br />

mas que aguça, com igual potência, o emocional.<br />

O livro de Patrick Suskind surge-me, aliás, tal<br />

como a pomba surge ao personagem Jonathan<br />

Noel. Presa pela história, meus planos de<br />

explorar a feira do livro e minha promessa de<br />

não fazer nenhuma compra, deram lugar a<br />

uma pausa para devorar o romance recémadquirido.<br />

A ideia de que o incidental não<br />

apenas pode produzir grandes desvios como<br />

chegar mesmo a definir as esquinas que dobraremos<br />

na vida. A ideia de que devorar pode<br />

se tratar de uma avidez ou de um sumir<br />

dentro de si. Quais serão as esquinas escolhidas<br />

por Jonathan Noel e qual será a devoração<br />

possível para o personagem introspectivo<br />

criado por Patrick Suskind? Seja qual for a<br />

resposta, fica-nos a suspeita de que não é<br />

preciso ir longe para encontrar novos interlocutores.<br />

Ainda nas primeiras páginas da história, antes<br />

de seguir para mais um dia de trabalho Jonathan<br />

Noel pergunta-se quem limpará a sujeira<br />

do corredor, quem enxotará a pomba dali. O<br />

inconveniente faz surgir a dúvida e poder duvidar<br />

é uma brecha em uma vida de isolamento<br />

e desconfiança. Divirto-me pensando<br />

que o sobrenome Noel remete ao homem de<br />

fantasia que pelo mundo se repete a cada<br />

Natal.<br />

Divirto-me pensando que as pombas podem<br />

ser consideradas um símbolo da paz. E também<br />

que em português, pomba, em sentido<br />

figurado, faz referência à pessoa bondosa ou<br />

até mesmo vagina que nesse caso associo à<br />

ideia de algo do feminino. Quem é Jonathan<br />

Noel, quem é a presença que lhe surge à porta?<br />

Talvez a pomba e Jonathan, ou talvez a<br />

pomba, Jonathan Noel e os outros personagens<br />

da trama, sejam apenas um: animais de<br />

sangue quente que, para sobreviver, precisam<br />

aprender os múltiplos significados da palavra<br />

despojo.<br />

A Pomba – Patrick Suskind - 96p.<br />

Editorial Presença<br />

Patrick Suskind é um escritor alemão. Entre<br />

outras obras é também autor de O Perfume,<br />

lançado em 1985.<br />

75


<strong>Chicos</strong><br />

Antônio Jaime<br />

Soares<br />

Antonio Jaime Soares, nasceu em Cataguases<br />

(MG) lá na Chave. Participou de um dos<br />

movimentos culturais mais ativos dos anos 60<br />

em Cataguases, o CAC. Depois de morar um<br />

longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre<br />

outras foi redator de publicidade. Retornou a<br />

Cataguases, direto para a Vila.<br />

Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />

(crônicas - 2011)<br />

“Verde”<br />

No arquivo municipal deparei, num jornal Cataguazes<br />

de 02/10/1927, com uma saudação à<br />

revista Verde oito dias após o seu apparecimento,<br />

sendo redactor do hebdomadário à ephoca o Sr. L.<br />

Soares dos Santos.<br />

“Verde”<br />

Uma força ingente de energias nobres faz<br />

vibrar, nos tempos que refluem, a alma da modernidade<br />

num anseio latente e ascencional de crear<br />

o inedito, de refundir as antigas formulas, de remodelar,<br />

de modernisar, de visualizar e corporificar<br />

uma nova arte na litteratura.<br />

Tanto quanto a nossa apoucada intelligencia<br />

de conservador conse-guiu a-prehender desse<br />

movimento renovador, à Marinetti, que vae avassalando<br />

a geração dos novos máxime neste nosso<br />

querido Brasil, afigura-se-nos que a tendencia dos<br />

creadores da nova arte é para a synthese, quebrados<br />

todos os élos que nos prendem ao passado,<br />

eliminados todos os rythmos, metodos, predominâncias<br />

syllabicas, rimas, etc.<br />

Liberdade absoluta de dizer, sem peias, sem<br />

obediencia a quaisquer regras preestabelecidas,<br />

sem formulas de expressão, sem escolas, sem preconceitos,<br />

sem ligamentos a notoriedades autoraes,<br />

tal parece ser o escopo na nova arte na prosa,<br />

na poesia, e em todas as modalidades de exteriorização<br />

da ideia.<br />

Não sabemos si é bem isto o que querem<br />

os novos, mas é isto, pelo menos, o que inferimos<br />

do pouco que temos lido oriundo da nova legião<br />

libertaria que vem surgindo. É boa a nova orientação?<br />

Será vencedora? Conseguirá ella fazer epocha,<br />

implantando o Novo Modo na litteratura?<br />

Não há como silenciar, por enquanto, a tal respeito,<br />

mesmo porque o nosso escopo, neste momento,<br />

não é, de forma alguma, fazer juízo crítico da<br />

Nova Arte.<br />

O nosso intuito, único, exclusivo, é noticiar o<br />

apparecimento da Revista, – cujo nome serve de<br />

título a estas linhas, – nesta cidade, no domingo<br />

passado, da qual é director o dr. Henrique de Rezende<br />

e redactores o academico Antonio Martins<br />

Mendes e o gimnasiano Rosario Fusco.<br />

Ao fazel-o, temos grande satisfação em saudar<br />

a “Verde” com seus col-laboradores, suas ideias,<br />

suas audacias, suas irreverências, suas novas formas<br />

de estylo, seus novos motivos, seus novos<br />

anseios, desejando-lhe sinceramente que colha<br />

muitos fructos na seara innovadora que a esperan<br />

-çosa novidade está semeando no terreno cheio<br />

de seiva do presente e do futuro.<br />

O trabalho dos novos deve ser sempre bem<br />

recebido pelos velhos, porque, para compensar os<br />

muitos senões oriundos da falta de um senso<br />

amadurecido pela experiência, elles tem a seu<br />

favor a sinceridade expontania com que orientam<br />

todos os seus actos, e isto os absolve das pequenas<br />

culpas veniaes.<br />

Que “Verde” vença são os nossos votos, aqui<br />

consignando applausos a esta pleiade de moços<br />

que tão galhardamente affirmam e simulam seus<br />

ideaes.<br />

Publicado originalmente na Sapeca nº 14<br />

76


<strong>Chicos</strong><br />

Clips<br />

DUELOS<br />

Lançando recentemente o último livro de<br />

Eltânia André .<br />

Para adquiri-lo visite o site da Editora Patuá.<br />

https://editorapatua.minhalojanouol.com.br/<br />

77


<strong>Chicos</strong><br />

abelhas, a literatura e a filosofia. No prefácio,<br />

o escritor Ronaldo Cagiano escreve:<br />

"Currais Concretos encontra um poeta no<br />

auge de um fecundo exercício da condição<br />

artística: o de intérprete do mundo que o<br />

cerca, atento aos detalhes de um quotidiano<br />

que muitas vezes passa ao largo e que a sua<br />

ótica capta com inegável plasticidade, inflexão<br />

lúdica e acento telúrico. Sua voz poética<br />

parece reverberar um solo em que o artista<br />

transfere à palavra uma impactante melodia,<br />

um repertório de pura transubstanciação da<br />

realidade a partir de uma percepção nitidamente<br />

onírica e metafísica".<br />

Currais Concretos é o quarto livro do poeta<br />

que vive em um núcleo rural próximo a Brasília-DF.<br />

A poesia de Benini fala de suas experiências<br />

vivendo em uma área de Cerrado<br />

e de seus encontros com os passarinhos, as<br />

Currais Concretos<br />

Editora Intermeios<br />

www.intermeioscultural.com.br<br />

78


<strong>Chicos</strong><br />

Poesia circulando<br />

na cidade de Belo Horizonte<br />

Poesia circulando nas ruas, para o maior número<br />

possível de pessoas. Essa foi a ideia que<br />

nos motivou a criar a coleção Leve um Livro.<br />

Seja em blogs, zines, revistas, saraus ou<br />

edições independentes, a poesia brasileira<br />

contemporânea mostra vigor e criatividade,<br />

com uma grande variedade de estilos e dicções.<br />

Nosso objetivo é justamente dar uma<br />

amostra dessa produção, colocando para circular<br />

o trabalho de poetas de todas as partes<br />

do país.<br />

Esta é a Sapeca nº 14<br />

Editada pelo nosso impagável Tonico Soares<br />

https://www.yumpu.com/pt/document/view/61728380/sapeca-14<br />

O funcionamento da coleção é bastante simples:<br />

convidamos 24 poetas de todo o Brasil<br />

para publicar microantologias, duas a cada<br />

mês, ao longo de um ano. Os livros são feitos<br />

especialmente para a coleção, com projeto<br />

gráfico exclusivo, e são distribuídos gratuitamente,<br />

em 21 pontos de Belo Horizonte.<br />

Quem quiser, é só levar para casa, ler e colecionar.<br />

Cada livro tem tiragem de 2500 exemplares,<br />

distribuídos gratuitamente em displays<br />

afixados em centros culturais, cinemas, cafés,<br />

bares, livrarias, sebos, teatros e bibliotecas.<br />

https://leveumlivro.com.br/<br />

No site você encontra todas as informações<br />

sobre o projeto: autores participantes, pontos<br />

de distribuição, lançamentos, fotos e muito<br />

mais. Além disso, disponibiliza todos os livros<br />

para download gratuito, à medida em que<br />

forem sendo lançados.<br />

79


<strong>Chicos</strong><br />

Joaquim Branco<br />

participará de:<br />

com<br />

Nesta obra, com uma escrita clara e objetiva,<br />

o autor parte de um enfretamento pela lógica<br />

legal dos problemas ambientais e surpreende<br />

a todos com um apocalipse.<br />

Não uma hecatombe como Hiroshima, mas<br />

sem alarde, sem caos e sem ódio; mortes sem<br />

sangue nem nervos expostos. Porém, este<br />

fato gerador, que é absurdamente violento e<br />

destruidor, cria condições para uma Nova Ordem<br />

, que vai ser experimentada por uma<br />

mulher, buscando seu caminho de aprendizagem<br />

e realização.<br />

Guapuruvu<br />

Onofre Martins<br />

Editora Autografia Edição e comunicação Ltda<br />

www.autografia.com.br<br />

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