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Revista Gávea 01

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Revista de História da Arte e Arquitetura

GÁVEA

1A lbertina M . C arvalho

Elizabeth Carbone Baez

Lídia Vage

M aria C ristina B urlam aqui

V anda M angia Klabin

Isabel Rocha

A n n a M aria M .deC arvalho

G eorges Duby

Joseph Rykwerk

Rosalind K raus

H u b ert D am isch

Ambigüidade: o enigma de Volpi

A academia e seus modelos

Iberê Camargo: pulsão e estrutura

Lygia Clark: a dissolução do objeto

A questão das idéias construtivas no Brasil: o

Momento Concretista

Arquitetura rural do Vale do Paraíba

Fluminense no século XIX

A espacialidade do Passeio Público de

Mestre Valentim

O nascimento do prazer da arte

A nefasta influência dos arquitetos Boullée

e Durand sobre a arquitetura moderna

A escultura no campo ampliado

Oito teses a favor (ou contra)

uma semiologia da pintura


GAVEA

EDITOR RESPONSÁ VEL

Carlos Zilio

CONSELHO EDITORIAL

Candace Lessa

Gustavo Meyer

Jorge Czajkowski

(professor de Arquitetura no Brasil)

Margarida de Souza Neves

{diretora Dept. de História)

Maria Cristina Burlamaqui

Reynaldo Roels Júnior

Ricardo Benzaquem de Araújo

(professor Dept. História)

Ronaldo Brito

(professor de Arte Moderna)

Vanda Mangia Klabin

Wilson Coutinho

(professor de Estética)

REVISÃO TIPOGRÁFICA

Claudia Maria Brum Arruda

EDITOR DE ARTE

Diter Stein

ARTE FINAL

Luiz‘C.R. Henriques

GÁVEA — revista semestral do

Curso de Especialização em História da

Arte e Arquitetura no Brasil

Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais

Departamento de História e

Coordenação de Cursos de Extensão

O projeto gráfico utilizado por GÁVEA

foi baseado na revista OCTOBER

Agradecimento especial à Professora

Anna Maria Thompson, diretora do

CCE/PUC,pelo seu apoio e incentivo

Apoio Cultural Bittencourt S.A.


1

A lb e rtin a M . C arvalho Ambigüidade: o enigma de Volpi 8

E lizabeth C arbone Baez A academia e seus modelos 15

Lídia V age Iberê Camargo: pulsão e estrutura 24

M a ria C ristin a B urlam aqui Lygia Clark: a dissolução do objeto 34

V anda M angia K labin

Isabel R ocha

A n n a M aria M o n teiro de C arvalho

A questão das idéias construtivas no Brasil: o

Momento Concretista 44

Arquitetura rural do Vale do Paraíba

Fluminense no século X IX 55

A espacialidade do Passeio Público de

Mestre Valentim 66

G e o rg e s D uby 0 nascimento do prazer da arte 77

Jo sep h R ykw erk

A nefasta influência dos arquitetos Boullée e

Durand sobre a arquitetura moderna 83

R osalind K raus A escultura no campo ampliado 87

H u b e rt D am isch

Oito teses a favor (ou contra) uma

semiologia da pintura 94


ALBERTINA M. CARVALHO

Graduação em Educação Artística e Artes Plásticas e Especialização em História da

Arte e Arquitetura no Brasil

ANNA MARIA MONTEIRO DE CARVALHO

Graduação em Letras e Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil

ELIZABETH CARBONE BAEZ

Graduação em Museologia e Especialização em História da Arte e Arquitetura no

Brasil

ISABEL ROCHA

Graduação em Arquitetura e Especialização em História da Arte e Arquitetura no

Brasil

LÍDIA VAGC

Graduação em Ciências Políticas e Sociais e Especialização em História da Arte e da

Arquitetura no Brasil

MARIA CRISTINA BURLAMAQUI

Graduação em Jornalismo e Especialização em História da Arte e Arquitetura no

Brasil

VANDA MANGIA KLABIN

Graduação em Ciências Políticas e Sociais e Especialização em História da Arte e A r­

quitetura no Brasil


Gávea

MARGARIDA DE SOUZA NEVES

Diretora do Departamento de História

Para os que vivem na cidade do Rio de Janeiro, GÁVEA é o nome de uma de suas antigas

“freguezias de fora” , hoje transformada em um destes raros bairros onde ainda é

possível conviver com o verde e enxergar algumas das pedras do Maciço da Carioca.

Para os que entendem das antigas artes da navegação, GÁVEAé o nome de uma espécie

de plataforma encontrada a certa altura do mastro principal das caravelas, de onde os

marujos, com os olhos postos no horizonte, esperavam avistar alguma terra por desbravar.

A partir de hoje, GÁVEA é também o nome de uma revista.

A REVISTA GÁVEA representa mais uma iniciativa do Curso de Especialização em

História da Arte e da Arquitetura no Brasil, que nos seus ainda poucos anos de existência

vem dando provas de sua maturidade, consistência e — por que não reconhecê-lo? — de

sua tenacidade.

Academicamente vinculado ao Departamento de História da PUC/RJ, o Curso de

Especialização vem desenvolvendo esforços no sentido de constituir-se num lugar de

reflexão e produção crítica sobre a Arte Brasileira, tendo como eixo principal a indissociável

relação entre o ensino e a pesquisa. As exposições sobre a obra de Goeldi e sobre a

modernidade de Guignard. bem como ós catálogos-livros que acompanharam ambas as exposições,

já nos deram provas da qualidade da produção de sua equipe docente e discente,

produção esta que agora encontra na REVISTA GÁVEA uma maior sistematização e

uma difusão mais ampla.

Ao adotar como seu o nome do bairro onde — precariamente ainda — se instala com

a intenção de desvendar estas terras novas de nossa produção cultural, a Revista recupera e

politiza o duplo sentido da palavra GÁVEA. Acreditamos que a REVISTA GÁVEA alcançará

seu objetivo e poderá constituir-se numa das formas de tornar realidade o que para

nós são esperanças.



Apresentação

CARLOS ZIUO

Existe uma defasagem entre a produção e a reflexão sobre a arte e a arquitetura

brasileiras. Tentativas isoladas, ao longo dos anos, conseguiram clarear alguns aspectos;

no entanto, permaneceram esporádicas e externas ao conjunto do sistema cultural. Superar

esta situação, vencer o auto-didatismo, implica em colocar a análise desta produção

no único local capaz de dar-lhe sistematização e eficácia: a universidade. A reflexão é

necessariamente um todo, e a decantada interdisciplinaridade só pode ser compreendida

sob o prisma da universidade vista como um organismo vivo. A recusa em pensar a História

da Arte e da Arquitetura na universidade brasileira é a negação da visualidade,

gerando uma universidade, por assim dizer, cega.

O trabalho de demarcar um campo próprio do saber requer o questionamento do que

já foi produzido e a busca de definição de objetivos teóricos precisos. A História da Arte e

da Arquitetura tal qual se apresenta no Brasil é uma História incapaz de produzir conhecimento,

formada que é pela sacralização de informações empíricas.

Torna-se, portanto, necessária a desarticulação desta construção fetichizada e a constituição

de conceitos adequados para o tratamento da História da Arte e da Arquitetura,

quer dizer, afirmar uma proposição epistemológica específica, diversa da empiria tradicional

e das armadilhas ideológicas. Estabelecidas as bases que impedem a instrumentalização

do pensamento sobre arte e arquitetura, as possibilidades interdisciplinares abertas

são ilimitadas, principalmente em relação à História, onde este conhecimento possibilita

uma apreensão privilegiada do universo simbólico de uma época.

Após as exposições e os livros sobre Goeldi (1981) e Guignard (1983), o Curso de Especialização

em História da Arte e Arquitetura no Brasil busca, através de GÁVEA, ampliar

a divulgação de suas pesquisas. A revista será um local onde as dificuldades, os conflitos

e as conquistas da postura teórica do curso deverão emergir. Esta publicação veiculará

textos de professores, colaboradores e traduções, mas fundamentalmente estará

voltada para a produção dos alunos, de forma que a prática e a teoria na universidade não

estejam dissociadas. A existência da revista deve-se ao empenho de seu corpo editorial

— professores, alunos e ex-alunos — e à visão social e cultural de pessoas que viabilizaram

financeiramente o projeto.

GÁVEA se propõe descortinar outros horizontes. Olhar atentamente às mudanças,

analista das nuanças, aberta a perceber sinais reveladores. Na sensível solidão da gávea, a

prática contemplativa. Uma inteligência própria do olhar para pensar o real neste exercício.

Quantas terras ainda por avistar...



Ambigüidade: o enigma de Volpi

ALBERTINA M. CARVALHO

A obra de Volpi é o produto de uma praxis em que suas questões constitutivas estão

visíveis, porque o artista não as elimina nem as torna invisíveis, mas torna-as um amálgama,

um produto que não esconde a sua constituição. É uma obra caracterizada pela tensão

gerada numa relação ambígua que permanece e não pela eliminação das antinomias

mais, pela visão critica que supera a fusão, soma ou acúmulo do evocionismo. Essa contradição

aparente e consciente na sua obra gera uma tensão que é a sua própria ambiguidade

fazendo-se presente. E é nessa tensão que sua obra revela uma visão de mundo

dialética e elaboradamente marcada pela constante ambiguidade traduzida em termos plásticos.

Ambiguidade esta resultante da apreensão do espírito da modernidade e de sua

prática de artesão e operário da pintura. Volpi não tenta resolvê-la, mas a cultiva e a põe

plenamente em sua pintura como característica de sua obra, como num jogo (o que todo

dia faz) em que todas (e ambas) as possibilidades estão sempre presentes e que novo jogo

sempre poderá “ ser jogado” . Não se trata para Volpi de eliminar as contradições (ou tensões)

mas sim de incorporá-las, de tomá-las presentes e visiveis, de fazer com elas e não

apesar delas. Disso resulta uma obra rica, aberta, inquieta. Revela-se assim, em Volpi, a

compreensão da modernidade, não pela eliminação da contradição, mas pela incorporação

dessa modernidade ao seu espirito de artesão sem que se estabeleça aí a negação de um ou

de outro (artesão e modernidade). Não tenta resolver tal contradição, mas trabalhar com

ela, fazê-la presente como possibilidades que não se excluem, que se combinam e se completam.

Minha arte consiste em linha, forma e cor. Antes, na natureza era um problema

de luz. Da natureza é a luz. Não é o assunto que interessa...

— Minha arte é linha, forma e cor, não tem nada a ver com natureza. E uma coisa

criativa. Bom, daí tem a construção. Não é que bola qualquer coisa. Tem uma construção...

— A construção se repete sempre. Aí modifica a cor e toda a estruturação. E um

problema de cor.

— Mas a forma serve para tudo, para repetir outro anel de cores. ”

Nestas declarações que Alfredo Volpi deixa transparecer que duas grandes etapas se

distinguem no desenvolvimento de sua trajetória artística. Na primeira, os momentos de

interpretação da realidade: impressionismo — até a década de 40, mas que não serão considerados

nesta análise. Na segunda etapa, os momentos do construtivismo, que podem

assim ser pensados:o de um construtivismo estático: momento de observação e elaboração

do mundo, embate do vir a ser teórico (de esquematizar e geometrizar); o de convivência


10 GÁVEA

com o concretismo: momento de enxugar, extrair e clarear os momentos da modernidade

(de construir através de uma redução estrutural); o de um construtivismo lírico, dinâmico

e de efeitos cinéticos, momento em que Volpi se põe no mundo de maneira livre, solta,

apresentando as questões da sua pintura de forma amadurecida; questionando, resolvendo

e requestionando a pintura (de-construir, se permitindo todas as possibilidades de organização

plástica).

E é principalmente como artista construtivo (assim permanece até hoje) que Volpi

revela toda a sua importância como um dos pintores de maior relevância para a pintura

brasileira, tanto pela originalidade e independência de sua obra marcadamente nacional,'

como também por seu entendimento da modernidade podendo ser considerado internacionalmente

como um dos grandes coloristas da pintura ocidental.

Na sua disciplina construtiva Volpi possui um repertório de formas (bandeirinhas,

mastros, velas, arcos, fachadas, etc.) que são retiradas da sua realidade social e cultural e

que são tratadas como formas plásticas, mas só o fato de optar por estas formas e não por

outras completamente abstratas demonstra uma demarcação de terreno, referências de sua

realidade, de seu lugar no mundo, uma posição de nacionalidade e raízes culturais das

quais não quer se abstrair, revelando sua identidade cultural brasileira. No plano iconográfico,

é nessa ambigüidade de elementos (formas plásticas como fato estético, porém,

alusivas a uma realidade, que se encontra a questão nacional-popular, questão reafirmada

pela cor) que Volpi constrói sua visão crítica da questão do nacionalismo-modernismo

como a outra possibilidade da arte brasileira.

Volpi percorrendo os caminhos da modernidade manterá diálogo com a História.

Existem dois grandes momentos de ruptura na história da arte ocidental recente: um, o

renascimento e. o segundo, a modernidade.

O primeiro momento é caracterizado pela procura da profundidade na representação

de um espaço real (construir esse espaço do plano para dentro). Aqui se enquadra Giotto

na procura do espaço e da profundidade onde já se percebe em sua obra um espaço atmosférico

e a procura da profundidade. E Ucello que representa num momento à frente a

radicalização da perspectiva.

No segundo momento, a modernidade, há a procura do plano (e construir o espaço do

plano para fora). Há na modernidade uma inversão no tratamento desses elementos perceptíveis:

procura da profundidade e procura do plano. Na obra de Volpi se encontra esse

momento: uma profundidade que não é representacional mas que se direciona para o plano

criando uma tensão do espaço. E é nesse momento de tensão que Volpi e Giotto se encontram

em direcionamentos opostos: um buscando a profundidade e o outro o plano. Como

diria Volpi. em entrevista à autora: “ O interessante em Giotto é que ele se liberta do

bizantino".

A questão do ritmo e da profundidade pode ser encontrada em Volpi com os mastros

de bandeirinhas e das velas (por exemplo), e Ucello com as lanças e mastros. O expediente

dos mastros listrados em Volpi, sugeridos em primeiro plano pela cor, se destacam criando

uma ilusão de profundidade ao mesmo tempo que atrai essa profundidade para o plano

criando assim ritmo e tensão do espaço. Ucello utilizou o expediente das lanças para criar

também ritmo e direcionar a perspectiva; onde o ritmo das lanças garante o movimento

no primeiro plano e o destaca contra um plano perspectivado que é colocado como um

cenário.

Outra característica da obra de Volpi, capaz de exprimir sua concepção de mundo

moderno, está na relação simetria/assimetria. Remetendo-nos à problemática da simetria

na modernidade a partir das concepções de Francastel, expostas in “ Aspectos Sociais da


COMPOSIÇÃ 0 EM O G IVA,

Volpi, 1980,

têmpera sobre tela,

136 x 68 cm

M ASTROS E BANDEIROLAS,

Volpi, 1966,

têmpera sobre tela,

72,5 x 145 cm

Simetria do Século XV ao Século X X ” , nelas encontramos o seguinte:

“Só nossa época descobriu a possibilidade estética das tensões e daS forças em movimento,

fora das simetrias e do equilíbrio” . E mais adiante: “ É bem verdade que, durante

quatro séculos, a partir da Renascença, foi em função de uma concepção estética do

Universo que a Arte se elaborou, conferindo um valor especial à simetria, enquanto que

atualmente ela se desenvolve em função de uma concepção dinâmica das forças em movimento

e recorre logicamente de preferência a soluções que fazem operar o ritmo e a

lateralidade” .

Volpi ao se apoiar nas tensões e na dinâmica das forças em movimento, com a objetividade

de seu espírito, vai pôr em constante confronto a simetria e a lateralidade onde

ambas se manifestam numa sensação enigmática que advém dessa nova ambigüidade.

Na maioria de suas telas percebe-se uma construção simétrica perceptível numa série

de combinações, por exemplo: — por divisão de tela na horizontal ou vertical ou diagonal,

— pela correspondência de cor, — por conjunto de elementos pares ou ímpares em formas

e/ou cores que se correspondem, — pela correspondência de duplos (pares ou ímpares em

!formas iguais e/ou cores iguais).


FACHADA AZUL E TERRA

COM BANDEIRINHAS.

Volpi, 1959,

têmpera sobre tela,

155 x 102'cm

Porém ao trabalhar a construção simétrica, nesse mesmo esquema, mesmo tempo,

vai se constituindo a assimetria: — pela construção de lados diferentes na divisão simétrica

(em relação a um eixo), pelo deslocamento da cor simétrica de uma forma para outra,

deslocando uma série de elementos em relação ao conjunto simétrico, pela inversão de

posição da forma que vem se repetindo simetricamente, por uma forma jogada solta na

composição, por uma ou várias formas contrastantes colocadas lateralmente na composição

simétrica, pela transformação dos elementos pares em impares organizando-os,

deslocados em relação ao eixo da construção, trocando ou deslocados um dos elementos

isolados (como um contraponto).

Consequentemente à essa relação vai se produzir um sistema aberto, não estabilizado,

unificado pelo ritmo desenvolvido e onde o contraponto vai implicar numa regularização.

Mesmo nas composições mais tipicamente assimétricas (aquelas do período sob a influência

do concretismo) essa relação se mantém no par dentro do ímpar. Essas manipulações

na composição ocasionam uma sensação de estranhamento ao olhar, porque enigmática,

que acompanhando o ritmo de repente encontra uma variação não esperada, suscitando

um questionamento.

Tomando como exemplo de análise a série “composição em ogiva” , percebe-se mais

uma vez a riqueza da expressão modernista do autor. E necessário que se faça uma leitura

dentro do próprio campo do artista, ou seja, no uso da linguagem plástica, que permita


Ambiguidade: o enigma de Volpi 13

revelar as questões de caráter exclusivamente visuais que o artista apresenta, precisando o

desvelamento de seu pensamento visual.

A distinção começa de início pela identificação do tema da composição. O arco ogival

que aí aparece refaz em forma ampliada o corte interno de uma bandeirinha, forma esta

(parte inferior da bandeirinha) que abrange toda a tela, e é confirmada pelos cortes laterais

que desenham suas pontas. E uma forma (bandeirinha) maior que domina a superfície e

que contém outras formas menores iguais que a constituem (bandeirinhas e/ou triângulos

gerados por elas num efeito positivo-negativo destacados pela cor) ou, melhor dizendo,

várias formas (bandeirinhas) contidas numa outra maior dominante.

Na ogiva resultante tratada por uma cor sempre mais escura e que se repete nas laterais

obtém-se um fundo que é ao mesmo tempo um grande triângulo em negativo e uma

profundidade (fundo acentuado pelas linhas oblíquas que convergem para uma linha vertical

ao centro formando ângulos) mas que Volpi atrai para o plano, pela repetição de cores

que se encontram nesse plano. Assim os planos se aproximam pelo uso da mesma cor

(dentro e fora) e que por suas qualidades se destacam. Efeito semelhante irá ocorrer no uso

de uma cor, que contrasta ou seja destaca, valorizando os triângulos distribuídos por toda a

composição; é pela cor que esses triângulos ressaltam e se transformam em positivos,

unificando os planos e mantendo as formas (bandeirinhas e triângulos) e o olhar em suspensão.

Estabelece-se aí uma tensão manifestada pelos efeitos dicotômicos gerados pela cor,

onde ora se valoriza um dos duplos, ora o outro numa apreensão global da ambigüidade no

olhar, criando no observador um certo deslocamento e estranhamento desse olhar. Essas

dicotomias resumem-se assim num jogo de efeitos, identificáveis em: positivo-negativo

(por exemplo: triângulo/bandeirinha), — dentro-fora, — par-ímpar (por exemplo: valorização

de duas bandeirinhas de mesma cor no mesmo plano e de uma terceira bandeirinha

também de mesma cor na profundidade (ogiva), — simetria-assimetria (por exemplo: no

uso das cores, da mesma forma que o anterior).

E, assim sucessivamente, numa inversão constante, interagindo dentro de modelos

de composição que constantemente se repetem, Volpi cria, recria, numa pesquisa contínua,

que permite novas possibilidades de configuração. Onde, como em Albers, segundo Baltcock

“ a menor das variações em qualquer das cores resulta em nova pintura radicalmente

diferente da anterior quanto ao sentir” .

A textura obtida pela têmpera, usada de forma abstrata (como elemento plástico em

si), portanto, emancipada da sua função de criar mimese, torna-se profundamente significativa

no contexto da obra. Resulta, assim, outras ambigüidades: — técnica antiga

(têmpera) expressa numa linguagem moderna; — textura como elemento plástico em si,

de efeito translúcido (onde o pigmento não se dilui, só se mistura), que resulta numa transparência

de branco (que aqui não é cor) eque homogeneiza toda a tela, porém remete à

ambiência, á luz, à parede caiada, ao afresco e ao passado.

Assim, lançando mão de uma técnica tradicional numa postura moderna, ele une

uma possibilidade de expressão plástica pura a cor e a textura, permitindo um jogo de formas

e massas, obtendo uma densidade expressiva, por uma economia de meios, numa intensidade

colorística.

Sendo a textura o elemento estável e permanente em toda obra ela adquire dinamicidade

no gesto (marca do pincel), que sublinha, define e/ou desenha a forma.

Em certos quadros, somente a direção e a medida da pincelada, desenhando as formas

dentro de uma só cor, garantem a visibilidade dessas formas e estruturam toda a superfície

do quadro.


14 GÁVEA

Dos elementos constitutivos de suas telas, está na cor a qualidade extraordinária de

sua obra. Volpi sendo um colorista por excelência, tem a sutileza de não deixar que sua cor

signifique sozinha (como por exemplo, podemos ler a obra de Albers a partir de sua

problemática, a cor), porém, é ela que estrutura todo o seu trabalho. Sendo uma cor estrutural,

adquire o estatuto da cor abstrata (livre e pura) revelando outra ambiguidade na

obra de Volpi: é uma cor carregada de profunda significação do mundo real sem que isso

implique no realismo da cor. Não é um “simulacro das cores da natureza ”, como diria

Merleau-Ponty.

Em Volpi, a cor adquire seu significado pela interação que mantém com a forma e a

textura. E é nessa organicidade que se pode afirmar, como Willys de Castro, que “ Volpi

pinta Volpis” .

Para Volpi, como em Matisse, o assunto (tema) da pintura não importa para o ato de

pintar. O assunto faz-se pretexto para a pintura. A cor adquire autonomia porém ficando

livre de sua função conteudística ela não se toma abstrata, revelando-se uma cor qualitativa

que se expressa como uma cor local, cor luz, cor anedótica, cor que remete a uma

ambiência e a uma certa atmosfera; cor afetiva que reporta á sensação do mundo (como em

Guignard): de um “ mundo” marcadamente brasileiro e popular nos verde-amarelo. verde-rosa,

azul-rosa ou nas cores terrosas lado a lado, nos mastros, nas bandeirinhas. nas

fachadas. Cores que associadas à cor matissiana vão revelar o puro prazer da pintura e o

lirismo de uma poética figurativista.

Dos pintores brasileiros. Volpi é o que mais se aproxima de Matisse e o que melhor

absorveu a transgressão da cor matissiana. Sua cor também passa por uma compreensão

especial de Albers.

Ao pensar a cor, suas relações e sua expressão, Volpi vai utilizar como Matisse cores

puras e complementares sem passagem e que se articulam, especialmente o verde, vermelho,

azul. amarelo assim como o preto e o branco (cores que Matisse emancipou). E

como Albers, a procura das passagens de cor sem que as cores percam sua determinação,

às vezes tão próximas que coloca no limite essas passagens, de tal modo que uma não significa

sem a outra. Assim se movimentando nessas duas posturas ele vai achatar o plano

e/ou as contrapondo, criar profundidade sem lançar mão de dêgradé.

Então, pela ação de relações cromáticas nas oposições: figura-fundo. positivo-negativo.

dentro-fora. cheio-vazio. par-impar. cor obliqua-cor contraponto, ele cria cinetismo.

ritmo, movimento; cria também forma (positiva-negativa) valorizando a figura do

fundo. Efeitos estes que vão se manifestar em três categorias mais amplas: equilibriodesequilíbrio,

simetria-lateralidade, profundidade-bidimensionalidade.

Organizando o espaço de suas telas a partir de uma construção bidimensional pela

ação de ortogonais, ele opõe linhas obliquas, formando ângulos e mais raramente linhas

curvas, o que quebra por principio a rigidez e permite induzir a uma certa profundidade.

Porém é com o uso da cor que Volpi realmente obtém profundidade. Abandonando

procedimentos tradicionais como o dêgradé e a diminuição de formas ele vai deixar que a

relação forma-cor construa sua profundidade. Usando cores em chapa (que aproximam

planos), cores quentes e frias, cores que avançam e retrocedem, opondo cores contrastan

tes (primárias e complementares) a uma gama de cores mais suaves, esmaecidas e/ou

opacas, ele vai destacar plano e profundidade. Um dos enigmas de sua ambiguidade reside

especialmente em que Volpi dentro do plano bidimensional, pela trajetória, distribuição e

dimensão da cor, cria profundidade. E pela mesma cor. traz para a frente a profundidade.

Desta maneira, tanto procura fugir do plano como alcançar o plano, se situando num

momento de tensão do espaço, pela atraçãc exercida ao olhar pelas dicotomias em ação.


A academia e seus modelos

E L IZ A B E T H C A R B O N E B A E Z

' 'The simple society bred simple people.

V.S. Naipaul. The Loss of El Dorado

Não se trata de nenhuma novidade que a pintura acadêmica brasileira teve como

principal influência a pintura oficial francesa, conhecida como “pompier” . No entanto,

sente-se ainda a necessidade de sistematizar esse estudo. A fim de que o trabalho não fique

restrito a simples identificação de modelos, toma-se necessário fazer uma relação dessa

forma de representação plástica com o processo histórico, assim como verificar até que

ponto essa representação foi institucionalizada e incentivada a se perpetuar por ir ao encontro

das necessidades de afirmação de um sistema social e político em formação.

O tipo de representação proposto pelo neoclassicismo e deformado pelo academismo

encontrou no Brasil um campo fértil para se enraizar e desenvolver uma vez que seu

universo simbólico supria os anseios políticos, sociais e culturais da classe dominante.

Consequentemente, era a única forma de representação ensinada e divulgada no Brasil no

século XIX.

O neoclassicismo vai usar, a grosso modo, o mesmo sistema de representação dos objetos

no espaço do Renascimento, quando o homem passa a ser o centro do universo. O artista

terá o poder de controlar o espaço a partir de leis científicas, a natureza emancipa-se

da ordem divina.

Não será, porém, uma simples imitação mas uma volta ao passado em busca de novos

valores para expressar uma outra visão do Cosmos. O neoclassicismo recolocou em questão

os princípios da arte, ou seja, colocou inteiro o problema do Renascimento, ampliando

a compreensão dos tempos Modernos e dando condições para que, mais tarde, surgisse

uma nova maneira de captar, perceber e ler o mundo.

O universo plástico da arte neoclássica vai representar a reforma moral contida no

ideal da Revolução de 1789. A verdadeira moral se encontrava na Antiguidade Grega na

medida em que representava um mundo idealizado, construído a partir de seus próprios

padrões, sem ajuda divina, suficientemente rígido e severo para se tornar aceito num

mundo ávido por reformas. Um mundo controlado pelo homem e guiado pela razão, cuja

ética ou padrões morais deveríam ser modificados pelo homem a partir de um trabalho

sério e disciplinado.

O ideal revolucionário do neoclassicismo, que era autêntico e correspondia a uma

realidade, vai cedendo terreno e finalmente será substituído pelo realismo napoleônico.


16 GÁVEA

Dai para a codificação sumária do universo renascentista será um passo.

Ao ser transplantado para o Brasil, o neoclassicismo perde em essência e significado

para transformar-se num processo de afirmação de prestígio e poder; foi implantado a partir

da Missão Artística Francesa e alguns artistas que a compunham traziam em si o espirito

que dominou essa forma de expressão artística. Não conseguiram, entretanto, transmitir

muito mais além da técnica e das normas impostas e adotadas pelo neoclassicismo.

Assim fala Wilson Coutinho sobre Debret em recente trabalho em que trata da relação entre

Arte/lnstituição: “ Debret é então um homem oco, mas objetivo. Cúmplice do mito da

Razão de sua geração bonapartista, ele constrói uma obra que é trabalho da técnica e de um

saber objetivado: o da classificação racional, evidente, que será disposta em séries, à

maneira de uma taxiodermia do século que o educou, o XVIII. “ (1)

0 Transplante de Uma Estética Oficial

Durante todo o século XIX e grande parte do XX, a arte brasileira permaneceu presa

a determinados padrões. A partir de meados do século XIX o padrão-modelo será inevitavelmente

a pintura acadêmica francesa que sucedeu o neoclassicismo — pintura que

usará a representação de forma teatral para criar a ilusão e a tradição como meio de evitar

questionamentos e mudanças. O artista acadêmico estava vinculado a um sistema de arte

que. ao mesmo tempo que lhe proporcionava sucesso e meios para progredir, cerceava sua

imaginação, fixando regras e impondo um padrão de gosto, favorecendo enfim a implantação

de uma estética oficial.

Além dos salões oficiais, era quase nula a atividade artística no Brasil. Os pintores

que ganhavam prêmios de viagem eram enviados a Paris ou a Roma para se aperfeiçoarem

com os artistas consagrados pelas instituições oficiais, os chamados “ pompiers“ . W.A.

Bouguereau. J.L. Gérôme, E.J.H. Vernet, L. Cogniet, A. Cabanel, T. Couture, J.L.E.

Meissonier estavam entre aqueles que recebiam o reconhecimento oficial. Esse reconhecimento.

contudo, não coincide com os artistas hoje considerados os grandes mestres

do século XIX.

Os bolsistas da Academia Imperial de Belas Artes seguiam para os ateliês de alguns

desses pintores com instruções rígidas e especificas que limitavam e empobreciam a

criação artística: copiavam seus mestres mesmo quando se inspiravam em temas nacionais.

Os principais temas explorados pela pintura oficial francesa eram os episódios da história

clássica e da mitologia, os fatos da história nacional com fundo moral ou episódios

gloriosos, assuntos nobres e religiosos, retratos e, por fim. paisagens e natureza -morta.

Com o declínio do neoclassicismo e o surgimento do realismo outros temas passaram a incorporar

a iconografia acadêmica: o estilo anedótico, temas da vida moderna, costumes

religiosos e o orientalismo, de preferência contendo verdades e qualidades eternas. A

reação ao realismo social de Coubert é marcante da parte oficial e do público. Os pintores

âcadêmicos vão utilizar essa temática apelando, porém, para os subterfúgios da metáfora e

do simbolismo, diferentemente do verdadeiro realismo proposto por Coubert, que não

idealizou nem tirou a pintura de um mundo em processo de transformação. Aliás, o orientalismo

surgirá como espécie de saída honrosa para com o problema da manutenção do

tradicionalismo. Como bem observou James Harding ao analisar a pintura “pompier” , (2)

o universo oriental não estava contaminado pelo realismo social nem seu cenário modificado

pelas transformações urbanas; a indumentária estava acima da moda e a forma de


Vitor Meireles, BATAIJ1A DOSGUARARAPES, óleo/tela, 491 x 919 cm (MNBA).

E.J.H. Vernet, PRISE DESM ALAH, óleo/tela, 489 x 2139 cm.


18 GÁVEA

vida continuava tradicional.

Todos esses temas são bastante familiares à pintura acadêmica brasileira e foram amplamente

explorados ao longo do século XIX. De todos, o orientalismo foi o que sofreu

maior simplificação: no transplante, tiram-se partes do todo, ao invés de cenas completas

são reproduzidas muitas vezes apenas figuras, fora do contexto, como se constata na pintura

francesa. Outra forma de trabalhar com o orientalismo foi integrá-lo a temas tradicionais.

como ocorre com o Davi e Abisag de Pedro Américo: um tema bíblico serve assim

de pretexto para reproduzir ambiente e atmosfera orientais, que tanto fascinavam a

imaginação dos pintores franceses. Nota-se os mesmos cânones de gosto, cromatismo e

organização pictóricos, a mesma expressão e tendência ao anedótico e ao misterioso que

predominavam na primeira fase do orientalismo francês, inspirado nos relatos de viajantes.

Bastante representativas são as cenas históricas pintadas por Vitor Meireles e Pedro

Américo, nitidamente inspiradas em Meissonier e Vernet (este último foi mestre de Pedro

Américo). O “academismo-romântico” na Batalha dos Guararapes de Meireles e no O

Grito do Ipiranga e Batalha do A vai de Pedro Américo é enfatizado pelo convencionalismo

da composição: os personagens são distribuídos em espécie de semi-círculos, destacando

ao centro a cena principal. O colorido é artificial e o gestual maneirista; o dramatismo leva

à idealização de um ato patriótico, uma vitória nacional. E interessante notar que aqui,

como na França, essas cenas eram retratadas, após minuciosa pesquisa, em telas monumentais.

Algumas pintadas por Vernet eram tão grandes que era necessário remover o

chão para poder acomodá-las.

O sistema de seleção de bolsas, a bolsa propriamente dita e a forma de sua avaliação

perpetuou assim a colonização artística. Mesmo o consagrado Almeida Jr.. que teve o

grande mérito de introduzir a temática nacionalista, continuou fiel aos cânones acadêmicos.

tanto na idealização da forma quanto na manutenção de uma composição tradicional.

Ao cotejar as Academias francesa e brasileira, encontramos inúmeras semelhanças de

organização e funcionamento. Pode-se mesmo afirmar que a Academia no Brasil é uma

“cópia autêntica” da francesa, exercendo sobre os pintores uma espécie de ditadura estética.

Esse academismo produziu entre nós incontáveis “ pompiers” durante o século

XIX. incapazes de se libertar do tradicionalismo acadêmico.

O Sistema Colonial e o Desenvolvimento do Processo Artístico

Nas colônias — portuguesas ou espanholas — não houve nunca arte verdadeiramente

independente dos modelos oficiais da metrópole, tampouco existiam condições de absorção

de modelos independentes ou de vanguarda. E possível, por exemplo, estabelecer algumas

comparações entre as formas de expressão artística desenvolvidas em Cuba e no Brasil

durante o século XIX. Com uma ressalva — em Cuba, os artistas estrangeiros (franceses,

ingleses, americanos e espanhóis) não eram convidados oficialmente — entre eles havia

refugiados políticos, aventureiros de passagem ou comerciantes.

Na primeira metade do século verifica-se na pintura cubana uma tendência a retratar

o característico, o cotidiano, a cidade, de forma bastante semelhante, não apenas aos

viajantes estrangeiros que para aqui vieram (Rugendas, Ender, entre outros), como aos

próprios Debret e Taunay, no que diz respeito à documentação de usos e costumes e

paisagens. Paralelamente desenvolve-se em Cuba (como no Brasil) uma escola que cultiva

a beleza formal de influência neoclássica, “davidiana” , que em meados do século vai

cedendo lugar ao academismo franco-italiano e a uma tendência paisagística, idealista,


á


20 GÁVEA

sentimental e romântica. No grupo neoclássico identificamos — além de Debret — Vitor

Meireles, Araújo Porto Alegre, Pedro Américo, entre outros; no segundo grupo, Insley

Pacheco, Hipólito Caron, Batista da Costa, Xelles Jr.

Ao relacionar formas de colonização e suas consequências nas manifestações artísticas

é possível também tomar como referencial a colonização inglesa na América do Norte

e a colonização portuguesa no Brasil. Com isto levantaríamos as diferentes possibilidades

de absorção da Academia no seu transplante da Europa para os Estados Unidos e

para o Brasil.

A influência européia (inglesa e francesa) também foi marcante nos Estados Unidos.

Em determinada ocasião. Gérôme contou 90 alunos americanos em seu ateliê. Contudo, o

gosto pela pintura histórica, pelos temas heróicos, não impediu que se desenvolvesse,

paralelamente, um outro tipo de manifestação artística que expressava a descoberta dos

amplos espaços da natureza, a luminosidade local, e que eventualmente ia além da mera

cópia da natureza. Segundo John Wilmerding, a arte americana de meados do século passado

manifesta o otimismo e expansionismo jacksoniano que se alia, assim, á crença

americana na beleza transcendental da natureza. Já nos anos 60, as tempestades apocalípticas

e as cenas de crepúsculo, visual e tematicamente diferentes, porém conceituai e estruturalmente

relacionadas, falam de um modo indireto dos anos de turbulência da guerra

civil e do conseqüente sentimento de perda. Nos anos 70 e depois a serenidade do luminismo

se rende a um novo realismo, a estrutura luminista abre espaço ao impressionismo. (3)

A diversidade da atuação da Academia nos Estados Unidos e no Brasil estaria vinculada.

portanto, a contrastes suficientemente significativos, permitindo afirmar que

diferentes formas de colonização repercutem de modo diverso nas produções artísticas. Os

objetivos e o espírito de ambas as colonizações, a religião, os sistemas político e social e o

nível de instrução e alfabetização dos colonizadores (4) são alguns dos fatores que teriam

favorecido o desenvolvimento de uma pintura mais criativa nos Estados Unidos.

O Brasil do século XIX ainda sofria as consequências de uma colonização que não

permitia autonomia econômica, não incentivava a iniciativa e a criatividade individuais,

supervalorizava o que vinha de fora e era extremamente parcial a mudanças. Ao tratar das

diferenças entre as colonizações portuguesa e inglesa, no Brasil e na América do Norte,

respectivamente, Yianna Moog descreve os mazombos (descendentes de portugueses que

constituíam a elite brasileira do século passado) como “ europeus extraviados” no Brasil.

“ Em princípio do século passado, o mazombo era espiritualmente português, e vivia zangado

com o Brasil, por não ser o Brasil a cópia exata de Portugal. Em fins do século, como

as simpatias de Portugal se tivessem volvido para a França, vivia zangado com o Brasil

porque a cultura brasileira não era a projeção exata da cultura francesa... cultura só a

França a tinha... sem uma viagem a Paris não se completava nenhuma formação cultural

digna desse nom e...” (5)

Até o início do século XIX era total o desinteresse da Metrópole pelo desenvolvimento

artístico da colônia. Sobre esse desinteresse, vale lembrar que está estreitamente

ligado aos objetivos da colonização portuguesa. Ao europeu interessava o comércio; vinha

para especular, para realizar um negócio e o Brasil se constituirá numa espécie de “feitoria

comercial . O interesse oficial pelas formas de expressão artísticas só será realmente despertado

com a vinda da Corte e a decorrente necessidade de tentar elevar o inível cultural

da colônia, agora sede do Reino.

Foi, portanto, depois de 1808, sobretudo com a chegada da Missão Artística Francesa,

que teve início o empenho da autoridade constituída em patrocinar as artes. A partir

dai a França (por motivos óbvios) e a Itália serão os principais pontos de referência cul-


A academia e seus modelos 21

tural. Essa influência será agora exercida diretamente através de artistas importados pelo

Estado e das bolsas de estudo concedidas aos alunos mais aplicados da Academia. Esta funcionará

como instrumento de permanência de um modelo dado e como um mecanismo de

preservação. Os artistas acadêmicos desse período, talvez por serem “simple people",

produtos de um meio artistico simples, sem maiores tradições ou raízes, serão os perpetuadores

da estrutura vigente. Daí a implantação de um sistema de arte ligado ao mecenato

do Estado e à institucionalização do saber.

A rigidez do conceito de arte implantado pela Missão Francesa encontrou respaldo

para se expandir e solidificar numa estrutura política centralizadora e conservadora. Dela

resulta uma produção artística praticamente limitada a reproduzir formas desvinculadas da

realidade social e despida das características do seu meio. Por outro lado, a formação

humanistica apreendida na Europa pela sociedade brasileira erudita contribuía para a

sedimentação dessa forma de expressão. Para Craig Owens, as disciplinas humanísticas,

em particular a história da arte, trabalham para legitimar e perpetuar a hegemonia da cultura

européia ocidental. (6)

A limitação á criação artística deu-se desde o início e se estendeu até mesmo aos artistas

estrangeiros convidados a implantar o ensino artístico no Brasil. Foi o caso, por exemplo,

do “Pano de boca do teatro da Corte por ocasião da coroação de D. Pedro V , encomendado

a Debret. A necessidade de privilegiar o erudito vindo de fora, e a apropriação de

uma forma de representação estranha ao contexto cultural brasileiro ficam evidentes nas

palavras do próprio Debret. Em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, relata: “Pintor de

teatro, fui encarregado de nova tela, cujo bosquejo representava a fidelidade geral da

população brasileira ao governo imperial sentado em um trono coberto por rica tapeçaria

estendida por cima de palmeiras. A composição foi submetida ao primeiro-ministro José

Bonifácio que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um

motivo de arquitetura regular, a fim de não haver nenhuma idéia de estado selvagem.

Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas.

Relação da Produção A rtística com o Meio Sócio-Cultural

O século XVIII, que terminou com uma revolução, começou com um dilema —

político, filosófico e artistico — que provoca uma renovação na estrutura social, intelectual

e cultural na Europa. Esta renovação estava ligada ao Iluminismo e preconizava o

Racionalismo como a fonte do verdadeiro saber. A burguesia emerge e vai desenvolver

novos padrões e valores culturais que terão papel decisivo na produção artística. Em estudo

sobre a sociedade burguesa, J. Habermas (7) afirma que no século XVI11 os espaços

culturais foram ampliados e tomados públicos (museus, teatros, salas de leitura e de concertos

e salões da Academia) e a obra de arte é finalmente aberta à discussão. Ao passar

para o domínio público, ela assume necessariamente a forma de mercadoria, tomando-se

sujeita á discussão e à crítica. Se antes a obra de arte não era questionada, agora está submetida

ao julgamento público — à opinião pública que, através do mercado, apropria-se

dos objetos em discussão. Prova inequívoca desta nova e nada ortodoxa situação é a recusa

por Courbet da Légion d'Fionneur, em 1870: “ Meus sentimentos como artista se opõem a

isso simplesmente porque eu estaria aceitando uma recompensa que me é conferida pela

mão do Estado. O Estado é incompetente em matéria de Arte. Quando ele se incumbe de

distribuir recompensas, ele se intromete no campo do gosto do público. Sua intenção é

totalmente desmoralizadora. fatal para a arte que ele confina dentro das convenções oficiais

e que condena à mais terrível mediocridade; a única coisa sensata a fazer seria absterse.

O dia em que o Estado decidir nos dar liberdade, nos terá feito um grande favor. Tenho


N.A. Taunay, RUA DES. JO SÊ E M 1816, óleo/tela, 46 x 57 cm(MNBA).

50 anos e sempre vivi livre; deixe-me viver em liberdade até o fim de meus dias. ” (8)

Quando se configura o sistema de arte brasileiro, no início do século XIX, a França já

possuía evidentemente um sistema cultural complexo e uma sólida tradição artística. Após

mais de 300 anos de colonização portuguesa, o Brasil atravessará um longo período sob o

regime monárquico (1822 a 1889), sendo que, durante quase 50 anos, esteve no poder o

Imperador Pedro II, cuja influência no desenvolvimento da arte e da cultura foi marcante.

Um aspecto importante, pois, a ser levado em consideração é a personalidade de D.

Pedro II e o que ela simbolizava. Considerado um monarca instruído e culto, tinha a aura

da erudição e exercia o mecenato não apenas no Brasil (patrocinando de seu próprio bolso

o estudo, aqui e na Europa, de vários artistas, entre pintores, escultores e músicos) mas

também na Europa (contribuindo pessoalmente para a construção de um teatro em Bayreuth,

na Bavária, destinado à obra de Wagner). Homem de hábitos simples, porém com

pretensões intelectuais, protótipo do pai bondoso, digno do respeito e da obediência de

seus protegidos, são algumas das características desse homem que durante tantos anos

representou o poder.

O Brasil era constituído de uma sociedade cultural e artisticamente pouco complexa,

cuja elite intelectual, seduzida pela cultura européia, não podia perceber até que ponto era

problemático para essa cultura criar raízes e se desenvolver livremente numa sociedade

ainda em crescimento. A importação maciça e impensada de modelos atravessou todo o

século XIX. Até o início do XX inexistiam condições para que estes fossem explorados,


A academia e seus modelos

23

absorvidos e transformados de forma original.

Somadas a interferência oficial e a influência da figura arquetípica de D. Pedro II às

condições sociais, culturais e políticas da época, ficará ainda mais evidente a dificuldade de

nossos artistas em se rebelar contra a ordem vigente; ou transgredir as regras do jogo e

libertar a pintura como, por exemplo, fez Manet; ou mesmo reinterpretar o neoclassicismo

e procurar fazer uma pintura original.

As reações contra o academismo, que restringia o trabalho ao interior dos ateliês, incentivava

temas bíblicos, históricos e mitológicos e usava a paisagem apenas como um

complemento aos temas maiores, foram poucas e isoladas. A primeira delas veio de um

grupo liderado por George Grimm que reuniu em tomo de si alguns jovens pintores dá

Academia que queriam trabalhar ao ar livre. Dentre eles destaca-se João Baptista Castagneto

que, com suas pequenas “ manchas” , pinceladas rápidas e curtas, revela uma

preocupação em captar as pequenas nuances da luz, as transformações efêmeras do mar,

enfim, uma sensibilidade pictórica que põe a descoberto um universo ainda desconhecido e

não explorado pela maioria dos pintores de sua época. Também Eliseu Visconti reagiu à

arte oficial ao procurar no impressionismo uma nova forma de expressão artística. Absorveu

bem a técnica impressionista e deixou, ao contrário de Castagneto, vários seguidores.

Não houve, entretanto, renovação profunda e todos continuaram a fazer pintura impressionista

século XX adentro. A pintura do próprio Visconti se transformou apenas até certo

ponto: quando finalmente consegue captar a luminosidade e cor locais (principalmente

na fase final de Teresópolis), estamos já nas décadas de 30-40 e essa pintura pode ser tranquilamente

considerada acadêmica face às radicais transformações ocorridas nas linguagens

e no próprio sistema da arte.

N O T A S

(1) COUTINHO. Wilson. “ Da Ordem da Sombra” . Revista do MAM. Rio de Janeiro, Museu de Arte

Moderna, 1983. p. 101.

(2) HARDING, James. A rtistes Pompiers. French Academic Art in the 19th Century. London, Academy

Editions, 1979.

(3) WILMERDING, John. Catálogo da exposição “ American Light — The Luminist Movement” .

Washington, National Gallery, 1980.

(4) Os primeiros povoadores das colônias inglesas na América eram alfabetizados o suficiente para ler a

Bíblia contribuindo, assim, para dar melhores condições ao indivíduo para mais tarde assimilar, incorporar

e criar progresso e civilização.

(5) MOOG, Viana. Bandeirantes e Pioneiros. Rio de Janeiro, O Globo, 1956. pp. 152-153.

(6) OWENS, Craig. “ Representation, Appropriation and Power” . Art in America. Marion (Ohio), 1982.

p. 10.

(7) HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria

da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.

(8) Citado por James Harding, op. cit. acima nota n? 2, pp. 13-14.



Iberê Camargo: pulsão e estrutura

l íd ia v a g c

*4Nunca dei nome às coisas, porque

isto não existe em pintura ’ ’ (IC)

Este ensaio não visa abordar linearmente o percurso do artista mas tecer uma leitura a

partir de um corte temporal, tendo por referência o período posterior à fase dos “Carretéis”

(1959), determinante no amadurecimento da obra de Iberê Camargo e que o leva ao

reconhecimento crítico em 1961 na VI Bienal de São Paulo, quando obtém o prêmio de

melhor pintor nacional. A trajetória do artista, segura, consciente e lúcida, é a de um pintor

que sai lentamente da Figuração e identifica-se com a Abstração. A ação de pintar

transfere-se dos modelos que reproduziam uma realidade exterior à pintura — paisagens,

naturezas-mortas, arquitetura urbana, retratos — que já se caracterizavam pela ausência

de perspectiva e pela intensa expressão com contornos acentuados, para a simplificação das

formas, que alteram as grandes linhas do quadro, onde os objetos representados e as pinceladas

começam a se destacar e assumem significação própria. Assim começa uma fase de

cromatismo mais vibrante e materialidade pastosa na qual os carretéis, objetos marcantes

na infância de IC, se transformam em símbolos de suas emoções, assinalando portanto o

início da abstração.

A importância e a postura de sua pintura, o modo como articula a pulsão (pincelada) e

a estrutura (organização) da tela» possuem relevância equivalente, na História da Arte

brasileira, às de Francis Bacon ou Willen de Kooning no plano internacional. Isso porque

as obras desses artistas, entre outros, não se colocam como simples rupturas mas estão engajadas

num projeto cultural cujas fronteiras são as da própria arte moderna. A pintura de

IC, como a dos pintores citados, contém simultaneamente o singular e a linguagem internacional,

e é esse um dado que confere à pintura seu estatuto próprio. Aqui, no Brasil, ela

se concretiza com dificuldade pois além da “trama social” IC luta e ultrapassa os limites

das dificuldades materiais e dos códigos visuais arcaicos presos ainda à “Semana de 22” .

Alguns críticos consideram a pintura de Iberê como gestual ou informal. A propósito

da “ pintura gestual” , chamam a atenção as observações de Jean-Luc Chalumeau (1).

Referindo-se a Pierre Soulages (afirmando que não importa definir suas obras como “ abstracionismo

lírico” ou “expressionismo abstrato”) declarou: “neste caso, as categorias

efêmeras da crítica de arte são secundárias. De todo modo, se perto dele o gesto que leva a

(1) Chalumeau, Jean-Luc — “Lectures de l'A rt" (Reflexion esthétique et création plastique en France

aujourdhuf). Ed. Chène/Hachette. Paris, 1981.


26 GÁVEA

pintura sobre a tela tornar-se aparente, será um contra-senso a qualificar de gestual . A

pintura gestual pura não olha o que ela faz (grifo nosso) e Soulages controla, ao contrário,

meticulosamente. cada instante de acabamento da obra, donde ele assume a responsabilidade

do menor detalhe material".

O que estamos procurando indicar é que qualquer classificação sumária da obra de IC

não é determinante para a sua compreensão. E sobretudo que ler a obra não é somente

decifrar teoricamente seus signos, pois eles não são redutiveis a mensagens somatizadas

—nossa ação exigirá uma adesão mais profunda, a que Chalumeau chama emoção.

Produzir uma pintura contemporânea, impregnada de questões organizadas intelectual

e emocionalmente e que conferem ao quadro seu significado, não é um dado psicológico.

É. isto sim. um esforço do sujeito perante a tela vazia e que pretende transcender os

limites do simples olhar. A consciência passa a ser a existência da própria pintura como

corpo/carne, como um mundo que ali, no espaço da tela, é refletido mas também reflete.

Para assim entendê-la é preciso “olhá-la vendo".

Não vamos nos prender aos primeiros sintomas da “ desintegração da forma", resultado

de um complexo encadeamento de seu percurso criador. Buscamos captar sua abstração

como uma estrutura criada mediante o poder de um ato imaginário. Ou seja, Iberê

Camargo persegue na forma, no imaginário, no simbólico, uma “ coerência nova": o estar

presente na concretude da matéria. Esse exercício que nem sempre opera de modo objetivo

na pintura, está na sua obra dialeticamente como causa e conseqüência gerando de fato,

pois na concretude o símbolo engendra sempre um novo campo simbólico e assim por

diante.

' ‘O artista deixa de ser livre quando

afoga a voz de sua intuição para servir

a uma ideologia que não é a da arte ’ ’ (IC)

Em arte, não se trata de inventar formas e sim de captar forças. Por isso, a rigor,

nenhuma arte é figurativa — segundo Klee, a fórmula não é traduzir o visível, mas tornar

visível. A força está em estreita relação com a sensação: é necessário que uma força se

exerça sobre um corpo, sobre um local, porque ai há sensação. A dinâmica da abstração de

Iberê está justamente nas linhas de força que energizam suas formas — ora elas se aglutinam

em núcleos, ora explodem. A redefinição de sua linguagem pictórica, como indicamos.

se dá com a série dos “ Carretéis", quando passa a efetuar a “ tradução" do real

pelo emprego de um sinal, compreendendo portanto a relação de significação entre um objeto

e um símbolo, identificando-os em conjuntos diferentes.

A base da imaginação criadora — a Abstração em sentido estrito — implica na faculdade

simbolizante que permite a formação do conceito, da idéia, distinta do objeto concreto

que toma-se apenas o exemplo, a referência, o lado do avesso.

A técnica que passa a utilizar não se limita mais à simples colocação das camadas de

cores. Ao contrário são as sucessivas camadas de impasto, pinceladas e espatuladas violentas

e mescladas, as texturas e os sulcos que produzem a obra. A substituição da antiga ordem

é um processo que amadurece vagarosamente e exige do artista uma luta consigo

mesmo, experiência que se reverte integralmente para a tela. Dessa maneira, a abstração

de IC é uma massa permeada de substâncias que perseguem esquemas de pensamento, ora

imaginários ora figurativos. Com esses esquemas ele organiza as matérias, confunde as

formas e a Forma, trabalha a ambiguidade dos signos, articula as linhas de força, acelera e

desacelera o ritmo dos gestos, enfim, deixa visível o percurso da identidade de sua lin­


Iberê Camargo: pulsâo e estrutura

27

guagem e alcança manifestar-se enquanto sujeito na tela. O esforço é para unir regiões, organizar

um espaço aparentemente solto, estruturar os limites das possibilidades,,, fazer e

refazer num continuo. Fazer emergir o que estava ausente, criar a imagem de “pintura

pela pintura” . Em um grande número de obras, a superfície apresenta-se como “cavada”

em sulcos de onde podem surgir formas que, por vezes, sofrem contornos; onde a linha é

um limite vazio, o contorno do nada — onde ela é pura esimplesmente — ou, inversamente,

onde as formas possuem contornos e se interpenetram pelo “fundo” . .

...“Agora é verdade que o indivíduo trabalhando numa abstração ele se torna mais

formal no sentido daqueles valores plásticos, a gente é menos enganado pelo que vê... porque

na verdade o quadro desde o início ele se planta, ele se coloca, e todas as mudanças que

depois acontecem, ele já mantinha um rumo que ele foi antes” . (2)

Iberê insiste em deixar claro que, quando trabalha em abstração, vivência os “ limites

da plástica simbólica” . Não procura o “elo” com o real empírico, objetiva sua obra como

se os signos fossem “ modelos” , “fontes” , “condutores de energia” , que muitas vezes

surgem como criações deformadas e chegam ao nosso olhar como “cubos” , “ pirâmides” ,

“setas” , “figuras” , “cruz” , “ chis” , “mãos” , entre inúmeras outras espécies. A pintura

deve carregar o impacto do olhar e, para que sejamos capazes de usufruí-la, somos obrigados

a romper com o cotidiano do olho e nos lançarmos na imagem, no exame e constatação

do que existe lá, naquele espaço infinito — a tela aberta a diversas, e até contraditórias

possibilidades. Ê um trabalho do logos e também do sensível. Não existe mensagem

em su? abstração, nem busca refletir algum tipo de natureza íntima que possa estar

contida nas coisas; suas imagens (que, em alguns casos, possuem breves estudos e em

outros são pintadas diretamente sobre a tela) se dispõem segundo o critério da criação.

Não há um referencial direto ao social, ao metafísico ou ao lingüístico, embora existam

elementos cuja leitura implique uma relação com muitas outras áreas do conhecimento

além da história da arte.

Gilles Deleuze (3) diz que Bacon faz a pintura do grito porque coloca visível o grito.

Estendemos essa afirmação a Iberê Camargo. Ele torna visível não só o grito, mas igualmente

o desespero, a luta, 0 medo e o místico. Mais recentemente, nas telas de 83/84,

evidencia a própria questão da identidade pessoal através da mão, do sangue, da semelhança

fisionômica — sinais que denunciam a equação da sua pintura, processo no qual é consciente:

“Agora eu, a minha vida, a minha pintura é do desespero, porque é a única posição

de um brasileiro, de um sul-americano, eu acho. Não pode construir, não tem meios e não

tem formação, só tem a dignidade” (4). A reflexão não diz respeito apenas ao “aspecto

regional” , diz respeito principalmente à posição do homem atual na sociedade contemporânea

— a ansiedade, a angústia, o jogo das probabilidades incertas são situações de fato

presentes na pintura, estão vivas nessa região que é o quadro.

A aparente “desorganização” da tela, que nos leva a um recondicionamento do

olhar, habituado à horizoritalidade das formas, deve nos reconduzir a uma “transmutação

ótica” para alcançarmos a desestatização que marca essa espécie de visualidade abstrata.

Nela os signos não refletem de modo direto as coisas e sim opiniões, saberes, idéias, e todo

nosso percurso é o de reconhecer seus significados, que não coincidem necessariamente

com a linguagem verbal. Assim, mesmo quando na obra de IC se esboça a figura ou o

(2) Retirado dos Depoimentos de IC em 23/08/83 e 20/09/83.

(3) Deleuze, Gilles — "Peindre le Cri" — in Critique, maio/1981, n? 408.

(4) op. cit. (2).


28 GÁVEA

modelo, trata-se na verdade de uma operação do imaginário. Na sua produção, ali onde

muitos identificam uma figura, outros vêem uma mancha; não é este instrumento o

parâmetro definidor da abstração do pintor e sim a relação entre a pulsào e a estrutura, a

organização dos limites, e até os não-limites da tela. Compreendemos essa relação como a

disposição entre os micro elementos e o todo; a pulsào e sua lógica interna são uma construção

organizada, e o pintor detém o controle das correspondências entre o micro e o

macro da pintura. A pulsào é simultaneamente pincelada e forma, agindo como uma só

substância. Ao conjunto, ao macro, chamamos estrutura — não estaremos mais diante do

que inicialmente nomeamos “desorganização” mas perante a coesão do cosmos pictórico.

As obras produzidas segundo o impacto do inédito levam tempo para serem captadas

pela percepção vigente. A positividade de Iberê extrapola o grande domínio técnico que

sua obra exige e revela: ela não pretende o “belo” , porém contém o belo, ou melhor,

guarda em si "o belo e a fera". Fera inevitável, ineludivel, que lhe dá a compulsão do pintar

e produz o outro do belo.

Em sua produção estão presentes todas as cores, aplicadas em multi-direções, criando

algumas vezes dificuldades para se encontrar a cor pura pois não há uniformidade no fundo

— uma cor se derrama, se emaranha por outra e, não raro, não vemos a passagem. O

preto, sempre muito atuante, contradiz o princípio físico e se apresenta como a presença

de todas as cores. Existem “ pontos luminosos” em todos seus trabalhos de linha abstrata.

Correspondem a segmentos localizáveis no conjunto e são os que ao primeiro olhar se destacam

por sua fulguração — são os “ graus” mais claros da pintura que se sobressaem no

preto agindo no equilíbrio cromático. Em alguns quadros esses pontos luminosos alcançam

seu limite fora da tela: as formas completam-se na mente do espectador. Fora, e não

dentro daquele espaço.

Nos últimos trabalhos, além da presença dos signos, constatamos a introdução

freqüente da sua auto-imagem. Essa manobra, que a tradição denominou “auto-retrato” ,

com Iberê assume a forma de pensamento; para pensar a pintura não é mais possível estar à

margem dela; deve-se estar dentro dela, atestando uma visão total e absoluta. Por isto, o

artista se coloca de frente, de perfil, como duas silhuetas que se entreolham, no branco e

no preto, no positivo e no negativo, como ícones autobiográficos. O pintor se vê como o

redimido que sofre, transfigurado pelo trágico, mas que tem como tarefa inesgotável a pintura.

Daí, em tantas telas, a presença da mão, o agente da pintura, o instrumento do seu

pensar. Em alguns quadros ele ainda segura o pincel — a mão como o condutor do imaginário.

Cabe a nós perceber que, depois da fotografia, não há sentido o auto-retrato descritivo;

ser fiel a si mesmo não é uma questão de reproduzir a própria imagem enquanto

mimese. A contemporaneidade impõe ao artista essa “ representação” como um problema

a ser resolvido. Os significantes estão lá, dependerá de nós captar seu “ego pictórico”

através de uma leitura que nos permita absorver a colocação do pintor consigo mesmo na

tela.

Poeticamente ficam do seu corpo na tela o movimento, o gesto, a presença da paixão,

os limites, a garra do traço, a luz no ponto certo, a força do inquieto... e não haveria outra

colocação senão aquela, outras formas senão aquelas, outra tensão senão aquela.

Trechos dos Depoimentos de ICem 23/08/83 e 20/09/83 (RJ)

LV: A década de 40 foi marcada na Europa e nos EUA pela abstração. Em 1951 a

Bienal de SP apresenta parte da visão plástica internacional. Que influências estes eventos

tiveram para você chegar na década de 60 aos “ Carretéis” ? Se é que tiveram.


Iberê Camargo: pulsào e estrutura

29

IC: Esses acontecimentos... eu sinto certa dificuldade, porque sou uma pessoa muito

solitária na minha caminhada, jamais me filiei a um grupo, segui uma escola ou tendência,

continuei tirando as coisas de dentro de mim mesmo. Estes fatos todos aconteceram,

tomei conhecimento, mas as Bienais de SP eu não as acompanhei, não freqüentei, a não

ser, eu acho, quando recebi um prêmio. Eu não saio, minha vida é muito “encapsulada” ,

de forma que isso que tu estás me perguntando pode ser porque influências existem, é

claro, a gente vive dentro de um contexto, todos nós somos participantes do momento em

que as coisas acontecem. Mas não conscientemente eu vou me filiar por uma questão

ideológica, não vou assumir porque estou convencido de que a abstração ou figuração é o

caminho, é a modernidade, a contemporaneidade, eu jamais tomei esta posição. As coisas

aconteceram por uma decorrência lógica do meu trabalho, como agora, por exemplo, eu

pintei umas figuras e então se diz: “é uma contradição” , antes fazia abstração e agora sai

com figuras... eu não vejo contradição nenhuma, porque estas coisas do sujeito se condicionar,

isso é muito escolástico. Quando a gente sente profundamente a vida, ou o que a

vida nos prova, porque acho que a coisa mais importante mesmo é viver, é o que acontece

na tua vida e como tua vida se extrai, se restringe — todos acontecimentos da vida vão

determinar tua expressão. Então, quando o sujeito “ morde o pó da terra” , quando o indivíduo

vive profundamente e sente a precariedade de tudo e a fugacidade do momento e

põe em discussão a própria eternidade, o próprio legado que tu vais deixar na tua geração,

para este país, para este mundo, mas mesmo isso é transitório! O que é eterno aqui? Então,

quando a gente tem uma noção disso, sentida como vivência, aí eu já não posso mais

respeitar os limites, não posso mais dizer que pertenço aos vermelhos, aos amarelos, aos

pretos... é a vida, compreende? O que acontece em mim, acontece, e se justifica pelo fato

de acontecer.

LV: Tomando as críticas que saíram nos jornais na década de 60, você tem um deslocamento

na coluna que te obriga a ficar mais parado, mais detido no atelier... aí você

chega aos “Carretéis” , que digamos, foi o “veículo” para a abstração. Acho que isto foi

um dado importante sim, mas acho que a abstração devia estar dentro de você, porque talvez

outro artista continuaria fazendo os “Carretéis” e não chegaria onde você chegou.

IC: Realmente nesta época que tive este acidente me interiorizei mais pelas circunstâncias,

o fato de não poder andar, carregar peso, o cavalete, tive dificuldade física e isso

me obrigou a uma vida mais de atelier, mas isso vem confirmar o que te disse antes — a

vida determina o caminho que tu vais seguir, são os acontecimentos que impõem a tua

conduta e as tuas respostas. Eu fui me interiorizando...

L V: Então a abstração tem muito mais a ver com teu processo interior?

IC: E, tirando de dentro. As coisas estão muito mais mergulhadas em si mesmo, não

é? E claro que o artista mergulha no mundo, mas o mundo está dentro dele evidentemente,

mas ele mergulha nas coisas mais íntimas.

L V: Como pintar a dor, o grito, a cor, a emoção, a razão, a idéia que são abstrações?

IC: Ah! eu nunca pensei em pintar estes nomes que tu estás dando, estes títulos, estes

poemas que tu estás inventando. Eu nunca dei nomes às coisas porque isto não existe

em pintura. Ela pode ser um grito, e acho que ela é um grito, mas não dizer... que representa

um grito, ela é um grito.

L V: Em que medida De Chirico e Lhote influenciaram tua formação?

IC: O importante é tu teres contato com o que é autêntico. São pintores, sabes. O

Lhote era uma pessoa muito teórica, um sujeito muito lúcido, o outro era uma personalidade.

Termos contato com pessoas que realmente têm densidade, que realmente são e

que sabem ver, sabem dizer, sabem pensar é muito importante, não é? Porque justamente


30 GÁVEA

o problema do Brasil é a solidão intelectual, não encontrar uma pessoa que diga. que faça

uma referência ao teu trabalho, que pese, que te oriente — esta referência leva a uma

reflexão do teu trabalho. Porque o sujeito pode dizer coisas, mas quem disse não tem peso

para dizer aquilo. Esta densidade cultural que eu acho que existe na Europa, que acho que

nós não temos. Nós somos de uma pobreza impressionante. Acho que todo contato com

um artista moderno importante, como Guignard, quer dizer, um homem autêntico, que

viveu as coisas, a sua arte. um artista de verdade. Acho que o que é autêntico sempre nos

enriqueceu, contribuiu. Por isso. às vezes um poeta que fale sobre teu trabalho tem sentido.

porque ele tem intuição, porque ele também é mãe, ele sabe os problemas da gestação.

ele conhece. O criador sabe, então pode através do que sabe ajuizar. Eu sempre tive

muito medo, porque sempre digo que um dia não saberei mais o que é pintura, mais nada,

porque me afastei tanto. sabe?... Agora eu, a minha vida. a minha pintura é do desespero

eu acho. Ele não pode construir, não tem meios, não tem formação, só tem a dignidade. O

latino-americano é o homem que tem que pintar a morte porque outro caminho não há, eu

não vejo. O sujeito vai entrar por essa área que falávamos, coitado, não conhece nada. Não

sabemos fazer nada. nem papel higiênico... então, o artista não tem meios, não tem como

trabalhar, é um país miserável.

LV: Iberê, como foi seu processo na Europa no sentido do olhar, do treinamento da

mão?

IC: Ah! eu olhava muito, centímetro por centímetro como era a relação do quadro,

como ele tinha sido feito, como um marceneiro que chega numa marcenaria como aprendiz

e procura ver como o sujeito faz os encaixes, como aquilo está resolvido no sentido de

como as coisas são feitas. A parte artesanal sempre me interessou muito para aprender.

Mas o que uma pessoa pode fazer senão se debruçar sobre as múmias e prescrutá-las? Porque

toda história é assim, toda descoberta... você chega e lê nas pedras o que o tempo

trabalhou, palavras, pedaços de palavras e tu tens que recompor o pensamento e é assim

que se aprende.

LV: Naquela ocasião na Europa, quem você admirava, a gente tem sempre alguém

com quem se identifica.

IC: Bom. naturalmente é um choque violento, não é? Quando desembarquei em Portugal.

fui correndo ao Museu das Janelas Verdes porque tinham me dito que lá existia um

Raphael e aí eu sai correndo... eu nunca tinha visto, Inumca tinha tocado, quer dizer,

aquela coisa que é você ver pela primeira vez; então, essa emoção toda... quando você

chega diante daquela montanha de arte, o sujeito fica louco, não é? Eu nunca tinha visto

nada... aquele impacto assim arrasador... o cara tem vontade de sair para a rua e dizer “eu

não sou pintor, sou dono de um cartório” , inventar uma coisa assim porque não dá. Eu

passei pelos ateliês porque não dava, não havia tempo; juntei o que pude para encher o

saco como aqueles famintos que, quando chegam, começam a encher o saco. Mas aquele

saco por maior que fosse, era pequeno, porque a montanha de ouro está lá, o que poderia

trazer é esta consciência, compreende? Isto que estou falando é o resultado de uma consciência

adquirida da nossa diferença, por isso eu digo que o único caminho é o desespero.

LV: Além da visualidade adquirida, em termos de vivência, quais foram as marcantes

na tua obra?

IV: A vida quando você vai vivendo, respondendo a tudo isso, o mar está calmo, o

horizonte tranqüilo, não há nada, nem sinal de tempestade... mas um dia acontece, então

ai acontece a tempestade... um negócio que você nunca imaginou... então você vai perder

todos esses respeitos, todos esses compromissos que você tem, porque você sem querer

' tem compromissos com a estética... e vai, sem querer, vai se engajando num contexto his-


SIN AL, Iberê Camargo, 1984, óleo sobre tela, 25 x 35 cm

tórico... o sujeito está muito bem enquanto ele estiver respondendo comportadinho ao sistema.

Não há nada de sagrado “chê” , não há sagrado a não ser teu desespero, tua dor

profunda, todo teu ser que sofre.

LV: Existe alguma relação entre as suas naturezas-mortas e as de Morandi?

IC: Bom é possível que houvesse influência porque é claro que sempre o pintor da

metrópole vai influir no pintor do outro mundo. Mesmo que eu veja que há um paralelismo,

sempre vai aparecer você na história como sendo influenciado por outro.

LV: Mas você acredita nisso?

IC: Mas a história registra assim, porque quem escreve a história é o vencedor, é o

rico, é ele quem escreve a história. Agora sei que fui muito influenciado por Utrillo, que

agora não me diz nada. Recebi influência de outros pintores, me debati de todas as maneiras.

Foi uma luta tão dramática a de me encontrar.

L V: Van Gogh, você se identifica com aquela pincelada dele?

IC: Não, eu não... falei nele porque acho que é um passional, nesse sentido eu me

identifico com todos esses indivíduos que realmente pintaram com alma e isso eu acho importante.

LV: E o tachismo Iberê? Você falou na mancha e eu me lembrei do tachismo.

IC: Pois é... mas eu nunca fiz assim uma pintura desordenada, sem saber o que estou

fazendo. O tachismo pega mais o gesto, não é?

LV: Você já trabalhou direto na tela?


32 GÁVEA

IC: Trabalhei muito; às vezes eu esboço antes com o carvão, mas não necessariamente.

Esse filme que foi feito, eu trabalhei diretamente na tela a partir de uma figura. Esse

painel que vai ser exposto (refere-se ao trabalho exposto em 09/83 no Centro Empresarial

Rio — Coletiva “ 3/4 Grandes Formatos”) eu desenhei antes, mas depois me afastei tanto

do desenho que é como se não tivesse desenhado, ficou apenas para dizer que agora é essa

massa aqui... porque eu sempre refaçoe redesenho tudo, então... esse painel foi documentado

por um fotógrafo, tinha desenhos até bonitos, mas depois tudo sumiu.

L V: As coisas que você escreve têm alguma relação com a sua pintura?

IC: Bom. porque tu sabes... tudo é um problema de forma, de linguagem... escrevo

cartas, gosto de literatura, escrevo para mim, gosto de escrever sem pretensão. No pintar,

no desenhar, sempre achei que a pintura na verdade são três traços, é geralmente muito

simples. São três palavras aquilo tudo, e na literatura também.

L V: Outra coisa que tenho pensado em cima de seu trabalho, das figuras que estão

vindo... é como se pudesse dividi-lo em vários espaços, onde as regiões tivessem uma

leitura, que também está articulada com o todo. Por exemplo, lembras da mão que tu

fizeste num dos últimos painéis, aquilo já é um quadro.

IC: Aquela mão. tu sabes, foi um sinal de trânsito em Porto Alegre — é uma mão

vermelha de pare. sinal de trânsito de noite, o fundo é escuro. Mas eu acho que o ponto de

partida de um pintor é sempre um alçapão, quer dizer, alguma coisa que serve para atrair;

o indivíduo pensa que está desenhando aquela mão pelo fato de ter visto aquela mão no

crepúsculo, que ele viu no sinal, enfim... mas eu acho que aquilo é uma ilusão, é um

pretexto, no fundo acho que aquela mão tem uma simbologia muito maior, não é uma

mera mão de trânsito. É uma mão que vai, que deve ter uma ligação com seus ancestrais,

com a sua vida, não sei... deve ser uma coisa muito profunda. Aquilo foi apenas o detonador

de uma outra coisa que aparece com aquela forma.

LV: .E os dados? Os cubos? Os olhos?

IC: Eu também não sei porque, sou um homem que jamais brinca com o azar, com a

sorte... aconteceu aquilo. Eu espero que acabe... que eu chegue ao fim dessa estrada. Um

dia acaba... surgem outras coisas. É sempre assim... e tem que necessariamente viver

aquilo porque não pode pular, não pode anular aquele espaço de tempo que está, o marco

que vai mudar as coisas. Não sei, o que sinto em mim é muita vitalidade, posso estar enganado.

com muita possibilidade de fazer coisas mas o meio é muito restrito, tudo muito

complicado pela falta de material para o sujeito se expandir mais. Eu tinha vontade de fazer

gravura com vários impressores mas não tem, tudo é “choco” , mole, morto. Então fico

eu sozinho na minha loucura...

LV: Iberê, quando você está fazendo um trabalho como esse, a cor... como é essa cor?

IC: Nossa! Como é que eu vou saber como é essa cor. A cor é uma lingaugem do subconsciente,

é uma coisa que vem, que está, não é uma cor escolhida, um mostruário, isso

acontece...

LV: Isso quer dizer que você vai usando uma cor e depois vai sentindo a que tem que

colocar ao lado?

IC: Ah, é, vou sentindo que uma cor exige outra, isso é um processo automático, é o

inconsciente que vai vendo isso ou a experiência qúe a gente tem com a coisa, se você fosse

pensar: “ agora eu coloquei uma cor, vou pensar qual é a cor que eu vou pôr” ... isso é uma

frase...

L V: O que importa é o diálogo do Iberê artista com sua própria obra, seu compromisso

com ela, porque é isso que vai ficar aí na história da arte do Brasil. Atualmente como

você está vendo esse diálogo com sua obra?


Iberê Camargo: pulsâo e estrutura

33

IC: Eu acho que esse monólogo... eu às vezes me sinto preso, é o que consigo por para

fora. Sempre espero também que aconteçam novas coisas... na tela. Mas há um momento,

não sei, parece que as coisas têm um tempo de duração, as coisas permanecem como obsessão

e eu pergunto quando esse pesadelo, essa obsessão vão acabar, quando terei outra

obsessão; eu não sei... então fica aquela margem... aquela coisa... porque no fundo parece

que o indivíduo sempre repõe o mundo outra vez.


ESP A ÇO M ODIJIA DO NP 4 1958,

tinta industrial/madeira,

50,5 x 50,7, col. JoãoSatamini.


Lygia Clark: a dissolução do objeto

M A R IA C R IS T IN A B U R L A M A Q U I

A singularidade da trajetória da obra de Lygia Clark está na dissolução do Objtto

como forma de abolir a distância entre arte e vida. Por isto a importância de Lygia Clark

tem sido constante, a ponto de acompanhar toda a história da escultura contemporânea no

Brasil.

É fundamental, portanto, que se abra espaço para a releitura da trajetória Neoconcreta

da artista, mesmo 25 anos depois do Manifesto Neoconcreto, já que o dinamismo de

suas formas pressupõe uma ação de forças que se converte numa sucessão de rupturas no

campo da arte.

Plano, Espaço e Tempo

A pressuposição imediata é o “passado" construtivo (1) de Lygia Clark, ou seja, a

questão do Cubismo e seu rompimento com o espaço perspectivado renascentista. A disassociação

dos elementos pictóricos e a inteligibilidade do Plano já estavam conquistadas no

momento em que ela adere, nos anos 50, a uma linguagem abstrato-geométrica, com a

participação no Grupo Frente no Rio de Janeiro (1954), no Concretismo e depois no

Movimento Neoconcreto.

É evidente que a abstração geométrica tem suas bases no Cubismo. O que queremos

demonstrar não é a simples compreensão na sua obra do Cubismo, pois isto está subentendido

pela linguagem construtiva, mas como ela vai trabalhar o Cubismo como um problema.

Problema do plano, espaço e tempo.

É esta questão da pintura a questão inicial de Lygia Clark e que aparece até mesmo

nos Bichos (1959). A artista não teve uma formação acadêmica. Começa a aprender

“coisas” com Burle Marx (1947), depois em Paris tem aulas com Léger, Szenes e Dobrinsky.

Voltando ao Brasil, em 1952, se filia ao movimento Concreto Brasileiro em 1954.

Seus primeiros temas são escadas, sobre as quais tece a seguinte consideração: “O espaço

das escadas era incrível porque nunca se sabia se estava subindo ou descendo. Ali estava o

cerne do Bicho” (2).

A Obra de Parede

Partindo da noção de que o espaço não é algo que éxista em si mesmo, Lygia Clark vai

procurar nas suas primeiras telas concretas o rompimento com o espaço pictórico tradi-


36 GÁVEA

cional. Espaço pictórico tradicional sim. pois Lygia Clark usava tela, moldura e tinta,

resolvendo a pintura no quadro convencional. No entanto, isto não a satisfaz e logo busca

formular um vocabulário para exprimir um novo espaço, pintando a moldura da cor da

tela. A preocupação era a “de arrebentar o núcleo do quadro (tela), levando a cor desta

para a moldura, a própria espessura da moldura já começava a entrar também como

elemento plástico” (3). Nestas primeiras tentativas, joga em algumas telas a cor até um

determinado ponto da moldura de acordo com a própria composição do quadro. A pintura

começa a se fundir com o suporte.

Moldura e tela se confundem, uma invadindo a outra, quando Lygia Clark pinta a

moldura da cor da tela. Depois, ao pintar partes da tela até a moldura, o espaço passa a se

organizar de maneira cromática, chegando mesmo a ampliar o espaço pictórico, saindo da

moldura. Não é uma pintura fechada nela mesma, a superfície se expande igualmente

sobre a tela. separando um espaço, se reunindo nele, e se sustentando como um todo.

É bom lembrar que. dentro do movimento concreto, estas tentativas de Lygia Clark

estavam já bem distantes dos postulados racionalistas. Mondriam deixa assim de ser pensado

como uma estrutura fechada em si mesma, recordando que estas formas geométricas

já haviam inspirado a Calder e seus móbiles, que fazem flutuar no espaço as formas coloridas

de Mondrian.

Esta análise intuitiva, própria de Lygia Clark e do Neoconcretismo, abandona o rigor

formal do construtivismo. chegando através das linhas oblíquas e formas ortogonais à

desarticulação do quadro e ao rompimento com a moldura. É uma tentativa de abolir a distância

entre o espaço da tela e o espaço real. E é aí que Lygia Clark dá o salto qualitativo,

não só em sua obra como dentro da linguagem construtiva. Quando, nas obras Neoconcretas.

ela extrapola a moldura, não há um lado por onde abordar, a abordagem se dá por

todos os lados: o espaço da pintura não se resume nele mesmo. Com a ausência de linhas

verticais. Lygia Clark nega os limites da moldura e a verdade passa a ser o próprio espaço

que se está formando à nossa frente. É a critica à contemplação.

Max Bense. em sua Pequena Estética, dizia “coordenar um esquema finito de repartição

de probabilidade de seus elementos materiais ou signos, então a moldura do objeto

artístico fixa de certa maneira este esquema finito” (4). Max Bense usa o sentido da moldura

como margem que “fixa não só a finitude do objeto artístico, mas também o tamanho,

o formato e a intensidade" (5). Pressupõe a pré-ordenação ou seja uma decisão'

sobre o objeto estético.

Ao atravessar a moldura, Lygia Clark cria o objeto no espaço real. cria o espaçomodernidade.

Pois. a “função da moldura de quadros relaciona-se também com a psicologia

de figura e fundo” , segundo Arheim (6) em que o quadro como superfície limitada

é a figura, que colocada sobre a parede se torna fundo. O rompimento da moldura realiza

também o encontro com a arquitetura, pois ela tem o mesmo problema da janela, resolvido

na arquitetura moderna com as paredes que se tornam grades de planos horizontais e

vidros (vide Mies Van de Roh).

A idéia de Mondrian de que o espaço virtual, de coordenação abstrata, passasse da

idéia à ordem real, e a de Malevitch de que o fundo da tela não é o lugar do pensamento artístico

mas o seu modo. afirmam que não é mais o objeto o que importa e sim o projeto. O

lugar efetivo do pensamento será o espaço público. É o desejo de Lygia Clark, “eu sempre

proçurei um espaço que não fosse mecânico, esse espaço em que fecha o olho e lê mecanicamente

o quadro através de pequenas fórmulas. Eu queria um espaço orgânico, em que

se pudesse entrar dentro do quadro” . (7)

Desde o inicio, a linha era uma de suas preocupações: a linha entre a rela e a moldura,


U

PLANOS EM

SUPERFÍCIE

MODUIADA. n? 6

série B 2? versão, 1958.

tinta industrial/madeira,

1,06 x 28,9.

ESPAÇO MODULADO.

n? 4 série B 2? versão.

1959,85,5 x 29.

col. Gal. Bonino.


38

GÁVEA

linha não gráfica, que aparece nas “ junções de portas e caixilhos, janelas e materiais que

compõem o assoalho” passando a chamar “ linha orgânica” pois era real, existia em si mesma,

organizando o espaço, “era a linha-espaço, fato que eu viria perceber mais tarde (8).

Nessa época dedica-se a experiências para aplicação na arquitetura. A sua pintura então

seria uma porta, assim como em Le Corbusier, na tentativa de solucionar racional

mente a vida, o objeto-quadro se transforma em objeto-casa, uma nova estruturação do espaço

habitado. Lygia Clark quer se inserir desse modo no real que é a arquitetura. No entanto.

prosseguindo as pesquisas sobre o que chama de linha orgânica , ela \ai buscar

em Albers um apoio para sua recusa da forma seriada concretista, uma \ez que Albers

rejeita a matematização da cor e do espaço.

A Experiência Fenomenológica

Ao retornar à questão da forma significativa, a artista rejeita tanto o conceito tradicional

do quadro quanto a temática concretista, tentando enfocar o quadro como um

todo orgânico. Desde o início procura desenvolver um trabalho com um sentido mais orgânico.

fugindo aos preceitos ortodoxos de Max Bill. O espaço concreto era tão-somente

um espaço fragmentado em que a leitura do olho era feita ponto a ponto — já Lygia Clark

pretendia que o espectador e o quadro, por assim dizer, se interpenetrassem. A obra é

aceita como uma experiência estética na qual o olho não é apenas um instrumento; é um

olho que percebe e ordena o mundo.

As metáforas em Lygia Clark são da ordem do corpo. Ao invés de estruturar partes,

formando unidades de tipo concreto, geometrizada euclidianamente, utiliza-se da dinâmica

da forma. É aí que a força criativa de LC encontra Merleau-Ponty e sua Fenomenologia

da Percepção. Para ela o importante será o corpo, a experiência da “carne” .

Quando descobre a linha orgânica passa a investigar a origem de sua significação num esforço

de chegar a uma linha não mais geométrica e sim com uma ligação corporal.

Em Merleau-Ponty a obra de arte contém uma nova percepção da experiência do corpo.

O paradoxo, a ambigüidade, o enigma e o mistério não são eliminados e sim reinterpretados,

decifrados pela experiência fenomenológica. A obra de Lygia Clark inicia ai o

processo crítico da linguagem construtiva, utilizando-se da filosofia do corpo para refazer o

espaço.

E um espaço em muitos aspectos paradoxal porque não há um exercício da forma e

sim um espaço que parte do Eu, vivenciado por dentro, sem o invólucro exterior, eliminando

o sujeito contemplativo e pretendendo fazer ressurgir o sujeito participante-domundo.

Merleau-Ponty submete à análise a Gestalttheorie e opõe a ela uma filosofia da forma.

Nela a obra de arte é vista como experiência fundamental da carne. É no próprio embate

com a Gestalt que os Neoconcretos colocam a decisão de eliminar figura x fundo. O tema

é a Ambigüidade, porque vem da experiência do corpo, da volta às “ coisas mesmas” , um

“exercício de liberdade” , uma percepção movida pela sensação em oposição ao dogmatismo

e ao objetivismo concretistas.

Já com o rompimento da moldura Lygia Clark colocava uma ambigüidade de direção:

a obliqüidade das linhas lançavam a pintura para fora e ali encontravam o espectador.-

Quando ela toma a linha orgânica, que vem do seu corpo, está “ emprestando o seu corpo

ao mundo , transformando o mundo em pintura, deixando de ser apenas um operador

perceptivo para perseguir uma união e uma passagem do visível e do móvel. A busca não


Lygia Clark: a dissolução do objeto

39

tem uni caráter unicamente experimental, considera o momento existencial como o

momento decisivo da experiência. Ela propõe assim uma nova visão da problemática construtiva

onde a transcendência será a especificidade do objeto artístico.

Superfície modulada

As possibilidades de estruturação perspectivistas, redutíveis ao Plano, na obra de

Josef Albers, vão dar subsídios à artista para realizar as Superfícies Moduladas. Apesar das

afinidades com a Gestalt, a pintura de Albers não tinha efeito apenas ótico — é uma percepção

inteligente, sem racionalidade mecânica. Os quadrados em Albers se revezam,

agindo, criando relações diferentes: o espectador deve construir relações também; Albers

quebra a estaticidade da superfície através do jogo dos planos.

O encontro com Albers vai marcar a percepção espacial em Lygia Clark que será dissecada

até os Bichos. Daí em diante ela passa a usar a linha-espaço de maneira a construir

os planos e a delimitar a própria cor. Considera, porém, o sentido de espaço em Albers

diferente, pois “ Albers ainda construía sobre o fundo, ao passo que a minha maior

preocupação era reconstruir toda a superfície para que o espaço externo não só as interpenetrações,

como também passasse a agir sobre elas diretamente. (...) O caráter expressional-orgânico

passou a existir novamente, pois o que queria expressar era o espaço mesmo

e não compor dentro dele” (9). Usa assim a linha orgânica como uma linha exterior,

independente das junções do quadro e o espaço, criando o próprio tempo da obra. A pintura

se fazendo e se refazendo como o mundo. Já não se trata de fazer pintura, mas da pintura

fazer-se.

As Superfícies Moduladas (1956-1958) querem “ mostrar através” , o espaço expressivo

de uma relação positivo/negativo. E querem ainda pensar a questão do tempo Vivido

em contraste com o fundo mecânico das obras seriadas do Concretismo: o espectador e a

forma seriada se colocam distantes um do outro, sendo a leitura imediata. O pressuposto

de Lygia Clark é o tempo Vivido, trabalhando o tempo virtual e deixando ao espectador a

leitura da obra. A obra se apresenta outra a cada leitura, havendo pois a recriação constante

da obra de arte. No encontro com a linha orgânica, Lygia começa a pensar o conceito de

participação do espectador, que vai se efetivar nos Bichos.

O que se inscreve aí ela vai chamar de linha-tempo e que seria a questão limite do

Cubismo, a 4? dimensão. As quatro dimensões para Malevitch são as 4 formas da manifestação

da consciência. E a 4? seria exatamente a Intuição. Para Malevitch o artista

deveria reunir todos os aspectos do conhecimento e da visão para obter a 4? dimensão que

é a Realidade. Malevitch coloca o Intuitivo na arte: Lygia Clark faz suas experiências de

maneira crítica, mas intuitiva, descobrindo, estudando e redescobrindo incessantemente

as questões da linguagem pictórica ou escultórica. Partindo da experiência concretista e

seu tempo mecânico, Lygia Clark na Superfície Modulada (1956) ao contrário de Albers

que constrói com a linha, constrói formas; a superfície é só o suporte “para expressar o

tempo-espaço” . A linha-tempo preta sobe e desce incessantemente. Está evidente a ligação

com a Gestalt quando a linha interrompida no Ovo (1958) deveria ser completada

pelo olho e não é. Um círculo de madeira preta (cor limite não-cor) e a linha branca que o

acompanha quase até completá-lo. E a fisionomia do círculo.

Casulos e Bichos

Lygia Clark sai da dimensão da tela e se lança no espaço com os Casulos. Estes seriam


40 GÁVEA

relevos porque a superfície não é determinada pelas formas; não seriam escultura porque

não há propriamente volume e massa e fogem também da bidimensionalidade da pintura.

Vêm diretamente dos Contra Relevos de Tatlin e têm o sentido malevitchiano de saltar

para o espaço.

No periodo de 1912 a 1930, sobretudo, os artistas realizam experiências cubistas

visando sair da superfície para o espaço. Efetivam no objeto as proposições cubistas, facetando

os volumes em ritmos fragmentados, transportando os planos da pintura para a

escultura. Tatlin. em especial, realiza com formas geométricas uma articulação orgânica e

funcional. Lygia Clark nos Casulos segue essa tendência, questiona o dentro e fora. quer o

olhar do espectador criando incessantemente um espaço topològico, proveniente das experiências

com a Fita de Moebius, famoso exemplo de geometria não-euclidiana.

Em 1959. com os Bichos, I.ygia Clark dá outro “ salto qualitativo” através da participação

do espectador na obra. É o fim da contemplação e da reverência diante da obra de

arte. Com a noção fenomenológica do homem, a interação do fora e do dentro, do antes e

do depois, é a arte voltada para a existência imediata do Homem.

As obras se tornam organismos vivos, tanto que ela os denomina Bichos. Tratam-se

de placas unidas com dobradiças que juntam dois planos e duas partes dobradas que não

mexem. O caráter orgânico é flagrante: as dobradiças seriam a espinha dorsal e derivam das

pesquisas com a linha orgânica. Para ela, o Bicho é um quadro cubista que caiu (10).

Quando diz isto o faz porque ali existe uma superfície cubista tensionada; articulação de

planos e não de volume. Devemos, pois, observar o tamanho das peças, basicamente

manipuláveis. Não poderíam ter a dimensão da Minimal A rt, evidentemente.

Essa dimensão subjetiva da obra, irredutível à objetividade do mundo, propicia as

condições para acabar com a base. pressuposto da escultura clássica. Porque a Base remete

justamente ao problema da Representação e o trabalho artístico agora visa acontecer no

mundo: não está mais fora dele, não tem uma dimensão ilusionista. É o que leva Max

Bense a chamá-los kntre-Objetos. Quando a artista liquida a moldura já estava em luta

com a representação e a contemplação.

Os Bichos tomam a questão da experiência artística como uma experiência do Outro.

O espectador, através do gesto, do tátil, em construção e desconstrução. é convocado à

participação, à recriação da obra. O Bicho, “ como a visão do pintor é um nascimento continuado".

Há ai o paradoxo de, sendo arte construtiva, questionarem a presença positiva

da arte no mundo. A função-arte (Caminhando) acaba passando muito mais por um Existencialismo.

Nada é menos positivo do que o existencialismo. O de Merleàu-Ponty, entretanto,

não tem o sentido sartreano pois recusa a concepção dramática do homem,

sobretudo enraiza “ o sujeito-pensamento no seu corpo, no seu passado, num mundo cultural

onde o pensamento de cada um pode ser tomado e compreendido pelos outros” (11).

Coloca-se, portanto, radicalmente a expressão. Nesta obra de força expressiva, orgânica,

com dinamismo espacial, encontram-se o dentro e o fora, o côncavo e o convexo, interioridade

e exterioridade, o reto e o oblíquo, o reto e o curvo. A questão não é decifrá-los e

sim experimentá-los, tem a intencionalidade de “ eu posso e não eu quero” . É uma situação

limite. A dinâmica das placas pressupõe cada parte no espaço. E este remete ao

imediato do nosso corpo.

Aqui não há a problemática da escultura tradicional: volume e massa saem do plano

cubista e nesta tensão ambígua aparece pela primeira vez a tridimensionalidade, o pensamento

do Plano. O Bicho constrói um volume mas deriva da questão do plano. A arte é

vista como prática a envolver participações gestuais e ativas do espectador, um “ exercício

de liberdade". Em Lygia Clark o que se move não é o espectador ao redor da obra, como


Lygia Clark: a dissolução do objeto 41

acontece em Archipenko, Lipchitz, Laurens e Gabo, que só fizeram passar o Cubismo para

o volume, permanecendo estáticos. Os Bichos vêm diretamente de Tatlin, com alguma

coisa da “Constructed Head” , de Gabo (1917), principalmente onde os planos formam

círculos; só que em L.C. há um eixo central e um plano circular que gira em tomo do eixo

vertical, com dobradiças. Como em Gabo, estas obras são feitas de lâminas de aço em formas

matematizadas, cristalizadas numa tradição construtivista (material industrial), mas

procuram uma comunicação mais autêntica com o corpo humano, que vê é é visto, toca e

é tocado. Como Laurens, Lipchitz, Archipenko, Gabo e Prevsner a trajetória de Lygia se

faz muito por ali. pela “planar dimention”, em que a concepção do quadro como plano

plástico elimina a distinção entre pintura e escultura. Só que L. Clark avança a questão: o

seu objeto se move. Seria, então, o não-objeto? Aqueles artistas tentaram realizar plasticamente

a decomposição da pintura, conseguindo romper a concepção tradicional da

relação entre as formas plásticas e o espaço. Não conseguiram, porém, renovar á estrutura

BICHO. 1959. alumínio, 32 x 1.07.


42 GÁVEA

da forma plástica e se limitaram quase a uma imitação da forma pictórica. Da estrutura de

aço inoxidável elástica e deformável passamos aos Trepantes, sem charneira, que ela

chama de “ antes e depois” — e finalmente Obras Moles, distanciando-se então completamente

da concretude da tradição construtiva pelo material, a borracha.

Caminhando. Fragmento do Tempo Captado

Lygia Clark chega ao Caminhando através da Fita de Moebius e das pesquisas com o

espaço não-euclidiano, o dentro e o fora, o direito e o avesso. Já nas primeiras experiências

com a linha orgânica, conseguiu estendê-la para fora da tela e chegou aos Bichos (dobradiças),

aos Trepantes e às Obras Moles.

Caminhando é a experiência de um tempo sem limite e de um espaço continuo. É o

espaço topológico, “em que as distâncias não são medidas abstratas e inatingíveis nas

relações, situações em função deste Eu exterior e o Eu interior” (12). Após certas Vivências

em campo de forças, de impulsos, de motivações, de atração e repulsão, deslancha-se a

poesia do ato e do momento. Cada Caminhando é uma realidade que se revela na totalidade

no tempo da expressão. Ele enfatiza o gesto efêmero e a função-arte é questionada no

momento em que perde o valor de mercadoria. O Caminhando é um “ faça você mesmo” ,

com uma tira de papel e tesoura. Aproxima o sujeito do objeto, corpo-a-corpo existencial,

tematiza o vir-a-ser.

Nos Bichos — o gesto

No Caminhando — o ato

E a questão da Intuição de Malevitch; a obra aparecendo em sua singularidade.

Lygia Clark considera 0 Caminhando um ato imanente realizado pelo participante,

com todas as responsabilidades que se ligam a uma ação individual, permitindo a escolha,

o imprevisivel e a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto.


Lygia Clark: a dissolução do objeto

43

“Caminhando no espaço, ela rói, no entanto, o espaço prosaico e o partes extra partes”

(13). É a aproximação máxima entre sujeito e objeto.

Para Merleau-Ponty seria útil recolocar o problema da percepção no presente da

neurologia e, particularmente, da psicologia e da filosofia. Esta abordagem se aplica bem a

Lygia Clark. Após o período artístico, em busca da dissolução do objeto, ela caminha para

as Vivências, colocando o corpo humano como um instrumento de expressividade e,

depois para uma interiorização, agindo como terapeuta. Isto, porém, escapa aos limites

de nosso estudo.

Lygia Clark e o Movimento Neoconcreto vão rediscutir, em nosso ambiente cultural,

o projeto da modernidade, apreendendo sua problemática de maneira diversa ao do caráter

anedótico que dominava a quase totalidade dos artistas brasileiros desde os anos 20. Com

os Casulos, os Bichos, as Obras Moles e Caminhando, ela coloca o Movimento Neoconcreto

na vanguarda internacional. Avançando no processo de inovação e emancipação da

arte, ela acaba chegando a um nível de radicalismo que culmina com o abandono da arte,

após liquidar as categorias de escultura, pintura e relevo. Um impasse real dentro da

problemática da cultura moderna.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Inicia-se na pintura figurativa, após conhecer Mário Pedrosa. Por sua influência, insere-se na linguagem

abstrato-geométrica (entr. Paulo Mendes Campos. nov./84).

(2) COUTINHO. Wilson “ A radical Lygia Clark". Jornal do Brasil, Cad. B. p. 1, 1980.

(3) CLARK. Lygia “ Lygia Clark e o espaço concreto expressiònal” . Suplemento Dominical do Jornal

do Brasil 7.02.59 (depoimento a Edelweiss Sarmento).

(4) BENSE. Max — Pequena Estética Ed. Perspectiva, S.P. 1975 pp. 67 (teórico matemático da Esc. de

Ulm e um dos orientadores do concretismo.

(5) Ibidem pp. 67

(6) ARHEIM. Rudolf — Arte e Percepção visual, uma psicologia da visão criadora Nova versáo — Ed.

Univ. S.P. 1980.

(7) Depoimento Op. Cit.

(8) Ibidem

(9) Depoimento Op. Cit.

(10) PEDROSA. Mário — Significação de Lygia Clark. JB. 23.10.60.

Ò l) BRUNCH. Jean Louis — “ O existencialismo de Merleau-Ponty” , Suplemento Dominical JB,

pp. 1.

(12) PUIG, interpretando a Psicologia de Espaço de Abrahan A. Molles, diz “ Yo ampliado, de carapazones

dei yo" que traduzimos por'Eu-exterior e eu-interior. Carapazones significa casca de ovo, concha de

caramujo, op. cit. pp 125 Intangibles por inatingiveis.

(13) M. Ponty. 1963 pp- 92.


JJJDITH LAU AND ,

“ Dinamização de elementos ortogonaisJ\

1955, esmalte s/eucatex,

61,5 x 61,5 cm. Col. do Artista.


A questão das idéias construtivas

no Brasil: o Momento Concretista

V A N D A M A N G IA K L A B IN

O universo de análise é investigar as condições da inserção das idéias construtivas no

Brasil, a validade de suas propostas e a eficácia de sua atuação, tendo em vista a dinâmica

que as teorias construtivas vão imprimir em nosso meio de arte e as possibilidades que

geram para o trabalho artistico como parte ou não de um projeto nacional.

O grupo concreto paulista será o ponto de partida. Não apenas representa o primeiro

momento de penetração de uma nova linguagem estética, que possibilitou a abertura de

um espaço para a arte contemporânea no Brasil, como uma reflexão sobre a relação entre a

atividade artística e as relações de produção. Na trajetória que a arte concreta paulista vai

percorrer em sua produção teórica e em sua prática artística, serão incorporados os postulados

da vanguarda construtiva européia que, de um modo geral, investem contra as

atitudes metafísicas e irracionalistas que permeavam a atividade artística para afirmar a arte

como uma prática racional e positiva. Os artistas construtivos procuram formular um

repertório para a linguagem plástica de modo que a arte passa a ser não apenas uma diretriz

teórica, como um modelo para a sociedade. O construtivismo inaugura a questão de arte

abstrata, porém retira da arte o seu caráter de pura fruição estética para colocá-la no campo

de produção. A questão central construtiva não reduz-se à ordem estética, a nível da discussão

da própria linguagem da arte como não figurativa, com ênfase na abstração e na

geometrização das formas. Existe também a proposta de uma efetiva participação da arte

na construção de uma nova sociedade.

As transformações técnicas ocorridas na sociedade capitalista criam uma nova situação

para o objeto estético, diferentes possibilidades para a sua inserção no processo social.

Era necessário, pois, um outro posicionamento da arte diante das transformações que

vinham sendo operadas não só no campo estético como no plano econômico. A sociedade

moderna dará uma outra dimensão à atividade artística, criando uma crescente articulação

com os novos meios de produção. O programa bauhausiano incluirá não só o projeto de

uma nova organização estética da sociedade — herança do movimento De Stijl — como

também o da sua construção política e ideológica, segundo uma visão progressista e uma

crença na positividade da tecnologia: canalizar a arte para uma finalidade utilitária, estetizar

o campo social e reformar a sociedade.

Dada a necessidade de integrar os recursos científicos e tecnológicos ao processo de

concepção das formas, o trabalho artístico adquiria também um caráter objetivo. O artista

dominaria um saber que teria uma aplicação prática. Seria agora um produtor especializado

de formas que serviríam ao campo industrial, intervindo ativamente no processo de


46 GÁVEA

produção. O percurso das tendências construtivas na arte se dá no sentido de resgatar a arte

do terreno da metafísica para o concreto. Era um projeto utópico, otimista: delegar á arte

o poder de transformar as instâncias sociais para construir uma nova realidade.

O grupo concreto

Apesar de certos indícios anteriores da penetração construtiva no Brasil, a formalização

desta linha de pensamento só ocorre na década de 1950 — período marcado pela internacionalização

das artes através de mecanismos institucionais recentemente criados —

como museus e bienais — e também pelo surto de industrialização ocorrido no pós-guerra,

que levará a uma identificação maior da arte com a tecnologia.

As correntes estéticas modernas passaram a ser veiculadas mais rapidamente no campo

cultural brasileiro após a seqüência de inaugurações dos Museus de Arte de São Paulo

(1947), do Museu de Arte Moderna de São Paulo (1948), Museu de Arte Moderna do Rio

de Janeiro (1949) e da Bienal de São Paulo (1951), instituições que praticamente estruturaram

o nosso incipiente sistema de arte. A Bienal marca o período de internacionalização

da arte no Brasil. Ela será a porta pela qual vão entrar as correntes estéticas contemporâneas.

com uma enorme repercussão no panorama das nossas artes visuais. Mário

Pedrosa deixou registrado: “ Antes de tudo, a Bienal de São Paulo veio ampliar os horizontes

da arte brasileira. Criada literalmente nos moldes da Bienal de Veneza, seu primeiro

resultado foi romper o círculo fechado em que se desenrolavam as atividades artísticas

no Brasil, tirando-as de seu isolacionismo provinciano, ao facilitar aos artistas e ao

público brasileiro o contato direto com o que se fazia de mais novo e mais audacioso no

mundo” . (1) As contribuições decisivas para a arte brasileira serão o abstracionismo lírico

e o concretismo, que colocarão novas questões para os diversos artistas que trabalhavam

uma pintura de linguagem figurativa ou permaneciam ligados a uma estética de cunho

nacionalista.

Em 1950. a mostra individual de Max Bill no Museu de Arte de São Paulo constituise

um ponto de referência básico para a emergência da arte concreta entre nós. No ano

seguinte, a representação suíça terá um lugar de destaque na I Bienal de São Paulo. Max

Bill ganha o primeiro prêmio internacional de escultura com a sua “ Unidade Tripartida” ,

obra que provocará grande impacto em alguns artistas que percorriam os caminhos construtivos.

No plano nacional, Ivan Serpa ganha o prêmio de pintura com um quadro concreto

e Abraham Palatnik recebe menção especial pelo seu trabalho, desenvolvido no campo

da luz e do movimento, chamado “ aparelhos cinecromáticos” .

Sobre este aspecto Ferreira Gullar comenta: “ Ao adotar a denominação de arte concreta,

Max Bill procurava delimitar o seu campo de experiências em contradição com as

manifestações ecléticas da arte abstrata às quais faltava, no seu entender, não apenas a

necessária objetividade crítica, reclamada por Mondrian e pela Bauhaus, como uma orientação

e um objetivo. Na Bauhaus aprendera a despojar as formas de toda e qualquer

aderência subjetiva e descobri-la diretamente nas qualidades imediatas dos materiais.

Aprendera a lidar com as cores como fatos da percepção, focos de energia que agem no

campo visual dinamizando as áreas, criando ações e reações entre si. Era este o vocabulário

puro,.recentemente descoberto, que deveria servir de base para uma nova linguagem estética”

. E mais adiante: “ Esta preocupação de criar uma nova linguagem estética como

expressão de uma nova atividade artística vai ser elaborada a partir de uma estrutura fundamental,

cujo suporte seria a matemática, que passou a desempenhar na arte concreta o

papel equivalente ao da verdadeira realidade” . (2)


A questão das idéias construtivas no Brasil: o Momento Concretista

47

Max Bill assume a direção da Escola Superior da Forma, em Ulm, dando prosseguimento

aos ensinamentos da Bauhaus e estabelecendo como projeto básico a integração

da arte na sociedade contemporânea. Suas formulações teóricas terão importância decisiva

para o desenvolvimento da arte concreta. As idéias centrais desta escola vão encontrar um

solo fértil na América Latina, onde alguns países optarão por uma tendência construtiva,

sobretudo a Argentina e o Brasil.

Podemos destacar, também, no planp interno, a presença de teorias gestaltistas a respeito

do campo ótico e da percepção visual. A tese defendida por Mário Pedrosa na Faculdade

Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, cujo texto: “ Da Natureza

Afetiva da Forma na Obra de Arte” terá grande influência sobre vários artistas brasileiros

ao colocar a questão do caráter próprio da forma; ou seja, o conteúdo de uma forma não se

encontra na associação com as formas da natureza. Waldemar Cordeiro, um dos principais

lideres do grupo concreto paulista, acrescenta a este respeito: “O interesse pela gestalt —

tantas vezes mal compreendido e mal empregado — tem por base a indagação sobre a racionalidade

da forma, tanto comum como artística, indistintamente, sem diferenciações

idealísticas. A racionalidade da obra de arte é o fundamento de sua objetividade, e é nesta

objetividade que se realiza o conteúdo histórico-cultural; segue-se que a obra de arte não

só pode e deve ser racionalmente definida, como também não pode deixar de ter uma ligação

imediata com o real” . (3)

Se no princípio alguns artistas plásticos já desenvolviam alguns trabalhos em torno de

formas geométricas abstratas, tendo porém uma atuação isolada, como Almir Mavignier,

Ivan Serpa e Abraham Palatnik, em breve eles constituirão um núcleo importante. Em

1952, temos o aparecimento do Grupo Ruptura de São Paulo, liderado por Waldemar Cordeiro

e Geraldo de Barros, que seria a base do concretismo paulista. Entre os principais artistas

que integravam o movimento destacava-se Luiz Sacilotto, Lothar Charroux, Hermelindo

Fiaminghi, Maurício Nogueira Lima, Judith Luaund, Kazimir Fejer, Anatol

Waldislaw.

Uma Estratégia de Ação Cultural

A década construtiva coincidiu com a. da promoção e aceleração do crescimento

econômico do país, especialmente através do fortalecimento do mercado interno

e o incremento da produção industrial. O término da D Guerra Mundial veio

trazer profundas modificações para a sociedade brasileira, abrindo novas perspectivas

para os diferentes setores da sociedade, com importantes repercussões no plano

cultural. O período que se segue ao conflito mundial será caracterizado pela definitiva

emergência do setor industrial que toma-se a área mais dinâmica da economia brasileira.

Haviam sido criadas condições favoráveis, facilitando o desenvolvimento da economia e da

indústria em particular, que recebe um grande impulso devido aos enormes saldos em

divisas estrangeiras acumuladas durante a guerra, em disponibilidade para financiar a industrialização.

Aliava-se a esses fatores a existência de um mercado interno suficiente para

garantir o consumo de produtos industriais.

A ideologia do projeto desenvolvimentista partia da constatação de uma desigualdade

entre as nações ricas e pobres, adiantadas e atrasadas. O esquema teórico sustentado pela

política governamental seguia certas formulações concebidas pela Cepal, órgão criado pela

ONU para analisar os problemas econômicos da América Latina, cuja idéia básica era a de

que os países periféricos ou subdesenvolvidos teriam uma formação ecoíiômico-social especifica,

determinada pela relação de dependência aos centros do sistema. Os países pe-


48 GÁVEA

riféricos apresentavam também .um dualismo quanto á economia interna, ou seja. havería

dois setores diferentes: um dinâmico, industrial e moderno, outro estagnado, rural

e atrasado. Esta contradição seria resolvida através de mudanças na estrutura econômica

pelo desenvolvimento crescente do setor industrial. O predomínio agrícola vai ser suplantado

pela participação do setor industrial na renda interna do país. Segundo dados estatísticos.

“entre 1939 e 1946. o produto real industrial, aumentou de 60%, enquanto o crescimento

do setor agrícola foi da ordem de 7% ” (4). A partir dos anos 50, o processo de industrialização

brasileira deixa de ser um projeto para transformar-se em realidade. A estrutura

econômica do pais ganha impulso e a sociedade como um todo fica dominada por

uma ânsia de extensão. O setor moderno da economia era o industrial, representado pelo

Estado e pelos novos empresários, em oposição ao setor tradicional, exportador, constituído

pelos cafeicultores. Aceleravam-se também as transformações estruturais ao nível da

sociedade global. A industrialização trará consigo o incremento do processo de urbanização.

acompanhado pelo aumento da taxa de crescimento da população urbana, destacando-se

o fortalecimento da classe média como um setor significativo na estrutura social e

política do país e como parte integrante do processo produtivo. A rede de serviços que se

desenvolveu com a indústria — comércio, bancos, transportes, serviços públicos, agências

de propaganda, empresas imobiliárias, entre outras — oferece novas oportunidades de emprego

para a classe média em expansão.

Com base nas aspirações de desenvolvimento econômico, apoiado no industrialismo,

ocorrerá uma ampla mobilização política, cuja linha de ação manifesta-se através de uma

ideologia de cunho burguês e nacionalista. Na tese central, a de que o Brasil deveria estar

em pé de igualdade com os países desenvolvidos e industrializados, existe o desejo claro de

superar o atraso econômico. Através do aceleramento do processo industrial, a nação teria

condições para tornar-se um país independente, superando a situação de país exportador de

produtos primários.

O Programa de Metas era otimista, com a promessa contida no slogan dos “ 50 anos

em 5” . e a finalidade era modernizar rapidamente o país. A ideologia desenvolvida corporificava-se

no seu objetivo principal: acelerar a acumulação, aumentar a produtividade

dos investimentos existentes e aplicá-los novamente em atividades produtoras.

A aceleração do desenvolvimento econômico terá reflexos na cultura e na arte. O

desejo de modernização da burguesia industrial e da própria classe média urbana abre perspectivas

para a sociedade brasileira, gerando, no plano cultural, uma série de instituições

— como museus e bienais — que visam reatualizar o nosso sistema de arte e modificar esteticamente

o país. A atividade artística passa a ser encarada como uma parcela do projeto

da nação, parte integrante da consciência nacional, abrindo-se espaço para o artista.

A arte construtiva internacional vinculava-se à idéia moderna, progressista, de integração

do homem no processo industrial; o concretismo brasileiro mantém este compromisso:

o trabalho artístico deverá informar qualitativamente a produção. O concretismo,

ao que parece, foi a “contrapartida artística da filosofia de aspiração nacional, de uma

ideologia de governo progressista” . (5) A formulação estética de um conceito de modernidade

atrelava-se à idéia de progresso, do desenvolvimento social, como acrescenta

Ronaldo Brito: O mesmo movimento de aproximação à modernidade via ciência e tecnologia,

estão presentes no concretismo brasileiro. O problema era adotar um ponto de

vista moderno, positivo, participante, frente ao processo da civilização contemporânea. O

artista tornava-se o inventor de protótipos, um técnico que manipulasse com competência

os dados da informação visual” . (6)

A atitude concretista traduz-se ainda numa vontade racional de conquistar novos


LUISSACILOTTO,

“Concreçâo 5629” , 1969,

esmalte s/alumínio, Col. MAC-USP.

horizontes para a arte, romper com estruturas arcaicas, patriarcais e agrárias, presas a

uma consciência oligárquica que impedia o desenvolvimento artístico de üm país moderno,

urbano e industrial. Era, portanto, necessário agir diretamente sobre a linguagem da

arte e adaptá-la ás transformações da sociedade. Dentro desta ótica se pretendia inaugurar

uma arte brasileira. Assim ela vai servir como modelo para a construção social, criadora

de novas realidades num pais onde tudo está para ser construído. A arte serviria como instrumento

eficaz de transformação e construção de um novo mundo.

O critico Frederico Morais assinala que havería nas sociedades latino-americanas,

sobretudo no Brasil, uma vocação construtiva, ou seja, uma vontade de construir (Torres

Garcia) derivada de uma aspiração típica de quem ainda não possui nada. “O fazer artístico

deve ser encarado como um esforço de ordenação do caos... O gesto construtivo é um

gesto fundador de mundos. Gesto primeiro, aberto ao futuro. Não se trata de copiar ou

imitar o já existente, o já gasto e portanto imperfeito; mas de inventar, de fazer surgir um

mundo novo, claro, limpo e transparente” . Acrescenta ainda que a arte construtiva não

seria uma manifestação cultural pertinente às sociedades industriais avançadas, mas às

sociedades em fase inicial de desenvolvimento econômico: “Terá sido justamente esta

vontade de ordem que levou à aceitação de modelos construtivos tão logo se anteviu a pos-



A questdo das idéias construtivas no Brasil: o M om ento Concretista

51

sibilidade de um desenvolvim ento acelerado do nosso continente com o final da D Grande

G uerra” . (7)

Nessa proposta pode ser localizada uma presença política que se traduz pelo desejo

utópico de renovar e transform ar a sociedade. A arte estaria, portanto, relacionada ao esforço

de integração de um projeto nacional, na ânsica de contribuir para o aperfeiçoamento

da máquina industrial capitalista, revelando, ao m esm o tempo, uma prática artística que

teria o desejo de superar o subdesenvolvim ento e o atraso tecnológico. Esta solução

progressista delegada à arte tem um componente ideológico relacionado ao período de

desenvolvimento que a sociedade brasileira atravessava: era necessário atualizar e estetizar

o ambiente, racionalizá-lo no sentido de contar e encam inhar o caos do subdesenvolvim

ento e recuperá-lo.

A maior parte dos artistas pertencentes ao m ovim ento concreto paulista passou pelo

clima de euforia desenvolvim entista do pós-guerra e orienta o seu processo de trabalho

para uma atividade ligada à indústria. Segundo A racy A m aral, grande parcela destes artistas

vai m anter, paralelam ente á produção artística, um compromisso profissional com o

meio empresarial paulista, seja com o artista gráfico, publicitário, diagramador, ilustrador,

desenhista industrial, desenhista têxtil, entre outros.

Esta aproximação com o processo industrial é registrada nas palavras de Waldemar

Cordeiro: ‘‘N o que se refere ao elem ento, a arte concreta apresenta mais um a identidade

com a indústria... O aparecim ento e o aperfeiçoamento da indústria são sem dúvida fatores

históricosque estão na base de toda a arte contem porânea. O que se revela incontestável é a

importância decisiva da indústria na compreensão do conteúdo da arte contemporânea,

cuja finalidade últim a e destino histórico acreditam os ser a arte industrial” . (8)

O que observamos é a incorporação da filosofia da Bauhaus, via Escola de Ulm, que

referenda uma postura ideológica, utópica e progressista, de integração da arte na vida

coletiva. A o colocar a atividade artística intim am ente ligada aos novos meios de produção,

desejava-se a própria diluição do objeto artístico na sociedade. Tornou-se um a espécie de

atitude moderna entregar à arte a tarefa de organizar o real. Despojada do caráter sagrado,

mítico, metafísico ou rom ântico, a arte deveria agir segundo princípios racionais, investigadores,

práticos e objetivos, de modo a ser capaz de intervir na indústria.

Os concretos paulistas, teoricam ente, adotam essas idéias. A intenção será gerar uma

arte adequada ao m undo contem porâneo, num a tentativa de sincronizá-la com a nossa

época. As idéias geom étricas, construídas objetivam ente, deveriam tornar-se concretas a

partir do trabalho do artista. A ciência, a mecânica, a semiótica de Pierce, a teoria da informação

de N orbert W iener servirão como bases teóricas para o desenvolvimento formal

dos trabalhos. A arte apresentaria certas características estruturais, sobretudo aquelas

relacionadas com a ótica, segundo um a organização geométrica, num a aproximação constante

ao pensamento racional e científico.

O Programa Estético Concretista

O movimento concretista brasileiro compõe um a posição homogênea ao se declarar

contrário a “ todas as variedades e hibridações ao naturalismo; ao não figurativismo hedonista,

produto do gesto gratuito, que busca a mera excitação do prazer e do desprazer” .

(9)

Esta postura inicial, ao que parece, tomou um a configuração de “ frente am pla” articulada

numa defesa de um a linguagem geométrica. Colocavam-se frontalmente contra o

sistema de representação vigente, cujo ponto de referência básico era a busca de certos


52 GÁVEA

conteúdos que, não só expressassem, como docum entassem o real brasileiro , calcado

ainda na aspiração a uma identidade nacional.

Não se tratava apenas de defender um programa estético, mas adotar também uma

tática capaz de intervir em nosso sistem a de arte, im pregnado ainda dos postulados m odernistas,

nos quais o universo sim bólico brasileiro era anotado a nível do código figurativo.

A estética dominante refletia um com portam ento que se m antinha tal qual as premissas

lançadas pelos modernistas de 22: era dirigida para um a arte figurativa, dando margem

a uma leitura literária metafórica. A m aior parte dos artistas encontrava-se preso ao esquema

tradicional da representação, utilizando um a linguagem m imética cuja intenção era

reproduzir o real. A iconografia da arte brasileira seguia, do ponto de vista plástico, vinculada

ao problema da representatividade devido â necessidade de uma temática voltada

para a dimensão brasileira.

O ra, tal prática artística, superada pelas linguagens estéticas internacionais, deixavase

permear por conteúdos subjetivos que roubavam à arte a sua potência verdadeira. Os

concretistas questionam este universo simbólico em que a arte estaria voltada para a sim ­

ples cópia ou recriação da natureza. Pretendem rom per com o caráter de representatividade

adotando o elemento geom étrico como um valor plástico autônom o, pela m aterialidade

que ele comporta e não com o arcabouço para reproduzir o real. O espaço da arte

não se rem ete mais ao ilusionismo; existe plenam ente na relação entre seus elementos e

suas matérias. A produção artística estaria, pois, voltada para a autonom ia da forma, livre

do aspecto narrativo ou anedótico. O objetivo era evitar a fruição lírica ou conteudística.

Os concretistas darão ênfase sobretudo à estrutura, com o um a característica fundamental

da obra, ao rigor e à autodisciplina. O seu programa estético é doutrinariam ente rigoroso,

segundo os postulados básicos da arte construtiva. O caráter austero vai se refletir na sua

posição teórica, no sentido de lim par a forma de todas as im purezas. Eles exercem uma

forte pressão sobre o am biente artístico brasileiro, a ponto de alguns críticos afirmarem

que “ O concretism o foi, para m uitos, um a espécie de serviço m ilitar obrigatório” .

N o M anifesto Ruptura, lançado em 1952, é feita um a distinção nítida entre a arte que

possibilitaria a criação de formas novas, através de princípios velhos, e as que criam formas

novas através de princípios novos. Para eles, o m étodo tradicional de representação já

tinha cum prido a sua tarefa histórica. A partir deste ponto de vista, estabelecem certos

princípios diferenciadores entre o que é velho e o que é novo, supondo não existir continuidade

entre os dois pólos. A passagem do velho para o novo se efetua mediante um salto

qualitativo, um rom pim ento definitivo — daí o nome do grupo: Ruptura.

Parece que foi esquecido, contudo, o fato de haver, na cultura brasileira, um substrato

decorrente dos problemas que vinham sendo colocados pelas produções culturais anteriores,

com o também pelos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos com outros postulados

estéticos. Estes fatores nos levam a questionar a verdade do radicalismo do grupo

concreto paulista, ignorando todas as outras configurações em vigor, alijando as outras

tendências existentes na dialética interna de nossa cultura. Considerar a arte nào-figurativa

com o a única linguagem artística possível, e o concretism o com o o início da arte

brasileira, é congelar a validade de qualquer prática artística que esteja fora deste registro.

Paulo Venâncio Filho aborda essa questão do confronto cultural e ideológico entre

uma linguagem institucionalizada e a perspectiva de um a vanguarda: “ Todo e qualquer

trabalho de arte no Brasil ainda se defronta com um a premissa: com eçar de novo. Sempre

o esforço da produção se defronta com a presença de um a H istória da A rte. De certa


MAURÍCIO NOGUEIRA U M A, “ Pintura 2” , óleo s/tela,

100 x 73 cm. Col. Conselho Estadual de Cultura, SP.

maneira, é contra este patrim ônio consolidado que o artista luta no sentido de positivar o

seu trabalho. Contra esta instituição que de algum modo parece dizer incessantemente que

tudo já foi feito e não há nada para se fazer de novo. Entretanto, é justamente através do

diálogo critico de sua produção com o processo histórico da arte, que o sujeito tem a possibilidade

de detectar a pertinência de sua prática” . (10)

Essa postura ortodoxa, vinculada aos moldes europeus, a incompreensão da com ­

plexidade cultural brasileira tende a tomá-los alheios à nossa realidade. Há um afastamento

do social na medida em que o campo estético é tratado como um objeto em si mesmo,

independente das relações com as outras instâncias. Ma tentativa teórica de superar a contradição

arte e sociedade, e diluir a arte no processo social, erigem um mundo de valores

que está acima, e portanto afastado, da realidade. Esqueceram-se de um dos pólos desta

contradição: a especificidade da sociedade em que este modelo teórico está inserido. Suas

formulações não contêm uma interpretação da realidade sobre a qual operam apenas a justaposição

de um modelo teórico produzido por sociedades altamente desenvolvidas. Estas

limitações fazem com que, ao adotar o modelo, permaneçam com as suas características

formais, sem transformá-las. A este respeito, Ronaldo Brito acrescenta: “ Repetindo até

certo ponto os outros movimentos culturais e artísticos nacionais, cuidou apenas de importar

o modelo e adaptá-los ás circunstâncias locais, sem um questionamento propriam

ente crítico” . (11)

A importação de idéias desenvolvidas nos centros internacionais, sobretudo a

Alem anha, Suíça e Holanda, vai colocar-se de forma complexa, dados a nossa diversidade


54 GÁVEA

e atraso em relação às sociedades européias. Referindo-se à questão, Ferreira G ullar afirma:

“ A diferença entre a realidade européia em pleno desenvolvim ento e a realidade

brasileira em formação é um dado im portante para que se entendam as mudanças que vão

se verificando entre estas duas realidades, na medida em que ambas se transform am ao

mesmo tem po em estágios diferentes. Deve-se levar em conta tam bém o fato de que a

própria transformação do m undo, operada pela civilização européia em seu desenvolvimento,

cria para a sociedade brasileira condições diversas das que, neste estágio, encontram

os países europeus, determ inando assim que o processo de desenvolvim ento brasileiro

tenha características próprias, mesmo cum prindo estágios equivalentes do processo

econômico. A história não se repete e os países subdesenvolvidos não repetirão, nem no

plano econômico, nem político, nem cultural, a história dos países hoje desenvolvidos .

(12) • • . . _

O im portante para a nossa análise não é questionar se a arte construtiva é, ou nao, um

produto histórico de certos fenômenos ocorridos nos países capitalistas desenvolvidos; se o

processo de formação e desenvolvim ento dessas idéias são pertinentes apenas á sua própria

problemática cultural. O que querem os colocar como m atéria de reflexão é o problema de

encontrar um a equivalência teórica deste procedim ento no nosso am biente cultural; se

houve ou não um equívoco na apropriação deste corpo teórico por parte do grupo concreto

paulista, é essa pergunta o centro de nossa análise. O tem a é a viabilidade do seu programa

estético enquanto projeto de inserção da arte na vida social, a verificação de sua proposta

de criar um modelo alternativo para a arte através de aplicações do trabalho artístico na

vida prática, com oodesign, as artes gráficas, a publicidade, o jornalism o, a arquitetura e o

urbanismo.

N O T A S BIBLIOGRÁFICAS

01. PEDROSA. Mário. Mundo, homem, arte em crise. São Paulo, Perspectiva, 1975 p. 254.

02. GULLAR. Ferreira. Arte neo-concreta: uma contribuição brasileira, in Projeto Construtivo Brasileiro

na Arte (1950-1962) sup. coord. Aracy Amaral. MEC/Funarte/M AM /R J; Secretaria de Cultura, Ciência

e Tecnologia do Estado de São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1973, p. 106.

03. CORDEIRO. Waldemar. Teoria e prática do concretismo carioca, in op. cit., p. 134.

04. COHN, Gabriel. Problemas da industrialização no século XX, in Brasil em perspectiva. São Paulo,

Difusão Européia do Livro, 1969. p. 306.

05. BITTENCOURT. Francisco. A década da experimentação, in Revista Critica de Arte, Rio de Janeiro,

Associação Brasileira de Críticos de Arte, ano II, n? 4, 1981, p. 139.

06. BRITO. Ronaldo. Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro Ensaio sobre

a produção visual neoconcreta. Rio de Janeiro, 1975, p. 28 (texto inédito).

07. MORAIS, Frederico. Artes Plásticas na América Latina: do Transe ao Transitório, Rio de Janeiro,

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08. CORDEIRO, Waldemar. Arte Industrial, in Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, op. cit., p. 193.

0 9 . ------Manifesto Ruptura, op. cit., p. 69.

10. VENÂNCIO FILHO, Paulo. Lugar Nenhum: o meio de arte no Brasil, in Arte Brasileira Contem

porânea. Cadernos de Textos, Rio de Janeiro. Funarte, n? 1. 1980, p. 24.

11. BRITO. Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. op. cit., p.

12. GULLAR, lerreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Ensaios sobre arte Rio de Janeiro Civilização

Brasileira, 1969, p. 33.

'


Arquitetura rural do Vale do Paraíba

Fluminense no Século XIX

ISA B EL R O C H A

N o Século XVIII. quando Garcia Rodrigues Paes pediu licença ao Governador do Rio

de Janeiro. A rtur de Sá M enezes, para abrir uma estrada entre a Baia da Guanabara e a

Borda do Campo (atual Barbacena), e que começava o desbravamento da região sul flu

minense. O objetivo desta estrada era minimizar o percurso do ouro entre as minas e o

porto do Rio de Janeiro. A Coroa portuguesa receosa de que houvesse contrabando proibiu

a navegação no Rio Paraiba do Sul. A produção aurifera até então era escoada pelo Cam

inho dos Guainás ou Cam inho Velho, que ligava M inas Gerais ao Rio de Janeiro via

Taubaté e G uaratinguetá, no Estado de São Paulo, chegando a Parati e daí ao porto carioca.

Um longo e dispendioso caminho que facilitava o desvio e o contrabando de ouro. A

Estrada Real para Vila Rica nomenclatura oficial do Caminho Novo aberto por Garcia

Rodrigues Paes — atravessava quase que perpendicularmente o Estado do Rio de Janeiro.

Partia do porto da Estrela, no fundo da Baia da Guanabara, subia a Serra do M ar até atingir

a Roça do Alferes (origem de Pati do Alferes); dai seguia até a Roça de Pau Grande,

passava por Ubá e partia em direção a Roça de Garcia Rodrigues (atual Paraiba do Sul), indo.

então, rum o à Borda do Campo, passando antes por Paraibuna. Convém observar que

entre os diversos autores há divergência quanto ao traçado do Caminho Novo para as Minas

Gerais.

A partir da Estrada Real, inúmeras foram as abertas ao longo dos séculos XVIII e

X IX . no que pesem as tentativas da Coroa de impedir que outros fossem abertos, ainda

com o intuito de coibir o desvio do ouro.

N o século XVIII os principais caminhos abertos foram: Caminho de Proença (1725),

passava por Petròpolis rum o á Paraiba do Sul onde encontrava o Caminho Novo; Caminho

do Tinguá. do Rio de Janeiro a Pati do Alferes via Nova Iguaçu e Sacra Familia do Tinguá;

Cam inho de São Paulo (1733), passava por Itaguai, São João Marcos, Rio Claro, Bananal

rum o a São Paulo, cam inho da Paraíba Nova de Simào da Cunha Gago (1744), vindo de

M inas chegava a Resende.

N o século XIX vamos ter: Caminho de Valença de João Rodrigues da Cruz (1800),

partia de Pau Grande e se dirigia a Valença; Caminho do Rio Preto (inicio do século), saia

de Ubá. atravessava o rio Paraiba e rumava a Valença indo até Minas Gerais pelo rio

Preto; Estrada do Comércio e Estrada da Policia (1817-1820), saiam do Caminho Novo e

iam em direção, uma de Vassouras e a outra de Valença; Estrada “ União e Indústria”

(1856), saia de Petròpolis passando por Três Rios, encontrava-se com o Caminho Novo na

divisa com M inas Gerais.


56 GÁVEA

Ao longo dos primeiros caminhos vão surgindo as roças de mantimentos e os pioneiros

engenhos de cana-de-açúcar, além dos registros que controlavam o tráfego. As

roças produziam basicamente o milho com o que abasteciam as tropas de mulas dos carregadores

de ouro. Plantavam, ainda, a mandioca, o arroz, o feijão e o café (ainda sem expressão).

Os engenhos de açúcar, com suas destilarias e moendas chegaram a ter importância

econômica na região, conferindo a seu proprietário um “ status mais elevado na

hierarquia da sociedade local. Pau Grande e Ubá são exemplos de engenhos de açúcar com

suas residências e instalações inúmeras para atender a produção. Os viajantes do inicio do

século XIX, como Saint-Hilaire, testemunharam o conforto que havia nessas fazendas.

O café começou a ser plantado em larga escala no vale do Paraíba a partir da segunda

década do século XIX. “ Pequenas vilas sem expressão, até esse período, tomaram-se

grandes centros cafeeiros, como Vassouras, Pirai, São João Marcos (hoje submerso),

Resende. Barra Mansa, Valença e Paraíba do Sul. Devido ao bom preço que alcançava o

café no mercado externo, sua produção tornou-se uma grande atração para fazendeiros. O

valor da exportação do café que havia começado a sobrepujar o do açúcar, passou a representar

no exercício de 1837/38, mais da metade do valor total do nosso comércio exterior.

posição de que não se afastaria nos anos seguintes e que se firmaria, quase ininterruptamente

tempos depois” (1). As condições naturais para o plantio do café aí eram esplêndidas.

O terreno é formado por ondulações suaves, as “ meias laranjas” , numa alti

tude que oscila entre 300 e 900 metros, mantendo a temperatura dentro dos limites ideais

para o café e regularizando a precipitação. “ Região muito acidentada não lhe faltavam encontras

bem protegidas contra o vento (fator importante numa plantação arbustiva de

grande porte como o cafeeiro) e convenientemente coberta por densíssima selva, a floresta

tropical, que desmatada liberou solo magnífico” (2).

O café chegou ao Vale do Paraíba no momento em que se deu a grande queda na extração

do ouro em Minas Gerais. As riquezas forjadas nas minas de ouro estavam à

procura de uma nova forma de investimentos. Através da doação de sesmarias, os m i­

neiros investiram na plantação do café, expulsando o posseiro, o rancheiro, o engenho de

açúcar e o índio, além de desmatar uma densa floresta tropical.

“ Como característica essencial do modo de produção escravista colonial, a propriedade

cafeeira se constituira, principalmente, de uma grande extensão de terra trabalhada

por um grande número de escravos. Os senhores que se estabeleceram nesta

região, recebendo grandes doações de terra da Coroa, em forma de sesmaria, em cada uma

delas constituíram uma ou mais fazendas e através de incorporação de terras vizinhas tornaram-se

donos de um grande número de fazendas e sítios de café” (3). Diversos destes

fazendeiros foram expoentes na aristocracia rural fluminense. A lista de barões do café ultrapassou

a casa da dezena. O modo de produção limitou a extensão da fazenda, mas não o

número delas em relação ao proprietário, chegando alguns a possuir 20 fazendas aproximadamente,

com cerca de 6.000 escravos. A plantação exigia cuidados permanentes. A

mão-de-obra deslocava-se diariamente á ela, o que de certa forma definia os limites da

fazenda. Além da terra cultivada, a unidade agro-industrial cafeeira compunha-se de:

1 —Casa grande — habitação do senhor e de sua família, normalmente composta de com ­

partimentos próprios a uma residência, incluída a capela ou oratóno.

(1) Muniz, Celia Maria Loureiro, Os Donos da terra, Um estudo sobre a estrutura

(2)

(3) Muniz, Celia Maria Loureiro.


Arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense no século X I X

57

2 — Casa do adm inistrador — nas unidades de m aior porte ou nas fazendas “ filiais” havia

ainda a residência do administrador.

3 — Senzala — habitação dos escravos, composta apenas de quartos de dormir,.

4 — Engenho — para beneficiamento do café, com o maquinário movido por sistema

hidráulico. Além disso beneficiava a cana-de-açúcar, mandioca e o milho.

5 — Tulha — parte do complexo do engenho era o local para armazenagem dos produtos

agrícolas.

6 — Terreiro de café — onde se lavava e secava o café.

7 — Enfermaria — num a região sujeita a constantes epidemias provocadas, entre outras

cousas, pelas péssimas condições de vida dos escravos, é comum se ter notícias de enfermarias.

Nem todas essa construções que formavam o complexo agro-industrial cafeeiro

sobreviveram até os nossos dias. O conservadorismo do senhor do café, a monocultura que

consumia recursos naturais da terra, o envelhecim ento do cafeeiro, a insolvência econômica

dos fazendeiros, a abolição da escravatura, a escassez de mão-de-obra são algumas

das causas da decadência do café ainda no século passado. Os testamentos dos senhores e

de suas viúvas comprovam essa decadência, citando hipotecas, cafeeiros improdutivos,

despreparo sócio-econômico para enfrentar a abolição da escravatura, construções e

edifícios que necessitavam reparos. As hipotecas foram na sua maioria executadas; as terras

abandonadas depois de consecutivas queimadas que não mais surtiam os efeitos desejados.

O café se dirigia para São Paulo que estava mais bem preparado e estruturado para

o trabalho de homens livres. As casas nem sempre foram recuperadas com o mesmo fausto

de décadas anteriores. A monocultura cafeeira foi substituída pela estagnação econômica

e, posteriormente, pela agro pecuária, principalmente a do gado leiteiro e de corte. A

agricultura passa a ser de subsistência e para o comércio local. É o fim do barão do café

porém não de seu carisma. Este é transferido para o coronel, dono da terra.

Localização e Implantação

O café leva de 4 a 5 anos para começar a produzir, o que exige, sempre, novas terras

para a sua expansão. Por outro lado ele tem m aior duração se plantado nas encostas dos

pequenos morros. Tem de ser mantido limpo para que se impeça o desenvolvimento de

pragas, permitindo que se plante ao longo do cafezal, durante certas épocas do ano, outras

culturas. N o dizer de Lacerda Wemeck a seu filho em 1847 “ um fazendeiro cuidadoso tem

todos os dias um jantar esplêndido, e só lhe custam dinheiro o vinho e o sal, ou alguma

iguaria para acepipe, o mais ele tem de casa e com muita profusão” . Como executor de

todos os serviços realizados dentro da fazenda o escravo impôs, de certa forma, a sua

ocupação espacial. É fundamental para o senhor do café o controle do escravo e a este é

fundamental a distância que percorre para execução dos serviços, sem que para isso tenha

consumido todas as suas energias.

Para que uma fazenda seja produtora de suas necessidades de consumo tem que ter,

ainda, o mais próximo possível correntes de água. Esta deve ser abundante e límpida pois

será consumida nas mais diversas atividades; no engenho para mover o maquinário; pelo

gado; para lavar o café e pela casa grande, diariamente. Para o assentamento das construções

a presença d ’água é tão vital que Lacerda W emeck dirá a seu filho que ela

“ obriga” às vezes a buscar um sítio menos agradável, mais trabalhoso e até dispendioso

para levantar os edifícios” e “ eis o motivo por que m uitos e grandes estabelecimentos estão


58

GÁVEA

feitos sem aform oseam ento".

Levando em consideraçãò estes dois fatores poder-se-á dem arcar o sitio mais con

veniente à implantação das construções. Na observação de Lacerda W erneck tirará ou

mandará tirar a planta, com designação da casa de m oradia, de todas as m áquinas que

forem necessárias, de paióis e arm azéns, de cavalariça e senzala para moradia dos pretos .

Porém, antes, serão feitas instalações provisórias; tanto para o senhor com o para os es

cravos cuidando que estas construções não atrapalhassem o risco definitivo da fazenda. O

engenho de Serrar é o prim eiro a ser instalado um a vez que paralelo a tudo isso se estará

desmatando. A madeira retirada da floresta será toda utilizada nas edificações. Este desm

atam ento, ainda, prepara a terra para o plantio e para as criações de gado e aves.

A pesar de não se ter notícias de arquiteto, ou m elhor, de m estre de risco, há sempre

uma constante na implantação da casa grande em relação às dem ais construções. Con

dicionantes há para que tal aconteça. A primeira delas, m ais um a vez, é a presença do es

cravo. Da casa grande o senhor deverá ter uma visão m ais am pla possível do movimento

diário da fazenda.

As construções foram um “ quadrilátero funcional (O bs. S te in , pág. 26), onde estão

a casa grande, a senzala, os engenhos, as tulhas, o paiol, os arm azéns, as estrebarias e os

chiqueiros. Este quadrilátero poderá em alguns casos definir o terreiro de café (Fazenda

do Pocinho, Vassouras; Fazenda de S an fA n a , Barra do Piraí, no que pese elas não terem

sido concluídas; e Fazenda da Prosperidade, Barra do Piraí). N a maioria dos casos ele não

será perceptível de imediato, pois as construções se encontram m ais dispersas (Fazenda da

Taquara, Barra do Piraí; Fazenda do A terrado, Barra do Piraí; Fazenda Feliz Remanso,

Barra do Piraí; Fazenda do Secretário, V assouras, e tc...). N os casos de fazendas de menor

porte todas essas construções poderão estar anexadas â casa grande formando um só

edifício, caso da Fazenda o Recreio-Piraí.

A denominação da fazenda era dada, um as, pelos acidentes geográficos: a do Ri

beirão, da Cachoeira, do M onte A lto; do A terrado, a de D uas Barras; a de Ipiabas, nome

do Ribeirão. E outras pelos padroeiros: SanCAna, São Luiz da Boa Sorte, Santana dos

M eirelles. Santa Luzia, São Fidelis... A do Secretário não se sabe corretam ente a origem do

nome. A tradição popular explica que houve ai um Secretário de Estado que deu o nom e ao

Ribeirão que por lá corre e este deu nom e à Fazenda.

Casa Grande

Ponto irradiador de toda a vida na fazenda essa casa encontra se sempre mais elevada

em relação às demais construções. Se por um lado é prim ordial para o senhor que sua casa

seja elevada, do ponto de vista do controle, por outro as técnicas construtivas exigiam que

não se im plante ao nível da sala por causa da um idade. A de G uaribu (Vassouras) que

reina soberana do alto de um a colina tem também um a plataform a que a isola do contato

direto com a terra.

Como que assentadas naturalm ente no declive dos m orros algum as casas terão um

sem i-prim eiro piso. Nelas a habitação propriam ente dita se encontra no segundo pavim ento,

onde se desenvolve de m aneira com pleta. Estas construções colocadas a cavaleiro dos

morros perm itiam uma maior visibilidade, retirada da topografia natural. Com o nos casos,

diversos de sobrado.

Estas formas de im plantação davam ao senhor do café, tal e qual ao proprietário u r­

bano, m aior “ status’’, denúncia de um a situação econôm ica m ais privilegiada, onde o

primeiro piso era dedicado às atividades de serviço (com ércio, para a cidade) e no segundo


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60 GÁVEA

encontrava-se a residência. N o caso de im plantação em encosta, isto tom a-se mais claro.

N o prim eiro piso só havia o vestíbulo, denunciador das funções ai desenvolvidas. N o mais

a presença de cachoeiras e depósitos impedia qualquer relação en tre um e outro piso. Já no

caso de alguns sobrados, revelando o alto poder econôm ico do proprietário, a ligação

podería ser feita. O m elhor exem plo é a fazenda do Secretário que no prim eiro piso tem o

vestíbulo, os quartos de hóspedes, o escritório, o salão de recepção, a sala de jantar e os

serviços. N o segundo está o que se denom inava de área nobre, onde só os moradores,

parentes e amigos m uito íntim os tinham acesso, afora o salão de música que aí se localiza.

Sobrados menos faustosos, porém mais com uns, são os que m antêm isolados os serviços

do prim eiro piso das atividades residenciais do segundo. N o caso de ocupação em encosta o

acesso à moradia poderá ser externo (Fazenda Prosperidade, Barra do Piraí), como na

maioria dos sobrados (o de São Luiz, Barra do Piraí), ou por um vestíbulo no prim eiro piso

(Fazenda Esteves, Valença e Bela A liança, Barra do Piraí).

H á os casos em que o segundo piso é reduzido. Essas construções sugerem um gosto

mais recente e têm o apuro de isolar deste corpo central, os quartos de dorm ir no sobrado.

N o prim eiro piso estavam a sala de recepção, os quartos de hóspede e os serviços (Fazenda

Santa Justa e a da Forquilha, Rio das Flores).

O riundos das M inas G erais os colonizadores desta região trouxeram a experiência ur

bana de habitar. Em diferentes situações topográficas, clim áticas e programáticas esses


Arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense no século X I X

61

homens deram uma nova interpretaçãç espacial às soluções arquitetônicas mineiras até

então praticadas e absorvidas. Este com portam ento trouxe, no seu bojo, m uito da experiência

da morada paulista. A varanda fronteiriça ladeada por dois cômodos é uma constante

em nossas fazendas. A planta baixa do prim eiro piso da Fazenda da Forquilha acusa

esta persistência de forma que, apesar das reformas posteriores, não conseguiu desaparecer.

O esquema de uma varanda ladeada por Capela e quarto de hóspede se repete neste caso em

duas fachadas. N o que pese não haver de fato um a varanda na fachada principal a planta

revela este gosto. A sala centrada da morada paulista foi aí dividida em três cômodos que

se interpenetram e para onde abram-se todos os dem ais compartimentos da casa. Semelhanças

não tão óbvias, porém com a mesma origem , encontrarem os nas fazendas Aliança

e M onte Alto, Barra do Piraí. Ambas tinham com o acesso principal uma varanda ladeada

por dois cômodos, sendo um a Capela.

A varanda, tão freqüente na A rquitetura brasileira, tem diversas funções nas. casas

grandes de fazendas. É o elem ento mediador entre o espaço externo e interno, ou entre a

área social e intim a (Fazenda M onte Alto, Barra do Piraí, a de Ubá, Vassouras), ou uma

circulação alternativa (a do Pocinhò, Vassouras; S ant’A na, Barra do Piraí; Feliz Remanso.

Barra do Piraí). Em qualquer caso ela é um espaço adequado ao clima da região.

A mentalidade conservadora da época traçou para a casa rural os mesmos elementos

privatizadores que se utilizavam nas casas urbanas. As áreas sociais estão sem pre voltadas

para o acesso principal. O fato de aparecerem quartos nesta área denota a preocupação

constante de se m anter o hóspede fora da área intim a da casa. A sala de jantar é o cômodo

de ligação e separação en tre as duas alas. Ela se situa, na maioria dos casos, no que poderiamos

denom inar de ponto de barreira social (um papel semelhante ao cancelão nas

residências urbanas).

A área social era a mais im ponente da residência. N orm alm ente tinha o piso e o forro

em taboado corrido, às vezes o forro era em estuque. As paredes, algumas vezes, eram

adornadas com bandas pintadas no alto e batente para o espaldar das cadeiras a meia altura.

Os melhores trabalhos de esquadria eram reservados a esta área, assim com o o melhor

mobiliário.

Os quartos, na m aioria em fila, criando longos corredores, eram locais despojados e

simples. Seu mobiliário se restringia ao essencial. Suas dimensões eram em m uito inferiores

ás dos salões de recepção. Atendiam apenas a sua função precipua.

A área de serviço com cozinha, copa, despensa e depósito completava a construção.

Esta área era de dom ínio exclusivo das m ulheres, m isturando as escravas com as sinhás. É

ai que preparavam os alim entos, costuravam e lavavam protegidas pelo pátio que se formava

nos fundos da casa pela horta e pelo pomar. Raram ente o chão desta área era coberto,

o telhado ficava aparente, sem forro. As esquadrias eram muito simples não havendo,

originariamente, a presença do vidro.

Para os escravos que labutavam nas roças havia, nas encruzilhadas dos caminhos da

plantação de café, fogões que os atendiam. Era nessas encruzilhadas que , também, se

criavam as aves para alim entação. As senzalas tam bém eram isoladas da casa grande, formando

uma coastrução própria. Segundo W emeck elas “ devem ser voltadas para o nascente

ou poente e em um a só linha, se for possível, com quartos de 24 palmos em quadro e

uma varanda de oito de longo em todo o com prim ento. Cada quarto destes deve acomodar

quatro pretos solteiros e, se forem casados, m arido e m ulher com filhos unicamente. As

varandas... são de m uita utilidade porque o preto, na visita que faz ao seu parceiro, não

molha os pés se está a c h o v e r...” Estas observações parecem ter sido féitas por todos os

fazendeiros pois as senzalas com o que seguem a um só risco e medida.


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Arquitetura rural do Vale do Paraíba Flum inense no século X I X

63

Dos tipos de plantas utilizadas nas casas grandes a mais comum é de desenho em

L , de influência urbana com o ressalta a Prof? Dora Alçantara. Neste caso a fachada

principal poderá ou não se localizar na m enor dim ensão tal as moradias urbanas. As fazendas

São Luiz (Barra do Pirai) e a Fidelis (R.F.) são exemplos de planta em “ L” para sobrados

e as fazendas do A terrado (Barra do Piraí) e Ribeirão (R.F.) entre outras, térreas,

As fazendas M onte A lto e Feliz Remanso (Barra do Piraí) se desenvolveram formando um

duplo “ L .O caso da Feliz Rem anso tem disposição curiosa uma vez que tendo se desenvolvido

a partir de um a prim eira construção vai se repetir até formar um longo corpo com

fachada exígua e com acesso lateral em varanda. Tal as casas urbanas do fim do século

X IX , onde o afastam ento da divisa lateral do lote perm itiu acrescentar-se um a varanda.

O utro tipo, m uito com um , é a casa que se desenvolve em torno do pátio central. Este

tem inúmeras utilidades, sendo a da aeração e ilum inação a mais im portante delas. Este

tipo de planta, tam bém de imposição urbana do fim do século XVIII, já se enquadra dentro

do espirito neo-clássico que começava a se expandir no Brasil do inicio do Séc. XIX.

Fazendas Bela Aliança (P i.) e São Luiz da Boa Sorte (Vassouras) são os melhores exemplos.

N o que pese ter pátio interno, a da Aliança (Barra do Piraí) não pode ser classificada

como tal, uma vez que inúm eras reformas desfiguraram o seu desenho original.

A planta em “ U ” é encontrada nos casos em que a construção revela um gosto mais

erudito e elaborado. A s fazendas do Esteves (Vai) e a do Secretário (Vassouras) são testemunhos

m arcantes de um a arquitetura que tem na Corte do Séc. X IX sua origem

imediata. Ambas são m onum entais e im ponentes, com acabamentos sofisticados. A do

Secretário tem características de construções que só a Missão Francesa forneceu. A do

Horizonte que se utiliza do mesm o esquema de planta revela um gosto mais do fim do

século. A escada lateral do acesso principal com seu desenho sinuoso, trabalhado em ferro,

além do porão alto, denotam um a influência mais tardia e nitidamente urbana.

As fazendas do Pocinho (Vassouras) e S ant’A na (Barra do Pirai) são casos isolados.

Elas definem, com suas construções, perfeitam ente o “ quadrilátero funcional” , no que

pese a do Pocinho não ter sido concluída.

O Séc. X IX , desde o seu inicio, é marcado por acontecimentos históricos importantes.

Para o nosso estudo são a vinda da M issão A rtística Francesa e a inauguração da

Academia Imperial de Belas A rtes os mais relevantes. A escola traçou os parâmetros para

o novo gosto estilístico da arquitetura francesa da época: o neo-clássico. A Corte Imperial

assumiu o estilo, de construção mais refinada, com o arquitetura oficial.

Centro econôm ico da época, o Vale do Paraíba não ficou alheio às mudanças ocorridas

na Corte. Na medida em que os senhores do café entravam em contato com o poder

central e, principalm ente, na medida que o “ barão representava este mesmo poder, a

tendência foi de absorção e transposição dos com portam entos adotados no Rio de Janeiro.

Esta transposição, feita na maioria das vezes simplificadamente, vai se deparar com com

portamentos arquitetônicos anteriores, já enraizados de origem mineira de característica

urbana. Se por um lado o corredor “ adotado nas plantas das habitações rurais é dispositivo

tipicamente urbano e de sentido claram ente discriminatório e a sua introdução

“ evidencia um ‘aburgeusam enteo’ (N .O . Reis Filho), por outro lado é significativa a

presença da planta urbana oitocentista nas casas de fazendas. A sala fronteiriça que se liga

a uma outra posterior por meio de um corredor ladeado de quartos é encontrada nas fazendas

de Ubá (Vassouras), Prosperidade (Barra do Pirai) e Feliz Remanso (Barra do Pirai).

É neste sentido que supomos a presença de, pelo menos, um discípulo da Missão

Francesa na construção da Fazenda do Secretário. A erudição do vocabulário desse edifício

é em muito superior a de seus vizinhos. Os princípios de simetria do neo-clássico são ai tão


64

GÁVEA

rígidos que para não com prom eter a m odinatura existente na fachada posterior, a escada

principal tem seu guarda-corpo tão deslocado que quase atinge a om breira da janela.

O utras fazendas apresentam aspectos formais classizantes, porém só se tem notícias

de um caso com o uso do arco pleno, tão em voga no Rio de Janeiro, e a verga reta predomina

na maioria absoluta. A s fazendas de Ipiabas (B arra do Firai), Santa Justa (R .F.) e

Ribeirão Frio (Barra do Piraí) usam arco abatido, herança e persistência formal de um

m om ento arquitetônico anterior. A da Bela A liança (B arra do Piraí) já introduz um gosto

neogótico em suas esquadrias, encontradas também em V assouras e Conservatória.

A s fazendas M onte Alegre (V assouras) e Esteves (V alença) se aproximam do partido

arquitetônico da do Secretário, porém são mais simples no vocabulário. Já as Fazendas São

Fidelis (R .F.), São Sebastião (Barra do Piraí) e Ribeirão (R .F .) são assobradadas, extre

m am ente simples, sem nenhum rebuscam ento, a não ser a presença eventual de vidro e de

um destaque à porta principal.

A São Luiz da Boa Sorte (V assouras) destaca-se de suas congêneres pela utilização de

janelas geminadas que no tram o central vedam e disfarçam um a varanda em butida no cor

po da casa. além de um avarandado que protege a escada principal da fazenda. Seu vocabulário

é classicizante e revelador de um neoclássico provinciano.

A da Forquilha (R.F.) já denuncia um rom antism o de fim de século que se apresenta

em forma de “ chalet” como variante da proposta clássica. T em com posição sim étrica, as

sobradada no tram o central e um prim oroso acabam ento na fachada em estuque branco

sobre a parede azul. Os beirais que arrem atam os pequenos e graciosos frontões são con

cluídos com delicado lam brequim .

A influência mineira nas casas de fazendas são nítidas e a mais relevante é a técnica

construtiva. N a maioria absoluta das vezes são de pau-a-pique, sobre baldram e de madeira

ou pedra, dando à construção um ritm o bem m arcado pelos pilares que fazem as vezes de

cunhais nas construções mais elaboradas. A madeira, quando aparente, seja nos pilares

seja no enquadram ento das esquadrias, ou nelas próprias, é pintada de cores fortes contrapostas

às paredes, salvo raras exceções brancas. Os telhados com suas grandes tesouras,

assentam-se majestosamente sobre as paredes form ando acentuados beirais. As platibandas

são raríssim as. Os tetos, norm alm ente planos, com encaixe de saia e camisa, são pintados

de branco, alguns casos de m arrom . A Fazenda Ipiabas (B arra do Pirai) tem , na sala

principal, um teto de gamela pintado, com o as esquadrias internas, nesta cor. As cozinhas

invariavelm ente não tinham forro, ficando o m adeiram ento do telhado aparente. Este

revestim ento de qualquer forma não fazia m uito sentido devido á fuligem que saia dos

fogões à lenha.

Foi utilizado para a elaboração deste trabalho o acervo do A rquivo do Departam ento

de H istória e Teoria da Faculdade de A rquitetura de Barra do Pirai — FERP — que desen

volve pesquisa, junto com os alunos, sobre a arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense

nos M unicípios de Barra do Piraí, Barra M aasa, Piraí, Volta Redonda, Resende,

Vassouras, Valença e Rio das Flores. Os desenhos aqui apresentados são do aluno Luiz

Cláudio Ribeiro.

BIBLIOGRAFIA

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A espacialidade do Passeio

Público de Mestre Valentim

A N N A M A R IA M O N T E IR O DE C A R V A L H O

Na segunda metade do século XVIII, uma notável obra urbana destaca-se como um

documento visual dos mais representativos da história e da arte do Rio de Janeiro.

Trata-se do Passeio Público de Valentim da Fonseca e Silva, Mestre Valentim, expressão

plástica da realidade cultural do Brasil-Colônia que se afirma como Capital do

Vice-Reino. E, no amálgama dos modelos europeus importados, a obra mostra os indícios

de uma singularidade artística e de uma consciência nacional.

De sua fundação em 1565 a meados do setecentos, a cidade do Rio de Janeiro se

desenvolve em torno do binômio Igreja/Estado, manifestando uma ideologia políticoreligiosa

marcada pela Contra-Reforma que, em Portugal, funda-se na divulgação da cultura

luso-católica e na defesa territorial, garantindo-lhe a manutenção da Colônia. Do

ponto de vista de uma expressividade plástica e urbana, manifesta-se essa ideologia na arte

monumental das Igrejas e Conventos das Ordens Primeiras e nas construções fortificadas,

contrastando com a modéstia das casas urbanas, as ruas estreitas e tortuosas e a insalubridade

da cidade.

Já no início do século XVIII, o Rio se afirma como principal porto da Colônia, por ser

o escoadouro natural dos minérios da Gerais (descobertos no século anterior). Seus gover

nantes, embora ainda privilegiem os interesses defensivos, começam a voltar-se para os

urbanos, diante da expressão que a cidade vai adquirindo aos olhos da Coroa. Um exemplo

é a construção do seu primeiro chafariz — o da Carioca em 1723.

Em 1763, o Rio de Janeiro é elevado a sede de Governo e a Capital do Vice-Reino,

obedecendo às mudanças político-administrativas introduzidas, no Brasil, por Marquês de

Pombal, o Ministro todo-poderoso do Rei D. José. Razões de ordem estratégica determinam

a escolha: seu porto oferece maior segurança e fiscalização do que o de Salvador e

está mais perto da região sul do país.

Torna-se também cada vez mais evidente a aproximação do modelo lisboeta de capital

como imagem de um poder absoluto, esclarecido e iluminado, iniciado com D. João V e

que a política centralizadora pombalina enfatiza na reconstrução da cidade arrasada pelo

terremoto de 1755.

Assim, Lisboa e Rio de Janeiro apresentam a incorporação do estilo barroco monumental,

expressão do poder do Estado — das principais capitais européias do momento:

Roma e Paris; e, também, do rococó, arte refinada e galante, desenvolvida sobretudo na

Corte de Versailles. Essas duas formas chegam, a essas cidades, conciliadas, sem a oposição

do pensamento que as geraram inicialmente.


68 GÁVEA

N o Rio de Janeiro, o m onum ental e o requintado passam a ser as obras dos poderes

civil e m ilitar como, por exem plo, o Palácio do G overnador (1743), Arco do Teles (1750),

os A rcos da Lapa (1750), a Casa do T rem (1762). As manifestações artísticas religiosas das

Igrejas das Ordens Terceiras e Irmandades. expressão são tam bém do poder dos leigos,

com o declínio das O rdens Prim eiras, quando da expulsão dos jesuítas do Brasil em 1755,

durante a reforma pombalina. Com o exemplo, as Igrejas das poderosas Ordens Terceiras

do Carm o e de São Francisco, pertencentes aos brancos e notáveis. A parte urbana da

cidade já apresentava ruas retilineas. com traçado em xadrez e abertura de largos, o que

propiciava maior aeração e luz à cidade. Isso evidencia um a estrutura plástica e urbana

racionalizante, em que está presente a proposta ilum inista com os conceitos de civilidade,

higienização. bem-estar social, progresso cientifico e crença nas realizações hum anas, incorporada

à solenidade da proposta barroca.

Cabe ao quarto Vice-Rei, D. Luís de Vasconcelos, tornar mais evidente esse processo.

quando opta em sua gestão (1779-1790) por atacar os ainda graves problemas de in

salubridade e abastecimento d'água da cidade. Decide-o por esse trabalho m onum ental,

que é o Passeio Público — o prim eiro local de lazer do carioca — num desejo de integração

do espaço da natureza ao da urbe. com expressão artística. O m onum ental desce do altar á

rua. consagrando o “ povo" na figura do seu benfeitor. O artista fica. assim, anônim o e es

quecido. reconhecido, apenas, pela tradição popular. N as cartas de D. Luís de Vasconcelos

dirigidas ao Sr. M artinho de M elo e Castro esse refere-se á obra do Passeio Público (e

outras), mas não ao M estre (R evista do IH G B .T o m o 4. pp. 34, 35). Sua primeira biografia

data de meados do século X IX , feita por Manuel de A raújo Porto Alegre (publicada em

artigo “ V alentim da Fonseca e Silva". R evista do IH G B . vol. 19, pp. 369/375, RJ, 1856)

a partir de um relato de Simão José de Nazaré, discípulo de V alentim . O utros biógrafos

acrescentaram novos dados: M oreira de Azevedo (O R io de Janeiro, sua H istória, M o ­

n u m e n to s, H o m ens N o táveis, Usos e C uriosidades, Vol. I, p. 569, RJ, 1877) descobre

nos Livros de Óbitos da Igreja do Rosário a data de sua m orte: 1? de m arço de 1813: Nair

Batista ( “ Valentim da Fonseca e Silva", R evista do S P H A N , n? 4. pp. 272/282, RJ,

1940) confirma a informação, ainda esclarece o term o de entrada de Valentim na mesma

Irmandade em 1799 (fls. 39 Lvs. 1752/1829) e reconhece a autoria de seus retábulos nas

Igrejas das Ordens 3?s do C arm o e de São Francisco; Á lvaro M achado reconhece a au

toria de Valentim no retábulo da Igreja da Conceição e Boa M orte ( “ Igreja da Conceição e

Boa M orte , in M undo C atólico. Rio. 1956); A nna M aria M onteiro de C arvalho, nos da

Igreja da Cruz dos M ilitares (livrode Receita e Despesa, M aço I. 12 de dezem bro de 1812,

Doc. n? 28; 14 de abril de 1812, Doc. n? 82, inform ação doada ao Arquivo do S P H A N em

1984).

M ulato, filho de um contratador de diam antes e de um a negra africana, o seu cam

inho está traçado a A rte; aqui cabe a observação de Sérgio Buarque de Hollanda (in

“ Letras, A rtes Ciências” , Cap. III, H istória G eral da C ivilização B rasileira, pp. 108 a

109. SP, 1982): A vocação e a destreza artística passam a constituir um a inspirada possibilidade

de movimento ascensional na rígida estru tu ra escravista. Por essa via, forma-se

um novo grupo, que não é cativo nem senhor, cuja cor de tez é ignorada e cuja presença é

indispensável” .

Conta Porto Alegre “ que fora aqui que aprendera a arte torêutica como entalhador

que fez as primeiras obras da O rdem Terceira do C arm o” .

10/n? /U/ o ? ^ di-SCOrdam‘. G °1nZaga Duque Estrada ( ‘‘M estre V alentim ” , in O P aiz,

i. /U 3/1213) diz que tena adquirido algum conhecim ento de sua profissão em Portugal.


A espacialidade do Passeio Público de M estre Valentim

69

para onde foi pequeno e voltou jovem ainda, aproximadamente em 1765 e ficando aqui até

a morte.

Eximio toreuta e artista do “ risco” , seu nome já figura como M estre em 1773 (19

Livro de Receita e Despesa da Ordem 3? do Carmo). Logo se destaca dentre outros Mestres

entalhadores contemporâneos, executando magníficas obras de talha e imaginária em

algumas das mais im portantes igrejas da cidade e, ainda, moldes de lampadários, mobiliário

e objetos sacros. Engenhoso urbanista, “ arquiteto” e escultor, no período de um

Alpoim e de um Funk, constrói além do Passeio Público os mais famosos chafarizes da

época — o das M arrecas (1785), Pirâmide (1789), Lagarto (1786) e Saracuras (1795),

dotando todas essas obras de belas esculturas. É ainda responsável pela reedificação do

prédio do Recolhimento do Parto (1789), que se incendiara.

Nào podemos ainda saber como Luís de Vasconcelos, fidalgo instruído, de larga experiência

administrativa, encarregou Mestre Valentim para o estudo e direção das obras

públicas urgentes preterindo a escolha de militares diplomados engenheiros com o; por

exemplo, o sueco Funk. O fato é que, encomendados o projeto e a construção do Passeio

Público á competência e á lavra de Valentim, ele se torna a mais importante expressão artística

do Rio de Janeiro dos Vice-Reis.

Analisemos alguns itens que, a nosso ver, definem a obra:

1. O conceito iluminista de saúde pública, liberando “ ar puro” e luz à população,

presente na escolha do local.

Iniciado em 1779 e concluído em 1783, o Passeio Público surge em local acertado,

que a consulta de mapas e iconografia da época permite avaliar: como podemos depreender

de cópia da planta de Roscio, projeto de fortificação de 1769 (Gilberto Ferrez, in A s

( idades de Salvador e do Rio de Janeiro, no Século X V I I I , RJ, 1963, pp. 32 e 33) a cidade

compunha-se de um quadrilátero que tinha como limites a leste, as águas da baia e a oeste,

pouco mais que a rua da Vala (hoje Uruguaiana), com um a saída para o Largo de São Francisco

e outra para os terrenos e o Convento da Ajuda. Daí partia o Caminho dos Barbonos

a que seguia o de M ata-Porcos, fazendo ligação com o interior, de onde algumas granjas e

chácaras forneciam o abastecimento. Um terreno na urbe ou mais para o interior apresentaria

condições idênticas de insalubridade, calor e falta de conforto que castigavam a

população; a brisa m arítim a da tarde, vinda do Sudeste, encontrava uma barreira nos mor

ros do Castelo e de Santo A ntônio, unidos nas suas bases; as áreas internas nào tinham o

menor encanto. Eram alagadiças e sem morros próximos obrigatórios aos necessários aterros.

Buscando a praia, ainda que um pouco distante, Valentim alcança zona bela e fresca,

nào obstante a insalubridade do local alagadiço, e obtém solução ideal, com o desmonte do

morrote das M angueiras e aterro da Lagoa do Boqueirão da Ajuda e circunvizinhanças. Is

to porque o m orro era baixo e de terra, um contraforte do Morro de Santa Teresa e a

chamada lagoa não passava de um raso espelho d ’água. como podemos ver num quadro da

época, o óleo do pintor Leandro Joaquim, atualm ente no Museu Histórico Nacional (fig.

D.

2. A crença no progresso e nas realizações humanas, de um governante iluminista

está evidenciada no preparo e proteção da área; a maior obra de engenharia feita no Vice

Reinado.

É de se compreender o enorme esforço para levar a cabo um empreendimento dessa

natureza, dada a precariedade de recursos, de instrum entos e equipamentos disponíveis e

da qualidade da mão-de-obra. Somente o sentido de autoridade e de independência de Luís

de Vasconcelos e a confiança depositada no talento e capacidade do mulato Valentim explicam-lhe

o êxito. Vimos que Luís de Vasconcelos dispensou autoridades no ramo da en-


70 GÁVEA

genharia da época. . . . . .

Conform e verificamos na carta do Vice-Rei dirigida ao Sr. M artinho de M elo e Castro

( “ opus cit. ” , pp. 34/35). datada de 1781, faz-se referência “ a um trabalho iniciado com

aqueles aterros de 1779 — o Passeio Público” e que dá a entender que Vasconcelos agira

com urgência, diante dos problem as de insalubridade e abastecim ento d água da população.

sem se utilizar dos clássicos pedidos de autorização e de recursos. Segue o texto,

“ ...segui o meio term o de m andar para a fortaleza da Ilha das Cobras todos esses vadios,

que se encontram em algum com m isso, fazendo-os trabalhar nos seus officios; e passando

o rendim ento e producto das obras que se vendem para um cofre, que mandei estabelecer

no calabouço, para se applicarem as importâncias que alli se vão ajuntando ás obras publicas

d esta cidade. N o mesm o cofre se guardam as que respeitam aos açoutes dos escravos

que os seus senhores m andam castigar, afim de se im pedir por este modo não só a

excessiva paixão com que são punidos, mas ainda de se providenciar a precisão de o serem

quando fazem desordens, e se disfarçam por um a indiscreta affeição. Todos estes rendimentos.

que se tem apurado por um methodo e escripturação abraviada, se tem consumido

nas obras do Passeio Público, a que as pequenas rendas da C am ara, e as poucas forças da

Fazenda Real não podiam acudir, tendo-se conseguido ultim am ente dim inuírem , com o

medo d aquella suave correcção, as perturbações d e s te s indivíduos, dos quaes se vem a

tirar um a correspondente satisfação na parte que pôde respeitar ao mesmo publico” .

A ssim , escolhido o local e definido o projeto, V alentim dá inicio, em 1779, ao tra

balho de desmonte do M orro das M angueiras e o aterro da Á rea destinada ao jardim e

também das imediações. Sem serm os precisos por falta de m aiores dados, podemos admitir

que o tipo de equipamento usado pela turm a de desm onte seriam os clássicos instrum en

tos: picareta, enxada e pá. Para o transporte do m aterial desagregado, empregava car

rocinhas e animais de tração, com o são vistos, em gravuras da época, serviços sem elhantes.

U m processo rudim entar que nos leva a reconhecer o alto valor do seu trabalho. Outra

engenhosa solução foi o recurso utilizado pelo M estre no que se refere á proteção da área:

um Dique. Os alagados junto ao litoral e a assim cham ada Lagoa do Boqueirão da Ajuda

formavam-se, em parte, pelas enchurradas de escoam ento dificil e também pela invasão

das ondas nas cheias de ventania. Com os aterros realizados, os efeitos das chuvas estariam

resolvidos apenas por adequado declive para a praia, m as o baixo nivel não impedia, de

quando em vez, os maus efeitos do mar.

Com o material do desm onte, V alentim constrói um a m uralha elevada “ cerca de dez

pés acima do nível natural do terren o ” (segundo relato do com erciante inglês, John Luç

cock, em N o ta s sobre o Rio de Janeiro e Partes M erid io n a is do Brasil 1808/1818, p.

59). Revestida por parede de pedra do lado do jardim e, externam ente, por um cais quase

vertical de grandes blocos de granito aparelhado, conform e gravura de C. Linde (A lb u m do

Rio de Janeiro de 1860). Essa verdadeira barragem representava um meio de proteção ao

Passeio Público contra os efeitos da natureza. Com um ou o u tro reparo, tal trabalho resis

tiu às ressacas e só foi abandonado pela necessidade de alargam ento da faixa litorânea, já no

século X X .

3. A s raízes árabe e medieval de Portugal ainda presentes na composição formal do

Passeio Público: à idéia de fusão do espaço da natureza ao urbano (espaço barroco) se opõe

a idéia de natureza “ revelada ” por de trás de um m uro e de um portão.

A exemplo de Lisboa, o Passeio Público de V alentim é protegido por um M uro, “ que

de espaço a espaço tem janelas com grades de ferro” (Luiz Gonçalves dos Santos, em

M em órias para Servir à H istória do R eino do B ra sil, p. 29) ou “ janelas com balaústres de

m adeira” (J. M anuel de M acedo, U m Passeio pela C idade do Rio de Ja n e iro , V. I, RJ,


A espacialidade do Passeio Público de Mestre Valentim

71

1877, p. 80). Divergências á parte, o fato é que o m uro apresenta aberturas, visíveis em

litografia do Barão de Planitz (12 Vistas do Rio de Janeiro, 1840, Col. Biblioteca Nacional)

e, partindo de cada lado da entrada (à rua do Passeio), circunda o parque, ficando-lhe á

direita o Largo da Lapa, à esquerda o da Ajuda. O m uro termina ao fundo, num terraço,

para o qual dão acesso quatro escadas. Assim, a fruição da beleza do Jardim e do Panorama

da Baia da Guanabara torna-se privilégio de um público selecionado que transpõe o portão.

Cercado pelo muro, o Passeio Público do Rio de Janeiro não se abre publicamente para a

cidade. Persiste ainda um a visão de mundo fechado, particular, a dos conventos e das

quintas portuguesas. Em Versailles, cujo modelo de jardim é formalmente retomado no

Palácio Real de Q ueluz e no Passeio Público de Lisboa, a visão de mundo é oposta — de

dentro para fora. N o centro do poder monárquico da França a natureza se abre, em artérias,

em direção à cidade. Em Roma, as praças, com fontes e chafarizes, servem de

mediação entre o espaço da natureza e o urbano.

4. A composição formal barroca é suporte de um a decoração barroca e rococó de tendência

classicizante; o sentim ento nativista de Valentim se instaura na poética da obra.

Valentim concebe o Passeio Público no form ato de hexágono regular. Dão-lhe entrada

um imponente conjunto de Portal/Portão, com vista direta para o fundo por uma ala

principal, reta, e outras secundárias também retilineas, num traçado especial de paralelas,

perpendiculares e diagonais, perceptível na planta do Rio de Janeiro de 1808 de J.C. Rivara

(Coleção Biblioteca Nacional) e ampliada em Manuel de Macedo ( “ opus cit.” ,

il. 3).

Esse traçado geom étrico evidencia também aproximação do modelo do Passeio

Público de Lisboa e dos Jardins do Palácio Real de Queluz, por sua vez inspirados na

aparência formal dos jardins barrocos franceses e dos italianos do fim do renascimento, que

contrapunham a construção ordenada da naturez^à movimentação dramática dos elementos

plásticos e arquitetônicos. A um simples exame desse traçado em relação ao atual

(projeto de Glaziou, na remodelação do Passeio Público em 1864, lápis e aquarela, col.

Biblioteca Nacional) (fig. 2) constatamos nova concepção espacial, neoclássica, que opõe â

racionalidade arquitetural e plástica das construções uma manifestação mais espontânea

da imitação da natureza. H á também maior interação do jardim com o seu entorno, uma

vez que o m uro foi substituído por grades de ferro, deixando, assim, aparecer o seu interior.

Segundo litografia de Karl W. von Therem in (em Saudades do Rio de Janeiro, 1935)

o Portal apresenta decoração clássica: pilastras jônicas em granito, encaixadas em abas de

alvenaria e encimado de urna clássica; completam-no duas guaritas em nicho e arremate

em curva e pinha. Dai segue o muro, deixando ver as aberturas com rexas e ornatos de

compoteira. Hoje só podemos apreciar o portal até as abas, uma vez que um gradil

substituiu as guaritas e o muro.

O Portão é todo trabalhado em ferro. A arte do metal — uma arte industrial desen

volvida principalmente na França, a partir de Luís XIV — é muito utilizada por Valentim,

com notável domínio da técnica. Apresenta o portão decoração rococó — volutas, curvas,

contra-curvas, estilização de plumas e folhagem, arrem ate em frontão curvilíneo trabalhado,

rocailles e medalhão de bronze. O medalhão ostenta, na face da rua as Armas Reais

e na interior, as efígies da Rainha D. Maria I e do Rei D. Pedro III (fig j 3).

Nas aléas, “ ruas bordadas de arvoredo...” (Gonçalves dos Santos, in “ opus cit.” p.

29) são plantadas várias árvores e plantas brasileiras “ sustentadas por treliças de madeira,

onde sob o abrigo da flor de maracujá, os tisnados brasileiros gozam o luxo de uma atmosfera

fresca” (Luccock, in “ opus c it.” , p. 59). É im portante aqui ressaltar a catalogação


cientifica das árvores e plantas das m atas cariocas feita por Balthazar da Silva Lisboa (A n -

naes do Rio de Janeiro. T. 1, cap. V, pp. 204 a 289, 1834), m uitas delas empregadas no

Passeio Público (segundo detalhada descrição botânica de José M ariano Filho, in O Passeio

P ú b lico. RJ, 1943), o que dem onstra ter havido um a deliberada preocupação em m ostrar

a flora local, seja por parte do sentim ento nativista de V alentim , seja pelo espírito de

investigação científica da natureza, próprio do ilum inism o, que o Vice-Rei e a Corte interessavam

documentar. Essas árvores, mais tarde frondosas, formaram um bosque, que

podemos ver reproduzido num a litografia do Barão de Planitz ( “ O Rio de Janeiro em

1840” , Col. Biblioteca Nacional) e mais tarde destruído quando da modificação do jardim.

N o que diz respeito a utilização de elem entos escultóricos, arquitetônicos e ornam entais,

o estilo de Valentim caracteriza-se por uma m istura do gosto barroco e rococó, mas

sempre de forma contida e sóbria. Podemos dizer, classicizante. H á também um evidente

sentim ento nativista. Estão presentes nessa obra urbana, e em outras que executou posteriorm

ente, esculturas da nossa fauna e flora aliadas ás de inspiração mitológica.

Q uase ao fim da aléa principal, de cada lado, erguem -se duas pirâmides de base triangular,

“ esguias” ... “ de boa proporçãoe bem lavradas” (John Luccock, in “ opus c it.” , p.

59) construídas em blocos de granito carioca, onde dois medalhões de márm ore branco,

colocados pouco acima da base, formam contraste. T razem as seguintes inscrições: “ Ao

Am or do Público" e “ À Saudade do R io" (fig. 4), o que pode com provar a necessidade de

Valentim em apresentar sua terra e sua gente (ou do Vice-Rei á sua própria), da mesma

forma que exaltara a presença real no medalhão do portão. As pirâmides funcionam como

marco divisório entre o jardim propriam ente dito e o conjunto arquitetônico que se distingue

ao fundo da aléa principal: um a Cascata artificial a que segue um Terraço com Pavilhões.


L ml j ■


Figura 7


A espacialidade do Passeio Público de Mestre Valentim

75

A cascata é formada por uma espécie de outeiro de pedras e vegetação, como uma

toca, onde se vê um magnífico conjunto escultórico, em bronze, de dois jacarés entrelaçados

e três garças (essas, hoje, inexistentes). H á ainda “ um coqueiro de 20, ou mais

palmos de altura, todo de ferro, e pintado ao natural, que, apesar da rija matéria de que era

formado, em poucos anos o vento o despedaçou” (Gonçalves dos Santos, em “ opus cit.” ,

p. 29) sendo substituído por um busto de Diana, no Governo do Conde dos Arcos.

Os jacarés têm representação naturalista, estão dispostos em oposição, num harmonioso

jogo de sim etria e movimento (barroco classicizante). Podemos ter idéia da cascata

com todas as esculturas, em desenho de M agalhães Corrêa (fig. 5), concebido segundo

a descrição de Luís Gonçalves dos Santos ( “ Fontes e Chafarizes” , vol. 170, p. 22,

Revista IH G B , 1939). A propósito das esculturas conta-nos o seu prim eiro biógrafo,

Araújo Porto Alegre: “ Valentim modelou aquelle grupo de jacarés; e porque falhasse a

primeira fundição, foi elle em pessoa executar a segunda, que é o resultado que admiramos

hoje. É também d ’elle o m enino que vôa e sustenta um Kagado, que vomita agua em barril

de granito, assim com o o eram várias estátuas que desappareceram” (In Rev. IH G B , vol.

X IX , p. 373, 1856).

A água da cascata jorra das mandibulas dos répteis e dos bicos das aves num tanque de

granito com planta m ovimentada barroca. A cascata é encimada por um frontão de perfil

interrompido e carteia em m árm ore de liós, rococó, com as armas do Vice-Rei.

Quatro escadas em oposição simétricas dão acesso ao lado oposto do conjunto de onde

segue o Terraço. V alentim constrói ali outra fonte: a chamada “ Bica do M enino" de que

fala Araújo Porto Alegre. Acrescentamos, com outros autores, a sua descrição, que na

outra mão o m enino segura uma faixa com o dístico “ sou útil ainda brincando” . No mesmo

artigo Porto Alegre conta que “ o menino que hoje lá se encontra é cópia do primeiro

(que desaparecera) feita executar, em concurso pela administração pública” (fig. 6).

Valentim dá ao T erraço dimensões adequadas a uma boa “ prom enade” pavimentando-o

com fios e lajotas de márm ore colorido; proteje-o com muretas tipo parapeito, intercaladas

por pilastras e vasos de mármore. As m uretas têm, como encosto, bancos de alvenaria

e revestim ento fronteiro em azulejos bicolores e tampos em m ármore que servem

para o descanso e contem plação do panorama (fig. 7 ). Constrói, também, dois Pavilhões,

um em cada extrem o do passeio do terraço.

Dos dois pavilhões, que não mais existem , fizemos um esboço e descrição calcados

principalmente nas observações de Luccock (in “ opus c it.” , pgs. 59/60) e em parte nas de

Gonçalves dos Santos (in “ opus cit.” , p. 29). São eles estruturalm ente semelhantes,

quadrangulares, com o prova a descrição de Gonçalves dos Santos e a gravura de Richard

Bate, “ T he publics gardens. Convento da Ajuda, H illo f S. Sebastião, Sta. Luzia, Ponta do

Calabouço as seen from the church of N.S. da G lória” (aquar. color., cópia, Coleção

Biblioteca Nacional) lem brando capelinhas simples, por fora, mas internam ente de forma

octogonal e m uito ornam entadas (fig. 8). Essa característica de interior octogonal pode

ser vista, por exemplo, na Igreja N.Sra. Mãe dos H om ens, de 1752, á Rua da Alfândega,

nas proximidades da oficina-residência do M estre, á Rua do Sabão. Nos beirais do telhado

vêm-se vasos com ananases em ambos os Pavilhões que ostentam, ao centro, estátuas de

mármore; à direita Apoio e á esquerda M ercúrio. A decoração dos interiores foi entregue

aos conhecidos artistas da época: Xavier dos Pássaros que se incumbe do Pavilhão da

direita, em cujo teto aplicou penas e plumas coloridas; Xavier das Conchas se incumbiu do

outro, empregando nos adornos dos tetos esse variado material. Os Pavilhões guardam

homogeneidade de estilo; nas suas divisórias figuram quadros a óleo de Leandro Joaquim

em molduras ovais, douradas. O de Apoio apresenta belos cenários do Rio de Janeiro e o


GÁVEA

ra 8

de M ercúrio, motivos da sua vida econômica. H á rem anescentes dessa coleção de quadros

no M useu Histórico N acional.

Finalm ente, Valentim atinge na construção do Passeio Público, no todo e no detalhe,

níveis elevados de refinam ento e criatividade no campo da arte. Seja na composição formal

ou no sentim ento do m undo, tudo se articula em to m o de um a estrutura hierarquizada

que subordina o espaço arquitetural (representado pelo m uro) ao da natureza construída

(representado pelos jardins, fontes, esculturas, pavilhões e terraço) e este, ao da natureza

propriam ente dita.

N o traçado interno, as partes se ordenam ao efeito geral do conjunto e induzem a um

climax: a composição é voltada para um eixo central, a aléa principal, que, partindo da entrada,

leva o olhar do espectador em direção ao centro da sua criação artística, o imponente

conjunto arquitetônico e escultórico formado pela fonte dos jacarés, a bica do menino e o

terraço. Do centro, o olhar dirige-se ao alto, na contem plação do panorama da natureza —

finita da baía e infinita do céu. As pirâmides têm , a nosso ver, a carga simbólica de passagem

dessas duas dimensões.

Como vimos, Valentim criou da abstração das formas im portadas, uma composição

m agistral, a um tempo grandiosa e equilibrada, num deliberado propósito de m ostrar uma

visão de m undo. Um m undo português da Colônia, subjugado, que ele, artista brasileiro,

pretendeu transcender, inserindo essas formas na singularidade da nossa natureza.


O nascimento do prazer da arte

GEORGES DUBY

Tradução: IHey Franco

A primeira m etade do século XIII fo i um a grande época para a teologia. Esta, de inspiração

franciscana e dom inicana, luta contra as heresias. Qual é a ligação entre essa

teologia e a evolução da arte que lhe é contem porânea?

Quais são igualm ente, no século seguinte, as consequências dentro do dom ínio artístico

da nova teologia que D u n s Scot e G uilherm e de O ckham ensinam ?

O que costumamos cham ar de arte gótica, isto é, uma concepção arquitetônica que

tenta fazer com que o m onum ento seja translúcido, que deixa penetrar a luz até o santuário.

encontra-se em relação direta com o florescimento, no inicio do século XII, de uma

teologia da luz. Na abadia de Saint Denis, Suger foi o promotor desta nova estética.

Venerava-se na abadia a memória daquele a quem chamamos o Pseudo Denys, um representante

do pensam ento bizantino que m ostra a criação como emanação de um foco

luminoso, a luz que transform a em Ser todas as criaturas. Animados por este pensamento

e fiéis a um texto da Biblia, “ Deus é luz” , os construtores que trabalharam no projeto de

Suger, que o seguiram e foram em seguida para Chartres e para todas as oficinas de trabalho

das catedrais da França, desejavam de fato dar forma a esse pensamento teológico.

De modo que. ao meu ver, a catedral gótica é a expressão visual mais convincente desta

concepção.

O pensamento teológico formalizou-se em seguida, especialmente na Universidade de

Paris; tornou-se bem mais racionalizante, devido á boa recepção da lógica de Aristóteles,

e. no decorrer dos séculos XII e XIII, a catedral também se torna mais racional. Ela se

desenvolve numa justaposição de seqüências extrem am ente ordenadas, quase idênticas, o

que ocasiona uma relativa secura; secura que vemos nitidamente afirmar-se no decorrer do

século XIII.

No final do século XIII e no inicio do século X IV , produz-se uma profunda discórdia

entre os homens da Escola, isto é, entre os que trabalhavam naquelas oficinas extraordinárias

das universidades, onde a principal disciplina era a teologia. De fato, uma descoberta

bem mais profunda do pensamento de A ristóteles e de seus comentadores muçulmanos

chegava a questionar determinados elem entos do próprio dogma. Esta discórdia

que suscitou consideráveis transtornos determ ina um a espécie de separação entre a ciência

de Deus, a teologia e a ciência do Universo. Esse movimento, que insinuava-se no pensamento

de Duns Scot e manifestava-se no pensam ento de Guilherme de Ockham, tra-

Perguntas formuladas por C.atherine Millet e Guy Scarpetta da revista “A rí Press


78 GÁVEA

duziu-se igualmente na evolução da criação artística. M as não creio que este tenha sido o

único fator.

Separação entre a ciência de D eu s e a ciência do universo

H ouve também o progresso geral da civilização, a necessidade de lucidez, o contato

com o m undo real, a reabilitação da natureza que se opera no decorrer do século XIII,

notoriam ente sob a influência de São Francisco de Assis. São Francisco de Assis não era

um teólogo, mas ele “ salvou” o carnal, o natural, o m undo da condenação que lhes pesou

por tanto tempo.

Estas transformações dentro do pensam ento e na produção da própria teologia favoreceram

o surgim ento do que cham am os de realism o, isto é, de uma atenção voltada

para a figura das coisas visíveis.

A cho que o esforço dos pintores no século X IV em aperfeiçoar o ilusionismo recorrendo

principalm ente à perspectiva tem uma relação evidente com estas novas atitudes do

pensamento.

N o que d iz respeito à arte do século XIII, eu n otei que você fala de u m “realismo do

g lo b a l". Q ual é a diferença entre esse realism o do glo b a l e o realism o que aparece no

século X IV ?

Enquanto a criação da G rande A rte está inteiram ente sob o domínio dos intelectuais,

isto é, dos padres e teólogos, o refinam ento do pensam ento teológico conduz a uma expressão

mais conveniente e mais satisfatória da coerência do universo. Dai a busca do

“ global” ; a catedral tom a-se um a espécie de enciclopédia onde todos os elementos do

conhecim ento se reúnem num todo. É difícil, portanto, falar de realismo, no sentido que a

história da arte dá habitualm ente a esta palavra, porque o que os artistas guiados pelos

teólogos procuram é reencontrar o que há de ideal nas criaturas, isto é, as intenções di

vinas. É um a espécie de busca de tipos exemplares. Por exem plo, a escultura da metade do

século XIII não procura absolutam ente individualizar seus personagens, tampouco situá

los dentro de sua verdadeira idade ou particularidade física; ela tenta reconhecer sob os

traços dos homens e das m ulheres que se trata de representar aquilo que há de mais perfeito,

a perfeição do próprio program a, o modelo prim itivo tal com o existiu no pensamento

do Deus criador. Entretanto, quando a teologia, após a grande reviravolta de que falei há

pouco, descarta a ciência do universo criado, ciência que se funda na experiência e na observação.

inventário do que percebem os sentidos, abre-se aos artistas o campo para uma

busca que eu chamaria de fenomenológica. É o acidente que deve ser traduzido, dai o

desenvolvim ento do retrato e a irrupção da paisagem.

U m a Piedade M ais Individual

Você disse a propósito desta teologia que ela fo i um a reação ao pantelsm o. C om o então se

reencontrar entre o p a n telsm o e p o r exem plo a natureza seg u n d o São Francisco?

Isso de fato se deu num a aresta. H ouve por parte daqueles que eram m uito sensíveis

ao averroísm o, e a tudo o que as traduções árabes puderam descobrir de um pensam ento

que não era cristão e de uma interpretação de A ristóteles e da filosofia grega, uma grande

tentação em ver Deus por toda parte e portanto de colocar em questão a autoridade da

igreja. O panteísmo conduzia ao sentim ento de que finalm ente a ligação entre o indivíduo

e as forças imanentes podia ser direta, sem o interm ediário sacerdotal. Evidentem ente a


0 nascimento do prazer da arte

79

igreja combateu tudo isso. A Grande A rte que era a arte oficial tentava descartar tudo o

que nela podia haver de panteista. Mas com o desenvolvim ento da filosofia de Ockham e

com a evolução da sociedade — pois eu não dissocio a evolução do pensam ento do que o

sustenta, as relações entre os homens — pouco a pouco, no decorrer do século X IV , há

uma inclinação para as formas de piedade que são cada vez mais individuais (este movimento

conduz aos místicos renanos, ao mestre Eckart e à Imitação de Jesus Cristo) onde

aquilo que as pessoas da época chamavam a devoção moderna se estabelece dentro de uma

relação bem mais distanciada no que concerne aos quadros eclesiásticos e onde o diálogo se

instaura entre o fiel e Deus. Isso se reflete diretam ente sobre a criação artística, menos nas

formas do que nos lugares em que surge a G rande A rte, o oratório privado, o livro de

orações, o relicário pessoal (passou-se a usar as relíquias sobre o próprio corpo como se

fossem jóias). E é isso que faz com que passemos de um a arte que, no século XIII, é uma

arte do monumento, um a arte coletiva, uma arte para o povo inteiro, ao objeto de arte de

que se apropria pessoalmente o indivíduo.

A leitura do tem po das catedrais nos ensina que a Itália perm aneceu bastante perm eável à

nova teologia E ntretanto poderiam os pensar que a arte de G iotto corresponde a ela, porque

se essa teologia é um a teologia do indivíduo, a arte de G iotto é ta m b ém considerada

como uma arte do indivíduo.

Giotto trabalhava sob as ordens pontificiais e cardinalicias que representavam a cultura

global do cristianismo. N a minha opinião, as inovações de Giotto têm menos relação

com o itinerário teológico do que com as formas de transm issão da crença. A arte de Giotto

só se explica quando a consideramos contem porânea de uma organização extremamente

voltada para a prédica, para aquilo que hoje nós cham aríam os de mass media. Trata-se de

tom ara imagem o mais convincente possível. G iotto transpõe as técnicas do teatro para a

pintura; põe em cena os personagens, isto é, indivíduos que têm um papel definido, atores

que traduzem o dogma, a revelação, através de um a gesticulaçào e através das posições que

uns ocupam em relação aos outros.

O T eatro de Giotto

O que poderia ser dito sobre a arte do teatro e da prédica? Você escreveu que pouco a

pouco entre os teólogos a *‘d isp u ta '' substituiu a lição.

Isso se passa no interior da universidade. N o m om ento em que a teologia se funda no

ocidente, isto é, na época de Abelardo (eu falei ainda há pouco de Denys o Aeropagita,

mas ele veio da Grécia e o Ocidente era ainda m uito bárbaro para criar sua própria teologia

antes do século XII). É dentro das escolas eclesiásticas, por causa da adoção da lógica aristotélica.

que o trabalho sobre a Escritura pouco a pouco muda de forma. D urante muito

tempo isto foi apenas um a meditação individual, confinada a uma leitura comentada por

um único homem, o m estre, que ensinava o seu ponto de vista. Mas pouco a pouco os

métodos da dialética, isto é, a contradição, foram sendo colocados em prática. Abelardo

em seu Sic et N o n confrontando opiniões contraditórias retiradas da Sagrada Escritura,

convida á discussão. É efetivamente dentro da universidade, e principal m ente dentro da

universidade parisiense que o curso magistral, a lectio foi sendo progressivamente substituída

pela d isputado, isto é, pela controvérsia. E é através do diálogo que se procura uma

aproximação da verdade.

Entre as ordens m enores, entretanto, não se trata de refinar o pensamento teológico

mas de difundi lo. Os m étodos são métodos extrem am ente amplos de transm issão, e se

dirigem aos leigos, a quem proibe-se além disso as discussões. A verdade lhes é revelada


80 GÁVEA

através de um interm ediário que é a cena, através da eloqüência e do sermão, mas apoiados

pela cenografia. Recorre-se ao quadro vivo, ao teatro. E a arte de Giotto é a arte do teatro

imobilizado, com cenas sucessivas. N ão a cena de teatro á italiana, como se poderia

im aginar, mas “ as casas” , as decorações justapostas do teatro medieval, que era um teatro

circular. A s cenas sucessivas das capela alta de Assis ou de Pádua são cenas do Teatro de

Feira colocadas umas ao lado das outras, e é diante delas que desfilamos.

O que significa dizer que a arte de G iotto não é tão contraditória com relação ao pensam

e n to de São Francisco...

A pesar disso, o program a realizado por G iotto neutralizava o que podia haver de

revolucionário na prédica de São Francisco de Assis pois tratava-se de um programa estabelecido

pela igreja oficial que tentava restabelecer a ordem .

N ão é u m a idéia m u ito agradável essa da arte co n trib u in d o para neutralizar um a revolução...

N o entanto é bastante evidente. A grande em presa artística de Assis consistia em estabelecer

dentro do próprio e sta b lish m en t tudo o que havia de contestador no franciscanismo.

M anifestar a Encarnação

V ocê falava ainda há pouco de m ediação entre os h o m e n s e D eus. Isso ten a alguma relação

com a fig u ra da V irgem , e n q u a n to precisam ente m ediadora?

Não. Talvez seja m elhor voltarm os um pouco mais atrás. Você me perguntava, na

prim eira pergunta, a respeito das relações entre a arte e as lutas contra a heresia. É preciso

observar que em contrapartida á doutrina oficial havia um a prodigiosa e vigorosa corrente

de contestação herética, inicialm ente anticlerical, m as igualm ente negadora do que po

deria haver de encarnação no cristianism o. Essa corrente contesta o fato de que a pessoa

divina tenha tomado a forma carnal, que Cristo tenha sido um homem e que seu corpo

tenha nascido do ventre de um a m ulher. Tudo isso repugna àqueles que a igreja declara

heréticos, isto é, a partir do século X II, os cátaros, cujo m ovim ento havia sido durante

m uito tem po precedido por tendências comparáveis. A arte figurativa, a grande escultura,

a partir do século X I, tem por função essencial esculpir a prédica herética. Dai o lugar que

é dado ao corpo, ao corpo de Jesus vivo e, para m anifestar a encarnação, uma exaltação da

mãe de Deus. A mãe de D eus, cuja figura foi pela prim eira vez instalada ao ar livre no por

tal de C hartre, como elem ento essencial da decoração. Pouco a pouco explode o desenvol

vim ento iconográfico da figura de M aria. Os teólogos estabelecem um a espécie de me

táfora entre Cristo e sua mãe, e entre Cristo e a igreja. A virgem se torna a imagem da

igreja e quando é mostrada, com o nos tímpanos de Senlis e da N otre Dame de Paris,

coroada pòr seu filho, é para proclam ar que Cristo delegou seu poder real á igreja.

F lorescim ento da A r te Cortesã

V oltando à noção de realismo. V o cê escreveu que o realism o no século X IVse deve mais a

um a m udança da teologia do que ao progresso da burguesia. Isso vai contra toda u m a con

cepção sociológica da história.

Sem dúvida, tradicionalm ente, o realismo é a arte burguesa. Por um lado, estou convencido

de que existem correlações necessárias entre o pensam ento e a evolução material


O nascimento do prazer da arte

81

das coisas. Mas por outro, estou também convencido de que não se pode falar de uma arte

burguesa, porque á medida em que a dominação da G rande A rte foi sendo pouco a pouco

retirada das mãos do clero, o foi para passar às mãos dos príncipes e não dos burgueses. Os

grandes projetos, a direção dos artistas, os meios financeiros colocados á sua disposição,

nada disso vinha de fortunas burguesas, antes do século XIV italiano. H á um a ‘desclerizaçào’

e portanto um refluxo do teológico; há um a profanação, no sentido etmológico do

termo, mas esta arte é principesca. É dado um lugar dentro desta arte, cujos alicerces são

teológicos uma vez que para a maioria continua a ser sagrada, a preocupações hedonistas,

ao gosto pelo prazer físico, e finalmente ao florescim ento de uma cultura que não é burguesa

mas cortesã. E quando os burgueses tom am -se mecenas ficam fascinados com a

Cortesia. Tudo o que vemos modificar-se, ao m esm o tem po na iconografia, nos temas, nos

recursos a materiais mais luminosos e apetitosos, não deve ser atribuído a um a emergência

real daquilo que chamamos burguesia, mas ao florescim ento de uma civilização da corte.

Uma A r te M ais Livre

Isso quer dizer, ainda e m fu n ç ã o da nova teologia, que houve um a m aior liberdade da arte

com relação ao dogm a?

Sim, isso é evidente. A partir do século X IV há um a espécie de separação entre o

domínio da fé e o dom ínio da experiência hum ana. Há todo um domínio que permanece,

que é o da teologia pura, mas outro lado há tam bém a reflexão autorizada e a aplicação da

lógica sobre tudo o que é terrestre, especialm ente o poder. Paralelam ente à teologia,

desenvolve-se o que podemos chamar de uma filosofia, um a filosofia que se tom a muito

livre porque não é mais obrigada a estar a serviço da teologia. Creio que é isso que produz

uma grande ruptura. E porque de um modo absolutam ente contem porâneo, os meios concedidos

á criação artística não mais se concentram exclusivamente dentro dos programas

teológicos, mas se voltam , na maioria, para as decorações da festa terrestre, essa liberdade

torna-se ainda maior. O artista é levado a lançar um olhar liberado sobre o corpo, sobre a

mulher, sobre o m undo.

Você vê uma relação direta entre a pintura de Van E yck e a teologia de G uilherm e de

Ockham

Sim. A filosofia existente na obra de G uilherm e de Ockham é uma filosofia diretamente

naturalista á medida em que tem um curso próprio em relação ao curso da teologia.

A partir de 1400, na sociedade de Jean de Berry, os artistas que, como os de antigamente,

eram chamados para ilustrar principalm ente os livros de oração são autorizados a traduzir

o verdadeiro espetáculo do m undo. Essa corrente, nascida na corte parisiense, desemboca

na grande pintura de Van Eyck, que é um a análise extrem am ente minuciosa da natureza.

A natureza é em si suscetível a um a interpretação.

A té aqui falamos das fo rm a s artísticas, será que poderiam os agora evocar os artistas? Você

costuma ligar os teólogos aos arquitetos, e às ve zes fala de arquitetura em term os de

teologia. Você acha de fa to que o arquiteto se considerava u m teólogo?

Tudo isso é m uito obscuro, porque não tem os informações suficientes sobre as condições

de trabalho. Os hom ens que eram chamados para executar o trabalho cum priam um

programa que lhes era fornecido pelos pensadores, sábios e teólogos. Além disso, há um

momento, mais ou menos na metade do século X III, em que a condição dos artistas en­


82 GÁVEA

contra-se suficientemente com prom etida, para que eles tenham qualquer independência.

Vemos claram ente na evolução das decorações esculpidas da catedral de Reims, que um

prim eiro projeto, realizado parcialm ente, respondia, pela distribuição prevista das figuras,

a um propósito estritam ente teológico. M ais tarde, com a vinda de um segundo artista, as

estátuas são redistribuídas com um propósito puram ente estético. Essa des teologização da

criação artística faz com que a satisfação pelo gosto estético se tom e pouco a pouco predom

inante.

Um homem como São Bernardo não conhecia o sentido do que nós chamamos de arte,

isto é, do belo. Para ele, tratava-se de encontrar, no interior da pedra, a perfeição. Enquanto

que as obras atualm ente expostas no G rand Palais pertencem a um outro registro,

o do prazer estético.

Isso significa que a arte m u d a de fu n ç ã o ?

Estou persuadido disto e foi o que tentei m ostrar m odesta e imperfeitamente, porque

é m uito difícil. Em que m om ento no interior de um a cultura a arte se libera de uma função

mágica, de uma função religiosa? U m outro fator que intervém diretamente e que, apesar

de não ser teológico, devo m encionar, é que desde o século XII na Itália havia um interesse

pelas antiguidades e pelas formas que nada tinham a ver com a teologia cristã.

O que você disse sobre São B ernardo m e fe z p e n sa r no que E tienne Gilson lembra a

propósito de São T om ás de A q u in o , a saber, que ele não tin h a um a estética Ele tinha uma

idéia do Belo puram ente tra n scen d en ta l que não lhe p erm itia construir um a estética no

sentido e m que a en ten d em o s hoje, isto é, correspondendo às regras de fabricação

É justo que ele não tivesse um a estética. N osso conceito de Belas Artes é absolutam

ente estranho ao pensam ento dos homens dos séculos XII e XIII, enquanto que no

século X IV vemos grandes príncipes colecionadores colecionar objetos para o prazer dos

olhos. Eles esperavam dos artistas que estes respondessem ao desejo de gozar a obra dentro

de suas formas.


A nefasta influência dos arquitetos neoclássicos

Boullée e Durand sobre a arquitetura moderna*

JOSEPH R Y K W E R K

Tradução Candace Lessa

As construções m odernas repousam em grande parte sobre a utilização intensiva de

formas geométricas elem entares. Algum as destas formas, como o quadrado, são fáceis de

desenhar O utras, com o o circulo e o triângulo, ou os sólidos deles derivados, como o

cilindro, são mais difíceis de serem trabalhadas. N o entanto, verifica-se um uso insistente

destas formas por parte dos nossos piores arquitetos e projetistas contemporâneos. Difundiu

se a idéia de que as formas geométricas elem entares são, por algum motivo, melhores

q* e outras mais com plexas. Devemos esta idéia aos arquitetos neoclássicos, e também a

fatores que os antecederam . N o século V a.C ., Platão havia formulado a idéia de que corpos

regulares, tais com o o cubo e o tetraedro, correspondiam aos elementos constituintes

do Universo, e a esfera, a forma mais perfeita, continha e unia todas as outras. Estas idéias

foram reformadas pelos filósofos medievais e adquiriram um novo ímpeto durante o renascimento.

época na qual filósofos e astrônom os acreditavam ser o Universo redondo, e suspeitavam

que a T erra tam bém o fosse. Q uando Rafael pintou os filósofos da Antigüidade

em um mural intitulado A Escola de A te n a s, retratou Ptolomeu, astrônom o e geógrafo,

segurando um globo terrestre; e Zoroastro, astrônom o mítico, segurando um globo celeste.

Essas noções platônicas e seu posterior desenvolvimento tiveram reflexos sobre a arquitetura.

Ao favorecerem o uso da abóbada em suas igrejas, os arquitetos renascentistas

erguiam m iniaturas do arco celeste.

Para muitos filósofos, a esfera era a imagem da perfeição de Deus, assim como também

o era o corpo hum ano. A Bíblia dizia que Deus criara o homem à sua imagem; e, assim

como os antigos, os filósofos cristãos queriam reconciliar a idéia da perfeição do corpo

com a descrição geom étrica do Universo. A rtistas estudavam as proporções da figura

humana para nelas encontrar os segredos da harm onia universal, e buscavam um método

que exprimisse essa harm onia através de fórmulas matemáticas simples. Os arquitetos

renascentistas acreditavam que a arquitetura poderia transm itir tanto a idéia de harmonia

matemática quanto a idéia do homem como microcosmo.

Já em meados do século XVII, cientistas procuravam, cada qual dentro de sua área

especifica, aquele aspecto irredutível do conhecim ento a partir do qual seria possível construir

um sistema novo e especializado. A experim entação tomou o lugar da especulação

sobre a harmonia universal. E, na teoria da arquitetura, as ordens antigas deixam de ser


84 GÁVEA

sacralizadas. Contudo, a casca de ornam entação clássica continuou sendo usada pelos

arquitetos, se bem que m uitos não acreditavam nesta ornam entação como suporte ou base

para um a abordagem racional dos problemas de construção. A lguns arquitetos do século

X V II quefescreveram sobre problem as teóricos justificavam o uso da ornam entação clássica

a título de convenção. Passaram a considerá-la com o um método de desenho familiar e

governado por regras; regras estas que, tendo sido estabelecidas por autoridades antigas,

eram a garantia do bom-gosto. Surgiu então um a pequena disputa entre os “ antigos” , que

de algum a forma defendiam as idéias platônicas, e os “ m odernos” , que buscavam uma

prática empírica. Porém , m esm o aqueles que seguiam o ensino clássico não o aceitavam

com o universalm ente válido. N icholas H aw ksm oor, por exemplo, que trabalhara com

C hristopher W ren na Catedral de São Paulo, quando solicitado a ampliar o AU SouPs

College. um a construção medieval em Oxford, em pregou um desenho que considerava

medieval. A maioria dos seus predecessores e até alguns de seus contem porâneos achariam

sua construção por dem ais deselegante e bárbara para um prédio novo.

À m esm a época, viajantes traziam da China e da índia histórias sobre construções

maravilhosas jamais vistas na Europa. Descreviam enorm es palácios e torres de porcelana

e alabastro, telhados dourados e ornam entações fantásticas. A inda, narravam a China de

um déspota benevolente, adm inistrada por m andarins, hom ens sábios e cultos, que

chegavam a seus postos pelo sistem a do mérito. Este tipo de sociedade seduziu os franceses

e ingleses do século XVIII. Reformadores sociais, viam os chineses como rivais, e sua

civilização como superior às civilizações antigas da G récia e de Roma. Imitavam com en

tusiasm o. às vezes com m uita elaboração, construções e objetos exóticos. A arquitetura

greco-rom ana passou a com por em um quadro de diversos estilos alternativos, se bem que

mais destacada. Para alguns projetistas, a seqüência lógica desse m ovimento levaria a uma

ornam entação derivada das formas naturais, pedras, conchas e plantas, e não mais dos

modelos chineses, góticos, egípcios ou clássicos. Este tipo de ornam entação se afirma

com o estilo, chamando-se a principio Rocaille e, posteriorm ente, Rococó. Nele, a liber

dade inventiva estava a serviço de um ideal, o do prazer natural. Os artistas do Rococó,

com o M eissonier, desenhavam qualquer coisa; chegavam a redesenhar a própria natureza.

Foi o estilo de um a geração que se libertava do rígido despotism o de Luís XIV. Da França,

o estilo espalhou-se por toda a Europa e, durante trinta anos, dominou a moda. M as foi

um a moda sem espinha. Apelava para o capricho das pessoas: torcia-se, retorcia-se e, ao

final, saturou-se.

N a segunda metade do século XVIII uma nova e poderosa classe média começava a

tom ar conta da Europa. Ela rejeitava a aparente frivolidade do Rococó. A França não mais

liderava a moda, e a burguesia voltava-se para a liderança de um a Inglaterra mais sóbria. A

volta à m aneira austera e clássica foi uma reação inevitável e afetou tanto a aristocracia

quanto o patrono burguês que liderava a nação. Desta vez, os padrõs ornam entais e formas

clássicas foram cuidadosamente estudados e classificados conform e modelos já existentes.

Esta talvez seja a maior diferença entre o classicismo do Renascim ento e a visão neoclássica

da Antiguidade. A té os arquitetos e projetistas mais fervorosam ente neoclássicos

questionavam este sistema; disputavam em torno da harm onia universal e da racionalidade

do estilo. A questão reduzia-se agora á imaginação e ao bom -gosto.

A meu ver, o arquiteto que m elhor exemplifica este conflito entre o exemplo sóbrio e

edificante dos antigos, e o desafio do método racional e em pírico, é o parisiense Etienne-

Louis Boullée. É revelador que tivesse dedicado seu mais im portante projeto ao m aior

filósofo e cientista do seu tempo: Isaac Newton. Boullée nasceu em 1728, um ano após a

m orte de New ton. Queria ser pintor mas, frente á insistência de seu pai, decidiu estudar


A nefasta influência sobre a arquitetura moderna 85

arquitetura. Teve um a longa carreira como professor, de nício como membro da Academia

Real de A rquitetura de Paris; com a abolição da Academia pelo Governo Revolucionário,

Boullée tom ou-se membro do novo Instituto de França, e foi um dos mais influentes

mestres do país até sua morte, em 1799. Boullée construiu pouco, e a maioria de

seus projetos concluídos eram residências para a nobreza, em Paris e nos arredores. Reservava

suas energias para grandes projetos que não passavam do estágio de aquarelas. Um

manuscrito com suas idéias foi legado à nação em seu testamento, tendo sido publicado

apenas há alguns anos atrás.

Grande parte do m anuscrito é dedicado à tentativa de fundamentação de seu trabalho

a partir de princípios básicos, e à tentativa de estabelecer regras universal mente válidas de

desenho, e que tivessem a solidez das teorias de Newton. Boullée preocupava-se com as

propriedades dos sólidos. Como escreveu no auge do Rococó, abordou primeiramente as

propriedades de corpos irregulares. A complexidade e o grande núm ero destes o confundiam:

“ Cansado da esterilidade surda dos corpos irregulares, passei para os regulares” .

Nestes, achou as qualidades fundamentais que, em conjunto, produziam a imagem de ordem

que procurava; ou seja, á regularidade, a sim etria e a variedade. Segundo Boullée, a

esfera reuniría todas as propriedades dos corpos regulares. Cada ponto de sua superfície é

eqüidistante do centro. Isso quer dizer que ao olhar uma esfera, de qualquer um de seus

pontos, a beleza e a perfeição de sua forma não serão alteradas por ilusões óticas. A esfera

apresenta ainda outras vantagens. A sua grandiosidade é aumentada pelo fato de revelar a

maior área de sua superfície ao nosso olhar. É a forma mais simples, pois não há qualquer

descontinuidade em sua superfície. É também a mais graciosa, já que todos os seus perfis

são perfeitamente regulares. Em outras palavras, Boullée considerava a esfera o espelho da

perfeição: perfeição por si mesma, não como símbolo da harmonia universal.

A esfera foi o elem ento dominante em m uitos de seus projetos, por exemplo, a ópera

projetada para o espaço entre as Tulherias e o Louvre. Boullée acreditava que a ópera

deveria ser um tem plo do bom-gosto, um templo do prazer, um templo de Vênus, um

lugar em que o charm e da mulher parisiense fosse apreciado. Boullée também considerava

o aspecto prático. Os teatros do século XVIII eram comumente destruídos por incêndios.

A ópera projetada por Boullée seria construída em pedra e tijolo. O grande peristilo que

circundaria o prédio o isolaria e, ao mesmo tempo, fornecería um abrigo para os em ­

pregados que estivessem aguardando o térm ino do espetáculo.

Alguns anos mais tarde Boullée desenhou um cenotáfio para Newton, de forma perfeitamente

esférica e em dimensões m onumentais que estivessem á altura de seu herói. À

noite, a esfera seria iluminada por uma esfera subsidiária, representando o sistema solar,

com uma série de lâmpadas em constante revolução: “ Utilizando teu divino sistema, ó

Newton, para erguer a lâmpada fúnebre que irá indicar teu túmulo, parece que me elevei

ao sublime” . À noite, o sistema solar do cenotáfio representaria o dia; e, durante o dia, a

noite. As estrelas seriam representadas por aberturas na abóbada, em forma de funil e que

canalizariam pequenos feixes da luz diurna. A enorme esfera não teria ornamentação:

Boullée apenas a circundou com ciprestes e flores. Como a enorme cabeça calva de algum

herói grego adornada por um laurel, o hemisfério, circundado pelas árvores e flores, reduzia

a dimensões insignificantes o visitante ou “ fiel” . A entrada era um túnel subterrâneo

em arco que conduzia ao sarcófago. O espectador seria literalmente detido no interior.

Isolado, só poderia olhar a imensão do céu. O túm ulo seria o único objeto concreto.

A imaginação do visitante estaria impossibilitada de se desviar através de associações ou

alusões, pasmo com a imensidão do espaço e com o contraste criado pela estreita passagem.

Boullée criou intencionalmente esse contraste brutal, pois acreditava que o objetivo


86 GÁVEA

do arquiteto não era o de criar ilusão ou fantasia, com o os arquitetos do Rococó, mas o de

projetar as leis inflexíveis da razão através da geom etria elem entar, enfatizada por violentos

contrastes.

Boullée construiu pouco. Seu aluno e discípulo predileto, Jacques Nicolas Louis

D urand, construiu menos ainda, mas foi mais influente do que o m estre. Viveu durante

um a outra crise na tendência intelectual, quando a energia neoclássica inicial começava a

declinar. A obsessão com a A ntigüidade greco-rom ana havia sido reduzida a um a fórmula

útil, porém vazia. D urante a m ^ior parte de sua vida, D urand ensinou arquitetura para engenheiros.

Suas palestras foram publicadas, e sua fama se espalhou. A rquitetos de toda a

Europa vinham ouvi-lo. Suas idéias passaram a ser a base de ensino da chamada A rquitetura

Acadêmica no m undo inteiro. Sua influência, agora despida das virtudes originais,

ainda chega até nós. Os fundam entos do ensino de D urand são poucos. A disciplina da arquitetura

consiste em duas partes: um a, o conhecim ento dos elem entos; a segunda, o

conhecim ento de composição. A parte analítica dos elem entos é simples: os diversos

m ateriais, seu uso e suas com binações nas formas com plexas de paredes, abóbadas e colunas.

Estas últimas, para D urand, representavam a ordem clássica, forneciam ao arquiteto

um a variedade útil de suportes de diversas dim ensões. N ão há mais a idéia de perfeição

presente nas formas gregas: m elhor não utilizá-las se não estão á vista, ou se estão

encobertas por decorações. M as o ponto principal das teorias de D urand se refere ao

conhecim ento de composição. Para ele, a com posição teria que seguir regras estritas. Em

prim eiro lugar, evidencia o objetivo de seus m étodos de composição, que são óbvios e do

dom ínio de todos, rem etendo à preocupação em erguer edifícios sólidos, estáveis e confortáveis.

M as teriam tam bém que ser econômicos. Q uase todos que escreveram sobre ar

quitetura dizem algo sem elhante. M as D urand não se refere apenas a construções baratas.

Q uando fala em economia, refere-se tam bém á sim etria, á regularidade e á simplicidade, o

que é fácil de entender e difícil de executar. Os elem entos de que trata na prim eira parte do

seu livro devem ser com postos de maneira a criar as form as m ais simples. O quadrado e o

círculo eram suas formas preferidas. O edifício deveria ser sim étrico, baseado num sistema

de eixos principal e secundário. O s elem entos de m enor im portância seria ordenados dentro

daquele sistema com a ajuda de um a grade. Este m étodo de planejam ento é ainda observado

pela maioria dos arquitetos. A lguns dos m elhores arquitetos contem porâneos

recorrem a princípios sim ilares aos.de D urand, m esm o que não explicitam ente. Para alguns,

a preferência por corpos geom étricos elem entares é um a espécie de estenografia

rápida e vazia; para outros é quase um a busca histérica de ordem nas nossas caóticas cidades.

Q ualquer que seja a razão, chegam os agora ao paroxism o da arquitetura racional de

D urand. A sua crença no prazer proporcionado pela com posição econômica de um edifício

é com partilhada pela maioria dos arquitetos, se não tam bém pela totalidade de seus clientes.

D iriam eles, assim com o diria D urand, que “ a decoração” e ‘‘a personalidade” são

sim plesm ente palavras para fazer o cliente gastar mais dinheiro.

Não era isso o que os grandes m estres neoclássicos pretendiam . Eles não podiam

prever as m onstruosidades que a arquitetura racional, que pretendia ser apenas e com ­

pletam ente racional, chegaria a produzir. Tem os agora um a arquitetura baseada na

geom etria simples e que acredita ser o prazer um luxo perigoso que hom ens sérios e razoáveis

devem evitar. M as, com o disse Goya, contem porâneo de D urand, quando a razão

dorm e, ela cria m onstros.

Este texto é uma versão editada de uma transmissão de televisão da BBC, durante a exposição neoclássica

em Londres, originalmente publicada em The Listener, em 9 de novembro de 1982. Se fosse escrever este

artigo agora eu talvez colocasse mais ênfase na diferença entre meus dois heróis.


A escultura no campo ampliado*

ROSALIND KRAUSS

Tradução: Elizabeth Carbone Baez

O único sinal que indica a presença da obra é uma suave colina, um a inchação na terra

em direção ao centro do terreno. Mais de perto pode-se ver a superfície grande e

quadrada do buraco e a extremidade da escada que se usa para penetrar nele. A obra

propriamente dita fica portanto abaixo do nível do solo: espécie de pátio, de túnel, fronteira

entre interior e exterior, estrutura delicada de estacas e vigas. P erim eters/P avillions/

Decoys de M ary Miss (1978) é certam ente uma escultura, ou mais precisamente, um

trabalho telúrico.

Nos últimos dez anos coisas realmente surpreendentes têm recebido a denominação

de escultura: corredores estreitos com m onitores de TV ao fundo; grandes fotografias

documentando cam inhadas campestres; espelhos dispostos em ângulos inusitados em

quartos comuns; linhas provisórias traçadas no deserto. Parece que nenhum a dessas tentativas,

bastante heterogêneas, poderia reivindicar o direito de explicar a categoria escul

tura. Isto é, a não ser que o conceito dessa categoria possa se tornar infinitamente maleável.

O processo critico que acompanhou a arte americana de pós-guerra colaborou para

com esse tipo de manipulação. Categorias com o escultura e pintura foram moldadas, esticadas

e torcidas por essa crítica, num a demonstração extraordinária de elasticidade,

evidenciando com o o significado de um term o cultural pode ser ampliado a ponto de incluir

quase tudo. Apesar do uso elástico de um term o como escultura ser abertamente

usado em nome da vanguarda estética — da ideologia do novo — sua mensagem latente é

aquela do historicismo. O novo é mais fácil de ser entendido quando visto como uma

evolução de formas do passado. O historicismo atua sobre o novo e o diferente para diminuir

a novidade e mitigar a diferença. A evocação do modelo da evolução permite uma

"modificação em nossa experiência, de modo que o homem de agora pode ser aceito como

diferente da criança que foi por ser visto sim ultaneam ente como sendo o mesmo, através

da ação imperceptível do telos. Ademais, nos confortamos com essa percepção de similitude,

com essa estratégia para reduzir tudo que nos é estranho, tanto no tempo como no

espaço, àquilo que já conhecemos e somos.

* Publicado em The Anti-Aesthetic — Essays on PostModern Culture , Washington, Bay Press, 1984

Titulo original: Sculpture in the Expanded Field.


88 GÁVEA

A critica perfilhou a escultura m inim alista logo que esta apareceu no horizonte da ex

periência estética nos anos 60 — um conjunto de pais co n stfu tív ísu s que podiam le y -

tim ãr. e portanto autenticar, o insólito dessés objetos Plástico? geometrfas iru-rtc*sx

produção industrial? — os fantasm as de Gabo. T atlin e Lissitzlcy poderíam ser convocados

- para atésTãr q üe nada disso erá reatm ente estranho. N ão im portava que o conteúdo de um

não tivesse nada a*ver com o conteúdo do outro e"fosse dtr Tato o seu oposto; ou que o

celulóide de GãbõTõsse sinal de lucidez e inteligência en q u anto que os plásticos coloridos

'de Judd falassem da gíria da Califórnia. N ão im portava que as formas construtivistas

pretendessem ser prova visual da lógica finuíável e da coerência de geometrias universais

è!TqtiaTTTõ''qüê õs m inim alistas, aparentem ente seus sim ilares, dem onstrassem ser algo

eventual, iiidican d õ llffn jn iv erso sustentado por cordas de aram e, cola, ou pelas contin

gênciás da força da gravidade e não pela M ente. Essas diferenças foram postas de lado pelo

furor historicista.

Com o correr do tem po ficou um pouco mais difícil m anter esta radicalização. A

medida em que os anos 60 se prolongavam pelos 70 e que se começou a considerar como

“ escultu ra": pilhas de lixo enfileiradas no chão, toras de sequóia serradas e jogadas na

galeria, toneladas de terra escavada do deserto ou cercas rodeadas de valas a palavra escultura

tornou-se cada vez mais difícil de ser pronunciada, mas nem tanto assim. O crítico/historiador.

através de um a prestidigitação mais abrangente, passou a construir suas

genealogias em termos de m ilênios e não de décadas. Stonehenge, as fileiras de N azca, as

quadras de esporte toltecas, os cem itérios de índios qualquer prova poderia ser arrolada

no tribunal para servir com o testem unha da conexão deste trabalho com a história, legi

tim ando. desta forma, seu status com o escultura. Por não serem exatam ente esculturas,

Stonehenge e as quadras de esporte toltecas são, neste caso, exemplos suspeitos de pre

cedente historicista. M as não im porta. O artificio pode tam bém ser usado em vários

trabalhos do inicio do século inspirados no prim itivism o C oluna Sem Fim de Brancusi

serve com o exemplo para se fazer a mediação entre o passado longínquo e o presente.

A o assim agirmos, contudo, o term o escultura, que pensávamos estar resguardando,

com eçorrT sê tornar obscuro. H avíam os pensado em utilizar um a categoria universal para

autenticar um grupo de singularidades; mas esta categoria, ao ser forçada a abranger cam

po tão heterogêneo, corre perigo de entrar em colapso. Logo, ao olharm os para o buraco

feito no solo, pensamos que sabem os e não sabemos o que seja escultura.

Entretanto, eu diria que sabem os m uito bem Q que é um a escultura. Uma das coisas

aliás que sabemos é que escultura n ã ó é um a categoria universal mas um a categoria ligada

^Thistórla. A categoria escultufa, assim com o qualquer o u tro ti|x>de convenção» tem su *

própria lógica interna, seu conjunto de regras, as quais, ainda que possam ser aplicadas a

uma variedade de situações, não estão em si próprias abertas a um a modificação extensa.

Parece que a lógica da escultura é inseparável da lógica do m onum ento. Graças a esta

Iogicã. um a escultura é um a representação com em orativa se situa em determ inado

local e fala de forma simbólica sobre o significado ou uso deste local. Um bom exem plo é a

estátua equestre de M arco A urélio: foi colocada no centro do Campidoglio para simbolizar

com sua presença a relação en tre a Roma antiga e im perial e a sede do governo da Roma

m oderna. Renascentista. O utro m onum ento utilizado com o m arco num lugar onde devem

ocorrer eventos específicos e significativos é a estátua C onversão de C onsta n tin o, de Ber

nini, colocada no sopé das escadas do Vaticano que ligam a Basílica de São Pedro ao coração

do governo papal. As esculturas funcionam portanto em relação á lógica de sua

representação e de seu papel com o marco; dai serem norm alm ente figurativas e verticais e

seus pedestais importantes por fazerem a mediação en tre o local onde se situam e o signo


A escultura no campo ampliado

89

que representam . Nada existe de muito misterioso sobre esta lógica; compreendida e

'utilizada, íoi fonte dé énõrme produção escultórica durante séculos de arte Ocidental.

A convenção, no entanto, não é imutável e houve um m om ento quando a lógica

começou a se esgarçar, N o final do século X IX presenciamos o desvanecimento da lógica

<3cT monumento. Aconteceu gradativamente. N este sentido, ocorre-nos dois casos que

trazem, ambos, a marca da transitoriedade. T anto Portas do Inferno como a estátua de

BatZâr, de Rodin, foram concebidas como m onum entos. As portas foram encomendadas

em 1880 para serem instaladas num museu de artes decorativas; a estátua foi encomendada

em 1891 para hom enagear o gênio literário francês e deveria ser colocada em determinado

local em Paris. O indício do fracasso dessas duas obras como m onum ento — cujas en

comendas eventualm ente falharam — não é apenas o fato de existirem inúmeras versões

em vários museus de diversos países, mas tam bém a inexistência de um a versão nos locais

originalmente planejados para recebê-las. Seus fracassos também estão entalhados nas

próprias superfícies: as portas foram desbastadas excessivamente e recobertas a ponto de se

tornarem inoperantes; Balzac foi executado com tal grau de subjetividade que o próprio

Rodin, conforme suas cartas atestam, não acreditava que fosse aceito.

Eu diria que com esses dois projetos escultóricos cruzamos o limiar da lógica do

monumento e entramos no espaço daquilo que pode ria ser chamado de sua condição

negativa — ausência do local fixo ou de abrigo, perda absoluta de lugar. Ou seja, entramos

ncTmodernismo porque é a produção escultórica do período modernista que vai operar em

relação a essa perda de local, produzindo o m onum ento como uma abstração, como um

TnarctTou base. funcionalmente sem lugar e extrem am ente auto-referencialT

Essas duas características da escultura m odernista nos revelam seu status e, portanto,

a condição essonciálmente mutável ele seu significado e função. A o transformar a base

num fetiche, a escultura absorve o pedestal para si e retira-o do seu lugar; e através da

representação de seus próprios materiais ou do processo de sua construção^ expõé sua

própria autonomia. A arte de Brancusi é urna demonstração extraordinária de- como isto

' ãcòTiteceTNum trabalho como o G alo, a base se" torna ò gerador morfolôgico da parte

figurativa do objeto; nas Caridtides e Coluna Sem F im , a escultura é a base, enquanto que

cm Adão e Fva a escultura está numa relação de reciprocidade com sua base. Logo, a base

pode ser definida com o essencialmente móvel, marco de um trabalho sem lugar fixo, integrado

erri cada fibra da escultura. Outró testem unho da perda de local é a intenção de

Brancusi em representar partes do corpo com o fragmentos que tendem a uma abstração

radical; neste caso, local é compreendido com o o resto do corpo, o suporte do esqueleto

que abrigaria uma das cabeças de bronze ou de mármore.

Ao se tornar condição negativa do m onum ento, a escultura modernista conseguiu

uma espécie de espaçoldéál para explorar, espaço este excluído do projeto de répresentaçãõ

temporal eêspacial, filão rico e novo que poderia ser explorado com sucesso. O filão era

porém lim itad o ^ ^ ab erto no início déste século, esgotou-se por volta de 1950, quando

começou a ser sentido; cada vez mais^ como puro negativismo. Neste ponto a escultura

modernista surgiu com o uma espécie de buraco negro no espaço da consciência, algo cujo

conteúdo positivo tornou-se progressivamente mais difícil de ser definido e que só poderia

ser localizado em term os daquilo que não era. Nos anos 50. Barnett Newman disse: “ Escultura

é aquilo com que você se depara quando se afasta para ver uma pintura. " A res

peito dos trabalhos encontrados no início dos anos 60, seria mais apropriado dizer que a escultura

estava na categoria de terra-de-ninguém: era tudo aquilo que estava sobre ou em

frente a um prédio que não era prédio, ou estava na paisagem que não era paisagem.

Os exemplos mais cristalinos do inicio dos anos 60 que nos ocorrem , são ambos de


90 GÁVEA

Robert M orris. Um deles foi exposto em 1964 na G reen Gallery: dígitos quase-arquiteturais

cuja condição como escultura sê reduz sim plesm ente a ser aquilo que está no quarto

que não é realmente quarto; o outro trabalho são caixas espelhadas expostas ao ar livre —

caixas cujas formas diferem do cenário onde se encontram som ente porque, apesar da im

pressão visual de continuidade com relação á gram a e ás árvores, não fazem parte da

paisagem.

Neste sentido, a escultura assum iu sua total condição de lógica inversa para se tornar

purá“nêgãfiví3ãdê7 ou seja. a combinação de exclusões. Poderia-se dizer que a escultura

deixou de ser algo “positivo para se transform ar na categoria resultante da soma da nãopaisagem

com a ndo-arquitetura O limite da escultura m odernista, a soma do nem /ne-

TtfTüm podem ser representados em forma de diagram a:

não-paisagem não-arquitetura

“ /

/

/

\ /

/

escultura

O fato de ter a escultura se tornado uma espécie de ausência ontológica, a combinação

de exclusões. a soma do n em /n en h u m , não significa que os term os que a construiram —

não-paisagem e ndo-arquitetura — deixassem de possuir certo interesse. Isto ocorre em

função desses termos expressarem um a oposição rigorosa entre o construído e o não-cons

truído. o cultural e o natural. entre os quais a produção escultórica parecia estar suspensa.

A partir do final dos anos 60 a produção dos escultores com eçou, gradativam ente, a focalizar

sua atenção nos limites externos desses term os de exclusão. O ra, se esses termos são

a expressão de uma oposição lógica colocada com o um par de negativos, podem ser trans

formados, através de uma simples inversão, nos m esm os pólos antagônicos expressos de

forma positiva. Ou seja, de acordo com a lógica de um certo tipo de expansão, a ndo-arquitetura

é simplesmente um a outra maneira de expressar o term o paisagem , e nãopaisagem

é simplesmente arquitetura. A expansão â qual me refiro é chamada grupo

Klein quando empregada m atem aticam ente e tem várias outras denominações, entre elas

grupo Piaget, quando usada por estruturalistas envolvidos nas operações de mapeamento

na área das ciências hum anas. A través dessa expansão lógica, um conjunto de binários é

transform ado num campo quaternário que sim ultaneam ente tanto espelha com o abre a

oposição original. Torna-se um cam po logicamente am pliado, que se assemelha ao dia

grama abaixo:

paisagem

/

/ \

/

/ \

\

/ \

• •

• • • •

arquitetura...........complexo

f « s

\ *

\

• /

não-paisagem ♦- \ ✓ não-arquitetura .......... neutro

\

\ /

/

escultura


A escultura no campo ampliado

91

As dimensões dessa estrutura podem ser analisadas da seguinte maneira: 1) existem

dois tipos de relações de pura contradição que são denominados eixos (posteriormente

diferenciados em eixo complexo e eixo neutro), indicados pelas setas continuas (ver o

diagrama); 2) existem duas relações de contradição expressas como involução, chamados

de esquemas, indicadas pelas setas duplas; e 3) existem duas relações de envolvimento,

denominadas deixes, indicadas pelas setas partidas. (1)

Apesar de a escultura poder ser reduzida àquilo que no grupo Klein é o termo neutro

da não-paisagem mais a não-arquitetura, não existem motivos para não se imaginar um

termo oposto — que tanto poderia ser paisagem como arquitetura — denominado com ­

plexo dentro deste esquema. Mas pensar o com plexo é admitir no campo da arte dois termos

anteriormente a ele vetados: paisagem e arquitetura — termos estes que poderíam

servir para definir o escultórico (como começaram a fazer no modernismo) somente na sua

condição negativa ou neutra. Por motivos ideológicos o complexo permaneceu excluído

daquilo que poderia ser denominado a closura* da arte pós-Renascentista. Nossa cultura

não podia pensar anteriorm ente sobre o complexo, apesar de outras culturas terem podido

fazê-lo com maior facilidade. Labirintos e trilhas são ao m esm o tem po paisagem e arquitetura;

jardins japoneses são ao m esm o tem po paisagem e arquitetura; os campos destinados

aos rituais e às procissões das antigas civilizações eram, indiscutivelmente, neste

sentido, os ocupantes do complexo. Isto não quer dizer que eram uma forma prematura ou

degenerada, ou um a variante da escultura. Faziam sim parte de um universo ou espaço

cultural, do qual a escultura era simplesmente uma outra parte e não a mesma coisa, como

desejaria a nossa mentalidade historicista. Suas finalidade e deleite residem justamente em

serem opostos e diferentes.

O campo ampliado é portanto gerado pela problematização do conjunto de oposições,

entre as quais está suspensa a categoríam odérnista escultura. Quando isto acontece e

'quando conseguimos nos situar dentro dessa expansão, surgem, logicamente, três outras

categorias facilmente previstas, todas elas um a condição do campo propriamente dito e

liinfium ã delas assimilável pela escultura. Pois, como vemos, escultura não é mais apenas

um único termo na periferia de um campo que inclui outras possibilidades estruturadas de

formas diferentes. Ganha-se, assim, “ permissão” para pensar essas outras formas. Nosso

diagrama é, por conseguinte, feito da seguinte maneira:

local-construção

✓ N

/ \

paisagem «_£.

-X arquitetura..................... complexo

4 \

locais demarcados (

\ estruturas axiomáticas

não-paisagem ~T* não-arquitetura neutro

\ ✓

escultura

* closure — termo utilizado pela psicologia da Gestalt para descrever os processos através dos quais os objetos

da percepção, lembranças, ações, conseguem estabilidade, isto ó, o fechamento subjetivo de brechas,

ou acabamento de formas incompletas para se constituírem em um todo. (N. T .)


92 GÁVEA

Parece bastante claro que a permissão (ou pressão) para pensar a ampliação desse

campo foi sentida por vários artistas mais ou m enos ao m esm o tem po, entre os anos de

1968 e 1970. Robert M orris, Robert SmitKson, M ichael H eizer, Richard Serra, W alter de

M aria. Robert Irwin. Sol LeW itt. Bruce N aum an, um depois do outro, assum iram uma

posição cujas condições lógicas já não podem ser descritas com o m odernistas. Precisamos

recorrer a um outro term o para denom inar essa ru p tu ra histórica e a transformação no

campo cultural que ela caracteriza. Pós-m odernism o é o term o já em uso em outras áreas

da critica. Parece não haver m otivos para não usá-lo.

Q ualquer que seja o term o usado, a evidência já existe. Por volta de 1970, Robert

Sm ithson. com Partially B u rie d W oodshed, na K ent State U niversity, em O hio, começou

a ocupar o eixo do complexo que, para facilitar a referência, cham o de local de construção.

Em 1971. com seu observatório construído em m adeira e gram a, na H olanda, Robert

M orris se uniu a Smithson. Desde então m uitos outros artistas, como Robert Irwin. Alice

Aycock. John M ason. M ichael H eizer, M ary M iss e C harles Simonds, têm trabalhado

dentro deste novo conjunto de possibilidades.

A combinação de paisagem e ndo-paisagem com eçou igualm ente a ser explorada no

final dos anos 60. O term o locais dem arcados é usado tan to para identificar trabalhos como

Spiral Jetty (1970), de Sm ithson, e D ouble N e g a tiv e (1969), de H eizer, com o para des

crever alguns trabalhos dos anos 70 feitos por Serra, M orris, Carl A ndre, IX*nis Oppen

heim . N ancy H olt, G eorge T rakis e m uitos outros. A lém da m anipulação fisica dos

locais, este term o tam bém se aplica a outras formas de dem arcação. Essas formas podem

operar através da aplicação de marcas não p e rm a n e n te s com o, por exemplo, D epressions.

de H eizer, T im e L in es. de O ppenheim . M ile L o n g D ra w in g , de IX* M aria, ou através da

fotografia. M irror D isplacem ents in the Y u c a ta n , de Sm ithson, foram provavelm ente os

prim eiros exemplos conhecidos, mas desde essa época o trabalho de Richard Long e

H am ish Fulton tem focalizado a experiência fotográfica de dem arcar. R u n in g Fence, de

C hristo. pode ser considerada um a forma não perm anente, fotográfica c política de demar

car um local.

Os primeiros artistas que exploraram as possibilidades da arquitetura mais não ar

quitetu ra foram Robert Irw in, Sol LeW itt, Bruce N aum an, Richard Serra e C hristo. Em

todas essas estruturas axiom dticas existe um a espécie de intervenção no espaço real dajir

'g lh ie iu i'3 7 ás "vezes através do déSêntiõ~Oü. c o m o n ó strab a lh o s recentes de M orris, através

dcTuso do espelho. Da m esm a forma que a categoria do local dem arcado’ a fotografia pode

‘ seí Utilizada-para esta finalidade; penso aqui nos corredores de videos de N aum an. No entanto.

qualquer que seja o meio de expressão em pregado, a possibilidade explorada nesta

categoria é um processo de m apeam ento das características axiomáticas da experiência ar

quitetural — as condições abstratas de abertura e closura — na realidade de um espaço

dado.

A ampliação do campo que caracteriza este territó rio do pós m odernism o possui dois

aspecTõs já implícitos na descrição acima. Um deles diz respeito á prática dos próprios ar

11st as. o outro, a questão tio m eio de expressãc>. Em am bos, as ligações tias condições do

m odernism o sofreram um a ruptura logicam ente determ inada.

Com relação a prática individual, é fácil perceber que m uitos dos artistas em questão

se viram ocupando, sucessivam ente, diferentes lugares den tro do campo ampliado. Apesar

de a experiência desse cam po sugerir que a recolocação contínua de energia é totalmente

lógica, a crítica de arte, ainda servil ao sistem a m odernista, tem duvidado desse movimento,

chamando-o de eclético. A suspeita de um a trajetória artística que se move continua e

esordenadam ente além da área da escultura deriva obviam ente da demanda modernista de


A escultura no campo ampliado

93

pureza e separação dos vários meios de expressão (e portanto a especialização necessária de

um artista dentro de um determinado meio). Entretanto, o que parece ser eclético sob um

ponto de vista, pode ser concebido como rigorosãmériíé lógico de outro. Isto porque, no

pós-modernismo, a praxis não é definida em relação a um determinado meio de expressão

— escultura — mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos

culturais para o qual vários meios fotografia, livros, linhas em paredes, espelhos ou escultura

propriam ente dita — possam ser usados.

Portanto, o campo estabelece tanto um conjunto ampliado, porém finito, de posições

relacionadas para determ inado artista ocupar e explorar, como um a organização de trabalho

que não é ditada pelas condições de determ inado meio de expressão. Fica óbvio, a

partir da estrutura acima exposta, que a lógica do espaço da praxis pós-modernista já não é

organizada em torno da definição de um determ inado meio de expressão, tomando-se por

base o material ou a percepção deste material, mas sim através do universo de termos sentidos

como estando em oposição no âmbito cultural. (O espaço pós-modernista da pintura

envolvería, obviam ente, uma expansão sim ilar em torno de um conjunto diferente de termos

do binômio arquitetura/paisagem — um conjunto que provavelmente faria oposição

ao binômio unicidade/reprodutibilidade.) Conseqüentem ente, dentro de qualquer uma das

posições geradas por um determinado espaço lógico, vários meios diferentes de expressão

poderão ser utilizados. Ocorre também que qualquer artista pode vir a ocupar, sucessivamente,

qualquer um a das posições. Da mesma forma, na posição limitada da própria escultura,

a organização e conteúdo de um trabalho marcante irá refletir a condição do. espaço

lógico. Refiro-me à escultura de Joel Shapiro a qual, apesar de se inserir no termo

neutro, está envolvida no estabelecimento de imagens de arquitetura dentro de campos

(paisagens) relativam ente vastos de espaço. (Estas considerações também se aplicam,

evidentemente, a outros trabalhos — por exemplo de Charles Simonds ou Ann e Patrick

Poirier.)

Tenho insistido que o campo ampliado do pós-modernismo acontece num momento

específico da história recente da arte. É um evento histórico com um a estrutura determinante.

Parece-me extrem am ente im portante mapear esta estrutura e é isto o que comecei

a fazer aqui. M as por se tratar de um assunto de história, é também importante explorar

um conjunto mais profundo de questões que abrangem algo mais que o mapeamento

e que envolvem o problema da explicação. Estas questões se referem à causa seminal: as

condições de possibilidades que proporcionaram a mudança para o pós-modernismo, bem

como as determ inantes culturais da oposição através da qual um determinado campo é estruturado.

C ertam ente esta abordagem parapensar a história da forma difere das elaboradas

árvores genealógicas construídas pela crítica historicista. Pressupõe a aceitação de rupturas

definitivas e a possibilidade de olhar para o processo histórico de um ponto de vista da

estrutura lógica.

R E F E R Ê N C IA

1) Para uma discussão do grupo Klein, ver “On the Meaning of the Word ‘Structure’ in Mathematics” ,

de Marc Barbut, editado por Michael Lane em Introduction to Structuralism (New York, Basic Books,

1970); para uma utilização do grupo Piaget, ver “ The Interaction of Semiotic Constraints” , de A.J.

Greimas e F. Rastier, YaJe French Studies, n? 41 (1968), pp. 86-105.


Oito teses a favor (ou contra?)

uma semiologia da pintura*

Hubert Damisch

Tradução: Anamaria Skinner

Existe uma verdade da pintura ou, conforme o enunciado voluntariam ente ambíguo

de Cézanne “ Devo-lhes um a verdade em pintura e a d ire i" (1), existe uma verdade em

pintura? E essa verdade, verdade da pintura, verdade em p in tu ra, cabe ao semiólogo, se

não dizê-la (talvez ela não possa ser dita fora da pintura?), pelo menos inscrevê-la no registro

teórico, indicar seu local de em ergência, definir suas condições de enunciação com

referência ao objeto “ P in tu ra” , comparável ao modo com o ele trabalha, particularm ente,

e conform e suas possibilidades, para constituí-lo en quanto dom ínio, campo ou modo específico

de produção de um sentido, ele próprio especifico? A lém de não dissociável de

uma interrogação mais fundam ental sobre a “ necessidade” da arte (necessidade que Iouri

Lotman dem onstrou estar ligada á estrutura m esma do texto artístico, à sua organização

interna (2); a questão procede quando se trata de apresentar algumas observações, de

caráter bem geral, a respeito de um a semiologia da p in tu ra, considerada possível, em bora

uma parte significativa do trabalho, da reflexão, da análise, da critica semiológica aplicada

às produções das artes visuais, contrariam ente a isso, possa parecer propensa a im pedir o

seu avanço. O que levaria o sem iólogo, na m elhor das hipóteses, a reconduzir a suas determinações

ideológicas profundas, a exigência de verdade que aparece, de tempos a tempos,

no campo pictural, sob determ inadas formas e em níveis variados (sob a forma, por exem ­

plo, dentre os iniciadores do R enascim ento, da adesão ao m odelo óptico da visão; mas

tam bém , a um outro nível, o da sensação colorida e colora n te, signifiafcfo e significante,

por dotar a pintura, a do próprio C ézanne, de um valor de denotação no sentido de Frege).

E im portante ver (ver e não som ente com preender) que esta questão da verdade em pintura

(que é, ao mesmo tem po, questão da verdade na p intura e questão da verdade da

efígie, da verdade em efígie) está no centro do debate que o projeto enseja hoje em dia, excetuando

alguns, e m uito raros, desenvolvim entos de um a sem iologia das artes visuais, e,

em prim eiro lugar (essa ordem de prioridade, em sua dupla determ inação lógica e ideológica,

causa, ela própria, problem a) de um a sem iologia da pin tu ra, e do modo com o essa

confere a este debate um alcance que excede largam ente os lim ites do campo especializado

em cuja m arca se anuncia.

1

Conferência apresentada no 1? Congresso Internacional de Semiótica, M ilâo, 2/6 de junho 1974


Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura

95

O projeto de estudar a pintura como um sistema de signos há de responder, primeiramente,

á preocupação em alcançar, pela definição simultânea do objeto de uma

semiologia e dos procedim entos de análise que a constituíram , uma verdade de ordem

cientifica que diga respeito á produção pictural. N um a perspectiva saussuriana, e tomando

como modelo o “ molde linguístico” , esse projeto leva, em sua formulação inicial, a introduzir

no todo heterogêneo dos fatos de “ p in tu ra” (heterogêno no sentido que esses

fatos pertencem aos mais diversos domínios de pesquisa: cosmetologia, química das cores,

óptica geométrica e /o u fisiológica, teoria das proporções, psicologia da percepção, mas

também mitologia com parada, simbólica geral, iconografias particulares etc...) um

primeiro recorte, a partir do qual esse conjunto heteróclito se deixaria pensar em sua

coerência: assim com o a linguagem, uma vez feita a separação entre a massa dos fatos de

fala, e o registro da língua, do sistema ao qual esses fatos deveriam estar reportados como

norma. Qualquer form a de que se revista a oposição assim marcada entre os dois registros,

e por mais sofisticado que possa ser o enunciado — “ a arte” pensada como um desvio consequente

em relação à norm a, tida na conta de categoria semiótica (D. Uspenskij); a “ língua”

da pintura fragm entada, disseminada num a multiplicidade de sistemas parciais, de

códigos de “ invenção e de leitura (P. Francastel); o sistema do quadro distinto das estruturas

da figuração e o objeto “ P intura” vislumbrado através, e a partir do texto por ele

responsável e que o articula (J. L. Schefer); tratar-se-á sempre de traçar uma superfície de

divagem , entre a perfonutnce que a obra representa ( “ a obra-prima” ), e a rede, ou o sistema

de competência que implica seu deciframento, sua interpretação; e isso no momento

exato em que se postula que a “ arte” não se dá jamais separadamente das obras singulares,

que sua significância não rem ete a código algum , nem às convenções recebidas, e que as

relações significantes da “ linguagem artística” ficam por ser descobertas no interior de

uma composição dada (Benveniste, e no mesm o sentido Shefer: “ Só há sistema do quadro”

). A questão não m uda de feição: permanece a da natureza, do estatuto, da articulação

dos “ signos” nos quais se informa e de que se orienta a leitura, quer esta tente, ou

não, constitui-los, na ordem declarativa, em sistema.

No enundado deste projeto — estudar a pintura, as obras da pintura (segundo a forma,

ela também am bigua, de Francastel) com o um sistema de signos — o grifo recai

sucessivamente em sistem a e signos, para deixar bem claro (a) que se a pintura se deixa

analisar em term os de sistem a (s), sistema não deve ser entendido necessariamente como

sistema de signos e, (b) que se a problemática do signo pode revelar-se pertinente na

matéria, em nível e lim ites próprios, é talvez na mediada que a noção de signo se deixa

isolar da de sistema (e reciprocamente). A não ser, talvez, que trabalhemos para infundir

uma outra noção do signo, uma outra noção do sistema, diferentes daquelas que toda a

tradição do O cidente terá regularm ente associado á possibilidade de decompor um conjunto,

uma estrutura articulada, em alementos discretos, em unidades identificáveis como

tais.

2

Em um registro que não apresenta, dessa vez, nada de teórico, mas que não deixa de

corresponder á prática de fato do historiador ou do “ connaisseur” ; admitir-se-á que não

existe uma leitura, nem mesmo um a primeira apreensão, de um afresco, de um conjunto

3


96 GÁVEA

decorativo etc... que não se apóie em um determ inado núm ero de traços, m arcas ou

elem entos discretos, que se apresentam com o unidades perceptivas (ou im agentes ’),

eventualm ente combinadas em sintagm as, im ediatam ente dados com o tais, e dentre os

quais, alguns, por sua recorrência em uma série de obras dada, ordenam -se em forma de

repertório, mais ou menos rico, o qual será tom ado com o característico de um artista, de

um a escola, de uma época, ou mesm o de um a cultura. Todos traços ou elem entos, ou

mesm o sintagm as, que não são certam ente da m esm a ordem ou do mesmo nível, como

tam bém não são em núm ero finito: sem elhante ás figuras, representativas ou não, que se

dão a conhecer no campo pictural, os motivos, atributos ou marcas (atitudes, gestos, expressões,

até mesmo cores, tratam ento etc.) de que o discurso iconográfico se alim enta,

assim com o os índices que requerem a atenção do cortnaisseur, em busca de atribuições

exatas (e lembrar-se-á aqui da analogia, estabelecida por Freud, entre o método do connoisseurship

tal como o havia definido Giovanni M orelli, e o do analista que, com o o con

naiseu r. está fadado a trabalhar com dados irrisórios, m arginais; algo, dizia Freud, como a

recusa da observação (3), incluindo os traçados, pinceladas, impressões que parecem guardar

a titulo de índice algum a coisa do trabalho de que a obra é o produto. Sem contar as

letras, núm eros, inscrições, filactérios, legendas, títulos, assinaturas etc, que a obra exibe,

dada a circunstância, nos seus lim ites próprios ou na sua periferia, e que produzem no

contexto mesmo de uma apreensão, que se queria estritam en te sensível, “ estética” , um

efeito especifico de leitura, ou parafraseando Paul Klee, um a prim eira “ aquiescência para

com o signo": a coexistência nos limites de um a m esm a com posição, ou em sua proximidade

imediata, de elem entos de natureza icônica ou indiciai, e de dados propriam ente

simbólicos (quando a imagem não se apresenta ligada explicitam ente ao texto, dada ou não

in presentia que ela ilustra: ver a esse respeito o trabalho recente de M eyer Schapiro sobre

a imagem ligada à palavra, th e w o rd -b o u n d im a g e (4) deixa bastante claro que, se podemos

de acordo com Benveniste considerar que é a língua — entenda-se a língua “ n atu ral” —

que confere ao conjunto “ p in tu ra ” (ou “ quadro” ), inform ando-o sobre a relação de sig

no. a qualidade de sistema significante (5); essa relação se dá anteriorm ente a toda leitura,

a toda interpretação, no interior m esm o desse conjunto, ou, pelo m enos, em seu espaço de

definição. Resta saber se os elem entos propriam ente perceptivos, formas e /o u figuras,

podem a rigor ser qualificados com o unidades, no sentido sem iótico, fora, ou feita a abstração.

da operação que os declara; ou ainda nos term os de Peirce, se o representam en tem

ou não a qualidade de signo, independentem ente do interpretante verbal que ele determina.

Q ualquer sistema significante deve definir-se pelo m odo que lhe é próprio de

significar. Tam bém é verdade que ao presum ir, com o faz Benveniste, que seria preciso

por força desse sistema definir as unidades que ele m obiliza para produzir o “ sentido” e

especificar a natureza do sentido produzido “ (6), precipita-se a conclusão de que a língua

deve ser reconhecida com o a interpretante de todos os sistem as semióticos (e, logo, do

próprio sistem a “ P intura” , que será desde entào caracterizado na term inologia dos

semióticos soviéticos como sistem a modelizante secundário” ), supondo-se que nenhum

sistem a dispõe de uma língua na qual possa classificar e interpretar segundo as distinções

sem ióticas, e que som ente a língua pode, em principio, classificar e interpretar tudo,

inclusive ela própria (7). N o que diz respeito ás unidades mobilizadas para produzir o

sentido, o sistema P in tu ra” não dispõe, sem dúvida, de um a língua que lhe permitiría

4


Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura

97

definir aquelas a que recorre. JEsse sistema só pode produzi-las, designá-las, mostrá-las,

exibi-las por meio dos artifícios e procedimentos de espaçamento, posicionamento, enquadramento,

iluminação, tratam ento, deformação etc, que o caracterizam. Todos esses

artifícios não copiam a ordem discursiva e nem necessariamente a ordem icônica, em sentido

restrito, na medida em que esta última se basearia na m im esis. E não existe, desde a forma

de apresentação, a própria forma im ageante (sem que forçosamente o term o imagem

seja tomado em sua conotação estritam ente m im é tic a ), na medida em que esta se regularia,

por exemplo, pelo modelo perspectivo ou que ela concentraria, como em M ondrian

ou na m inim al a rt, um conjunto finito de princípios ou de elementos a partir dos quais

seríamos levados a afirm ar com W ittgenstein que esta só pode ser, se não reproduzida,

descrita, representada, pelo menos produzida, m ostrada, exibida, pelos meios que são os

da "imagem mesma (8). Para não extrapolar a questão das unidades (pois a da Farm der

Abbildung demandaria desenvolvimentos que não caberíam aqui), observa-se-á ainda que,

se uma pintura se deixa decifrar a partir de um a multiplicidade de códigos, se ela comporta

também vários níveis de leitura, a possibilidade de que ela apresente desvios e também

remissões para um código, ou de um nível para outro, a capacidade decorrente daí para

uma unidade dada, de assum ir, segundo os níveis, funções heterogêneas, ou até contraditórias,

introduzem no “ sistem a" (no sentido mais vago, por enquanto) a possibilidade

de um jogo de interpretância, se não declarativa, m onsírativa (no sentido que Lacan

pôde dizer que, no sonho, “ isso m ostra"), de um nível ou de um código a outro, como se

observam pelas variações que suscita um m esm o motivo formal ou iconográfico, e que

levam a estabelecer alternativam ente, ou até sim ultaneam ente para um mesmo elemento

(ex: a “ nuvem " na tradição figurativa do Ocidente, a coluna de tantas Anunciações e

Natividades, mas tam bém as toalhas estendidas de Cézanne ou os “ quadrados" de M ondrian)

as funções (plásticas, construtivas, sem ânticas, sintáticas, simbólicas, decorativas,

estilísticas etc) de nível diferente (o problema sendo, então, de saber se é razoável pretender

produzir o sistem a dessas funções, e isso sem prejulgar a coerência dos níveis, o seu

grau de sistematicidade). Seria conveniente ainda reservar-lhes um lugar, de acordo com

Meyer Schapiro, ao lado das unidades im ediatamente identificáveis como tais, dos elementos

não m im éticos, não diretamente signaléticos, e poder-se-ia dizer, nào-discretos da

mensagem icônica, todos elem entos — a forma do suporte, sua moldura, as propriedades

do fundo como campo, as relações de escala e orientação, de posicionamento, de espaçamento,

os com ponentes da substância icônica enquanto tal, pontos, linhas, superfícies,

manchas etc (9), e principalm ente a cor que, na afirmação de Benveniste (esta afirmação,

que traz a marca de um logocentrismo disfarçado, deixa de ser aceitável para um pensamento

que trabalha para infundir uma outra noção de signo, que não a estritam ente linguística),

considerada em si mesma, não se apresentaria, de forma alguma, na qualidade de

signo, nem mesmo na de unidade. Todos elem entos que desempenham na pintura representativa

um papel decisivo, um papel integrante (no sentido linguístico do termo),

mas que a pintura m oderna a partir de Cézanne e Seurat esforça-se, pelo contrário, para

dissociar de sua função im a geante, para exibi-las, produzi-las em seu valor de expressão,

de significância própria, autônoma: a ponto de que a “ não-figuração" — longe de aparecer

como um caso particular, como um m om ento limite na história da pintura, e que não

poderia ser pensada senão a partir da estrutura representativa, conforme esta se constituiu

partindo da posição fixada para o sujeito no dispositivo perspectivo levaria, pelo contrário,

se a tom arm os como se deve, i.e., a sério, a submeter, pela “ descoberta" do

“ procedim ento" (com o queriam os Formalistas), e pela substituição do voltar-se para a

Natureza pela própria expressão pictural, o sistem a “ P intura" a um deslocamento radical


98 GÁVEA

na ordem da significância, até subtrai-lo, pelo menos em parte, á relação de interpretância,

em que o discurso semiológico — talvez seja essa um a de suas funções ideológicas mais

im portantes — pretende, pelo contrário, fechá-lo.

À questão: o sistem a “ P in tu ra ” se deixa red u zir a unidades? responder-se-á, pois,

pela negativa. Ficando por determ inar se as unidades que esse sistema m obiliza, de forma

bem visível, e que representam talvez a recaída, ou a escapada (como se vê quando uma

organização perspectiva se deixa ler a partir de algum índice ou “ flexão” figurativa: um

fragm ento arquitetônico apresentado de forma reduzida, a dim inuição a que são submetidas

as figuras etc), se essas unidades são signos, e se a noção mesma de signo, em sua

acepção tradicional, é pertinente no contexto de um sistem a que não se deixa — salvo exceções

sem pre significantes, quando não polêmicas, táticas e até mesmo estratégicas, e

cujo exemplo a arte m oderna não é a única a utilizar — reconduzir a um código digital;

tanto mais que este torna obrigatório abrir espaço ao lado dos elementos im ediatam ente

identificáveis no plano perceptivo, para processos figurativos irredutíveis a um corpus de

regras que deveríam presidir a associação e a com binação das unidades em núm ero finito e

de m esm o nível. Se a noção de signo pode revelar-se cabível no dom ínio “ P in tu ra ” , será a

partir de um corte diferente deste até aqui referido. N o “ m olde” estritam ente saussuriano,

que impõe distinguir en tre a ordem do sistem a (a com petência) e a das produções (a

p erfo m a n ce), uma articulação deve ser substituída; esta obterá sua pertinência da distinção

entre os níveis de análise (a questão vem a ser, talvez, a da relação entre duas “ perfomances”

, a da obra e a da interpretação — da maneira com o esta relação se inscreve em um espaço

com um , mas não idêntico, de “ com petência” ). Deixando de lado provisoriam ente o

problem a da articulação propriam ente figurativa ou plástica, suporemos que se o conceito

de signo pode ganhar valor operatório no dom ínio “ P in tu ra ” , é prim eiram ente (e talvez

exclusivam ente) com referência a um nível, a um m odo de significância que não é aquele

— sem iótico — em que as unidades perceptivas formas e /o u figuras, são reconhecidas

com o tais (e isso se dá m esm o se esse reconhecim ento passa pelo desvio de um a “ declaração”

, de um interpretante explicito), mas àquele sem ântico — em que a im agem , por

requerer um a leitura, term ina por assum ir um estatuto propriam ente discursivo, um a vez

que, para falar como os iconólogos, ela é “ feita para significar um a coisa diferente daquela

que o olho vê” . A teoria dos níveis desenvolvida por Panofsky, ao mesmo tem po que

reitera o corte dado em seu tem po por Cesare Ripa, en tre a ordem do visível e a do lisível,

conduz também a opor o universo dos m o tiv o s, dos objetos ou dos acontecim entos figurados

por linhas, cores e volum es, ao universo das im a g e n s, dos motivos reconhecidos

com o portadores de um a significação secundária ou convencional, distante de sua significação

prim ária, “ natu ral” , e que se prestam â com binação â maneira da “ histó ria” , da

fábula ou da alegoria, ao m esm o tem po que a toda espécie de desdobramentos figurativos

(a im agem de Isaac sendo tom ada por “ figura” da im agem do Cristo que ela pré-tigura

etc): seja um universo de um discurso cuja imagem no sentido que definimos constituiría

a unidade mínima, m esm o quando se articula declarativam ente como um enunciado

( “ um a personagem feminina segurando um pêssego com a m ão direita” , devendo ser lida,

de acordo com o exemplo citado por Panofsky, com o um a personificação da “ verdade” ).

Unidade no registro sem ântico onde opera a iconologia, que provavelm ente deve ser

recebida com o signo, já que se lhe pode associar um “ significante” (o m otivo que se

5


Oito Uses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura

99

“ vê”) e um “ significado” (o conceito ou enunciado que se com preende), e que ela se

deixa identificar na qualidade de componente e eventual mente de integrante (no sentido

em que Meyer Schapiro mostrou em um famoso estudo (10), que a imagem de São José estendendo

uma armadilha á serpente “integrava ” a Anunciação do S en h o r de Flemalle, na

sua diferença com referência às representações tradicionais desse acontecimento) de uma

unidade de nível superior, aquela que constitui o quadro. Unidade, signo m in im u m de um

“ discurso de im agens” (ragionamenti d 'im a g in i, como diziam ainda os iconólogos)

através da qual a pintura se posiciona para representar, encenar, significar, com a ajuda de

meios estritamente representativos, um certo núm ero de noções, de relações e até mesmo

de proposições abstratas. E se os trabalhos de Panofsky sobre o simbolismo na pintura

flamenga ratificam de maneira impressionante as análises de Freud sobre o trabalho do

sonho (essas também referidas, da forma mais explícita possível, ao trabalho da pintura), o

encontro nada tem de fortuito: basta aceitar que a simbólica dos Van Eyck, como a do

sonho, segundo Benveniste (11), demonstram um a verdadeira lógica do discurso, e que

suas figuras são, antes de tudo, figuras de retórica, tropos. Na Interpretação dos sonhos, o

próprio Freud havia proposto a seguinte análise da Escola de A ten a s de Rafael: o fato de

reunir num espaço cênico dado como unitário, filósofos pertencendo a épocas e culturas

diferentes, até mesmo antagônicas, aparece com o um meio, para o pintor, de estabelecer,

pelo modo estritam ente figurativo de uma m onstração, uma noção de filosofia como reino

transhistórico, e como sociedade de espíritos, em que Platão, São Tom ás e talvez o próprio

Averróis se encontrariam dialogando para além das contingências de espaço e de tempo,

de língua e de crenças (12). Ora, os procedimentos utilizados pelos Van Eyck ou por Roger

van der Weydar são exatamente da mesma natureza. Assim como, para não citar mais de

um, entre todos aqueles colhidos por Panofsky, o procedimento que, na unidade de um

mesmo cenário ou moldura arquitetônica, p. ex. uma igreja, em cuja fachada (ou interior)

se desenrola uma cena, faz com que o pintor associe dois “ estilos” definidos: o estilo

romano e o estilo gótico, para representar a sucessão temporal, a oposição do antes e do

depois, e até mesmo esta, completamente nocional, do Antigo e do Novo Testamento

(13).

6

Se tivéssemos de admitir, sempre segundo Benveniste, que o sistema “ Pintura” se

caracteriza pelo fato de que, diferentemente da língua, ele só apresenta uma significância

unidimensional (a signifcânia semântica, correspondendo ao universo do “ discurso” , excluindo

toda significânia propriamente semiótica), forçoso seria então reconhecer que

uma boa parte do programa de uma semiologia da pintura teria sido desde então realizada

sob o título da Iconologia, ou da Iconologia entendida, segundo o term o empregado por

Panofsky, como um a “ Ciência da interpretação” (14). Mas, se a Iconologia pode pretender

recuperar, em última instância, sob a forma não mais de signos, mas de “ sintomas” de

uma visão do m undo ou de uma consciência de classe, os traços ditos “ estilísticos” da

obra e até a sua fatura, ela não supera a incapacidade, e juntam ente com ela, toda a disciplina

estritam ente interpretativa de conhecer a pintura em sua substância sensível, em

sua articulação propriam ente estética, no sentido kantiano do termo. Está ai uma questão

que o semiólogo não pode ignorar, que ele chega mesmo a colocar: a de saber se a obra de

arte se reduz ou não a um sistema de significação (15). Pergunta decisiva com referência

ao questionamento a partir do qual essas “ T eses” nasceram, e que tem por objeto a verdade

da pintura, a.verdade em pintura, o estatuto (ideológico, critico, teórico) do discurso

semiológico em sua relação com essa verdade. Tratando-se do “ sentido” que produziría a


100 GÁVEA

pintura é certo que a especificação não seria do campo da própria pintura, mas do da língua

que “ sozinha pode interpretar tudo” . Mas a obra, a obra de arte, a obra de pintura não

conheceríam outro destino (no sentido em que Freud fala de um destino das pulsões),

senão a interpretação, outra transformação previsível, para retom ar um term o de Lotm an

que abre uma perspectiva m uito nova (16), do que a sem a n tiza çã o ? N ão era essa parecenos

a opinião de Freud, pelo menos no que concerne a obra em sua relação com o produtor:

“ A significação não representa grande coisa para essas pessoas (os artistas). Eles só

se interessam pelas linhas, as formas, o acordo dos contornos. São os defensores do princípio

de prazer” (17). Isso quer dizer que o universo das linhas, das formas, do contorno

— excluindo significativamente o dar cor — não autoriza diretam ente um a análise em te r­

mos de significação, e sim um a abordagem formal, se não ‘‘estilística” , a questão permanecendo

a mesma, a de saber como a forma, assim distinta do conteúdo, encontra

meios para assimilar-se a um a economia, seja esta a do ‘‘prazer” ?

O problema volta ao da existência, ou não, de um nível sem iôtico da pintura. O ra, a

questão está geralmente mal colocada, uma vez que vem ao encontro da questão do “ estilo”

(noção cujo papel nefasto aos estudos de arte seria preciso m ostrar, e de com o a proporção

que vem tomando visa im pedir a colocação do problem a que nos ocupa, proibir o

seu enunciado) e dispõe de meios para interferir com a da im a g e m , sendo colocada com o

questão da natureza, sem iótica ou não-semiótica da im agem .

Vim os que, para Panofsky, a imagem se revelaria ao nível do simbólico. M as que não

existe a imagem, para o Iconólogo, senão a partir do m om ento em que à significação

“ n atu ral” , dada ao registro da percepção, se superpõe um a significação convencional. Se

retiverm os a imagem não mais pelo que ela significa, m as pelo que ela nos deixa ver (sem

prejulgara natureza da articulação do legível sobre o visível),tratar-se-á de determ inar se a

im agem , o “ fazer a im agem ” (a síntese im ageante dos fenomenólogos) pode ser pensada e

analisada em termos de articulação significante. Donde, independentem ente da determ

inação lógica que levará a pensar a construção da imagem com prioridade, na rubrica do

espaço — noção, em m atéria de pintura, das mais equivocas — , impõe-se a referência, a

partir daí obrigatória, às tentativas feitas para estudar o processo im ageante (e o próprio

processo perceptivo) na qualidade de processo de com unicação, e nos term os da Teoria da

Informação; todas tentativas que correspondem a um retorno a uma posição pré-fenomenológica

do problema, já que se limitam a estabelecer a imagem tomada por analogon

do real, em uma relação de denotação quanto ao percebido, ou, o que vem a dar no m esmo,

em um a relação de reprodução ou de equivalência quanto á percepção. C om o a

imagem não teria estatuto de m ensagem, quando a própria percepção está assim ilada a

uma operação de deciframento, de “ reconhecim ento” , quando um a e outra são recuadas

até suas raízes comuns convencionais (18)? Seria ainda conveniente, antecipando toda e

qualquer discussão sobre esse ponto, questionar desde o princípio a determ inação (teórica,

ideológica, linguística) que leva a pensar a pintura na qualidade, ou na categoria da

imagem, mas de uma imagem de tipo particular, se não específica: uma im agem que se

caracterizaria por um acréscim o de substância, de onde lhe viria seu peso, seu titulo de

pintura, e que produziría, por essa razão, um efeito de prazer específico. É, no entan to ,

possível que a pintura apontada seja dada como um a variedade de imagem en tre outras,

variedade privilegiada, se não dom inante, em uma cu ltu ra onde o term o m esm o “ pin­

7


Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura

101

tura” (que se tenha em mente as dificuldades que coloca a esse respeito a tradução de Wittgenstein)

pode ser tomado como sinônimo de imagem, de representação, de retrato, ou

até mesmo de reprodução ou de imitaçdò (por onde se introduz, através do tema da m i­

mes is, a questão da verdade da efígie, da verdade em efígie). Quanto ao programa de uma

semiologia geral, a semiologia da pintura inscrever-se-ia, todavia, em seu lugar, na rubrica

de uma semiologia da imagem, e como um ram o particular desta.

Parodiando M erleau-Ponty, dir-se-ia que a se fazer pintura com o percebido, se

deixaria de lado o nível semiótico, logo, a própria pintura, na medida em que uma verdade

ai trabalha para aparecer, e que essa verdade não é do campo imediato da ordem do discurso,

mas que tem relação em alto grau com a percepção. Pois existe, certam ente, algo

como um nível semiótico da pintura, mas que não se deixa reconduzir à instância do signo,

como também não á da imagem, cuja noção funciona, sem dúvida, como um verdadeiro

obstáculo epistemológico: o nível, por exemplo, em que trabalhava Cézanne quando,

numa intenção ainda de denotação, dizia querer substituir o problema da luz pelo da cor e

da representação, das sensações coloridas pelas sensações colorantes (19). Este trabalho,o

mais próximo da percepção sobre o significante, esta colocação do trabalho do significante

na pintura, de que a arte de Cézanne, como tam bém a de seu contemporâneo Seurat,

oferecem o exemplo, testem unha, com uma eloqüência que não toma emprestados senão

os recursos da pintura, que a superfície de separação entre o semântico e o semiótico não

deve ser procurada entre o nível da figura (dada a ver) e o da significação (dada a compreender),

mas em algum lugar no encontro entre o legível e o visível, entre o domínio do

simbólico e o do semiótico, com a condição de se pensar o semiótico, tal como Julia Kristeva,

como uma modalidade do processo da significância, que se poderia dizer na verdade

psicossomática, em ligação direta com o corpo, e com o um momento logicamente, geneticamente,

produtivam ente anterior ao simbólico, mas que neste se faz objeto de uma revelação

pela qual ele se integra (20). M omento de uma articulação — o de um continum anterior

ao do signo lingüístico e ao próprio signo icônico (na medida em que este só se constituirá

se determinar um interpretante). M om ento pré-tético, anterior à posição do sujeito

na sua referência à experiência da imagem especular, cuja articulação1do campo cromático,

estritamente contemporânea, como mostrou Jakobson em relação ao campo fonemático

(21), oferece a m elhor ilustração: tanto mais que a história da pintura deixa-nos ver como

o semiótico, sob a espécie precisamente da cor, pode deixar-se recuperar e funcionar, a título

de suplemento, no interior do simbólico, mas tam bém como ele pode voltar, sob o simbólico

e fora dele, a um a posição de exterioridade com relação ao signo e a toda significação

constituída na ordem da linguagem, assim como na da imagem, na da representação (só se

levar a sério isto que Peirce trabalhou tardiamente, e enunciou sob o titulo do hipo-icone,

do ícone que não se deixa ainda pensar sob nenhum título, e de uma representatividade,

que antecede qualquer relação de interpretância (22), apesar da idéia que ele tinha de que

tomando a noção em sentido mais amplo, um signo poderia admitir outros interpretantes

do que um conceito: uma ação, uma experiência, mesmo um efeito sensível, uma pura

qualidade de “ feeling” (23)). Nesse sentido somos levados a sustentar que a semiologia,

em sua ordem de dependência linguística, encontra-se como que trabalhada pela questão

da pintura, como ela ainda o é, pela da escritura, sendo os operários o pintor e o escritor,

ambos associados por Filebo á mesma tarefa, não inteiramente dupla. Mas quanto â

economia do processo significante, do qual a pintura é o teatro (onde define e redefine a

8


102 GÁVEA

sem cessar cena), esta economia é para ser pensada até nos seus lim ites, e talvez até no seu

“ além ” , dentro do registro freudiano e a partir do conceito que continua a ser, na leitura

de Freud, objeto de um a verdadeira censura, i.e ., o da regressão, tal com o a Interpretação

dos sonhos o introduz. A regressão formal que está no princípio, ao m esm o tem po que é a

mola, do trabalho do sonho — um trabalho pensado em si mesm o no texto freudiano —

dentro da referência explícita ao trabalho do pintor e que só produz seus efeitos, fora de

toda relação de interpretação, ao se servir da distância — e da tensão que engendra — en ­

tre o registro do visível (do que pode ser m ostrado, figurado, representado, encenado) e o

do legível (o registro do que pode ser dito, enunciado, declarado). Separação que é a do

trabalho produtorde um a mais-valia icônica, por enquanto, e isso deve ser salientado, que o

ícone tem por propriedade distintiva fundam ental o fato de que por sua observação direta,

outras verdades relativas ao objeto podem ser descobertas, além daquelas suficientes para

determ inar sua construção (24); mas tam bém , no caso da pintura, um a m ais-valia especialmente

pictural, que a define em sua diferença da im agem que lhe confere o privilégio

de que falamos. Separação que será marcada com o o lugar de um a oposição (de um a contradição)

ou de uma troca, e sem dúvida como o dos dois ao mesm o tem po, com o o quer a

tomada em condiração da “ figurabilidade” que preenche a condição para toda regressão.

Separação ainda constituidora da textualidade p ictó rica enquanto tecida de legível e visível,

e a partir da qual é conveniente colocar, em relação ao sistem a “ P in tu ra ” , a questão

do significante; o significante do qual Freud ensina, se o lem brarm os bem , que não seria

possível produzi-lo, e nem m esm o reconhecê-lo, a p artir de um a posição de exterioridade,

pois ele só se apresenta se formos por ele capturados.

N O T A S

(1) Paul Cézanne, “ A Emile Bernard” , 23 de outubro 1905; Correspondência, Paris, 1937, p. 277

(2) Iouri Lotman, A estruturado texto artístico, trad. fr. Paris, p. 26 sq.

(3) cf. Hubert Damisch, “ A parte e o todo” , Revista de estética, 1970, e "O guardiio da interpretação” ,

T elquel, n? 44 e 45 (inverno e primavera 1971)

(4) MeyerSchapiro, Words and Pictures, Paris, La Haye, 1973

(5) Emile Benveniste, “ Semiologia da lingua” . Problemas de linguística geral. t. II, 1974, p. 63

(6) ibid, p. 57

(7) ibid, p. 61-62

(8) cf. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico philosophicus, 4.121 sq.

(9) cf. MeyerSchapiro, “ Some Problems in the Semioticsof visual A rt: Field and Vehicle in Image Signs"

Semiótica, vol. I, n? 30 (1969); trad. fr. in Critique, n? 315-316 (agosto setembro 1973)

(10) Id., “ Muscipula Diaboli: The Symbolism of the Merode A ltarpiece” , A rt Bu/letin, 27. 1945, 182 7

(11) Benveniste, Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana” . Problemas de lin

gülstica geral, t. 1, Paris, -1966, p. 75-87.

(12) Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos, trad. fr. Paris. 1967. p. 271

(13) cf. Erwin Panofsky, Early Netherlandish Painting, Cambridge (M ass.) 1957

(14) Id.. Ensaios de iconologia, trad. fr.. Paris. 1967, Prefácio, p. 5

(15) Roland Barthes, “ A mensagem fotográfica", Communications, n? 1 (1961). p. 128

(16) Lotman, op. cit., p. 47

(17) Freud, A Ernest Jones, 8 de fevereiro 1914; citado por Jones. A vida e a obra de Sigmund Freud trad

fr.. Paris, 1969, t. III, p. 465

^ÍÍP Um exempl° ^essa tàtica epistemológica, cf. Umberto Eco, A estrutura ausente Miláo 1968

(19) Cézanne. “ A Emile Bernard” , 23de dezembro 1904. Correspondência, p. 269

(20) Jnlia K risteva, A revolução da linguagem poética. Paris, 1974. "Semiótica e simbólico"

(21) Koman Jakobson, “ Linguagem infantile afasia” 1969. p. 87 sq

7% 5&pe ?57 d ‘ L Ó g ' “ ' Cap' 3- 276'277 (C' 1902>' in C o ,W * * * "• ">'• Ml.

(23) Id. Cartas a Sra. Welby (1904) C.P. vol. VIII, p. 220-230

(24) I á.. Elements o f Logic, C .P ., vol. MI, p. 158


O Curso de Especialização em

História da Arte e Arquitetura

no Brasil da PUC/RJ, em nível

de pós-graduação latu-sensu, foi

formado há quaro anos. O curso

se inscreve numa visão da

História da Arte e da arquitetura

como um processo de rupturas,

o que implica numa relação

entre a produção da arte e a

trama global da cultura

brasileira. A proposta do curso

objetiva não apenas desenvolver

um saber sobre a arte e a

arquitetura brasileiras,

apreendidas em seu contexto

universal, mas insiste na

formação de uma visão ampla do

campo cultural. Dentro desta

orientação, o estudo e a pesquisa

de arte são encaminhados

juntamente com outras áreas de

conhecimento, favorecendo uma

formação interdisciplinar.

Coordenador acadêmico:

Carlos Zilio

Professores:

Dora Alcântara

Eduardo Jardim

Fernando Cocchiarale

José Reginaldo S. Gonçalves

Jorge Czajkowski

Miriam Ribeiro de Oliveira

Pedro Alcântara

Ricardo Benzaquem de Araújo

Ronaldo Brito

Washington Dias Lessa

Wilson Coutinho

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