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Nasce, então, a possibilidade de<br />
gostar das coisas de um modo não<br />
frustrante, porque embora todas as<br />
criaturas decepcionem, considerando-as<br />
nesta linha elas contêm um<br />
anúncio, uma promessa e um antegozo.<br />
Aí sim somos capazes de viver,<br />
tendo o espírito anti-igualitário, pois<br />
naqueles que são arquétipos vemos<br />
imagens de Deus, aptas a me atrair<br />
como a plenitude atrai a parte, mas<br />
que me encaminham depois para a<br />
plenitude das plenitudes que é Deus<br />
Nosso Senhor. Por esta forma eu me<br />
oriento para Deus. Eis como o espírito<br />
católico deve estar continuamente<br />
considerando as coisas.<br />
Fra Angelico (CC3.0)<br />
Isso é viver; o resto é<br />
arrastar a vida<br />
Fra Angelico visitado pelos anjos<br />
Museu de Belas Artes de Rouen, França<br />
Esta postura diante da vida, ao<br />
invés de torná-la monótona, torna-<br />
-a entretida. Tenho pena de quem<br />
não faz isso como alguém que enxerga<br />
tem compaixão de um cego. Mais<br />
ainda: se aguento tantos dissabores<br />
desde a manhã até a noite é porque<br />
este entretenimento me dá forças.<br />
Por exemplo, na hora da Comunhão<br />
pensar como este Deus perfeito<br />
e absoluto, omne delectamentum<br />
in Se habentem – tendo em Si toda<br />
espécie de sabores –, embora de<br />
modo insensível, entra na minha alma,<br />
e já nesta Terra, nesta noite, me<br />
é concedida a semente da luz que terei<br />
quando meus olhos se fecharem<br />
definitivamente para este mundo.<br />
Esta é a impostação do espírito<br />
católico, o qual é muito hierárquico,<br />
porque em todas as coisas procura o<br />
arquétipo, a maior perfeição criada, e<br />
depois voa para a perfeição incriada.<br />
Dou um exemplo de como se faz<br />
uma operação mental dessas. Enquanto<br />
falava, meus olhos caíram na<br />
parte de trás dessa imagem de Nossa<br />
Senhora, e me chamou a atenção a<br />
boa ordenação das dobras do manto<br />
esculpido, dando a impressão de um<br />
pano grosso que não se deixou amarfanhar<br />
nem amarrotar, mas que também<br />
não está dobradinho como para<br />
uma vitrine; são dobras aparentemente<br />
espontâneas, produzidas por<br />
um bonito movimento.<br />
Passou-me pela mente como seria<br />
interessante estar junto ao escultor e<br />
vê-lo imaginar essas dobras. Por assim<br />
dizer, entrar na sua cabeça e ver<br />
qual o estado de espírito por onde<br />
ele excogitou isso. Para mim, ver o<br />
espírito dele produzir a dobra é ainda<br />
mais interessante do que fazê-la.<br />
Então, ter visto o escultor excogitar<br />
a dobra, esculpi-la, olhar para ela e,<br />
por fim, analisar a fisionomia do escultor<br />
e fechar o ciclo da minha observação<br />
entreter-me-ia extraordinariamente.<br />
Em vários museus europeus<br />
vi artistas pintando e gente em<br />
volta olhando os pintores, e compreendo<br />
isso.<br />
Porém eu quereria mais. Como<br />
seria maravilhoso ver Deus quando<br />
criou o mundo! Na criação de todo<br />
o universo, que coisa superior! Deus<br />
é eterno e imutável, e vendo-O face<br />
a face, eu O verei como quando Ele<br />
estava criando o universo.<br />
Está aí uma meditação que me<br />
eleva. Isso é viver, o resto é arrastar<br />
a vida.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
17/11/1972)<br />
1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.<br />
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