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TELEVISÃO<br />

3 0 3 1 -3 -2 01 6<br />

TVISTO<br />

• Correi a da Fonseca<br />

A estrada<br />

da morte<br />

Atelevisão deu-<br />

-nos a tristíssima<br />

notícia (e como<br />

ela, a televisão portuguesa,<br />

parece gostar delas, das notícias<br />

tristíssimas!): doze portugueses<br />

emigrados tinham morrido a<br />

meio da noite, numa estrada de<br />

França, quando vinham a<br />

caminho de Portugal para aqui<br />

celebrarem a Páscoa junto de<br />

famílias, de amigos, de lugares<br />

para onde a saudade chamava.<br />

Vinham da Suíça, eram treze,<br />

número considerado aziago, mas<br />

o azar que os vitimou não tinha<br />

a ver com crendices antigas mas<br />

sim com as razões ou sem-razões<br />

muito reais e concretas que os<br />

haviam levado a empreender<br />

uma viagem longa em más<br />

condições de segurança. Sabese<br />

que os treze viajavam numa<br />

carrinha com lotação para seis<br />

pessoas, que seguiam dia e noite<br />

sem adequadas pausas para<br />

descanso, que tinham escolhido<br />

uma estrada difícil mas sem o<br />

custo de portagens que uma<br />

autoestrada implicaria. Quanto<br />

ao condutor, sabemos que era<br />

um jovem de dezanove anos sem<br />

habilitações adequadas aquele<br />

tipo de veículo e de condução,<br />

mas é fácil imaginar que havia<br />

sido o condutor possível para<br />

uma aventura pequena mas<br />

muito desejada, também muito<br />

arriscada. Foi o único<br />

sobrevivente da desgraça, mas<br />

não podemos imaginar que<br />

género de difícil sobrevivência<br />

terá ao longo de anos, de toda<br />

a existência que lhe resta e que<br />

poderá ser longa, com a<br />

memória das doze mortes que<br />

resultaram talvez do seu<br />

cansaço, porventura de alguma<br />

inexperiência e de alguma<br />

audácia excessiva, saídas afinal<br />

das suas mãos ainda tão jovens<br />

e já tão duramente marcadas.<br />

Necessário, urgente, justo<br />

Podemos, é claro, fazer o que<br />

tantas vezes é feito nas mais<br />

variadas situações:<br />

responsabilizar as vítimas pelo<br />

que lhes acontece. Neste caso,<br />

perguntarmos porque é que<br />

aquele punhado de emigrantes<br />

portugueses não escolheu,<br />

usando de adequada prudência,<br />

viajar em três carros confiáveis,<br />

de preferência topo-de-gama,<br />

conduzidos por profissionais<br />

que decerto o fariam desde que<br />

bem pagos. Ou optar por outro<br />

meio de transporte, avião ou<br />

autocarro que oferecesse<br />

garantias de segurança. A<br />

resposta, porém, não é difícil<br />

de adivinhar: porque um dia<br />

haviam partido para a Suíça<br />

não apenas para escaparem à<br />

penúria que os rondava ou que<br />

até já os teria capturado, mas<br />

também com o sonho de uma<br />

vida confortável com os filhos a<br />

estudarem e a conseguirem um<br />

emprego bem pago, até com a<br />

miragem da construção de uma<br />

bonita casa em Portugal que<br />

substituísse a velha casa de<br />

onde talvez tivessem partido.<br />

Não se diga que era um<br />

projecto excessivo: futuro para<br />

os filhos, presente sustentável<br />

para os pais, tecto confortável,<br />

velhice com segurança, nada<br />

disto configura alguma ambição<br />

desrazoada e é aliás um cenário<br />

vivido pelas camadas sociais<br />

que não se sentem obrigadas a<br />

emigrar porque se vão<br />

governando muito bem por cá,<br />

felizmente para elas,<br />

infelizmente para os que<br />

indirectamente lhes vão<br />

assegurando a qualidade de<br />

vida. Não seria, pois, um<br />

projecto excessivo, mas era um<br />

projecto exigente, e uma das<br />

prováveis ou indispensáveis<br />

exigências era a de ganhar o<br />

melhor salário possível e dele<br />

gastar o mínimo, arrecadar o<br />

máximo, para que o sonho<br />

mantivesse alguma consistência.<br />

Para isso haviam atravessado a<br />

fronteira, dito adeus a<br />

familiares e lugares a caminho<br />

de um futuro incerto mas na<br />

certeza de um presente que se<br />

tornara insuportável. Nunca<br />

teriam ouvido falar de uma<br />

estrada francesa a que<br />

chamavam «da morte» e que<br />

aliás decerto milhares de outros<br />

percorreram dela saindo<br />

incólumes. O que eles também<br />

não sabiam, como o não sabem<br />

muitos outros que nunca foram<br />

vítimas de acidentes trágicos, é<br />

que muitas vezes a própria<br />

emigração é, quando forçada<br />

pelas circunstâncias, uma<br />

espécie de outra «estrada da<br />

morte» onde morre o mais que<br />

legítimo direito de sobreviver<br />

no país em que se nasceu e aí<br />

ter filhos, tecto, conforto<br />

mínimo e esperança. Sabemolo<br />

muitos de nós. E sabemos<br />

que é necessário e urgente<br />

fechar essa outra estrada, não<br />

apenas para que cesse alguma<br />

hecatombe de portugueses em<br />

estradas francesas mas<br />

sobretudo porque os que<br />

morrem nos fazem falta. E por<br />

isso é necessário e urgente,<br />

além de justo, que haja lugar<br />

aqui para cada um deles.

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