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Chicos 56 - 20.03.2019

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. Neste número, a poeta da primeira página é Maria do Carmo Ferreira. Inédita em livro, a irmã de Celina Ferreira tem sua poesia espalhada pela internet e em publicações das mais variadas. Além de homenageá-la, oferecemos a vocês um pouco da obra dela dispersa por aí.

Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições.
Neste número, a poeta da primeira página é Maria do Carmo Ferreira. Inédita em livro, a irmã de Celina Ferreira tem sua poesia espalhada pela internet e em publicações das mais variadas. Além de homenageá-la, oferecemos a vocês um pouco da obra dela dispersa por aí.

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Nº <strong>56</strong><br />

20 de março de 2019<br />

e-zine de literatura e ideias de<br />

Cataguases – MG<br />

Um dedo de prosa<br />

Esta é a nossa edição <strong>56</strong><br />

<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.<br />

Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar<br />

nossas edições ou visite-nos nos links listados nesta<br />

página.<br />

A linha editorial é fundamentalmente voltada para a<br />

literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno<br />

e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,<br />

uma diversidade temática.<br />

Neste número, a poeta da primeira página é Maria do<br />

Carmo Ferreira. Inédita em livro, a irmã de Celina Ferreira<br />

tem sua poesia espalhada pela internet e em publicações<br />

das mais variadas. Além de homenageá-la, oferecemos<br />

a vocês um pouco da obra dela dispersa por aí.<br />

Continuando o mapeamento da poesia portuguesa contemporânea,<br />

com prazer compartilhamos alguns poemas<br />

de Sophia de Mello Breiyner Andresen a primeira mulher<br />

a receber o importante Prêmio Camões.<br />

Neste número de início de outono, Antônio Torres nos<br />

fala do Porto, numa história que começa na Regaleira<br />

que infelizmente algumas notícias recentes nos dão<br />

conta que fechou suas portas em definitivo.<br />

Capa: Foto Vicente Costa<br />

Editores:<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

José Antonio Pereira<br />

Uma agradável leitura para todos! E até o início do inverno<br />

Os <strong>Chicos</strong><br />

Colaboradores:<br />

Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />

Fotografia - Vicente Costa<br />

Ilustrações - Altamir Soares e Merson<br />

Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com<br />

Visite-nos em:<br />

https://independent.academia.edu/<strong>Chicos</strong>Cataletras<br />

https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras<br />

http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />

01


<strong>Chicos</strong><br />

03 MARIA DO CARMO<br />

FERREIRA<br />

Um corpo e seus cognatos + 8<br />

poemas<br />

14 RONALDO WERNECK<br />

O enigma Maria do Carmo/<br />

Carminha Ferreira<br />

33 INEZ ANDRADE PAES<br />

sobre a água<br />

dentro dela<br />

anda uma ponte<br />

35 GISELA GRACIAS<br />

RAMOS ROSA<br />

Entre a pedra e o corpo...<br />

36 ACIR SIMÕES<br />

Essa dor + 2 poemas<br />

39 SOPHIA DE MELO<br />

BREIYNER ANDRESEN<br />

Inscrição + 12 poemas<br />

50 RONALDO BRITO<br />

ROQUE<br />

O preço do clone<br />

52 ANTÔNIO TORRES<br />

O Porto bebido e revivido<br />

59 JOSÉ VECCHI DE<br />

CARVALHO<br />

O chapéu do falecido<br />

62 ANDRESSA<br />

BARICHELLO<br />

Praça dos Touros<br />

63 JOSÉ ANTONIO<br />

PEREIRA<br />

Regra três de juiz<br />

65 RACHEL NAVEIRA<br />

Janelas do mundo<br />

67 ANTÔNIO JAIME<br />

Minientrevista com Rosário<br />

Fusco<br />

SOARES<br />

68 LUIZ RUFFATO<br />

Lendo os clássicos: Mary Barton<br />

71 FLAUZINA MÁRCIA<br />

Ler é bom demais<br />

72 RONALDO CAGIANO<br />

O corpo como reverberação do<br />

eu lírico<br />

75 EMERSON TEIXEIRA<br />

O imaginário adolescente<br />

CARDOSO<br />

76 JEOVÁ SANTANA<br />

Por que ler Campos de Carvalho<br />

78 CLIPS<br />

Outros papos ...<br />

02


<strong>Chicos</strong><br />

Maria do Carmo<br />

Ferreira<br />

Maria do Carmo Ferreira nasceu em Cataguases<br />

(MG), em 21 de dezembro de 1938. Ela<br />

viveu no Rio de Janeiro (RJ) por algumas décadas<br />

e, finalmente, mudou-se para Niterói (RJ),<br />

onde vive. Embora tenha publicado poemas em<br />

jornais, suplementos e revistas literárias desde a<br />

década de 1960 (pelo menos 50 poemas publicados<br />

no Suplemento Literário de Minas Gerais),<br />

ainda é inédita em livro. Traduziu poemas<br />

de Emily Dickinson, Lorca, Neruda, Alfonsina<br />

Storni, Mallarmé, Verlaine, Paul Eluard, Jacques<br />

Prevert, Yeats, Corbière e Laforgue. Aposentou-se<br />

na Rádio MEC, onde trabalhou por<br />

mais de 30 anos como criadora, tradutora, editora,<br />

produtora e coordenadora de programas<br />

literários e lítero-musicais.<br />

Auto-retrato<br />

Nasci no rame-rame das abóboras.<br />

Meu plano é horizontal. Vivo de cócoras.<br />

Se me ergo, me espatifo. A gravidade<br />

colou meu ser ao chão: cresço à vontade.<br />

A crosta é dura. No corpo volumoso<br />

a polpa é só fartura e paga o esforço<br />

de rastejar como uma tartaruga<br />

e refletir ao sol minha armadura.<br />

Uma fome objetiva me devora<br />

como a dos porcos que não comem pérolas<br />

ou a dos pobres que não comem porcos.<br />

Com ou sem sal, metáfora ou pletora<br />

viro alimento no momento justo.<br />

Ao fogo brando e lento mais me aguço.<br />

Não sinto a tentação das ramas altas:<br />

maracujá, chuchu, nada me exalta.<br />

Nem mesmo a solidão das uvas verdes<br />

quando o desdém dos homens as prescreve.<br />

No ventre universal ocupo um espaço.<br />

A vida faz-se em mim. Vegeto, e passo.<br />

03


<strong>Chicos</strong><br />

Um corpo e seus cognatos<br />

O corpo dela era um jardim fechado,<br />

fonte selada, seu corpo.<br />

Os olhos abismavam-se em seu lago,<br />

Espelho, os olhos dela, desse horto.<br />

Os seios dela eram gazelas alvas<br />

ninando em suas mãos sonhos opostos:<br />

duríssimos botões sobressaltados,<br />

às vezes absortos.<br />

As longas pernas dela cavalgavam<br />

colhendo os braços em marés revoltas.<br />

Correndo, exasperava<br />

a natureza em pêlo à sua volta.<br />

O dorso dela, quando repousada,<br />

riscava de horizonte o seu contorno.<br />

Movendo-se, ondulava<br />

toda a nudez dos seus cabelos soltos.<br />

O tempo dela, o corpo, sua cabala,<br />

estava destinado a um deus ignoto.<br />

Seu tempo lá se ia computado<br />

a velejar sem porto.<br />

A juventude dela avariava<br />

do zero ao infinito, em ponto morto.<br />

Viola da gamba, sulamita sola,<br />

bússola em busca de algum rei sem rosto.<br />

04


<strong>Chicos</strong><br />

enigmas<br />

Tu me tens acesa<br />

como um pé de cacto.<br />

Ai que eu te adivinho<br />

ai que eu te arrebato<br />

para meus espinhos.<br />

Tu me tens libérrima<br />

como um sol. Intacta.<br />

Ai que eu te anoiteço<br />

ai que eu te atravesso<br />

minha luz que mata.<br />

Tu me tens crescente<br />

como a lua. Fálica.<br />

Ai que eu te quebranto<br />

com um caco de espelho.<br />

Ai que eu te decapto.<br />

Tu me tens sonâmbula<br />

como uma ampulheta.<br />

Ai que eu te ensandeço<br />

ai que eu te esfaleço<br />

na uretra do tempo.<br />

Tu me tens é medo<br />

esfinge de oráculo.<br />

05


<strong>Chicos</strong><br />

MERETRILHO<br />

MICHELALÚMIA<br />

PROTIBULUTA<br />

GLANDULAMULA<br />

JEREBAGLÚTEA<br />

CLORIFURBANA<br />

CLOACLORANTA<br />

MARAFANCHONA<br />

PLURALITANTA<br />

EGUAERVOEIRA<br />

CLEPSUICIDRA<br />

PERONIAÔMIA<br />

BISCAVOBISCA<br />

MOSCAMENISCA<br />

MENINGEPÚBIA<br />

VAGIPENÍSOLA<br />

CLITÓRISPUTA<br />

06


<strong>Chicos</strong><br />

Cognominato<br />

Carmenta, mãe-mulher. Têmis, Nicóstrata.<br />

Da Arcádia. Profetisa. Seus oráculos<br />

(carmen, -inis) em versos, ao que consta.<br />

Tinha um altar em Roma, à Porta Carmental,<br />

no oitavo quarteirão da cidade papal.<br />

É deusa tutelar de infantes. Presidia<br />

aos nascimentos. Rendiam-lhe, as gestantes<br />

culto particular: antes, durante.<br />

Plutarco a fez mulher, não mãe, de Evandro.<br />

Este verbete em mim não diz, não sabe a que é,<br />

se a Carmem de Bizet, cigana e flor do mal,<br />

ou, se a carmim magento, carminativo ou não<br />

carmeando carmo e carma, carmelina, carmezim,<br />

da carmanhola ao carmona, não mais Carmelo, o monte,<br />

donde desci descalça, carmelita e carmense,<br />

da Mata à Paraíba, fundeando outra Carmópolis<br />

aquém e além do mapa, a perder pé de mins.<br />

Evoluções? Revoltas? Desenredos? Presídios?<br />

Tudo cabendo em não e em sim, senão, comigo,<br />

da lenda ao cantochão, entradas e bandeiras,<br />

mulher, fatal ou não, ainda mulher, rendeira,<br />

predestinada a sós, grande diminutiva,<br />

pergaminho-fetal daqui a dois mil e um<br />

quando, aos sessenta e três, se ainda viva (sozinha)<br />

perguntarem de mim, direi? Dirão: Carminha.<br />

07


<strong>Chicos</strong><br />

As lesbianinhas<br />

Mancomunadas<br />

conluiadinhas<br />

mãozinhas dadas<br />

maquiavelinhas<br />

colaçam tretas<br />

do arco-da-velha<br />

roçando os arcos<br />

das íris delas.<br />

Lá vão as duas<br />

uniduninhas<br />

no bole-bole<br />

de suas barquinhas<br />

passeando embaixo<br />

do arco-celeste<br />

jurando laços<br />

bem-casadinhos.<br />

Priscas pupilas<br />

saficazinhas<br />

mesmando-se ilhas<br />

de amor-perfeito<br />

dentro de espelhos<br />

em que se miram<br />

no acende-aplaca<br />

de suas pocinhas.<br />

Cheios de dedos<br />

seus segredinhos<br />

se encarrapicham<br />

quando se tocam<br />

(liras? safiras?<br />

pirilampejos?):<br />

pêlos nos pêlos<br />

olhos nos olhos.<br />

08


<strong>Chicos</strong><br />

Anticorpo<br />

Camisola de cambraia<br />

de cor de rosa de cheiro<br />

que de alvíssaras roçaste<br />

sangüíneas rosas bissextas.<br />

Camisola de cambraia<br />

amorfanhada altaneira<br />

puindo o porão das arcas<br />

alfavaca-entre-alfazemas.<br />

Camisola de cambraia<br />

esmaecida calêndula<br />

como um casulo sem corpo<br />

posposto a calendas gregas.<br />

Camisola de cambraia<br />

dos himeneus que desmembras<br />

em hímens de fátuo fogo<br />

vesperada e complacente:<br />

ai de quem cai em tua alfaia<br />

açulando a sós fogueira<br />

longa louca leve gaia<br />

camisola de cambraia!<br />

09


<strong>Chicos</strong><br />

SEQÜÊNCIACONSEQÜÊNCIA<br />

Dies irae, dies illa,<br />

nada será como d´antes:<br />

doravantesma só cinzas.<br />

Revolve-se a poeira humana.<br />

Por ínvios caminhos, roma.<br />

Na cama, o lot das filhas.<br />

A natureza se espanta<br />

com o fogo que prometeu:<br />

libertas quae sera tamen.<br />

Bárbaro belo horizonte,<br />

haja sermão nas montanhas<br />

quando ismália enlouqueceu.<br />

Marcados com pedras brancas<br />

vão-se os anéis aos diamantes<br />

in albis...lento festina.<br />

Olhai o lírio dos campos:<br />

cui bono? Arcades ambo.<br />

Teste dirceu cum marília.<br />

Lacrimosa dies illa,<br />

chora bárbara heliodora<br />

do norte estrela sem guia.<br />

Transidos de eterno sono<br />

quem rogaturus patronum?<br />

Tudo será cinza fria.<br />

Vivos voco, mortuos plango.<br />

Dormindo profundamente<br />

ab aeterno, aeternum vale,<br />

10


<strong>Chicos</strong><br />

onde eram neves d´antanho<br />

diadorins... dinamenes...<br />

sub rosa (cum grano salis).<br />

Vão-se os anéis, fincam os dedos<br />

finos como lã de cágado<br />

limpando as mãos à parede:<br />

um no papo, outro no saco,<br />

por baixo, por trás dos panos<br />

tutti son fatti marchesi.<br />

Litterae bellorophantis<br />

entre amazonas, quimeras,<br />

cumpro o destino a que vou:<br />

res, non verba, hominem quaeso:<br />

no me saques sin razón,<br />

no me embaines sin honor.<br />

A césar o que é de césar:<br />

rei da lídia ou rei da lécia,<br />

questão de lana-caprina.<br />

Até aí morreu o neves:<br />

que a terra lhe seja leve,<br />

com o pão-de-açúcar por cima.<br />

Vão-se os anéis de saturno<br />

et campos ubi troya fuit:<br />

cinzas do princípio ao fim.<br />

Revertere ad locum tuum.<br />

Não compro mais ave alguma.<br />

Perdi o tempo e o latim.<br />

Com suas rosas de malherbe,<br />

com seus beijos-lamourette<br />

e os seus anéis nibelungos,<br />

11


<strong>Chicos</strong><br />

Com suas rosas de malherbe,<br />

com seus beijos-lamourette<br />

e os seus anéis nibelungos,<br />

sicut umbra dies nostri:<br />

ubi flores de retórica,<br />

ibi cravos-de-defunto.<br />

Dia de todos os santos,<br />

de quebradeira e quebranto,<br />

dia miserere nobis:<br />

num pass-a-nel delirante<br />

entre um anão e um gigante<br />

cavalo e valquíria explodem.<br />

Um livro há de ser escrito<br />

e o homem passado a limpo<br />

bem no nariz do patrão:<br />

quando o tumor vem a furo<br />

de que servos dedos duros<br />

os que se forem, assoarão?<br />

Metendo a mão na cumbuca,<br />

geme e estertora a criatura<br />

numa sinuca de bico.<br />

Em represália ante o trono,<br />

ao som de tripas e trompas<br />

todos pedindo penico.<br />

Apocalíptico dia!<br />

Dia do tombo, hecatombe,<br />

ingemisco tanquam reus.<br />

12


<strong>Chicos</strong><br />

O que é do homem o bicho come:<br />

vamos que zebra, ou que bode,<br />

quem sabe o bicho que deu’s?<br />

Ante diem, sê benigno,<br />

juiz do justo castigo<br />

cui salvandos salvas gratis.<br />

Ovelha negra inter oves,<br />

correm comigo: eu, contíguo,<br />

cost to cost & the day after.<br />

Coram populo<br />

isso é roçago sim é seda címbalo<br />

res postera e saltério donde vêm<br />

teus avatares de ava eva maligna<br />

dalila ou salomé sabe-se lá quem<br />

que círculos-ravéis cúmulo-cirro<br />

samira sheraazade mil e uma em<br />

fitas-kassete sulamita em signos<br />

consoante vocalise ícone v( entre<br />

tripudians naja tripudiando diva<br />

nheengatu de praxe nhenhenhém<br />

olas olás olés bis bravos bíceps<br />

nesse pulsarquasar quase que vem<br />

com passos de pavlova radioativa<br />

cântaro ao cântico hosanas améns<br />

até estancar a sede dos convivas<br />

e outra cabeça rolar por ninguém<br />

13


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Werneck<br />

Nasceu em Cataguases, onde mora atualmente. Poeta<br />

e jornalista, colaborou em vários jornais e revistas<br />

cariocas. Publicou entre outros os livros: Poesia -<br />

Selva Selvaggia (1976), Pomba Poema (1977), Minas<br />

em mim e o mar este trem azul (1999) Minerar o<br />

Branco (2008), Cataminas Pomba e outros Rios<br />

(2012) e O Mar de Outrora e Poemas de Agora<br />

(2014). Prosa - Há Controvérsias 1 (2009) , Há Controvérsias<br />

2 (2011), Rosário Fusco por Ronaldo Werneck/<br />

Sob o signo do imprevisto (2017) e o ensaio<br />

biográfico “Kiryrí Rendáua Toribóca Opé” Humberto<br />

Mauro Revisto por Ronaldo Werneck<br />

O enigma Maria do Carmo/Carminha Ferreira<br />

Irmã da poeta cataguasense Celina<br />

Ferreira (1928-2012), Maria do Carmo/<br />

Carminha Ferreira, é também poeta, e das<br />

grandes, apesar de inédita em livro até hoje.<br />

Alguns dados de Carminha, por ela mesma:<br />

“Maria do Carmo Ferreira, a Carminha, natural<br />

de Cataguases, a princesinha da Zona<br />

da Mata mineira. Aos 14 anos se tornou poeta<br />

por excesso de amor. Morou em Belo<br />

Horizonte, São Paulo, radicou-se no Rio por<br />

mais de duas décadas e finalmente mudouse<br />

para Niterói. De 1969 a 1973 morou dois<br />

anos na Europa e dois nos Estados Unidos,<br />

cursando mestrado em Literatura Comparada<br />

e lecionou língua e literatura brasileira<br />

no Colégio dos Graduados, Universidade de<br />

Illinois. Aposentada da Rádio MEC, onde<br />

serviu por mais de 30 anos como criadora,<br />

tradutora, redatora, produtora e coordenadora<br />

de programas literários e líteromusicais.<br />

Tem um livro de poemas inédito,<br />

“Cave Carmen”.<br />

Carminha e eu éramos vizinhos no Rio,<br />

quando morei no bairro do Leme nas décadas<br />

de 1960 e 70, mas só nos vimos uma<br />

vez, quando fomos jurados de um concurso<br />

de poesia organizado pela poeta Kátia Bento,<br />

que também não vejo há anos. Carminha<br />

sumiu há tempos. Soube que ainda anda<br />

pelas bandas de Niterói, está sempre na<br />

igreja e só fala com Deus e mais ninguém.<br />

Em 1978 escrevi um poema a partir de um<br />

poema dela que fora publicado no ano anterior<br />

pelo Suplemento Literário Minas Gerais.<br />

Mas ela só soube disse tempos depois,<br />

quando desenvolvemos longa troca de<br />

emais no ano 2000. Os dois poemas, o meu<br />

e o dela, vão a seguir, junto com alguns<br />

desses e-mails que ela me mandou na ocasião,<br />

na verdade poemas sob a forma de<br />

emails, verdadeiros “poemails”. Logo depois,<br />

ela sumiu de novo, e não nos falamos<br />

desde então. Todos os meus poemas que<br />

ela cita nesses “poemails” a seguir estão em<br />

meu livro “Revisita Selvaggia”, que seria<br />

publicado em 2005.<br />

14


<strong>Chicos</strong><br />

A Quem Interessar Possa (*)<br />

Uma pessoa<br />

do sexo<br />

feminino<br />

38 anos<br />

1,65<br />

66 kg<br />

sem lar<br />

sem filhos<br />

sem família<br />

sem negócios<br />

sem esperança<br />

com 108 contos<br />

na poupança.<br />

Garante que possui<br />

matéria-prima<br />

para literatura<br />

teatro<br />

baby-sitter<br />

trabalhos manuais.<br />

Gosta de música.<br />

Chega a tocar<br />

de ouvido.<br />

Conhece inglês<br />

e línguas neo-latinas.<br />

É boa datilógrafa.<br />

Cozinha o trivial.<br />

Prefere a natureza<br />

à vida na cidade.<br />

15


<strong>Chicos</strong><br />

Amor, quase não faz<br />

porém se adapta sempre<br />

ao item mencionado.<br />

Falta-lhe alma<br />

um sopro que a reanime.<br />

Se veleidades tem<br />

é de sentir-se real.<br />

Vive<br />

por força<br />

de viver<br />

mas corre o risco<br />

de se deixar morrer<br />

sem que se dê<br />

POR ISSO<br />

oferece-se a quem<br />

interessar possa<br />

uma coisa<br />

uma causa<br />

uma pessoa<br />

alguém<br />

um problema social:<br />

o caso dessa moça.<br />

Maria do Carmo Ferreira<br />

Publicado no Suplemento<br />

Literário Minas Gerais em 1977<br />

(<br />

(*) Poema que motivou o meu “Esse Moço”<br />

16


<strong>Chicos</strong><br />

Esse Moço<br />

Feroz a um breve contato,<br />

à segunda vista, seco,<br />

à terceira lhano,<br />

dir-se-ia que ele tem medo<br />

de ser, fatalmente, humano<br />

Drummond<br />

um pouco à maneira e para<br />

maria do carmo ferreira (1)<br />

do sexo masculino<br />

uma pessoa<br />

por todos prezada<br />

um bom menino<br />

se apresenta<br />

esquivo<br />

sem bossa<br />

a quem interessar possa<br />

só sozinho<br />

entre todos<br />

um mistério<br />

um troço<br />

um caso sério<br />

o desse moço<br />

amar<br />

ama<br />

na rua<br />

no mar<br />

na cama<br />

amar<br />

ama<br />

oferta seu corpo<br />

17


<strong>Chicos</strong><br />

a meninas<br />

e mulheres-dama<br />

amar<br />

ama<br />

mesmo fora<br />

da cama<br />

tão de dentro<br />

tão fundo<br />

como se gemendo<br />

envolvesse o mundo<br />

tudo e todos<br />

saltam do peito<br />

do mais profundo poço<br />

dando forma e fundo<br />

a esse moço<br />

pássaros neutrônicos<br />

elefantes levíssimos<br />

patinetes em pânico<br />

balões de neon<br />

nada igual<br />

pipas ensandecidas<br />

bolas de gude<br />

num vôo orbital<br />

entre eros e tanatos<br />

decepado<br />

entre fobos e deimos<br />

largado<br />

18


<strong>Chicos</strong><br />

ao mar<br />

por malasorte<br />

habitado<br />

nau<br />

do ocaso<br />

vau<br />

frágil<br />

vendaval<br />

em vão<br />

duro osso<br />

esse moço.<br />

Ronaldo Werneck<br />

Rio, 1978<br />

1. Em 1978, o Suplemento Literário Minas Gerais publicava o poema “A quem interessar possa”, de Maria do<br />

Carmo Ferreira. Fiquei impressionado com o vigor da poeta, que desconhecia. Escrevi este poema em sua homenagem<br />

e absolutamente influenciado por sua dicção. Só mais tarde vim a saber que ela era minha conterrânea<br />

e até mesmo vizinha, no bairro do Leme no Rio. Ficamos amigos, mas nunca lhe mostrei o poema, que<br />

ficou inédito. Carminha só soube dele quase vinte anos depois, ao visitar meu site na internet.<br />

19


<strong>Chicos</strong><br />

V(end)e-se<br />

Ser feliz é ser outro em algum lugar<br />

Abgar reinou!<br />

Rende-se<br />

ao saravá/saraivada<br />

metralhadora assestada<br />

de Ronaldo/Ronaldim:<br />

é doido (nasceu assim?).<br />

Como foi que não dei conta<br />

e nem me dou por achada<br />

se sair deste embolada<br />

eu que conheci Vinicius<br />

de Poética & outros vícios<br />

nos quais revejo você<br />

mas pra quem quiser saber<br />

estoy contigo y no abro,<br />

por supuesto, en la distancia,<br />

pra lá de Gabo y Cortázar<br />

Lesama Lima y naranjos:<br />

debaixo de um pé-de-manga<br />

de manga-espada e de ubá<br />

quero mais poder contar<br />

a quem não sabe e não viu<br />

que o verdadeiro ronaldo<br />

(ronaldinho do Brasil)<br />

é werneck – e está na Bíblia:<br />

werneck-melquisedec<br />

cujas oferendas são<br />

muy gratas à divindade:<br />

primícias de vinho, pão...<br />

e poesia de verdade!<br />

20


<strong>Chicos</strong><br />

P.S.<br />

Era um dia era um dedo era um dado<br />

falo o que sinto & o que sei:<br />

não sou de mandar recado.<br />

Era um dado era um dedo era um dia:<br />

Tu, Lampião? Eu, M Tu, Lampião? Eu, Maria<br />

(ou Carminha do Ronaldo?)<br />

Era um dia era um dado era um dedo<br />

melhor que tu não topei:<br />

não sou de fazer segredo. (1)<br />

Maria do Carmo Ferreira (2)<br />

Niterói, 11.06.2000<br />

1. Eis que, por emeio, rebato à provocação, em tom meio tonitroante. E se for cum dez pés lá vai: “nos dedos<br />

noite-dia aveludados/ reluz tua voz dado-diamante/avante, luz!, sus, sons atordoados”.<br />

2. Maria do Carmo/Carminha, irmã de Celina Ferreira: queridas e sumidas. Duas grandes poetas de Cataguases.<br />

Aparecer/desaparecer parece hábito antigo da poeta, como se vê por esta declaração de Décio Pignatari<br />

ao Suplemento Literário do Minas Gerais (n.º 57, 05.03.2000): “Há mais de 30 anos entusiasmei-me e publiquei<br />

um poema dela (“Meretrilho”) na Invenção (revista criada pelos poetas concretos). Sempre gostei de seus<br />

poemas e sempre fiquei esperando mais. Quando surgia um novo poema de Maria do Carmo, eu me interessava.<br />

Mas ela aparecia e desaparecia, brincando de esconde-esconde com a poesia e com o público. Cada palavra<br />

que escreve quer dizer alguma coisa. Ela tem um jeito moderno, forte e agressivo”. O poema a que Décio<br />

se refere, “Meretilho” era “da pá-virada”, um caótico suceder de chocantes palavras-valise em permanente<br />

atrito, e que fechava com o quarteto “moscamenisca/meningepúbia/vagipenísola/clitórisputa”. Uma coisa. Ao<br />

receber este poema de Carminha, ainda atônito, agradeci com esta surrealista sextilha: “na dobra da manhã/ o<br />

céu desanoitece/ e o poeta se curva/ rápido e agradece/ palavras tão louçãs:/ rubor de guarda-chuva”. Jogando<br />

habilmente com suas palavras-malabares, Carminha é uma poeta e tanto e no entanto, e inexplicavelmente,<br />

inédita em livro. Vejam o poema a seguir e a montagem de “poemails”, pedras-de-toque que rolam, punti luminosi<br />

de uma intensa troca eletrônica em meados do ano 2000, após 20 anos de silêncio. Grande poeta,<br />

grande talento, grande tradutora. Vejam como ficou o Mallarmé do célebre solitud, récif. Étoile by Carminha:<br />

“solidão até – atol – estela”. Salut, “de porre mas de pé: tintim!”. Pura transcriação. Depois, ela trancou-se<br />

de novo em copas, ou em capas de ypacaraí & never more. Rosa, rosácea, carmim, “where are you, polly<br />

maggoo?” Onde? Onde anda, por que banda, ó Car´mina Bu(saga)rana?<br />

21


<strong>Chicos</strong><br />

Werneck´s Riverruns<br />

Menino dentre os doutores<br />

não caminha sobre as águas.<br />

As águas é que se aninham<br />

entre as linhas de sua mão<br />

em mil pequenos lavores<br />

de cortejos espaciais<br />

e amores mais-que-perfeitos:<br />

Menino do Rio Pomba<br />

que traz mais pontes no peito<br />

do que garças nos beirais.<br />

Meia-pataca entrevista<br />

a um privilegiado olhar<br />

que jamais outros veriam<br />

pois não voltara a se dar.<br />

Pai, amigo, poeta, irmão<br />

sem se saber quem precede<br />

pela simultaneidade:<br />

o espírito? o coração?<br />

afetos? inteligência?<br />

Vocação pela existência:<br />

viver e deixar viver.<br />

Dura, Ronaldo Werneck,<br />

neste terno, quadra, quina<br />

de quem tirou sorte grande<br />

por te conhecer aos trinta<br />

rever-te aos cinqüenta e sete<br />

com a mesma pinta que nina<br />

(Santa Maria!) o moleque!<br />

Maria do Carmo Ferreira<br />

Niterói, 17.07.2000<br />

22


<strong>Chicos</strong><br />

Suíte Carmeletrônica: poemails<br />

09 de junho 2000/21:58h<br />

Ronaldim<br />

des´en´contra´do<br />

há tantos anos<br />

de mim:<br />

chorar<br />

recua duas casas?<br />

sorrir<br />

avança três? (1)<br />

Me dê sua mão agora:<br />

vou me lançar de<br />

skyflier<br />

kamikase<br />

aqualouca<br />

pra ver se alcanço<br />

você!<br />

P.S.<br />

Depois que te li, agorinha,<br />

recuei 20 anos e um mês!<br />

Carminha<br />

P.S. 2<br />

em tempo<br />

deu morrer<br />

sem saber<br />

23


<strong>Chicos</strong><br />

o puta enorme<br />

poeta<br />

que é você<br />

no lastro de um<br />

Vinicius<br />

a Bandeira:<br />

pai, sou;<br />

poeta, sim;<br />

a quem in-teressar<br />

possa (2)<br />

ou pre-cisar<br />

de mim!<br />

Avoé, Avoengo<br />

Pai de Ulla & Pablo<br />

e meu padim!<br />

É você, Baco!<br />

Ai de carmins!<br />

1. Menção ao meu poema “No Rádio/Na TV/Veja Você”<br />

2. Carminha refere-se a um trecho do poema “Esse Moço”, que lhe dediquei nos anos 80<br />

24


<strong>Chicos</strong><br />

22 de junho 2000/23:27h<br />

Ronnydeans: si vous voulez ancim,<br />

seus e-mails, doces pra mim, são hieróglifos,<br />

em grego e latim.<br />

Você me lê aos trancos e barrancos,<br />

Depois toca a perguntar de novo,<br />

Ab ovo. (1)<br />

Si lo que hablo no me lês,<br />

pregunte al Pablo, (2)<br />

Aranjuez,<br />

já basta o desconcerto<br />

do mundo (3)<br />

sem fundo de olho<br />

(pergunte ao Chico) (4)<br />

e não me venhas de lá,<br />

como o Cagiano, (5)<br />

com fícus, oitis,<br />

palmas imperiais.<br />

Eu sou do tempo das acácias,<br />

verídicas (ou virtuais?),<br />

gregas, medas, semitas,<br />

nem sei mais.<br />

E feliz por feliz<br />

antes em Paris,<br />

catanga, ocê? (6)<br />

catando o quê?<br />

Miçangas, não tem mais...<br />

Acácias reais, no más.<br />

Fico com a Espanca,<br />

flor bela entre as demais,<br />

carnívora, incestuosa,<br />

tudo o que se permite<br />

e iu<br />

a que ousava o que disse<br />

(ninguém sabe, ninguém viu)<br />

25


<strong>Chicos</strong><br />

la prima entre fra ternos<br />

arroubos juvenis...<br />

Mas, xarpalá, (7)<br />

que temos nós com iis?<br />

Já Camões, ah Camões,<br />

salvou seu manu´scrito<br />

mas morreu Dinamene<br />

que foi sua musa e mito,<br />

mas não mais favorita<br />

do que o livraço seu.<br />

Para que você me ouça,<br />

e me desafie a galope<br />

ou martelo,<br />

eu antes salvava a moça<br />

e deixava ir pro inferno<br />

ou profundo do mar<br />

le livre... esse flagelo<br />

por quem passou fome<br />

e frio<br />

sem cuidados sem cuitelos<br />

no exílio desse inexílio (8)<br />

sempiterno.<br />

Mas virando pro Rimbaud:<br />

peguei do Fabrício (9) um mote<br />

e aqui vai, ou eu vô:<br />

RIMBAUD ET L´AIR<br />

Poeta sou<br />

mas pelo avesso.<br />

Cheguei ao extremo:<br />

não faço versos.<br />

Verti ao olho e al dente<br />

uma estação no inferno.<br />

Não vou nessa de Dante:<br />

26


<strong>Chicos</strong><br />

É sem acompanhante<br />

que trafego<br />

pelas profundas de mim mesmo.<br />

***<br />

E como me disse o Chico<br />

cheio de cabeça e mãos:<br />

O coração, sem-razões,<br />

É o único a ter razão.<br />

E mais não digo ou desdigo<br />

Se não for a sós comigo.<br />

Fica o não dito por dito<br />

Que, desdita, não re´pito!<br />

Com Deus, J.Joyce, digo, J.Deans<br />

Ronny Deans, Ronalwinnwnner!<br />

um carma, um carme, um carmim<br />

1. Eram emeios, emeios, emeios sem ter fim. Carmim não dava tempo pra mim.<br />

2. Meu filho Pablo<br />

3. Referência a uma peça teatral que escrevi: “O Mundo em Desconcerto: Camões a Florbela Espanca”, encenada<br />

no Museu Chácara Dona Catarina (Cataguases, 2001).<br />

4. O poeta Francisco Marcelo Cabral.<br />

5. O poeta Ronaldo Cagiano.<br />

6. “Catanga” é como sempre brinquei de chamar Cataguases desde o assassinato do líder nacionalista Patrice<br />

Lumumba no Congo Belga, em 1961. Talvez pelo que tenha ficado em minha memória do poema de Geir<br />

Campos dos tempos do “Violão de Rua” (n.º 1, Rio, 1962): “Patrice negro e congolês Lumumba!/Bambo bambu,<br />

molambo/de infinitas bandeiras/no céu da África acesa,/.../em Catanga, em Catanga/colho a estrela madura/<br />

de um sonhar amarelo,/ e em Catanga, em Catanga/ abro a boca da noite/ com meu grito mais belo”. Como<br />

no Congo, também em Minas, na Zona da Mata dos anos 60, havia grandes escaramuças, pelo menos no<br />

futebol, entre as por mim denominadas cidades de Cataguases/Catanga e Leopoldina/Leopoldville.<br />

7. Palavra-valise by Carminha (deixar parlar/deixa falar/deixa pra lá) que adaptei como “xaparlá” para o poema<br />

“Catar-se”, dedicado ao Francisco Marcelo Cabral, a ela e a mim<br />

8. Referência ao poema-livro “Inexílio”, de Francisco Marcelo Cabral.<br />

9. O poeta Fabrício Marques, que organizou o número especial do Suplemento Literário do Minas Gerais (Belo<br />

Horizonte, março de 2000, n.º 57), quase que exclusivamente dedicado a Maria do Carmo Ferreira.<br />

27


<strong>Chicos</strong><br />

22 julho de 2000/17:14h<br />

Roneck<br />

meu anjo<br />

Rô Rô<br />

Você me provocou:<br />

“Quem mais, oh menina,<br />

quem mais me alucina,<br />

quem mais,<br />

de ter mina”<br />

(o coração<br />

nas mãos<br />

– haj´as´as –)<br />

sob os pés?<br />

Nem herpes<br />

pé-de-atleta<br />

joanete<br />

cravo (calo)<br />

me afeta<br />

quando escarvo<br />

touro desembestado<br />

o solo em que nasci:<br />

sou mercúrio ligeiro<br />

hermes o mensageiro<br />

tarzan pós-tudo<br />

empós<br />

da mata onde campeio<br />

princesinhas<br />

na zona (1)<br />

emails greeting cards<br />

cariocas<br />

lys-do-campo<br />

sites links relâm/<br />

pagos<br />

hologramas poéticos...<br />

28


<strong>Chicos</strong><br />

Ainda, peri-patético,<br />

atravesso os brasis<br />

pondo os pingos<br />

nos iis<br />

e ocupando<br />

meu espaço<br />

até que o dia grame<br />

comme il faut, como o fiz<br />

do tell (star) catanga<br />

urbi et orbi<br />

e tal:<br />

da taba onde soul rei<br />

(geo´grafia: sorrio)<br />

cacique catauá<br />

para a aldeia global.<br />

Car´mina Bu(saga)rana<br />

1. Cataguases é também conhecida como a “Princesinha da Zona da Mata”. Um dia, num programa<br />

radiofônico, saí com uma brincadeira idiota. Falava-se que a mata estava em extinção. Bati firme: “Se<br />

mata não há mais, nem mesmo cataguais. Sem mata, ela vira ´Princesinha da Zona´, uais!”. Logo<br />

depois, me redimi. E para sempre. Hoje, só chamo Cataguases de “Paris da Zona da Mata”. Não há<br />

controvérsias.<br />

29


<strong>Chicos</strong><br />

26 de julho de 2000/04:08h<br />

e agora, num tête-à-tête,<br />

seo Werneck, me responda<br />

sem tirar casquinha<br />

em onda minha<br />

por que a prosa do Rosa<br />

e tã pedregosa?<br />

Com este, eis dois claros enigmas<br />

que lhe proponho,<br />

era um era dois era três<br />

que vou dormir de vez, e tome-o:<br />

A flor com que a menina sonha<br />

está no sonho ou na fronha?<br />

Vai, segue em paz, figlio, amoroso giglio,<br />

Rô da Rua,<br />

Do vento, do tempo, do frio,<br />

Das altas madrugas,<br />

Um deus dormiu lá em casa<br />

(teatro, tradução de um figueiredo)<br />

um poeta em cataguases<br />

dorme onde jazem os seus<br />

(primus inter pares)<br />

já nem dorme<br />

alucina<br />

sem porre, na porrada,<br />

e em sua lazy mir´hada<br />

me ilumina:<br />

benza-o Deus!<br />

q.q.isso, meu?<br />

30


<strong>Chicos</strong><br />

28 de julho de 2000/06:49h<br />

Agora amoito, anoito:<br />

De manhã escureço<br />

de dia tardo<br />

de tarde anoiteço<br />

de noite ardo<br />

Do teu sósia em poesia, quer mais?<br />

Menino, me bota um verso<br />

Bem cheio de comoção:<br />

Era uma vez um poeta<br />

Mas não digo o nome não.<br />

Tantas fez que a dor de corno<br />

atirou ele no chão<br />

machucou ele nas pedras<br />

espremeu seu coração.<br />

Que pensa usted que saiu?<br />

Saiu cachaça e limão.<br />

E assim caminha a humanidade.<br />

Em ritmo de mango tree, poe!<br />

Não vou perguntar nunca mais<br />

Por que calou o bico.<br />

Agora sou Dialógica:<br />

- Como vais?<br />

- Comovida!<br />

Comoção as tuas garotas de Ipanema (1)<br />

É ou não é coincidência com o meu<br />

Oldfashion poemiseta?<br />

Até mais longe, além muito além daquela serra<br />

Que ainda azula no horizonte...<br />

Carminha<br />

1. Referência ao meu poema “Verão”<br />

31


<strong>Chicos</strong><br />

Meia-Pataguá<br />

WERNECK/CAGIANO:<br />

ESTE MANO-A-MANO<br />

VAI DAR QUE FALAR.<br />

QUERER DE VOCÊS??<br />

QUEM VI VERVER AH<br />

Q SERTÃO É TANTOS<br />

DONDE (QUI SABRÁ?)<br />

YA NO VUELVO MÁS!<br />

MI BOLETO, AMIGOS,<br />

NOTIENE-REGRESOS:<br />

FIZ AS PAZES, SINTO,<br />

CO’UM PASSADO EX-<br />

TINTO, MAIS DE SAN-<br />

GUE E CORTES - QUE<br />

NÃO CICA/TRIZ/AM Y<br />

NEM ME DE\MO\VEM.<br />

Q’EROS GANG NOVA<br />

CORRENDO N/AVEIA<br />

E RON/ALVOS OVOS<br />

PARA A MINHA CEIA<br />

CHEIA DE CARÊNCIA<br />

NESTE XEQUE-MATE<br />

Q NÃO DESSEDENTA<br />

TAL FOME DEVERDE!<br />

Maria do Carmo Ferreira<br />

Niterói, julho 2000<br />

32


<strong>Chicos</strong><br />

Inez Andrade Paes<br />

Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de<br />

O Mar que Toca em Ti (Crônica de viagem -<br />

2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011);<br />

Libreto em três atos, consti-tuindo a Cantoriana<br />

Marítima - Acto I Mar falan-te, Acto II<br />

Transparente Luva de Água, Acto III Flores de<br />

Acanto em Marfileno Lençol ; D Estrada Vermelha<br />

(Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia<br />

2015) : À Margem de Todos os Rostos (2017).<br />

Coordena desde 2012 o Prêmio Literário Glória<br />

de Sant”Anna.<br />

Ao meu Pai que me ensinou a construir<br />

sobre a água<br />

dentro dela<br />

anda uma ponte<br />

sobre a água<br />

dentro dela<br />

anda uma ponte<br />

calçada de pedras e madeiras<br />

de manhã é de oiro<br />

de tarde avança até quase<br />

a um limite<br />

33


<strong>Chicos</strong><br />

À minha Mãe que me ensinou a amar<br />

sobre a água<br />

dentro dela<br />

anda uma ponte<br />

sobre a água<br />

dentro dela<br />

anda uma ponte<br />

de noite deita-se<br />

levando-a inteira ao fundo do espaço<br />

verde<br />

de oiro<br />

um musgo<br />

prende-se nos seus pés<br />

e marca<br />

todo o caminho de volta<br />

34


<strong>Chicos</strong><br />

Gisela Gracias<br />

Ramos Rosa<br />

Nasceu em Maputo (Moçambique). O seu primeiro<br />

livro foi um diálogo de poesia com António Ramos<br />

Rosa, Vasos Comunicantes (publicado em 2006).<br />

Colaborou em várias Antologias e Revistas de poesia.<br />

Publicou também entre outros As palavras<br />

mais simples (2014) , O livro das mãos (2017) e A<br />

pedra e o corpo (2018)<br />

“Existimos sobre o anterior”<br />

Fiama H. Pais Brandão, em Âmago<br />

Entre a pedra e o corpo o lento trabalho<br />

do escopro a moldar a moldar<br />

extraindo o desnecessário à expressão<br />

Entre a pedra e o sopro o Universo<br />

a atravessar a concepção.<br />

Nada é por acaso até este estar aqui<br />

Somos rasura e consciência pedra<br />

em construção.<br />

De A pedra e o corpo (2018)<br />

35


<strong>Chicos</strong><br />

Acir Simões<br />

Acir Simões, nasceu em Cataguases (MG), mora<br />

em Belo Horizonte (MG). É poeta e contista<br />

Essa dor<br />

O ramo se intromete na erosão do abandono calcinado<br />

Eu saboreei essa dor terrível<br />

O silêncio abafado, inerte<br />

O estupor manchando esse estrato de serenidade<br />

O silêncio em riste<br />

Você sabe o que é maturar uma dor terrível?<br />

Ouço um conforto inócuo:<br />

Vai ficar tudo bem<br />

Interrompo a respiração para afrontar o silêncio<br />

Irmanados como inimigos<br />

Nada ainda é possível<br />

Nada é páreo para esta dor terrível<br />

Discuto com o silêncio:<br />

Abraço-o piedosamente:<br />

Cinco mil toneladas dele entornadas sobre minha dor<br />

Sobre minha dor indecifrável<br />

Já que tenho tudo<br />

Inclusive essa dor terrível.<br />

36


Domingo<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Uma pedra fura a película de rio, que rasteja no leito<br />

A pedra parece uma tartaruga se entretendo no fluxo<br />

A menina aponta o vendedor de algodão-doce<br />

Os cabos de aço, as braçadeiras, os parafusos<br />

A parafernália de mecanismos se dissolvendo na natureza<br />

A botânica se organiza para a orgia<br />

A menina está alta, nos ombros do homem<br />

Eu caminho pela ponte e fotografo uma viga enferrujada<br />

Há uma beleza inadiável na transgressão<br />

Uma mulher desdobra um lenço na grama e organiza a venda<br />

Perto, há três talvez quatro construções abandonadas<br />

O capim escala as vértebras das paredes<br />

Dois moradores de rua dividem uma bituca e riem da manhã<br />

A menina acompanha a correnteza<br />

O olhar escolta um galho que se submete ao ziguezague da água<br />

Ela aperta minha mão<br />

Um socó assovia do alto de um salgueiro<br />

A menina inclina a cabeça<br />

O semblante me traduz uma vontade de ir embora.<br />

Eu também quero sair dali.<br />

37


Sangria<br />

<strong>Chicos</strong><br />

O ramo se intromete na erosão do abandono calcinado<br />

As paredes se ressentem com o descaso<br />

Eles disputam as vértebras da casa<br />

E todos reivindicam justiça<br />

Uma justiça de premissas ilusórias:<br />

As coisas são do mundo<br />

Quem é dono do chão da bauxita das esculturas dos aviões<br />

Da vaidade?<br />

Ninguém devia ter dono<br />

Nem os cachorros nem os gatos nem os peixes ornamentais<br />

Nem os empregados<br />

Quantas brigas naqueles quartos?<br />

Quantos sacrifícios, quanta perda naquelas cales?<br />

Já não se atentam<br />

O que importa é o que pagam pela hora<br />

O resto é desperdício<br />

Não é ramo: É caule<br />

E o vão é alicerce<br />

Não percebem que a vida rasga os tijolos em busca de ar?<br />

A árvore oferece frutos que estancam a noite.<br />

38


<strong>Chicos</strong><br />

Sophia de Mello<br />

Breiyner Andresen<br />

Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no<br />

Porto (06.11.1919) e faleceu em Lisboa<br />

(02.07.2004). Foi uma das mais importantes<br />

poetisas portuguesas do século XX. Foi a<br />

primeira mulher portuguesa a receber o mais<br />

importante galardão literário da língua portuguesa,<br />

o Prémio Camões, em 1998. O seu corpo<br />

está no Panteão Nacional desde 2014.<br />

Foto - Ronaldo Cagiano<br />

Inscrição<br />

Quando eu morrer voltarei para buscar<br />

Os instantes que não vivi junto do mar.<br />

39


Mulheres à Beira Mar<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Confundido os seus cabelos com os cabelos<br />

do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e<br />

tão denso em plena liberdade.<br />

Lançam os braços pela praia fora e a brancura<br />

dos seus pulsos penetra nas espumas.<br />

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus<br />

olhos prolonga o interminável rastro no céu<br />

branco.<br />

Com a boca colada ao horizonte aspiram longa-<br />

mente a virgindade de um mundo que nasceu.<br />

O extremo dos seus dedos toca o cimo de<br />

delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.<br />

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de<br />

ser tão verde.<br />

em Antologia, pág. 76 | Círculo de<br />

Poesia Moraes Editores, 2ª. edição,<br />

1975<br />

".<br />

40


Data<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Tempo de solidão e de incerteza<br />

Tempo de medo e tempo de traição<br />

Tempo de injustiça e de vileza<br />

Tempo de negação<br />

Tempo de covardia e tempo de ira<br />

Tempo de mascarada e de mentira<br />

Tempo que mata quem o denuncia<br />

Tempo de escravidão<br />

Tempo dos coniventes sem cadastro<br />

Tempo de silêncio e de mordaça<br />

Tempo onde o sangue não tem rastro<br />

Tempo da ameaça<br />

Exílio<br />

Quando a pátria que temos não a temos<br />

Perdida por silêncio e por renúncia<br />

Até a voz do mar se torna exílio<br />

E a luz que nos rodeia é como grades<br />

41


Este é o tempo<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Este é o tempo<br />

Da selva mais obscura<br />

Até o ar azul se tornou grades<br />

E a luz do sol se tornou impura<br />

Esta é a noite<br />

Densa de chacais<br />

Pesada de amargura<br />

Este é o tempo em que os homens renunciam.<br />

Se tanto me dói que as coisas passem<br />

Se tanto me dói que as coisas passem<br />

É porque cada instante em mim foi vivo<br />

Na busca de um bem definitivo<br />

Em que as coisas de Amor se eternizassem<br />

42


Um dia<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Um dia, gastos, voltaremos<br />

A viver livres como os animais<br />

E mesmo tão cansados floriremos<br />

Irmãos vivos do mar e dos pinhais.<br />

O vento levará os mil cansaços<br />

Dos gestos agitados irreais<br />

E há-de voltar aos nosso membros lassos<br />

A leve rapidez dos animais.<br />

Só então poderemos caminhar<br />

Através do mistério que se embala<br />

No verde dos pinhais na voz do mar<br />

E em nós germinará a sua fala.<br />

"<br />

43


Mar<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Mar, metade da minha alma é feita de maresia<br />

Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,<br />

Que há no vasto clamor da maré cheia,<br />

Que nunca nenhum bem me satisfez.<br />

E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia<br />

Mais fortes se levantam outra vez,<br />

Que após cada queda caminho para a vida,<br />

Por uma nova ilusão entontecida.<br />

E se vou dizendo aos astros o meu mal<br />

É porque também tu revoltado e teatral<br />

Fazes soar a tua dor pelas alturas.<br />

E se antes de tudo odeio e fujo<br />

O que é impuro, profano e sujo,<br />

É só porque as tuas ondas são puras.<br />

44


O barco<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Margens inertes<br />

abrem os seus braços<br />

Um grande barco no silêncio parte.<br />

Altas gaivotas nos ângulos a pique,<br />

Recém-nascidas à luz, perfeita a morte.<br />

Um grande<br />

barco parte abandonando<br />

As colunas de um cais ausente e branco.<br />

E o seu rosto busca-se emergindo<br />

Do corpo sem cabeça da cidade.<br />

Um grande<br />

barco desligado parte<br />

Esculpindo de frente o vento norte.<br />

Perfeito azul do mar, perfeita a morte<br />

Formas claras e nítidas de espanto.<br />

45


<strong>Chicos</strong><br />

Carta aos amigos mortos<br />

Eis que morrestes - agora já não bate<br />

O vosso coração cujo bater<br />

Dava ritmo e esperança ao meu viver<br />

Agora estais perdidos para mim<br />

- O olhar não atravessa esta distância -<br />

Nem irei procurar-vos pois não sou<br />

Orpheu tendo escolhido para mim<br />

Estar presente aqui onde estou viva.<br />

Eu vos desejo a paz nesse caminho<br />

Fora do mundo que respiro e vejo.<br />

Porém aqui eu escolhi viver<br />

Nada me resta senão olhar de frente<br />

Neste país de dor e incerteza.<br />

Aqui eu escolhi permanecer<br />

Onde a visão é dura e mais difícil<br />

Aqui me resta apenas fazer frente<br />

Ao rosto sujo de ódio e de injustiça<br />

A lucidez me serve para ver<br />

A cidade a cair muro por muro<br />

E as faces a morrerem uma a uma<br />

E a morte que me corta ela me ensina<br />

Que o sinal do homem não é uma coluna.<br />

46


<strong>Chicos</strong><br />

E eu vos peço por este amor cortado<br />

Que vos lembreis de mim lá onde o amor<br />

Já não pode morrer nem ser quebrado.<br />

Que o vosso coração que já não bate<br />

O tempo denso de sangue e de saudade<br />

Mas vive a perfeição da claridade<br />

Se compadeça de mim e de meu pranto<br />

Se compadeça de mim e do meu canto.<br />

Página em branco<br />

Que poema, de entre todos os poemas,<br />

Página em branco?<br />

Um gesto que se afaste e se desligue tanto<br />

Que atinja o golpe do sol nas janelas.<br />

Nesta página só há angústia a destruir<br />

Um desejo de lisura e branco,<br />

Um arco que se curve - até que o pranto<br />

De todas as palavras me liberte.<br />

47


O poema<br />

<strong>Chicos</strong><br />

O poema me levará no tempo<br />

Quando eu já não for eu<br />

E passarei sozinha<br />

Entre as mãos de quem lê<br />

O poema alguém o dirá<br />

Às searas<br />

Sua passagem se confundirá<br />

Com o rumor do mar com o passar do vento<br />

O poema habitará<br />

O espaço mais concreto e mais atento<br />

No ar claro nas tardes transparentes<br />

Suas sílabas redondas<br />

(Ó antigas ó longas<br />

Eternas tardes lisas)<br />

Mesmo que eu morra o poema encontrará<br />

Uma praia onde quebrar as suas ondas<br />

48


<strong>Chicos</strong><br />

Mesmo que eu morra o poema encontrará<br />

Uma praia onde quebrar as suas ondas<br />

E entre quatro paredes densas<br />

De funda e devorada solidão<br />

Alguém seu próprio ser confundirá<br />

Com o poema no tempo<br />

A bela e a pura<br />

A bela e pura palavra Poesia<br />

Tanto pelos caminhos se arrastou<br />

Que alta noite a encontrei perdida<br />

Num bordel onde um morto a assassinou.<br />

49


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Brito<br />

Roque<br />

Nasceu em Cataguases MG, é escritor, autor<br />

do livro infantil “A Menina do País das Ruivas”<br />

O preço do clone<br />

Com o aprimoramento das técnicas<br />

de clonagem, essa prática foi finalmente permitida<br />

e regulamentada em alguns países. Na Inglaterra<br />

casais estéreis foram autorizados a adotar<br />

clones. Na França, casais gueis foram autorizados<br />

a adotá-los. Nos Estados Unidos, atores famosos<br />

conseguiram realizar suas adoções por<br />

meio da Inglaterra, da França ou da Índia. Na<br />

Alemanha votou-se uma lei que permitia ao estado<br />

clonar seres humanos e entregá-los aos cidadãos,<br />

caso a raça ariana se visse ameaçada de<br />

extinção. Na Austrália não se fez absolutamente<br />

nada, e no Japão a imprensa revelou que já se<br />

faziam clones desde 1959.<br />

Na pequena cidade de Capim da Serra, num país<br />

da América Latina, os homens viviam reclamando<br />

da falta de mulheres. As autoridades decidiram<br />

lidar com o problema de maneira inovadora.<br />

Com o aval da assembléia legislativa aprimoraram<br />

o concurso de beleza anual. As três primeiras<br />

colocadas passaram a ser clonadas, e os bebês<br />

eram entregues a casais estéreis de comprovada<br />

estabilidade social.<br />

A decisão gerou revolta, já que a medida não<br />

resolveria o problema em curto prazo. As autoridades<br />

explicaram que, se o concurso continuasse,<br />

a desproporção entre homens e mulheres se<br />

resolveria em questão de vinte e poucos anos.<br />

Era uma medida para os filhos dos atuais cidadãos,<br />

não para eles mesmos, disse um porta-voz.<br />

Uns aceitaram e aplaudiram, outros passaram a<br />

votar no partido de oposição.<br />

De qualquer forma, a moda pegou no resto do<br />

país. Cada cidade com orçamento suficiente para<br />

uma pequena clonagem, passou a fazer o seu<br />

concurso de beleza anual. Às vezes para homens,<br />

às vezes para mulheres, dependendo do gênero<br />

faltante na região. Os bebês-clones eram entregues<br />

a casais estéreis ou a famílias ricas, possuidoras<br />

de imóveis.<br />

Com o tempo a clonagem se tornou mais barata<br />

e popular. As mulheres mais bonitas do país passaram<br />

a vender seu material genético para cópia,<br />

com ou sem autorização do estado. As clonagens<br />

legais, muito caras, eram feitas dentro do país.<br />

As clonagens ilegais, um pouco mais baratas,<br />

eram feitas em países vizinhos, cuja legislação<br />

sobre o assunto ainda não era definida. No início<br />

havia uma predileção evidente pela clonagem de<br />

mulheres. Anos depois alguém se lembrou que<br />

também seria conveniente clonar homens. Então<br />

os atletas e atores famosos também puderam<br />

vender seus DNA’s para cópia e repetição. Ninguém<br />

se interessou em clonar escritores ou professores<br />

de matemática.<br />

50


<strong>Chicos</strong><br />

Dentro de uns trinta anos a mudança na paisagem<br />

humana era visível. No meio da rua se encontravam,<br />

com frequência, mulheres que podiam<br />

ser confundidas com Luana Piovani ou<br />

Eva Mendes, homens que podiam ser confundidos<br />

com Pedro Bial ou Wágner Moura. A semelhança<br />

facial era tão comum que não havia<br />

muitas dores de amor. Uma namorada perdida<br />

era brevemente substituída por outra muito<br />

parecida. Um loiro de olhos azuis já não tinha<br />

muitas namoradas. Cada mulher conseguia,<br />

sem muita dificuldade, outro loiro de olhos<br />

azuis, ex-namorado de uma prima ou amiga. O<br />

mundo amoroso, para surpresa de muitos, andava<br />

bem. Poemas e canções românticas quase<br />

não existiam. Os poetas começaram a escrever<br />

sobre o amor aos filhos, aos netos e aos animais.<br />

Mas toda essa felicidade acabou por incomodar<br />

os infelizes. E os infelizes com frequência<br />

têm acesso aos jornais. Artigos revoltosos começaram<br />

a surgir. Os negros reclamavam que<br />

a população negra não era clonada na mesma<br />

proporção que a branca (na verdade, nem um<br />

negro tinha sido clonado). Os gueis perguntavam<br />

por que ninguém estava clonando gueis.<br />

Os orientais não se manifestaram, e uma ruiva,<br />

tímida, sincera, quase trêmula, fez um vídeo<br />

no Youtube, perguntando se não havia risco de<br />

as ruivas entrarem em extinção.<br />

Isso bastou para que a população realmente se<br />

comovesse. Chuvas de abaixo-assinados apareceram<br />

no Senado e na Câmara Federal. Jornalistas<br />

entrevistaram médicos, ambientalistas,<br />

biólogos e moradores de rua. Todos foram<br />

unânimes em reconhecer que era necessário<br />

clonar as ruivas. O dinheiro começou a aparecer,<br />

vindo de campanhas de financiamento, de<br />

milionários entediados, de shows beneficentes<br />

de bandas irlandesas. E logo o pequeno país<br />

da América Latina havia clonado dezenas de<br />

ruivas, modelos e atrizes em destaque, e alguns<br />

mendigos do interior que, apesar de não<br />

serem populares, carregavam em seus corpos<br />

os genes da ruividade.<br />

Enquanto isso alguns ditadores da África, bem<br />

como o presidente democraticamente eleito de<br />

Guiné Bissau, clonaram algumas de suas esposas<br />

e mandaram os bebês para casais estéreis<br />

do movimento negro. Os gueis, por meio de<br />

campanhas da internet, arrecadaram também<br />

algum dinheiro para clonar três ou quatro atores<br />

que tinham saído do armário. O movimento<br />

Femelesbos conseguiu clonar duas ou três<br />

lésbicas que tinham aparecido em programas<br />

de televisão. Carecas conseguiram provar que<br />

o gene da calvície era fundamental para a humanidade<br />

e clonaram alguns ex-deputados, ex<br />

-ministros e ex-banqueiros. Nesse movimento,<br />

dois ou três escritores acabaram sendo clonados<br />

(e até um professor de matemática). Médicos<br />

que haviam criado uma vacina contra o vitiligo<br />

clonaram algumas pessoas com essa doença,<br />

para que a importante descoberta fosse<br />

mais amplamente divulgada e utilizada.<br />

No meio dessa grande estereotipagem a criminalidade<br />

aumentou bastante. Wágneres Mouras<br />

e Pedros Biais, quando eram detidos pela<br />

polícia, alegavam estar sendo confundidos com<br />

outros Wágneres Mouras e Pedros Biais. A investigação<br />

podia levar anos e não ser concluída.<br />

Os atores passaram a ganhar muito mal e<br />

entraram também no mundo do crime, vendendo<br />

drogas e tentando inutilmente se prostituir.<br />

Clones de deputados e senadores usaram esse<br />

fato para justificar uma lei que punisse severamente<br />

a clonagem de seres humanos. Especialistas<br />

estrangeiros foram ouvidos pela mídia,<br />

estrangeiros que já não se distinguiam dos latino-americanos<br />

a não ser pela língua que falavam.<br />

Jornalistas novamente entrevistaram ministros,<br />

médicos e moradores de rua. No meio<br />

desse caos palavroso de opiniões diversas,<br />

uma velhinha já quase sem voz, muito parecida<br />

com a avó de Luana Piovani, relembrou um<br />

tempo em que o mundo não teve cegos de nascença,<br />

não teve meninos com língua presa,<br />

adolescentes complexadas com vitiligo ou crianças<br />

com síndrome de down. Um tempo em<br />

que as mães eram mais felizes, porque sabiam<br />

que seus filhos não seriam feios e barrigudos<br />

como seus pais. Um tempo em que gordinhos<br />

e monocelhos não conheciam a zombaria nas<br />

escolas. Um tempo anterior a ela mesma, já<br />

distante e duvidoso, quase tão indistinguível<br />

da memória quanto um breve sonho.<br />

51


<strong>Chicos</strong><br />

Antônio Torres<br />

Nasceu em Sátiro Dias (BA), mora em Itaipava<br />

distrito de Petrópolis (RJ). É autor, dentre outros,<br />

os romances Um Cão Uivando para a Lua,<br />

Um táxi para Viena d'Áustria, Meu querido<br />

canibal, A trilogia Essa Terra, O cachorro e o<br />

lobo e Pelo fundo da agulha. O livro de contos<br />

Meninos, eu conto. Sua obra foi traduzida e<br />

publicada em 21 países. Tido como um dos melhores<br />

autores da geração contemporânea.<br />

O Porto bebido e revivido<br />

1.<br />

Esta história começa na Regaleira, na rua<br />

Bonjardim, numa noite de verão do ano de<br />

1965.<br />

Personagens à mesa: o Sr. Coelho, um homem<br />

elegante, empertigado, calvo e poderoso;<br />

um irmão dele - talvez se chamasse José -, de<br />

aparência modesta, como se a sua falta de capricho<br />

na maneira de vestir-se fosse uma estratégia,<br />

para não ofuscar o brilho do outro, notoriamente<br />

mais importante e vaidoso; os demais, num grupo<br />

de seis pessoas, eram da mesma família, moças<br />

e rapazes que pareciam só ter olhos e ouvidos<br />

para o digníssimo cavalheiro que, naturalmente,<br />

iria pagar a conta.<br />

Havia, porém, um corpo estranho nesse quadro<br />

familiar: um brasileiro de 24 anos, recémchegado<br />

de São Paulo, para trabalhar como redactor<br />

de uma agência de publicidade em Lisboa,<br />

chamada Belarte, uma empresa que, como<br />

o seu dono, tinha a sua origem no Porto, onde<br />

mantinha a sua sede ou casamatriz. O Sr. Coelho<br />

- eis o homem -, achou que era pelo Porto mesmo<br />

que o brasileiro faria o seu baptismo de fogo.<br />

Os dois, o patrão e o empregado, chegaram<br />

por via aérea, no final de uma bela tarde de domingo.<br />

Quando o avião começou a descer, o Sr.<br />

Coelho fez o brasileiro olhar pela janela, dizendo<br />

-lhe: “O senhor está a chegar a uma cidade de<br />

heróis.” Ao dizer isso, esboçou um sorriso, não<br />

apenas satisfeito por haver produzido uma frase<br />

de impacto (não fora ele o dono de uma agência<br />

de publicidade), mas por estar prestes a pôr os<br />

pés no chão onde havia nascido. Em seguida,<br />

tirou do bolso um espelhinho e um pente. Mirou<br />

-se no espelho, que segurava com a mão esquerda<br />

e, com a direita, ajeitou cuidadosamente os<br />

cabelos que ainda lhe restavam, nas laterais da<br />

cabeça. Voltou a sorrir. O brasileiro achou que<br />

era bom trabalhar para um homem feliz, que,<br />

com toda a certeza, devia se considerar um herói,<br />

por ser um filho do Porto. Só não entendia<br />

porque esse homem tão feliz o chamava de<br />

“senhor” Que infelicidade! No Brasil, isto era<br />

uma consideração para com os mais velhos ou<br />

uma formalidade para com os superiores hierárquicos.<br />

Lá não era costume chamar-se um jovem<br />

de “senhor”. Tratando-o assim, o Sr. Coelho fazia-o<br />

sentir-se um ancião, aos 24 anos.<br />

52


<strong>Chicos</strong><br />

Em terra, uma caravana os aguardava. O irmão<br />

do Sr. Coelho parecia indócil, ao perguntar,<br />

várias vezes, pelo brazuca, que se sentiu uma<br />

ave exótica ao ser chamado desta maneira. Mas<br />

logo percebeu o tom afetuoso do tratamento. Foi<br />

recebido com efusivos votos de boas-vindas. Nada<br />

mal, para começar.<br />

Do aeroporto seguiram todos para o Grande<br />

Hotel do Império, na Praça da Batalha. O Sr. Coelho<br />

e o seu redactor importado de São Paulo<br />

subiram aos seus quartos, que ficavam lado a<br />

lado, lá deixaram as suas malas e voltaram imediatamente<br />

ao saguão, para juntarem-se novamente<br />

à comitiva e seguirem com ela até à Regaleira,<br />

onde o brasileiro seria batizado com vinho<br />

verde na sua opípara primeira noite no Porto.<br />

A mesa regalava-se a cada garrafa comandada<br />

pelo Sr. Coelho. “Embriagai-vos! De vinho, de<br />

poesia ou de virtudes!”, pensava o brasileiro, já<br />

um leitor de Charles Baudelaire. Mas o irmão do<br />

Sr. Coelho tinha pensamentos mais prosaicos.<br />

Queria saber se era verdade que os papagaios do<br />

Brasil falavam. Ao ser informado que alguns até<br />

cantavam o Hino Nacional, ele entrou em êxtase,<br />

como se acabasse de ouvir a coisa mais extraordinária<br />

que alguém já tivesse lhe contado.<br />

E, revirando os olhos, com o enlevo de uma criança,<br />

confessou o maior sonho de sua vida: “Ah,<br />

gostava muito de ter um papagaio. E dos mais<br />

faladores!”<br />

O brasileiro, embora sensibilizado com o desejo<br />

do seu afável interlocutor, o senhor portuense<br />

que o recebera tão efusivamente, temeu<br />

pelo rumo da conversa. E não sem razão. Não<br />

demorou muito para o irmão do Sr. Coelho dar a<br />

cartada definitiva, ao perguntar se ele por acaso<br />

tinha prestígio suficiente no Brasil para mandar<br />

vir de lá um papagaio. E agora? Papagaio! (No<br />

Brasil, essa exclamação significava: - Caraças!).<br />

Como sair dessa, sem deixá-lo desapontado? A<br />

situação não era das mais fáceis, até porque o<br />

homem era irmão do patrão. Naquele momento<br />

ele, o brasileiro, deu voltas à cabeça. Finalmente<br />

entendia a razão da ansiedade daquele que tanto<br />

havia perguntado, no aeroporto, se o brazuca<br />

viera, e de todos os salamaleques da recepção.<br />

Tudo por um papagaio!<br />

- Temos problemas em relação a isso - disse o<br />

brasileiro. - A fiscalização da Sociedade Protetora<br />

dos Animais é muito rigorosa com a saída de<br />

aves e pássaros do Brasil. Há uma lei que proíbe<br />

isto.<br />

Ufa! Foi duro dar essa resposta àquele que<br />

tanto sonhava ter um papagaio.<br />

O homem murchou. E emudeceu, num deplorável<br />

estado de desilusão. Não seria de estranhar<br />

se, mais tarde, na calada da noite, ele viesse a<br />

dizer para o irmão que a vinda do brasileiro não<br />

tinha valido a pena. Uma providencial voz feminina<br />

quebrou o silêncio, que já se tornava tenebroso:<br />

- Tem piada! Ele é brasileiro mas não se parece<br />

com os outros.<br />

- Como assim?<br />

- Ele não tem os cabelos encaracolados como<br />

os outros.<br />

O estranhamento tinha a sua razão de ser. De<br />

brasileiros ela só conhecia os jogadores que atuavam<br />

no Futebol Clube do Porto, a cada temporada,<br />

pelo visto todos negros. Ele aproveitou a<br />

oportunidade para esclarecer que seu país era<br />

multifacetado, multiracial, multicultural, multitudo.<br />

O Sr. Coelho, que o ouvia com atenção e<br />

interesse, de repente se deu conta de que algo<br />

errado acontecera à mesa: o brasileiro havia deixado<br />

muita comida em seu prato. Num tom de<br />

voz exasperado, perguntou:<br />

- Por que o senhor come tão pouco? É para<br />

não perder a elegância?<br />

53


<strong>Chicos</strong><br />

O brasileiro assustou-se com a pergunta, para<br />

a qual não tinha uma resposta convincente. Distraira-se<br />

com a conversa, com o vinho, com o<br />

brande depois do café... sabia lá por quê! Ou,<br />

vai ver, a Regaleira o deixara com saudades de<br />

um bar paulistano chamado Baiúca, onde, àquelas<br />

horas, o Zimbo Trio podia estar tocando:<br />

“Esta noite / quando eu vi Nanã / vi a minha<br />

deusa / ao luar...” E onde, no fim da madrugada,<br />

o último pianista tocaria Round About Midnight,<br />

a música dos músicos, a trilha sonora das noites<br />

das cidades grandes, São Paulo, Rio de Janeiro,<br />

Nova York, Paris. Qual seria a música do Porto?,<br />

ele se perguntava, enquanto a voz do Sr. Coelho<br />

interferia em seus pensamentos, superpondo-se<br />

aos sons transatlânticos que vinham em camadas,<br />

na sua memória auditiva - o piano, a bateria,<br />

o contrabaixo, Tom Jobim e Baden Powell, o<br />

sax de John Coltrane, o trompete de Miles Davis.<br />

- Imagine se coméssemos tão pouco como o<br />

senhor! Como poderíamos ter dado um Dom<br />

Afonso Henriques, aquele que, com uma única<br />

mão, sustentava uma espada de oitenta quilos?!<br />

- disse-lhe o Sr. Coelho, visivelmente contrariado.<br />

Todos riram às bandeiras despregadas, como<br />

se o patrão tivesse contado uma anedota impagável.<br />

E quem é doido de não rir de anedota<br />

contada por um patrão??? O brasileiro também<br />

riu. Aquela história de Dom Afonso sustentar<br />

uma espada de 80 quilos, com uma única mão,<br />

tinha piada, sim senhor. Não disse, mas pensou:<br />

“Caro Sr. Coelho: vim aqui para escrever os seus<br />

anúncios. E não para levantar espadas”.<br />

E assim terminou a primeira noite dos meus<br />

I5 dias no Porto, daquela vez. Houve outras. A<br />

penúltima durou 1 ano e 6 meses. E cá estou<br />

novamente.<br />

28 de Janeiro de 2000.<br />

O brasileiro voltou e já está à porta da Regaleira,<br />

depois de um bordejo de reconhecimento<br />

da cidade, capitaneado pelo professor Arnaldo<br />

Saraiva, que o levou primeiramente a revê-la de<br />

cima, para a reconstituição de sua memória visual,<br />

como num feixe de imagens do tempo a ser<br />

reconquistado. Tudo como dantes: há 35 anos<br />

também não faltou quem o levasse a contemplála<br />

das alturas, no outro lado do rio. É vendo-a de<br />

cima que se percebe que esta cidade foi uma<br />

fortaleza que não facilitava a entrada dos seus<br />

invasores d’antanho. Percebe-se mais: que o seu<br />

casario, tão esplendidamente fotogénico, sobe a<br />

encosta na mais perfeita harmonia, como se cada<br />

casa tivesse sido montada por um artesão,<br />

que depois a encaixou à mão, tomando todo o<br />

cuidado para não destoar dos demais, que por<br />

sua vez haviam-se desempenhado com o mesmo<br />

critério e rigor. É de cima que se vê melhor o<br />

quanto o rio é baixo: suas águas ficam muito<br />

aquém das ribanceiras. Foi lá de cima, de um<br />

deslumbrante posto de observação, que, por um<br />

breve momento, tentei rever a mim mesmo, ou,<br />

pelo menos, um pedaço da minha juventude,<br />

quando perambulava no sobe-e-desce do lado<br />

histórico da cidade, que tanto fez parte da história<br />

de um pedestre anônimo, sem eira nem beira,<br />

no entanto a sonhar todos os sonhos do mundo,<br />

e que a um só se resumiam: tornar-se um escritor.<br />

E nisto o Porto não me negou fogo, nas noites<br />

e dias gelados de seus longos invernos, nas<br />

suas chuvas de granizo a chicotear-me a cara,<br />

nos seus nevoeiros a fazer-me andar às cegas,<br />

nos seus verões de São Martinho em pleno novembro,<br />

quando a cidade sombria multicoloriase,<br />

levando todos às tascas, na mais fantástica e<br />

compreensível das comemorações, em homenagem<br />

àquele que, por um período que em geral<br />

durava três dias, governava o Porto, fazendo jus<br />

a seu epíteto de astro-rei.<br />

Havia sol também nessa tarde de Janeiro. Um<br />

sol esmaecido a produzir um efeito especial sobre<br />

o colorido das pontes, monumentos, paredes,<br />

portas e janelas. Como as águas do rio, tudo<br />

se doura, sob a luz tênue do entardecer.<br />

2.<br />

54


<strong>Chicos</strong><br />

Suaviza-se a cidade granítica, que um dia a<br />

mim pareceu ter gerado homens empedernidos,<br />

que, subconscientemente, viviam a levantar espadas<br />

de 80 quilos, e com uma única mão! Ora<br />

viva: este brasileiro tem que reconhecer a sua<br />

dívida de gratidão para com esta cidade que um<br />

dia lhe pareceu de pedra até a alma, naqueles<br />

idos dos 60, nos estertores do reinado de Dom<br />

António de Oliveira Salazar, diga-se. Como no<br />

título de Alexandre O’Neill, “Feira Cabisbaixa”,<br />

os homens aqui pareciam viver encastelados<br />

num círculo de desesperança, a darem voltas em<br />

torno da sua melancolia, como em todo o País.<br />

Nestas circunstâncias, espaço e tempo, o Porto<br />

franqueou-me um laboratório para o meu processo<br />

criativo: aqui encontrei o cenário e os personagens<br />

de um romance chamado Os Homens<br />

dos Pés Redondos. São estes personagens e este<br />

cenário o que tento reencontrar agora, ao chegar<br />

à Regaleira, embora já sabendo que a cidade já<br />

não é a mesma de trinta e cinco anos atrás: repaginou-se,<br />

cedendo às pressões do inescapável<br />

destino da modernização, aqui, registre-se, encontrando<br />

soluções arquitetônicas surpreendentes,<br />

ao estabelecer um visível equilíbrio entre<br />

passado e presente, tradição e modernidade.<br />

Mas vamos à Regaleira, que, trinta e cinco anos<br />

depois, continua no mesmo lugar. Com a sua<br />

mesma porta escura e o mesmo cartazete nela<br />

afixado: “Tripas à moda do Porto.”<br />

Lá dentro, porém, já não parece mais a<br />

mesma. Entro e páro. O balcão, onde o ator João<br />

Guedes - que morava em Matosinhos - e eu<br />

bebíamos cerveja acompanhada de tremoços, às<br />

vezes contando com a alegria da presença da<br />

actriz Isabel de Castro, em temporada no Teatro<br />

Experimental do Porto, bem, o balcão da<br />

Regaleira parece mudado. Ficou maior e pior. Há<br />

agora um certo aspecto de decadência e<br />

vulgaridade num ambiente que antigamente<br />

assemelhava-se a um santuário, de tão intimista<br />

e aconchegante. No balcão, onde o João Guedes<br />

citava de memória trechos e mais trechos do<br />

Grande Sertão: Veredas, o romance monumental<br />

do brasileiro João Guimarães Rosa, para os seus<br />

amigos que aqui vinham reencontrá-lo sempre, o<br />

que há agora é tão somente um solitário leitor<br />

de um jornal desportivo. É uma noite de sextafeira<br />

e, estranhamente, só uma mesa do<br />

restaurante está ocupada, por um casal de idade<br />

avançada. Pelo visto, a Regaleira já conheceu<br />

noites mais felizes. Saudades do Sr. Coelho e<br />

seus familiares. Muito mais ainda do João<br />

Guedes. Tempus fugit. Como na música do<br />

pianista norte-americano Bud Powell.<br />

Deixo a Regaleira e me ponho a andar.<br />

Vou até a esquina, à procura de uma tasca<br />

chamada Maria Rita. Ali, um desenhador<br />

chamado De Jesus, sempre com uma tesoura ao<br />

bolso e dizendo que iria enfiá-la na barriga do<br />

seu chefe, no dia seguinte, e o cabo Emílio, que<br />

toda noite contava a mesma história, na qual se<br />

via como um herói, quando, ao prestar serviço<br />

militar em Macau, deu um murro num tenente<br />

que lhe roubara a namorada, e fora posto num<br />

navio de volta, para amargar 5 anos de prisão -<br />

pois estes dois memoráveis personagens do<br />

Porto já não estão entornando um copo atrás do<br />

outro, na Maria Rita, pela simples razão de que<br />

aquela tasca não existe mais. E eles? Ainda<br />

estarão vivos? E o que fizeram ou fazem de si<br />

mesmos?<br />

Vagueio pela Bonjardim em sentido<br />

contrário. Dou de cara com o luzidio edifício de<br />

5 andares, que era um dos pilares do dinheiro do<br />

Porto. Ostentava na fachada um logotipo<br />

formado por 3 letras: BPM. Um artifício, que<br />

transformou uma casa bancária em<br />

“Banqueiros.” Era isso o que dizia o “B” do<br />

logotipo, fazendo-se passar por “Banco.” O PM<br />

significava Pinto de Magalhães, quem não sabe?<br />

Cá estou a ver o Sr. Afonso, um homem muito<br />

simples, de origem humilde, que começou como<br />

cambista de moedas na fronteira da Espanha, ao<br />

tempo da guerra: ele está atendendo a várias<br />

chamadas telefónicas ao mesmo tempo, do<br />

Brasil, de Paris, de Nova York. Ao seu lado,<br />

55


<strong>Chicos</strong><br />

de pé, o seu genro Rodrigo segura-lhe os fones,<br />

fazendo as trocas de instante a instante, para<br />

que o sogro converse um bocadinho com um,<br />

depois com outro, volte àquele cuja conversa foi<br />

interrompida e assim vai. Bom e obediente<br />

rapaz, esse seu Rodrigo. Sogro e genro já não<br />

pertencem a este nosso mundo.<br />

O BPM também já morreu, O seu edifício<br />

ostenta agora o logotipo de outro banco.<br />

Logo por ali, na Sá da Bandeira, <strong>56</strong>, último<br />

andar, ficava a Pali - Publicidade Artística Ltda.<br />

Laborei lá durante um ano e meio, trazido de<br />

Lisboa por um brasileiro, que por sua vez foi<br />

importado da Mac-Cann Erickson do Rio de<br />

Janeiro pelo banqueiro Afonso Pinto de<br />

Magalhães. E assim o carioca Eugénio Lyra Filho<br />

transformou um departamento de publicidade<br />

em agência, e a agência em mais uma empresa<br />

do conglomerado BPM. O bom Lyra também já<br />

se foi, lá no Rio. E onde estariam os outros<br />

camaradas desse tempo, como o belga René<br />

Coomans e o velho Mário Frazão? Foi dele que<br />

ouvi uma sábia declaração, sacramentada por<br />

um brande: “Escuta-me, rapaz. Bom não é ser<br />

pai. Bom é ser avô. O pai reprime. O avô deixa o<br />

neto fazer o que quiser.” Ele acabava de ganhar<br />

um neto. Estava em estado de graça. Impossível<br />

recordar o Frazão sem um bocado de afeto.<br />

Ninguém mais precisa me dizer que A<br />

Brasileira está fechada. Meninos, eu vi. Era em<br />

torno dela que homens soturnos gravitavam, até<br />

ficarem de pés redondos. Mas o Majestic<br />

continua vivo e ainda aqui, com toda a sua<br />

majestade, na rua de Santa Catarina, onde<br />

morei, lá mais para cima, dividindo um<br />

apartamento com o ator Luiz Alberto.<br />

Lembranças de um médico chamado Jorge<br />

Tunhas, que aqui lia um livro atrás do outro,<br />

enquanto aguardava ser chamado para a guerra.<br />

Uma noite, à véspera do embarque, tomou um<br />

pifa daqueles! Saiu urrando pelas ruas. Urros<br />

lancinantes, como uma fera ferida. O horror da<br />

guerra. O Majestic me recorda também uma<br />

moça que, nos fins de tarde, entre um café e<br />

outro, me ensinava inglês. No Majestic começo<br />

a leitura do Primeiro de Janeiro pelo expediente.<br />

Quero ver se o Manuel Dias ainda está lá e se já<br />

é o seu Director de Redacção, Editor-Chefe,<br />

qualquer coisa assim. Importante! Lembro-me<br />

dele como um gajo esperto, rápido, criativo e...<br />

bom de copo! Se talento vale alguma coisa neste<br />

mundo, Manuel Dias já deve ser o dono do<br />

Primeiro de Janeiro. Decepção: o nome dele<br />

sequer figura no expediente. Deixo o jornal de<br />

lado. Não tem Manuel Dias? Não vai ter este<br />

leitor.<br />

Falta-me coragem para subir a rua de<br />

Santa Catarina até o prédio onde morei.<br />

Saudades do Sr. Soares, o zelador. Ele adorava<br />

uma bagaceira, que bebia escondido da dona<br />

Angelina, nos fundos de uma pequena<br />

mercearia, no outro lado da rua. Depois da<br />

terceira dose, puxava a carteira do bolso e dela<br />

retirava um retrato de dona Angelina quando<br />

jovem: “Ela é bonita, não é?” - dizia,<br />

embevecido. Não dava para discordar dele.<br />

Mesmo entrada em anos, dona Angelina<br />

continuava uma mulher muito bonita. Todo<br />

domingo, religiosamente, ele assava um<br />

bacalhau, que cobria com imensas rodelas de<br />

cebola. E eu que não fizesse a desfeita de faltar<br />

ao seu almoço, servido sempre na sua pequena<br />

área de serviço. Jamais alguém neste mundo<br />

assou um bacalhau tão bom quanto o do Sr.<br />

Soares. Uma noite, dona Angelina me chamou à<br />

sua casa. Ele estava de cama e queria que eu<br />

fosse visitá-lo. Fui imediatamente. Sentei-me ao<br />

seu lado, perguntando se queria que chamasse<br />

um médico. Disse que não. Já estava entupido<br />

de remédios. De pé no quarto, dona Angelina<br />

<strong>56</strong>


Disse que não. Já estava entupido de remédios.<br />

De pé no quarto, dona Angelina reclamava: o<br />

marido não podia continuar bebendo do jeito<br />

que bebia, diariamente. Pediu-me para lhe dar<br />

uns conselhos, enfim, que o fizesse parar de<br />

beber. Enquanto ela saía resmungando, o Sr.<br />

Soares ordenou-me que levasse a mão por<br />

debaixo da cama, depressa, antes que a sua<br />

mulher voltasse. Obedeci-lhe. E fiz a caça ao<br />

tesouro escondido. Entreguei-lhe a garrafa. Com<br />

uma sofreguidão infantil, o Sr, Soares<br />

destampou-a e sorveu um trago. Depois estalou<br />

os beiços e sorriu, contente da vida.<br />

Ao se recuperar da doença, procurou-me<br />

para dizer que dona Angelina o havia proibido<br />

de beber. Estava muito infeliz por causa disso,<br />

numa desolação de dar dó. Dei-lhe uma cópia da<br />

chave do meu apartamento, dizendo-lhe que<br />

quando sentisse vontade de um copo, era só ir lá<br />

e procurar um garrafão que estava na cozinha.<br />

Seus olhos brilharam. Ele voltava a ser uma alma<br />

deste mundo. Eu não podia negar esse favor ao<br />

homem que fizera de tudo para impedir os<br />

moradores - todos os moradores! - de me<br />

expulsarem do prédio, por causa da música que<br />

eu ouvia e de uma festa que promovi, para as<br />

bailarinas e bailarinos da Gulbenkian, em<br />

apresentação na cidade. O Sr. Soares conseguiu<br />

impedir a minha expulsão com um argumento<br />

tirado da manga, como o jogador que puxa a<br />

última carta, ainda que seja um blefe: “O senhor<br />

doutor não conhece bem os seus inquilinos”-<br />

disse ele ao proprietário do prédio,<br />

acrescentando: “Dia destes, às duas horas da<br />

manhã, uma moradora do segundo andar me<br />

acordou para fazer calar um cachorro que latia<br />

na rua. Isso é lá trabalho para um zelador?” O<br />

Sr. Proprietário sorriu e respondeu-lle que podia<br />

ir-se, mas que recomendasse ao brasileiro para<br />

não mais fazer barulho. Estava farto de<br />

reclamações. Grande Sr. Soares. Nenhum<br />

advogado teria feito melhor. “A partir de agora,<br />

abaixe um pouco a música, senão vou ficar<br />

desmoralizado”- sentenciou o meu<br />

competentíssimo defensor.<br />

No dia em que fui embora ele não<br />

apareceu. Dona Angelina chegou até a porta do<br />

edifício para um abraço de despedida. “E o Sr.<br />

Soares?” Ela então esclareceu que ele se<br />

recusara a se despedir de mim. Na verdade,<br />

estava de cama. Havia adoecido, ao saber que<br />

<strong>Chicos</strong><br />

eu ia partir. Que porra. Ele doente e eu não iria<br />

estar mais ali, para caçar o tesouro debaixo da<br />

cama, o único remédio que seria capaz de curálo,<br />

junto com o meu afeto, quem sabe.<br />

Recordações à mesa do Majestic,<br />

observando um cavalheiro de seus trinta e<br />

poucos anos, impecavelmente vestido, que pede<br />

café e água, depois abre o seu laptop, colocado<br />

sobre o sofá, e começa a trabalhar, como se<br />

estivesse em casa ou no seu escritório. De<br />

repente o seu telemóvel toca. Ele leva a mão ao<br />

bolso, pega o aparelho e atende a ligação<br />

telefónica. Depois, recoloca o telemóvel no<br />

bolso e volta à sua lida, em frente do<br />

computador. Passado algum tempo, desliga-o.<br />

Quando volto a observá-lo, vejo que ele tem<br />

uma mão sobre o laptop e a outra está a mexer e<br />

remexer com a colherzinha no açucareiro, e a<br />

olhar fixamente para a parede de vidro na frente<br />

do café. Penso ter finalmente reencontrado um<br />

remanescente - ou herdeiro - dos homens dos<br />

pés redondos, por este olhar tão parado e<br />

penetrante, como se fosse furar a parede. Era<br />

uma cena típica da Brasileira. Mas as minhas<br />

recordações dizem menos respeito ao cidadão<br />

com todo o jeito de executivo da era yuppie, do<br />

que de amigos de um outro tempo: onde estará<br />

e o que faz hoje o publicitário Carlos Guimarães,<br />

que me deu guarida, enquanto eu procurava um<br />

lugar para morar? Foi na casa dele que eu vi,<br />

pela TV, o Brasil levar urna surra de Portugal, na<br />

Inglaterra, na Copa do Mundo de 1966, o ano<br />

do Euzébio. E o lisboeta Manuel Pena Costa,<br />

director da Manpower Portuguesa, ainda passa<br />

temporadas por aqui, na condução de seus<br />

negócios, e a sorver uma ginginha, depois do<br />

expediente, para espantar o frio? E a actriz<br />

Mirna Vaz, que papel andará desempenhando?<br />

A ex-Miss Objectiva de Portugal Lydia Franco<br />

terá voltado a apresentar-se aqui com o balé da<br />

Gulbenkian? Em que palco o Luiz Alberto será<br />

encontrado? E Isabel Ruth, teria voltado ao<br />

Porto, depois daquele ano em que actuou no<br />

filme Mudar de Vida, de Paulo Rocha, rodado ali<br />

perto, em Furadouro-Ovar? E Paulinha Guedes,<br />

que conheci criança e se tornou uma bela actriz,<br />

alguma vez revisitou Matosinhos? O realizador<br />

de cinema José Fonseca e Costa ainda se<br />

lembrará que foi ele quem me trouxe de carro,<br />

num belo dia ensolarado, quando vim para<br />

morar, deixando-me na Brasileira, aos cuidados<br />

57


do Carlos Guimarães?<br />

Essa peregrinação memorialística vai levar a<br />

uma noticia triste: amanhã o Manuel Dias nos<br />

informará, a mim e ao professor Saraiva, que o<br />

nosso grande amigo Alberto Sérgio, o bancário e<br />

jornalista esportivo, já não poderá mais, nunca<br />

mais, ser convidado para o almoço, como nos<br />

velhos tempos. Faz um ano que ele mudou-se do<br />

Porto para a cidade dos pés juntos. E assim, o<br />

meu Porto revivido não deixou também de ter<br />

uma nota de melancolia, como que saída de uma<br />

página de Scott Fitzgerald, num de seus textos<br />

mais candentes, intitulado Minha Cidade Perdida.<br />

O meu centro de gravitação no Porto era esse<br />

mesmo que é chamado de “cidade histórica.”<br />

Das sombras do BPM à rua de Santa Catarina,<br />

almoço e jantar no Rei dos Fritos, na Praça de<br />

São Lázaro, onde havia um reservado para a<br />

malta da Escola de Belas Artes, a do Teatro Experimental<br />

e este redactor. Ao final das refeições,<br />

uma moça chamada Izilda, filha do dono<br />

da casa, trazia as contas e um livro comprido, no<br />

qual cada um procurava o seu nome e anotava a<br />

3.<br />

<strong>Chicos</strong><br />

sua despesa do dia, para pagar no fim do mês.<br />

Especialidades do Rei dos Fritos: tripas á moda<br />

do Porto (naturalmente) e papas de sarrabulho.<br />

Mas o cardápio era bem variado. Ali comia-se a<br />

gosto, fartamente, e barato. E ainda com a vantagem<br />

do pendura. Depois do almoço, café com<br />

brande no Belas Artes, na outra ponta da Praça<br />

de São Lázaro. Quando o dinheiro dava, íamos<br />

ao Chez Lapin, na Ribeira, agora o point da moda,<br />

da muvuca (tradução: agito, barulho, ajuntamento<br />

de pessoas, para beber, namorar, divertirse),<br />

com todas as inconveniências disto, não certamente<br />

para os negócios.<br />

Fora deste polígono, fico perdido, ainda mais<br />

agora, com as mudanças que a cidade sofreu,<br />

principalmente para além do seu perímetro histórico.<br />

Talvez precisasse morar mais um ano e<br />

meio no Porto, para adaptar-me às exigências<br />

que a contemporaneidade lhe impôs, e aceitá-las<br />

sem traumas, como o fazem seus habitantes,<br />

com um indisfarçável orgulho. A questão é simples<br />

e compreensível: se revivi o seu lado antigo<br />

e pouco ou nada vivi o novo, é porque foi no<br />

Porto histórico que tive uma história. Seja como<br />

for, “Biba o Puerto, carago!!!”<br />

*Texto publicado originalmente na revista<br />

Terceira Margem, da Universidade do Porto.<br />

58


José Vecchi de<br />

Carvalho<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Nasceu em Cataguases, após morar por muito<br />

tempo em Viçosa vive hoje em Paula Candido<br />

todas cidades mineiras. Coautor de A casa da<br />

Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de<br />

Duas Cruzes (contos 2018).<br />

O chapéu do falecido<br />

O velho Isaac partiu no início da<br />

semana. Deixara muitos bens: dinheiro, imóveis,<br />

letras de valor, joias e o inseparável<br />

chapéu. Este último, que o acompanhara por<br />

toda a vida, fora, agora, deixado de lado, esquecido<br />

sobre um criado-mudo pegado à cama.<br />

Não combinava com o ritual fúnebre,<br />

nem tinha importância para a maioria dos<br />

familiares, um reles adereço de um velho<br />

boêmio e mulherengo. Enquanto a família<br />

fazia planos da partilha de bens, o chapéu,<br />

agora inútil, descansava das constantes noitadas,<br />

das madrugadas insones em que aparava<br />

o sereno e protegia o seu dono. Fiel como<br />

um cão, agora no abandono de uma casa<br />

vazia, está à espera da morte, a contar as horas.<br />

Não era como os relógios de pulso, de<br />

bolso, antigos e valiosos — ouro puro —;<br />

abotoaduras, anéis; pulseiras, uma de ouro<br />

branco com elos quadrados, uma fortuna;<br />

casa, apartamentos alugados, o sítio, o apartamento<br />

em Guarapari. Tudo esmiuçado, estimado,<br />

cobiçado. O chapéu, por sua vez,<br />

gozava de uma desdenhada solidão, desprezado<br />

como uma mulher feia numa reunião<br />

de beldades.<br />

O velho Isaac deixara também quatro filhos.<br />

Três com a esposa já falecida, e o caçula,<br />

Amon, nascido de um relacionamento extraconjugal.<br />

Amon, que a família do morto não reconhecia,<br />

apareceu para se despedir do pai.<br />

Choroso e tímido, ficou ao lado do caixão<br />

até a chegada ao cemitério. A família, contrariada,<br />

tentava, em vão, envolvê-lo, encobri<br />

-lo da visão das pessoas que certamente falariam<br />

mal do velho, num momento em que só<br />

cabem elogios.<br />

A presença de Amon no velório provocou,<br />

além do constrangimento, discussões<br />

sobre a partilha. Não contavam com a presença<br />

indesejada que, na certa, iria reivindicar<br />

direitos de herdeiro. Vivia longe dali,<br />

com seus vinte e dois anos, e o velho encontrava-se<br />

com ele de vez em quando, longe<br />

dos olhos reprovativos. O rapaz, que nunca<br />

dera as caras e não fora reconhecido legalmente<br />

pelo pai, aparece agora, para chorar<br />

e tentar abocanhar alguma coisa, garantir<br />

os estudos e uma vida boa. Era preciso<br />

contratar alguém para orientar, cuidar do<br />

caso, defender o interesse dos legítimos<br />

59


herdeiros. Os irmãos seguiram o cortejo<br />

confabulando. Absortos em hipóteses e<br />

planos, nem ouviram as exéquias, quase<br />

não viram o esquife descer na cova. Foi preciso<br />

um tio chamar-lhes a atenção para que<br />

parassem de falar e se aproximassem.<br />

Amon não arredou o pé, estava lá o tempo<br />

todo, e os irmãos acharam por bem chamálo<br />

para uma conversa. Voltaram para a casa<br />

do velho arrastando o silêncio do cemitério,<br />

engasgados com palavras escusas e hostis,<br />

até a conversa gerar surpresa.<br />

Como assim? Ora, a herança. Meu pai me<br />

deixou o suficiente para concluir os estudos.<br />

Deixou? Sim, deixou, fez um depósito<br />

e me disse do que se tratava. Quando? Há<br />

cinco meses. É a sua parte? Acho que sim,<br />

mas queria guardar comigo algum objeto,<br />

uma lembrança dele. Os discos? Posso leválos<br />

também, se não quiserem ficar com<br />

eles, mas queria ficar com o chapéu, será<br />

uma boa lembrança, Isaac até já brigou por<br />

ele numa de suas noites de farra. Não o tirava<br />

por nada. Era um amuleto para ele e seria<br />

sagrado para mim.<br />

Sem nenhuma demora e com palavras gentis<br />

deram ao rapaz o chapéu, despediramse<br />

com inédita amabilidade, e Amon tomou<br />

rumo de casa levando nas mãos o Marcatto<br />

pelo de lebre. Andava e acariciava o chapéu.<br />

Chegou a colocá-lo na cabeça, mas retirou-o<br />

rapidamente por considerar tal atitude<br />

um desrespeito. Melhor guardá-lo para<br />

sempre, com todo o zelo. Afinal, nunca fora<br />

dado ao uso de chapéus ou bonés. Se viesse<br />

a usá-lo, seria para homenagear o velho.<br />

Depois do acordo, os legítimos herdeiros<br />

<strong>Chicos</strong><br />

seguiram para suas casas. Uma comida leve<br />

e a tentativa de dormir cedo, vencida por<br />

um emaranhado de lembranças, pensamentos<br />

e planos. O chapéu balançava pra lá e<br />

pra cá, interrompendo momentos de lucidez.<br />

Estranho esse rapaz querer apenas o<br />

chapéu! Ele deve ser louco. Como pode<br />

uma pessoa passar por tantas privações e<br />

numa hora dessas pedir humildemente apenas<br />

um objeto qualquer, uma recordação,<br />

um simples chapéu? Vai ver o velho o entupiu<br />

de dinheiro, uma bolada pra ele não<br />

precisar trabalhar nunca na vida. Ele falou<br />

sobre isso, não escondeu, o velho depositou<br />

uma quantia para garantir os estudos.<br />

Só isso? Amanhã veremos o testamento.<br />

Esse merda não tem nenhuma ambição? Ou<br />

aquele chapéu tem um tesouro? Essa possibilidade<br />

desconcertou ainda mais o pensamento<br />

do filho mais velho do senhor Isaac.<br />

Pegou o telefone, falou com um dos irmãos,<br />

depois com o outro. Atônitos, todos concordaram<br />

com a hipótese, e no outro dia se<br />

reuniram bem cedo para tratar do assunto.<br />

Tinham que fazer alguma coisa. O chapéu,<br />

certamente guardava um segredo, um forro<br />

falso recheado de joias ou dólares. Quem<br />

sabe uma gema valiosa escondida na fita<br />

ou presa na carneira. Amon com cara de<br />

bobo, mas por certo, um espertalhão. E o<br />

velho, impedido pela família de reconhecer<br />

o garoto no passado, recompensara-o, no<br />

presente, com tudo o que podia.<br />

Estabeleceu-se um plano: o neto mais novo<br />

do velho gostava do chapéu e o avô havia<br />

prometido para o garoto. Perfeito, quem<br />

poderia negar? O menino estava muito<br />

60


triste, até adoentado. Eles dariam o toca<br />

discos e todos os vinis do velho; os cintos,<br />

as gravatas, dois pares de sapatos, um retrato,<br />

tudo em troca do chapéu. Tudo acertado.<br />

Uma dúvida repentina veio a pinicar<br />

as orelhas dos cobiçosos e afetar seus ardis.<br />

Amon, com cara de bobo, mas um espertalhão,<br />

já devia ter retirado o que tinha de valor<br />

no chapéu. O que fazer? Ora, vasculhar<br />

cada parte para verificar indícios de um<br />

possível latíbulo de valores, ou alguma avaria<br />

que demonstrasse que o tesouro já fora<br />

surrupiado.<br />

Saíram atrás de Amon. Hesitaram na entrada<br />

da casa pobre, mas o rapaz os convenceu.<br />

Amon se interessou pelos discos, ficou<br />

com pena do menino que tanto queria o<br />

chapéu do avô, mas ponderou, afinal era o<br />

objeto que melhor caracterizava o velho,<br />

melhores lembranças trariam e era o de<br />

menor valor. Poderiam dar um chapéu semelhante,<br />

era uma criança e não faria distinção.<br />

Essa proposta, porém, deixou os<br />

rapazes ainda mais certos de que algo valioso<br />

estava escondido e que não poderiam<br />

voltar para casa sem o chapéu. O menino<br />

não é nenhum bobo, saberá a diferença —<br />

disseram — e não temos coragem de mentir<br />

para ele, não seria justo deixá-lo adorar um<br />

objeto de recordação do avô, mostrar aos<br />

colegas, sendo enganado pela família.<br />

Diante disso, Amon recuou e, compadecido,<br />

foi buscá-lo. Pudesse o chapéu, coitado,<br />

decidir seu destino, se esconderia num armário,<br />

no fundo de uma gaveta, debaixo da<br />

cama, no sótão ou no porão. Mas a casa,<br />

pobrinha, não tinha armários, gavetas, sótão<br />

e porão. E lá veio ele nas mãos de<br />

61<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Amon. Pudesse o chapéu, coitado, expressar<br />

sua contrariedade... Ah, isso sim. Sóbrio,<br />

austero, circunspecto, triste. Acostumado<br />

a alegrias, noitadas e carinhos, parecia<br />

agora adivinhar sua sina.<br />

Os irmãos se apressaram em descarregar os<br />

discos, a antiga vitrola com seu móvel de<br />

madeira escura, antiga e uma caixa com bugigangas<br />

do velho. Deixaram tudo na pequena<br />

sala, amontoado num canto, sem<br />

muito cuidado, alguns discos despontavam<br />

salientes com uma parte fora da capa.<br />

Amon se dispôs a ajudá-los, mas rapidamente<br />

despejaram toda a carga sem precisar<br />

de ajuda e sem nenhum cuidado.<br />

Despediram-se com pressa e saíram avaliando<br />

o chapéu ainda em perfeitas condições.<br />

Apalparam, puxaram, esfregaram.<br />

Usaram tesoura e canivete, e antes mesmo<br />

de chegarem em casa, o coitado fora submetido<br />

a torturas para revelar segredos da<br />

suposta operação clandestina. De repente,<br />

pararam e conferiram o novo aspecto do<br />

chapéu: curvas e dobras, todas com avarias;<br />

rasgos no forro, a fita jogada no fundo do<br />

carro, até a aba sofreu cortes pelas mãos<br />

raivosas que, apesar da tortura, não conseguiram<br />

nada.<br />

Estropiado, agonizante, o chapéu agora<br />

quase tão morto quanto o antigo dono, mas<br />

sem perder a galhardia — como se tivesse<br />

assimilado o jeito brincalhão do velho Isaac<br />

— exibia, num dos rasgos que sofrera na<br />

parte frontal do cone, o formato de uma<br />

boca a escancarar um sorriso escandaloso,<br />

meio tonto, meio torto, zombeteiro, debochando<br />

impiedosamente de seus algozes.


<strong>Chicos</strong><br />

Andressa Barichello<br />

Nasceu em São Paulo - SP, atualmente mora<br />

em Portugal. É autora do livro Crônicas do Cotidiano<br />

e outras mais (Scortecci, 2014). É cofundadora<br />

do projeto fotoverbe-se.com.<br />

Praça dos Touros.<br />

Cheguei à feira por volta das 10h. Não<br />

sou boa para feiras e para tantas outras coisas<br />

para as quais não se pode tardar. Tardo sempre<br />

e em tudo e chego à espera de encontrar<br />

ainda alguma coisa para levar para casa. Restos,<br />

tudo de partida, umas folhas de couvecoração-de-boi<br />

já vazias de couve, folhas pelas<br />

caixas, pelo chão... A couve ausente, ouve<br />

ausente! E como diante de um comando, ouço<br />

o coração rápido dos bois ausentes – a feira<br />

do bairro acontece na famosa Praça de<br />

Touros.<br />

Poucos dias atrás soube pela transmissão<br />

ao vivo que as cenas da TV aconteciam a uma<br />

quadra. Enquanto eu no sofá, os espetos no<br />

boi. Não são espetos, são bandarilhas, são farpas!<br />

Ignoro nomes e tradições, reconheço<br />

apenas o sangue a jorrar, buraco de seta. Eu<br />

tenho carne e medo de flechas. Tive sempre<br />

medo que me acertassem o coração de boi.<br />

Couve? Não sei, mas houve. Daí o vício de<br />

correr para onde a capa sacode, olé.<br />

Hoje, no lugar dos touros, dos cavaleiros,<br />

do público, nem passo, nem piso, nem olé. As<br />

bancadas vazias, o som dos porta-malas a bater;<br />

dentro levam de volta o que ninguém<br />

quis. Mangueiras lavam o vermelho e acompanho<br />

o caldo dos morangos e dos tomates<br />

como a limpeza do sangue derramado quando<br />

a feira foi festa.<br />

A primeira vez em que ouvi a palavra tauromaquia<br />

pensei em taxidermia. De alguma<br />

forma a tauromaquia talvez seja jeito de empalhar<br />

um touro, a imagem dele para sempre,<br />

quem não tem? O touro vazio, olhos de vidro,<br />

mesmo quando a arena tenha se transformado<br />

no palco dos feirantes, no templo dos<br />

vegetarianos, essa contradição de pensamentos<br />

tão opostos debaixo dos mesmos chifres.<br />

Não seria exatamente esse tipo de alternância<br />

a tornar todas as coordenadas geográficas do<br />

mundo um lugar ainda possível? Pelas 10h,<br />

quando tudo já foi vendido, depois do corte<br />

na pele dos mamões verdes, das pencas de<br />

bananas divididas em cachos, das cebolas,<br />

alhos, alfaces e couves terem perdido suas<br />

cascas, as 10h ainda há a florista. Sentada na<br />

banqueta, o olhar a fugir para o chão, ela parece<br />

à espera de que a tirem pra dançar – mas<br />

não há capa, nem cavaleiros que com um simples<br />

esforço ortográfico possam se transformar<br />

em cavalheiros. Há orquídeas, meia dúzia<br />

de gérberas e centenas de rosas vermelhas.<br />

Hoje eu não vendi nada, nada além de uns<br />

crisântemos – ela murmura e lambe um dos<br />

dedos após tocar um espinho. Ou seria um<br />

espeto? Bandarilhas, farpas?<br />

Depois de muito hesitar, decido levar uma<br />

rosa.<br />

Falamos sobre a praça. Sobre a arquibancada<br />

agora vazia. Tortura. Tradição.<br />

E porque estamos sozinhas sob o restante<br />

perfume das mangas, pergunto:<br />

- Qual mesmo a diferença entre boi e touro?<br />

É que o boi é o de comer?<br />

A faca rápida remove os espinhos e sobre<br />

a tábua de madeira decepa parte do longo<br />

caule; que chega liso à minha mão.<br />

- O boi é o touro, só que castrado. A menina<br />

não sabia?<br />

62


<strong>Chicos</strong><br />

José Antonio<br />

Pereira<br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />

casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e<br />

autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

Regra três de juiz<br />

O velho Antônio sempre me levava<br />

para os campos de futebol, curiosamente os<br />

que mais frequentávamos eram às margens<br />

do Meia-Pataca. O do Manu Mineira se espremia<br />

entre a linha férrea do Miraí e o ribeirão.<br />

Ali o atacante Candido foi rebatizado.<br />

Num domingo calorento o Manu jogava no<br />

meio da tarde, o sol rachando a cacunda da<br />

torcida, que em grande maioria era de operários<br />

das fábricas de tecidos e papéis que davam<br />

nome ao time. Num dado momento o<br />

tal Candido cai em campo e, comandados<br />

pelo Arduíno, alguns reservas o retiram<br />

apressadamente de campo. Não demora muito,<br />

vem a notícia lá do vestiário. – O homem<br />

já está bem. Só passou mal em campo, vomitou<br />

a macarronada do almoço. No jogo seguinte<br />

não deu outra. Bola lançada ao ataque.<br />

Alguém grita da assistência. – Vai, Macarrão!!!<br />

Descendo o ribeirão, próximo à estação ferroviária<br />

era o Flamenguinho, este o time do<br />

devotamento de meu pai. E na quase esquina<br />

do Rio Pomba com o Meia-Pataca ficava o<br />

campo do Operário. Quando as chuvas de<br />

verão engordavam o Meia-Pataca e ele ocupava<br />

suas vargens. Não havia rodada do<br />

campeonato da liga. O futebol de Cataguases,<br />

este sim, é que era o verdadeiro futebol<br />

de várzea. A cidade cresceu ocupando todos<br />

os brejos de seus ribeirões e córregos. O único<br />

campo que resistiu à especulação imobiliária<br />

foi o do Operário, emparedado por aterros<br />

e construções vira em épocas de enchentes,<br />

na linguagem cheia de galhofa de seus<br />

adversários, a caixa d’água da rua do Pomba.<br />

Algumas vezes pedi ao meu velho uma bola<br />

de couro, ele que vivia, como os pais de<br />

meus amigos, com seus parcos salários suas<br />

dificuldades financeiras me levava na conversa.<br />

Mas tenho para comigo que, como não<br />

era bobo, já percebera que eu não tinha o<br />

menor talento e jamais iria arriscar seus poucos<br />

trocados com o meu futebol. Já rapazinho<br />

descobri que a cintura dura não me atrapalhava<br />

só no futebol, junto com minha timidez<br />

me ferrava nas brincadeiras dançantes e<br />

bailinhos. Algumas amigas mais piedosas<br />

ainda tentaram me ajudar no dois pra lá dois<br />

pra cá do dançar coladinho. Não teve jeito. A<br />

excitação e a imaginação ao tê-las entre os<br />

braços e bem junto ao corpo me desconcentravam<br />

por completo, aliada à minha ruindade<br />

em aritmética gerava meu desequilibrado<br />

descompasso.<br />

63


<strong>Chicos</strong><br />

Na mesa do bar da esquina entre um golo<br />

e outro, Vanderlei Pequeno, que escreveu<br />

um saboroso livro sobre os casos de futebol<br />

da cidade e foi goleiro do Flamenguinho,<br />

ouvia pacientemente minhas elucubrações<br />

sobre o futebol da várzea do Meia-<br />

Pataca. Com o seu bom humor, até para<br />

encurtar a conversa, saiu-se com esta. –<br />

Pelo visto você teria sido um novo Chiquinho<br />

Miguel? – Quem é este Chico? E ele<br />

continua. – Chiquinho? Está lá no meu livro.<br />

Ele morava no bairro Leonardo e era<br />

apaixonado pelo Vasquinho, desconjuntado,<br />

chutava mal, tratava mal a bola... Era<br />

na verdade um grande perna de pau. Sabese<br />

lá por maldade de quem, disseram-lhe<br />

que ele estava escalado para o jogo lá no<br />

Vila Reis. Entusiasmado, Chiquinho comprou<br />

tudo novo, chuteira, meia, uniforme...<br />

Enfim, iria atuar de titular. Atravessou garbosamente<br />

a cidade a pé, debaixo de um<br />

sol cáustico. Tudo em vão, ficou no banco<br />

de reserva o jogo inteiro com o Vasquinho<br />

jogando só com dez. – Pois é, Pequeno!<br />

Alguém já me contou, com certo sarcasmo,<br />

o final deste caso. Disse-me que o técnico<br />

mandou ele esperar a chegada de outro jogador<br />

que se atrasara com uma cínica justificativa:<br />

– Espera aí no banco. Não vamos<br />

queimar substituições. Sacanagem!<br />

Eu, se insistisse, provavelmente, me ofereceriam<br />

para ser árbitro, mas sem vocação,<br />

avesso a preparação física, no máximo seria<br />

um quarto árbitro, ou seja, regra três de<br />

juiz. – Aí não dá, né não?<br />

Ribeirão Meia Pataca<br />

64


<strong>Chicos</strong><br />

Raquel Naveira<br />

Raquel Naveira, nasceu em Campo Grande<br />

(MS), formada em Direito e Letras, doutoranda<br />

em Literatura Portuguesa na USP. Escreveu vários<br />

livros, entre eles: Abadia (poemas, editora<br />

Imago,1996) e Casa de tecla (poemas, editora<br />

Escrituras, 1999), indicados ao Prêmio Jabuti de<br />

Poesia.<br />

Janelas do mundo<br />

Recebi o livro Alinhavos do Tempo da<br />

poeta Lina Tâmega Peixoto, mineira de Cataguases,<br />

radicada em Brasília. Que linda capa. Um<br />

casarão antigo, amarelado, com quatro janelas<br />

altas na fachada. Encontro em versos a explicação:<br />

“Ainda existe./ As venezianas entrincheiram<br />

os olhos./ Preciso ver se as lembranças estão lá<br />

dentro/ resistentes ao corrosivo tempo.” E mais<br />

além: “Nesta casa onde o mundo não passa,/ há<br />

musgos de astros na janela do quarto.” Que atitude.<br />

A pessoa do lado de fora, voltando-se para<br />

dentro em busca de si mesma, de seu passado.<br />

Intrigantes as janelas. Os olhos são as janelas da<br />

alma, dizem. Simbolizam a consciência e a percepção<br />

individual do mundo. Quando se abrem<br />

as janelas, o ar e a luz da verdade entram com<br />

força, penetram pelos limiares e fronteiras. Janelas<br />

de vista estreita, como aquelas do templo de<br />

Jerusalém, edificado por Salomão.<br />

A palavra “janela” vem de “Jano”, o deus grecoromano<br />

de dois rostos, de duas portas. Janeiro é<br />

a porta do ano. Janelas, entradas e saídas enigmáticas,<br />

os prós e os contras. “Januella” é diminutivo<br />

de “janua”, “porta”. Sonho que sou Januária,<br />

louca castelã. Meu castelo tem muitas janelas,<br />

arcos, frestas, frinchas, claraboias, rosáceas<br />

circulares, de vidro colorido, por onde vejo o sol<br />

e as estrelas. Todas elas abrem e fecham, num<br />

jogo de lampejos, batentes e molduras. Delas<br />

faço contato com pátios internos e céus exteriores.<br />

Sou Januária, corro com os bolsos cheios de<br />

chaves que trancam e libertam os segredos das<br />

janelas.<br />

Também Chico Buarque compôs uma cantiga,<br />

no início de sua carreira, uma homenagem a Januária.<br />

Januária que madruga na janela da casinha<br />

à beira-mar, penteando os cabelos, indiferente<br />

aos homens que se encantam com sua beleza<br />

e graça, antes de partirem para o oceano<br />

com suas redes, entre promessas de pescas e<br />

tempestades. Vida e morte. Velas ao vento.<br />

65


<strong>Chicos</strong><br />

“Janela Indiscreta” é um filme de mistério, um<br />

dos melhores do Mestre do Terror, Alfred Hitchcock.<br />

Depois de quebrar uma perna fotografando<br />

um acidente numa corrida de carro, Jeff<br />

(James Stewart), um fotógrafo profissional, está<br />

confinado a uma cadeira de rodas em seu apartamento.<br />

Sua janela dos fundos dá para um pátio<br />

de onde observa com binóculo as janelas dos<br />

vizinhos. A namorada de Jeff, Lisa (a deslumbrante<br />

Grace Kelly) o visita regularmente. Uma<br />

noite, entre raios e trovões, Jeff ouve gritos e<br />

vidros quebrando. Percebe que a mulher desapareceu<br />

de seu campo de visão. Mais tarde, o marido<br />

limpa uma faca e um serrote. Fica então<br />

convencido de que testemunhara um assassinato.<br />

Um cão é encontrado morto no jardim. As<br />

pessoas debruçam-se em suas janelas para conferir<br />

o que está acontecendo, exceto o suposto<br />

assassino, que fuma silencioso um charuto na<br />

penumbra. Lisa coloca um bilhete de acusação<br />

sob a porta do homem. Entra no apartamento<br />

por uma janela aberta e é perseguida pelo assassino,<br />

que finalmente descobre Jeff na janela da<br />

frente. O assassino vai até o apartamento de Jeff<br />

e o empurra pela janela. Chegam os agentes da<br />

polícia, salvam Jeff e Lisa e prendem o assassino.<br />

Tudo volta ao normal. Emocionante, divertido,<br />

o filme traz à tona um aspecto sombrio do<br />

voyeurismo: o nosso desejo de que coisas terríveis<br />

aconteçam para as pessoas.<br />

Funciona como uma espécie de catarse. De libertação<br />

de nossos próprios fardos e tragédias.<br />

Somos nós mesmos nos expondo naquela janela<br />

indiscreta, espionando e examinando a vida dos<br />

outros. Afinal, quem se entrega às mórbidas curiosidades<br />

sofre as consequências.<br />

André Vicente Gonçalves, um fotógrafo português,<br />

criou o projeto “Janelas do Mundo”. Percorreu<br />

países como Itália, Romênia, Espanha,<br />

Holanda e Portugal fotografando janelas que<br />

contam a história da arquitetura das casas e das<br />

cidades, a estética, a alma dos lugares. Vi suas<br />

janelas por uma janela da internet.<br />

Lina, seus poemas são ricos e metafóricos. Exigem<br />

leitores concentrados. Pude ver você, reclinada<br />

na janela da fachada.<br />

66


Antônio Jaime<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Soares<br />

Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />

Participou de um dos movimentos culturais<br />

mais ativo dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />

Depois de morar um longo tempo no Rio de Janeiro,<br />

onde entre outras foi redator de publicidade.<br />

Retornou a Cataguases direto para a Vila.<br />

Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />

(crônicas - 2011)<br />

Minientrevista com Rosário Fusco<br />

No arquivo da prefeitura tem<br />

uma coleção da revista O Cruzeiro que<br />

pertenceu a Iracema Fonseca, doada por<br />

seu filho. Numa vista d’olhos, topei com<br />

esta entrevistinha, na seção “Arquivos Implacáveis”<br />

de João Condé, de 2 de maio<br />

de 1958.<br />

Š Cultua os inimigos?<br />

Não. Tenho até uma vaidade a contar<br />

com respeito à pergunta: quem me conhece<br />

acaba sempre meu amigo. Desculpe.<br />

Š Prefere conhecer pessoalmente Ângela<br />

Maria ou Bidu Sayão?<br />

Nenhuma das duas.<br />

Š Por que é que você bebe?<br />

Porque me sinto só na companhia humana<br />

(primeiro e principalmente). Mas<br />

quando eu descobrir, de verdade, o motivo,<br />

deixarei de beber... água.<br />

Š Considera-se vitorioso ou frustrado.<br />

Vitória ou frustração são pontos de vista<br />

alheios. Como estou vivo, faço coisas<br />

que os vivos fazem (umas às claras, outras<br />

às escondidas) e vou levando.<br />

Š É racista?<br />

Como eu poderia ser racista e de que<br />

jeito?<br />

Š Então permitiria o casamento de sua<br />

filha com um negro?<br />

Permitiria. E o meu genro não chega a<br />

ser um ariano.<br />

Š Cá entre nós: gosta mais de Bilac ou<br />

de Carlos Drummond?<br />

Carlos Drummond, que é o meu poeta<br />

nacional.<br />

Š Acredita que uma mulher possa se<br />

apaixonar por você?<br />

Não. Não pode, não pode, não poderá,<br />

de jeito nenhum, como dizem os mineiros.<br />

ŠJá chaleirou editor ou colunista para<br />

publicar notícias de seus livros?<br />

Não. Não censuro, porém, os que o<br />

fazem. Afinal, a glória passa mesmo e aspirar<br />

à futura é coisa de insanos. A vida é<br />

agora, aqui e já.<br />

Š Que mais deseja daqui por diante?<br />

Encher as minhas solidões. De repente,<br />

a gente descobre que não se liga a nada e<br />

a ninguém: mãe, pai, mulher, filhos, amigos.<br />

Então, começa a blasfemar. Deus está<br />

dormindo.<br />

67


Luiz Ruffato<br />

<strong>Chicos</strong><br />

Nasceu em Cataguases MG, reside em<br />

São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria<br />

destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />

de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido<br />

pela Associação Paulista de Críticos de Arte e<br />

o Prêmio Machado de Assis da Fundação<br />

Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou<br />

um escritor reconhecido no país. Em 2011<br />

concluiu o projeto Inferno Provisório, com a<br />

publicação do romance Domingos Sem Deus,<br />

iniciado com Mamma, son tanto Felice em<br />

2005, composto por cinco livros sobre o operariado<br />

brasileiro.<br />

Lendo os Clássicos<br />

Mary Barton (1848)<br />

Elizabeth Gaskell (1810-1865) - INGLATERRA<br />

Tradução: Julia Romeu<br />

Rio de Janeiro: Record, 2017, 462 páginas<br />

68


<strong>Chicos</strong><br />

Um dos primeiros - e, ainda hoje, dos poucos<br />

- romances a tratar com realismo a vida do<br />

proletariado. A Autora situa sua história em<br />

Manchester, no começo da década de 1840,<br />

cidade que abrigava uma forte indústria têxtil,<br />

num momento em que não havia nenhuma<br />

legislação trabalhista e, portanto, a exploração<br />

da mão de obra beirava à escravidão. O livro,<br />

na verdade, divide-se, quase esquizofrenicamente,<br />

em duas partes: a primeira, quando a<br />

narradora apresenta a vida de privações dos<br />

operários (fome, doenças, mortes, insalubridade)<br />

e o desespero da busca pela sobrevivência;<br />

a segunda, quando concentra-se no assassinato<br />

do filho de um dos empregadores, Mr. Carson,<br />

aparentemente provocado por uma crise<br />

de ciúmes do pretendente rejeitado da protagonista,<br />

que dá título ao romance. Mary Barton<br />

é uma jovem que aos dez anos perdeu a<br />

mãe e desde então mora com o pai, John Barton,<br />

um operário que, revoltado contra o que<br />

considera injusto - o paradoxo entre a vida de<br />

conforto dos patrões, enquanto os empregados<br />

morrem na indigência -, une-se a sindicalistas<br />

radicais, tornando-se "um cartista, um<br />

comunista, tudo aquilo que chamam de louco<br />

e de visionário" (p. 201). Viciado em ópio,<br />

Barton, aguda consciência operária - "(...) o<br />

trabalho é o nosso capital..." (p. 81), afirma -<br />

ajuda na organização de greves, promove a<br />

divulgação das ideias paredistas e participa até<br />

mesmo na trama de atentados contra os donos<br />

das indústrias. Na primeira parte, a situação de<br />

extrema pobreza da classe operária é retratada<br />

com profunda indignação pela narradora: "(...)<br />

quando ouço falar, como já ouvi, dos sofrimentos<br />

e das privações dos pobres: (...) dos<br />

pais que passavam a noite inteira, sete noites<br />

por semana, sentados diante do fogo com suas<br />

roupas de rua, de modo que a única cama e os<br />

únicos lençóis da família pudessem ser reservados<br />

para o uso de seus muitos filhos; de outros<br />

que dormiam na laje fria por semanas a<br />

fio, sem meios adequados de se suprir de comida<br />

e combustível (e isso no mais profundo<br />

inverno); de outros, sendo obrigados a jejuar<br />

por dias e dias, sem a esperança de tempos<br />

melhores para alegrá-los, vivendo, ou melhor,<br />

morrendo, num sótão apinhado ou num porão<br />

úmido, ou sendo gradualmente aniquilados<br />

pela penúria e pelo desespero que os levaria à<br />

morte prematura (...) - será que posso me espantar<br />

ao saber que muitos deles, em tal época<br />

de miséria e infelicidade, tenham falado e<br />

agido com precipitação feroz?" (p. 103). Na<br />

segunda parte, o romance torna-se quase um<br />

trílher de julgamento: acusado pelo assassinato<br />

de Henry Carson, James (Jem) Wilson é<br />

preso e levado ao tribunal, cuja sentença será<br />

a pena por enforcamento. Mas Mary, apaixonada<br />

por ele - e sabendo de sua inocência -<br />

consegue, após várias peripécias, obter o testemunho<br />

de William (Will) Wilson, que garante<br />

um álibi insofismável a Jem (eles estavam<br />

juntos na noite do assassinato, longe do cenário<br />

do crime). Mais à frente, John Barton confessa<br />

ser ele o criminoso - um assassinato político<br />

- e é perdoado por Mr. Carson, já que,<br />

conclui a narradora, "ricos e pobres, patrões e<br />

empregados, eram, portanto, irmãos em sofrimento"<br />

(p. 428). John Barton morre, Mr. Carson<br />

torna-se um patrão mais justo - "(...)<br />

quem tem qualquer força dada por Deus deve<br />

ajudar os mais fracos (...)" p. 451 -, Jem e<br />

Mary Barton se casam e se mudam para o Canadá,<br />

onde ele vai ser "fabricante de instrumentos<br />

da Faculdade de Agricultura" em Toronto.<br />

Se na primeira parte , o discurso da<br />

69


<strong>Chicos</strong><br />

narradora beira à subversão, na descrição das<br />

péssimas condições de vida dos operários -<br />

nos tempos de recessão, "as carruagens ainda<br />

atravessam as ruas, os concertos ainda ficam<br />

lotados, as lojas de artigos de luxo ainda têm<br />

clientes todos os dias, enquanto o operário<br />

passa os dias sem ofício observando essas coisas<br />

e pensando na esposa pálida que está em<br />

casa, sem reclamar, e nas crianças que choram,<br />

pedindo em vão por mais comida - na<br />

saúde que se esvai, na vida daqueles que mais<br />

ama se acabando" (p. 33); na segunda parte,<br />

ela ameniza as contradições e busca uma<br />

conciliação entre patrões e empregados via<br />

discurso religioso - os críticos da época afirmam<br />

que essa guinada se deu em função das<br />

pressões dos editores...<br />

Avaliação: MUITO BOM<br />

Curiosidades:<br />

A Autora - estamos no início da história do romance, ou seja, no período de sua consolidação - usa de<br />

um subterfúgio muito interessante (e simpático) para dar maior verossimilhança à narrativa: a ignorância.<br />

Em várias passagens do livro, a narradora confessa não saber determinadas coisas. Por exemplo, à<br />

pág. 286: "Mary tateou mais e encontrou algumas balas ou projéteis (não sei como se chamam) naquele<br />

mesmo bolso"... Ou, à pág. 316: "Mas pense em Mary e no que ela estava suportando! Imagine<br />

(pois eu não saberia descrever) os exércitos de pensamento que se chocavam em seu cérebro". Ou ainda,<br />

à pág. 340: "Charley explicou o que queria usando muitas gírias que foram incompreensíveis para<br />

Mary e que eu, uma grande fã de terra firme, não saberia repetir corretamente". Em outras passagens,<br />

ela se imiscui como Autora, como por exemplo, à pág. 299: "Muitas pessoas têm pânico desses pergaminhos.<br />

Eu sou uma delas. Mary era outra". Ou à pág. 313: "E se em seus sonhos (aquela terra onde a<br />

piedade e o amor de outra pessoa não podem penetrar, nem para compartilhar da felicidade, nem da<br />

angústia; aquela terra cujas cenas são horrores invisíveis, mistérios ocultos e tesouros inestimáveis reservados<br />

só para nós; aquela terra onde, sozinha, eu posso ver, enquanto permaneço neste mundo, o<br />

lindo rostinho do meu filho querido)". Ou ainda, à pág. 381: "Eu não estava presente, mas alguém que<br />

estava me disse que a melhor maneira de descrever a aparência de Mary era dizer que lembrava muito<br />

a pintura de Beatriz Cenci feita por Guido Reni".<br />

Entre aspas:<br />

"Mesmo entre os homens mais nobres, uma vez que o eu ganha uma existência proeminente, torna-se<br />

algo mesquinho e pequeno". (pág. 201)<br />

"É notório que não há religioso mais zeloso do que o convertido; e não há patrão mais rígido e indiferente<br />

aos interesses de seus trabalhadores do que aqueles que vieram eles próprios dessa classe". (pág.<br />

203)<br />

"(...) sentir ansiedade e tristeza pelo mesmo motivo faz as pessoas ficarem amigas mais depressa do<br />

que qualquer outra coisa (...)" (pág. 400)<br />

70


<strong>Chicos</strong><br />

Flausina Márcia<br />

Flausina Márcia da Silva poeta nascida em<br />

Cataguases e radicada em Belo Horizonte onde<br />

trabalhou na Secretaria de Cultura de Minas<br />

Gerais.<br />

Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua<br />

Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives<br />

(2014).<br />

Ler é bom demais<br />

SÓ PARA MAIORES DE CEM ANOS,<br />

livro antologia (anti)poética do Nicanor Parra,<br />

com seleção e tradução de Joana Barossi e Cide<br />

Piquet, publicado, em edição bilíngue, pela Editora<br />

34, é precioso. Aproxima-nos da extensa<br />

obra desse poeta, que revolucionou a poesia<br />

chilena e latino-americana, em 1954, com a<br />

publicação de Poemas e antipoemas.<br />

Escolho o poema “Discurso do bom ladrão”<br />

para dizer que o poeta é, antes de tudo, um sábio.<br />

Sabemos quem é o bom ladrão, é aquele<br />

ao lado crucificado de Cristo. Pois bem, o Discurso,<br />

que, infelizmente, não podemos reproduzir<br />

aqui, pois não somos bons nem maus ladrões<br />

de direitos autorais, é uma súplica ao ascendente<br />

rei, pela nomeação a um cargo do<br />

reino. Foi publicado em 1969, ora vejam.<br />

E, se não der para diretor do zoológico, Glória<br />

ao Pai, nem embaixador em qualquer parte,<br />

Glória ao Filho, que seja diretor do cemitério,<br />

Glória ao Espírito Santo. Resumir assim é quase<br />

um pecado, perdoem-me. No entanto, Parra<br />

mesmo dizia que os poetas baixaram do Olimpo,<br />

se fazem de tonto e dizem uma coisa por<br />

outra.<br />

Mas não em “Defesa de Violeta Parra”, aí é<br />

Violeta Piedosa, a Viola Admirável, Dolente,<br />

Chilensis, Vulcânica, Funebris, Irmãzinha.<br />

“Ergue-te de corpo e alma do sepulcro<br />

E faz estalar as pedras com tua voz<br />

Violeta Parra”<br />

De volta ao ponto sabedoria, o poema<br />

“Solilóquio do Indivíduo”, me fez pensar em<br />

ciência, filosofia e no direito desse homem dizer<br />

que a vida não tem sentido, mesmo tendo<br />

alcançado mais de cem anos dela, com tudo<br />

sentido e sabiamente poesificado.<br />

Nicanor Parra nasceu no Chile, em 5 de setembro<br />

de 1914 e faleceu no dia 23 de janeiro de<br />

2018. Cursou matemática e física no Instituo<br />

Pedagógico da Universidade do Chile e mecânica<br />

avançada na pós-graduação da Universidade<br />

Brown, nos Estados Unidos. A partir de 1945,<br />

passa a lecionar na Universidade do Chile.<br />

Nota dos editores: No início do verão de<br />

2017, na edição 51 de 22/12/2017. Nicanor<br />

Parra foi o nosso poeta da Primeira Página.<br />

71


<strong>Chicos</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,<br />

de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília<br />

de Produção Literária 2001), O sol nas feridas<br />

(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom<br />

2012) e Eles não moram mais aqui<br />

(Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive atualmente<br />

em Portugal.<br />

O corpo como reverberação do eu lírico<br />

Ao adentrar os poemas de “A pedra e o<br />

corpo” (Poética Edições, Braga, 2018), de Gisela<br />

Ramos Rosa, logo de início vem-me à lembrança<br />

o estudo de Jorge Schutze intitulado<br />

“Corpo e Poesia”, no qual ele indaga: “O que o<br />

corpo quer, então da poesia?” Tal provocação<br />

parece-nos concernente com o corpus poético<br />

da autora nesse novo livro, por guardar intensa<br />

analogia não apenas com essa safra recente,<br />

mas de todo o seu percurso. É que a poeta, em<br />

sua lírica, está a nos indicar justamente as preocupações<br />

de sua arte enquanto instância na qual<br />

reverberam a própria subjetividade como corporificação<br />

do poema, pois ela nos diz, como sinalização<br />

de sua gênese criativa que<br />

“Escrevemos com o corpo<br />

toda a vida.”<br />

Ora, aqui já se situa o plano definidor de uma<br />

poética voltada para os sentidos, para a captação<br />

do que aos olhos da autora tem em relação<br />

ao que antecede às expansões do espírito: vem<br />

reconhecer que subsiste ao sensorial um corpus<br />

(seja o pessoal, seja o literário) como “campo<br />

de memórias e fronteiras” onde lança a semeadura<br />

de uma palavra que é, em suma, a tentativa<br />

de expressar a subjetividade e a realidade<br />

num território de múltiplas reverberações.<br />

Esse corpo também é pedra, entidade bruta que<br />

reclama desbastar arestas, aqui bem entendido<br />

como espaço de metamorfoses, pedra de toque<br />

de um intenso escandir de emoções e pulsações<br />

do inconsciente. É uma aposta da autora na<br />

possibilidade de exprimir o legado de uma íntima<br />

reflexão sobre tudo que a cerca, quando a<br />

sua poesia capta a distopia de um tempo de<br />

profundas transformações e rege-se pelos signos<br />

da perplexidade ao relatar o seu modo de ver o<br />

mundo, de sentir as coisas, de relacionar-se com<br />

elas e de sofrer com e por elas.<br />

Entende que “a escrita fixa a ideia de narração<br />

do mundo” enquanto “o corpo expressa articulando<br />

o espaço o contraste o contexto.” Na sua<br />

poesia, é inegável uma articulação com a diversidade<br />

que compõe a experiência existencial e<br />

no corpo de cada poema reside essa preocupação<br />

de registrar e interpretar os espasmos de<br />

sentimentos que nem, sempre são possíveis de<br />

apreender em sua carga de subjetividade. No<br />

arcabouço do poema “ A existência cede<br />

72


<strong>Chicos</strong><br />

perante os signos quando aos olhos ver é percepção”,<br />

afirma Gisela, porque sabe que no cerne<br />

de sua escritura convém deixar falar esse<br />

“corpo que olha/ e reencontra o oculto no real”,<br />

porque no furacão de uma contemporaneidade<br />

fraturada e que vive um veloz escalonamento de<br />

valores e signos, escrever poeticamente para tentar<br />

entender o mundo é colocar o sujeito-corpo<br />

como possibilidade de representação de nosso<br />

desconforto.<br />

Gisela em “A pedra e o corpo” parece sinalizar o<br />

que já pressentia Bergson em “Matéria e memória”,<br />

para quem “nosso presente é antes de tudo<br />

o passado de nosso corpo” e “o passado é o<br />

que não age mais, mas poderia agir’, eis que no<br />

entretempo de sua poesia há todos os tempos de<br />

uma vida. Nesse trânsito entre o que vivemos e o<br />

que será, sobre nossas experiências passadas e o<br />

insondável futuro, por outro lado a autora reconhece<br />

que “Somos rasura e consciência/ pedra<br />

em construção” e no seu processo de elaboração<br />

formal e conceitual há um permanente sentido<br />

de devir. Esse exercício poético postula sempre o<br />

polimento de um material subjetivo, esse artefato<br />

de que somos feitos ou de que é feita a própria<br />

poesia, esta necessitando do estilete do artista<br />

para sua conformação como espelho do espírito<br />

aguçado do poeta, este que busca nas suas<br />

raízes (origem, memória, história, afetos, vivências)<br />

pauta permanente de reflexão.<br />

Tanto o corpo quanto a poesia trazem em si o<br />

reflexo de suas ambiguidades, mas a poesia recorre<br />

aos seus recursos metafóricos, semânticos<br />

ou sintáticos para decodificá-las e a poesia de<br />

Gisela persegue esse pathos, abolindo toda a<br />

tendência cartesiana e buscar um sentido que<br />

transcenda a percepção rigorosamente objetiva<br />

das coisas, pois nos revela em “A palavra instaura”<br />

que “Despimos as coisas com palavras/ para<br />

formar um corpo de ideias/ e à semelhança desse<br />

acto ressurge/ um outro a revestir os mesmos<br />

objectos com/ a escrita num círculo que fecha a<br />

extensão.!<br />

Não se trata de hierarquizar o corpo ou o poema,<br />

a precedência de um em relação ao outro,<br />

mas consentir que se o espírito como entidade<br />

pensante se manifesta com tamanha autenticidade,<br />

o corpo também é uma máquina de gerar<br />

sentidos, numa relação simbiótica, mas não de<br />

conflito, entre razão e emoção, o corpo como<br />

extensão do ser, sendo a linguagem amálgama<br />

dessa natureza criadora ou demiúrgica.<br />

Vale destacar na poesia de Gisela o amplo terreno<br />

de suas referências estéticas, pois a autora<br />

dialoga com seus pares, seja flertando nas epígrafes,<br />

que oferecem inegável ponte temática<br />

com sua palavra, seja nas homenagens presentes<br />

nas dedicatórias aos colegas de ofício. Ainda em<br />

seus versos, se de um lado encontramos pouco<br />

de de uma inflexão romântica, por outro lado<br />

não podemos descartar uma presença lírica, mas<br />

em outro viés, onde vale-se da sutileza estilística<br />

para revolver sentimentos, sem derramamentos<br />

ou exacerbações; mas nesse particular caminha<br />

no sentido mais de instaurar um olhar mais reflexivo<br />

ou filosófico sobre essas questões íntimas.<br />

Outro considerar em sua artesania, é que a<br />

autora consegue embutir em toda sua narrativa<br />

alguns laivos de delicada ironia, como se percebe<br />

nesse em “Provocação”:<br />

Atravessamos o abismo da página em branco<br />

compondo manchas com as mãos<br />

libertamos o barro maleável em ciente transgressão<br />

longe dos sinónimos homónimos antónimos parónimos<br />

numa leve formação desafiamos o inaudito esboço<br />

o risco desalinhado que provoca a palavra alta<br />

a mais vazia a que inaugura o espaço e as mãos<br />

desabrigando o sentido da composição<br />

Quando assevera - “Levei muitos anos a tecer o<br />

texto/ não o tempo/ juntei os fragmentos de rocha/<br />

e rolei rolei/ até conseguir erguer o corpo/<br />

opresso” - Gisela sinaliza que sua poesia é caudatária<br />

daquela mesma consciência com que Nietsche<br />

referiu-se filosoficamente ao corpo como<br />

estágio na construção de sua obra. Diz ele: “O<br />

que chamamos “corpo” e “carne” tem muito<br />

mais importância: o resto é um pequeno acessório.<br />

Continuar a tecer a tela da vida, de maneira<br />

que o fio torne-se cada vez mais potente, eis a<br />

tarefa”.<br />

73


<strong>Chicos</strong><br />

Essa tarefa levada a bom na escrita de “A pedra<br />

e o corpo” leva em consideração que o corpo é<br />

um campo de pulsões e pulsações, ele emula as<br />

contrações (e contradições) do próprio inconsciente,<br />

das quais se apropria o corpo flexível da<br />

palavra poética a reafirmar a visão crítica da autora,<br />

o ricochete de seus pensamentos, os significados<br />

dos sofrimento ou das inquietações quotidianas,<br />

e disso tudo a comunicação de uma linguagem<br />

que transita entre o real e o onírico para<br />

expressão ou cristalização de novos sentidos.<br />

O corpo como instrumento que nos (re|)liga ao<br />

mundo passa a ser, na poesia de Gisela, o próprio<br />

mundo, a pedra de toque de uma aguda mirada,<br />

espaço inclusive para o enfrentamento ou<br />

as transgressões que são imanente à própria literatura,<br />

quando atribuímos função ou apenas lhe<br />

antevemos seus mistérios ou o vemos como esfinge.<br />

A autora não destoa desse sentido, se não<br />

de todo explícito, mas insinuado, quando canta:<br />

“Atribuímos numerosos mistérios ao corpo/ os<br />

braços que se estendem sem retorno/ as mãos<br />

inigualáveis a abrir-se em dádiva/ ou em castigo/<br />

modelando a vida/ os dedos a apontar sem saber<br />

ao certo/ no rosto a imagem de deus a boca a<br />

fala a criação/ nos olhos a luz a forma em cruz e<br />

a matéria/ ao corpo foi dada a coincidência perfeita<br />

a indizível/ concepção dos genes em invisível<br />

mutação/ na corrente da vida os ciclos ascendem<br />

num sentimento/ que atravessa a dor o<br />

enigma a paixão.”<br />

Se em “O visível e o invisível” Merleau-Ponty<br />

considerou que “É através da carne do mundo<br />

que se pode, enfim, compreender o próprio corpo”,<br />

a poeta Gisela Ramos Rosa ao tomar o corpo<br />

como repositório de seu sentimento poético<br />

(e também de tensões) e nele refletir sobre todas<br />

os nossos dilemas e paradoxos, através do<br />

qual o mundo se manifesta em toda sua prioridade,<br />

beleza e extensão, assevera, sem nenhuma<br />

discrepância e também como forma de identificar<br />

o seu ato criativo a um corpo íntimo que a<br />

sustenta: “O meu corpo é uma concha/ que se<br />

abre quando o mar revolve./ Longe das figuras<br />

exaltas só a areia/ permanece incólume ondulando<br />

entre/ o que a superfície tersa dos espelhos/<br />

me devolve e o que sou./ Não me venham dizer<br />

a que espécie/ pertenço, sou semelhante que se<br />

abre/ à raiz da palavra instalada na derme/ e no<br />

ser.”<br />

Entre o corpo e a pedra, a palavra instaura o ser<br />

giseliano e sua arte propõe uma leitura do mundo<br />

e do homem a partir de uma estreita interação<br />

entre corpo e poesia, essa arquitetura tão<br />

íntima quanto objetiva que consiste num sonoro,<br />

harmônico, melódico e sofisticado corpo vivo,<br />

do qual emanam sensações e emoções em rara<br />

epifania. É também sua praxis sofisticada, por<br />

meio da qual sutilmente questiona a nossa própria<br />

humanidade<br />

74


<strong>Chicos</strong><br />

Emerson Teixeira<br />

Cardoso<br />

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />

(2001) poesia, coautor de A casa da Rua<br />

Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O<br />

retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre<br />

ativo em publicações literárias. Iniciou-se em<br />

Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador<br />

do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />

O imaginário adolescente<br />

O advento, ou o veloz desenvolvimento<br />

das mídias audiovisuais podem ser, talvez, a<br />

causa do gradual desinteresse dos jovens pelos livros.<br />

Focados exclusivamente , ou por outra, adeptos<br />

incondicionalmente das novidades eletrônicas: internet,<br />

tabletes, smarthpones e quejandos, acabam<br />

se distanciando cada dia mais da leitura de bons ,<br />

instrumentos essenciais ao seu desenvolvimento<br />

intelectual e escolar.<br />

Carlos Drummond de Andrade alertou:<br />

“A leitura é fonte de prazer inesgotável, então porque<br />

a quase totalidade não sente esta sede?”<br />

Jorge Luiz Borges o secundou:<br />

“Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie<br />

de biblioteca.”<br />

E finalmente Kafka, foi ainda mais contundente:<br />

“Um livro deve ser o machado que quebra o mar<br />

gelado em nós.”<br />

Provavelmente inspirado no que nos diziam estes<br />

mestres acostumei-me com a companhia dos<br />

livros; coincidência ou não hoje trabalho em duas<br />

bibliotecas.<br />

Enfim, desconfio que vim ao mundo com um<br />

defeito de fabricação: não passo um dia sem ler.<br />

Muitos adolescentes que já estão na idade adulta -<br />

entre os quais me incluo - trazem bem vivos e vívidos<br />

na memória aqueles primeiros livros da juventude:<br />

Os chamados romances da Aventura. São<br />

histórias que queriam exaltar valores indispensáveis<br />

à formação moral e espiritual do indivíduo. Entre<br />

outros valores, a coragem, o amor, a amizade, a<br />

honra e o respeito antes de tudo à tudo que deve<br />

ser louvado e exaltado na vida e no ser humano.<br />

Romances tais como: O Conde de Monte Cristo;<br />

Os Irmão Corsos; Os Três Mosqueteiros de Alexandre<br />

Dumas pai: Moby Dick e Viagens de Gulliver<br />

de Herman Melville e Jonathan Swift, pela ordem.<br />

Estes livros deveriam, como realmente costumavam<br />

ser, lidos na idade escolar.<br />

Mas ao contrário do que se poderia esperar, hoje<br />

são relegados à solidão das estantes e realmente<br />

distantes de mãos “curiosas” ou “carinhosas” onde<br />

deveriam estar.<br />

O papel da escola, agora, (e mais do que nunca)<br />

em razão do exagerado apego desses jovens as alienantes<br />

opções audiovisuais, não seria estimulá-los<br />

com mais assistência à pratica da leitura?<br />

E aqueles que dizem que o jovem de hoje não<br />

gosta mesmo de ler eu respondo: gosto também se<br />

aprende.<br />

E o caminho mais fácil ainda pode ser o imaginário<br />

adolescente.<br />

“O bendito o que semeia livros,<br />

E faça o povo pensar<br />

livros a mão cheia.”<br />

75


<strong>Chicos</strong><br />

Jeová Santana<br />

Nasceu em Maruim, Sergipe, em 1961. É<br />

graduado em Letras pela Universidade Federal<br />

de Sergipe, mestre em Teoria Literária pela<br />

Universidade Estadual de Campinas, doutor em<br />

Educação: História, Política, Sociedade: Educação<br />

e Ciências Sociais, pela Pontifícia Universidade<br />

Católica de São Paulo. Publicou Dentro da<br />

casca (1993), A ossatura (2002), Inventário de<br />

ranhuras (2006) e poemas passageiros (2011))<br />

Por que ler Campos de Carvalho<br />

Resolvo dar uma trégua, mínima, nos<br />

desdobramentos da ópera-bufa que vem de Brasília,<br />

capitaneada por um Segismundo tropical,<br />

que faz uma reescrita fajuta da peça A vida é<br />

sonho (1635), de Calderon de la Barca (1600-<br />

1681). Como consolo, para seus quatro anos de<br />

fama/lama não houve o beneplácito do meu voto.<br />

Assim, apresento aos amigos e amigas, tanto<br />

os de carne, osso e sapatos quanto aos deste<br />

mundo virtual, esta pequena apreciação sobre<br />

Campos de Carvalho (1916-1998).<br />

Trata-se de um escritor, mineiro de Uberaba, que<br />

se filia à vertente da “descoberta ainda que tardia”<br />

tal como Hilda Hilst (1930-2004) e Manoel<br />

de Barros (1916-2014); deixou uma produção<br />

um pouco maior que a de Raduan Nassar (1935-<br />

); e, tal como Lygia Fagundes Telles (1923-), renegou<br />

os seus dois primeiros livros. Ela, Porão e<br />

sobrado (1938) e Praia viva (1944); ele, Banda<br />

forra (1941) e Tribo (1954).<br />

Na cômoda prateleira dos conceitos da teoria<br />

literária, o legado de Campos de Carvalho aparece<br />

sob o selo do surrealismo, do realismo fantástico<br />

e quejandos. É um caminho, mas acredito<br />

que o humor e o escrever bem devam fisgar, primeiro,<br />

o leitor menos afeito a estes<br />

“;determinismos”.<br />

Depois de toneladas de silêncio, pois ele parou a<br />

parte ficcional em 1964 e só voltou à tona com<br />

algumas crônicas para O Pasquim, em 1972, sua<br />

pequena mas densa produção veio a lume em<br />

Obra reunida, pela José Olympio, em 1995. A<br />

editora também relançou os volumes avulsos.<br />

Mais recentemente, em 2016, a Autêntica entrou<br />

no rol das homenagens e timbrou os 60 anos de<br />

publicação do primeiro livro do autor, A lua não<br />

vem da Ásia, escrito em 19<strong>56</strong>.<br />

Assim, deixo aqui estes recortes a quem interessar<br />

possa:<br />

1. “Aos dezesseis anos matei meu professor de<br />

Lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa<br />

seria mais legítima? –, logrei ser absolvido<br />

por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma<br />

ponte do Sena, embora nunca tenha estado em<br />

Paris.” (A lua não vem da Ásia. Autêntica, 2016,<br />

p.23);<br />

76


2."Onde o senhor dorme? No Hotel Terminus.<br />

Mas aqui não há nenhum Hotel Terminus.<br />

É o que senhor pensa.<br />

Passava das onze, chovia; imperceptivelmente<br />

fomos caminhando até o portão do cemitério.<br />

Aqui fico – disse-me, estendendo-me a<br />

mão fria: Boa noite!" (Vaca de nariz sutil.<br />

José Olympio, 2008, p. 11);<br />

3. "Foi então que me vi numa gare extremamente<br />

vazia. Tão vazia que nem a minha<br />

sombra se refletia nela. Alguém, uma voz,<br />

me sussurrou ao ouvido: CAFARNAUM." (A<br />

chuva imóvel. José Olympio, 2008, p. 11);<br />

4. "Se a Bulgária existe, então a cidade de<br />

Sófia terá que fatalmente existir. Este o único<br />

ponto no qual parecem assentir os que negam<br />

e os que defendem intransigentemente<br />

a existência daquele amorável país, desde os<br />

tempos antediluvianos até os dias prédiluvianos<br />

de hoje." (O púcaro búlgaro. José<br />

Olympio, 2008, p.9);<br />

5. "[sem data]<br />

Meu caro.<br />

Se você pretende viajar de navio para a Europa,<br />

compre hoje mesmo sua passagem de<br />

avião e agarre-se a ela com unhas e dentes.<br />

O avião ainda é o meio de transporte mais<br />

rápido, sobretudo, se está caindo – o que<br />

maior conforto oferece, sobretudo à família."<br />

(Cartas de viagem e outras crônicas. José<br />

Olympio, 2012, p. 17);<br />

6. "Londres, dezembro de 1972.<br />

Minha cara.<br />

Preciso urgentemente voltar para o Brasil:<br />

ainda ontem eu quis dizer vitela e disse vaca<br />

moça. A tal história: você fica seis meses ouvindo<br />

italiano, português, espanhol, francês,<br />

<strong>Chicos</strong><br />

inglês, japonês, árabe (o que mais se ouve<br />

por aqui) e acaba esquecendo a própria língua.<br />

Vaca moça – até que a expressão é gentil."<br />

(Cartas de viagem e outras crônicas. José<br />

Olympio, 2012, p. 23).<br />

7."Londres, novembro de 1972.<br />

Meu caro.<br />

O frio aqui é tanto que os jardins públicos<br />

não têm nem bancos: só um louco varrido<br />

pensaria em sentar-se numa pedra de gelo.<br />

(Por falar nisso, o seu traseiro aqui fica congelado<br />

de qualquer jeito, e antes de ir ao banheiro<br />

você tem que esquentá-lo junto à lareira<br />

no mínimo uns três minutos – senão<br />

não sai nem vento.) (Cartas de viagem e outras<br />

crônicas. José Olympio, 2012, p. 31);<br />

8. "Paris, outubro de 1972.<br />

Meu caro.<br />

O sujeito mais rápido do mundo não é o<br />

campeão olímpico dos cem metros rasos: é o<br />

francês de qualquer sexo, cor, idade. Você<br />

entra com um francês de 80 anos numa mercearia<br />

– você pensa em comprar uma lata de<br />

sardinhas, ele para comprar ovos, pão, presunto,<br />

queijo, açúcar, leite, salsicha, alface,<br />

maionese, rapadura (rapadura não). Enquanto<br />

o dono embrulha a sua lata de sardinha, o<br />

francês já chegou em casa, já comeu, já tirou<br />

a sesta, já arrotou e p... dez vezes e ainda<br />

encontrou um tempo de chegar à janela para<br />

ver você voltando do armazém." (Cartas de<br />

viagem e outras crônicas. José Olympio,<br />

2012, p. 49).<br />

Por enquanto é sol.<br />

Maceió, 15.2.2019.<br />

77


<strong>Chicos</strong><br />

Clips<br />

revela aos olhos do mundo. São suas personagens<br />

tão vivas, que hoje saí à procura de Tia Zazá,<br />

de Serafi m e de Dona Maria, pelas ruas silenciosas<br />

da minha infância. Tão bom seria vêlos,<br />

encantados, à sombra de uma pitangueira.<br />

E, íntimos, trazê-los ao meu quintal medido com<br />

alqueires de nuvens e oceano.<br />

Salve, poeta, tuas letras de homem menino,<br />

misto de morte e de manhã!<br />

Prof. Dr. André Luiz Rosa Ribeiro<br />

Presidente da Academia de Letras de Ilhéus – ALI<br />

Um quintal e outros cantos<br />

Editus, 2018<br />

O poeta soteropolitano Natan Barreto, atualmente<br />

radicado em Londres, nos oferece um<br />

livro, Um Quintal e Outros Cantos, cujo conteúdo<br />

nos remete às suas memórias, reais ou imaginadas:<br />

as telhas da casa eram velhas. Tantos<br />

dentes de leite jogamos ali: Mourão, Mourão,<br />

toma teu dente podre e me dá meu são. Memórias<br />

tão suas, mas também tão possíveis de tornarem-se<br />

daqueles que palmilharem as suas páginas<br />

feitas da matéria-tempo, já que são tantos<br />

os ontens no ar. Também nasci em 1966,<br />

menino de tantos quintais do tempo. Tempo<br />

que tece em nós tantos retalhos, talha momentos,<br />

que depois ecoa, esculpe culpas, que em<br />

silêncio soa – mistura em nossa mente os seus<br />

atalhos.<br />

Natan Barreto representa, em muitos sentidos, a<br />

poesia baiana contemporânea, tão rica em sua<br />

diversidade. Literatura que é parte fundamental<br />

do nosso patrimônio cultural, que nos traduz e<br />

Os rios de mim<br />

Editora Urutau<br />

formato: 14 x 19,5<br />

páginas: 94<br />

ano de edição: 2018<br />

Já a venda no site:<br />

http://editoraurutau.com.br/titulo/os-rios-de-mim<br />

78


<strong>Chicos</strong><br />

Os Crimes do Buraco da Fechadura<br />

Mar de Rosas<br />

Na melhor tradição da comédia negra policial,<br />

num tom muito british e hitchcokiano, Rusty<br />

Brown envolve-nos em mais um caso de crimes<br />

e mistério em que a farsa se combina magistralmente<br />

com uma crítica mordaz a uma sociedade<br />

social e politicamente doente que se vai<br />

afundando num mar de vícios, corrupção e venalidades.<br />

Aqui, Lisboa aparece-nos pintada,<br />

não com as cores vistosas de um postal para turistas,<br />

mas antes com os tons desbotados e sombrios<br />

de uma cidade degradada pela licenciosidade<br />

mal escondida e pela violência e criminalidade<br />

crescente, à espreita onde menos se espera<br />

e sob as formas mais perversas e inusitadas. A<br />

verve, rica numa linguagem metafórica de todo<br />

ade-quada às personagens e aos ambientes onde<br />

elas se movem, bem como o humor cáustico e<br />

irreverente de Rusty Brown, explodem neste livro<br />

como uma bomba de forte efeito crítico cujos<br />

fragmentos atingem e não poupam nenhum<br />

dos sectores da nossa sociedade e as deformações<br />

de que ela é objecto por parte de quem a<br />

distorce e manipula.<br />

“Mar de rosas”, que expressão maravilhosa,<br />

contraditória em si mesma. Mar, oceano,<br />

massa líquida que circunda nossos continentes<br />

interiores, abismos onde lutamos contra ondas<br />

de dificuldades e inquietações. Rosas símbolos<br />

de perfeição, pedaços de carnes e coração, vermelhas,<br />

sensuais, destilando gotas de mistério e<br />

paixão. Mar de rosas é tormento, renascimento,<br />

segredos de vida e morte, de união e separação.<br />

Utilizamos “mar de rosas” para indicar uma situação<br />

sem adversidades, sem aflições. Realidade<br />

que não se sustenta em nossa navegação pelos<br />

mares bravios da existência.<br />

79


<strong>Chicos</strong><br />

Paredes abertas ao céu<br />

“Neste livro, Inez Andrade Paes oferece-nos a<br />

evocação e a homenagem melhor que uma filha<br />

pode registrar como memória de seus pais. É um<br />

livro de poemas onde encontramos a voz magoada<br />

e saudosa de uma herdeira que ostenta a<br />

herança recebida ao mesmo tempo que nos faz<br />

chegar à alma a lembrança de outra voz que<br />

bem conhecemos: a de Glória de Sant’Anna.<br />

...<br />

O leitor vê surgir diante de si um mundo em que<br />

se apagam receios e dúvidas para deixar espaço<br />

ao que é belo e simples. Uma poesia feita de<br />

apelo à constância dos sentimentos e ao culto da<br />

memória.”<br />

Fernanda Angius<br />

O novo romance de Luiz Ruffato<br />

O verão tardio, sexto romance de Luiz Ruffato,<br />

é uma história de inadequação. Depois de mais<br />

de vinte anos, Oséias, um homem abandonado<br />

por mulher e filho, decide regressar a sua cidade<br />

-natal, Cataguases, em Minas Gerais. Durante<br />

seis dias, seguimos passo a passo suas andanças,<br />

visitas a familiares, encontros com velhos personagens<br />

locais. A sombra do suicídio de uma de<br />

suas irmãs, Lígia, e a comunicação falha com<br />

praticamente todos a sua volta acompanham suas<br />

tentativas de reatar os fios do passado. Em<br />

meio a um Brasil que parece ir do projeto à ruína<br />

a todo momento, O verão tardio propõe uma<br />

reflexão sobre uma sociedade em que as classes<br />

sociais romperam completamente o diálogo e,<br />

como afirma um de seus personagens, se tornaram<br />

“planetas errantes” prontos para entrarem<br />

em rota de colisão e se destruírem."<br />

Nas livrarias a partir de 22 de abril.<br />

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