UnicaPhoto-Edicao13
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
epetição um pouco estupefato, até o fim, e pode se perguntar<br />
o porque daquele gesto inútil, que apenas reforça a<br />
sensação de tédio e vazio de toda a sequência. Mas, com<br />
efeito, se alguém procurar “função” nos movimentos do<br />
filme de Nassif, nas repetições e nas sobreposições, está<br />
procurando no lugar errado. Nada no filme é feito com “algum<br />
objetivo”, mas para, numa espécie de prazer perverso<br />
nas coisas que uma estética mais “orgânica” consideraria<br />
supérfluas, mergulhar o espectador numa atmosfera onde<br />
nada é verdadeiro para, no processo, talvez, se chegar a<br />
um autêntico modo de ser.<br />
Ao “obrigar” o espectador a, duas vezes, ouvir a letra da<br />
música em inglês e português, Nassif esfria os afetos de<br />
um possível engajamento com a canção, chamando atenção<br />
para a linguagem, para a forma como as coisas são<br />
ditas em línguas diferentes (e em vozes diferentes – uma<br />
feminina e uma masculina), para esse gap e essa distância<br />
que há em qualquer tradução, em qualquer diálogo, em<br />
qualquer vídeo-chamada. Esse gap, esse vazio, essa condição<br />
de ser remoto, de jamais poder chegar realmente perto,<br />
é ecoado em todos os aspectos do filme, desde a baixa<br />
resolução da imagem monocromática que está longe de<br />
refletir os aspectos complexos da “realidade” que ela filma<br />
até o fato de um jovem brasileiro de barba ser a pessoa<br />
que está cantando, ao longo do filme, as músicas de uma<br />
cantora norte-americana. Mas, antes de tudo, haveria algo<br />
mais falso que a própria figura de Lana Del Rey? Com sua<br />
maquiagem pesada, unhas enormes e sempre emulando<br />
pastiches de épocas do passado e m suas roupas, músicas<br />
e videoclipes, a estética de Lana é, ela própria, esse buraco<br />
negro: um reino do falso. A própria “Don’t Let Me Be Misunderstood”<br />
é um cover de Lana de uma música que já<br />
existia antes. Mesmo assim, em Eu Sou Lana Del Rey, nesse<br />
mundo habitado apenas por caricaturas frágeis que mal se<br />
desenham, já se dissolvem em seus próprios excessos, o<br />
espectador já começa escutando repetitivamente o refrão<br />
da música: “Deus, por favor não deixe que eu seja mal compreendido”.<br />
Em outra sequência do filme, Lucas filma a tela do seu<br />
computador, que está conectado à webcam de Bráulio. A<br />
qual filma não ele, mas uma nova tela: sua televisão, onde<br />
Lana, em um concerto, tenta cantar um hit mas não consegue<br />
porque todos os fãs da plateia já o estão cantando<br />
com tanta força que ela se emociona. A canção continua,<br />
cantada por uma multidão anônima desafinada que, no<br />
extra-campo, não vemos. Há algo de falso e protocolar na<br />
Eu Sou Lana Del Rey<br />
(Lucas Ferraço Nassif, 2016)<br />
reação “emocionada” de Lana, em seu rosto minúsculo e<br />
sem cor que nós, espectadores, vemos na tela dentro da<br />
tela. Mas, o verdadeiro importa? Por mais “falsa” que Lana<br />
Del Rey (obviamente, aliás, não se trata do nome verdadeiro<br />
da cantora que lhe dá corpo) seja, os fãs estão cantando<br />
e dois artistas brasileiros estão fazendo um filme. O que<br />
resta é o falso, mas sua condição mesmo de falso parece<br />
torná-lo mais fascinante e perversamente mais prazeroso.<br />
Esta sequência do filme me remeteu com toda força às<br />
inúmeras pinturas que Warhol fez de Marilyn. Aqui como<br />
lá, trata-se da imagem fantasmática, falsa e fria de uma<br />
mulher cuja aura remota fascina uma sensibilidade queer<br />
ligada ao pop. Não é possível lamentar que na nossa época<br />
não temos mais Marilyns, mas apenas Lanas – mais falsas,<br />
mais previsíveis, etc. A questão é que a obra do próprio<br />
Warhol já se deleitava, de forma masoquista, na condição<br />
remota e inalcançável da imagem de Marylin. Logo no início<br />
de seu livro sobre o masoquismo, Deleuze, citando Dostoievski,<br />
sintetizou bem a discussão: “É idealista demais… e<br />
portanto cruel” 2 .<br />
Se na primeira sequência de Eu Sou Lana Del Rey predomina<br />
a desagradável tradução simultânea da letra de Don’t Let<br />
Me Be Misunderstood, numa sequência seguinte, Nassif<br />
parece “presentear” o espectador com uma performance<br />
mais prazerosa de Braúlio: de peruca e vestido brilhante,<br />
ele apenas dubla outra canção de Lana. Embora ainda<br />
caricatural (especialmente quando as caretas do rosto<br />
de Bráulio reforçam os momentos mais “emocionais” da<br />
música), sem dúvida esta sequência chega ao espectador<br />
como uma espécie de gratificação mais prazerosa depois<br />
da sequência anterior. E nesse vai-e-vem de dor e prazer,<br />
Eu Sou Lana Del Rey constrói uma dialética masoquista notavelmente<br />
próxima da descrição dada acima por Deleuze.<br />
2. DELEUZE, Gilles. “Coldness and Cruelty”. New York: Zone Books, 1991, p. 15. Tradução minha.<br />
26