Chicos 56 - 20.03.2019
Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. Neste número, a poeta da primeira página é Maria do Carmo Ferreira. Inédita em livro, a irmã de Celina Ferreira tem sua poesia espalhada pela internet e em publicações das mais variadas. Além de homenageá-la, oferecemos a vocês um pouco da obra dela dispersa por aí.
Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições.
Neste número, a poeta da primeira página é Maria do Carmo Ferreira. Inédita em livro, a irmã de Celina Ferreira tem sua poesia espalhada pela internet e em publicações das mais variadas. Além de homenageá-la, oferecemos a vocês um pouco da obra dela dispersa por aí.
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Nº <strong>56</strong><br />
20 de março de 2019<br />
e-zine de literatura e ideias de<br />
Cataguases – MG<br />
Um dedo de prosa<br />
Esta é a nossa edição <strong>56</strong><br />
<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.<br />
Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar<br />
nossas edições ou visite-nos nos links listados nesta<br />
página.<br />
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a<br />
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno<br />
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,<br />
uma diversidade temática.<br />
Neste número, a poeta da primeira página é Maria do<br />
Carmo Ferreira. Inédita em livro, a irmã de Celina Ferreira<br />
tem sua poesia espalhada pela internet e em publicações<br />
das mais variadas. Além de homenageá-la, oferecemos<br />
a vocês um pouco da obra dela dispersa por aí.<br />
Continuando o mapeamento da poesia portuguesa contemporânea,<br />
com prazer compartilhamos alguns poemas<br />
de Sophia de Mello Breiyner Andresen a primeira mulher<br />
a receber o importante Prêmio Camões.<br />
Neste número de início de outono, Antônio Torres nos<br />
fala do Porto, numa história que começa na Regaleira<br />
que infelizmente algumas notícias recentes nos dão<br />
conta que fechou suas portas em definitivo.<br />
Capa: Foto Vicente Costa<br />
Editores:<br />
Emerson Teixeira Cardoso<br />
José Antonio Pereira<br />
Uma agradável leitura para todos! E até o início do inverno<br />
Os <strong>Chicos</strong><br />
Colaboradores:<br />
Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />
Fotografia - Vicente Costa<br />
Ilustrações - Altamir Soares e Merson<br />
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com<br />
Visite-nos em:<br />
https://independent.academia.edu/<strong>Chicos</strong>Cataletras<br />
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras<br />
http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />
01
<strong>Chicos</strong><br />
03 MARIA DO CARMO<br />
FERREIRA<br />
Um corpo e seus cognatos + 8<br />
poemas<br />
14 RONALDO WERNECK<br />
O enigma Maria do Carmo/<br />
Carminha Ferreira<br />
33 INEZ ANDRADE PAES<br />
sobre a água<br />
dentro dela<br />
anda uma ponte<br />
35 GISELA GRACIAS<br />
RAMOS ROSA<br />
Entre a pedra e o corpo...<br />
36 ACIR SIMÕES<br />
Essa dor + 2 poemas<br />
39 SOPHIA DE MELO<br />
BREIYNER ANDRESEN<br />
Inscrição + 12 poemas<br />
50 RONALDO BRITO<br />
ROQUE<br />
O preço do clone<br />
52 ANTÔNIO TORRES<br />
O Porto bebido e revivido<br />
59 JOSÉ VECCHI DE<br />
CARVALHO<br />
O chapéu do falecido<br />
62 ANDRESSA<br />
BARICHELLO<br />
Praça dos Touros<br />
63 JOSÉ ANTONIO<br />
PEREIRA<br />
Regra três de juiz<br />
65 RACHEL NAVEIRA<br />
Janelas do mundo<br />
67 ANTÔNIO JAIME<br />
Minientrevista com Rosário<br />
Fusco<br />
SOARES<br />
68 LUIZ RUFFATO<br />
Lendo os clássicos: Mary Barton<br />
71 FLAUZINA MÁRCIA<br />
Ler é bom demais<br />
72 RONALDO CAGIANO<br />
O corpo como reverberação do<br />
eu lírico<br />
75 EMERSON TEIXEIRA<br />
O imaginário adolescente<br />
CARDOSO<br />
76 JEOVÁ SANTANA<br />
Por que ler Campos de Carvalho<br />
78 CLIPS<br />
Outros papos ...<br />
02
<strong>Chicos</strong><br />
Maria do Carmo<br />
Ferreira<br />
Maria do Carmo Ferreira nasceu em Cataguases<br />
(MG), em 21 de dezembro de 1938. Ela<br />
viveu no Rio de Janeiro (RJ) por algumas décadas<br />
e, finalmente, mudou-se para Niterói (RJ),<br />
onde vive. Embora tenha publicado poemas em<br />
jornais, suplementos e revistas literárias desde a<br />
década de 1960 (pelo menos 50 poemas publicados<br />
no Suplemento Literário de Minas Gerais),<br />
ainda é inédita em livro. Traduziu poemas<br />
de Emily Dickinson, Lorca, Neruda, Alfonsina<br />
Storni, Mallarmé, Verlaine, Paul Eluard, Jacques<br />
Prevert, Yeats, Corbière e Laforgue. Aposentou-se<br />
na Rádio MEC, onde trabalhou por<br />
mais de 30 anos como criadora, tradutora, editora,<br />
produtora e coordenadora de programas<br />
literários e lítero-musicais.<br />
Auto-retrato<br />
Nasci no rame-rame das abóboras.<br />
Meu plano é horizontal. Vivo de cócoras.<br />
Se me ergo, me espatifo. A gravidade<br />
colou meu ser ao chão: cresço à vontade.<br />
A crosta é dura. No corpo volumoso<br />
a polpa é só fartura e paga o esforço<br />
de rastejar como uma tartaruga<br />
e refletir ao sol minha armadura.<br />
Uma fome objetiva me devora<br />
como a dos porcos que não comem pérolas<br />
ou a dos pobres que não comem porcos.<br />
Com ou sem sal, metáfora ou pletora<br />
viro alimento no momento justo.<br />
Ao fogo brando e lento mais me aguço.<br />
Não sinto a tentação das ramas altas:<br />
maracujá, chuchu, nada me exalta.<br />
Nem mesmo a solidão das uvas verdes<br />
quando o desdém dos homens as prescreve.<br />
No ventre universal ocupo um espaço.<br />
A vida faz-se em mim. Vegeto, e passo.<br />
03
<strong>Chicos</strong><br />
Um corpo e seus cognatos<br />
O corpo dela era um jardim fechado,<br />
fonte selada, seu corpo.<br />
Os olhos abismavam-se em seu lago,<br />
Espelho, os olhos dela, desse horto.<br />
Os seios dela eram gazelas alvas<br />
ninando em suas mãos sonhos opostos:<br />
duríssimos botões sobressaltados,<br />
às vezes absortos.<br />
As longas pernas dela cavalgavam<br />
colhendo os braços em marés revoltas.<br />
Correndo, exasperava<br />
a natureza em pêlo à sua volta.<br />
O dorso dela, quando repousada,<br />
riscava de horizonte o seu contorno.<br />
Movendo-se, ondulava<br />
toda a nudez dos seus cabelos soltos.<br />
O tempo dela, o corpo, sua cabala,<br />
estava destinado a um deus ignoto.<br />
Seu tempo lá se ia computado<br />
a velejar sem porto.<br />
A juventude dela avariava<br />
do zero ao infinito, em ponto morto.<br />
Viola da gamba, sulamita sola,<br />
bússola em busca de algum rei sem rosto.<br />
04
<strong>Chicos</strong><br />
enigmas<br />
Tu me tens acesa<br />
como um pé de cacto.<br />
Ai que eu te adivinho<br />
ai que eu te arrebato<br />
para meus espinhos.<br />
Tu me tens libérrima<br />
como um sol. Intacta.<br />
Ai que eu te anoiteço<br />
ai que eu te atravesso<br />
minha luz que mata.<br />
Tu me tens crescente<br />
como a lua. Fálica.<br />
Ai que eu te quebranto<br />
com um caco de espelho.<br />
Ai que eu te decapto.<br />
Tu me tens sonâmbula<br />
como uma ampulheta.<br />
Ai que eu te ensandeço<br />
ai que eu te esfaleço<br />
na uretra do tempo.<br />
Tu me tens é medo<br />
esfinge de oráculo.<br />
05
<strong>Chicos</strong><br />
MERETRILHO<br />
MICHELALÚMIA<br />
PROTIBULUTA<br />
GLANDULAMULA<br />
JEREBAGLÚTEA<br />
CLORIFURBANA<br />
CLOACLORANTA<br />
MARAFANCHONA<br />
PLURALITANTA<br />
EGUAERVOEIRA<br />
CLEPSUICIDRA<br />
PERONIAÔMIA<br />
BISCAVOBISCA<br />
MOSCAMENISCA<br />
MENINGEPÚBIA<br />
VAGIPENÍSOLA<br />
CLITÓRISPUTA<br />
06
<strong>Chicos</strong><br />
Cognominato<br />
Carmenta, mãe-mulher. Têmis, Nicóstrata.<br />
Da Arcádia. Profetisa. Seus oráculos<br />
(carmen, -inis) em versos, ao que consta.<br />
Tinha um altar em Roma, à Porta Carmental,<br />
no oitavo quarteirão da cidade papal.<br />
É deusa tutelar de infantes. Presidia<br />
aos nascimentos. Rendiam-lhe, as gestantes<br />
culto particular: antes, durante.<br />
Plutarco a fez mulher, não mãe, de Evandro.<br />
Este verbete em mim não diz, não sabe a que é,<br />
se a Carmem de Bizet, cigana e flor do mal,<br />
ou, se a carmim magento, carminativo ou não<br />
carmeando carmo e carma, carmelina, carmezim,<br />
da carmanhola ao carmona, não mais Carmelo, o monte,<br />
donde desci descalça, carmelita e carmense,<br />
da Mata à Paraíba, fundeando outra Carmópolis<br />
aquém e além do mapa, a perder pé de mins.<br />
Evoluções? Revoltas? Desenredos? Presídios?<br />
Tudo cabendo em não e em sim, senão, comigo,<br />
da lenda ao cantochão, entradas e bandeiras,<br />
mulher, fatal ou não, ainda mulher, rendeira,<br />
predestinada a sós, grande diminutiva,<br />
pergaminho-fetal daqui a dois mil e um<br />
quando, aos sessenta e três, se ainda viva (sozinha)<br />
perguntarem de mim, direi? Dirão: Carminha.<br />
07
<strong>Chicos</strong><br />
As lesbianinhas<br />
Mancomunadas<br />
conluiadinhas<br />
mãozinhas dadas<br />
maquiavelinhas<br />
colaçam tretas<br />
do arco-da-velha<br />
roçando os arcos<br />
das íris delas.<br />
Lá vão as duas<br />
uniduninhas<br />
no bole-bole<br />
de suas barquinhas<br />
passeando embaixo<br />
do arco-celeste<br />
jurando laços<br />
bem-casadinhos.<br />
Priscas pupilas<br />
saficazinhas<br />
mesmando-se ilhas<br />
de amor-perfeito<br />
dentro de espelhos<br />
em que se miram<br />
no acende-aplaca<br />
de suas pocinhas.<br />
Cheios de dedos<br />
seus segredinhos<br />
se encarrapicham<br />
quando se tocam<br />
(liras? safiras?<br />
pirilampejos?):<br />
pêlos nos pêlos<br />
olhos nos olhos.<br />
08
<strong>Chicos</strong><br />
Anticorpo<br />
Camisola de cambraia<br />
de cor de rosa de cheiro<br />
que de alvíssaras roçaste<br />
sangüíneas rosas bissextas.<br />
Camisola de cambraia<br />
amorfanhada altaneira<br />
puindo o porão das arcas<br />
alfavaca-entre-alfazemas.<br />
Camisola de cambraia<br />
esmaecida calêndula<br />
como um casulo sem corpo<br />
posposto a calendas gregas.<br />
Camisola de cambraia<br />
dos himeneus que desmembras<br />
em hímens de fátuo fogo<br />
vesperada e complacente:<br />
ai de quem cai em tua alfaia<br />
açulando a sós fogueira<br />
longa louca leve gaia<br />
camisola de cambraia!<br />
09
<strong>Chicos</strong><br />
SEQÜÊNCIACONSEQÜÊNCIA<br />
Dies irae, dies illa,<br />
nada será como d´antes:<br />
doravantesma só cinzas.<br />
Revolve-se a poeira humana.<br />
Por ínvios caminhos, roma.<br />
Na cama, o lot das filhas.<br />
A natureza se espanta<br />
com o fogo que prometeu:<br />
libertas quae sera tamen.<br />
Bárbaro belo horizonte,<br />
haja sermão nas montanhas<br />
quando ismália enlouqueceu.<br />
Marcados com pedras brancas<br />
vão-se os anéis aos diamantes<br />
in albis...lento festina.<br />
Olhai o lírio dos campos:<br />
cui bono? Arcades ambo.<br />
Teste dirceu cum marília.<br />
Lacrimosa dies illa,<br />
chora bárbara heliodora<br />
do norte estrela sem guia.<br />
Transidos de eterno sono<br />
quem rogaturus patronum?<br />
Tudo será cinza fria.<br />
Vivos voco, mortuos plango.<br />
Dormindo profundamente<br />
ab aeterno, aeternum vale,<br />
10
<strong>Chicos</strong><br />
onde eram neves d´antanho<br />
diadorins... dinamenes...<br />
sub rosa (cum grano salis).<br />
Vão-se os anéis, fincam os dedos<br />
finos como lã de cágado<br />
limpando as mãos à parede:<br />
um no papo, outro no saco,<br />
por baixo, por trás dos panos<br />
tutti son fatti marchesi.<br />
Litterae bellorophantis<br />
entre amazonas, quimeras,<br />
cumpro o destino a que vou:<br />
res, non verba, hominem quaeso:<br />
no me saques sin razón,<br />
no me embaines sin honor.<br />
A césar o que é de césar:<br />
rei da lídia ou rei da lécia,<br />
questão de lana-caprina.<br />
Até aí morreu o neves:<br />
que a terra lhe seja leve,<br />
com o pão-de-açúcar por cima.<br />
Vão-se os anéis de saturno<br />
et campos ubi troya fuit:<br />
cinzas do princípio ao fim.<br />
Revertere ad locum tuum.<br />
Não compro mais ave alguma.<br />
Perdi o tempo e o latim.<br />
Com suas rosas de malherbe,<br />
com seus beijos-lamourette<br />
e os seus anéis nibelungos,<br />
11
<strong>Chicos</strong><br />
Com suas rosas de malherbe,<br />
com seus beijos-lamourette<br />
e os seus anéis nibelungos,<br />
sicut umbra dies nostri:<br />
ubi flores de retórica,<br />
ibi cravos-de-defunto.<br />
Dia de todos os santos,<br />
de quebradeira e quebranto,<br />
dia miserere nobis:<br />
num pass-a-nel delirante<br />
entre um anão e um gigante<br />
cavalo e valquíria explodem.<br />
Um livro há de ser escrito<br />
e o homem passado a limpo<br />
bem no nariz do patrão:<br />
quando o tumor vem a furo<br />
de que servos dedos duros<br />
os que se forem, assoarão?<br />
Metendo a mão na cumbuca,<br />
geme e estertora a criatura<br />
numa sinuca de bico.<br />
Em represália ante o trono,<br />
ao som de tripas e trompas<br />
todos pedindo penico.<br />
Apocalíptico dia!<br />
Dia do tombo, hecatombe,<br />
ingemisco tanquam reus.<br />
12
<strong>Chicos</strong><br />
O que é do homem o bicho come:<br />
vamos que zebra, ou que bode,<br />
quem sabe o bicho que deu’s?<br />
Ante diem, sê benigno,<br />
juiz do justo castigo<br />
cui salvandos salvas gratis.<br />
Ovelha negra inter oves,<br />
correm comigo: eu, contíguo,<br />
cost to cost & the day after.<br />
Coram populo<br />
isso é roçago sim é seda címbalo<br />
res postera e saltério donde vêm<br />
teus avatares de ava eva maligna<br />
dalila ou salomé sabe-se lá quem<br />
que círculos-ravéis cúmulo-cirro<br />
samira sheraazade mil e uma em<br />
fitas-kassete sulamita em signos<br />
consoante vocalise ícone v( entre<br />
tripudians naja tripudiando diva<br />
nheengatu de praxe nhenhenhém<br />
olas olás olés bis bravos bíceps<br />
nesse pulsarquasar quase que vem<br />
com passos de pavlova radioativa<br />
cântaro ao cântico hosanas améns<br />
até estancar a sede dos convivas<br />
e outra cabeça rolar por ninguém<br />
13
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Werneck<br />
Nasceu em Cataguases, onde mora atualmente. Poeta<br />
e jornalista, colaborou em vários jornais e revistas<br />
cariocas. Publicou entre outros os livros: Poesia -<br />
Selva Selvaggia (1976), Pomba Poema (1977), Minas<br />
em mim e o mar este trem azul (1999) Minerar o<br />
Branco (2008), Cataminas Pomba e outros Rios<br />
(2012) e O Mar de Outrora e Poemas de Agora<br />
(2014). Prosa - Há Controvérsias 1 (2009) , Há Controvérsias<br />
2 (2011), Rosário Fusco por Ronaldo Werneck/<br />
Sob o signo do imprevisto (2017) e o ensaio<br />
biográfico “Kiryrí Rendáua Toribóca Opé” Humberto<br />
Mauro Revisto por Ronaldo Werneck<br />
O enigma Maria do Carmo/Carminha Ferreira<br />
Irmã da poeta cataguasense Celina<br />
Ferreira (1928-2012), Maria do Carmo/<br />
Carminha Ferreira, é também poeta, e das<br />
grandes, apesar de inédita em livro até hoje.<br />
Alguns dados de Carminha, por ela mesma:<br />
“Maria do Carmo Ferreira, a Carminha, natural<br />
de Cataguases, a princesinha da Zona<br />
da Mata mineira. Aos 14 anos se tornou poeta<br />
por excesso de amor. Morou em Belo<br />
Horizonte, São Paulo, radicou-se no Rio por<br />
mais de duas décadas e finalmente mudouse<br />
para Niterói. De 1969 a 1973 morou dois<br />
anos na Europa e dois nos Estados Unidos,<br />
cursando mestrado em Literatura Comparada<br />
e lecionou língua e literatura brasileira<br />
no Colégio dos Graduados, Universidade de<br />
Illinois. Aposentada da Rádio MEC, onde<br />
serviu por mais de 30 anos como criadora,<br />
tradutora, redatora, produtora e coordenadora<br />
de programas literários e líteromusicais.<br />
Tem um livro de poemas inédito,<br />
“Cave Carmen”.<br />
Carminha e eu éramos vizinhos no Rio,<br />
quando morei no bairro do Leme nas décadas<br />
de 1960 e 70, mas só nos vimos uma<br />
vez, quando fomos jurados de um concurso<br />
de poesia organizado pela poeta Kátia Bento,<br />
que também não vejo há anos. Carminha<br />
sumiu há tempos. Soube que ainda anda<br />
pelas bandas de Niterói, está sempre na<br />
igreja e só fala com Deus e mais ninguém.<br />
Em 1978 escrevi um poema a partir de um<br />
poema dela que fora publicado no ano anterior<br />
pelo Suplemento Literário Minas Gerais.<br />
Mas ela só soube disse tempos depois,<br />
quando desenvolvemos longa troca de<br />
emais no ano 2000. Os dois poemas, o meu<br />
e o dela, vão a seguir, junto com alguns<br />
desses e-mails que ela me mandou na ocasião,<br />
na verdade poemas sob a forma de<br />
emails, verdadeiros “poemails”. Logo depois,<br />
ela sumiu de novo, e não nos falamos<br />
desde então. Todos os meus poemas que<br />
ela cita nesses “poemails” a seguir estão em<br />
meu livro “Revisita Selvaggia”, que seria<br />
publicado em 2005.<br />
14
<strong>Chicos</strong><br />
A Quem Interessar Possa (*)<br />
Uma pessoa<br />
do sexo<br />
feminino<br />
38 anos<br />
1,65<br />
66 kg<br />
sem lar<br />
sem filhos<br />
sem família<br />
sem negócios<br />
sem esperança<br />
com 108 contos<br />
na poupança.<br />
Garante que possui<br />
matéria-prima<br />
para literatura<br />
teatro<br />
baby-sitter<br />
trabalhos manuais.<br />
Gosta de música.<br />
Chega a tocar<br />
de ouvido.<br />
Conhece inglês<br />
e línguas neo-latinas.<br />
É boa datilógrafa.<br />
Cozinha o trivial.<br />
Prefere a natureza<br />
à vida na cidade.<br />
15
<strong>Chicos</strong><br />
Amor, quase não faz<br />
porém se adapta sempre<br />
ao item mencionado.<br />
Falta-lhe alma<br />
um sopro que a reanime.<br />
Se veleidades tem<br />
é de sentir-se real.<br />
Vive<br />
por força<br />
de viver<br />
mas corre o risco<br />
de se deixar morrer<br />
sem que se dê<br />
POR ISSO<br />
oferece-se a quem<br />
interessar possa<br />
uma coisa<br />
uma causa<br />
uma pessoa<br />
alguém<br />
um problema social:<br />
o caso dessa moça.<br />
Maria do Carmo Ferreira<br />
Publicado no Suplemento<br />
Literário Minas Gerais em 1977<br />
(<br />
(*) Poema que motivou o meu “Esse Moço”<br />
16
<strong>Chicos</strong><br />
Esse Moço<br />
Feroz a um breve contato,<br />
à segunda vista, seco,<br />
à terceira lhano,<br />
dir-se-ia que ele tem medo<br />
de ser, fatalmente, humano<br />
Drummond<br />
um pouco à maneira e para<br />
maria do carmo ferreira (1)<br />
do sexo masculino<br />
uma pessoa<br />
por todos prezada<br />
um bom menino<br />
se apresenta<br />
esquivo<br />
sem bossa<br />
a quem interessar possa<br />
só sozinho<br />
entre todos<br />
um mistério<br />
um troço<br />
um caso sério<br />
o desse moço<br />
amar<br />
ama<br />
na rua<br />
no mar<br />
na cama<br />
amar<br />
ama<br />
oferta seu corpo<br />
17
<strong>Chicos</strong><br />
a meninas<br />
e mulheres-dama<br />
amar<br />
ama<br />
mesmo fora<br />
da cama<br />
tão de dentro<br />
tão fundo<br />
como se gemendo<br />
envolvesse o mundo<br />
tudo e todos<br />
saltam do peito<br />
do mais profundo poço<br />
dando forma e fundo<br />
a esse moço<br />
pássaros neutrônicos<br />
elefantes levíssimos<br />
patinetes em pânico<br />
balões de neon<br />
nada igual<br />
pipas ensandecidas<br />
bolas de gude<br />
num vôo orbital<br />
entre eros e tanatos<br />
decepado<br />
entre fobos e deimos<br />
largado<br />
18
<strong>Chicos</strong><br />
ao mar<br />
por malasorte<br />
habitado<br />
nau<br />
do ocaso<br />
vau<br />
frágil<br />
vendaval<br />
em vão<br />
duro osso<br />
esse moço.<br />
Ronaldo Werneck<br />
Rio, 1978<br />
1. Em 1978, o Suplemento Literário Minas Gerais publicava o poema “A quem interessar possa”, de Maria do<br />
Carmo Ferreira. Fiquei impressionado com o vigor da poeta, que desconhecia. Escrevi este poema em sua homenagem<br />
e absolutamente influenciado por sua dicção. Só mais tarde vim a saber que ela era minha conterrânea<br />
e até mesmo vizinha, no bairro do Leme no Rio. Ficamos amigos, mas nunca lhe mostrei o poema, que<br />
ficou inédito. Carminha só soube dele quase vinte anos depois, ao visitar meu site na internet.<br />
19
<strong>Chicos</strong><br />
V(end)e-se<br />
Ser feliz é ser outro em algum lugar<br />
Abgar reinou!<br />
Rende-se<br />
ao saravá/saraivada<br />
metralhadora assestada<br />
de Ronaldo/Ronaldim:<br />
é doido (nasceu assim?).<br />
Como foi que não dei conta<br />
e nem me dou por achada<br />
se sair deste embolada<br />
eu que conheci Vinicius<br />
de Poética & outros vícios<br />
nos quais revejo você<br />
mas pra quem quiser saber<br />
estoy contigo y no abro,<br />
por supuesto, en la distancia,<br />
pra lá de Gabo y Cortázar<br />
Lesama Lima y naranjos:<br />
debaixo de um pé-de-manga<br />
de manga-espada e de ubá<br />
quero mais poder contar<br />
a quem não sabe e não viu<br />
que o verdadeiro ronaldo<br />
(ronaldinho do Brasil)<br />
é werneck – e está na Bíblia:<br />
werneck-melquisedec<br />
cujas oferendas são<br />
muy gratas à divindade:<br />
primícias de vinho, pão...<br />
e poesia de verdade!<br />
20
<strong>Chicos</strong><br />
P.S.<br />
Era um dia era um dedo era um dado<br />
falo o que sinto & o que sei:<br />
não sou de mandar recado.<br />
Era um dado era um dedo era um dia:<br />
Tu, Lampião? Eu, M Tu, Lampião? Eu, Maria<br />
(ou Carminha do Ronaldo?)<br />
Era um dia era um dado era um dedo<br />
melhor que tu não topei:<br />
não sou de fazer segredo. (1)<br />
Maria do Carmo Ferreira (2)<br />
Niterói, 11.06.2000<br />
1. Eis que, por emeio, rebato à provocação, em tom meio tonitroante. E se for cum dez pés lá vai: “nos dedos<br />
noite-dia aveludados/ reluz tua voz dado-diamante/avante, luz!, sus, sons atordoados”.<br />
2. Maria do Carmo/Carminha, irmã de Celina Ferreira: queridas e sumidas. Duas grandes poetas de Cataguases.<br />
Aparecer/desaparecer parece hábito antigo da poeta, como se vê por esta declaração de Décio Pignatari<br />
ao Suplemento Literário do Minas Gerais (n.º 57, 05.03.2000): “Há mais de 30 anos entusiasmei-me e publiquei<br />
um poema dela (“Meretrilho”) na Invenção (revista criada pelos poetas concretos). Sempre gostei de seus<br />
poemas e sempre fiquei esperando mais. Quando surgia um novo poema de Maria do Carmo, eu me interessava.<br />
Mas ela aparecia e desaparecia, brincando de esconde-esconde com a poesia e com o público. Cada palavra<br />
que escreve quer dizer alguma coisa. Ela tem um jeito moderno, forte e agressivo”. O poema a que Décio<br />
se refere, “Meretilho” era “da pá-virada”, um caótico suceder de chocantes palavras-valise em permanente<br />
atrito, e que fechava com o quarteto “moscamenisca/meningepúbia/vagipenísola/clitórisputa”. Uma coisa. Ao<br />
receber este poema de Carminha, ainda atônito, agradeci com esta surrealista sextilha: “na dobra da manhã/ o<br />
céu desanoitece/ e o poeta se curva/ rápido e agradece/ palavras tão louçãs:/ rubor de guarda-chuva”. Jogando<br />
habilmente com suas palavras-malabares, Carminha é uma poeta e tanto e no entanto, e inexplicavelmente,<br />
inédita em livro. Vejam o poema a seguir e a montagem de “poemails”, pedras-de-toque que rolam, punti luminosi<br />
de uma intensa troca eletrônica em meados do ano 2000, após 20 anos de silêncio. Grande poeta,<br />
grande talento, grande tradutora. Vejam como ficou o Mallarmé do célebre solitud, récif. Étoile by Carminha:<br />
“solidão até – atol – estela”. Salut, “de porre mas de pé: tintim!”. Pura transcriação. Depois, ela trancou-se<br />
de novo em copas, ou em capas de ypacaraí & never more. Rosa, rosácea, carmim, “where are you, polly<br />
maggoo?” Onde? Onde anda, por que banda, ó Car´mina Bu(saga)rana?<br />
21
<strong>Chicos</strong><br />
Werneck´s Riverruns<br />
Menino dentre os doutores<br />
não caminha sobre as águas.<br />
As águas é que se aninham<br />
entre as linhas de sua mão<br />
em mil pequenos lavores<br />
de cortejos espaciais<br />
e amores mais-que-perfeitos:<br />
Menino do Rio Pomba<br />
que traz mais pontes no peito<br />
do que garças nos beirais.<br />
Meia-pataca entrevista<br />
a um privilegiado olhar<br />
que jamais outros veriam<br />
pois não voltara a se dar.<br />
Pai, amigo, poeta, irmão<br />
sem se saber quem precede<br />
pela simultaneidade:<br />
o espírito? o coração?<br />
afetos? inteligência?<br />
Vocação pela existência:<br />
viver e deixar viver.<br />
Dura, Ronaldo Werneck,<br />
neste terno, quadra, quina<br />
de quem tirou sorte grande<br />
por te conhecer aos trinta<br />
rever-te aos cinqüenta e sete<br />
com a mesma pinta que nina<br />
(Santa Maria!) o moleque!<br />
Maria do Carmo Ferreira<br />
Niterói, 17.07.2000<br />
22
<strong>Chicos</strong><br />
Suíte Carmeletrônica: poemails<br />
09 de junho 2000/21:58h<br />
Ronaldim<br />
des´en´contra´do<br />
há tantos anos<br />
de mim:<br />
chorar<br />
recua duas casas?<br />
sorrir<br />
avança três? (1)<br />
Me dê sua mão agora:<br />
vou me lançar de<br />
skyflier<br />
kamikase<br />
aqualouca<br />
pra ver se alcanço<br />
você!<br />
P.S.<br />
Depois que te li, agorinha,<br />
recuei 20 anos e um mês!<br />
Carminha<br />
P.S. 2<br />
em tempo<br />
deu morrer<br />
sem saber<br />
23
<strong>Chicos</strong><br />
o puta enorme<br />
poeta<br />
que é você<br />
no lastro de um<br />
Vinicius<br />
a Bandeira:<br />
pai, sou;<br />
poeta, sim;<br />
a quem in-teressar<br />
possa (2)<br />
ou pre-cisar<br />
de mim!<br />
Avoé, Avoengo<br />
Pai de Ulla & Pablo<br />
e meu padim!<br />
É você, Baco!<br />
Ai de carmins!<br />
1. Menção ao meu poema “No Rádio/Na TV/Veja Você”<br />
2. Carminha refere-se a um trecho do poema “Esse Moço”, que lhe dediquei nos anos 80<br />
24
<strong>Chicos</strong><br />
22 de junho 2000/23:27h<br />
Ronnydeans: si vous voulez ancim,<br />
seus e-mails, doces pra mim, são hieróglifos,<br />
em grego e latim.<br />
Você me lê aos trancos e barrancos,<br />
Depois toca a perguntar de novo,<br />
Ab ovo. (1)<br />
Si lo que hablo no me lês,<br />
pregunte al Pablo, (2)<br />
Aranjuez,<br />
já basta o desconcerto<br />
do mundo (3)<br />
sem fundo de olho<br />
(pergunte ao Chico) (4)<br />
e não me venhas de lá,<br />
como o Cagiano, (5)<br />
com fícus, oitis,<br />
palmas imperiais.<br />
Eu sou do tempo das acácias,<br />
verídicas (ou virtuais?),<br />
gregas, medas, semitas,<br />
nem sei mais.<br />
E feliz por feliz<br />
antes em Paris,<br />
catanga, ocê? (6)<br />
catando o quê?<br />
Miçangas, não tem mais...<br />
Acácias reais, no más.<br />
Fico com a Espanca,<br />
flor bela entre as demais,<br />
carnívora, incestuosa,<br />
tudo o que se permite<br />
e iu<br />
a que ousava o que disse<br />
(ninguém sabe, ninguém viu)<br />
25
<strong>Chicos</strong><br />
la prima entre fra ternos<br />
arroubos juvenis...<br />
Mas, xarpalá, (7)<br />
que temos nós com iis?<br />
Já Camões, ah Camões,<br />
salvou seu manu´scrito<br />
mas morreu Dinamene<br />
que foi sua musa e mito,<br />
mas não mais favorita<br />
do que o livraço seu.<br />
Para que você me ouça,<br />
e me desafie a galope<br />
ou martelo,<br />
eu antes salvava a moça<br />
e deixava ir pro inferno<br />
ou profundo do mar<br />
le livre... esse flagelo<br />
por quem passou fome<br />
e frio<br />
sem cuidados sem cuitelos<br />
no exílio desse inexílio (8)<br />
sempiterno.<br />
Mas virando pro Rimbaud:<br />
peguei do Fabrício (9) um mote<br />
e aqui vai, ou eu vô:<br />
RIMBAUD ET L´AIR<br />
Poeta sou<br />
mas pelo avesso.<br />
Cheguei ao extremo:<br />
não faço versos.<br />
Verti ao olho e al dente<br />
uma estação no inferno.<br />
Não vou nessa de Dante:<br />
26
<strong>Chicos</strong><br />
É sem acompanhante<br />
que trafego<br />
pelas profundas de mim mesmo.<br />
***<br />
E como me disse o Chico<br />
cheio de cabeça e mãos:<br />
O coração, sem-razões,<br />
É o único a ter razão.<br />
E mais não digo ou desdigo<br />
Se não for a sós comigo.<br />
Fica o não dito por dito<br />
Que, desdita, não re´pito!<br />
Com Deus, J.Joyce, digo, J.Deans<br />
Ronny Deans, Ronalwinnwnner!<br />
um carma, um carme, um carmim<br />
1. Eram emeios, emeios, emeios sem ter fim. Carmim não dava tempo pra mim.<br />
2. Meu filho Pablo<br />
3. Referência a uma peça teatral que escrevi: “O Mundo em Desconcerto: Camões a Florbela Espanca”, encenada<br />
no Museu Chácara Dona Catarina (Cataguases, 2001).<br />
4. O poeta Francisco Marcelo Cabral.<br />
5. O poeta Ronaldo Cagiano.<br />
6. “Catanga” é como sempre brinquei de chamar Cataguases desde o assassinato do líder nacionalista Patrice<br />
Lumumba no Congo Belga, em 1961. Talvez pelo que tenha ficado em minha memória do poema de Geir<br />
Campos dos tempos do “Violão de Rua” (n.º 1, Rio, 1962): “Patrice negro e congolês Lumumba!/Bambo bambu,<br />
molambo/de infinitas bandeiras/no céu da África acesa,/.../em Catanga, em Catanga/colho a estrela madura/<br />
de um sonhar amarelo,/ e em Catanga, em Catanga/ abro a boca da noite/ com meu grito mais belo”. Como<br />
no Congo, também em Minas, na Zona da Mata dos anos 60, havia grandes escaramuças, pelo menos no<br />
futebol, entre as por mim denominadas cidades de Cataguases/Catanga e Leopoldina/Leopoldville.<br />
7. Palavra-valise by Carminha (deixar parlar/deixa falar/deixa pra lá) que adaptei como “xaparlá” para o poema<br />
“Catar-se”, dedicado ao Francisco Marcelo Cabral, a ela e a mim<br />
8. Referência ao poema-livro “Inexílio”, de Francisco Marcelo Cabral.<br />
9. O poeta Fabrício Marques, que organizou o número especial do Suplemento Literário do Minas Gerais (Belo<br />
Horizonte, março de 2000, n.º 57), quase que exclusivamente dedicado a Maria do Carmo Ferreira.<br />
27
<strong>Chicos</strong><br />
22 julho de 2000/17:14h<br />
Roneck<br />
meu anjo<br />
Rô Rô<br />
Você me provocou:<br />
“Quem mais, oh menina,<br />
quem mais me alucina,<br />
quem mais,<br />
de ter mina”<br />
(o coração<br />
nas mãos<br />
– haj´as´as –)<br />
sob os pés?<br />
Nem herpes<br />
pé-de-atleta<br />
joanete<br />
cravo (calo)<br />
me afeta<br />
quando escarvo<br />
touro desembestado<br />
o solo em que nasci:<br />
sou mercúrio ligeiro<br />
hermes o mensageiro<br />
tarzan pós-tudo<br />
empós<br />
da mata onde campeio<br />
princesinhas<br />
na zona (1)<br />
emails greeting cards<br />
cariocas<br />
lys-do-campo<br />
sites links relâm/<br />
pagos<br />
hologramas poéticos...<br />
28
<strong>Chicos</strong><br />
Ainda, peri-patético,<br />
atravesso os brasis<br />
pondo os pingos<br />
nos iis<br />
e ocupando<br />
meu espaço<br />
até que o dia grame<br />
comme il faut, como o fiz<br />
do tell (star) catanga<br />
urbi et orbi<br />
e tal:<br />
da taba onde soul rei<br />
(geo´grafia: sorrio)<br />
cacique catauá<br />
para a aldeia global.<br />
Car´mina Bu(saga)rana<br />
1. Cataguases é também conhecida como a “Princesinha da Zona da Mata”. Um dia, num programa<br />
radiofônico, saí com uma brincadeira idiota. Falava-se que a mata estava em extinção. Bati firme: “Se<br />
mata não há mais, nem mesmo cataguais. Sem mata, ela vira ´Princesinha da Zona´, uais!”. Logo<br />
depois, me redimi. E para sempre. Hoje, só chamo Cataguases de “Paris da Zona da Mata”. Não há<br />
controvérsias.<br />
29
<strong>Chicos</strong><br />
26 de julho de 2000/04:08h<br />
e agora, num tête-à-tête,<br />
seo Werneck, me responda<br />
sem tirar casquinha<br />
em onda minha<br />
por que a prosa do Rosa<br />
e tã pedregosa?<br />
Com este, eis dois claros enigmas<br />
que lhe proponho,<br />
era um era dois era três<br />
que vou dormir de vez, e tome-o:<br />
A flor com que a menina sonha<br />
está no sonho ou na fronha?<br />
Vai, segue em paz, figlio, amoroso giglio,<br />
Rô da Rua,<br />
Do vento, do tempo, do frio,<br />
Das altas madrugas,<br />
Um deus dormiu lá em casa<br />
(teatro, tradução de um figueiredo)<br />
um poeta em cataguases<br />
dorme onde jazem os seus<br />
(primus inter pares)<br />
já nem dorme<br />
alucina<br />
sem porre, na porrada,<br />
e em sua lazy mir´hada<br />
me ilumina:<br />
benza-o Deus!<br />
q.q.isso, meu?<br />
30
<strong>Chicos</strong><br />
28 de julho de 2000/06:49h<br />
Agora amoito, anoito:<br />
De manhã escureço<br />
de dia tardo<br />
de tarde anoiteço<br />
de noite ardo<br />
Do teu sósia em poesia, quer mais?<br />
Menino, me bota um verso<br />
Bem cheio de comoção:<br />
Era uma vez um poeta<br />
Mas não digo o nome não.<br />
Tantas fez que a dor de corno<br />
atirou ele no chão<br />
machucou ele nas pedras<br />
espremeu seu coração.<br />
Que pensa usted que saiu?<br />
Saiu cachaça e limão.<br />
E assim caminha a humanidade.<br />
Em ritmo de mango tree, poe!<br />
Não vou perguntar nunca mais<br />
Por que calou o bico.<br />
Agora sou Dialógica:<br />
- Como vais?<br />
- Comovida!<br />
Comoção as tuas garotas de Ipanema (1)<br />
É ou não é coincidência com o meu<br />
Oldfashion poemiseta?<br />
Até mais longe, além muito além daquela serra<br />
Que ainda azula no horizonte...<br />
Carminha<br />
1. Referência ao meu poema “Verão”<br />
31
<strong>Chicos</strong><br />
Meia-Pataguá<br />
WERNECK/CAGIANO:<br />
ESTE MANO-A-MANO<br />
VAI DAR QUE FALAR.<br />
QUERER DE VOCÊS??<br />
QUEM VI VERVER AH<br />
Q SERTÃO É TANTOS<br />
DONDE (QUI SABRÁ?)<br />
YA NO VUELVO MÁS!<br />
MI BOLETO, AMIGOS,<br />
NOTIENE-REGRESOS:<br />
FIZ AS PAZES, SINTO,<br />
CO’UM PASSADO EX-<br />
TINTO, MAIS DE SAN-<br />
GUE E CORTES - QUE<br />
NÃO CICA/TRIZ/AM Y<br />
NEM ME DE\MO\VEM.<br />
Q’EROS GANG NOVA<br />
CORRENDO N/AVEIA<br />
E RON/ALVOS OVOS<br />
PARA A MINHA CEIA<br />
CHEIA DE CARÊNCIA<br />
NESTE XEQUE-MATE<br />
Q NÃO DESSEDENTA<br />
TAL FOME DEVERDE!<br />
Maria do Carmo Ferreira<br />
Niterói, julho 2000<br />
32
<strong>Chicos</strong><br />
Inez Andrade Paes<br />
Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de<br />
O Mar que Toca em Ti (Crônica de viagem -<br />
2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011);<br />
Libreto em três atos, consti-tuindo a Cantoriana<br />
Marítima - Acto I Mar falan-te, Acto II<br />
Transparente Luva de Água, Acto III Flores de<br />
Acanto em Marfileno Lençol ; D Estrada Vermelha<br />
(Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia<br />
2015) : À Margem de Todos os Rostos (2017).<br />
Coordena desde 2012 o Prêmio Literário Glória<br />
de Sant”Anna.<br />
Ao meu Pai que me ensinou a construir<br />
sobre a água<br />
dentro dela<br />
anda uma ponte<br />
sobre a água<br />
dentro dela<br />
anda uma ponte<br />
calçada de pedras e madeiras<br />
de manhã é de oiro<br />
de tarde avança até quase<br />
a um limite<br />
33
<strong>Chicos</strong><br />
À minha Mãe que me ensinou a amar<br />
sobre a água<br />
dentro dela<br />
anda uma ponte<br />
sobre a água<br />
dentro dela<br />
anda uma ponte<br />
de noite deita-se<br />
levando-a inteira ao fundo do espaço<br />
verde<br />
de oiro<br />
um musgo<br />
prende-se nos seus pés<br />
e marca<br />
todo o caminho de volta<br />
34
<strong>Chicos</strong><br />
Gisela Gracias<br />
Ramos Rosa<br />
Nasceu em Maputo (Moçambique). O seu primeiro<br />
livro foi um diálogo de poesia com António Ramos<br />
Rosa, Vasos Comunicantes (publicado em 2006).<br />
Colaborou em várias Antologias e Revistas de poesia.<br />
Publicou também entre outros As palavras<br />
mais simples (2014) , O livro das mãos (2017) e A<br />
pedra e o corpo (2018)<br />
“Existimos sobre o anterior”<br />
Fiama H. Pais Brandão, em Âmago<br />
Entre a pedra e o corpo o lento trabalho<br />
do escopro a moldar a moldar<br />
extraindo o desnecessário à expressão<br />
Entre a pedra e o sopro o Universo<br />
a atravessar a concepção.<br />
Nada é por acaso até este estar aqui<br />
Somos rasura e consciência pedra<br />
em construção.<br />
De A pedra e o corpo (2018)<br />
35
<strong>Chicos</strong><br />
Acir Simões<br />
Acir Simões, nasceu em Cataguases (MG), mora<br />
em Belo Horizonte (MG). É poeta e contista<br />
Essa dor<br />
O ramo se intromete na erosão do abandono calcinado<br />
Eu saboreei essa dor terrível<br />
O silêncio abafado, inerte<br />
O estupor manchando esse estrato de serenidade<br />
O silêncio em riste<br />
Você sabe o que é maturar uma dor terrível?<br />
Ouço um conforto inócuo:<br />
Vai ficar tudo bem<br />
Interrompo a respiração para afrontar o silêncio<br />
Irmanados como inimigos<br />
Nada ainda é possível<br />
Nada é páreo para esta dor terrível<br />
Discuto com o silêncio:<br />
Abraço-o piedosamente:<br />
Cinco mil toneladas dele entornadas sobre minha dor<br />
Sobre minha dor indecifrável<br />
Já que tenho tudo<br />
Inclusive essa dor terrível.<br />
36
Domingo<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Uma pedra fura a película de rio, que rasteja no leito<br />
A pedra parece uma tartaruga se entretendo no fluxo<br />
A menina aponta o vendedor de algodão-doce<br />
Os cabos de aço, as braçadeiras, os parafusos<br />
A parafernália de mecanismos se dissolvendo na natureza<br />
A botânica se organiza para a orgia<br />
A menina está alta, nos ombros do homem<br />
Eu caminho pela ponte e fotografo uma viga enferrujada<br />
Há uma beleza inadiável na transgressão<br />
Uma mulher desdobra um lenço na grama e organiza a venda<br />
Perto, há três talvez quatro construções abandonadas<br />
O capim escala as vértebras das paredes<br />
Dois moradores de rua dividem uma bituca e riem da manhã<br />
A menina acompanha a correnteza<br />
O olhar escolta um galho que se submete ao ziguezague da água<br />
Ela aperta minha mão<br />
Um socó assovia do alto de um salgueiro<br />
A menina inclina a cabeça<br />
O semblante me traduz uma vontade de ir embora.<br />
Eu também quero sair dali.<br />
37
Sangria<br />
<strong>Chicos</strong><br />
O ramo se intromete na erosão do abandono calcinado<br />
As paredes se ressentem com o descaso<br />
Eles disputam as vértebras da casa<br />
E todos reivindicam justiça<br />
Uma justiça de premissas ilusórias:<br />
As coisas são do mundo<br />
Quem é dono do chão da bauxita das esculturas dos aviões<br />
Da vaidade?<br />
Ninguém devia ter dono<br />
Nem os cachorros nem os gatos nem os peixes ornamentais<br />
Nem os empregados<br />
Quantas brigas naqueles quartos?<br />
Quantos sacrifícios, quanta perda naquelas cales?<br />
Já não se atentam<br />
O que importa é o que pagam pela hora<br />
O resto é desperdício<br />
Não é ramo: É caule<br />
E o vão é alicerce<br />
Não percebem que a vida rasga os tijolos em busca de ar?<br />
A árvore oferece frutos que estancam a noite.<br />
38
<strong>Chicos</strong><br />
Sophia de Mello<br />
Breiyner Andresen<br />
Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no<br />
Porto (06.11.1919) e faleceu em Lisboa<br />
(02.07.2004). Foi uma das mais importantes<br />
poetisas portuguesas do século XX. Foi a<br />
primeira mulher portuguesa a receber o mais<br />
importante galardão literário da língua portuguesa,<br />
o Prémio Camões, em 1998. O seu corpo<br />
está no Panteão Nacional desde 2014.<br />
Foto - Ronaldo Cagiano<br />
Inscrição<br />
Quando eu morrer voltarei para buscar<br />
Os instantes que não vivi junto do mar.<br />
39
Mulheres à Beira Mar<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Confundido os seus cabelos com os cabelos<br />
do vento, têm o corpo feliz de ser tão seu e<br />
tão denso em plena liberdade.<br />
Lançam os braços pela praia fora e a brancura<br />
dos seus pulsos penetra nas espumas.<br />
Passam aves de asas agudas e a curva dos seus<br />
olhos prolonga o interminável rastro no céu<br />
branco.<br />
Com a boca colada ao horizonte aspiram longa-<br />
mente a virgindade de um mundo que nasceu.<br />
O extremo dos seus dedos toca o cimo de<br />
delícia e vertigem onde o ar acaba e começa.<br />
E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de<br />
ser tão verde.<br />
em Antologia, pág. 76 | Círculo de<br />
Poesia Moraes Editores, 2ª. edição,<br />
1975<br />
".<br />
40
Data<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Tempo de solidão e de incerteza<br />
Tempo de medo e tempo de traição<br />
Tempo de injustiça e de vileza<br />
Tempo de negação<br />
Tempo de covardia e tempo de ira<br />
Tempo de mascarada e de mentira<br />
Tempo que mata quem o denuncia<br />
Tempo de escravidão<br />
Tempo dos coniventes sem cadastro<br />
Tempo de silêncio e de mordaça<br />
Tempo onde o sangue não tem rastro<br />
Tempo da ameaça<br />
Exílio<br />
Quando a pátria que temos não a temos<br />
Perdida por silêncio e por renúncia<br />
Até a voz do mar se torna exílio<br />
E a luz que nos rodeia é como grades<br />
41
Este é o tempo<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Este é o tempo<br />
Da selva mais obscura<br />
Até o ar azul se tornou grades<br />
E a luz do sol se tornou impura<br />
Esta é a noite<br />
Densa de chacais<br />
Pesada de amargura<br />
Este é o tempo em que os homens renunciam.<br />
Se tanto me dói que as coisas passem<br />
Se tanto me dói que as coisas passem<br />
É porque cada instante em mim foi vivo<br />
Na busca de um bem definitivo<br />
Em que as coisas de Amor se eternizassem<br />
42
Um dia<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Um dia, gastos, voltaremos<br />
A viver livres como os animais<br />
E mesmo tão cansados floriremos<br />
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.<br />
O vento levará os mil cansaços<br />
Dos gestos agitados irreais<br />
E há-de voltar aos nosso membros lassos<br />
A leve rapidez dos animais.<br />
Só então poderemos caminhar<br />
Através do mistério que se embala<br />
No verde dos pinhais na voz do mar<br />
E em nós germinará a sua fala.<br />
"<br />
43
Mar<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Mar, metade da minha alma é feita de maresia<br />
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,<br />
Que há no vasto clamor da maré cheia,<br />
Que nunca nenhum bem me satisfez.<br />
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia<br />
Mais fortes se levantam outra vez,<br />
Que após cada queda caminho para a vida,<br />
Por uma nova ilusão entontecida.<br />
E se vou dizendo aos astros o meu mal<br />
É porque também tu revoltado e teatral<br />
Fazes soar a tua dor pelas alturas.<br />
E se antes de tudo odeio e fujo<br />
O que é impuro, profano e sujo,<br />
É só porque as tuas ondas são puras.<br />
44
O barco<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Margens inertes<br />
abrem os seus braços<br />
Um grande barco no silêncio parte.<br />
Altas gaivotas nos ângulos a pique,<br />
Recém-nascidas à luz, perfeita a morte.<br />
Um grande<br />
barco parte abandonando<br />
As colunas de um cais ausente e branco.<br />
E o seu rosto busca-se emergindo<br />
Do corpo sem cabeça da cidade.<br />
Um grande<br />
barco desligado parte<br />
Esculpindo de frente o vento norte.<br />
Perfeito azul do mar, perfeita a morte<br />
Formas claras e nítidas de espanto.<br />
45
<strong>Chicos</strong><br />
Carta aos amigos mortos<br />
Eis que morrestes - agora já não bate<br />
O vosso coração cujo bater<br />
Dava ritmo e esperança ao meu viver<br />
Agora estais perdidos para mim<br />
- O olhar não atravessa esta distância -<br />
Nem irei procurar-vos pois não sou<br />
Orpheu tendo escolhido para mim<br />
Estar presente aqui onde estou viva.<br />
Eu vos desejo a paz nesse caminho<br />
Fora do mundo que respiro e vejo.<br />
Porém aqui eu escolhi viver<br />
Nada me resta senão olhar de frente<br />
Neste país de dor e incerteza.<br />
Aqui eu escolhi permanecer<br />
Onde a visão é dura e mais difícil<br />
Aqui me resta apenas fazer frente<br />
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça<br />
A lucidez me serve para ver<br />
A cidade a cair muro por muro<br />
E as faces a morrerem uma a uma<br />
E a morte que me corta ela me ensina<br />
Que o sinal do homem não é uma coluna.<br />
46
<strong>Chicos</strong><br />
E eu vos peço por este amor cortado<br />
Que vos lembreis de mim lá onde o amor<br />
Já não pode morrer nem ser quebrado.<br />
Que o vosso coração que já não bate<br />
O tempo denso de sangue e de saudade<br />
Mas vive a perfeição da claridade<br />
Se compadeça de mim e de meu pranto<br />
Se compadeça de mim e do meu canto.<br />
Página em branco<br />
Que poema, de entre todos os poemas,<br />
Página em branco?<br />
Um gesto que se afaste e se desligue tanto<br />
Que atinja o golpe do sol nas janelas.<br />
Nesta página só há angústia a destruir<br />
Um desejo de lisura e branco,<br />
Um arco que se curve - até que o pranto<br />
De todas as palavras me liberte.<br />
47
O poema<br />
<strong>Chicos</strong><br />
O poema me levará no tempo<br />
Quando eu já não for eu<br />
E passarei sozinha<br />
Entre as mãos de quem lê<br />
O poema alguém o dirá<br />
Às searas<br />
Sua passagem se confundirá<br />
Com o rumor do mar com o passar do vento<br />
O poema habitará<br />
O espaço mais concreto e mais atento<br />
No ar claro nas tardes transparentes<br />
Suas sílabas redondas<br />
(Ó antigas ó longas<br />
Eternas tardes lisas)<br />
Mesmo que eu morra o poema encontrará<br />
Uma praia onde quebrar as suas ondas<br />
48
<strong>Chicos</strong><br />
Mesmo que eu morra o poema encontrará<br />
Uma praia onde quebrar as suas ondas<br />
E entre quatro paredes densas<br />
De funda e devorada solidão<br />
Alguém seu próprio ser confundirá<br />
Com o poema no tempo<br />
A bela e a pura<br />
A bela e pura palavra Poesia<br />
Tanto pelos caminhos se arrastou<br />
Que alta noite a encontrei perdida<br />
Num bordel onde um morto a assassinou.<br />
49
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Brito<br />
Roque<br />
Nasceu em Cataguases MG, é escritor, autor<br />
do livro infantil “A Menina do País das Ruivas”<br />
O preço do clone<br />
Com o aprimoramento das técnicas<br />
de clonagem, essa prática foi finalmente permitida<br />
e regulamentada em alguns países. Na Inglaterra<br />
casais estéreis foram autorizados a adotar<br />
clones. Na França, casais gueis foram autorizados<br />
a adotá-los. Nos Estados Unidos, atores famosos<br />
conseguiram realizar suas adoções por<br />
meio da Inglaterra, da França ou da Índia. Na<br />
Alemanha votou-se uma lei que permitia ao estado<br />
clonar seres humanos e entregá-los aos cidadãos,<br />
caso a raça ariana se visse ameaçada de<br />
extinção. Na Austrália não se fez absolutamente<br />
nada, e no Japão a imprensa revelou que já se<br />
faziam clones desde 1959.<br />
Na pequena cidade de Capim da Serra, num país<br />
da América Latina, os homens viviam reclamando<br />
da falta de mulheres. As autoridades decidiram<br />
lidar com o problema de maneira inovadora.<br />
Com o aval da assembléia legislativa aprimoraram<br />
o concurso de beleza anual. As três primeiras<br />
colocadas passaram a ser clonadas, e os bebês<br />
eram entregues a casais estéreis de comprovada<br />
estabilidade social.<br />
A decisão gerou revolta, já que a medida não<br />
resolveria o problema em curto prazo. As autoridades<br />
explicaram que, se o concurso continuasse,<br />
a desproporção entre homens e mulheres se<br />
resolveria em questão de vinte e poucos anos.<br />
Era uma medida para os filhos dos atuais cidadãos,<br />
não para eles mesmos, disse um porta-voz.<br />
Uns aceitaram e aplaudiram, outros passaram a<br />
votar no partido de oposição.<br />
De qualquer forma, a moda pegou no resto do<br />
país. Cada cidade com orçamento suficiente para<br />
uma pequena clonagem, passou a fazer o seu<br />
concurso de beleza anual. Às vezes para homens,<br />
às vezes para mulheres, dependendo do gênero<br />
faltante na região. Os bebês-clones eram entregues<br />
a casais estéreis ou a famílias ricas, possuidoras<br />
de imóveis.<br />
Com o tempo a clonagem se tornou mais barata<br />
e popular. As mulheres mais bonitas do país passaram<br />
a vender seu material genético para cópia,<br />
com ou sem autorização do estado. As clonagens<br />
legais, muito caras, eram feitas dentro do país.<br />
As clonagens ilegais, um pouco mais baratas,<br />
eram feitas em países vizinhos, cuja legislação<br />
sobre o assunto ainda não era definida. No início<br />
havia uma predileção evidente pela clonagem de<br />
mulheres. Anos depois alguém se lembrou que<br />
também seria conveniente clonar homens. Então<br />
os atletas e atores famosos também puderam<br />
vender seus DNA’s para cópia e repetição. Ninguém<br />
se interessou em clonar escritores ou professores<br />
de matemática.<br />
50
<strong>Chicos</strong><br />
Dentro de uns trinta anos a mudança na paisagem<br />
humana era visível. No meio da rua se encontravam,<br />
com frequência, mulheres que podiam<br />
ser confundidas com Luana Piovani ou<br />
Eva Mendes, homens que podiam ser confundidos<br />
com Pedro Bial ou Wágner Moura. A semelhança<br />
facial era tão comum que não havia<br />
muitas dores de amor. Uma namorada perdida<br />
era brevemente substituída por outra muito<br />
parecida. Um loiro de olhos azuis já não tinha<br />
muitas namoradas. Cada mulher conseguia,<br />
sem muita dificuldade, outro loiro de olhos<br />
azuis, ex-namorado de uma prima ou amiga. O<br />
mundo amoroso, para surpresa de muitos, andava<br />
bem. Poemas e canções românticas quase<br />
não existiam. Os poetas começaram a escrever<br />
sobre o amor aos filhos, aos netos e aos animais.<br />
Mas toda essa felicidade acabou por incomodar<br />
os infelizes. E os infelizes com frequência<br />
têm acesso aos jornais. Artigos revoltosos começaram<br />
a surgir. Os negros reclamavam que<br />
a população negra não era clonada na mesma<br />
proporção que a branca (na verdade, nem um<br />
negro tinha sido clonado). Os gueis perguntavam<br />
por que ninguém estava clonando gueis.<br />
Os orientais não se manifestaram, e uma ruiva,<br />
tímida, sincera, quase trêmula, fez um vídeo<br />
no Youtube, perguntando se não havia risco de<br />
as ruivas entrarem em extinção.<br />
Isso bastou para que a população realmente se<br />
comovesse. Chuvas de abaixo-assinados apareceram<br />
no Senado e na Câmara Federal. Jornalistas<br />
entrevistaram médicos, ambientalistas,<br />
biólogos e moradores de rua. Todos foram<br />
unânimes em reconhecer que era necessário<br />
clonar as ruivas. O dinheiro começou a aparecer,<br />
vindo de campanhas de financiamento, de<br />
milionários entediados, de shows beneficentes<br />
de bandas irlandesas. E logo o pequeno país<br />
da América Latina havia clonado dezenas de<br />
ruivas, modelos e atrizes em destaque, e alguns<br />
mendigos do interior que, apesar de não<br />
serem populares, carregavam em seus corpos<br />
os genes da ruividade.<br />
Enquanto isso alguns ditadores da África, bem<br />
como o presidente democraticamente eleito de<br />
Guiné Bissau, clonaram algumas de suas esposas<br />
e mandaram os bebês para casais estéreis<br />
do movimento negro. Os gueis, por meio de<br />
campanhas da internet, arrecadaram também<br />
algum dinheiro para clonar três ou quatro atores<br />
que tinham saído do armário. O movimento<br />
Femelesbos conseguiu clonar duas ou três<br />
lésbicas que tinham aparecido em programas<br />
de televisão. Carecas conseguiram provar que<br />
o gene da calvície era fundamental para a humanidade<br />
e clonaram alguns ex-deputados, ex<br />
-ministros e ex-banqueiros. Nesse movimento,<br />
dois ou três escritores acabaram sendo clonados<br />
(e até um professor de matemática). Médicos<br />
que haviam criado uma vacina contra o vitiligo<br />
clonaram algumas pessoas com essa doença,<br />
para que a importante descoberta fosse<br />
mais amplamente divulgada e utilizada.<br />
No meio dessa grande estereotipagem a criminalidade<br />
aumentou bastante. Wágneres Mouras<br />
e Pedros Biais, quando eram detidos pela<br />
polícia, alegavam estar sendo confundidos com<br />
outros Wágneres Mouras e Pedros Biais. A investigação<br />
podia levar anos e não ser concluída.<br />
Os atores passaram a ganhar muito mal e<br />
entraram também no mundo do crime, vendendo<br />
drogas e tentando inutilmente se prostituir.<br />
Clones de deputados e senadores usaram esse<br />
fato para justificar uma lei que punisse severamente<br />
a clonagem de seres humanos. Especialistas<br />
estrangeiros foram ouvidos pela mídia,<br />
estrangeiros que já não se distinguiam dos latino-americanos<br />
a não ser pela língua que falavam.<br />
Jornalistas novamente entrevistaram ministros,<br />
médicos e moradores de rua. No meio<br />
desse caos palavroso de opiniões diversas,<br />
uma velhinha já quase sem voz, muito parecida<br />
com a avó de Luana Piovani, relembrou um<br />
tempo em que o mundo não teve cegos de nascença,<br />
não teve meninos com língua presa,<br />
adolescentes complexadas com vitiligo ou crianças<br />
com síndrome de down. Um tempo em<br />
que as mães eram mais felizes, porque sabiam<br />
que seus filhos não seriam feios e barrigudos<br />
como seus pais. Um tempo em que gordinhos<br />
e monocelhos não conheciam a zombaria nas<br />
escolas. Um tempo anterior a ela mesma, já<br />
distante e duvidoso, quase tão indistinguível<br />
da memória quanto um breve sonho.<br />
51
<strong>Chicos</strong><br />
Antônio Torres<br />
Nasceu em Sátiro Dias (BA), mora em Itaipava<br />
distrito de Petrópolis (RJ). É autor, dentre outros,<br />
os romances Um Cão Uivando para a Lua,<br />
Um táxi para Viena d'Áustria, Meu querido<br />
canibal, A trilogia Essa Terra, O cachorro e o<br />
lobo e Pelo fundo da agulha. O livro de contos<br />
Meninos, eu conto. Sua obra foi traduzida e<br />
publicada em 21 países. Tido como um dos melhores<br />
autores da geração contemporânea.<br />
O Porto bebido e revivido<br />
1.<br />
Esta história começa na Regaleira, na rua<br />
Bonjardim, numa noite de verão do ano de<br />
1965.<br />
Personagens à mesa: o Sr. Coelho, um homem<br />
elegante, empertigado, calvo e poderoso;<br />
um irmão dele - talvez se chamasse José -, de<br />
aparência modesta, como se a sua falta de capricho<br />
na maneira de vestir-se fosse uma estratégia,<br />
para não ofuscar o brilho do outro, notoriamente<br />
mais importante e vaidoso; os demais, num grupo<br />
de seis pessoas, eram da mesma família, moças<br />
e rapazes que pareciam só ter olhos e ouvidos<br />
para o digníssimo cavalheiro que, naturalmente,<br />
iria pagar a conta.<br />
Havia, porém, um corpo estranho nesse quadro<br />
familiar: um brasileiro de 24 anos, recémchegado<br />
de São Paulo, para trabalhar como redactor<br />
de uma agência de publicidade em Lisboa,<br />
chamada Belarte, uma empresa que, como<br />
o seu dono, tinha a sua origem no Porto, onde<br />
mantinha a sua sede ou casamatriz. O Sr. Coelho<br />
- eis o homem -, achou que era pelo Porto mesmo<br />
que o brasileiro faria o seu baptismo de fogo.<br />
Os dois, o patrão e o empregado, chegaram<br />
por via aérea, no final de uma bela tarde de domingo.<br />
Quando o avião começou a descer, o Sr.<br />
Coelho fez o brasileiro olhar pela janela, dizendo<br />
-lhe: “O senhor está a chegar a uma cidade de<br />
heróis.” Ao dizer isso, esboçou um sorriso, não<br />
apenas satisfeito por haver produzido uma frase<br />
de impacto (não fora ele o dono de uma agência<br />
de publicidade), mas por estar prestes a pôr os<br />
pés no chão onde havia nascido. Em seguida,<br />
tirou do bolso um espelhinho e um pente. Mirou<br />
-se no espelho, que segurava com a mão esquerda<br />
e, com a direita, ajeitou cuidadosamente os<br />
cabelos que ainda lhe restavam, nas laterais da<br />
cabeça. Voltou a sorrir. O brasileiro achou que<br />
era bom trabalhar para um homem feliz, que,<br />
com toda a certeza, devia se considerar um herói,<br />
por ser um filho do Porto. Só não entendia<br />
porque esse homem tão feliz o chamava de<br />
“senhor” Que infelicidade! No Brasil, isto era<br />
uma consideração para com os mais velhos ou<br />
uma formalidade para com os superiores hierárquicos.<br />
Lá não era costume chamar-se um jovem<br />
de “senhor”. Tratando-o assim, o Sr. Coelho fazia-o<br />
sentir-se um ancião, aos 24 anos.<br />
52
<strong>Chicos</strong><br />
Em terra, uma caravana os aguardava. O irmão<br />
do Sr. Coelho parecia indócil, ao perguntar,<br />
várias vezes, pelo brazuca, que se sentiu uma<br />
ave exótica ao ser chamado desta maneira. Mas<br />
logo percebeu o tom afetuoso do tratamento. Foi<br />
recebido com efusivos votos de boas-vindas. Nada<br />
mal, para começar.<br />
Do aeroporto seguiram todos para o Grande<br />
Hotel do Império, na Praça da Batalha. O Sr. Coelho<br />
e o seu redactor importado de São Paulo<br />
subiram aos seus quartos, que ficavam lado a<br />
lado, lá deixaram as suas malas e voltaram imediatamente<br />
ao saguão, para juntarem-se novamente<br />
à comitiva e seguirem com ela até à Regaleira,<br />
onde o brasileiro seria batizado com vinho<br />
verde na sua opípara primeira noite no Porto.<br />
A mesa regalava-se a cada garrafa comandada<br />
pelo Sr. Coelho. “Embriagai-vos! De vinho, de<br />
poesia ou de virtudes!”, pensava o brasileiro, já<br />
um leitor de Charles Baudelaire. Mas o irmão do<br />
Sr. Coelho tinha pensamentos mais prosaicos.<br />
Queria saber se era verdade que os papagaios do<br />
Brasil falavam. Ao ser informado que alguns até<br />
cantavam o Hino Nacional, ele entrou em êxtase,<br />
como se acabasse de ouvir a coisa mais extraordinária<br />
que alguém já tivesse lhe contado.<br />
E, revirando os olhos, com o enlevo de uma criança,<br />
confessou o maior sonho de sua vida: “Ah,<br />
gostava muito de ter um papagaio. E dos mais<br />
faladores!”<br />
O brasileiro, embora sensibilizado com o desejo<br />
do seu afável interlocutor, o senhor portuense<br />
que o recebera tão efusivamente, temeu<br />
pelo rumo da conversa. E não sem razão. Não<br />
demorou muito para o irmão do Sr. Coelho dar a<br />
cartada definitiva, ao perguntar se ele por acaso<br />
tinha prestígio suficiente no Brasil para mandar<br />
vir de lá um papagaio. E agora? Papagaio! (No<br />
Brasil, essa exclamação significava: - Caraças!).<br />
Como sair dessa, sem deixá-lo desapontado? A<br />
situação não era das mais fáceis, até porque o<br />
homem era irmão do patrão. Naquele momento<br />
ele, o brasileiro, deu voltas à cabeça. Finalmente<br />
entendia a razão da ansiedade daquele que tanto<br />
havia perguntado, no aeroporto, se o brazuca<br />
viera, e de todos os salamaleques da recepção.<br />
Tudo por um papagaio!<br />
- Temos problemas em relação a isso - disse o<br />
brasileiro. - A fiscalização da Sociedade Protetora<br />
dos Animais é muito rigorosa com a saída de<br />
aves e pássaros do Brasil. Há uma lei que proíbe<br />
isto.<br />
Ufa! Foi duro dar essa resposta àquele que<br />
tanto sonhava ter um papagaio.<br />
O homem murchou. E emudeceu, num deplorável<br />
estado de desilusão. Não seria de estranhar<br />
se, mais tarde, na calada da noite, ele viesse a<br />
dizer para o irmão que a vinda do brasileiro não<br />
tinha valido a pena. Uma providencial voz feminina<br />
quebrou o silêncio, que já se tornava tenebroso:<br />
- Tem piada! Ele é brasileiro mas não se parece<br />
com os outros.<br />
- Como assim?<br />
- Ele não tem os cabelos encaracolados como<br />
os outros.<br />
O estranhamento tinha a sua razão de ser. De<br />
brasileiros ela só conhecia os jogadores que atuavam<br />
no Futebol Clube do Porto, a cada temporada,<br />
pelo visto todos negros. Ele aproveitou a<br />
oportunidade para esclarecer que seu país era<br />
multifacetado, multiracial, multicultural, multitudo.<br />
O Sr. Coelho, que o ouvia com atenção e<br />
interesse, de repente se deu conta de que algo<br />
errado acontecera à mesa: o brasileiro havia deixado<br />
muita comida em seu prato. Num tom de<br />
voz exasperado, perguntou:<br />
- Por que o senhor come tão pouco? É para<br />
não perder a elegância?<br />
53
<strong>Chicos</strong><br />
O brasileiro assustou-se com a pergunta, para<br />
a qual não tinha uma resposta convincente. Distraira-se<br />
com a conversa, com o vinho, com o<br />
brande depois do café... sabia lá por quê! Ou,<br />
vai ver, a Regaleira o deixara com saudades de<br />
um bar paulistano chamado Baiúca, onde, àquelas<br />
horas, o Zimbo Trio podia estar tocando:<br />
“Esta noite / quando eu vi Nanã / vi a minha<br />
deusa / ao luar...” E onde, no fim da madrugada,<br />
o último pianista tocaria Round About Midnight,<br />
a música dos músicos, a trilha sonora das noites<br />
das cidades grandes, São Paulo, Rio de Janeiro,<br />
Nova York, Paris. Qual seria a música do Porto?,<br />
ele se perguntava, enquanto a voz do Sr. Coelho<br />
interferia em seus pensamentos, superpondo-se<br />
aos sons transatlânticos que vinham em camadas,<br />
na sua memória auditiva - o piano, a bateria,<br />
o contrabaixo, Tom Jobim e Baden Powell, o<br />
sax de John Coltrane, o trompete de Miles Davis.<br />
- Imagine se coméssemos tão pouco como o<br />
senhor! Como poderíamos ter dado um Dom<br />
Afonso Henriques, aquele que, com uma única<br />
mão, sustentava uma espada de oitenta quilos?!<br />
- disse-lhe o Sr. Coelho, visivelmente contrariado.<br />
Todos riram às bandeiras despregadas, como<br />
se o patrão tivesse contado uma anedota impagável.<br />
E quem é doido de não rir de anedota<br />
contada por um patrão??? O brasileiro também<br />
riu. Aquela história de Dom Afonso sustentar<br />
uma espada de 80 quilos, com uma única mão,<br />
tinha piada, sim senhor. Não disse, mas pensou:<br />
“Caro Sr. Coelho: vim aqui para escrever os seus<br />
anúncios. E não para levantar espadas”.<br />
E assim terminou a primeira noite dos meus<br />
I5 dias no Porto, daquela vez. Houve outras. A<br />
penúltima durou 1 ano e 6 meses. E cá estou<br />
novamente.<br />
28 de Janeiro de 2000.<br />
O brasileiro voltou e já está à porta da Regaleira,<br />
depois de um bordejo de reconhecimento<br />
da cidade, capitaneado pelo professor Arnaldo<br />
Saraiva, que o levou primeiramente a revê-la de<br />
cima, para a reconstituição de sua memória visual,<br />
como num feixe de imagens do tempo a ser<br />
reconquistado. Tudo como dantes: há 35 anos<br />
também não faltou quem o levasse a contemplála<br />
das alturas, no outro lado do rio. É vendo-a de<br />
cima que se percebe que esta cidade foi uma<br />
fortaleza que não facilitava a entrada dos seus<br />
invasores d’antanho. Percebe-se mais: que o seu<br />
casario, tão esplendidamente fotogénico, sobe a<br />
encosta na mais perfeita harmonia, como se cada<br />
casa tivesse sido montada por um artesão,<br />
que depois a encaixou à mão, tomando todo o<br />
cuidado para não destoar dos demais, que por<br />
sua vez haviam-se desempenhado com o mesmo<br />
critério e rigor. É de cima que se vê melhor o<br />
quanto o rio é baixo: suas águas ficam muito<br />
aquém das ribanceiras. Foi lá de cima, de um<br />
deslumbrante posto de observação, que, por um<br />
breve momento, tentei rever a mim mesmo, ou,<br />
pelo menos, um pedaço da minha juventude,<br />
quando perambulava no sobe-e-desce do lado<br />
histórico da cidade, que tanto fez parte da história<br />
de um pedestre anônimo, sem eira nem beira,<br />
no entanto a sonhar todos os sonhos do mundo,<br />
e que a um só se resumiam: tornar-se um escritor.<br />
E nisto o Porto não me negou fogo, nas noites<br />
e dias gelados de seus longos invernos, nas<br />
suas chuvas de granizo a chicotear-me a cara,<br />
nos seus nevoeiros a fazer-me andar às cegas,<br />
nos seus verões de São Martinho em pleno novembro,<br />
quando a cidade sombria multicoloriase,<br />
levando todos às tascas, na mais fantástica e<br />
compreensível das comemorações, em homenagem<br />
àquele que, por um período que em geral<br />
durava três dias, governava o Porto, fazendo jus<br />
a seu epíteto de astro-rei.<br />
Havia sol também nessa tarde de Janeiro. Um<br />
sol esmaecido a produzir um efeito especial sobre<br />
o colorido das pontes, monumentos, paredes,<br />
portas e janelas. Como as águas do rio, tudo<br />
se doura, sob a luz tênue do entardecer.<br />
2.<br />
54
<strong>Chicos</strong><br />
Suaviza-se a cidade granítica, que um dia a<br />
mim pareceu ter gerado homens empedernidos,<br />
que, subconscientemente, viviam a levantar espadas<br />
de 80 quilos, e com uma única mão! Ora<br />
viva: este brasileiro tem que reconhecer a sua<br />
dívida de gratidão para com esta cidade que um<br />
dia lhe pareceu de pedra até a alma, naqueles<br />
idos dos 60, nos estertores do reinado de Dom<br />
António de Oliveira Salazar, diga-se. Como no<br />
título de Alexandre O’Neill, “Feira Cabisbaixa”,<br />
os homens aqui pareciam viver encastelados<br />
num círculo de desesperança, a darem voltas em<br />
torno da sua melancolia, como em todo o País.<br />
Nestas circunstâncias, espaço e tempo, o Porto<br />
franqueou-me um laboratório para o meu processo<br />
criativo: aqui encontrei o cenário e os personagens<br />
de um romance chamado Os Homens<br />
dos Pés Redondos. São estes personagens e este<br />
cenário o que tento reencontrar agora, ao chegar<br />
à Regaleira, embora já sabendo que a cidade já<br />
não é a mesma de trinta e cinco anos atrás: repaginou-se,<br />
cedendo às pressões do inescapável<br />
destino da modernização, aqui, registre-se, encontrando<br />
soluções arquitetônicas surpreendentes,<br />
ao estabelecer um visível equilíbrio entre<br />
passado e presente, tradição e modernidade.<br />
Mas vamos à Regaleira, que, trinta e cinco anos<br />
depois, continua no mesmo lugar. Com a sua<br />
mesma porta escura e o mesmo cartazete nela<br />
afixado: “Tripas à moda do Porto.”<br />
Lá dentro, porém, já não parece mais a<br />
mesma. Entro e páro. O balcão, onde o ator João<br />
Guedes - que morava em Matosinhos - e eu<br />
bebíamos cerveja acompanhada de tremoços, às<br />
vezes contando com a alegria da presença da<br />
actriz Isabel de Castro, em temporada no Teatro<br />
Experimental do Porto, bem, o balcão da<br />
Regaleira parece mudado. Ficou maior e pior. Há<br />
agora um certo aspecto de decadência e<br />
vulgaridade num ambiente que antigamente<br />
assemelhava-se a um santuário, de tão intimista<br />
e aconchegante. No balcão, onde o João Guedes<br />
citava de memória trechos e mais trechos do<br />
Grande Sertão: Veredas, o romance monumental<br />
do brasileiro João Guimarães Rosa, para os seus<br />
amigos que aqui vinham reencontrá-lo sempre, o<br />
que há agora é tão somente um solitário leitor<br />
de um jornal desportivo. É uma noite de sextafeira<br />
e, estranhamente, só uma mesa do<br />
restaurante está ocupada, por um casal de idade<br />
avançada. Pelo visto, a Regaleira já conheceu<br />
noites mais felizes. Saudades do Sr. Coelho e<br />
seus familiares. Muito mais ainda do João<br />
Guedes. Tempus fugit. Como na música do<br />
pianista norte-americano Bud Powell.<br />
Deixo a Regaleira e me ponho a andar.<br />
Vou até a esquina, à procura de uma tasca<br />
chamada Maria Rita. Ali, um desenhador<br />
chamado De Jesus, sempre com uma tesoura ao<br />
bolso e dizendo que iria enfiá-la na barriga do<br />
seu chefe, no dia seguinte, e o cabo Emílio, que<br />
toda noite contava a mesma história, na qual se<br />
via como um herói, quando, ao prestar serviço<br />
militar em Macau, deu um murro num tenente<br />
que lhe roubara a namorada, e fora posto num<br />
navio de volta, para amargar 5 anos de prisão -<br />
pois estes dois memoráveis personagens do<br />
Porto já não estão entornando um copo atrás do<br />
outro, na Maria Rita, pela simples razão de que<br />
aquela tasca não existe mais. E eles? Ainda<br />
estarão vivos? E o que fizeram ou fazem de si<br />
mesmos?<br />
Vagueio pela Bonjardim em sentido<br />
contrário. Dou de cara com o luzidio edifício de<br />
5 andares, que era um dos pilares do dinheiro do<br />
Porto. Ostentava na fachada um logotipo<br />
formado por 3 letras: BPM. Um artifício, que<br />
transformou uma casa bancária em<br />
“Banqueiros.” Era isso o que dizia o “B” do<br />
logotipo, fazendo-se passar por “Banco.” O PM<br />
significava Pinto de Magalhães, quem não sabe?<br />
Cá estou a ver o Sr. Afonso, um homem muito<br />
simples, de origem humilde, que começou como<br />
cambista de moedas na fronteira da Espanha, ao<br />
tempo da guerra: ele está atendendo a várias<br />
chamadas telefónicas ao mesmo tempo, do<br />
Brasil, de Paris, de Nova York. Ao seu lado,<br />
55
<strong>Chicos</strong><br />
de pé, o seu genro Rodrigo segura-lhe os fones,<br />
fazendo as trocas de instante a instante, para<br />
que o sogro converse um bocadinho com um,<br />
depois com outro, volte àquele cuja conversa foi<br />
interrompida e assim vai. Bom e obediente<br />
rapaz, esse seu Rodrigo. Sogro e genro já não<br />
pertencem a este nosso mundo.<br />
O BPM também já morreu, O seu edifício<br />
ostenta agora o logotipo de outro banco.<br />
Logo por ali, na Sá da Bandeira, <strong>56</strong>, último<br />
andar, ficava a Pali - Publicidade Artística Ltda.<br />
Laborei lá durante um ano e meio, trazido de<br />
Lisboa por um brasileiro, que por sua vez foi<br />
importado da Mac-Cann Erickson do Rio de<br />
Janeiro pelo banqueiro Afonso Pinto de<br />
Magalhães. E assim o carioca Eugénio Lyra Filho<br />
transformou um departamento de publicidade<br />
em agência, e a agência em mais uma empresa<br />
do conglomerado BPM. O bom Lyra também já<br />
se foi, lá no Rio. E onde estariam os outros<br />
camaradas desse tempo, como o belga René<br />
Coomans e o velho Mário Frazão? Foi dele que<br />
ouvi uma sábia declaração, sacramentada por<br />
um brande: “Escuta-me, rapaz. Bom não é ser<br />
pai. Bom é ser avô. O pai reprime. O avô deixa o<br />
neto fazer o que quiser.” Ele acabava de ganhar<br />
um neto. Estava em estado de graça. Impossível<br />
recordar o Frazão sem um bocado de afeto.<br />
Ninguém mais precisa me dizer que A<br />
Brasileira está fechada. Meninos, eu vi. Era em<br />
torno dela que homens soturnos gravitavam, até<br />
ficarem de pés redondos. Mas o Majestic<br />
continua vivo e ainda aqui, com toda a sua<br />
majestade, na rua de Santa Catarina, onde<br />
morei, lá mais para cima, dividindo um<br />
apartamento com o ator Luiz Alberto.<br />
Lembranças de um médico chamado Jorge<br />
Tunhas, que aqui lia um livro atrás do outro,<br />
enquanto aguardava ser chamado para a guerra.<br />
Uma noite, à véspera do embarque, tomou um<br />
pifa daqueles! Saiu urrando pelas ruas. Urros<br />
lancinantes, como uma fera ferida. O horror da<br />
guerra. O Majestic me recorda também uma<br />
moça que, nos fins de tarde, entre um café e<br />
outro, me ensinava inglês. No Majestic começo<br />
a leitura do Primeiro de Janeiro pelo expediente.<br />
Quero ver se o Manuel Dias ainda está lá e se já<br />
é o seu Director de Redacção, Editor-Chefe,<br />
qualquer coisa assim. Importante! Lembro-me<br />
dele como um gajo esperto, rápido, criativo e...<br />
bom de copo! Se talento vale alguma coisa neste<br />
mundo, Manuel Dias já deve ser o dono do<br />
Primeiro de Janeiro. Decepção: o nome dele<br />
sequer figura no expediente. Deixo o jornal de<br />
lado. Não tem Manuel Dias? Não vai ter este<br />
leitor.<br />
Falta-me coragem para subir a rua de<br />
Santa Catarina até o prédio onde morei.<br />
Saudades do Sr. Soares, o zelador. Ele adorava<br />
uma bagaceira, que bebia escondido da dona<br />
Angelina, nos fundos de uma pequena<br />
mercearia, no outro lado da rua. Depois da<br />
terceira dose, puxava a carteira do bolso e dela<br />
retirava um retrato de dona Angelina quando<br />
jovem: “Ela é bonita, não é?” - dizia,<br />
embevecido. Não dava para discordar dele.<br />
Mesmo entrada em anos, dona Angelina<br />
continuava uma mulher muito bonita. Todo<br />
domingo, religiosamente, ele assava um<br />
bacalhau, que cobria com imensas rodelas de<br />
cebola. E eu que não fizesse a desfeita de faltar<br />
ao seu almoço, servido sempre na sua pequena<br />
área de serviço. Jamais alguém neste mundo<br />
assou um bacalhau tão bom quanto o do Sr.<br />
Soares. Uma noite, dona Angelina me chamou à<br />
sua casa. Ele estava de cama e queria que eu<br />
fosse visitá-lo. Fui imediatamente. Sentei-me ao<br />
seu lado, perguntando se queria que chamasse<br />
um médico. Disse que não. Já estava entupido<br />
de remédios. De pé no quarto, dona Angelina<br />
<strong>56</strong>
Disse que não. Já estava entupido de remédios.<br />
De pé no quarto, dona Angelina reclamava: o<br />
marido não podia continuar bebendo do jeito<br />
que bebia, diariamente. Pediu-me para lhe dar<br />
uns conselhos, enfim, que o fizesse parar de<br />
beber. Enquanto ela saía resmungando, o Sr.<br />
Soares ordenou-me que levasse a mão por<br />
debaixo da cama, depressa, antes que a sua<br />
mulher voltasse. Obedeci-lhe. E fiz a caça ao<br />
tesouro escondido. Entreguei-lhe a garrafa. Com<br />
uma sofreguidão infantil, o Sr, Soares<br />
destampou-a e sorveu um trago. Depois estalou<br />
os beiços e sorriu, contente da vida.<br />
Ao se recuperar da doença, procurou-me<br />
para dizer que dona Angelina o havia proibido<br />
de beber. Estava muito infeliz por causa disso,<br />
numa desolação de dar dó. Dei-lhe uma cópia da<br />
chave do meu apartamento, dizendo-lhe que<br />
quando sentisse vontade de um copo, era só ir lá<br />
e procurar um garrafão que estava na cozinha.<br />
Seus olhos brilharam. Ele voltava a ser uma alma<br />
deste mundo. Eu não podia negar esse favor ao<br />
homem que fizera de tudo para impedir os<br />
moradores - todos os moradores! - de me<br />
expulsarem do prédio, por causa da música que<br />
eu ouvia e de uma festa que promovi, para as<br />
bailarinas e bailarinos da Gulbenkian, em<br />
apresentação na cidade. O Sr. Soares conseguiu<br />
impedir a minha expulsão com um argumento<br />
tirado da manga, como o jogador que puxa a<br />
última carta, ainda que seja um blefe: “O senhor<br />
doutor não conhece bem os seus inquilinos”-<br />
disse ele ao proprietário do prédio,<br />
acrescentando: “Dia destes, às duas horas da<br />
manhã, uma moradora do segundo andar me<br />
acordou para fazer calar um cachorro que latia<br />
na rua. Isso é lá trabalho para um zelador?” O<br />
Sr. Proprietário sorriu e respondeu-lle que podia<br />
ir-se, mas que recomendasse ao brasileiro para<br />
não mais fazer barulho. Estava farto de<br />
reclamações. Grande Sr. Soares. Nenhum<br />
advogado teria feito melhor. “A partir de agora,<br />
abaixe um pouco a música, senão vou ficar<br />
desmoralizado”- sentenciou o meu<br />
competentíssimo defensor.<br />
No dia em que fui embora ele não<br />
apareceu. Dona Angelina chegou até a porta do<br />
edifício para um abraço de despedida. “E o Sr.<br />
Soares?” Ela então esclareceu que ele se<br />
recusara a se despedir de mim. Na verdade,<br />
estava de cama. Havia adoecido, ao saber que<br />
<strong>Chicos</strong><br />
eu ia partir. Que porra. Ele doente e eu não iria<br />
estar mais ali, para caçar o tesouro debaixo da<br />
cama, o único remédio que seria capaz de curálo,<br />
junto com o meu afeto, quem sabe.<br />
Recordações à mesa do Majestic,<br />
observando um cavalheiro de seus trinta e<br />
poucos anos, impecavelmente vestido, que pede<br />
café e água, depois abre o seu laptop, colocado<br />
sobre o sofá, e começa a trabalhar, como se<br />
estivesse em casa ou no seu escritório. De<br />
repente o seu telemóvel toca. Ele leva a mão ao<br />
bolso, pega o aparelho e atende a ligação<br />
telefónica. Depois, recoloca o telemóvel no<br />
bolso e volta à sua lida, em frente do<br />
computador. Passado algum tempo, desliga-o.<br />
Quando volto a observá-lo, vejo que ele tem<br />
uma mão sobre o laptop e a outra está a mexer e<br />
remexer com a colherzinha no açucareiro, e a<br />
olhar fixamente para a parede de vidro na frente<br />
do café. Penso ter finalmente reencontrado um<br />
remanescente - ou herdeiro - dos homens dos<br />
pés redondos, por este olhar tão parado e<br />
penetrante, como se fosse furar a parede. Era<br />
uma cena típica da Brasileira. Mas as minhas<br />
recordações dizem menos respeito ao cidadão<br />
com todo o jeito de executivo da era yuppie, do<br />
que de amigos de um outro tempo: onde estará<br />
e o que faz hoje o publicitário Carlos Guimarães,<br />
que me deu guarida, enquanto eu procurava um<br />
lugar para morar? Foi na casa dele que eu vi,<br />
pela TV, o Brasil levar urna surra de Portugal, na<br />
Inglaterra, na Copa do Mundo de 1966, o ano<br />
do Euzébio. E o lisboeta Manuel Pena Costa,<br />
director da Manpower Portuguesa, ainda passa<br />
temporadas por aqui, na condução de seus<br />
negócios, e a sorver uma ginginha, depois do<br />
expediente, para espantar o frio? E a actriz<br />
Mirna Vaz, que papel andará desempenhando?<br />
A ex-Miss Objectiva de Portugal Lydia Franco<br />
terá voltado a apresentar-se aqui com o balé da<br />
Gulbenkian? Em que palco o Luiz Alberto será<br />
encontrado? E Isabel Ruth, teria voltado ao<br />
Porto, depois daquele ano em que actuou no<br />
filme Mudar de Vida, de Paulo Rocha, rodado ali<br />
perto, em Furadouro-Ovar? E Paulinha Guedes,<br />
que conheci criança e se tornou uma bela actriz,<br />
alguma vez revisitou Matosinhos? O realizador<br />
de cinema José Fonseca e Costa ainda se<br />
lembrará que foi ele quem me trouxe de carro,<br />
num belo dia ensolarado, quando vim para<br />
morar, deixando-me na Brasileira, aos cuidados<br />
57
do Carlos Guimarães?<br />
Essa peregrinação memorialística vai levar a<br />
uma noticia triste: amanhã o Manuel Dias nos<br />
informará, a mim e ao professor Saraiva, que o<br />
nosso grande amigo Alberto Sérgio, o bancário e<br />
jornalista esportivo, já não poderá mais, nunca<br />
mais, ser convidado para o almoço, como nos<br />
velhos tempos. Faz um ano que ele mudou-se do<br />
Porto para a cidade dos pés juntos. E assim, o<br />
meu Porto revivido não deixou também de ter<br />
uma nota de melancolia, como que saída de uma<br />
página de Scott Fitzgerald, num de seus textos<br />
mais candentes, intitulado Minha Cidade Perdida.<br />
O meu centro de gravitação no Porto era esse<br />
mesmo que é chamado de “cidade histórica.”<br />
Das sombras do BPM à rua de Santa Catarina,<br />
almoço e jantar no Rei dos Fritos, na Praça de<br />
São Lázaro, onde havia um reservado para a<br />
malta da Escola de Belas Artes, a do Teatro Experimental<br />
e este redactor. Ao final das refeições,<br />
uma moça chamada Izilda, filha do dono<br />
da casa, trazia as contas e um livro comprido, no<br />
qual cada um procurava o seu nome e anotava a<br />
3.<br />
<strong>Chicos</strong><br />
sua despesa do dia, para pagar no fim do mês.<br />
Especialidades do Rei dos Fritos: tripas á moda<br />
do Porto (naturalmente) e papas de sarrabulho.<br />
Mas o cardápio era bem variado. Ali comia-se a<br />
gosto, fartamente, e barato. E ainda com a vantagem<br />
do pendura. Depois do almoço, café com<br />
brande no Belas Artes, na outra ponta da Praça<br />
de São Lázaro. Quando o dinheiro dava, íamos<br />
ao Chez Lapin, na Ribeira, agora o point da moda,<br />
da muvuca (tradução: agito, barulho, ajuntamento<br />
de pessoas, para beber, namorar, divertirse),<br />
com todas as inconveniências disto, não certamente<br />
para os negócios.<br />
Fora deste polígono, fico perdido, ainda mais<br />
agora, com as mudanças que a cidade sofreu,<br />
principalmente para além do seu perímetro histórico.<br />
Talvez precisasse morar mais um ano e<br />
meio no Porto, para adaptar-me às exigências<br />
que a contemporaneidade lhe impôs, e aceitá-las<br />
sem traumas, como o fazem seus habitantes,<br />
com um indisfarçável orgulho. A questão é simples<br />
e compreensível: se revivi o seu lado antigo<br />
e pouco ou nada vivi o novo, é porque foi no<br />
Porto histórico que tive uma história. Seja como<br />
for, “Biba o Puerto, carago!!!”<br />
*Texto publicado originalmente na revista<br />
Terceira Margem, da Universidade do Porto.<br />
58
José Vecchi de<br />
Carvalho<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases, após morar por muito<br />
tempo em Viçosa vive hoje em Paula Candido<br />
todas cidades mineiras. Coautor de A casa da<br />
Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de<br />
Duas Cruzes (contos 2018).<br />
O chapéu do falecido<br />
O velho Isaac partiu no início da<br />
semana. Deixara muitos bens: dinheiro, imóveis,<br />
letras de valor, joias e o inseparável<br />
chapéu. Este último, que o acompanhara por<br />
toda a vida, fora, agora, deixado de lado, esquecido<br />
sobre um criado-mudo pegado à cama.<br />
Não combinava com o ritual fúnebre,<br />
nem tinha importância para a maioria dos<br />
familiares, um reles adereço de um velho<br />
boêmio e mulherengo. Enquanto a família<br />
fazia planos da partilha de bens, o chapéu,<br />
agora inútil, descansava das constantes noitadas,<br />
das madrugadas insones em que aparava<br />
o sereno e protegia o seu dono. Fiel como<br />
um cão, agora no abandono de uma casa<br />
vazia, está à espera da morte, a contar as horas.<br />
Não era como os relógios de pulso, de<br />
bolso, antigos e valiosos — ouro puro —;<br />
abotoaduras, anéis; pulseiras, uma de ouro<br />
branco com elos quadrados, uma fortuna;<br />
casa, apartamentos alugados, o sítio, o apartamento<br />
em Guarapari. Tudo esmiuçado, estimado,<br />
cobiçado. O chapéu, por sua vez,<br />
gozava de uma desdenhada solidão, desprezado<br />
como uma mulher feia numa reunião<br />
de beldades.<br />
O velho Isaac deixara também quatro filhos.<br />
Três com a esposa já falecida, e o caçula,<br />
Amon, nascido de um relacionamento extraconjugal.<br />
Amon, que a família do morto não reconhecia,<br />
apareceu para se despedir do pai.<br />
Choroso e tímido, ficou ao lado do caixão<br />
até a chegada ao cemitério. A família, contrariada,<br />
tentava, em vão, envolvê-lo, encobri<br />
-lo da visão das pessoas que certamente falariam<br />
mal do velho, num momento em que só<br />
cabem elogios.<br />
A presença de Amon no velório provocou,<br />
além do constrangimento, discussões<br />
sobre a partilha. Não contavam com a presença<br />
indesejada que, na certa, iria reivindicar<br />
direitos de herdeiro. Vivia longe dali,<br />
com seus vinte e dois anos, e o velho encontrava-se<br />
com ele de vez em quando, longe<br />
dos olhos reprovativos. O rapaz, que nunca<br />
dera as caras e não fora reconhecido legalmente<br />
pelo pai, aparece agora, para chorar<br />
e tentar abocanhar alguma coisa, garantir<br />
os estudos e uma vida boa. Era preciso<br />
contratar alguém para orientar, cuidar do<br />
caso, defender o interesse dos legítimos<br />
59
herdeiros. Os irmãos seguiram o cortejo<br />
confabulando. Absortos em hipóteses e<br />
planos, nem ouviram as exéquias, quase<br />
não viram o esquife descer na cova. Foi preciso<br />
um tio chamar-lhes a atenção para que<br />
parassem de falar e se aproximassem.<br />
Amon não arredou o pé, estava lá o tempo<br />
todo, e os irmãos acharam por bem chamálo<br />
para uma conversa. Voltaram para a casa<br />
do velho arrastando o silêncio do cemitério,<br />
engasgados com palavras escusas e hostis,<br />
até a conversa gerar surpresa.<br />
Como assim? Ora, a herança. Meu pai me<br />
deixou o suficiente para concluir os estudos.<br />
Deixou? Sim, deixou, fez um depósito<br />
e me disse do que se tratava. Quando? Há<br />
cinco meses. É a sua parte? Acho que sim,<br />
mas queria guardar comigo algum objeto,<br />
uma lembrança dele. Os discos? Posso leválos<br />
também, se não quiserem ficar com<br />
eles, mas queria ficar com o chapéu, será<br />
uma boa lembrança, Isaac até já brigou por<br />
ele numa de suas noites de farra. Não o tirava<br />
por nada. Era um amuleto para ele e seria<br />
sagrado para mim.<br />
Sem nenhuma demora e com palavras gentis<br />
deram ao rapaz o chapéu, despediramse<br />
com inédita amabilidade, e Amon tomou<br />
rumo de casa levando nas mãos o Marcatto<br />
pelo de lebre. Andava e acariciava o chapéu.<br />
Chegou a colocá-lo na cabeça, mas retirou-o<br />
rapidamente por considerar tal atitude<br />
um desrespeito. Melhor guardá-lo para<br />
sempre, com todo o zelo. Afinal, nunca fora<br />
dado ao uso de chapéus ou bonés. Se viesse<br />
a usá-lo, seria para homenagear o velho.<br />
Depois do acordo, os legítimos herdeiros<br />
<strong>Chicos</strong><br />
seguiram para suas casas. Uma comida leve<br />
e a tentativa de dormir cedo, vencida por<br />
um emaranhado de lembranças, pensamentos<br />
e planos. O chapéu balançava pra lá e<br />
pra cá, interrompendo momentos de lucidez.<br />
Estranho esse rapaz querer apenas o<br />
chapéu! Ele deve ser louco. Como pode<br />
uma pessoa passar por tantas privações e<br />
numa hora dessas pedir humildemente apenas<br />
um objeto qualquer, uma recordação,<br />
um simples chapéu? Vai ver o velho o entupiu<br />
de dinheiro, uma bolada pra ele não<br />
precisar trabalhar nunca na vida. Ele falou<br />
sobre isso, não escondeu, o velho depositou<br />
uma quantia para garantir os estudos.<br />
Só isso? Amanhã veremos o testamento.<br />
Esse merda não tem nenhuma ambição? Ou<br />
aquele chapéu tem um tesouro? Essa possibilidade<br />
desconcertou ainda mais o pensamento<br />
do filho mais velho do senhor Isaac.<br />
Pegou o telefone, falou com um dos irmãos,<br />
depois com o outro. Atônitos, todos concordaram<br />
com a hipótese, e no outro dia se<br />
reuniram bem cedo para tratar do assunto.<br />
Tinham que fazer alguma coisa. O chapéu,<br />
certamente guardava um segredo, um forro<br />
falso recheado de joias ou dólares. Quem<br />
sabe uma gema valiosa escondida na fita<br />
ou presa na carneira. Amon com cara de<br />
bobo, mas por certo, um espertalhão. E o<br />
velho, impedido pela família de reconhecer<br />
o garoto no passado, recompensara-o, no<br />
presente, com tudo o que podia.<br />
Estabeleceu-se um plano: o neto mais novo<br />
do velho gostava do chapéu e o avô havia<br />
prometido para o garoto. Perfeito, quem<br />
poderia negar? O menino estava muito<br />
60
triste, até adoentado. Eles dariam o toca<br />
discos e todos os vinis do velho; os cintos,<br />
as gravatas, dois pares de sapatos, um retrato,<br />
tudo em troca do chapéu. Tudo acertado.<br />
Uma dúvida repentina veio a pinicar<br />
as orelhas dos cobiçosos e afetar seus ardis.<br />
Amon, com cara de bobo, mas um espertalhão,<br />
já devia ter retirado o que tinha de valor<br />
no chapéu. O que fazer? Ora, vasculhar<br />
cada parte para verificar indícios de um<br />
possível latíbulo de valores, ou alguma avaria<br />
que demonstrasse que o tesouro já fora<br />
surrupiado.<br />
Saíram atrás de Amon. Hesitaram na entrada<br />
da casa pobre, mas o rapaz os convenceu.<br />
Amon se interessou pelos discos, ficou<br />
com pena do menino que tanto queria o<br />
chapéu do avô, mas ponderou, afinal era o<br />
objeto que melhor caracterizava o velho,<br />
melhores lembranças trariam e era o de<br />
menor valor. Poderiam dar um chapéu semelhante,<br />
era uma criança e não faria distinção.<br />
Essa proposta, porém, deixou os<br />
rapazes ainda mais certos de que algo valioso<br />
estava escondido e que não poderiam<br />
voltar para casa sem o chapéu. O menino<br />
não é nenhum bobo, saberá a diferença —<br />
disseram — e não temos coragem de mentir<br />
para ele, não seria justo deixá-lo adorar um<br />
objeto de recordação do avô, mostrar aos<br />
colegas, sendo enganado pela família.<br />
Diante disso, Amon recuou e, compadecido,<br />
foi buscá-lo. Pudesse o chapéu, coitado,<br />
decidir seu destino, se esconderia num armário,<br />
no fundo de uma gaveta, debaixo da<br />
cama, no sótão ou no porão. Mas a casa,<br />
pobrinha, não tinha armários, gavetas, sótão<br />
e porão. E lá veio ele nas mãos de<br />
61<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Amon. Pudesse o chapéu, coitado, expressar<br />
sua contrariedade... Ah, isso sim. Sóbrio,<br />
austero, circunspecto, triste. Acostumado<br />
a alegrias, noitadas e carinhos, parecia<br />
agora adivinhar sua sina.<br />
Os irmãos se apressaram em descarregar os<br />
discos, a antiga vitrola com seu móvel de<br />
madeira escura, antiga e uma caixa com bugigangas<br />
do velho. Deixaram tudo na pequena<br />
sala, amontoado num canto, sem<br />
muito cuidado, alguns discos despontavam<br />
salientes com uma parte fora da capa.<br />
Amon se dispôs a ajudá-los, mas rapidamente<br />
despejaram toda a carga sem precisar<br />
de ajuda e sem nenhum cuidado.<br />
Despediram-se com pressa e saíram avaliando<br />
o chapéu ainda em perfeitas condições.<br />
Apalparam, puxaram, esfregaram.<br />
Usaram tesoura e canivete, e antes mesmo<br />
de chegarem em casa, o coitado fora submetido<br />
a torturas para revelar segredos da<br />
suposta operação clandestina. De repente,<br />
pararam e conferiram o novo aspecto do<br />
chapéu: curvas e dobras, todas com avarias;<br />
rasgos no forro, a fita jogada no fundo do<br />
carro, até a aba sofreu cortes pelas mãos<br />
raivosas que, apesar da tortura, não conseguiram<br />
nada.<br />
Estropiado, agonizante, o chapéu agora<br />
quase tão morto quanto o antigo dono, mas<br />
sem perder a galhardia — como se tivesse<br />
assimilado o jeito brincalhão do velho Isaac<br />
— exibia, num dos rasgos que sofrera na<br />
parte frontal do cone, o formato de uma<br />
boca a escancarar um sorriso escandaloso,<br />
meio tonto, meio torto, zombeteiro, debochando<br />
impiedosamente de seus algozes.
<strong>Chicos</strong><br />
Andressa Barichello<br />
Nasceu em São Paulo - SP, atualmente mora<br />
em Portugal. É autora do livro Crônicas do Cotidiano<br />
e outras mais (Scortecci, 2014). É cofundadora<br />
do projeto fotoverbe-se.com.<br />
Praça dos Touros.<br />
Cheguei à feira por volta das 10h. Não<br />
sou boa para feiras e para tantas outras coisas<br />
para as quais não se pode tardar. Tardo sempre<br />
e em tudo e chego à espera de encontrar<br />
ainda alguma coisa para levar para casa. Restos,<br />
tudo de partida, umas folhas de couvecoração-de-boi<br />
já vazias de couve, folhas pelas<br />
caixas, pelo chão... A couve ausente, ouve<br />
ausente! E como diante de um comando, ouço<br />
o coração rápido dos bois ausentes – a feira<br />
do bairro acontece na famosa Praça de<br />
Touros.<br />
Poucos dias atrás soube pela transmissão<br />
ao vivo que as cenas da TV aconteciam a uma<br />
quadra. Enquanto eu no sofá, os espetos no<br />
boi. Não são espetos, são bandarilhas, são farpas!<br />
Ignoro nomes e tradições, reconheço<br />
apenas o sangue a jorrar, buraco de seta. Eu<br />
tenho carne e medo de flechas. Tive sempre<br />
medo que me acertassem o coração de boi.<br />
Couve? Não sei, mas houve. Daí o vício de<br />
correr para onde a capa sacode, olé.<br />
Hoje, no lugar dos touros, dos cavaleiros,<br />
do público, nem passo, nem piso, nem olé. As<br />
bancadas vazias, o som dos porta-malas a bater;<br />
dentro levam de volta o que ninguém<br />
quis. Mangueiras lavam o vermelho e acompanho<br />
o caldo dos morangos e dos tomates<br />
como a limpeza do sangue derramado quando<br />
a feira foi festa.<br />
A primeira vez em que ouvi a palavra tauromaquia<br />
pensei em taxidermia. De alguma<br />
forma a tauromaquia talvez seja jeito de empalhar<br />
um touro, a imagem dele para sempre,<br />
quem não tem? O touro vazio, olhos de vidro,<br />
mesmo quando a arena tenha se transformado<br />
no palco dos feirantes, no templo dos<br />
vegetarianos, essa contradição de pensamentos<br />
tão opostos debaixo dos mesmos chifres.<br />
Não seria exatamente esse tipo de alternância<br />
a tornar todas as coordenadas geográficas do<br />
mundo um lugar ainda possível? Pelas 10h,<br />
quando tudo já foi vendido, depois do corte<br />
na pele dos mamões verdes, das pencas de<br />
bananas divididas em cachos, das cebolas,<br />
alhos, alfaces e couves terem perdido suas<br />
cascas, as 10h ainda há a florista. Sentada na<br />
banqueta, o olhar a fugir para o chão, ela parece<br />
à espera de que a tirem pra dançar – mas<br />
não há capa, nem cavaleiros que com um simples<br />
esforço ortográfico possam se transformar<br />
em cavalheiros. Há orquídeas, meia dúzia<br />
de gérberas e centenas de rosas vermelhas.<br />
Hoje eu não vendi nada, nada além de uns<br />
crisântemos – ela murmura e lambe um dos<br />
dedos após tocar um espinho. Ou seria um<br />
espeto? Bandarilhas, farpas?<br />
Depois de muito hesitar, decido levar uma<br />
rosa.<br />
Falamos sobre a praça. Sobre a arquibancada<br />
agora vazia. Tortura. Tradição.<br />
E porque estamos sozinhas sob o restante<br />
perfume das mangas, pergunto:<br />
- Qual mesmo a diferença entre boi e touro?<br />
É que o boi é o de comer?<br />
A faca rápida remove os espinhos e sobre<br />
a tábua de madeira decepa parte do longo<br />
caule; que chega liso à minha mão.<br />
- O boi é o touro, só que castrado. A menina<br />
não sabia?<br />
62
<strong>Chicos</strong><br />
José Antonio<br />
Pereira<br />
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />
casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e<br />
autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />
Regra três de juiz<br />
O velho Antônio sempre me levava<br />
para os campos de futebol, curiosamente os<br />
que mais frequentávamos eram às margens<br />
do Meia-Pataca. O do Manu Mineira se espremia<br />
entre a linha férrea do Miraí e o ribeirão.<br />
Ali o atacante Candido foi rebatizado.<br />
Num domingo calorento o Manu jogava no<br />
meio da tarde, o sol rachando a cacunda da<br />
torcida, que em grande maioria era de operários<br />
das fábricas de tecidos e papéis que davam<br />
nome ao time. Num dado momento o<br />
tal Candido cai em campo e, comandados<br />
pelo Arduíno, alguns reservas o retiram<br />
apressadamente de campo. Não demora muito,<br />
vem a notícia lá do vestiário. – O homem<br />
já está bem. Só passou mal em campo, vomitou<br />
a macarronada do almoço. No jogo seguinte<br />
não deu outra. Bola lançada ao ataque.<br />
Alguém grita da assistência. – Vai, Macarrão!!!<br />
Descendo o ribeirão, próximo à estação ferroviária<br />
era o Flamenguinho, este o time do<br />
devotamento de meu pai. E na quase esquina<br />
do Rio Pomba com o Meia-Pataca ficava o<br />
campo do Operário. Quando as chuvas de<br />
verão engordavam o Meia-Pataca e ele ocupava<br />
suas vargens. Não havia rodada do<br />
campeonato da liga. O futebol de Cataguases,<br />
este sim, é que era o verdadeiro futebol<br />
de várzea. A cidade cresceu ocupando todos<br />
os brejos de seus ribeirões e córregos. O único<br />
campo que resistiu à especulação imobiliária<br />
foi o do Operário, emparedado por aterros<br />
e construções vira em épocas de enchentes,<br />
na linguagem cheia de galhofa de seus<br />
adversários, a caixa d’água da rua do Pomba.<br />
Algumas vezes pedi ao meu velho uma bola<br />
de couro, ele que vivia, como os pais de<br />
meus amigos, com seus parcos salários suas<br />
dificuldades financeiras me levava na conversa.<br />
Mas tenho para comigo que, como não<br />
era bobo, já percebera que eu não tinha o<br />
menor talento e jamais iria arriscar seus poucos<br />
trocados com o meu futebol. Já rapazinho<br />
descobri que a cintura dura não me atrapalhava<br />
só no futebol, junto com minha timidez<br />
me ferrava nas brincadeiras dançantes e<br />
bailinhos. Algumas amigas mais piedosas<br />
ainda tentaram me ajudar no dois pra lá dois<br />
pra cá do dançar coladinho. Não teve jeito. A<br />
excitação e a imaginação ao tê-las entre os<br />
braços e bem junto ao corpo me desconcentravam<br />
por completo, aliada à minha ruindade<br />
em aritmética gerava meu desequilibrado<br />
descompasso.<br />
63
<strong>Chicos</strong><br />
Na mesa do bar da esquina entre um golo<br />
e outro, Vanderlei Pequeno, que escreveu<br />
um saboroso livro sobre os casos de futebol<br />
da cidade e foi goleiro do Flamenguinho,<br />
ouvia pacientemente minhas elucubrações<br />
sobre o futebol da várzea do Meia-<br />
Pataca. Com o seu bom humor, até para<br />
encurtar a conversa, saiu-se com esta. –<br />
Pelo visto você teria sido um novo Chiquinho<br />
Miguel? – Quem é este Chico? E ele<br />
continua. – Chiquinho? Está lá no meu livro.<br />
Ele morava no bairro Leonardo e era<br />
apaixonado pelo Vasquinho, desconjuntado,<br />
chutava mal, tratava mal a bola... Era<br />
na verdade um grande perna de pau. Sabese<br />
lá por maldade de quem, disseram-lhe<br />
que ele estava escalado para o jogo lá no<br />
Vila Reis. Entusiasmado, Chiquinho comprou<br />
tudo novo, chuteira, meia, uniforme...<br />
Enfim, iria atuar de titular. Atravessou garbosamente<br />
a cidade a pé, debaixo de um<br />
sol cáustico. Tudo em vão, ficou no banco<br />
de reserva o jogo inteiro com o Vasquinho<br />
jogando só com dez. – Pois é, Pequeno!<br />
Alguém já me contou, com certo sarcasmo,<br />
o final deste caso. Disse-me que o técnico<br />
mandou ele esperar a chegada de outro jogador<br />
que se atrasara com uma cínica justificativa:<br />
– Espera aí no banco. Não vamos<br />
queimar substituições. Sacanagem!<br />
Eu, se insistisse, provavelmente, me ofereceriam<br />
para ser árbitro, mas sem vocação,<br />
avesso a preparação física, no máximo seria<br />
um quarto árbitro, ou seja, regra três de<br />
juiz. – Aí não dá, né não?<br />
Ribeirão Meia Pataca<br />
64
<strong>Chicos</strong><br />
Raquel Naveira<br />
Raquel Naveira, nasceu em Campo Grande<br />
(MS), formada em Direito e Letras, doutoranda<br />
em Literatura Portuguesa na USP. Escreveu vários<br />
livros, entre eles: Abadia (poemas, editora<br />
Imago,1996) e Casa de tecla (poemas, editora<br />
Escrituras, 1999), indicados ao Prêmio Jabuti de<br />
Poesia.<br />
Janelas do mundo<br />
Recebi o livro Alinhavos do Tempo da<br />
poeta Lina Tâmega Peixoto, mineira de Cataguases,<br />
radicada em Brasília. Que linda capa. Um<br />
casarão antigo, amarelado, com quatro janelas<br />
altas na fachada. Encontro em versos a explicação:<br />
“Ainda existe./ As venezianas entrincheiram<br />
os olhos./ Preciso ver se as lembranças estão lá<br />
dentro/ resistentes ao corrosivo tempo.” E mais<br />
além: “Nesta casa onde o mundo não passa,/ há<br />
musgos de astros na janela do quarto.” Que atitude.<br />
A pessoa do lado de fora, voltando-se para<br />
dentro em busca de si mesma, de seu passado.<br />
Intrigantes as janelas. Os olhos são as janelas da<br />
alma, dizem. Simbolizam a consciência e a percepção<br />
individual do mundo. Quando se abrem<br />
as janelas, o ar e a luz da verdade entram com<br />
força, penetram pelos limiares e fronteiras. Janelas<br />
de vista estreita, como aquelas do templo de<br />
Jerusalém, edificado por Salomão.<br />
A palavra “janela” vem de “Jano”, o deus grecoromano<br />
de dois rostos, de duas portas. Janeiro é<br />
a porta do ano. Janelas, entradas e saídas enigmáticas,<br />
os prós e os contras. “Januella” é diminutivo<br />
de “janua”, “porta”. Sonho que sou Januária,<br />
louca castelã. Meu castelo tem muitas janelas,<br />
arcos, frestas, frinchas, claraboias, rosáceas<br />
circulares, de vidro colorido, por onde vejo o sol<br />
e as estrelas. Todas elas abrem e fecham, num<br />
jogo de lampejos, batentes e molduras. Delas<br />
faço contato com pátios internos e céus exteriores.<br />
Sou Januária, corro com os bolsos cheios de<br />
chaves que trancam e libertam os segredos das<br />
janelas.<br />
Também Chico Buarque compôs uma cantiga,<br />
no início de sua carreira, uma homenagem a Januária.<br />
Januária que madruga na janela da casinha<br />
à beira-mar, penteando os cabelos, indiferente<br />
aos homens que se encantam com sua beleza<br />
e graça, antes de partirem para o oceano<br />
com suas redes, entre promessas de pescas e<br />
tempestades. Vida e morte. Velas ao vento.<br />
65
<strong>Chicos</strong><br />
“Janela Indiscreta” é um filme de mistério, um<br />
dos melhores do Mestre do Terror, Alfred Hitchcock.<br />
Depois de quebrar uma perna fotografando<br />
um acidente numa corrida de carro, Jeff<br />
(James Stewart), um fotógrafo profissional, está<br />
confinado a uma cadeira de rodas em seu apartamento.<br />
Sua janela dos fundos dá para um pátio<br />
de onde observa com binóculo as janelas dos<br />
vizinhos. A namorada de Jeff, Lisa (a deslumbrante<br />
Grace Kelly) o visita regularmente. Uma<br />
noite, entre raios e trovões, Jeff ouve gritos e<br />
vidros quebrando. Percebe que a mulher desapareceu<br />
de seu campo de visão. Mais tarde, o marido<br />
limpa uma faca e um serrote. Fica então<br />
convencido de que testemunhara um assassinato.<br />
Um cão é encontrado morto no jardim. As<br />
pessoas debruçam-se em suas janelas para conferir<br />
o que está acontecendo, exceto o suposto<br />
assassino, que fuma silencioso um charuto na<br />
penumbra. Lisa coloca um bilhete de acusação<br />
sob a porta do homem. Entra no apartamento<br />
por uma janela aberta e é perseguida pelo assassino,<br />
que finalmente descobre Jeff na janela da<br />
frente. O assassino vai até o apartamento de Jeff<br />
e o empurra pela janela. Chegam os agentes da<br />
polícia, salvam Jeff e Lisa e prendem o assassino.<br />
Tudo volta ao normal. Emocionante, divertido,<br />
o filme traz à tona um aspecto sombrio do<br />
voyeurismo: o nosso desejo de que coisas terríveis<br />
aconteçam para as pessoas.<br />
Funciona como uma espécie de catarse. De libertação<br />
de nossos próprios fardos e tragédias.<br />
Somos nós mesmos nos expondo naquela janela<br />
indiscreta, espionando e examinando a vida dos<br />
outros. Afinal, quem se entrega às mórbidas curiosidades<br />
sofre as consequências.<br />
André Vicente Gonçalves, um fotógrafo português,<br />
criou o projeto “Janelas do Mundo”. Percorreu<br />
países como Itália, Romênia, Espanha,<br />
Holanda e Portugal fotografando janelas que<br />
contam a história da arquitetura das casas e das<br />
cidades, a estética, a alma dos lugares. Vi suas<br />
janelas por uma janela da internet.<br />
Lina, seus poemas são ricos e metafóricos. Exigem<br />
leitores concentrados. Pude ver você, reclinada<br />
na janela da fachada.<br />
66
Antônio Jaime<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Soares<br />
Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />
Participou de um dos movimentos culturais<br />
mais ativo dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />
Depois de morar um longo tempo no Rio de Janeiro,<br />
onde entre outras foi redator de publicidade.<br />
Retornou a Cataguases direto para a Vila.<br />
Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />
(crônicas - 2011)<br />
Minientrevista com Rosário Fusco<br />
No arquivo da prefeitura tem<br />
uma coleção da revista O Cruzeiro que<br />
pertenceu a Iracema Fonseca, doada por<br />
seu filho. Numa vista d’olhos, topei com<br />
esta entrevistinha, na seção “Arquivos Implacáveis”<br />
de João Condé, de 2 de maio<br />
de 1958.<br />
Š Cultua os inimigos?<br />
Não. Tenho até uma vaidade a contar<br />
com respeito à pergunta: quem me conhece<br />
acaba sempre meu amigo. Desculpe.<br />
Š Prefere conhecer pessoalmente Ângela<br />
Maria ou Bidu Sayão?<br />
Nenhuma das duas.<br />
Š Por que é que você bebe?<br />
Porque me sinto só na companhia humana<br />
(primeiro e principalmente). Mas<br />
quando eu descobrir, de verdade, o motivo,<br />
deixarei de beber... água.<br />
Š Considera-se vitorioso ou frustrado.<br />
Vitória ou frustração são pontos de vista<br />
alheios. Como estou vivo, faço coisas<br />
que os vivos fazem (umas às claras, outras<br />
às escondidas) e vou levando.<br />
Š É racista?<br />
Como eu poderia ser racista e de que<br />
jeito?<br />
Š Então permitiria o casamento de sua<br />
filha com um negro?<br />
Permitiria. E o meu genro não chega a<br />
ser um ariano.<br />
Š Cá entre nós: gosta mais de Bilac ou<br />
de Carlos Drummond?<br />
Carlos Drummond, que é o meu poeta<br />
nacional.<br />
Š Acredita que uma mulher possa se<br />
apaixonar por você?<br />
Não. Não pode, não pode, não poderá,<br />
de jeito nenhum, como dizem os mineiros.<br />
ŠJá chaleirou editor ou colunista para<br />
publicar notícias de seus livros?<br />
Não. Não censuro, porém, os que o<br />
fazem. Afinal, a glória passa mesmo e aspirar<br />
à futura é coisa de insanos. A vida é<br />
agora, aqui e já.<br />
Š Que mais deseja daqui por diante?<br />
Encher as minhas solidões. De repente,<br />
a gente descobre que não se liga a nada e<br />
a ninguém: mãe, pai, mulher, filhos, amigos.<br />
Então, começa a blasfemar. Deus está<br />
dormindo.<br />
67
Luiz Ruffato<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases MG, reside em<br />
São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria<br />
destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />
de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido<br />
pela Associação Paulista de Críticos de Arte e<br />
o Prêmio Machado de Assis da Fundação<br />
Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou<br />
um escritor reconhecido no país. Em 2011<br />
concluiu o projeto Inferno Provisório, com a<br />
publicação do romance Domingos Sem Deus,<br />
iniciado com Mamma, son tanto Felice em<br />
2005, composto por cinco livros sobre o operariado<br />
brasileiro.<br />
Lendo os Clássicos<br />
Mary Barton (1848)<br />
Elizabeth Gaskell (1810-1865) - INGLATERRA<br />
Tradução: Julia Romeu<br />
Rio de Janeiro: Record, 2017, 462 páginas<br />
68
<strong>Chicos</strong><br />
Um dos primeiros - e, ainda hoje, dos poucos<br />
- romances a tratar com realismo a vida do<br />
proletariado. A Autora situa sua história em<br />
Manchester, no começo da década de 1840,<br />
cidade que abrigava uma forte indústria têxtil,<br />
num momento em que não havia nenhuma<br />
legislação trabalhista e, portanto, a exploração<br />
da mão de obra beirava à escravidão. O livro,<br />
na verdade, divide-se, quase esquizofrenicamente,<br />
em duas partes: a primeira, quando a<br />
narradora apresenta a vida de privações dos<br />
operários (fome, doenças, mortes, insalubridade)<br />
e o desespero da busca pela sobrevivência;<br />
a segunda, quando concentra-se no assassinato<br />
do filho de um dos empregadores, Mr. Carson,<br />
aparentemente provocado por uma crise<br />
de ciúmes do pretendente rejeitado da protagonista,<br />
que dá título ao romance. Mary Barton<br />
é uma jovem que aos dez anos perdeu a<br />
mãe e desde então mora com o pai, John Barton,<br />
um operário que, revoltado contra o que<br />
considera injusto - o paradoxo entre a vida de<br />
conforto dos patrões, enquanto os empregados<br />
morrem na indigência -, une-se a sindicalistas<br />
radicais, tornando-se "um cartista, um<br />
comunista, tudo aquilo que chamam de louco<br />
e de visionário" (p. 201). Viciado em ópio,<br />
Barton, aguda consciência operária - "(...) o<br />
trabalho é o nosso capital..." (p. 81), afirma -<br />
ajuda na organização de greves, promove a<br />
divulgação das ideias paredistas e participa até<br />
mesmo na trama de atentados contra os donos<br />
das indústrias. Na primeira parte, a situação de<br />
extrema pobreza da classe operária é retratada<br />
com profunda indignação pela narradora: "(...)<br />
quando ouço falar, como já ouvi, dos sofrimentos<br />
e das privações dos pobres: (...) dos<br />
pais que passavam a noite inteira, sete noites<br />
por semana, sentados diante do fogo com suas<br />
roupas de rua, de modo que a única cama e os<br />
únicos lençóis da família pudessem ser reservados<br />
para o uso de seus muitos filhos; de outros<br />
que dormiam na laje fria por semanas a<br />
fio, sem meios adequados de se suprir de comida<br />
e combustível (e isso no mais profundo<br />
inverno); de outros, sendo obrigados a jejuar<br />
por dias e dias, sem a esperança de tempos<br />
melhores para alegrá-los, vivendo, ou melhor,<br />
morrendo, num sótão apinhado ou num porão<br />
úmido, ou sendo gradualmente aniquilados<br />
pela penúria e pelo desespero que os levaria à<br />
morte prematura (...) - será que posso me espantar<br />
ao saber que muitos deles, em tal época<br />
de miséria e infelicidade, tenham falado e<br />
agido com precipitação feroz?" (p. 103). Na<br />
segunda parte, o romance torna-se quase um<br />
trílher de julgamento: acusado pelo assassinato<br />
de Henry Carson, James (Jem) Wilson é<br />
preso e levado ao tribunal, cuja sentença será<br />
a pena por enforcamento. Mas Mary, apaixonada<br />
por ele - e sabendo de sua inocência -<br />
consegue, após várias peripécias, obter o testemunho<br />
de William (Will) Wilson, que garante<br />
um álibi insofismável a Jem (eles estavam<br />
juntos na noite do assassinato, longe do cenário<br />
do crime). Mais à frente, John Barton confessa<br />
ser ele o criminoso - um assassinato político<br />
- e é perdoado por Mr. Carson, já que,<br />
conclui a narradora, "ricos e pobres, patrões e<br />
empregados, eram, portanto, irmãos em sofrimento"<br />
(p. 428). John Barton morre, Mr. Carson<br />
torna-se um patrão mais justo - "(...)<br />
quem tem qualquer força dada por Deus deve<br />
ajudar os mais fracos (...)" p. 451 -, Jem e<br />
Mary Barton se casam e se mudam para o Canadá,<br />
onde ele vai ser "fabricante de instrumentos<br />
da Faculdade de Agricultura" em Toronto.<br />
Se na primeira parte , o discurso da<br />
69
<strong>Chicos</strong><br />
narradora beira à subversão, na descrição das<br />
péssimas condições de vida dos operários -<br />
nos tempos de recessão, "as carruagens ainda<br />
atravessam as ruas, os concertos ainda ficam<br />
lotados, as lojas de artigos de luxo ainda têm<br />
clientes todos os dias, enquanto o operário<br />
passa os dias sem ofício observando essas coisas<br />
e pensando na esposa pálida que está em<br />
casa, sem reclamar, e nas crianças que choram,<br />
pedindo em vão por mais comida - na<br />
saúde que se esvai, na vida daqueles que mais<br />
ama se acabando" (p. 33); na segunda parte,<br />
ela ameniza as contradições e busca uma<br />
conciliação entre patrões e empregados via<br />
discurso religioso - os críticos da época afirmam<br />
que essa guinada se deu em função das<br />
pressões dos editores...<br />
Avaliação: MUITO BOM<br />
Curiosidades:<br />
A Autora - estamos no início da história do romance, ou seja, no período de sua consolidação - usa de<br />
um subterfúgio muito interessante (e simpático) para dar maior verossimilhança à narrativa: a ignorância.<br />
Em várias passagens do livro, a narradora confessa não saber determinadas coisas. Por exemplo, à<br />
pág. 286: "Mary tateou mais e encontrou algumas balas ou projéteis (não sei como se chamam) naquele<br />
mesmo bolso"... Ou, à pág. 316: "Mas pense em Mary e no que ela estava suportando! Imagine<br />
(pois eu não saberia descrever) os exércitos de pensamento que se chocavam em seu cérebro". Ou ainda,<br />
à pág. 340: "Charley explicou o que queria usando muitas gírias que foram incompreensíveis para<br />
Mary e que eu, uma grande fã de terra firme, não saberia repetir corretamente". Em outras passagens,<br />
ela se imiscui como Autora, como por exemplo, à pág. 299: "Muitas pessoas têm pânico desses pergaminhos.<br />
Eu sou uma delas. Mary era outra". Ou à pág. 313: "E se em seus sonhos (aquela terra onde a<br />
piedade e o amor de outra pessoa não podem penetrar, nem para compartilhar da felicidade, nem da<br />
angústia; aquela terra cujas cenas são horrores invisíveis, mistérios ocultos e tesouros inestimáveis reservados<br />
só para nós; aquela terra onde, sozinha, eu posso ver, enquanto permaneço neste mundo, o<br />
lindo rostinho do meu filho querido)". Ou ainda, à pág. 381: "Eu não estava presente, mas alguém que<br />
estava me disse que a melhor maneira de descrever a aparência de Mary era dizer que lembrava muito<br />
a pintura de Beatriz Cenci feita por Guido Reni".<br />
Entre aspas:<br />
"Mesmo entre os homens mais nobres, uma vez que o eu ganha uma existência proeminente, torna-se<br />
algo mesquinho e pequeno". (pág. 201)<br />
"É notório que não há religioso mais zeloso do que o convertido; e não há patrão mais rígido e indiferente<br />
aos interesses de seus trabalhadores do que aqueles que vieram eles próprios dessa classe". (pág.<br />
203)<br />
"(...) sentir ansiedade e tristeza pelo mesmo motivo faz as pessoas ficarem amigas mais depressa do<br />
que qualquer outra coisa (...)" (pág. 400)<br />
70
<strong>Chicos</strong><br />
Flausina Márcia<br />
Flausina Márcia da Silva poeta nascida em<br />
Cataguases e radicada em Belo Horizonte onde<br />
trabalhou na Secretaria de Cultura de Minas<br />
Gerais.<br />
Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua<br />
Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives<br />
(2014).<br />
Ler é bom demais<br />
SÓ PARA MAIORES DE CEM ANOS,<br />
livro antologia (anti)poética do Nicanor Parra,<br />
com seleção e tradução de Joana Barossi e Cide<br />
Piquet, publicado, em edição bilíngue, pela Editora<br />
34, é precioso. Aproxima-nos da extensa<br />
obra desse poeta, que revolucionou a poesia<br />
chilena e latino-americana, em 1954, com a<br />
publicação de Poemas e antipoemas.<br />
Escolho o poema “Discurso do bom ladrão”<br />
para dizer que o poeta é, antes de tudo, um sábio.<br />
Sabemos quem é o bom ladrão, é aquele<br />
ao lado crucificado de Cristo. Pois bem, o Discurso,<br />
que, infelizmente, não podemos reproduzir<br />
aqui, pois não somos bons nem maus ladrões<br />
de direitos autorais, é uma súplica ao ascendente<br />
rei, pela nomeação a um cargo do<br />
reino. Foi publicado em 1969, ora vejam.<br />
E, se não der para diretor do zoológico, Glória<br />
ao Pai, nem embaixador em qualquer parte,<br />
Glória ao Filho, que seja diretor do cemitério,<br />
Glória ao Espírito Santo. Resumir assim é quase<br />
um pecado, perdoem-me. No entanto, Parra<br />
mesmo dizia que os poetas baixaram do Olimpo,<br />
se fazem de tonto e dizem uma coisa por<br />
outra.<br />
Mas não em “Defesa de Violeta Parra”, aí é<br />
Violeta Piedosa, a Viola Admirável, Dolente,<br />
Chilensis, Vulcânica, Funebris, Irmãzinha.<br />
“Ergue-te de corpo e alma do sepulcro<br />
E faz estalar as pedras com tua voz<br />
Violeta Parra”<br />
De volta ao ponto sabedoria, o poema<br />
“Solilóquio do Indivíduo”, me fez pensar em<br />
ciência, filosofia e no direito desse homem dizer<br />
que a vida não tem sentido, mesmo tendo<br />
alcançado mais de cem anos dela, com tudo<br />
sentido e sabiamente poesificado.<br />
Nicanor Parra nasceu no Chile, em 5 de setembro<br />
de 1914 e faleceu no dia 23 de janeiro de<br />
2018. Cursou matemática e física no Instituo<br />
Pedagógico da Universidade do Chile e mecânica<br />
avançada na pós-graduação da Universidade<br />
Brown, nos Estados Unidos. A partir de 1945,<br />
passa a lecionar na Universidade do Chile.<br />
Nota dos editores: No início do verão de<br />
2017, na edição 51 de 22/12/2017. Nicanor<br />
Parra foi o nosso poeta da Primeira Página.<br />
71
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Cagiano<br />
Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,<br />
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília<br />
de Produção Literária 2001), O sol nas feridas<br />
(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom<br />
2012) e Eles não moram mais aqui<br />
(Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive atualmente<br />
em Portugal.<br />
O corpo como reverberação do eu lírico<br />
Ao adentrar os poemas de “A pedra e o<br />
corpo” (Poética Edições, Braga, 2018), de Gisela<br />
Ramos Rosa, logo de início vem-me à lembrança<br />
o estudo de Jorge Schutze intitulado<br />
“Corpo e Poesia”, no qual ele indaga: “O que o<br />
corpo quer, então da poesia?” Tal provocação<br />
parece-nos concernente com o corpus poético<br />
da autora nesse novo livro, por guardar intensa<br />
analogia não apenas com essa safra recente,<br />
mas de todo o seu percurso. É que a poeta, em<br />
sua lírica, está a nos indicar justamente as preocupações<br />
de sua arte enquanto instância na qual<br />
reverberam a própria subjetividade como corporificação<br />
do poema, pois ela nos diz, como sinalização<br />
de sua gênese criativa que<br />
“Escrevemos com o corpo<br />
toda a vida.”<br />
Ora, aqui já se situa o plano definidor de uma<br />
poética voltada para os sentidos, para a captação<br />
do que aos olhos da autora tem em relação<br />
ao que antecede às expansões do espírito: vem<br />
reconhecer que subsiste ao sensorial um corpus<br />
(seja o pessoal, seja o literário) como “campo<br />
de memórias e fronteiras” onde lança a semeadura<br />
de uma palavra que é, em suma, a tentativa<br />
de expressar a subjetividade e a realidade<br />
num território de múltiplas reverberações.<br />
Esse corpo também é pedra, entidade bruta que<br />
reclama desbastar arestas, aqui bem entendido<br />
como espaço de metamorfoses, pedra de toque<br />
de um intenso escandir de emoções e pulsações<br />
do inconsciente. É uma aposta da autora na<br />
possibilidade de exprimir o legado de uma íntima<br />
reflexão sobre tudo que a cerca, quando a<br />
sua poesia capta a distopia de um tempo de<br />
profundas transformações e rege-se pelos signos<br />
da perplexidade ao relatar o seu modo de ver o<br />
mundo, de sentir as coisas, de relacionar-se com<br />
elas e de sofrer com e por elas.<br />
Entende que “a escrita fixa a ideia de narração<br />
do mundo” enquanto “o corpo expressa articulando<br />
o espaço o contraste o contexto.” Na sua<br />
poesia, é inegável uma articulação com a diversidade<br />
que compõe a experiência existencial e<br />
no corpo de cada poema reside essa preocupação<br />
de registrar e interpretar os espasmos de<br />
sentimentos que nem, sempre são possíveis de<br />
apreender em sua carga de subjetividade. No<br />
arcabouço do poema “ A existência cede<br />
72
<strong>Chicos</strong><br />
perante os signos quando aos olhos ver é percepção”,<br />
afirma Gisela, porque sabe que no cerne<br />
de sua escritura convém deixar falar esse<br />
“corpo que olha/ e reencontra o oculto no real”,<br />
porque no furacão de uma contemporaneidade<br />
fraturada e que vive um veloz escalonamento de<br />
valores e signos, escrever poeticamente para tentar<br />
entender o mundo é colocar o sujeito-corpo<br />
como possibilidade de representação de nosso<br />
desconforto.<br />
Gisela em “A pedra e o corpo” parece sinalizar o<br />
que já pressentia Bergson em “Matéria e memória”,<br />
para quem “nosso presente é antes de tudo<br />
o passado de nosso corpo” e “o passado é o<br />
que não age mais, mas poderia agir’, eis que no<br />
entretempo de sua poesia há todos os tempos de<br />
uma vida. Nesse trânsito entre o que vivemos e o<br />
que será, sobre nossas experiências passadas e o<br />
insondável futuro, por outro lado a autora reconhece<br />
que “Somos rasura e consciência/ pedra<br />
em construção” e no seu processo de elaboração<br />
formal e conceitual há um permanente sentido<br />
de devir. Esse exercício poético postula sempre o<br />
polimento de um material subjetivo, esse artefato<br />
de que somos feitos ou de que é feita a própria<br />
poesia, esta necessitando do estilete do artista<br />
para sua conformação como espelho do espírito<br />
aguçado do poeta, este que busca nas suas<br />
raízes (origem, memória, história, afetos, vivências)<br />
pauta permanente de reflexão.<br />
Tanto o corpo quanto a poesia trazem em si o<br />
reflexo de suas ambiguidades, mas a poesia recorre<br />
aos seus recursos metafóricos, semânticos<br />
ou sintáticos para decodificá-las e a poesia de<br />
Gisela persegue esse pathos, abolindo toda a<br />
tendência cartesiana e buscar um sentido que<br />
transcenda a percepção rigorosamente objetiva<br />
das coisas, pois nos revela em “A palavra instaura”<br />
que “Despimos as coisas com palavras/ para<br />
formar um corpo de ideias/ e à semelhança desse<br />
acto ressurge/ um outro a revestir os mesmos<br />
objectos com/ a escrita num círculo que fecha a<br />
extensão.!<br />
Não se trata de hierarquizar o corpo ou o poema,<br />
a precedência de um em relação ao outro,<br />
mas consentir que se o espírito como entidade<br />
pensante se manifesta com tamanha autenticidade,<br />
o corpo também é uma máquina de gerar<br />
sentidos, numa relação simbiótica, mas não de<br />
conflito, entre razão e emoção, o corpo como<br />
extensão do ser, sendo a linguagem amálgama<br />
dessa natureza criadora ou demiúrgica.<br />
Vale destacar na poesia de Gisela o amplo terreno<br />
de suas referências estéticas, pois a autora<br />
dialoga com seus pares, seja flertando nas epígrafes,<br />
que oferecem inegável ponte temática<br />
com sua palavra, seja nas homenagens presentes<br />
nas dedicatórias aos colegas de ofício. Ainda em<br />
seus versos, se de um lado encontramos pouco<br />
de de uma inflexão romântica, por outro lado<br />
não podemos descartar uma presença lírica, mas<br />
em outro viés, onde vale-se da sutileza estilística<br />
para revolver sentimentos, sem derramamentos<br />
ou exacerbações; mas nesse particular caminha<br />
no sentido mais de instaurar um olhar mais reflexivo<br />
ou filosófico sobre essas questões íntimas.<br />
Outro considerar em sua artesania, é que a<br />
autora consegue embutir em toda sua narrativa<br />
alguns laivos de delicada ironia, como se percebe<br />
nesse em “Provocação”:<br />
Atravessamos o abismo da página em branco<br />
compondo manchas com as mãos<br />
libertamos o barro maleável em ciente transgressão<br />
longe dos sinónimos homónimos antónimos parónimos<br />
numa leve formação desafiamos o inaudito esboço<br />
o risco desalinhado que provoca a palavra alta<br />
a mais vazia a que inaugura o espaço e as mãos<br />
desabrigando o sentido da composição<br />
Quando assevera - “Levei muitos anos a tecer o<br />
texto/ não o tempo/ juntei os fragmentos de rocha/<br />
e rolei rolei/ até conseguir erguer o corpo/<br />
opresso” - Gisela sinaliza que sua poesia é caudatária<br />
daquela mesma consciência com que Nietsche<br />
referiu-se filosoficamente ao corpo como<br />
estágio na construção de sua obra. Diz ele: “O<br />
que chamamos “corpo” e “carne” tem muito<br />
mais importância: o resto é um pequeno acessório.<br />
Continuar a tecer a tela da vida, de maneira<br />
que o fio torne-se cada vez mais potente, eis a<br />
tarefa”.<br />
73
<strong>Chicos</strong><br />
Essa tarefa levada a bom na escrita de “A pedra<br />
e o corpo” leva em consideração que o corpo é<br />
um campo de pulsões e pulsações, ele emula as<br />
contrações (e contradições) do próprio inconsciente,<br />
das quais se apropria o corpo flexível da<br />
palavra poética a reafirmar a visão crítica da autora,<br />
o ricochete de seus pensamentos, os significados<br />
dos sofrimento ou das inquietações quotidianas,<br />
e disso tudo a comunicação de uma linguagem<br />
que transita entre o real e o onírico para<br />
expressão ou cristalização de novos sentidos.<br />
O corpo como instrumento que nos (re|)liga ao<br />
mundo passa a ser, na poesia de Gisela, o próprio<br />
mundo, a pedra de toque de uma aguda mirada,<br />
espaço inclusive para o enfrentamento ou<br />
as transgressões que são imanente à própria literatura,<br />
quando atribuímos função ou apenas lhe<br />
antevemos seus mistérios ou o vemos como esfinge.<br />
A autora não destoa desse sentido, se não<br />
de todo explícito, mas insinuado, quando canta:<br />
“Atribuímos numerosos mistérios ao corpo/ os<br />
braços que se estendem sem retorno/ as mãos<br />
inigualáveis a abrir-se em dádiva/ ou em castigo/<br />
modelando a vida/ os dedos a apontar sem saber<br />
ao certo/ no rosto a imagem de deus a boca a<br />
fala a criação/ nos olhos a luz a forma em cruz e<br />
a matéria/ ao corpo foi dada a coincidência perfeita<br />
a indizível/ concepção dos genes em invisível<br />
mutação/ na corrente da vida os ciclos ascendem<br />
num sentimento/ que atravessa a dor o<br />
enigma a paixão.”<br />
Se em “O visível e o invisível” Merleau-Ponty<br />
considerou que “É através da carne do mundo<br />
que se pode, enfim, compreender o próprio corpo”,<br />
a poeta Gisela Ramos Rosa ao tomar o corpo<br />
como repositório de seu sentimento poético<br />
(e também de tensões) e nele refletir sobre todas<br />
os nossos dilemas e paradoxos, através do<br />
qual o mundo se manifesta em toda sua prioridade,<br />
beleza e extensão, assevera, sem nenhuma<br />
discrepância e também como forma de identificar<br />
o seu ato criativo a um corpo íntimo que a<br />
sustenta: “O meu corpo é uma concha/ que se<br />
abre quando o mar revolve./ Longe das figuras<br />
exaltas só a areia/ permanece incólume ondulando<br />
entre/ o que a superfície tersa dos espelhos/<br />
me devolve e o que sou./ Não me venham dizer<br />
a que espécie/ pertenço, sou semelhante que se<br />
abre/ à raiz da palavra instalada na derme/ e no<br />
ser.”<br />
Entre o corpo e a pedra, a palavra instaura o ser<br />
giseliano e sua arte propõe uma leitura do mundo<br />
e do homem a partir de uma estreita interação<br />
entre corpo e poesia, essa arquitetura tão<br />
íntima quanto objetiva que consiste num sonoro,<br />
harmônico, melódico e sofisticado corpo vivo,<br />
do qual emanam sensações e emoções em rara<br />
epifania. É também sua praxis sofisticada, por<br />
meio da qual sutilmente questiona a nossa própria<br />
humanidade<br />
74
<strong>Chicos</strong><br />
Emerson Teixeira<br />
Cardoso<br />
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />
(2001) poesia, coautor de A casa da Rua<br />
Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O<br />
retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre<br />
ativo em publicações literárias. Iniciou-se em<br />
Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador<br />
do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />
O imaginário adolescente<br />
O advento, ou o veloz desenvolvimento<br />
das mídias audiovisuais podem ser, talvez, a<br />
causa do gradual desinteresse dos jovens pelos livros.<br />
Focados exclusivamente , ou por outra, adeptos<br />
incondicionalmente das novidades eletrônicas: internet,<br />
tabletes, smarthpones e quejandos, acabam<br />
se distanciando cada dia mais da leitura de bons ,<br />
instrumentos essenciais ao seu desenvolvimento<br />
intelectual e escolar.<br />
Carlos Drummond de Andrade alertou:<br />
“A leitura é fonte de prazer inesgotável, então porque<br />
a quase totalidade não sente esta sede?”<br />
Jorge Luiz Borges o secundou:<br />
“Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie<br />
de biblioteca.”<br />
E finalmente Kafka, foi ainda mais contundente:<br />
“Um livro deve ser o machado que quebra o mar<br />
gelado em nós.”<br />
Provavelmente inspirado no que nos diziam estes<br />
mestres acostumei-me com a companhia dos<br />
livros; coincidência ou não hoje trabalho em duas<br />
bibliotecas.<br />
Enfim, desconfio que vim ao mundo com um<br />
defeito de fabricação: não passo um dia sem ler.<br />
Muitos adolescentes que já estão na idade adulta -<br />
entre os quais me incluo - trazem bem vivos e vívidos<br />
na memória aqueles primeiros livros da juventude:<br />
Os chamados romances da Aventura. São<br />
histórias que queriam exaltar valores indispensáveis<br />
à formação moral e espiritual do indivíduo. Entre<br />
outros valores, a coragem, o amor, a amizade, a<br />
honra e o respeito antes de tudo à tudo que deve<br />
ser louvado e exaltado na vida e no ser humano.<br />
Romances tais como: O Conde de Monte Cristo;<br />
Os Irmão Corsos; Os Três Mosqueteiros de Alexandre<br />
Dumas pai: Moby Dick e Viagens de Gulliver<br />
de Herman Melville e Jonathan Swift, pela ordem.<br />
Estes livros deveriam, como realmente costumavam<br />
ser, lidos na idade escolar.<br />
Mas ao contrário do que se poderia esperar, hoje<br />
são relegados à solidão das estantes e realmente<br />
distantes de mãos “curiosas” ou “carinhosas” onde<br />
deveriam estar.<br />
O papel da escola, agora, (e mais do que nunca)<br />
em razão do exagerado apego desses jovens as alienantes<br />
opções audiovisuais, não seria estimulá-los<br />
com mais assistência à pratica da leitura?<br />
E aqueles que dizem que o jovem de hoje não<br />
gosta mesmo de ler eu respondo: gosto também se<br />
aprende.<br />
E o caminho mais fácil ainda pode ser o imaginário<br />
adolescente.<br />
“O bendito o que semeia livros,<br />
E faça o povo pensar<br />
livros a mão cheia.”<br />
75
<strong>Chicos</strong><br />
Jeová Santana<br />
Nasceu em Maruim, Sergipe, em 1961. É<br />
graduado em Letras pela Universidade Federal<br />
de Sergipe, mestre em Teoria Literária pela<br />
Universidade Estadual de Campinas, doutor em<br />
Educação: História, Política, Sociedade: Educação<br />
e Ciências Sociais, pela Pontifícia Universidade<br />
Católica de São Paulo. Publicou Dentro da<br />
casca (1993), A ossatura (2002), Inventário de<br />
ranhuras (2006) e poemas passageiros (2011))<br />
Por que ler Campos de Carvalho<br />
Resolvo dar uma trégua, mínima, nos<br />
desdobramentos da ópera-bufa que vem de Brasília,<br />
capitaneada por um Segismundo tropical,<br />
que faz uma reescrita fajuta da peça A vida é<br />
sonho (1635), de Calderon de la Barca (1600-<br />
1681). Como consolo, para seus quatro anos de<br />
fama/lama não houve o beneplácito do meu voto.<br />
Assim, apresento aos amigos e amigas, tanto<br />
os de carne, osso e sapatos quanto aos deste<br />
mundo virtual, esta pequena apreciação sobre<br />
Campos de Carvalho (1916-1998).<br />
Trata-se de um escritor, mineiro de Uberaba, que<br />
se filia à vertente da “descoberta ainda que tardia”<br />
tal como Hilda Hilst (1930-2004) e Manoel<br />
de Barros (1916-2014); deixou uma produção<br />
um pouco maior que a de Raduan Nassar (1935-<br />
); e, tal como Lygia Fagundes Telles (1923-), renegou<br />
os seus dois primeiros livros. Ela, Porão e<br />
sobrado (1938) e Praia viva (1944); ele, Banda<br />
forra (1941) e Tribo (1954).<br />
Na cômoda prateleira dos conceitos da teoria<br />
literária, o legado de Campos de Carvalho aparece<br />
sob o selo do surrealismo, do realismo fantástico<br />
e quejandos. É um caminho, mas acredito<br />
que o humor e o escrever bem devam fisgar, primeiro,<br />
o leitor menos afeito a estes<br />
“;determinismos”.<br />
Depois de toneladas de silêncio, pois ele parou a<br />
parte ficcional em 1964 e só voltou à tona com<br />
algumas crônicas para O Pasquim, em 1972, sua<br />
pequena mas densa produção veio a lume em<br />
Obra reunida, pela José Olympio, em 1995. A<br />
editora também relançou os volumes avulsos.<br />
Mais recentemente, em 2016, a Autêntica entrou<br />
no rol das homenagens e timbrou os 60 anos de<br />
publicação do primeiro livro do autor, A lua não<br />
vem da Ásia, escrito em 19<strong>56</strong>.<br />
Assim, deixo aqui estes recortes a quem interessar<br />
possa:<br />
1. “Aos dezesseis anos matei meu professor de<br />
Lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa<br />
seria mais legítima? –, logrei ser absolvido<br />
por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma<br />
ponte do Sena, embora nunca tenha estado em<br />
Paris.” (A lua não vem da Ásia. Autêntica, 2016,<br />
p.23);<br />
76
2."Onde o senhor dorme? No Hotel Terminus.<br />
Mas aqui não há nenhum Hotel Terminus.<br />
É o que senhor pensa.<br />
Passava das onze, chovia; imperceptivelmente<br />
fomos caminhando até o portão do cemitério.<br />
Aqui fico – disse-me, estendendo-me a<br />
mão fria: Boa noite!" (Vaca de nariz sutil.<br />
José Olympio, 2008, p. 11);<br />
3. "Foi então que me vi numa gare extremamente<br />
vazia. Tão vazia que nem a minha<br />
sombra se refletia nela. Alguém, uma voz,<br />
me sussurrou ao ouvido: CAFARNAUM." (A<br />
chuva imóvel. José Olympio, 2008, p. 11);<br />
4. "Se a Bulgária existe, então a cidade de<br />
Sófia terá que fatalmente existir. Este o único<br />
ponto no qual parecem assentir os que negam<br />
e os que defendem intransigentemente<br />
a existência daquele amorável país, desde os<br />
tempos antediluvianos até os dias prédiluvianos<br />
de hoje." (O púcaro búlgaro. José<br />
Olympio, 2008, p.9);<br />
5. "[sem data]<br />
Meu caro.<br />
Se você pretende viajar de navio para a Europa,<br />
compre hoje mesmo sua passagem de<br />
avião e agarre-se a ela com unhas e dentes.<br />
O avião ainda é o meio de transporte mais<br />
rápido, sobretudo, se está caindo – o que<br />
maior conforto oferece, sobretudo à família."<br />
(Cartas de viagem e outras crônicas. José<br />
Olympio, 2012, p. 17);<br />
6. "Londres, dezembro de 1972.<br />
Minha cara.<br />
Preciso urgentemente voltar para o Brasil:<br />
ainda ontem eu quis dizer vitela e disse vaca<br />
moça. A tal história: você fica seis meses ouvindo<br />
italiano, português, espanhol, francês,<br />
<strong>Chicos</strong><br />
inglês, japonês, árabe (o que mais se ouve<br />
por aqui) e acaba esquecendo a própria língua.<br />
Vaca moça – até que a expressão é gentil."<br />
(Cartas de viagem e outras crônicas. José<br />
Olympio, 2012, p. 23).<br />
7."Londres, novembro de 1972.<br />
Meu caro.<br />
O frio aqui é tanto que os jardins públicos<br />
não têm nem bancos: só um louco varrido<br />
pensaria em sentar-se numa pedra de gelo.<br />
(Por falar nisso, o seu traseiro aqui fica congelado<br />
de qualquer jeito, e antes de ir ao banheiro<br />
você tem que esquentá-lo junto à lareira<br />
no mínimo uns três minutos – senão<br />
não sai nem vento.) (Cartas de viagem e outras<br />
crônicas. José Olympio, 2012, p. 31);<br />
8. "Paris, outubro de 1972.<br />
Meu caro.<br />
O sujeito mais rápido do mundo não é o<br />
campeão olímpico dos cem metros rasos: é o<br />
francês de qualquer sexo, cor, idade. Você<br />
entra com um francês de 80 anos numa mercearia<br />
– você pensa em comprar uma lata de<br />
sardinhas, ele para comprar ovos, pão, presunto,<br />
queijo, açúcar, leite, salsicha, alface,<br />
maionese, rapadura (rapadura não). Enquanto<br />
o dono embrulha a sua lata de sardinha, o<br />
francês já chegou em casa, já comeu, já tirou<br />
a sesta, já arrotou e p... dez vezes e ainda<br />
encontrou um tempo de chegar à janela para<br />
ver você voltando do armazém." (Cartas de<br />
viagem e outras crônicas. José Olympio,<br />
2012, p. 49).<br />
Por enquanto é sol.<br />
Maceió, 15.2.2019.<br />
77
<strong>Chicos</strong><br />
Clips<br />
revela aos olhos do mundo. São suas personagens<br />
tão vivas, que hoje saí à procura de Tia Zazá,<br />
de Serafi m e de Dona Maria, pelas ruas silenciosas<br />
da minha infância. Tão bom seria vêlos,<br />
encantados, à sombra de uma pitangueira.<br />
E, íntimos, trazê-los ao meu quintal medido com<br />
alqueires de nuvens e oceano.<br />
Salve, poeta, tuas letras de homem menino,<br />
misto de morte e de manhã!<br />
Prof. Dr. André Luiz Rosa Ribeiro<br />
Presidente da Academia de Letras de Ilhéus – ALI<br />
Um quintal e outros cantos<br />
Editus, 2018<br />
O poeta soteropolitano Natan Barreto, atualmente<br />
radicado em Londres, nos oferece um<br />
livro, Um Quintal e Outros Cantos, cujo conteúdo<br />
nos remete às suas memórias, reais ou imaginadas:<br />
as telhas da casa eram velhas. Tantos<br />
dentes de leite jogamos ali: Mourão, Mourão,<br />
toma teu dente podre e me dá meu são. Memórias<br />
tão suas, mas também tão possíveis de tornarem-se<br />
daqueles que palmilharem as suas páginas<br />
feitas da matéria-tempo, já que são tantos<br />
os ontens no ar. Também nasci em 1966,<br />
menino de tantos quintais do tempo. Tempo<br />
que tece em nós tantos retalhos, talha momentos,<br />
que depois ecoa, esculpe culpas, que em<br />
silêncio soa – mistura em nossa mente os seus<br />
atalhos.<br />
Natan Barreto representa, em muitos sentidos, a<br />
poesia baiana contemporânea, tão rica em sua<br />
diversidade. Literatura que é parte fundamental<br />
do nosso patrimônio cultural, que nos traduz e<br />
Os rios de mim<br />
Editora Urutau<br />
formato: 14 x 19,5<br />
páginas: 94<br />
ano de edição: 2018<br />
Já a venda no site:<br />
http://editoraurutau.com.br/titulo/os-rios-de-mim<br />
78
<strong>Chicos</strong><br />
Os Crimes do Buraco da Fechadura<br />
Mar de Rosas<br />
Na melhor tradição da comédia negra policial,<br />
num tom muito british e hitchcokiano, Rusty<br />
Brown envolve-nos em mais um caso de crimes<br />
e mistério em que a farsa se combina magistralmente<br />
com uma crítica mordaz a uma sociedade<br />
social e politicamente doente que se vai<br />
afundando num mar de vícios, corrupção e venalidades.<br />
Aqui, Lisboa aparece-nos pintada,<br />
não com as cores vistosas de um postal para turistas,<br />
mas antes com os tons desbotados e sombrios<br />
de uma cidade degradada pela licenciosidade<br />
mal escondida e pela violência e criminalidade<br />
crescente, à espreita onde menos se espera<br />
e sob as formas mais perversas e inusitadas. A<br />
verve, rica numa linguagem metafórica de todo<br />
ade-quada às personagens e aos ambientes onde<br />
elas se movem, bem como o humor cáustico e<br />
irreverente de Rusty Brown, explodem neste livro<br />
como uma bomba de forte efeito crítico cujos<br />
fragmentos atingem e não poupam nenhum<br />
dos sectores da nossa sociedade e as deformações<br />
de que ela é objecto por parte de quem a<br />
distorce e manipula.<br />
“Mar de rosas”, que expressão maravilhosa,<br />
contraditória em si mesma. Mar, oceano,<br />
massa líquida que circunda nossos continentes<br />
interiores, abismos onde lutamos contra ondas<br />
de dificuldades e inquietações. Rosas símbolos<br />
de perfeição, pedaços de carnes e coração, vermelhas,<br />
sensuais, destilando gotas de mistério e<br />
paixão. Mar de rosas é tormento, renascimento,<br />
segredos de vida e morte, de união e separação.<br />
Utilizamos “mar de rosas” para indicar uma situação<br />
sem adversidades, sem aflições. Realidade<br />
que não se sustenta em nossa navegação pelos<br />
mares bravios da existência.<br />
79
<strong>Chicos</strong><br />
Paredes abertas ao céu<br />
“Neste livro, Inez Andrade Paes oferece-nos a<br />
evocação e a homenagem melhor que uma filha<br />
pode registrar como memória de seus pais. É um<br />
livro de poemas onde encontramos a voz magoada<br />
e saudosa de uma herdeira que ostenta a<br />
herança recebida ao mesmo tempo que nos faz<br />
chegar à alma a lembrança de outra voz que<br />
bem conhecemos: a de Glória de Sant’Anna.<br />
...<br />
O leitor vê surgir diante de si um mundo em que<br />
se apagam receios e dúvidas para deixar espaço<br />
ao que é belo e simples. Uma poesia feita de<br />
apelo à constância dos sentimentos e ao culto da<br />
memória.”<br />
Fernanda Angius<br />
O novo romance de Luiz Ruffato<br />
O verão tardio, sexto romance de Luiz Ruffato,<br />
é uma história de inadequação. Depois de mais<br />
de vinte anos, Oséias, um homem abandonado<br />
por mulher e filho, decide regressar a sua cidade<br />
-natal, Cataguases, em Minas Gerais. Durante<br />
seis dias, seguimos passo a passo suas andanças,<br />
visitas a familiares, encontros com velhos personagens<br />
locais. A sombra do suicídio de uma de<br />
suas irmãs, Lígia, e a comunicação falha com<br />
praticamente todos a sua volta acompanham suas<br />
tentativas de reatar os fios do passado. Em<br />
meio a um Brasil que parece ir do projeto à ruína<br />
a todo momento, O verão tardio propõe uma<br />
reflexão sobre uma sociedade em que as classes<br />
sociais romperam completamente o diálogo e,<br />
como afirma um de seus personagens, se tornaram<br />
“planetas errantes” prontos para entrarem<br />
em rota de colisão e se destruírem."<br />
Nas livrarias a partir de 22 de abril.<br />
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