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Revista Gávea 03

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Warchavchik e a arquitetura 7

corolários da preguiça do conceito arquitetônico — no caso, de morar — e do abandono à

tendência objetiva da história. A casa burguesa da Rua Bahia é a ocasião empírica para

desenvolver as articulações possíveis do conceito. Independentemente do programa estabelecido

pelo cliente ou da legenda com que o projetista atribui funções aos cômodos, é a

própria organização dos espaços que depura a noção burguesa de morar de reminiscências

regressivas: uma aparência qualitativa dos próprios privilégios — forma alegórica da

hierarquia social — e uma aparente obrigatoriedade de vínculos naturais. São ambos

parasitas ideológicos cuja identificação coube historicamente ao modernismo. Esmiuçado,

o conceito alude à possibilidade de um acesso generalizado à casa como um valor de novos

usos, cujos disfarces culturais limitavam de antemão, arquitetonicamente, as modalidades

tanto de fruição, quanto de distribuição.

O convívio familiar, ainda atado na Rua Itápolis por liames naturais que

ditam uma organização da planta parcialmente “doméstica” , torna-se, na Rua Bahia, a

expressão de uma liberdade. O invólucro quantitativo do programa o permite. Uma vez

reduzidas as funções de reprodução vital a trabalho genérico, toma-se tecnicamente possível

reduzir a parte necessária à sua mínima expressão. Em sentido amplo, a passagem é

de ordem econômica. Do ponto de vista espacial, a contração da área funcional necessária

redunda numa expansão do superávit de material arquitetônico, cuja configuração passa a

depender de suas características imanentes e pode abster-se de qualquer sobrecarga de significação

funcional (4). Conjugadas, as duas operações têm como reflexo figurativo o

caráter bifronte do edifício. O conceito enfático de funcionalismo transborda do conceito

restritivo de que é acusado.

O terreno, uma fatia da encosta entre a Rua Bahia e a paralela a juzante, in-

duz uma organização vertical do edifício. No nível da Rua Bahia, estão o acesso, salas,

cozinha e as escadas. Estas comunicam com dois pisos superiores e com o inferior, destinado

a serviços, cujo nível dá início à sucessão de patamares ajardinados até à rua oposta,

cerca de 11 metros abaixo. A concentração dos espaços técnicos não exige outras aberturas

para a Rua Bahia além da porta de ingresso e da fenda que rasga o volume frontal ao longo

da circulação vertical. À feição quase industrial dessa fachada contrapõe-se a livre organização

dos espaços voltados para o jardim. Do mesmo modo que, em planta, a repartição

de cada andar sugere usos múltiplos e relativamente autônomos, as longas aberturas

horizontais, terraços ou varandas, não aludem a qualquer função dos espaços que comunicam

com o exterior: simplesmente afirmam qualidades arquitetônicas passíveis de

uso específico e não contraditório com qualquer função.

Essas as promessas retrospectivamente decifradas. O problema da intencionalidade

do artista levaria a discussões inúteis sobre a noção envelhecida de kunstwollen.

A perenidade da obra depende menos do que nela se deposita como vontade do artista,

do que — diriamos com Valéry — “dos desenvolvimentos que ela recebe de outrem”

. A incidência da obra em seu contexto mede-se independentemente da intenção do

autor de modificá-lo, mas, por outro lado, do contexto dependem os desenvolvimentos

posteriores. Boa parte da obra de Warchavchik, e a arquitetura brasileira desde então,

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