Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Revista de História da Arte e Arquitetura
GÁVEA
1A lbertina M . C arvalho
Elizabeth Carbone Baez
Lídia Vage
M aria C ristina B urlam aqui
V anda M angia Klabin
Isabel Rocha
A n n a M aria M .deC arvalho
G eorges Duby
Joseph Rykwerk
Rosalind K raus
H u b ert D am isch
Ambigüidade: o enigma de Volpi
A academia e seus modelos
Iberê Camargo: pulsão e estrutura
Lygia Clark: a dissolução do objeto
A questão das idéias construtivas no Brasil: o
Momento Concretista
Arquitetura rural do Vale do Paraíba
Fluminense no século XIX
A espacialidade do Passeio Público de
Mestre Valentim
O nascimento do prazer da arte
A nefasta influência dos arquitetos Boullée
e Durand sobre a arquitetura moderna
A escultura no campo ampliado
Oito teses a favor (ou contra)
uma semiologia da pintura
GAVEA
EDITOR RESPONSÁ VEL
Carlos Zilio
CONSELHO EDITORIAL
Candace Lessa
Gustavo Meyer
Jorge Czajkowski
(professor de Arquitetura no Brasil)
Margarida de Souza Neves
{diretora Dept. de História)
Maria Cristina Burlamaqui
Reynaldo Roels Júnior
Ricardo Benzaquem de Araújo
(professor Dept. História)
Ronaldo Brito
(professor de Arte Moderna)
Vanda Mangia Klabin
Wilson Coutinho
(professor de Estética)
REVISÃO TIPOGRÁFICA
Claudia Maria Brum Arruda
EDITOR DE ARTE
Diter Stein
ARTE FINAL
Luiz‘C.R. Henriques
GÁVEA — revista semestral do
Curso de Especialização em História da
Arte e Arquitetura no Brasil
Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Departamento de História e
Coordenação de Cursos de Extensão
O projeto gráfico utilizado por GÁVEA
foi baseado na revista OCTOBER
Agradecimento especial à Professora
Anna Maria Thompson, diretora do
CCE/PUC,pelo seu apoio e incentivo
Apoio Cultural Bittencourt S.A.
1
A lb e rtin a M . C arvalho Ambigüidade: o enigma de Volpi 8
E lizabeth C arbone Baez A academia e seus modelos 15
Lídia V age Iberê Camargo: pulsão e estrutura 24
M a ria C ristin a B urlam aqui Lygia Clark: a dissolução do objeto 34
V anda M angia K labin
Isabel R ocha
A n n a M aria M o n teiro de C arvalho
A questão das idéias construtivas no Brasil: o
Momento Concretista 44
Arquitetura rural do Vale do Paraíba
Fluminense no século X IX 55
A espacialidade do Passeio Público de
Mestre Valentim 66
G e o rg e s D uby 0 nascimento do prazer da arte 77
Jo sep h R ykw erk
A nefasta influência dos arquitetos Boullée e
Durand sobre a arquitetura moderna 83
R osalind K raus A escultura no campo ampliado 87
H u b e rt D am isch
Oito teses a favor (ou contra) uma
semiologia da pintura 94
ALBERTINA M. CARVALHO
Graduação em Educação Artística e Artes Plásticas e Especialização em História da
Arte e Arquitetura no Brasil
ANNA MARIA MONTEIRO DE CARVALHO
Graduação em Letras e Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil
ELIZABETH CARBONE BAEZ
Graduação em Museologia e Especialização em História da Arte e Arquitetura no
Brasil
ISABEL ROCHA
Graduação em Arquitetura e Especialização em História da Arte e Arquitetura no
Brasil
LÍDIA VAGC
Graduação em Ciências Políticas e Sociais e Especialização em História da Arte e da
Arquitetura no Brasil
MARIA CRISTINA BURLAMAQUI
Graduação em Jornalismo e Especialização em História da Arte e Arquitetura no
Brasil
VANDA MANGIA KLABIN
Graduação em Ciências Políticas e Sociais e Especialização em História da Arte e A r
quitetura no Brasil
Gávea
MARGARIDA DE SOUZA NEVES
Diretora do Departamento de História
Para os que vivem na cidade do Rio de Janeiro, GÁVEA é o nome de uma de suas antigas
“freguezias de fora” , hoje transformada em um destes raros bairros onde ainda é
possível conviver com o verde e enxergar algumas das pedras do Maciço da Carioca.
Para os que entendem das antigas artes da navegação, GÁVEAé o nome de uma espécie
de plataforma encontrada a certa altura do mastro principal das caravelas, de onde os
marujos, com os olhos postos no horizonte, esperavam avistar alguma terra por desbravar.
A partir de hoje, GÁVEA é também o nome de uma revista.
A REVISTA GÁVEA representa mais uma iniciativa do Curso de Especialização em
História da Arte e da Arquitetura no Brasil, que nos seus ainda poucos anos de existência
vem dando provas de sua maturidade, consistência e — por que não reconhecê-lo? — de
sua tenacidade.
Academicamente vinculado ao Departamento de História da PUC/RJ, o Curso de
Especialização vem desenvolvendo esforços no sentido de constituir-se num lugar de
reflexão e produção crítica sobre a Arte Brasileira, tendo como eixo principal a indissociável
relação entre o ensino e a pesquisa. As exposições sobre a obra de Goeldi e sobre a
modernidade de Guignard. bem como ós catálogos-livros que acompanharam ambas as exposições,
já nos deram provas da qualidade da produção de sua equipe docente e discente,
produção esta que agora encontra na REVISTA GÁVEA uma maior sistematização e
uma difusão mais ampla.
Ao adotar como seu o nome do bairro onde — precariamente ainda — se instala com
a intenção de desvendar estas terras novas de nossa produção cultural, a Revista recupera e
politiza o duplo sentido da palavra GÁVEA. Acreditamos que a REVISTA GÁVEA alcançará
seu objetivo e poderá constituir-se numa das formas de tornar realidade o que para
nós são esperanças.
—
Apresentação
CARLOS ZIUO
Existe uma defasagem entre a produção e a reflexão sobre a arte e a arquitetura
brasileiras. Tentativas isoladas, ao longo dos anos, conseguiram clarear alguns aspectos;
no entanto, permaneceram esporádicas e externas ao conjunto do sistema cultural. Superar
esta situação, vencer o auto-didatismo, implica em colocar a análise desta produção
no único local capaz de dar-lhe sistematização e eficácia: a universidade. A reflexão é
necessariamente um todo, e a decantada interdisciplinaridade só pode ser compreendida
sob o prisma da universidade vista como um organismo vivo. A recusa em pensar a História
da Arte e da Arquitetura na universidade brasileira é a negação da visualidade,
gerando uma universidade, por assim dizer, cega.
O trabalho de demarcar um campo próprio do saber requer o questionamento do que
já foi produzido e a busca de definição de objetivos teóricos precisos. A História da Arte e
da Arquitetura tal qual se apresenta no Brasil é uma História incapaz de produzir conhecimento,
formada que é pela sacralização de informações empíricas.
Torna-se, portanto, necessária a desarticulação desta construção fetichizada e a constituição
de conceitos adequados para o tratamento da História da Arte e da Arquitetura,
quer dizer, afirmar uma proposição epistemológica específica, diversa da empiria tradicional
e das armadilhas ideológicas. Estabelecidas as bases que impedem a instrumentalização
do pensamento sobre arte e arquitetura, as possibilidades interdisciplinares abertas
são ilimitadas, principalmente em relação à História, onde este conhecimento possibilita
uma apreensão privilegiada do universo simbólico de uma época.
Após as exposições e os livros sobre Goeldi (1981) e Guignard (1983), o Curso de Especialização
em História da Arte e Arquitetura no Brasil busca, através de GÁVEA, ampliar
a divulgação de suas pesquisas. A revista será um local onde as dificuldades, os conflitos
e as conquistas da postura teórica do curso deverão emergir. Esta publicação veiculará
textos de professores, colaboradores e traduções, mas fundamentalmente estará
voltada para a produção dos alunos, de forma que a prática e a teoria na universidade não
estejam dissociadas. A existência da revista deve-se ao empenho de seu corpo editorial
— professores, alunos e ex-alunos — e à visão social e cultural de pessoas que viabilizaram
financeiramente o projeto.
GÁVEA se propõe descortinar outros horizontes. Olhar atentamente às mudanças,
analista das nuanças, aberta a perceber sinais reveladores. Na sensível solidão da gávea, a
prática contemplativa. Uma inteligência própria do olhar para pensar o real neste exercício.
Quantas terras ainda por avistar...
Ambigüidade: o enigma de Volpi
ALBERTINA M. CARVALHO
A obra de Volpi é o produto de uma praxis em que suas questões constitutivas estão
visíveis, porque o artista não as elimina nem as torna invisíveis, mas torna-as um amálgama,
um produto que não esconde a sua constituição. É uma obra caracterizada pela tensão
gerada numa relação ambígua que permanece e não pela eliminação das antinomias
mais, pela visão critica que supera a fusão, soma ou acúmulo do evocionismo. Essa contradição
aparente e consciente na sua obra gera uma tensão que é a sua própria ambiguidade
fazendo-se presente. E é nessa tensão que sua obra revela uma visão de mundo
dialética e elaboradamente marcada pela constante ambiguidade traduzida em termos plásticos.
Ambiguidade esta resultante da apreensão do espírito da modernidade e de sua
prática de artesão e operário da pintura. Volpi não tenta resolvê-la, mas a cultiva e a põe
plenamente em sua pintura como característica de sua obra, como num jogo (o que todo
dia faz) em que todas (e ambas) as possibilidades estão sempre presentes e que novo jogo
sempre poderá “ ser jogado” . Não se trata para Volpi de eliminar as contradições (ou tensões)
mas sim de incorporá-las, de tomá-las presentes e visiveis, de fazer com elas e não
apesar delas. Disso resulta uma obra rica, aberta, inquieta. Revela-se assim, em Volpi, a
compreensão da modernidade, não pela eliminação da contradição, mas pela incorporação
dessa modernidade ao seu espirito de artesão sem que se estabeleça aí a negação de um ou
de outro (artesão e modernidade). Não tenta resolver tal contradição, mas trabalhar com
ela, fazê-la presente como possibilidades que não se excluem, que se combinam e se completam.
Minha arte consiste em linha, forma e cor. Antes, na natureza era um problema
de luz. Da natureza é a luz. Não é o assunto que interessa...
— Minha arte é linha, forma e cor, não tem nada a ver com natureza. E uma coisa
criativa. Bom, daí tem a construção. Não é que bola qualquer coisa. Tem uma construção...
— A construção se repete sempre. Aí modifica a cor e toda a estruturação. E um
problema de cor.
— Mas a forma serve para tudo, para repetir outro anel de cores. ”
Nestas declarações que Alfredo Volpi deixa transparecer que duas grandes etapas se
distinguem no desenvolvimento de sua trajetória artística. Na primeira, os momentos de
interpretação da realidade: impressionismo — até a década de 40, mas que não serão considerados
nesta análise. Na segunda etapa, os momentos do construtivismo, que podem
assim ser pensados:o de um construtivismo estático: momento de observação e elaboração
do mundo, embate do vir a ser teórico (de esquematizar e geometrizar); o de convivência
10 GÁVEA
com o concretismo: momento de enxugar, extrair e clarear os momentos da modernidade
(de construir através de uma redução estrutural); o de um construtivismo lírico, dinâmico
e de efeitos cinéticos, momento em que Volpi se põe no mundo de maneira livre, solta,
apresentando as questões da sua pintura de forma amadurecida; questionando, resolvendo
e requestionando a pintura (de-construir, se permitindo todas as possibilidades de organização
plástica).
E é principalmente como artista construtivo (assim permanece até hoje) que Volpi
revela toda a sua importância como um dos pintores de maior relevância para a pintura
brasileira, tanto pela originalidade e independência de sua obra marcadamente nacional,'
como também por seu entendimento da modernidade podendo ser considerado internacionalmente
como um dos grandes coloristas da pintura ocidental.
Na sua disciplina construtiva Volpi possui um repertório de formas (bandeirinhas,
mastros, velas, arcos, fachadas, etc.) que são retiradas da sua realidade social e cultural e
que são tratadas como formas plásticas, mas só o fato de optar por estas formas e não por
outras completamente abstratas demonstra uma demarcação de terreno, referências de sua
realidade, de seu lugar no mundo, uma posição de nacionalidade e raízes culturais das
quais não quer se abstrair, revelando sua identidade cultural brasileira. No plano iconográfico,
é nessa ambigüidade de elementos (formas plásticas como fato estético, porém,
alusivas a uma realidade, que se encontra a questão nacional-popular, questão reafirmada
pela cor) que Volpi constrói sua visão crítica da questão do nacionalismo-modernismo
como a outra possibilidade da arte brasileira.
Volpi percorrendo os caminhos da modernidade manterá diálogo com a História.
Existem dois grandes momentos de ruptura na história da arte ocidental recente: um, o
renascimento e. o segundo, a modernidade.
O primeiro momento é caracterizado pela procura da profundidade na representação
de um espaço real (construir esse espaço do plano para dentro). Aqui se enquadra Giotto
na procura do espaço e da profundidade onde já se percebe em sua obra um espaço atmosférico
e a procura da profundidade. E Ucello que representa num momento à frente a
radicalização da perspectiva.
No segundo momento, a modernidade, há a procura do plano (e construir o espaço do
plano para fora). Há na modernidade uma inversão no tratamento desses elementos perceptíveis:
procura da profundidade e procura do plano. Na obra de Volpi se encontra esse
momento: uma profundidade que não é representacional mas que se direciona para o plano
criando uma tensão do espaço. E é nesse momento de tensão que Volpi e Giotto se encontram
em direcionamentos opostos: um buscando a profundidade e o outro o plano. Como
diria Volpi. em entrevista à autora: “ O interessante em Giotto é que ele se liberta do
bizantino".
A questão do ritmo e da profundidade pode ser encontrada em Volpi com os mastros
de bandeirinhas e das velas (por exemplo), e Ucello com as lanças e mastros. O expediente
dos mastros listrados em Volpi, sugeridos em primeiro plano pela cor, se destacam criando
uma ilusão de profundidade ao mesmo tempo que atrai essa profundidade para o plano
criando assim ritmo e tensão do espaço. Ucello utilizou o expediente das lanças para criar
também ritmo e direcionar a perspectiva; onde o ritmo das lanças garante o movimento
no primeiro plano e o destaca contra um plano perspectivado que é colocado como um
cenário.
Outra característica da obra de Volpi, capaz de exprimir sua concepção de mundo
moderno, está na relação simetria/assimetria. Remetendo-nos à problemática da simetria
na modernidade a partir das concepções de Francastel, expostas in “ Aspectos Sociais da
COMPOSIÇÃ 0 EM O G IVA,
Volpi, 1980,
têmpera sobre tela,
136 x 68 cm
M ASTROS E BANDEIROLAS,
Volpi, 1966,
têmpera sobre tela,
72,5 x 145 cm
Simetria do Século XV ao Século X X ” , nelas encontramos o seguinte:
“Só nossa época descobriu a possibilidade estética das tensões e daS forças em movimento,
fora das simetrias e do equilíbrio” . E mais adiante: “ É bem verdade que, durante
quatro séculos, a partir da Renascença, foi em função de uma concepção estética do
Universo que a Arte se elaborou, conferindo um valor especial à simetria, enquanto que
atualmente ela se desenvolve em função de uma concepção dinâmica das forças em movimento
e recorre logicamente de preferência a soluções que fazem operar o ritmo e a
lateralidade” .
Volpi ao se apoiar nas tensões e na dinâmica das forças em movimento, com a objetividade
de seu espírito, vai pôr em constante confronto a simetria e a lateralidade onde
ambas se manifestam numa sensação enigmática que advém dessa nova ambigüidade.
Na maioria de suas telas percebe-se uma construção simétrica perceptível numa série
de combinações, por exemplo: — por divisão de tela na horizontal ou vertical ou diagonal,
— pela correspondência de cor, — por conjunto de elementos pares ou ímpares em formas
e/ou cores que se correspondem, — pela correspondência de duplos (pares ou ímpares em
!formas iguais e/ou cores iguais).
■
FACHADA AZUL E TERRA
COM BANDEIRINHAS.
Volpi, 1959,
têmpera sobre tela,
155 x 102'cm
Porém ao trabalhar a construção simétrica, nesse mesmo esquema, mesmo tempo,
vai se constituindo a assimetria: — pela construção de lados diferentes na divisão simétrica
(em relação a um eixo), pelo deslocamento da cor simétrica de uma forma para outra,
deslocando uma série de elementos em relação ao conjunto simétrico, pela inversão de
posição da forma que vem se repetindo simetricamente, por uma forma jogada solta na
composição, por uma ou várias formas contrastantes colocadas lateralmente na composição
simétrica, pela transformação dos elementos pares em impares organizando-os,
deslocados em relação ao eixo da construção, trocando ou deslocados um dos elementos
isolados (como um contraponto).
Consequentemente à essa relação vai se produzir um sistema aberto, não estabilizado,
unificado pelo ritmo desenvolvido e onde o contraponto vai implicar numa regularização.
Mesmo nas composições mais tipicamente assimétricas (aquelas do período sob a influência
do concretismo) essa relação se mantém no par dentro do ímpar. Essas manipulações
na composição ocasionam uma sensação de estranhamento ao olhar, porque enigmática,
que acompanhando o ritmo de repente encontra uma variação não esperada, suscitando
um questionamento.
Tomando como exemplo de análise a série “composição em ogiva” , percebe-se mais
uma vez a riqueza da expressão modernista do autor. E necessário que se faça uma leitura
dentro do próprio campo do artista, ou seja, no uso da linguagem plástica, que permita
Ambiguidade: o enigma de Volpi 13
revelar as questões de caráter exclusivamente visuais que o artista apresenta, precisando o
desvelamento de seu pensamento visual.
A distinção começa de início pela identificação do tema da composição. O arco ogival
que aí aparece refaz em forma ampliada o corte interno de uma bandeirinha, forma esta
(parte inferior da bandeirinha) que abrange toda a tela, e é confirmada pelos cortes laterais
que desenham suas pontas. E uma forma (bandeirinha) maior que domina a superfície e
que contém outras formas menores iguais que a constituem (bandeirinhas e/ou triângulos
gerados por elas num efeito positivo-negativo destacados pela cor) ou, melhor dizendo,
várias formas (bandeirinhas) contidas numa outra maior dominante.
Na ogiva resultante tratada por uma cor sempre mais escura e que se repete nas laterais
obtém-se um fundo que é ao mesmo tempo um grande triângulo em negativo e uma
profundidade (fundo acentuado pelas linhas oblíquas que convergem para uma linha vertical
ao centro formando ângulos) mas que Volpi atrai para o plano, pela repetição de cores
que se encontram nesse plano. Assim os planos se aproximam pelo uso da mesma cor
(dentro e fora) e que por suas qualidades se destacam. Efeito semelhante irá ocorrer no uso
de uma cor, que contrasta ou seja destaca, valorizando os triângulos distribuídos por toda a
composição; é pela cor que esses triângulos ressaltam e se transformam em positivos,
unificando os planos e mantendo as formas (bandeirinhas e triângulos) e o olhar em suspensão.
Estabelece-se aí uma tensão manifestada pelos efeitos dicotômicos gerados pela cor,
onde ora se valoriza um dos duplos, ora o outro numa apreensão global da ambigüidade no
olhar, criando no observador um certo deslocamento e estranhamento desse olhar. Essas
dicotomias resumem-se assim num jogo de efeitos, identificáveis em: positivo-negativo
(por exemplo: triângulo/bandeirinha), — dentro-fora, — par-ímpar (por exemplo: valorização
de duas bandeirinhas de mesma cor no mesmo plano e de uma terceira bandeirinha
também de mesma cor na profundidade (ogiva), — simetria-assimetria (por exemplo: no
uso das cores, da mesma forma que o anterior).
E, assim sucessivamente, numa inversão constante, interagindo dentro de modelos
de composição que constantemente se repetem, Volpi cria, recria, numa pesquisa contínua,
que permite novas possibilidades de configuração. Onde, como em Albers, segundo Baltcock
“ a menor das variações em qualquer das cores resulta em nova pintura radicalmente
diferente da anterior quanto ao sentir” .
A textura obtida pela têmpera, usada de forma abstrata (como elemento plástico em
si), portanto, emancipada da sua função de criar mimese, torna-se profundamente significativa
no contexto da obra. Resulta, assim, outras ambigüidades: — técnica antiga
(têmpera) expressa numa linguagem moderna; — textura como elemento plástico em si,
de efeito translúcido (onde o pigmento não se dilui, só se mistura), que resulta numa transparência
de branco (que aqui não é cor) eque homogeneiza toda a tela, porém remete à
ambiência, á luz, à parede caiada, ao afresco e ao passado.
Assim, lançando mão de uma técnica tradicional numa postura moderna, ele une
uma possibilidade de expressão plástica pura a cor e a textura, permitindo um jogo de formas
e massas, obtendo uma densidade expressiva, por uma economia de meios, numa intensidade
colorística.
Sendo a textura o elemento estável e permanente em toda obra ela adquire dinamicidade
no gesto (marca do pincel), que sublinha, define e/ou desenha a forma.
Em certos quadros, somente a direção e a medida da pincelada, desenhando as formas
dentro de uma só cor, garantem a visibilidade dessas formas e estruturam toda a superfície
do quadro.
14 GÁVEA
Dos elementos constitutivos de suas telas, está na cor a qualidade extraordinária de
sua obra. Volpi sendo um colorista por excelência, tem a sutileza de não deixar que sua cor
signifique sozinha (como por exemplo, podemos ler a obra de Albers a partir de sua
problemática, a cor), porém, é ela que estrutura todo o seu trabalho. Sendo uma cor estrutural,
adquire o estatuto da cor abstrata (livre e pura) revelando outra ambiguidade na
obra de Volpi: é uma cor carregada de profunda significação do mundo real sem que isso
implique no realismo da cor. Não é um “simulacro das cores da natureza ”, como diria
Merleau-Ponty.
Em Volpi, a cor adquire seu significado pela interação que mantém com a forma e a
textura. E é nessa organicidade que se pode afirmar, como Willys de Castro, que “ Volpi
pinta Volpis” .
Para Volpi, como em Matisse, o assunto (tema) da pintura não importa para o ato de
pintar. O assunto faz-se pretexto para a pintura. A cor adquire autonomia porém ficando
livre de sua função conteudística ela não se toma abstrata, revelando-se uma cor qualitativa
que se expressa como uma cor local, cor luz, cor anedótica, cor que remete a uma
ambiência e a uma certa atmosfera; cor afetiva que reporta á sensação do mundo (como em
Guignard): de um “ mundo” marcadamente brasileiro e popular nos verde-amarelo. verde-rosa,
azul-rosa ou nas cores terrosas lado a lado, nos mastros, nas bandeirinhas. nas
fachadas. Cores que associadas à cor matissiana vão revelar o puro prazer da pintura e o
lirismo de uma poética figurativista.
Dos pintores brasileiros. Volpi é o que mais se aproxima de Matisse e o que melhor
absorveu a transgressão da cor matissiana. Sua cor também passa por uma compreensão
especial de Albers.
Ao pensar a cor, suas relações e sua expressão, Volpi vai utilizar como Matisse cores
puras e complementares sem passagem e que se articulam, especialmente o verde, vermelho,
azul. amarelo assim como o preto e o branco (cores que Matisse emancipou). E
como Albers, a procura das passagens de cor sem que as cores percam sua determinação,
às vezes tão próximas que coloca no limite essas passagens, de tal modo que uma não significa
sem a outra. Assim se movimentando nessas duas posturas ele vai achatar o plano
e/ou as contrapondo, criar profundidade sem lançar mão de dêgradé.
Então, pela ação de relações cromáticas nas oposições: figura-fundo. positivo-negativo.
dentro-fora. cheio-vazio. par-impar. cor obliqua-cor contraponto, ele cria cinetismo.
ritmo, movimento; cria também forma (positiva-negativa) valorizando a figura do
fundo. Efeitos estes que vão se manifestar em três categorias mais amplas: equilibriodesequilíbrio,
simetria-lateralidade, profundidade-bidimensionalidade.
Organizando o espaço de suas telas a partir de uma construção bidimensional pela
ação de ortogonais, ele opõe linhas obliquas, formando ângulos e mais raramente linhas
curvas, o que quebra por principio a rigidez e permite induzir a uma certa profundidade.
Porém é com o uso da cor que Volpi realmente obtém profundidade. Abandonando
procedimentos tradicionais como o dêgradé e a diminuição de formas ele vai deixar que a
relação forma-cor construa sua profundidade. Usando cores em chapa (que aproximam
planos), cores quentes e frias, cores que avançam e retrocedem, opondo cores contrastan
tes (primárias e complementares) a uma gama de cores mais suaves, esmaecidas e/ou
opacas, ele vai destacar plano e profundidade. Um dos enigmas de sua ambiguidade reside
especialmente em que Volpi dentro do plano bidimensional, pela trajetória, distribuição e
dimensão da cor, cria profundidade. E pela mesma cor. traz para a frente a profundidade.
Desta maneira, tanto procura fugir do plano como alcançar o plano, se situando num
momento de tensão do espaço, pela atraçãc exercida ao olhar pelas dicotomias em ação.
A academia e seus modelos
E L IZ A B E T H C A R B O N E B A E Z
' 'The simple society bred simple people.
V.S. Naipaul. The Loss of El Dorado
Não se trata de nenhuma novidade que a pintura acadêmica brasileira teve como
principal influência a pintura oficial francesa, conhecida como “pompier” . No entanto,
sente-se ainda a necessidade de sistematizar esse estudo. A fim de que o trabalho não fique
restrito a simples identificação de modelos, toma-se necessário fazer uma relação dessa
forma de representação plástica com o processo histórico, assim como verificar até que
ponto essa representação foi institucionalizada e incentivada a se perpetuar por ir ao encontro
das necessidades de afirmação de um sistema social e político em formação.
O tipo de representação proposto pelo neoclassicismo e deformado pelo academismo
encontrou no Brasil um campo fértil para se enraizar e desenvolver uma vez que seu
universo simbólico supria os anseios políticos, sociais e culturais da classe dominante.
Consequentemente, era a única forma de representação ensinada e divulgada no Brasil no
século XIX.
O neoclassicismo vai usar, a grosso modo, o mesmo sistema de representação dos objetos
no espaço do Renascimento, quando o homem passa a ser o centro do universo. O artista
terá o poder de controlar o espaço a partir de leis científicas, a natureza emancipa-se
da ordem divina.
Não será, porém, uma simples imitação mas uma volta ao passado em busca de novos
valores para expressar uma outra visão do Cosmos. O neoclassicismo recolocou em questão
os princípios da arte, ou seja, colocou inteiro o problema do Renascimento, ampliando
a compreensão dos tempos Modernos e dando condições para que, mais tarde, surgisse
uma nova maneira de captar, perceber e ler o mundo.
O universo plástico da arte neoclássica vai representar a reforma moral contida no
ideal da Revolução de 1789. A verdadeira moral se encontrava na Antiguidade Grega na
medida em que representava um mundo idealizado, construído a partir de seus próprios
padrões, sem ajuda divina, suficientemente rígido e severo para se tornar aceito num
mundo ávido por reformas. Um mundo controlado pelo homem e guiado pela razão, cuja
ética ou padrões morais deveríam ser modificados pelo homem a partir de um trabalho
sério e disciplinado.
O ideal revolucionário do neoclassicismo, que era autêntico e correspondia a uma
realidade, vai cedendo terreno e finalmente será substituído pelo realismo napoleônico.
16 GÁVEA
Dai para a codificação sumária do universo renascentista será um passo.
Ao ser transplantado para o Brasil, o neoclassicismo perde em essência e significado
para transformar-se num processo de afirmação de prestígio e poder; foi implantado a partir
da Missão Artística Francesa e alguns artistas que a compunham traziam em si o espirito
que dominou essa forma de expressão artística. Não conseguiram, entretanto, transmitir
muito mais além da técnica e das normas impostas e adotadas pelo neoclassicismo.
Assim fala Wilson Coutinho sobre Debret em recente trabalho em que trata da relação entre
Arte/lnstituição: “ Debret é então um homem oco, mas objetivo. Cúmplice do mito da
Razão de sua geração bonapartista, ele constrói uma obra que é trabalho da técnica e de um
saber objetivado: o da classificação racional, evidente, que será disposta em séries, à
maneira de uma taxiodermia do século que o educou, o XVIII. “ (1)
0 Transplante de Uma Estética Oficial
Durante todo o século XIX e grande parte do XX, a arte brasileira permaneceu presa
a determinados padrões. A partir de meados do século XIX o padrão-modelo será inevitavelmente
a pintura acadêmica francesa que sucedeu o neoclassicismo — pintura que
usará a representação de forma teatral para criar a ilusão e a tradição como meio de evitar
questionamentos e mudanças. O artista acadêmico estava vinculado a um sistema de arte
que. ao mesmo tempo que lhe proporcionava sucesso e meios para progredir, cerceava sua
imaginação, fixando regras e impondo um padrão de gosto, favorecendo enfim a implantação
de uma estética oficial.
Além dos salões oficiais, era quase nula a atividade artística no Brasil. Os pintores
que ganhavam prêmios de viagem eram enviados a Paris ou a Roma para se aperfeiçoarem
com os artistas consagrados pelas instituições oficiais, os chamados “ pompiers“ . W.A.
Bouguereau. J.L. Gérôme, E.J.H. Vernet, L. Cogniet, A. Cabanel, T. Couture, J.L.E.
Meissonier estavam entre aqueles que recebiam o reconhecimento oficial. Esse reconhecimento.
contudo, não coincide com os artistas hoje considerados os grandes mestres
do século XIX.
Os bolsistas da Academia Imperial de Belas Artes seguiam para os ateliês de alguns
desses pintores com instruções rígidas e especificas que limitavam e empobreciam a
criação artística: copiavam seus mestres mesmo quando se inspiravam em temas nacionais.
Os principais temas explorados pela pintura oficial francesa eram os episódios da história
clássica e da mitologia, os fatos da história nacional com fundo moral ou episódios
gloriosos, assuntos nobres e religiosos, retratos e, por fim. paisagens e natureza -morta.
Com o declínio do neoclassicismo e o surgimento do realismo outros temas passaram a incorporar
a iconografia acadêmica: o estilo anedótico, temas da vida moderna, costumes
religiosos e o orientalismo, de preferência contendo verdades e qualidades eternas. A
reação ao realismo social de Coubert é marcante da parte oficial e do público. Os pintores
âcadêmicos vão utilizar essa temática apelando, porém, para os subterfúgios da metáfora e
do simbolismo, diferentemente do verdadeiro realismo proposto por Coubert, que não
idealizou nem tirou a pintura de um mundo em processo de transformação. Aliás, o orientalismo
surgirá como espécie de saída honrosa para com o problema da manutenção do
tradicionalismo. Como bem observou James Harding ao analisar a pintura “pompier” , (2)
o universo oriental não estava contaminado pelo realismo social nem seu cenário modificado
pelas transformações urbanas; a indumentária estava acima da moda e a forma de
Vitor Meireles, BATAIJ1A DOSGUARARAPES, óleo/tela, 491 x 919 cm (MNBA).
E.J.H. Vernet, PRISE DESM ALAH, óleo/tela, 489 x 2139 cm.
18 GÁVEA
vida continuava tradicional.
Todos esses temas são bastante familiares à pintura acadêmica brasileira e foram amplamente
explorados ao longo do século XIX. De todos, o orientalismo foi o que sofreu
maior simplificação: no transplante, tiram-se partes do todo, ao invés de cenas completas
são reproduzidas muitas vezes apenas figuras, fora do contexto, como se constata na pintura
francesa. Outra forma de trabalhar com o orientalismo foi integrá-lo a temas tradicionais.
como ocorre com o Davi e Abisag de Pedro Américo: um tema bíblico serve assim
de pretexto para reproduzir ambiente e atmosfera orientais, que tanto fascinavam a
imaginação dos pintores franceses. Nota-se os mesmos cânones de gosto, cromatismo e
organização pictóricos, a mesma expressão e tendência ao anedótico e ao misterioso que
predominavam na primeira fase do orientalismo francês, inspirado nos relatos de viajantes.
Bastante representativas são as cenas históricas pintadas por Vitor Meireles e Pedro
Américo, nitidamente inspiradas em Meissonier e Vernet (este último foi mestre de Pedro
Américo). O “academismo-romântico” na Batalha dos Guararapes de Meireles e no O
Grito do Ipiranga e Batalha do A vai de Pedro Américo é enfatizado pelo convencionalismo
da composição: os personagens são distribuídos em espécie de semi-círculos, destacando
ao centro a cena principal. O colorido é artificial e o gestual maneirista; o dramatismo leva
à idealização de um ato patriótico, uma vitória nacional. E interessante notar que aqui,
como na França, essas cenas eram retratadas, após minuciosa pesquisa, em telas monumentais.
Algumas pintadas por Vernet eram tão grandes que era necessário remover o
chão para poder acomodá-las.
O sistema de seleção de bolsas, a bolsa propriamente dita e a forma de sua avaliação
perpetuou assim a colonização artística. Mesmo o consagrado Almeida Jr.. que teve o
grande mérito de introduzir a temática nacionalista, continuou fiel aos cânones acadêmicos.
tanto na idealização da forma quanto na manutenção de uma composição tradicional.
Ao cotejar as Academias francesa e brasileira, encontramos inúmeras semelhanças de
organização e funcionamento. Pode-se mesmo afirmar que a Academia no Brasil é uma
“cópia autêntica” da francesa, exercendo sobre os pintores uma espécie de ditadura estética.
Esse academismo produziu entre nós incontáveis “ pompiers” durante o século
XIX. incapazes de se libertar do tradicionalismo acadêmico.
O Sistema Colonial e o Desenvolvimento do Processo Artístico
Nas colônias — portuguesas ou espanholas — não houve nunca arte verdadeiramente
independente dos modelos oficiais da metrópole, tampouco existiam condições de absorção
de modelos independentes ou de vanguarda. E possível, por exemplo, estabelecer algumas
comparações entre as formas de expressão artística desenvolvidas em Cuba e no Brasil
durante o século XIX. Com uma ressalva — em Cuba, os artistas estrangeiros (franceses,
ingleses, americanos e espanhóis) não eram convidados oficialmente — entre eles havia
refugiados políticos, aventureiros de passagem ou comerciantes.
Na primeira metade do século verifica-se na pintura cubana uma tendência a retratar
o característico, o cotidiano, a cidade, de forma bastante semelhante, não apenas aos
viajantes estrangeiros que para aqui vieram (Rugendas, Ender, entre outros), como aos
próprios Debret e Taunay, no que diz respeito à documentação de usos e costumes e
paisagens. Paralelamente desenvolve-se em Cuba (como no Brasil) uma escola que cultiva
a beleza formal de influência neoclássica, “davidiana” , que em meados do século vai
cedendo lugar ao academismo franco-italiano e a uma tendência paisagística, idealista,
á
20 GÁVEA
sentimental e romântica. No grupo neoclássico identificamos — além de Debret — Vitor
Meireles, Araújo Porto Alegre, Pedro Américo, entre outros; no segundo grupo, Insley
Pacheco, Hipólito Caron, Batista da Costa, Xelles Jr.
Ao relacionar formas de colonização e suas consequências nas manifestações artísticas
é possível também tomar como referencial a colonização inglesa na América do Norte
e a colonização portuguesa no Brasil. Com isto levantaríamos as diferentes possibilidades
de absorção da Academia no seu transplante da Europa para os Estados Unidos e
para o Brasil.
A influência européia (inglesa e francesa) também foi marcante nos Estados Unidos.
Em determinada ocasião. Gérôme contou 90 alunos americanos em seu ateliê. Contudo, o
gosto pela pintura histórica, pelos temas heróicos, não impediu que se desenvolvesse,
paralelamente, um outro tipo de manifestação artística que expressava a descoberta dos
amplos espaços da natureza, a luminosidade local, e que eventualmente ia além da mera
cópia da natureza. Segundo John Wilmerding, a arte americana de meados do século passado
manifesta o otimismo e expansionismo jacksoniano que se alia, assim, á crença
americana na beleza transcendental da natureza. Já nos anos 60, as tempestades apocalípticas
e as cenas de crepúsculo, visual e tematicamente diferentes, porém conceituai e estruturalmente
relacionadas, falam de um modo indireto dos anos de turbulência da guerra
civil e do conseqüente sentimento de perda. Nos anos 70 e depois a serenidade do luminismo
se rende a um novo realismo, a estrutura luminista abre espaço ao impressionismo. (3)
A diversidade da atuação da Academia nos Estados Unidos e no Brasil estaria vinculada.
portanto, a contrastes suficientemente significativos, permitindo afirmar que
diferentes formas de colonização repercutem de modo diverso nas produções artísticas. Os
objetivos e o espírito de ambas as colonizações, a religião, os sistemas político e social e o
nível de instrução e alfabetização dos colonizadores (4) são alguns dos fatores que teriam
favorecido o desenvolvimento de uma pintura mais criativa nos Estados Unidos.
O Brasil do século XIX ainda sofria as consequências de uma colonização que não
permitia autonomia econômica, não incentivava a iniciativa e a criatividade individuais,
supervalorizava o que vinha de fora e era extremamente parcial a mudanças. Ao tratar das
diferenças entre as colonizações portuguesa e inglesa, no Brasil e na América do Norte,
respectivamente, Yianna Moog descreve os mazombos (descendentes de portugueses que
constituíam a elite brasileira do século passado) como “ europeus extraviados” no Brasil.
“ Em princípio do século passado, o mazombo era espiritualmente português, e vivia zangado
com o Brasil, por não ser o Brasil a cópia exata de Portugal. Em fins do século, como
as simpatias de Portugal se tivessem volvido para a França, vivia zangado com o Brasil
porque a cultura brasileira não era a projeção exata da cultura francesa... cultura só a
França a tinha... sem uma viagem a Paris não se completava nenhuma formação cultural
digna desse nom e...” (5)
Até o início do século XIX era total o desinteresse da Metrópole pelo desenvolvimento
artístico da colônia. Sobre esse desinteresse, vale lembrar que está estreitamente
ligado aos objetivos da colonização portuguesa. Ao europeu interessava o comércio; vinha
para especular, para realizar um negócio e o Brasil se constituirá numa espécie de “feitoria
comercial . O interesse oficial pelas formas de expressão artísticas só será realmente despertado
com a vinda da Corte e a decorrente necessidade de tentar elevar o inível cultural
da colônia, agora sede do Reino.
Foi, portanto, depois de 1808, sobretudo com a chegada da Missão Artística Francesa,
que teve início o empenho da autoridade constituída em patrocinar as artes. A partir
dai a França (por motivos óbvios) e a Itália serão os principais pontos de referência cul-
A academia e seus modelos 21
tural. Essa influência será agora exercida diretamente através de artistas importados pelo
Estado e das bolsas de estudo concedidas aos alunos mais aplicados da Academia. Esta funcionará
como instrumento de permanência de um modelo dado e como um mecanismo de
preservação. Os artistas acadêmicos desse período, talvez por serem “simple people",
produtos de um meio artistico simples, sem maiores tradições ou raízes, serão os perpetuadores
da estrutura vigente. Daí a implantação de um sistema de arte ligado ao mecenato
do Estado e à institucionalização do saber.
A rigidez do conceito de arte implantado pela Missão Francesa encontrou respaldo
para se expandir e solidificar numa estrutura política centralizadora e conservadora. Dela
resulta uma produção artística praticamente limitada a reproduzir formas desvinculadas da
realidade social e despida das características do seu meio. Por outro lado, a formação
humanistica apreendida na Europa pela sociedade brasileira erudita contribuía para a
sedimentação dessa forma de expressão. Para Craig Owens, as disciplinas humanísticas,
em particular a história da arte, trabalham para legitimar e perpetuar a hegemonia da cultura
européia ocidental. (6)
A limitação á criação artística deu-se desde o início e se estendeu até mesmo aos artistas
estrangeiros convidados a implantar o ensino artístico no Brasil. Foi o caso, por exemplo,
do “Pano de boca do teatro da Corte por ocasião da coroação de D. Pedro V , encomendado
a Debret. A necessidade de privilegiar o erudito vindo de fora, e a apropriação de
uma forma de representação estranha ao contexto cultural brasileiro ficam evidentes nas
palavras do próprio Debret. Em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, relata: “Pintor de
teatro, fui encarregado de nova tela, cujo bosquejo representava a fidelidade geral da
população brasileira ao governo imperial sentado em um trono coberto por rica tapeçaria
estendida por cima de palmeiras. A composição foi submetida ao primeiro-ministro José
Bonifácio que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um
motivo de arquitetura regular, a fim de não haver nenhuma idéia de estado selvagem.
Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas.
Relação da Produção A rtística com o Meio Sócio-Cultural
O século XVIII, que terminou com uma revolução, começou com um dilema —
político, filosófico e artistico — que provoca uma renovação na estrutura social, intelectual
e cultural na Europa. Esta renovação estava ligada ao Iluminismo e preconizava o
Racionalismo como a fonte do verdadeiro saber. A burguesia emerge e vai desenvolver
novos padrões e valores culturais que terão papel decisivo na produção artística. Em estudo
sobre a sociedade burguesa, J. Habermas (7) afirma que no século XVI11 os espaços
culturais foram ampliados e tomados públicos (museus, teatros, salas de leitura e de concertos
e salões da Academia) e a obra de arte é finalmente aberta à discussão. Ao passar
para o domínio público, ela assume necessariamente a forma de mercadoria, tomando-se
sujeita á discussão e à crítica. Se antes a obra de arte não era questionada, agora está submetida
ao julgamento público — à opinião pública que, através do mercado, apropria-se
dos objetos em discussão. Prova inequívoca desta nova e nada ortodoxa situação é a recusa
por Courbet da Légion d'Fionneur, em 1870: “ Meus sentimentos como artista se opõem a
isso simplesmente porque eu estaria aceitando uma recompensa que me é conferida pela
mão do Estado. O Estado é incompetente em matéria de Arte. Quando ele se incumbe de
distribuir recompensas, ele se intromete no campo do gosto do público. Sua intenção é
totalmente desmoralizadora. fatal para a arte que ele confina dentro das convenções oficiais
e que condena à mais terrível mediocridade; a única coisa sensata a fazer seria absterse.
O dia em que o Estado decidir nos dar liberdade, nos terá feito um grande favor. Tenho
N.A. Taunay, RUA DES. JO SÊ E M 1816, óleo/tela, 46 x 57 cm(MNBA).
50 anos e sempre vivi livre; deixe-me viver em liberdade até o fim de meus dias. ” (8)
Quando se configura o sistema de arte brasileiro, no início do século XIX, a França já
possuía evidentemente um sistema cultural complexo e uma sólida tradição artística. Após
mais de 300 anos de colonização portuguesa, o Brasil atravessará um longo período sob o
regime monárquico (1822 a 1889), sendo que, durante quase 50 anos, esteve no poder o
Imperador Pedro II, cuja influência no desenvolvimento da arte e da cultura foi marcante.
Um aspecto importante, pois, a ser levado em consideração é a personalidade de D.
Pedro II e o que ela simbolizava. Considerado um monarca instruído e culto, tinha a aura
da erudição e exercia o mecenato não apenas no Brasil (patrocinando de seu próprio bolso
o estudo, aqui e na Europa, de vários artistas, entre pintores, escultores e músicos) mas
também na Europa (contribuindo pessoalmente para a construção de um teatro em Bayreuth,
na Bavária, destinado à obra de Wagner). Homem de hábitos simples, porém com
pretensões intelectuais, protótipo do pai bondoso, digno do respeito e da obediência de
seus protegidos, são algumas das características desse homem que durante tantos anos
representou o poder.
O Brasil era constituído de uma sociedade cultural e artisticamente pouco complexa,
cuja elite intelectual, seduzida pela cultura européia, não podia perceber até que ponto era
problemático para essa cultura criar raízes e se desenvolver livremente numa sociedade
ainda em crescimento. A importação maciça e impensada de modelos atravessou todo o
século XIX. Até o início do XX inexistiam condições para que estes fossem explorados,
A academia e seus modelos
23
absorvidos e transformados de forma original.
Somadas a interferência oficial e a influência da figura arquetípica de D. Pedro II às
condições sociais, culturais e políticas da época, ficará ainda mais evidente a dificuldade de
nossos artistas em se rebelar contra a ordem vigente; ou transgredir as regras do jogo e
libertar a pintura como, por exemplo, fez Manet; ou mesmo reinterpretar o neoclassicismo
e procurar fazer uma pintura original.
As reações contra o academismo, que restringia o trabalho ao interior dos ateliês, incentivava
temas bíblicos, históricos e mitológicos e usava a paisagem apenas como um
complemento aos temas maiores, foram poucas e isoladas. A primeira delas veio de um
grupo liderado por George Grimm que reuniu em tomo de si alguns jovens pintores dá
Academia que queriam trabalhar ao ar livre. Dentre eles destaca-se João Baptista Castagneto
que, com suas pequenas “ manchas” , pinceladas rápidas e curtas, revela uma
preocupação em captar as pequenas nuances da luz, as transformações efêmeras do mar,
enfim, uma sensibilidade pictórica que põe a descoberto um universo ainda desconhecido e
não explorado pela maioria dos pintores de sua época. Também Eliseu Visconti reagiu à
arte oficial ao procurar no impressionismo uma nova forma de expressão artística. Absorveu
bem a técnica impressionista e deixou, ao contrário de Castagneto, vários seguidores.
Não houve, entretanto, renovação profunda e todos continuaram a fazer pintura impressionista
século XX adentro. A pintura do próprio Visconti se transformou apenas até certo
ponto: quando finalmente consegue captar a luminosidade e cor locais (principalmente
na fase final de Teresópolis), estamos já nas décadas de 30-40 e essa pintura pode ser tranquilamente
considerada acadêmica face às radicais transformações ocorridas nas linguagens
e no próprio sistema da arte.
N O T A S
(1) COUTINHO. Wilson. “ Da Ordem da Sombra” . Revista do MAM. Rio de Janeiro, Museu de Arte
Moderna, 1983. p. 101.
(2) HARDING, James. A rtistes Pompiers. French Academic Art in the 19th Century. London, Academy
Editions, 1979.
(3) WILMERDING, John. Catálogo da exposição “ American Light — The Luminist Movement” .
Washington, National Gallery, 1980.
(4) Os primeiros povoadores das colônias inglesas na América eram alfabetizados o suficiente para ler a
Bíblia contribuindo, assim, para dar melhores condições ao indivíduo para mais tarde assimilar, incorporar
e criar progresso e civilização.
(5) MOOG, Viana. Bandeirantes e Pioneiros. Rio de Janeiro, O Globo, 1956. pp. 152-153.
(6) OWENS, Craig. “ Representation, Appropriation and Power” . Art in America. Marion (Ohio), 1982.
p. 10.
(7) HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria
da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.
(8) Citado por James Harding, op. cit. acima nota n? 2, pp. 13-14.
Iberê Camargo: pulsão e estrutura
l íd ia v a g c
*4Nunca dei nome às coisas, porque
isto não existe em pintura ’ ’ (IC)
Este ensaio não visa abordar linearmente o percurso do artista mas tecer uma leitura a
partir de um corte temporal, tendo por referência o período posterior à fase dos “Carretéis”
(1959), determinante no amadurecimento da obra de Iberê Camargo e que o leva ao
reconhecimento crítico em 1961 na VI Bienal de São Paulo, quando obtém o prêmio de
melhor pintor nacional. A trajetória do artista, segura, consciente e lúcida, é a de um pintor
que sai lentamente da Figuração e identifica-se com a Abstração. A ação de pintar
transfere-se dos modelos que reproduziam uma realidade exterior à pintura — paisagens,
naturezas-mortas, arquitetura urbana, retratos — que já se caracterizavam pela ausência
de perspectiva e pela intensa expressão com contornos acentuados, para a simplificação das
formas, que alteram as grandes linhas do quadro, onde os objetos representados e as pinceladas
começam a se destacar e assumem significação própria. Assim começa uma fase de
cromatismo mais vibrante e materialidade pastosa na qual os carretéis, objetos marcantes
na infância de IC, se transformam em símbolos de suas emoções, assinalando portanto o
início da abstração.
A importância e a postura de sua pintura, o modo como articula a pulsão (pincelada) e
a estrutura (organização) da tela» possuem relevância equivalente, na História da Arte
brasileira, às de Francis Bacon ou Willen de Kooning no plano internacional. Isso porque
as obras desses artistas, entre outros, não se colocam como simples rupturas mas estão engajadas
num projeto cultural cujas fronteiras são as da própria arte moderna. A pintura de
IC, como a dos pintores citados, contém simultaneamente o singular e a linguagem internacional,
e é esse um dado que confere à pintura seu estatuto próprio. Aqui, no Brasil, ela
se concretiza com dificuldade pois além da “trama social” IC luta e ultrapassa os limites
das dificuldades materiais e dos códigos visuais arcaicos presos ainda à “Semana de 22” .
Alguns críticos consideram a pintura de Iberê como gestual ou informal. A propósito
da “ pintura gestual” , chamam a atenção as observações de Jean-Luc Chalumeau (1).
Referindo-se a Pierre Soulages (afirmando que não importa definir suas obras como “ abstracionismo
lírico” ou “expressionismo abstrato”) declarou: “neste caso, as categorias
efêmeras da crítica de arte são secundárias. De todo modo, se perto dele o gesto que leva a
(1) Chalumeau, Jean-Luc — “Lectures de l'A rt" (Reflexion esthétique et création plastique en France
aujourdhuf). Ed. Chène/Hachette. Paris, 1981.
26 GÁVEA
pintura sobre a tela tornar-se aparente, será um contra-senso a qualificar de gestual . A
pintura gestual pura não olha o que ela faz (grifo nosso) e Soulages controla, ao contrário,
meticulosamente. cada instante de acabamento da obra, donde ele assume a responsabilidade
do menor detalhe material".
O que estamos procurando indicar é que qualquer classificação sumária da obra de IC
não é determinante para a sua compreensão. E sobretudo que ler a obra não é somente
decifrar teoricamente seus signos, pois eles não são redutiveis a mensagens somatizadas
—nossa ação exigirá uma adesão mais profunda, a que Chalumeau chama emoção.
Produzir uma pintura contemporânea, impregnada de questões organizadas intelectual
e emocionalmente e que conferem ao quadro seu significado, não é um dado psicológico.
É. isto sim. um esforço do sujeito perante a tela vazia e que pretende transcender os
limites do simples olhar. A consciência passa a ser a existência da própria pintura como
corpo/carne, como um mundo que ali, no espaço da tela, é refletido mas também reflete.
Para assim entendê-la é preciso “olhá-la vendo".
Não vamos nos prender aos primeiros sintomas da “ desintegração da forma", resultado
de um complexo encadeamento de seu percurso criador. Buscamos captar sua abstração
como uma estrutura criada mediante o poder de um ato imaginário. Ou seja, Iberê
Camargo persegue na forma, no imaginário, no simbólico, uma “ coerência nova": o estar
presente na concretude da matéria. Esse exercício que nem sempre opera de modo objetivo
na pintura, está na sua obra dialeticamente como causa e conseqüência gerando de fato,
pois na concretude o símbolo engendra sempre um novo campo simbólico e assim por
diante.
' ‘O artista deixa de ser livre quando
afoga a voz de sua intuição para servir
a uma ideologia que não é a da arte ’ ’ (IC)
Em arte, não se trata de inventar formas e sim de captar forças. Por isso, a rigor,
nenhuma arte é figurativa — segundo Klee, a fórmula não é traduzir o visível, mas tornar
visível. A força está em estreita relação com a sensação: é necessário que uma força se
exerça sobre um corpo, sobre um local, porque ai há sensação. A dinâmica da abstração de
Iberê está justamente nas linhas de força que energizam suas formas — ora elas se aglutinam
em núcleos, ora explodem. A redefinição de sua linguagem pictórica, como indicamos.
se dá com a série dos “ Carretéis", quando passa a efetuar a “ tradução" do real
pelo emprego de um sinal, compreendendo portanto a relação de significação entre um objeto
e um símbolo, identificando-os em conjuntos diferentes.
A base da imaginação criadora — a Abstração em sentido estrito — implica na faculdade
simbolizante que permite a formação do conceito, da idéia, distinta do objeto concreto
que toma-se apenas o exemplo, a referência, o lado do avesso.
A técnica que passa a utilizar não se limita mais à simples colocação das camadas de
cores. Ao contrário são as sucessivas camadas de impasto, pinceladas e espatuladas violentas
e mescladas, as texturas e os sulcos que produzem a obra. A substituição da antiga ordem
é um processo que amadurece vagarosamente e exige do artista uma luta consigo
mesmo, experiência que se reverte integralmente para a tela. Dessa maneira, a abstração
de IC é uma massa permeada de substâncias que perseguem esquemas de pensamento, ora
imaginários ora figurativos. Com esses esquemas ele organiza as matérias, confunde as
formas e a Forma, trabalha a ambiguidade dos signos, articula as linhas de força, acelera e
desacelera o ritmo dos gestos, enfim, deixa visível o percurso da identidade de sua lin
Iberê Camargo: pulsâo e estrutura
27
guagem e alcança manifestar-se enquanto sujeito na tela. O esforço é para unir regiões, organizar
um espaço aparentemente solto, estruturar os limites das possibilidades,,, fazer e
refazer num continuo. Fazer emergir o que estava ausente, criar a imagem de “pintura
pela pintura” . Em um grande número de obras, a superfície apresenta-se como “cavada”
em sulcos de onde podem surgir formas que, por vezes, sofrem contornos; onde a linha é
um limite vazio, o contorno do nada — onde ela é pura esimplesmente — ou, inversamente,
onde as formas possuem contornos e se interpenetram pelo “fundo” . .
...“Agora é verdade que o indivíduo trabalhando numa abstração ele se torna mais
formal no sentido daqueles valores plásticos, a gente é menos enganado pelo que vê... porque
na verdade o quadro desde o início ele se planta, ele se coloca, e todas as mudanças que
depois acontecem, ele já mantinha um rumo que ele foi antes” . (2)
Iberê insiste em deixar claro que, quando trabalha em abstração, vivência os “ limites
da plástica simbólica” . Não procura o “elo” com o real empírico, objetiva sua obra como
se os signos fossem “ modelos” , “fontes” , “condutores de energia” , que muitas vezes
surgem como criações deformadas e chegam ao nosso olhar como “cubos” , “ pirâmides” ,
“setas” , “figuras” , “cruz” , “ chis” , “mãos” , entre inúmeras outras espécies. A pintura
deve carregar o impacto do olhar e, para que sejamos capazes de usufruí-la, somos obrigados
a romper com o cotidiano do olho e nos lançarmos na imagem, no exame e constatação
do que existe lá, naquele espaço infinito — a tela aberta a diversas, e até contraditórias
possibilidades. Ê um trabalho do logos e também do sensível. Não existe mensagem
em su? abstração, nem busca refletir algum tipo de natureza íntima que possa estar
contida nas coisas; suas imagens (que, em alguns casos, possuem breves estudos e em
outros são pintadas diretamente sobre a tela) se dispõem segundo o critério da criação.
Não há um referencial direto ao social, ao metafísico ou ao lingüístico, embora existam
elementos cuja leitura implique uma relação com muitas outras áreas do conhecimento
além da história da arte.
Gilles Deleuze (3) diz que Bacon faz a pintura do grito porque coloca visível o grito.
Estendemos essa afirmação a Iberê Camargo. Ele torna visível não só o grito, mas igualmente
o desespero, a luta, 0 medo e o místico. Mais recentemente, nas telas de 83/84,
evidencia a própria questão da identidade pessoal através da mão, do sangue, da semelhança
fisionômica — sinais que denunciam a equação da sua pintura, processo no qual é consciente:
“Agora eu, a minha vida, a minha pintura é do desespero, porque é a única posição
de um brasileiro, de um sul-americano, eu acho. Não pode construir, não tem meios e não
tem formação, só tem a dignidade” (4). A reflexão não diz respeito apenas ao “aspecto
regional” , diz respeito principalmente à posição do homem atual na sociedade contemporânea
— a ansiedade, a angústia, o jogo das probabilidades incertas são situações de fato
presentes na pintura, estão vivas nessa região que é o quadro.
A aparente “desorganização” da tela, que nos leva a um recondicionamento do
olhar, habituado à horizoritalidade das formas, deve nos reconduzir a uma “transmutação
ótica” para alcançarmos a desestatização que marca essa espécie de visualidade abstrata.
Nela os signos não refletem de modo direto as coisas e sim opiniões, saberes, idéias, e todo
nosso percurso é o de reconhecer seus significados, que não coincidem necessariamente
com a linguagem verbal. Assim, mesmo quando na obra de IC se esboça a figura ou o
(2) Retirado dos Depoimentos de IC em 23/08/83 e 20/09/83.
(3) Deleuze, Gilles — "Peindre le Cri" — in Critique, maio/1981, n? 408.
(4) op. cit. (2).
28 GÁVEA
modelo, trata-se na verdade de uma operação do imaginário. Na sua produção, ali onde
muitos identificam uma figura, outros vêem uma mancha; não é este instrumento o
parâmetro definidor da abstração do pintor e sim a relação entre a pulsào e a estrutura, a
organização dos limites, e até os não-limites da tela. Compreendemos essa relação como a
disposição entre os micro elementos e o todo; a pulsào e sua lógica interna são uma construção
organizada, e o pintor detém o controle das correspondências entre o micro e o
macro da pintura. A pulsào é simultaneamente pincelada e forma, agindo como uma só
substância. Ao conjunto, ao macro, chamamos estrutura — não estaremos mais diante do
que inicialmente nomeamos “desorganização” mas perante a coesão do cosmos pictórico.
As obras produzidas segundo o impacto do inédito levam tempo para serem captadas
pela percepção vigente. A positividade de Iberê extrapola o grande domínio técnico que
sua obra exige e revela: ela não pretende o “belo” , porém contém o belo, ou melhor,
guarda em si "o belo e a fera". Fera inevitável, ineludivel, que lhe dá a compulsão do pintar
e produz o outro do belo.
Em sua produção estão presentes todas as cores, aplicadas em multi-direções, criando
algumas vezes dificuldades para se encontrar a cor pura pois não há uniformidade no fundo
— uma cor se derrama, se emaranha por outra e, não raro, não vemos a passagem. O
preto, sempre muito atuante, contradiz o princípio físico e se apresenta como a presença
de todas as cores. Existem “ pontos luminosos” em todos seus trabalhos de linha abstrata.
Correspondem a segmentos localizáveis no conjunto e são os que ao primeiro olhar se destacam
por sua fulguração — são os “ graus” mais claros da pintura que se sobressaem no
preto agindo no equilíbrio cromático. Em alguns quadros esses pontos luminosos alcançam
seu limite fora da tela: as formas completam-se na mente do espectador. Fora, e não
dentro daquele espaço.
Nos últimos trabalhos, além da presença dos signos, constatamos a introdução
freqüente da sua auto-imagem. Essa manobra, que a tradição denominou “auto-retrato” ,
com Iberê assume a forma de pensamento; para pensar a pintura não é mais possível estar à
margem dela; deve-se estar dentro dela, atestando uma visão total e absoluta. Por isto, o
artista se coloca de frente, de perfil, como duas silhuetas que se entreolham, no branco e
no preto, no positivo e no negativo, como ícones autobiográficos. O pintor se vê como o
redimido que sofre, transfigurado pelo trágico, mas que tem como tarefa inesgotável a pintura.
Daí, em tantas telas, a presença da mão, o agente da pintura, o instrumento do seu
pensar. Em alguns quadros ele ainda segura o pincel — a mão como o condutor do imaginário.
Cabe a nós perceber que, depois da fotografia, não há sentido o auto-retrato descritivo;
ser fiel a si mesmo não é uma questão de reproduzir a própria imagem enquanto
mimese. A contemporaneidade impõe ao artista essa “ representação” como um problema
a ser resolvido. Os significantes estão lá, dependerá de nós captar seu “ego pictórico”
através de uma leitura que nos permita absorver a colocação do pintor consigo mesmo na
tela.
Poeticamente ficam do seu corpo na tela o movimento, o gesto, a presença da paixão,
os limites, a garra do traço, a luz no ponto certo, a força do inquieto... e não haveria outra
colocação senão aquela, outras formas senão aquelas, outra tensão senão aquela.
Trechos dos Depoimentos de ICem 23/08/83 e 20/09/83 (RJ)
LV: A década de 40 foi marcada na Europa e nos EUA pela abstração. Em 1951 a
Bienal de SP apresenta parte da visão plástica internacional. Que influências estes eventos
tiveram para você chegar na década de 60 aos “ Carretéis” ? Se é que tiveram.
Iberê Camargo: pulsào e estrutura
29
IC: Esses acontecimentos... eu sinto certa dificuldade, porque sou uma pessoa muito
solitária na minha caminhada, jamais me filiei a um grupo, segui uma escola ou tendência,
continuei tirando as coisas de dentro de mim mesmo. Estes fatos todos aconteceram,
tomei conhecimento, mas as Bienais de SP eu não as acompanhei, não freqüentei, a não
ser, eu acho, quando recebi um prêmio. Eu não saio, minha vida é muito “encapsulada” ,
de forma que isso que tu estás me perguntando pode ser porque influências existem, é
claro, a gente vive dentro de um contexto, todos nós somos participantes do momento em
que as coisas acontecem. Mas não conscientemente eu vou me filiar por uma questão
ideológica, não vou assumir porque estou convencido de que a abstração ou figuração é o
caminho, é a modernidade, a contemporaneidade, eu jamais tomei esta posição. As coisas
aconteceram por uma decorrência lógica do meu trabalho, como agora, por exemplo, eu
pintei umas figuras e então se diz: “é uma contradição” , antes fazia abstração e agora sai
com figuras... eu não vejo contradição nenhuma, porque estas coisas do sujeito se condicionar,
isso é muito escolástico. Quando a gente sente profundamente a vida, ou o que a
vida nos prova, porque acho que a coisa mais importante mesmo é viver, é o que acontece
na tua vida e como tua vida se extrai, se restringe — todos acontecimentos da vida vão
determinar tua expressão. Então, quando o sujeito “ morde o pó da terra” , quando o indivíduo
vive profundamente e sente a precariedade de tudo e a fugacidade do momento e
põe em discussão a própria eternidade, o próprio legado que tu vais deixar na tua geração,
para este país, para este mundo, mas mesmo isso é transitório! O que é eterno aqui? Então,
quando a gente tem uma noção disso, sentida como vivência, aí eu já não posso mais
respeitar os limites, não posso mais dizer que pertenço aos vermelhos, aos amarelos, aos
pretos... é a vida, compreende? O que acontece em mim, acontece, e se justifica pelo fato
de acontecer.
LV: Tomando as críticas que saíram nos jornais na década de 60, você tem um deslocamento
na coluna que te obriga a ficar mais parado, mais detido no atelier... aí você
chega aos “Carretéis” , que digamos, foi o “veículo” para a abstração. Acho que isto foi
um dado importante sim, mas acho que a abstração devia estar dentro de você, porque talvez
outro artista continuaria fazendo os “Carretéis” e não chegaria onde você chegou.
IC: Realmente nesta época que tive este acidente me interiorizei mais pelas circunstâncias,
o fato de não poder andar, carregar peso, o cavalete, tive dificuldade física e isso
me obrigou a uma vida mais de atelier, mas isso vem confirmar o que te disse antes — a
vida determina o caminho que tu vais seguir, são os acontecimentos que impõem a tua
conduta e as tuas respostas. Eu fui me interiorizando...
L V: Então a abstração tem muito mais a ver com teu processo interior?
IC: E, tirando de dentro. As coisas estão muito mais mergulhadas em si mesmo, não
é? E claro que o artista mergulha no mundo, mas o mundo está dentro dele evidentemente,
mas ele mergulha nas coisas mais íntimas.
L V: Como pintar a dor, o grito, a cor, a emoção, a razão, a idéia que são abstrações?
IC: Ah! eu nunca pensei em pintar estes nomes que tu estás dando, estes títulos, estes
poemas que tu estás inventando. Eu nunca dei nomes às coisas porque isto não existe
em pintura. Ela pode ser um grito, e acho que ela é um grito, mas não dizer... que representa
um grito, ela é um grito.
L V: Em que medida De Chirico e Lhote influenciaram tua formação?
IC: O importante é tu teres contato com o que é autêntico. São pintores, sabes. O
Lhote era uma pessoa muito teórica, um sujeito muito lúcido, o outro era uma personalidade.
Termos contato com pessoas que realmente têm densidade, que realmente são e
que sabem ver, sabem dizer, sabem pensar é muito importante, não é? Porque justamente
30 GÁVEA
o problema do Brasil é a solidão intelectual, não encontrar uma pessoa que diga. que faça
uma referência ao teu trabalho, que pese, que te oriente — esta referência leva a uma
reflexão do teu trabalho. Porque o sujeito pode dizer coisas, mas quem disse não tem peso
para dizer aquilo. Esta densidade cultural que eu acho que existe na Europa, que acho que
nós não temos. Nós somos de uma pobreza impressionante. Acho que todo contato com
um artista moderno importante, como Guignard, quer dizer, um homem autêntico, que
viveu as coisas, a sua arte. um artista de verdade. Acho que o que é autêntico sempre nos
enriqueceu, contribuiu. Por isso. às vezes um poeta que fale sobre teu trabalho tem sentido.
porque ele tem intuição, porque ele também é mãe, ele sabe os problemas da gestação.
ele conhece. O criador sabe, então pode através do que sabe ajuizar. Eu sempre tive
muito medo, porque sempre digo que um dia não saberei mais o que é pintura, mais nada,
porque me afastei tanto. sabe?... Agora eu, a minha vida. a minha pintura é do desespero
eu acho. Ele não pode construir, não tem meios, não tem formação, só tem a dignidade. O
latino-americano é o homem que tem que pintar a morte porque outro caminho não há, eu
não vejo. O sujeito vai entrar por essa área que falávamos, coitado, não conhece nada. Não
sabemos fazer nada. nem papel higiênico... então, o artista não tem meios, não tem como
trabalhar, é um país miserável.
LV: Iberê, como foi seu processo na Europa no sentido do olhar, do treinamento da
mão?
IC: Ah! eu olhava muito, centímetro por centímetro como era a relação do quadro,
como ele tinha sido feito, como um marceneiro que chega numa marcenaria como aprendiz
e procura ver como o sujeito faz os encaixes, como aquilo está resolvido no sentido de
como as coisas são feitas. A parte artesanal sempre me interessou muito para aprender.
Mas o que uma pessoa pode fazer senão se debruçar sobre as múmias e prescrutá-las? Porque
toda história é assim, toda descoberta... você chega e lê nas pedras o que o tempo
trabalhou, palavras, pedaços de palavras e tu tens que recompor o pensamento e é assim
que se aprende.
LV: Naquela ocasião na Europa, quem você admirava, a gente tem sempre alguém
com quem se identifica.
IC: Bom. naturalmente é um choque violento, não é? Quando desembarquei em Portugal.
fui correndo ao Museu das Janelas Verdes porque tinham me dito que lá existia um
Raphael e aí eu sai correndo... eu nunca tinha visto, Inumca tinha tocado, quer dizer,
aquela coisa que é você ver pela primeira vez; então, essa emoção toda... quando você
chega diante daquela montanha de arte, o sujeito fica louco, não é? Eu nunca tinha visto
nada... aquele impacto assim arrasador... o cara tem vontade de sair para a rua e dizer “eu
não sou pintor, sou dono de um cartório” , inventar uma coisa assim porque não dá. Eu
passei pelos ateliês porque não dava, não havia tempo; juntei o que pude para encher o
saco como aqueles famintos que, quando chegam, começam a encher o saco. Mas aquele
saco por maior que fosse, era pequeno, porque a montanha de ouro está lá, o que poderia
trazer é esta consciência, compreende? Isto que estou falando é o resultado de uma consciência
adquirida da nossa diferença, por isso eu digo que o único caminho é o desespero.
LV: Além da visualidade adquirida, em termos de vivência, quais foram as marcantes
na tua obra?
IV: A vida quando você vai vivendo, respondendo a tudo isso, o mar está calmo, o
horizonte tranqüilo, não há nada, nem sinal de tempestade... mas um dia acontece, então
ai acontece a tempestade... um negócio que você nunca imaginou... então você vai perder
todos esses respeitos, todos esses compromissos que você tem, porque você sem querer
' tem compromissos com a estética... e vai, sem querer, vai se engajando num contexto his-
SIN AL, Iberê Camargo, 1984, óleo sobre tela, 25 x 35 cm
tórico... o sujeito está muito bem enquanto ele estiver respondendo comportadinho ao sistema.
Não há nada de sagrado “chê” , não há sagrado a não ser teu desespero, tua dor
profunda, todo teu ser que sofre.
LV: Existe alguma relação entre as suas naturezas-mortas e as de Morandi?
IC: Bom é possível que houvesse influência porque é claro que sempre o pintor da
metrópole vai influir no pintor do outro mundo. Mesmo que eu veja que há um paralelismo,
sempre vai aparecer você na história como sendo influenciado por outro.
LV: Mas você acredita nisso?
IC: Mas a história registra assim, porque quem escreve a história é o vencedor, é o
rico, é ele quem escreve a história. Agora sei que fui muito influenciado por Utrillo, que
agora não me diz nada. Recebi influência de outros pintores, me debati de todas as maneiras.
Foi uma luta tão dramática a de me encontrar.
L V: Van Gogh, você se identifica com aquela pincelada dele?
IC: Não, eu não... falei nele porque acho que é um passional, nesse sentido eu me
identifico com todos esses indivíduos que realmente pintaram com alma e isso eu acho importante.
LV: E o tachismo Iberê? Você falou na mancha e eu me lembrei do tachismo.
IC: Pois é... mas eu nunca fiz assim uma pintura desordenada, sem saber o que estou
fazendo. O tachismo pega mais o gesto, não é?
LV: Você já trabalhou direto na tela?
32 GÁVEA
IC: Trabalhei muito; às vezes eu esboço antes com o carvão, mas não necessariamente.
Esse filme que foi feito, eu trabalhei diretamente na tela a partir de uma figura. Esse
painel que vai ser exposto (refere-se ao trabalho exposto em 09/83 no Centro Empresarial
Rio — Coletiva “ 3/4 Grandes Formatos”) eu desenhei antes, mas depois me afastei tanto
do desenho que é como se não tivesse desenhado, ficou apenas para dizer que agora é essa
massa aqui... porque eu sempre refaçoe redesenho tudo, então... esse painel foi documentado
por um fotógrafo, tinha desenhos até bonitos, mas depois tudo sumiu.
L V: As coisas que você escreve têm alguma relação com a sua pintura?
IC: Bom. porque tu sabes... tudo é um problema de forma, de linguagem... escrevo
cartas, gosto de literatura, escrevo para mim, gosto de escrever sem pretensão. No pintar,
no desenhar, sempre achei que a pintura na verdade são três traços, é geralmente muito
simples. São três palavras aquilo tudo, e na literatura também.
L V: Outra coisa que tenho pensado em cima de seu trabalho, das figuras que estão
vindo... é como se pudesse dividi-lo em vários espaços, onde as regiões tivessem uma
leitura, que também está articulada com o todo. Por exemplo, lembras da mão que tu
fizeste num dos últimos painéis, aquilo já é um quadro.
IC: Aquela mão. tu sabes, foi um sinal de trânsito em Porto Alegre — é uma mão
vermelha de pare. sinal de trânsito de noite, o fundo é escuro. Mas eu acho que o ponto de
partida de um pintor é sempre um alçapão, quer dizer, alguma coisa que serve para atrair;
o indivíduo pensa que está desenhando aquela mão pelo fato de ter visto aquela mão no
crepúsculo, que ele viu no sinal, enfim... mas eu acho que aquilo é uma ilusão, é um
pretexto, no fundo acho que aquela mão tem uma simbologia muito maior, não é uma
mera mão de trânsito. É uma mão que vai, que deve ter uma ligação com seus ancestrais,
com a sua vida, não sei... deve ser uma coisa muito profunda. Aquilo foi apenas o detonador
de uma outra coisa que aparece com aquela forma.
LV: .E os dados? Os cubos? Os olhos?
IC: Eu também não sei porque, sou um homem que jamais brinca com o azar, com a
sorte... aconteceu aquilo. Eu espero que acabe... que eu chegue ao fim dessa estrada. Um
dia acaba... surgem outras coisas. É sempre assim... e tem que necessariamente viver
aquilo porque não pode pular, não pode anular aquele espaço de tempo que está, o marco
que vai mudar as coisas. Não sei, o que sinto em mim é muita vitalidade, posso estar enganado.
com muita possibilidade de fazer coisas mas o meio é muito restrito, tudo muito
complicado pela falta de material para o sujeito se expandir mais. Eu tinha vontade de fazer
gravura com vários impressores mas não tem, tudo é “choco” , mole, morto. Então fico
eu sozinho na minha loucura...
LV: Iberê, quando você está fazendo um trabalho como esse, a cor... como é essa cor?
IC: Nossa! Como é que eu vou saber como é essa cor. A cor é uma lingaugem do subconsciente,
é uma coisa que vem, que está, não é uma cor escolhida, um mostruário, isso
acontece...
LV: Isso quer dizer que você vai usando uma cor e depois vai sentindo a que tem que
colocar ao lado?
IC: Ah, é, vou sentindo que uma cor exige outra, isso é um processo automático, é o
inconsciente que vai vendo isso ou a experiência qúe a gente tem com a coisa, se você fosse
pensar: “ agora eu coloquei uma cor, vou pensar qual é a cor que eu vou pôr” ... isso é uma
frase...
L V: O que importa é o diálogo do Iberê artista com sua própria obra, seu compromisso
com ela, porque é isso que vai ficar aí na história da arte do Brasil. Atualmente como
você está vendo esse diálogo com sua obra?
Iberê Camargo: pulsâo e estrutura
33
IC: Eu acho que esse monólogo... eu às vezes me sinto preso, é o que consigo por para
fora. Sempre espero também que aconteçam novas coisas... na tela. Mas há um momento,
não sei, parece que as coisas têm um tempo de duração, as coisas permanecem como obsessão
e eu pergunto quando esse pesadelo, essa obsessão vão acabar, quando terei outra
obsessão; eu não sei... então fica aquela margem... aquela coisa... porque no fundo parece
que o indivíduo sempre repõe o mundo outra vez.
ESP A ÇO M ODIJIA DO NP 4 1958,
tinta industrial/madeira,
50,5 x 50,7, col. JoãoSatamini.
Lygia Clark: a dissolução do objeto
M A R IA C R IS T IN A B U R L A M A Q U I
A singularidade da trajetória da obra de Lygia Clark está na dissolução do Objtto
como forma de abolir a distância entre arte e vida. Por isto a importância de Lygia Clark
tem sido constante, a ponto de acompanhar toda a história da escultura contemporânea no
Brasil.
É fundamental, portanto, que se abra espaço para a releitura da trajetória Neoconcreta
da artista, mesmo 25 anos depois do Manifesto Neoconcreto, já que o dinamismo de
suas formas pressupõe uma ação de forças que se converte numa sucessão de rupturas no
campo da arte.
Plano, Espaço e Tempo
A pressuposição imediata é o “passado" construtivo (1) de Lygia Clark, ou seja, a
questão do Cubismo e seu rompimento com o espaço perspectivado renascentista. A disassociação
dos elementos pictóricos e a inteligibilidade do Plano já estavam conquistadas no
momento em que ela adere, nos anos 50, a uma linguagem abstrato-geométrica, com a
participação no Grupo Frente no Rio de Janeiro (1954), no Concretismo e depois no
Movimento Neoconcreto.
É evidente que a abstração geométrica tem suas bases no Cubismo. O que queremos
demonstrar não é a simples compreensão na sua obra do Cubismo, pois isto está subentendido
pela linguagem construtiva, mas como ela vai trabalhar o Cubismo como um problema.
Problema do plano, espaço e tempo.
É esta questão da pintura a questão inicial de Lygia Clark e que aparece até mesmo
nos Bichos (1959). A artista não teve uma formação acadêmica. Começa a aprender
“coisas” com Burle Marx (1947), depois em Paris tem aulas com Léger, Szenes e Dobrinsky.
Voltando ao Brasil, em 1952, se filia ao movimento Concreto Brasileiro em 1954.
Seus primeiros temas são escadas, sobre as quais tece a seguinte consideração: “O espaço
das escadas era incrível porque nunca se sabia se estava subindo ou descendo. Ali estava o
cerne do Bicho” (2).
A Obra de Parede
Partindo da noção de que o espaço não é algo que éxista em si mesmo, Lygia Clark vai
procurar nas suas primeiras telas concretas o rompimento com o espaço pictórico tradi-
36 GÁVEA
cional. Espaço pictórico tradicional sim. pois Lygia Clark usava tela, moldura e tinta,
resolvendo a pintura no quadro convencional. No entanto, isto não a satisfaz e logo busca
formular um vocabulário para exprimir um novo espaço, pintando a moldura da cor da
tela. A preocupação era a “de arrebentar o núcleo do quadro (tela), levando a cor desta
para a moldura, a própria espessura da moldura já começava a entrar também como
elemento plástico” (3). Nestas primeiras tentativas, joga em algumas telas a cor até um
determinado ponto da moldura de acordo com a própria composição do quadro. A pintura
começa a se fundir com o suporte.
Moldura e tela se confundem, uma invadindo a outra, quando Lygia Clark pinta a
moldura da cor da tela. Depois, ao pintar partes da tela até a moldura, o espaço passa a se
organizar de maneira cromática, chegando mesmo a ampliar o espaço pictórico, saindo da
moldura. Não é uma pintura fechada nela mesma, a superfície se expande igualmente
sobre a tela. separando um espaço, se reunindo nele, e se sustentando como um todo.
É bom lembrar que. dentro do movimento concreto, estas tentativas de Lygia Clark
estavam já bem distantes dos postulados racionalistas. Mondriam deixa assim de ser pensado
como uma estrutura fechada em si mesma, recordando que estas formas geométricas
já haviam inspirado a Calder e seus móbiles, que fazem flutuar no espaço as formas coloridas
de Mondrian.
Esta análise intuitiva, própria de Lygia Clark e do Neoconcretismo, abandona o rigor
formal do construtivismo. chegando através das linhas oblíquas e formas ortogonais à
desarticulação do quadro e ao rompimento com a moldura. É uma tentativa de abolir a distância
entre o espaço da tela e o espaço real. E é aí que Lygia Clark dá o salto qualitativo,
não só em sua obra como dentro da linguagem construtiva. Quando, nas obras Neoconcretas.
ela extrapola a moldura, não há um lado por onde abordar, a abordagem se dá por
todos os lados: o espaço da pintura não se resume nele mesmo. Com a ausência de linhas
verticais. Lygia Clark nega os limites da moldura e a verdade passa a ser o próprio espaço
que se está formando à nossa frente. É a critica à contemplação.
Max Bense. em sua Pequena Estética, dizia “coordenar um esquema finito de repartição
de probabilidade de seus elementos materiais ou signos, então a moldura do objeto
artístico fixa de certa maneira este esquema finito” (4). Max Bense usa o sentido da moldura
como margem que “fixa não só a finitude do objeto artístico, mas também o tamanho,
o formato e a intensidade" (5). Pressupõe a pré-ordenação ou seja uma decisão'
sobre o objeto estético.
Ao atravessar a moldura, Lygia Clark cria o objeto no espaço real. cria o espaçomodernidade.
Pois. a “função da moldura de quadros relaciona-se também com a psicologia
de figura e fundo” , segundo Arheim (6) em que o quadro como superfície limitada
é a figura, que colocada sobre a parede se torna fundo. O rompimento da moldura realiza
também o encontro com a arquitetura, pois ela tem o mesmo problema da janela, resolvido
na arquitetura moderna com as paredes que se tornam grades de planos horizontais e
vidros (vide Mies Van de Roh).
A idéia de Mondrian de que o espaço virtual, de coordenação abstrata, passasse da
idéia à ordem real, e a de Malevitch de que o fundo da tela não é o lugar do pensamento artístico
mas o seu modo. afirmam que não é mais o objeto o que importa e sim o projeto. O
lugar efetivo do pensamento será o espaço público. É o desejo de Lygia Clark, “eu sempre
proçurei um espaço que não fosse mecânico, esse espaço em que fecha o olho e lê mecanicamente
o quadro através de pequenas fórmulas. Eu queria um espaço orgânico, em que
se pudesse entrar dentro do quadro” . (7)
Desde o inicio, a linha era uma de suas preocupações: a linha entre a rela e a moldura,
U
PLANOS EM
SUPERFÍCIE
MODUIADA. n? 6
série B 2? versão, 1958.
tinta industrial/madeira,
1,06 x 28,9.
ESPAÇO MODULADO.
n? 4 série B 2? versão.
1959,85,5 x 29.
col. Gal. Bonino.
38
GÁVEA
linha não gráfica, que aparece nas “ junções de portas e caixilhos, janelas e materiais que
compõem o assoalho” passando a chamar “ linha orgânica” pois era real, existia em si mesma,
organizando o espaço, “era a linha-espaço, fato que eu viria perceber mais tarde (8).
Nessa época dedica-se a experiências para aplicação na arquitetura. A sua pintura então
seria uma porta, assim como em Le Corbusier, na tentativa de solucionar racional
mente a vida, o objeto-quadro se transforma em objeto-casa, uma nova estruturação do espaço
habitado. Lygia Clark quer se inserir desse modo no real que é a arquitetura. No entanto.
prosseguindo as pesquisas sobre o que chama de linha orgânica , ela \ai buscar
em Albers um apoio para sua recusa da forma seriada concretista, uma \ez que Albers
rejeita a matematização da cor e do espaço.
A Experiência Fenomenológica
Ao retornar à questão da forma significativa, a artista rejeita tanto o conceito tradicional
do quadro quanto a temática concretista, tentando enfocar o quadro como um
todo orgânico. Desde o início procura desenvolver um trabalho com um sentido mais orgânico.
fugindo aos preceitos ortodoxos de Max Bill. O espaço concreto era tão-somente
um espaço fragmentado em que a leitura do olho era feita ponto a ponto — já Lygia Clark
pretendia que o espectador e o quadro, por assim dizer, se interpenetrassem. A obra é
aceita como uma experiência estética na qual o olho não é apenas um instrumento; é um
olho que percebe e ordena o mundo.
As metáforas em Lygia Clark são da ordem do corpo. Ao invés de estruturar partes,
formando unidades de tipo concreto, geometrizada euclidianamente, utiliza-se da dinâmica
da forma. É aí que a força criativa de LC encontra Merleau-Ponty e sua Fenomenologia
da Percepção. Para ela o importante será o corpo, a experiência da “carne” .
Quando descobre a linha orgânica passa a investigar a origem de sua significação num esforço
de chegar a uma linha não mais geométrica e sim com uma ligação corporal.
Em Merleau-Ponty a obra de arte contém uma nova percepção da experiência do corpo.
O paradoxo, a ambigüidade, o enigma e o mistério não são eliminados e sim reinterpretados,
decifrados pela experiência fenomenológica. A obra de Lygia Clark inicia ai o
processo crítico da linguagem construtiva, utilizando-se da filosofia do corpo para refazer o
espaço.
E um espaço em muitos aspectos paradoxal porque não há um exercício da forma e
sim um espaço que parte do Eu, vivenciado por dentro, sem o invólucro exterior, eliminando
o sujeito contemplativo e pretendendo fazer ressurgir o sujeito participante-domundo.
Merleau-Ponty submete à análise a Gestalttheorie e opõe a ela uma filosofia da forma.
Nela a obra de arte é vista como experiência fundamental da carne. É no próprio embate
com a Gestalt que os Neoconcretos colocam a decisão de eliminar figura x fundo. O tema
é a Ambigüidade, porque vem da experiência do corpo, da volta às “ coisas mesmas” , um
“exercício de liberdade” , uma percepção movida pela sensação em oposição ao dogmatismo
e ao objetivismo concretistas.
Já com o rompimento da moldura Lygia Clark colocava uma ambigüidade de direção:
a obliqüidade das linhas lançavam a pintura para fora e ali encontravam o espectador.-
Quando ela toma a linha orgânica, que vem do seu corpo, está “ emprestando o seu corpo
ao mundo , transformando o mundo em pintura, deixando de ser apenas um operador
perceptivo para perseguir uma união e uma passagem do visível e do móvel. A busca não
Lygia Clark: a dissolução do objeto
39
tem uni caráter unicamente experimental, considera o momento existencial como o
momento decisivo da experiência. Ela propõe assim uma nova visão da problemática construtiva
onde a transcendência será a especificidade do objeto artístico.
Superfície modulada
As possibilidades de estruturação perspectivistas, redutíveis ao Plano, na obra de
Josef Albers, vão dar subsídios à artista para realizar as Superfícies Moduladas. Apesar das
afinidades com a Gestalt, a pintura de Albers não tinha efeito apenas ótico — é uma percepção
inteligente, sem racionalidade mecânica. Os quadrados em Albers se revezam,
agindo, criando relações diferentes: o espectador deve construir relações também; Albers
quebra a estaticidade da superfície através do jogo dos planos.
O encontro com Albers vai marcar a percepção espacial em Lygia Clark que será dissecada
até os Bichos. Daí em diante ela passa a usar a linha-espaço de maneira a construir
os planos e a delimitar a própria cor. Considera, porém, o sentido de espaço em Albers
diferente, pois “ Albers ainda construía sobre o fundo, ao passo que a minha maior
preocupação era reconstruir toda a superfície para que o espaço externo não só as interpenetrações,
como também passasse a agir sobre elas diretamente. (...) O caráter expressional-orgânico
passou a existir novamente, pois o que queria expressar era o espaço mesmo
e não compor dentro dele” (9). Usa assim a linha orgânica como uma linha exterior,
independente das junções do quadro e o espaço, criando o próprio tempo da obra. A pintura
se fazendo e se refazendo como o mundo. Já não se trata de fazer pintura, mas da pintura
fazer-se.
As Superfícies Moduladas (1956-1958) querem “ mostrar através” , o espaço expressivo
de uma relação positivo/negativo. E querem ainda pensar a questão do tempo Vivido
em contraste com o fundo mecânico das obras seriadas do Concretismo: o espectador e a
forma seriada se colocam distantes um do outro, sendo a leitura imediata. O pressuposto
de Lygia Clark é o tempo Vivido, trabalhando o tempo virtual e deixando ao espectador a
leitura da obra. A obra se apresenta outra a cada leitura, havendo pois a recriação constante
da obra de arte. No encontro com a linha orgânica, Lygia começa a pensar o conceito de
participação do espectador, que vai se efetivar nos Bichos.
O que se inscreve aí ela vai chamar de linha-tempo e que seria a questão limite do
Cubismo, a 4? dimensão. As quatro dimensões para Malevitch são as 4 formas da manifestação
da consciência. E a 4? seria exatamente a Intuição. Para Malevitch o artista
deveria reunir todos os aspectos do conhecimento e da visão para obter a 4? dimensão que
é a Realidade. Malevitch coloca o Intuitivo na arte: Lygia Clark faz suas experiências de
maneira crítica, mas intuitiva, descobrindo, estudando e redescobrindo incessantemente
as questões da linguagem pictórica ou escultórica. Partindo da experiência concretista e
seu tempo mecânico, Lygia Clark na Superfície Modulada (1956) ao contrário de Albers
que constrói com a linha, constrói formas; a superfície é só o suporte “para expressar o
tempo-espaço” . A linha-tempo preta sobe e desce incessantemente. Está evidente a ligação
com a Gestalt quando a linha interrompida no Ovo (1958) deveria ser completada
pelo olho e não é. Um círculo de madeira preta (cor limite não-cor) e a linha branca que o
acompanha quase até completá-lo. E a fisionomia do círculo.
Casulos e Bichos
Lygia Clark sai da dimensão da tela e se lança no espaço com os Casulos. Estes seriam
40 GÁVEA
relevos porque a superfície não é determinada pelas formas; não seriam escultura porque
não há propriamente volume e massa e fogem também da bidimensionalidade da pintura.
Vêm diretamente dos Contra Relevos de Tatlin e têm o sentido malevitchiano de saltar
para o espaço.
No periodo de 1912 a 1930, sobretudo, os artistas realizam experiências cubistas
visando sair da superfície para o espaço. Efetivam no objeto as proposições cubistas, facetando
os volumes em ritmos fragmentados, transportando os planos da pintura para a
escultura. Tatlin. em especial, realiza com formas geométricas uma articulação orgânica e
funcional. Lygia Clark nos Casulos segue essa tendência, questiona o dentro e fora. quer o
olhar do espectador criando incessantemente um espaço topològico, proveniente das experiências
com a Fita de Moebius, famoso exemplo de geometria não-euclidiana.
Em 1959. com os Bichos, I.ygia Clark dá outro “ salto qualitativo” através da participação
do espectador na obra. É o fim da contemplação e da reverência diante da obra de
arte. Com a noção fenomenológica do homem, a interação do fora e do dentro, do antes e
do depois, é a arte voltada para a existência imediata do Homem.
As obras se tornam organismos vivos, tanto que ela os denomina Bichos. Tratam-se
de placas unidas com dobradiças que juntam dois planos e duas partes dobradas que não
mexem. O caráter orgânico é flagrante: as dobradiças seriam a espinha dorsal e derivam das
pesquisas com a linha orgânica. Para ela, o Bicho é um quadro cubista que caiu (10).
Quando diz isto o faz porque ali existe uma superfície cubista tensionada; articulação de
planos e não de volume. Devemos, pois, observar o tamanho das peças, basicamente
manipuláveis. Não poderíam ter a dimensão da Minimal A rt, evidentemente.
Essa dimensão subjetiva da obra, irredutível à objetividade do mundo, propicia as
condições para acabar com a base. pressuposto da escultura clássica. Porque a Base remete
justamente ao problema da Representação e o trabalho artístico agora visa acontecer no
mundo: não está mais fora dele, não tem uma dimensão ilusionista. É o que leva Max
Bense a chamá-los kntre-Objetos. Quando a artista liquida a moldura já estava em luta
com a representação e a contemplação.
Os Bichos tomam a questão da experiência artística como uma experiência do Outro.
O espectador, através do gesto, do tátil, em construção e desconstrução. é convocado à
participação, à recriação da obra. O Bicho, “ como a visão do pintor é um nascimento continuado".
Há ai o paradoxo de, sendo arte construtiva, questionarem a presença positiva
da arte no mundo. A função-arte (Caminhando) acaba passando muito mais por um Existencialismo.
Nada é menos positivo do que o existencialismo. O de Merleàu-Ponty, entretanto,
não tem o sentido sartreano pois recusa a concepção dramática do homem,
sobretudo enraiza “ o sujeito-pensamento no seu corpo, no seu passado, num mundo cultural
onde o pensamento de cada um pode ser tomado e compreendido pelos outros” (11).
Coloca-se, portanto, radicalmente a expressão. Nesta obra de força expressiva, orgânica,
com dinamismo espacial, encontram-se o dentro e o fora, o côncavo e o convexo, interioridade
e exterioridade, o reto e o oblíquo, o reto e o curvo. A questão não é decifrá-los e
sim experimentá-los, tem a intencionalidade de “ eu posso e não eu quero” . É uma situação
limite. A dinâmica das placas pressupõe cada parte no espaço. E este remete ao
imediato do nosso corpo.
Aqui não há a problemática da escultura tradicional: volume e massa saem do plano
cubista e nesta tensão ambígua aparece pela primeira vez a tridimensionalidade, o pensamento
do Plano. O Bicho constrói um volume mas deriva da questão do plano. A arte é
vista como prática a envolver participações gestuais e ativas do espectador, um “ exercício
de liberdade". Em Lygia Clark o que se move não é o espectador ao redor da obra, como
Lygia Clark: a dissolução do objeto 41
acontece em Archipenko, Lipchitz, Laurens e Gabo, que só fizeram passar o Cubismo para
o volume, permanecendo estáticos. Os Bichos vêm diretamente de Tatlin, com alguma
coisa da “Constructed Head” , de Gabo (1917), principalmente onde os planos formam
círculos; só que em L.C. há um eixo central e um plano circular que gira em tomo do eixo
vertical, com dobradiças. Como em Gabo, estas obras são feitas de lâminas de aço em formas
matematizadas, cristalizadas numa tradição construtivista (material industrial), mas
procuram uma comunicação mais autêntica com o corpo humano, que vê é é visto, toca e
é tocado. Como Laurens, Lipchitz, Archipenko, Gabo e Prevsner a trajetória de Lygia se
faz muito por ali. pela “planar dimention”, em que a concepção do quadro como plano
plástico elimina a distinção entre pintura e escultura. Só que L. Clark avança a questão: o
seu objeto se move. Seria, então, o não-objeto? Aqueles artistas tentaram realizar plasticamente
a decomposição da pintura, conseguindo romper a concepção tradicional da
relação entre as formas plásticas e o espaço. Não conseguiram, porém, renovar á estrutura
BICHO. 1959. alumínio, 32 x 1.07.
42 GÁVEA
da forma plástica e se limitaram quase a uma imitação da forma pictórica. Da estrutura de
aço inoxidável elástica e deformável passamos aos Trepantes, sem charneira, que ela
chama de “ antes e depois” — e finalmente Obras Moles, distanciando-se então completamente
da concretude da tradição construtiva pelo material, a borracha.
Caminhando. Fragmento do Tempo Captado
Lygia Clark chega ao Caminhando através da Fita de Moebius e das pesquisas com o
espaço não-euclidiano, o dentro e o fora, o direito e o avesso. Já nas primeiras experiências
com a linha orgânica, conseguiu estendê-la para fora da tela e chegou aos Bichos (dobradiças),
aos Trepantes e às Obras Moles.
Caminhando é a experiência de um tempo sem limite e de um espaço continuo. É o
espaço topológico, “em que as distâncias não são medidas abstratas e inatingíveis nas
relações, situações em função deste Eu exterior e o Eu interior” (12). Após certas Vivências
em campo de forças, de impulsos, de motivações, de atração e repulsão, deslancha-se a
poesia do ato e do momento. Cada Caminhando é uma realidade que se revela na totalidade
no tempo da expressão. Ele enfatiza o gesto efêmero e a função-arte é questionada no
momento em que perde o valor de mercadoria. O Caminhando é um “ faça você mesmo” ,
com uma tira de papel e tesoura. Aproxima o sujeito do objeto, corpo-a-corpo existencial,
tematiza o vir-a-ser.
Nos Bichos — o gesto
No Caminhando — o ato
E a questão da Intuição de Malevitch; a obra aparecendo em sua singularidade.
Lygia Clark considera 0 Caminhando um ato imanente realizado pelo participante,
com todas as responsabilidades que se ligam a uma ação individual, permitindo a escolha,
o imprevisivel e a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto.
Lygia Clark: a dissolução do objeto
43
“Caminhando no espaço, ela rói, no entanto, o espaço prosaico e o partes extra partes”
(13). É a aproximação máxima entre sujeito e objeto.
Para Merleau-Ponty seria útil recolocar o problema da percepção no presente da
neurologia e, particularmente, da psicologia e da filosofia. Esta abordagem se aplica bem a
Lygia Clark. Após o período artístico, em busca da dissolução do objeto, ela caminha para
as Vivências, colocando o corpo humano como um instrumento de expressividade e,
depois para uma interiorização, agindo como terapeuta. Isto, porém, escapa aos limites
de nosso estudo.
Lygia Clark e o Movimento Neoconcreto vão rediscutir, em nosso ambiente cultural,
o projeto da modernidade, apreendendo sua problemática de maneira diversa ao do caráter
anedótico que dominava a quase totalidade dos artistas brasileiros desde os anos 20. Com
os Casulos, os Bichos, as Obras Moles e Caminhando, ela coloca o Movimento Neoconcreto
na vanguarda internacional. Avançando no processo de inovação e emancipação da
arte, ela acaba chegando a um nível de radicalismo que culmina com o abandono da arte,
após liquidar as categorias de escultura, pintura e relevo. Um impasse real dentro da
problemática da cultura moderna.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) Inicia-se na pintura figurativa, após conhecer Mário Pedrosa. Por sua influência, insere-se na linguagem
abstrato-geométrica (entr. Paulo Mendes Campos. nov./84).
(2) COUTINHO. Wilson “ A radical Lygia Clark". Jornal do Brasil, Cad. B. p. 1, 1980.
(3) CLARK. Lygia “ Lygia Clark e o espaço concreto expressiònal” . Suplemento Dominical do Jornal
do Brasil 7.02.59 (depoimento a Edelweiss Sarmento).
(4) BENSE. Max — Pequena Estética Ed. Perspectiva, S.P. 1975 pp. 67 (teórico matemático da Esc. de
Ulm e um dos orientadores do concretismo.
(5) Ibidem pp. 67
(6) ARHEIM. Rudolf — Arte e Percepção visual, uma psicologia da visão criadora Nova versáo — Ed.
Univ. S.P. 1980.
(7) Depoimento Op. Cit.
(8) Ibidem
(9) Depoimento Op. Cit.
(10) PEDROSA. Mário — Significação de Lygia Clark. JB. 23.10.60.
Ò l) BRUNCH. Jean Louis — “ O existencialismo de Merleau-Ponty” , Suplemento Dominical JB,
pp. 1.
(12) PUIG, interpretando a Psicologia de Espaço de Abrahan A. Molles, diz “ Yo ampliado, de carapazones
dei yo" que traduzimos por'Eu-exterior e eu-interior. Carapazones significa casca de ovo, concha de
caramujo, op. cit. pp 125 Intangibles por inatingiveis.
(13) M. Ponty. 1963 pp- 92.
JJJDITH LAU AND ,
“ Dinamização de elementos ortogonaisJ\
1955, esmalte s/eucatex,
61,5 x 61,5 cm. Col. do Artista.
A questão das idéias construtivas
no Brasil: o Momento Concretista
V A N D A M A N G IA K L A B IN
O universo de análise é investigar as condições da inserção das idéias construtivas no
Brasil, a validade de suas propostas e a eficácia de sua atuação, tendo em vista a dinâmica
que as teorias construtivas vão imprimir em nosso meio de arte e as possibilidades que
geram para o trabalho artistico como parte ou não de um projeto nacional.
O grupo concreto paulista será o ponto de partida. Não apenas representa o primeiro
momento de penetração de uma nova linguagem estética, que possibilitou a abertura de
um espaço para a arte contemporânea no Brasil, como uma reflexão sobre a relação entre a
atividade artística e as relações de produção. Na trajetória que a arte concreta paulista vai
percorrer em sua produção teórica e em sua prática artística, serão incorporados os postulados
da vanguarda construtiva européia que, de um modo geral, investem contra as
atitudes metafísicas e irracionalistas que permeavam a atividade artística para afirmar a arte
como uma prática racional e positiva. Os artistas construtivos procuram formular um
repertório para a linguagem plástica de modo que a arte passa a ser não apenas uma diretriz
teórica, como um modelo para a sociedade. O construtivismo inaugura a questão de arte
abstrata, porém retira da arte o seu caráter de pura fruição estética para colocá-la no campo
de produção. A questão central construtiva não reduz-se à ordem estética, a nível da discussão
da própria linguagem da arte como não figurativa, com ênfase na abstração e na
geometrização das formas. Existe também a proposta de uma efetiva participação da arte
na construção de uma nova sociedade.
As transformações técnicas ocorridas na sociedade capitalista criam uma nova situação
para o objeto estético, diferentes possibilidades para a sua inserção no processo social.
Era necessário, pois, um outro posicionamento da arte diante das transformações que
vinham sendo operadas não só no campo estético como no plano econômico. A sociedade
moderna dará uma outra dimensão à atividade artística, criando uma crescente articulação
com os novos meios de produção. O programa bauhausiano incluirá não só o projeto de
uma nova organização estética da sociedade — herança do movimento De Stijl — como
também o da sua construção política e ideológica, segundo uma visão progressista e uma
crença na positividade da tecnologia: canalizar a arte para uma finalidade utilitária, estetizar
o campo social e reformar a sociedade.
Dada a necessidade de integrar os recursos científicos e tecnológicos ao processo de
concepção das formas, o trabalho artístico adquiria também um caráter objetivo. O artista
dominaria um saber que teria uma aplicação prática. Seria agora um produtor especializado
de formas que serviríam ao campo industrial, intervindo ativamente no processo de
46 GÁVEA
produção. O percurso das tendências construtivas na arte se dá no sentido de resgatar a arte
do terreno da metafísica para o concreto. Era um projeto utópico, otimista: delegar á arte
o poder de transformar as instâncias sociais para construir uma nova realidade.
O grupo concreto
Apesar de certos indícios anteriores da penetração construtiva no Brasil, a formalização
desta linha de pensamento só ocorre na década de 1950 — período marcado pela internacionalização
das artes através de mecanismos institucionais recentemente criados —
como museus e bienais — e também pelo surto de industrialização ocorrido no pós-guerra,
que levará a uma identificação maior da arte com a tecnologia.
As correntes estéticas modernas passaram a ser veiculadas mais rapidamente no campo
cultural brasileiro após a seqüência de inaugurações dos Museus de Arte de São Paulo
(1947), do Museu de Arte Moderna de São Paulo (1948), Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro (1949) e da Bienal de São Paulo (1951), instituições que praticamente estruturaram
o nosso incipiente sistema de arte. A Bienal marca o período de internacionalização
da arte no Brasil. Ela será a porta pela qual vão entrar as correntes estéticas contemporâneas.
com uma enorme repercussão no panorama das nossas artes visuais. Mário
Pedrosa deixou registrado: “ Antes de tudo, a Bienal de São Paulo veio ampliar os horizontes
da arte brasileira. Criada literalmente nos moldes da Bienal de Veneza, seu primeiro
resultado foi romper o círculo fechado em que se desenrolavam as atividades artísticas
no Brasil, tirando-as de seu isolacionismo provinciano, ao facilitar aos artistas e ao
público brasileiro o contato direto com o que se fazia de mais novo e mais audacioso no
mundo” . (1) As contribuições decisivas para a arte brasileira serão o abstracionismo lírico
e o concretismo, que colocarão novas questões para os diversos artistas que trabalhavam
uma pintura de linguagem figurativa ou permaneciam ligados a uma estética de cunho
nacionalista.
Em 1950. a mostra individual de Max Bill no Museu de Arte de São Paulo constituise
um ponto de referência básico para a emergência da arte concreta entre nós. No ano
seguinte, a representação suíça terá um lugar de destaque na I Bienal de São Paulo. Max
Bill ganha o primeiro prêmio internacional de escultura com a sua “ Unidade Tripartida” ,
obra que provocará grande impacto em alguns artistas que percorriam os caminhos construtivos.
No plano nacional, Ivan Serpa ganha o prêmio de pintura com um quadro concreto
e Abraham Palatnik recebe menção especial pelo seu trabalho, desenvolvido no campo
da luz e do movimento, chamado “ aparelhos cinecromáticos” .
Sobre este aspecto Ferreira Gullar comenta: “ Ao adotar a denominação de arte concreta,
Max Bill procurava delimitar o seu campo de experiências em contradição com as
manifestações ecléticas da arte abstrata às quais faltava, no seu entender, não apenas a
necessária objetividade crítica, reclamada por Mondrian e pela Bauhaus, como uma orientação
e um objetivo. Na Bauhaus aprendera a despojar as formas de toda e qualquer
aderência subjetiva e descobri-la diretamente nas qualidades imediatas dos materiais.
Aprendera a lidar com as cores como fatos da percepção, focos de energia que agem no
campo visual dinamizando as áreas, criando ações e reações entre si. Era este o vocabulário
puro,.recentemente descoberto, que deveria servir de base para uma nova linguagem estética”
. E mais adiante: “ Esta preocupação de criar uma nova linguagem estética como
expressão de uma nova atividade artística vai ser elaborada a partir de uma estrutura fundamental,
cujo suporte seria a matemática, que passou a desempenhar na arte concreta o
papel equivalente ao da verdadeira realidade” . (2)
A questão das idéias construtivas no Brasil: o Momento Concretista
47
Max Bill assume a direção da Escola Superior da Forma, em Ulm, dando prosseguimento
aos ensinamentos da Bauhaus e estabelecendo como projeto básico a integração
da arte na sociedade contemporânea. Suas formulações teóricas terão importância decisiva
para o desenvolvimento da arte concreta. As idéias centrais desta escola vão encontrar um
solo fértil na América Latina, onde alguns países optarão por uma tendência construtiva,
sobretudo a Argentina e o Brasil.
Podemos destacar, também, no planp interno, a presença de teorias gestaltistas a respeito
do campo ótico e da percepção visual. A tese defendida por Mário Pedrosa na Faculdade
Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, cujo texto: “ Da Natureza
Afetiva da Forma na Obra de Arte” terá grande influência sobre vários artistas brasileiros
ao colocar a questão do caráter próprio da forma; ou seja, o conteúdo de uma forma não se
encontra na associação com as formas da natureza. Waldemar Cordeiro, um dos principais
lideres do grupo concreto paulista, acrescenta a este respeito: “O interesse pela gestalt —
tantas vezes mal compreendido e mal empregado — tem por base a indagação sobre a racionalidade
da forma, tanto comum como artística, indistintamente, sem diferenciações
idealísticas. A racionalidade da obra de arte é o fundamento de sua objetividade, e é nesta
objetividade que se realiza o conteúdo histórico-cultural; segue-se que a obra de arte não
só pode e deve ser racionalmente definida, como também não pode deixar de ter uma ligação
imediata com o real” . (3)
Se no princípio alguns artistas plásticos já desenvolviam alguns trabalhos em torno de
formas geométricas abstratas, tendo porém uma atuação isolada, como Almir Mavignier,
Ivan Serpa e Abraham Palatnik, em breve eles constituirão um núcleo importante. Em
1952, temos o aparecimento do Grupo Ruptura de São Paulo, liderado por Waldemar Cordeiro
e Geraldo de Barros, que seria a base do concretismo paulista. Entre os principais artistas
que integravam o movimento destacava-se Luiz Sacilotto, Lothar Charroux, Hermelindo
Fiaminghi, Maurício Nogueira Lima, Judith Luaund, Kazimir Fejer, Anatol
Waldislaw.
Uma Estratégia de Ação Cultural
A década construtiva coincidiu com a. da promoção e aceleração do crescimento
econômico do país, especialmente através do fortalecimento do mercado interno
e o incremento da produção industrial. O término da D Guerra Mundial veio
trazer profundas modificações para a sociedade brasileira, abrindo novas perspectivas
para os diferentes setores da sociedade, com importantes repercussões no plano
cultural. O período que se segue ao conflito mundial será caracterizado pela definitiva
emergência do setor industrial que toma-se a área mais dinâmica da economia brasileira.
Haviam sido criadas condições favoráveis, facilitando o desenvolvimento da economia e da
indústria em particular, que recebe um grande impulso devido aos enormes saldos em
divisas estrangeiras acumuladas durante a guerra, em disponibilidade para financiar a industrialização.
Aliava-se a esses fatores a existência de um mercado interno suficiente para
garantir o consumo de produtos industriais.
A ideologia do projeto desenvolvimentista partia da constatação de uma desigualdade
entre as nações ricas e pobres, adiantadas e atrasadas. O esquema teórico sustentado pela
política governamental seguia certas formulações concebidas pela Cepal, órgão criado pela
ONU para analisar os problemas econômicos da América Latina, cuja idéia básica era a de
que os países periféricos ou subdesenvolvidos teriam uma formação ecoíiômico-social especifica,
determinada pela relação de dependência aos centros do sistema. Os países pe-
48 GÁVEA
riféricos apresentavam também .um dualismo quanto á economia interna, ou seja. havería
dois setores diferentes: um dinâmico, industrial e moderno, outro estagnado, rural
e atrasado. Esta contradição seria resolvida através de mudanças na estrutura econômica
pelo desenvolvimento crescente do setor industrial. O predomínio agrícola vai ser suplantado
pela participação do setor industrial na renda interna do país. Segundo dados estatísticos.
“entre 1939 e 1946. o produto real industrial, aumentou de 60%, enquanto o crescimento
do setor agrícola foi da ordem de 7% ” (4). A partir dos anos 50, o processo de industrialização
brasileira deixa de ser um projeto para transformar-se em realidade. A estrutura
econômica do pais ganha impulso e a sociedade como um todo fica dominada por
uma ânsia de extensão. O setor moderno da economia era o industrial, representado pelo
Estado e pelos novos empresários, em oposição ao setor tradicional, exportador, constituído
pelos cafeicultores. Aceleravam-se também as transformações estruturais ao nível da
sociedade global. A industrialização trará consigo o incremento do processo de urbanização.
acompanhado pelo aumento da taxa de crescimento da população urbana, destacando-se
o fortalecimento da classe média como um setor significativo na estrutura social e
política do país e como parte integrante do processo produtivo. A rede de serviços que se
desenvolveu com a indústria — comércio, bancos, transportes, serviços públicos, agências
de propaganda, empresas imobiliárias, entre outras — oferece novas oportunidades de emprego
para a classe média em expansão.
Com base nas aspirações de desenvolvimento econômico, apoiado no industrialismo,
ocorrerá uma ampla mobilização política, cuja linha de ação manifesta-se através de uma
ideologia de cunho burguês e nacionalista. Na tese central, a de que o Brasil deveria estar
em pé de igualdade com os países desenvolvidos e industrializados, existe o desejo claro de
superar o atraso econômico. Através do aceleramento do processo industrial, a nação teria
condições para tornar-se um país independente, superando a situação de país exportador de
produtos primários.
O Programa de Metas era otimista, com a promessa contida no slogan dos “ 50 anos
em 5” . e a finalidade era modernizar rapidamente o país. A ideologia desenvolvida corporificava-se
no seu objetivo principal: acelerar a acumulação, aumentar a produtividade
dos investimentos existentes e aplicá-los novamente em atividades produtoras.
A aceleração do desenvolvimento econômico terá reflexos na cultura e na arte. O
desejo de modernização da burguesia industrial e da própria classe média urbana abre perspectivas
para a sociedade brasileira, gerando, no plano cultural, uma série de instituições
— como museus e bienais — que visam reatualizar o nosso sistema de arte e modificar esteticamente
o país. A atividade artística passa a ser encarada como uma parcela do projeto
da nação, parte integrante da consciência nacional, abrindo-se espaço para o artista.
A arte construtiva internacional vinculava-se à idéia moderna, progressista, de integração
do homem no processo industrial; o concretismo brasileiro mantém este compromisso:
o trabalho artístico deverá informar qualitativamente a produção. O concretismo,
ao que parece, foi a “contrapartida artística da filosofia de aspiração nacional, de uma
ideologia de governo progressista” . (5) A formulação estética de um conceito de modernidade
atrelava-se à idéia de progresso, do desenvolvimento social, como acrescenta
Ronaldo Brito: O mesmo movimento de aproximação à modernidade via ciência e tecnologia,
estão presentes no concretismo brasileiro. O problema era adotar um ponto de
vista moderno, positivo, participante, frente ao processo da civilização contemporânea. O
artista tornava-se o inventor de protótipos, um técnico que manipulasse com competência
os dados da informação visual” . (6)
A atitude concretista traduz-se ainda numa vontade racional de conquistar novos
LUISSACILOTTO,
“Concreçâo 5629” , 1969,
esmalte s/alumínio, Col. MAC-USP.
horizontes para a arte, romper com estruturas arcaicas, patriarcais e agrárias, presas a
uma consciência oligárquica que impedia o desenvolvimento artístico de üm país moderno,
urbano e industrial. Era, portanto, necessário agir diretamente sobre a linguagem da
arte e adaptá-la ás transformações da sociedade. Dentro desta ótica se pretendia inaugurar
uma arte brasileira. Assim ela vai servir como modelo para a construção social, criadora
de novas realidades num pais onde tudo está para ser construído. A arte serviria como instrumento
eficaz de transformação e construção de um novo mundo.
O critico Frederico Morais assinala que havería nas sociedades latino-americanas,
sobretudo no Brasil, uma vocação construtiva, ou seja, uma vontade de construir (Torres
Garcia) derivada de uma aspiração típica de quem ainda não possui nada. “O fazer artístico
deve ser encarado como um esforço de ordenação do caos... O gesto construtivo é um
gesto fundador de mundos. Gesto primeiro, aberto ao futuro. Não se trata de copiar ou
imitar o já existente, o já gasto e portanto imperfeito; mas de inventar, de fazer surgir um
mundo novo, claro, limpo e transparente” . Acrescenta ainda que a arte construtiva não
seria uma manifestação cultural pertinente às sociedades industriais avançadas, mas às
sociedades em fase inicial de desenvolvimento econômico: “Terá sido justamente esta
vontade de ordem que levou à aceitação de modelos construtivos tão logo se anteviu a pos-
A questdo das idéias construtivas no Brasil: o M om ento Concretista
51
sibilidade de um desenvolvim ento acelerado do nosso continente com o final da D Grande
G uerra” . (7)
Nessa proposta pode ser localizada uma presença política que se traduz pelo desejo
utópico de renovar e transform ar a sociedade. A arte estaria, portanto, relacionada ao esforço
de integração de um projeto nacional, na ânsica de contribuir para o aperfeiçoamento
da máquina industrial capitalista, revelando, ao m esm o tempo, uma prática artística que
teria o desejo de superar o subdesenvolvim ento e o atraso tecnológico. Esta solução
progressista delegada à arte tem um componente ideológico relacionado ao período de
desenvolvimento que a sociedade brasileira atravessava: era necessário atualizar e estetizar
o ambiente, racionalizá-lo no sentido de contar e encam inhar o caos do subdesenvolvim
ento e recuperá-lo.
A maior parte dos artistas pertencentes ao m ovim ento concreto paulista passou pelo
clima de euforia desenvolvim entista do pós-guerra e orienta o seu processo de trabalho
para uma atividade ligada à indústria. Segundo A racy A m aral, grande parcela destes artistas
vai m anter, paralelam ente á produção artística, um compromisso profissional com o
meio empresarial paulista, seja com o artista gráfico, publicitário, diagramador, ilustrador,
desenhista industrial, desenhista têxtil, entre outros.
Esta aproximação com o processo industrial é registrada nas palavras de Waldemar
Cordeiro: ‘‘N o que se refere ao elem ento, a arte concreta apresenta mais um a identidade
com a indústria... O aparecim ento e o aperfeiçoamento da indústria são sem dúvida fatores
históricosque estão na base de toda a arte contem porânea. O que se revela incontestável é a
importância decisiva da indústria na compreensão do conteúdo da arte contemporânea,
cuja finalidade últim a e destino histórico acreditam os ser a arte industrial” . (8)
O que observamos é a incorporação da filosofia da Bauhaus, via Escola de Ulm, que
referenda uma postura ideológica, utópica e progressista, de integração da arte na vida
coletiva. A o colocar a atividade artística intim am ente ligada aos novos meios de produção,
desejava-se a própria diluição do objeto artístico na sociedade. Tornou-se um a espécie de
atitude moderna entregar à arte a tarefa de organizar o real. Despojada do caráter sagrado,
mítico, metafísico ou rom ântico, a arte deveria agir segundo princípios racionais, investigadores,
práticos e objetivos, de modo a ser capaz de intervir na indústria.
Os concretos paulistas, teoricam ente, adotam essas idéias. A intenção será gerar uma
arte adequada ao m undo contem porâneo, num a tentativa de sincronizá-la com a nossa
época. As idéias geom étricas, construídas objetivam ente, deveriam tornar-se concretas a
partir do trabalho do artista. A ciência, a mecânica, a semiótica de Pierce, a teoria da informação
de N orbert W iener servirão como bases teóricas para o desenvolvimento formal
dos trabalhos. A arte apresentaria certas características estruturais, sobretudo aquelas
relacionadas com a ótica, segundo um a organização geométrica, num a aproximação constante
ao pensamento racional e científico.
O Programa Estético Concretista
O movimento concretista brasileiro compõe um a posição homogênea ao se declarar
contrário a “ todas as variedades e hibridações ao naturalismo; ao não figurativismo hedonista,
produto do gesto gratuito, que busca a mera excitação do prazer e do desprazer” .
(9)
Esta postura inicial, ao que parece, tomou um a configuração de “ frente am pla” articulada
numa defesa de um a linguagem geométrica. Colocavam-se frontalmente contra o
sistema de representação vigente, cujo ponto de referência básico era a busca de certos
52 GÁVEA
conteúdos que, não só expressassem, como docum entassem o real brasileiro , calcado
ainda na aspiração a uma identidade nacional.
Não se tratava apenas de defender um programa estético, mas adotar também uma
tática capaz de intervir em nosso sistem a de arte, im pregnado ainda dos postulados m odernistas,
nos quais o universo sim bólico brasileiro era anotado a nível do código figurativo.
A estética dominante refletia um com portam ento que se m antinha tal qual as premissas
lançadas pelos modernistas de 22: era dirigida para um a arte figurativa, dando margem
a uma leitura literária metafórica. A m aior parte dos artistas encontrava-se preso ao esquema
tradicional da representação, utilizando um a linguagem m imética cuja intenção era
reproduzir o real. A iconografia da arte brasileira seguia, do ponto de vista plástico, vinculada
ao problema da representatividade devido â necessidade de uma temática voltada
para a dimensão brasileira.
O ra, tal prática artística, superada pelas linguagens estéticas internacionais, deixavase
permear por conteúdos subjetivos que roubavam à arte a sua potência verdadeira. Os
concretistas questionam este universo simbólico em que a arte estaria voltada para a sim
ples cópia ou recriação da natureza. Pretendem rom per com o caráter de representatividade
adotando o elemento geom étrico como um valor plástico autônom o, pela m aterialidade
que ele comporta e não com o arcabouço para reproduzir o real. O espaço da arte
não se rem ete mais ao ilusionismo; existe plenam ente na relação entre seus elementos e
suas matérias. A produção artística estaria, pois, voltada para a autonom ia da forma, livre
do aspecto narrativo ou anedótico. O objetivo era evitar a fruição lírica ou conteudística.
Os concretistas darão ênfase sobretudo à estrutura, com o um a característica fundamental
da obra, ao rigor e à autodisciplina. O seu programa estético é doutrinariam ente rigoroso,
segundo os postulados básicos da arte construtiva. O caráter austero vai se refletir na sua
posição teórica, no sentido de lim par a forma de todas as im purezas. Eles exercem uma
forte pressão sobre o am biente artístico brasileiro, a ponto de alguns críticos afirmarem
que “ O concretism o foi, para m uitos, um a espécie de serviço m ilitar obrigatório” .
N o M anifesto Ruptura, lançado em 1952, é feita um a distinção nítida entre a arte que
possibilitaria a criação de formas novas, através de princípios velhos, e as que criam formas
novas através de princípios novos. Para eles, o m étodo tradicional de representação já
tinha cum prido a sua tarefa histórica. A partir deste ponto de vista, estabelecem certos
princípios diferenciadores entre o que é velho e o que é novo, supondo não existir continuidade
entre os dois pólos. A passagem do velho para o novo se efetua mediante um salto
qualitativo, um rom pim ento definitivo — daí o nome do grupo: Ruptura.
Parece que foi esquecido, contudo, o fato de haver, na cultura brasileira, um substrato
decorrente dos problemas que vinham sendo colocados pelas produções culturais anteriores,
com o também pelos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos com outros postulados
estéticos. Estes fatores nos levam a questionar a verdade do radicalismo do grupo
concreto paulista, ignorando todas as outras configurações em vigor, alijando as outras
tendências existentes na dialética interna de nossa cultura. Considerar a arte nào-figurativa
com o a única linguagem artística possível, e o concretism o com o o início da arte
brasileira, é congelar a validade de qualquer prática artística que esteja fora deste registro.
Paulo Venâncio Filho aborda essa questão do confronto cultural e ideológico entre
uma linguagem institucionalizada e a perspectiva de um a vanguarda: “ Todo e qualquer
trabalho de arte no Brasil ainda se defronta com um a premissa: com eçar de novo. Sempre
o esforço da produção se defronta com a presença de um a H istória da A rte. De certa
MAURÍCIO NOGUEIRA U M A, “ Pintura 2” , óleo s/tela,
100 x 73 cm. Col. Conselho Estadual de Cultura, SP.
maneira, é contra este patrim ônio consolidado que o artista luta no sentido de positivar o
seu trabalho. Contra esta instituição que de algum modo parece dizer incessantemente que
tudo já foi feito e não há nada para se fazer de novo. Entretanto, é justamente através do
diálogo critico de sua produção com o processo histórico da arte, que o sujeito tem a possibilidade
de detectar a pertinência de sua prática” . (10)
Essa postura ortodoxa, vinculada aos moldes europeus, a incompreensão da com
plexidade cultural brasileira tende a tomá-los alheios à nossa realidade. Há um afastamento
do social na medida em que o campo estético é tratado como um objeto em si mesmo,
independente das relações com as outras instâncias. Ma tentativa teórica de superar a contradição
arte e sociedade, e diluir a arte no processo social, erigem um mundo de valores
que está acima, e portanto afastado, da realidade. Esqueceram-se de um dos pólos desta
contradição: a especificidade da sociedade em que este modelo teórico está inserido. Suas
formulações não contêm uma interpretação da realidade sobre a qual operam apenas a justaposição
de um modelo teórico produzido por sociedades altamente desenvolvidas. Estas
limitações fazem com que, ao adotar o modelo, permaneçam com as suas características
formais, sem transformá-las. A este respeito, Ronaldo Brito acrescenta: “ Repetindo até
certo ponto os outros movimentos culturais e artísticos nacionais, cuidou apenas de importar
o modelo e adaptá-los ás circunstâncias locais, sem um questionamento propriam
ente crítico” . (11)
A importação de idéias desenvolvidas nos centros internacionais, sobretudo a
Alem anha, Suíça e Holanda, vai colocar-se de forma complexa, dados a nossa diversidade
54 GÁVEA
e atraso em relação às sociedades européias. Referindo-se à questão, Ferreira G ullar afirma:
“ A diferença entre a realidade européia em pleno desenvolvim ento e a realidade
brasileira em formação é um dado im portante para que se entendam as mudanças que vão
se verificando entre estas duas realidades, na medida em que ambas se transform am ao
mesmo tem po em estágios diferentes. Deve-se levar em conta tam bém o fato de que a
própria transformação do m undo, operada pela civilização européia em seu desenvolvimento,
cria para a sociedade brasileira condições diversas das que, neste estágio, encontram
os países europeus, determ inando assim que o processo de desenvolvim ento brasileiro
tenha características próprias, mesmo cum prindo estágios equivalentes do processo
econômico. A história não se repete e os países subdesenvolvidos não repetirão, nem no
plano econômico, nem político, nem cultural, a história dos países hoje desenvolvidos .
(12) • • . . _
O im portante para a nossa análise não é questionar se a arte construtiva é, ou nao, um
produto histórico de certos fenômenos ocorridos nos países capitalistas desenvolvidos; se o
processo de formação e desenvolvim ento dessas idéias são pertinentes apenas á sua própria
problemática cultural. O que querem os colocar como m atéria de reflexão é o problema de
encontrar um a equivalência teórica deste procedim ento no nosso am biente cultural; se
houve ou não um equívoco na apropriação deste corpo teórico por parte do grupo concreto
paulista, é essa pergunta o centro de nossa análise. O tem a é a viabilidade do seu programa
estético enquanto projeto de inserção da arte na vida social, a verificação de sua proposta
de criar um modelo alternativo para a arte através de aplicações do trabalho artístico na
vida prática, com oodesign, as artes gráficas, a publicidade, o jornalism o, a arquitetura e o
urbanismo.
N O T A S BIBLIOGRÁFICAS
01. PEDROSA. Mário. Mundo, homem, arte em crise. São Paulo, Perspectiva, 1975 p. 254.
02. GULLAR. Ferreira. Arte neo-concreta: uma contribuição brasileira, in Projeto Construtivo Brasileiro
na Arte (1950-1962) sup. coord. Aracy Amaral. MEC/Funarte/M AM /R J; Secretaria de Cultura, Ciência
e Tecnologia do Estado de São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1973, p. 106.
03. CORDEIRO. Waldemar. Teoria e prática do concretismo carioca, in op. cit., p. 134.
04. COHN, Gabriel. Problemas da industrialização no século XX, in Brasil em perspectiva. São Paulo,
Difusão Européia do Livro, 1969. p. 306.
05. BITTENCOURT. Francisco. A década da experimentação, in Revista Critica de Arte, Rio de Janeiro,
Associação Brasileira de Críticos de Arte, ano II, n? 4, 1981, p. 139.
06. BRITO. Ronaldo. Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro Ensaio sobre
a produção visual neoconcreta. Rio de Janeiro, 1975, p. 28 (texto inédito).
07. MORAIS, Frederico. Artes Plásticas na América Latina: do Transe ao Transitório, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1979, p. 87/89.
08. CORDEIRO, Waldemar. Arte Industrial, in Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, op. cit., p. 193.
0 9 . ------Manifesto Ruptura, op. cit., p. 69.
10. VENÂNCIO FILHO, Paulo. Lugar Nenhum: o meio de arte no Brasil, in Arte Brasileira Contem
porânea. Cadernos de Textos, Rio de Janeiro. Funarte, n? 1. 1980, p. 24.
11. BRITO. Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. op. cit., p.
12. GULLAR, lerreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Ensaios sobre arte Rio de Janeiro Civilização
Brasileira, 1969, p. 33.
'
Arquitetura rural do Vale do Paraíba
Fluminense no Século XIX
ISA B EL R O C H A
N o Século XVIII. quando Garcia Rodrigues Paes pediu licença ao Governador do Rio
de Janeiro. A rtur de Sá M enezes, para abrir uma estrada entre a Baia da Guanabara e a
Borda do Campo (atual Barbacena), e que começava o desbravamento da região sul flu
minense. O objetivo desta estrada era minimizar o percurso do ouro entre as minas e o
porto do Rio de Janeiro. A Coroa portuguesa receosa de que houvesse contrabando proibiu
a navegação no Rio Paraiba do Sul. A produção aurifera até então era escoada pelo Cam
inho dos Guainás ou Cam inho Velho, que ligava M inas Gerais ao Rio de Janeiro via
Taubaté e G uaratinguetá, no Estado de São Paulo, chegando a Parati e daí ao porto carioca.
Um longo e dispendioso caminho que facilitava o desvio e o contrabando de ouro. A
Estrada Real para Vila Rica nomenclatura oficial do Caminho Novo aberto por Garcia
Rodrigues Paes — atravessava quase que perpendicularmente o Estado do Rio de Janeiro.
Partia do porto da Estrela, no fundo da Baia da Guanabara, subia a Serra do M ar até atingir
a Roça do Alferes (origem de Pati do Alferes); dai seguia até a Roça de Pau Grande,
passava por Ubá e partia em direção a Roça de Garcia Rodrigues (atual Paraiba do Sul), indo.
então, rum o à Borda do Campo, passando antes por Paraibuna. Convém observar que
entre os diversos autores há divergência quanto ao traçado do Caminho Novo para as Minas
Gerais.
A partir da Estrada Real, inúmeras foram as abertas ao longo dos séculos XVIII e
X IX . no que pesem as tentativas da Coroa de impedir que outros fossem abertos, ainda
com o intuito de coibir o desvio do ouro.
N o século XVIII os principais caminhos abertos foram: Caminho de Proença (1725),
passava por Petròpolis rum o á Paraiba do Sul onde encontrava o Caminho Novo; Caminho
do Tinguá. do Rio de Janeiro a Pati do Alferes via Nova Iguaçu e Sacra Familia do Tinguá;
Cam inho de São Paulo (1733), passava por Itaguai, São João Marcos, Rio Claro, Bananal
rum o a São Paulo, cam inho da Paraíba Nova de Simào da Cunha Gago (1744), vindo de
M inas chegava a Resende.
N o século XIX vamos ter: Caminho de Valença de João Rodrigues da Cruz (1800),
partia de Pau Grande e se dirigia a Valença; Caminho do Rio Preto (inicio do século), saia
de Ubá. atravessava o rio Paraiba e rumava a Valença indo até Minas Gerais pelo rio
Preto; Estrada do Comércio e Estrada da Policia (1817-1820), saiam do Caminho Novo e
iam em direção, uma de Vassouras e a outra de Valença; Estrada “ União e Indústria”
(1856), saia de Petròpolis passando por Três Rios, encontrava-se com o Caminho Novo na
divisa com M inas Gerais.
56 GÁVEA
Ao longo dos primeiros caminhos vão surgindo as roças de mantimentos e os pioneiros
engenhos de cana-de-açúcar, além dos registros que controlavam o tráfego. As
roças produziam basicamente o milho com o que abasteciam as tropas de mulas dos carregadores
de ouro. Plantavam, ainda, a mandioca, o arroz, o feijão e o café (ainda sem expressão).
Os engenhos de açúcar, com suas destilarias e moendas chegaram a ter importância
econômica na região, conferindo a seu proprietário um “ status mais elevado na
hierarquia da sociedade local. Pau Grande e Ubá são exemplos de engenhos de açúcar com
suas residências e instalações inúmeras para atender a produção. Os viajantes do inicio do
século XIX, como Saint-Hilaire, testemunharam o conforto que havia nessas fazendas.
O café começou a ser plantado em larga escala no vale do Paraíba a partir da segunda
década do século XIX. “ Pequenas vilas sem expressão, até esse período, tomaram-se
grandes centros cafeeiros, como Vassouras, Pirai, São João Marcos (hoje submerso),
Resende. Barra Mansa, Valença e Paraíba do Sul. Devido ao bom preço que alcançava o
café no mercado externo, sua produção tornou-se uma grande atração para fazendeiros. O
valor da exportação do café que havia começado a sobrepujar o do açúcar, passou a representar
no exercício de 1837/38, mais da metade do valor total do nosso comércio exterior.
posição de que não se afastaria nos anos seguintes e que se firmaria, quase ininterruptamente
tempos depois” (1). As condições naturais para o plantio do café aí eram esplêndidas.
O terreno é formado por ondulações suaves, as “ meias laranjas” , numa alti
tude que oscila entre 300 e 900 metros, mantendo a temperatura dentro dos limites ideais
para o café e regularizando a precipitação. “ Região muito acidentada não lhe faltavam encontras
bem protegidas contra o vento (fator importante numa plantação arbustiva de
grande porte como o cafeeiro) e convenientemente coberta por densíssima selva, a floresta
tropical, que desmatada liberou solo magnífico” (2).
O café chegou ao Vale do Paraíba no momento em que se deu a grande queda na extração
do ouro em Minas Gerais. As riquezas forjadas nas minas de ouro estavam à
procura de uma nova forma de investimentos. Através da doação de sesmarias, os m i
neiros investiram na plantação do café, expulsando o posseiro, o rancheiro, o engenho de
açúcar e o índio, além de desmatar uma densa floresta tropical.
“ Como característica essencial do modo de produção escravista colonial, a propriedade
cafeeira se constituira, principalmente, de uma grande extensão de terra trabalhada
por um grande número de escravos. Os senhores que se estabeleceram nesta
região, recebendo grandes doações de terra da Coroa, em forma de sesmaria, em cada uma
delas constituíram uma ou mais fazendas e através de incorporação de terras vizinhas tornaram-se
donos de um grande número de fazendas e sítios de café” (3). Diversos destes
fazendeiros foram expoentes na aristocracia rural fluminense. A lista de barões do café ultrapassou
a casa da dezena. O modo de produção limitou a extensão da fazenda, mas não o
número delas em relação ao proprietário, chegando alguns a possuir 20 fazendas aproximadamente,
com cerca de 6.000 escravos. A plantação exigia cuidados permanentes. A
mão-de-obra deslocava-se diariamente á ela, o que de certa forma definia os limites da
fazenda. Além da terra cultivada, a unidade agro-industrial cafeeira compunha-se de:
1 —Casa grande — habitação do senhor e de sua família, normalmente composta de com
partimentos próprios a uma residência, incluída a capela ou oratóno.
(1) Muniz, Celia Maria Loureiro, Os Donos da terra, Um estudo sobre a estrutura
(2)
(3) Muniz, Celia Maria Loureiro.
Arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense no século X I X
57
2 — Casa do adm inistrador — nas unidades de m aior porte ou nas fazendas “ filiais” havia
ainda a residência do administrador.
3 — Senzala — habitação dos escravos, composta apenas de quartos de dormir,.
4 — Engenho — para beneficiamento do café, com o maquinário movido por sistema
hidráulico. Além disso beneficiava a cana-de-açúcar, mandioca e o milho.
5 — Tulha — parte do complexo do engenho era o local para armazenagem dos produtos
agrícolas.
6 — Terreiro de café — onde se lavava e secava o café.
7 — Enfermaria — num a região sujeita a constantes epidemias provocadas, entre outras
cousas, pelas péssimas condições de vida dos escravos, é comum se ter notícias de enfermarias.
Nem todas essa construções que formavam o complexo agro-industrial cafeeiro
sobreviveram até os nossos dias. O conservadorismo do senhor do café, a monocultura que
consumia recursos naturais da terra, o envelhecim ento do cafeeiro, a insolvência econômica
dos fazendeiros, a abolição da escravatura, a escassez de mão-de-obra são algumas
das causas da decadência do café ainda no século passado. Os testamentos dos senhores e
de suas viúvas comprovam essa decadência, citando hipotecas, cafeeiros improdutivos,
despreparo sócio-econômico para enfrentar a abolição da escravatura, construções e
edifícios que necessitavam reparos. As hipotecas foram na sua maioria executadas; as terras
abandonadas depois de consecutivas queimadas que não mais surtiam os efeitos desejados.
O café se dirigia para São Paulo que estava mais bem preparado e estruturado para
o trabalho de homens livres. As casas nem sempre foram recuperadas com o mesmo fausto
de décadas anteriores. A monocultura cafeeira foi substituída pela estagnação econômica
e, posteriormente, pela agro pecuária, principalmente a do gado leiteiro e de corte. A
agricultura passa a ser de subsistência e para o comércio local. É o fim do barão do café
porém não de seu carisma. Este é transferido para o coronel, dono da terra.
Localização e Implantação
O café leva de 4 a 5 anos para começar a produzir, o que exige, sempre, novas terras
para a sua expansão. Por outro lado ele tem m aior duração se plantado nas encostas dos
pequenos morros. Tem de ser mantido limpo para que se impeça o desenvolvimento de
pragas, permitindo que se plante ao longo do cafezal, durante certas épocas do ano, outras
culturas. N o dizer de Lacerda Wemeck a seu filho em 1847 “ um fazendeiro cuidadoso tem
todos os dias um jantar esplêndido, e só lhe custam dinheiro o vinho e o sal, ou alguma
iguaria para acepipe, o mais ele tem de casa e com muita profusão” . Como executor de
todos os serviços realizados dentro da fazenda o escravo impôs, de certa forma, a sua
ocupação espacial. É fundamental para o senhor do café o controle do escravo e a este é
fundamental a distância que percorre para execução dos serviços, sem que para isso tenha
consumido todas as suas energias.
Para que uma fazenda seja produtora de suas necessidades de consumo tem que ter,
ainda, o mais próximo possível correntes de água. Esta deve ser abundante e límpida pois
será consumida nas mais diversas atividades; no engenho para mover o maquinário; pelo
gado; para lavar o café e pela casa grande, diariamente. Para o assentamento das construções
a presença d ’água é tão vital que Lacerda W emeck dirá a seu filho que ela
“ obriga” às vezes a buscar um sítio menos agradável, mais trabalhoso e até dispendioso
para levantar os edifícios” e “ eis o motivo por que m uitos e grandes estabelecimentos estão
58
GÁVEA
feitos sem aform oseam ento".
Levando em consideraçãò estes dois fatores poder-se-á dem arcar o sitio mais con
veniente à implantação das construções. Na observação de Lacerda W erneck tirará ou
mandará tirar a planta, com designação da casa de m oradia, de todas as m áquinas que
forem necessárias, de paióis e arm azéns, de cavalariça e senzala para moradia dos pretos .
Porém, antes, serão feitas instalações provisórias; tanto para o senhor com o para os es
cravos cuidando que estas construções não atrapalhassem o risco definitivo da fazenda. O
engenho de Serrar é o prim eiro a ser instalado um a vez que paralelo a tudo isso se estará
desmatando. A madeira retirada da floresta será toda utilizada nas edificações. Este desm
atam ento, ainda, prepara a terra para o plantio e para as criações de gado e aves.
A pesar de não se ter notícias de arquiteto, ou m elhor, de m estre de risco, há sempre
uma constante na implantação da casa grande em relação às dem ais construções. Con
dicionantes há para que tal aconteça. A primeira delas, m ais um a vez, é a presença do es
cravo. Da casa grande o senhor deverá ter uma visão m ais am pla possível do movimento
diário da fazenda.
As construções foram um “ quadrilátero funcional (O bs. S te in , pág. 26), onde estão
a casa grande, a senzala, os engenhos, as tulhas, o paiol, os arm azéns, as estrebarias e os
chiqueiros. Este quadrilátero poderá em alguns casos definir o terreiro de café (Fazenda
do Pocinho, Vassouras; Fazenda de S an fA n a , Barra do Piraí, no que pese elas não terem
sido concluídas; e Fazenda da Prosperidade, Barra do Piraí). N a maioria dos casos ele não
será perceptível de imediato, pois as construções se encontram m ais dispersas (Fazenda da
Taquara, Barra do Piraí; Fazenda do A terrado, Barra do Piraí; Fazenda Feliz Remanso,
Barra do Piraí; Fazenda do Secretário, V assouras, e tc...). N os casos de fazendas de menor
porte todas essas construções poderão estar anexadas â casa grande formando um só
edifício, caso da Fazenda o Recreio-Piraí.
A denominação da fazenda era dada, um as, pelos acidentes geográficos: a do Ri
beirão, da Cachoeira, do M onte A lto; do A terrado, a de D uas Barras; a de Ipiabas, nome
do Ribeirão. E outras pelos padroeiros: SanCAna, São Luiz da Boa Sorte, Santana dos
M eirelles. Santa Luzia, São Fidelis... A do Secretário não se sabe corretam ente a origem do
nome. A tradição popular explica que houve ai um Secretário de Estado que deu o nom e ao
Ribeirão que por lá corre e este deu nom e à Fazenda.
Casa Grande
Ponto irradiador de toda a vida na fazenda essa casa encontra se sempre mais elevada
em relação às demais construções. Se por um lado é prim ordial para o senhor que sua casa
seja elevada, do ponto de vista do controle, por outro as técnicas construtivas exigiam que
não se im plante ao nível da sala por causa da um idade. A de G uaribu (Vassouras) que
reina soberana do alto de um a colina tem também um a plataform a que a isola do contato
direto com a terra.
Como que assentadas naturalm ente no declive dos m orros algum as casas terão um
sem i-prim eiro piso. Nelas a habitação propriam ente dita se encontra no segundo pavim ento,
onde se desenvolve de m aneira com pleta. Estas construções colocadas a cavaleiro dos
morros perm itiam uma maior visibilidade, retirada da topografia natural. Com o nos casos,
diversos de sobrado.
Estas formas de im plantação davam ao senhor do café, tal e qual ao proprietário u r
bano, m aior “ status’’, denúncia de um a situação econôm ica m ais privilegiada, onde o
primeiro piso era dedicado às atividades de serviço (com ércio, para a cidade) e no segundo
TALtuu T kl bMATk Ü O V U
Mut\ ^\\0 fcKS TlORtí,
TKWA**
• • *
TkZ.
MV)«.
SCtRfcTIkRlO
VVbbOUfUS
60 GÁVEA
encontrava-se a residência. N o caso de im plantação em encosta, isto tom a-se mais claro.
N o prim eiro piso só havia o vestíbulo, denunciador das funções ai desenvolvidas. N o mais
a presença de cachoeiras e depósitos impedia qualquer relação en tre um e outro piso. Já no
caso de alguns sobrados, revelando o alto poder econôm ico do proprietário, a ligação
podería ser feita. O m elhor exem plo é a fazenda do Secretário que no prim eiro piso tem o
vestíbulo, os quartos de hóspedes, o escritório, o salão de recepção, a sala de jantar e os
serviços. N o segundo está o que se denom inava de área nobre, onde só os moradores,
parentes e amigos m uito íntim os tinham acesso, afora o salão de música que aí se localiza.
Sobrados menos faustosos, porém mais com uns, são os que m antêm isolados os serviços
do prim eiro piso das atividades residenciais do segundo. N o caso de ocupação em encosta o
acesso à moradia poderá ser externo (Fazenda Prosperidade, Barra do Piraí), como na
maioria dos sobrados (o de São Luiz, Barra do Piraí), ou por um vestíbulo no prim eiro piso
(Fazenda Esteves, Valença e Bela A liança, Barra do Piraí).
H á os casos em que o segundo piso é reduzido. Essas construções sugerem um gosto
mais recente e têm o apuro de isolar deste corpo central, os quartos de dorm ir no sobrado.
N o prim eiro piso estavam a sala de recepção, os quartos de hóspede e os serviços (Fazenda
Santa Justa e a da Forquilha, Rio das Flores).
O riundos das M inas G erais os colonizadores desta região trouxeram a experiência ur
bana de habitar. Em diferentes situações topográficas, clim áticas e programáticas esses
Arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense no século X I X
61
homens deram uma nova interpretaçãç espacial às soluções arquitetônicas mineiras até
então praticadas e absorvidas. Este com portam ento trouxe, no seu bojo, m uito da experiência
da morada paulista. A varanda fronteiriça ladeada por dois cômodos é uma constante
em nossas fazendas. A planta baixa do prim eiro piso da Fazenda da Forquilha acusa
esta persistência de forma que, apesar das reformas posteriores, não conseguiu desaparecer.
O esquema de uma varanda ladeada por Capela e quarto de hóspede se repete neste caso em
duas fachadas. N o que pese não haver de fato um a varanda na fachada principal a planta
revela este gosto. A sala centrada da morada paulista foi aí dividida em três cômodos que
se interpenetram e para onde abram-se todos os dem ais compartimentos da casa. Semelhanças
não tão óbvias, porém com a mesma origem , encontrarem os nas fazendas Aliança
e M onte Alto, Barra do Piraí. Ambas tinham com o acesso principal uma varanda ladeada
por dois cômodos, sendo um a Capela.
A varanda, tão freqüente na A rquitetura brasileira, tem diversas funções nas. casas
grandes de fazendas. É o elem ento mediador entre o espaço externo e interno, ou entre a
área social e intim a (Fazenda M onte Alto, Barra do Piraí, a de Ubá, Vassouras), ou uma
circulação alternativa (a do Pocinhò, Vassouras; S ant’A na, Barra do Piraí; Feliz Remanso.
Barra do Piraí). Em qualquer caso ela é um espaço adequado ao clima da região.
A mentalidade conservadora da época traçou para a casa rural os mesmos elementos
privatizadores que se utilizavam nas casas urbanas. As áreas sociais estão sem pre voltadas
para o acesso principal. O fato de aparecerem quartos nesta área denota a preocupação
constante de se m anter o hóspede fora da área intim a da casa. A sala de jantar é o cômodo
de ligação e separação en tre as duas alas. Ela se situa, na maioria dos casos, no que poderiamos
denom inar de ponto de barreira social (um papel semelhante ao cancelão nas
residências urbanas).
A área social era a mais im ponente da residência. N orm alm ente tinha o piso e o forro
em taboado corrido, às vezes o forro era em estuque. As paredes, algumas vezes, eram
adornadas com bandas pintadas no alto e batente para o espaldar das cadeiras a meia altura.
Os melhores trabalhos de esquadria eram reservados a esta área, assim com o o melhor
mobiliário.
Os quartos, na m aioria em fila, criando longos corredores, eram locais despojados e
simples. Seu mobiliário se restringia ao essencial. Suas dimensões eram em m uito inferiores
ás dos salões de recepção. Atendiam apenas a sua função precipua.
A área de serviço com cozinha, copa, despensa e depósito completava a construção.
Esta área era de dom ínio exclusivo das m ulheres, m isturando as escravas com as sinhás. É
ai que preparavam os alim entos, costuravam e lavavam protegidas pelo pátio que se formava
nos fundos da casa pela horta e pelo pomar. Raram ente o chão desta área era coberto,
o telhado ficava aparente, sem forro. As esquadrias eram muito simples não havendo,
originariamente, a presença do vidro.
Para os escravos que labutavam nas roças havia, nas encruzilhadas dos caminhos da
plantação de café, fogões que os atendiam. Era nessas encruzilhadas que , também, se
criavam as aves para alim entação. As senzalas tam bém eram isoladas da casa grande, formando
uma coastrução própria. Segundo W emeck elas “ devem ser voltadas para o nascente
ou poente e em um a só linha, se for possível, com quartos de 24 palmos em quadro e
uma varanda de oito de longo em todo o com prim ento. Cada quarto destes deve acomodar
quatro pretos solteiros e, se forem casados, m arido e m ulher com filhos unicamente. As
varandas... são de m uita utilidade porque o preto, na visita que faz ao seu parceiro, não
molha os pés se está a c h o v e r...” Estas observações parecem ter sido féitas por todos os
fazendeiros pois as senzalas com o que seguem a um só risco e medida.
»***i n toai
TaZ Tfcuz BEhMttO
Müh. BKRHU BO piBM'
Arquitetura rural do Vale do Paraíba Flum inense no século X I X
63
Dos tipos de plantas utilizadas nas casas grandes a mais comum é de desenho em
L , de influência urbana com o ressalta a Prof? Dora Alçantara. Neste caso a fachada
principal poderá ou não se localizar na m enor dim ensão tal as moradias urbanas. As fazendas
São Luiz (Barra do Pirai) e a Fidelis (R.F.) são exemplos de planta em “ L” para sobrados
e as fazendas do A terrado (Barra do Piraí) e Ribeirão (R.F.) entre outras, térreas,
As fazendas M onte A lto e Feliz Remanso (Barra do Piraí) se desenvolveram formando um
duplo “ L .O caso da Feliz Rem anso tem disposição curiosa uma vez que tendo se desenvolvido
a partir de um a prim eira construção vai se repetir até formar um longo corpo com
fachada exígua e com acesso lateral em varanda. Tal as casas urbanas do fim do século
X IX , onde o afastam ento da divisa lateral do lote perm itiu acrescentar-se um a varanda.
O utro tipo, m uito com um , é a casa que se desenvolve em torno do pátio central. Este
tem inúmeras utilidades, sendo a da aeração e ilum inação a mais im portante delas. Este
tipo de planta, tam bém de imposição urbana do fim do século XVIII, já se enquadra dentro
do espirito neo-clássico que começava a se expandir no Brasil do inicio do Séc. XIX.
Fazendas Bela Aliança (P i.) e São Luiz da Boa Sorte (Vassouras) são os melhores exemplos.
N o que pese ter pátio interno, a da Aliança (Barra do Piraí) não pode ser classificada
como tal, uma vez que inúm eras reformas desfiguraram o seu desenho original.
A planta em “ U ” é encontrada nos casos em que a construção revela um gosto mais
erudito e elaborado. A s fazendas do Esteves (Vai) e a do Secretário (Vassouras) são testemunhos
m arcantes de um a arquitetura que tem na Corte do Séc. X IX sua origem
imediata. Ambas são m onum entais e im ponentes, com acabamentos sofisticados. A do
Secretário tem características de construções que só a Missão Francesa forneceu. A do
Horizonte que se utiliza do mesm o esquema de planta revela um gosto mais do fim do
século. A escada lateral do acesso principal com seu desenho sinuoso, trabalhado em ferro,
além do porão alto, denotam um a influência mais tardia e nitidamente urbana.
As fazendas do Pocinho (Vassouras) e S ant’A na (Barra do Pirai) são casos isolados.
Elas definem, com suas construções, perfeitam ente o “ quadrilátero funcional” , no que
pese a do Pocinho não ter sido concluída.
O Séc. X IX , desde o seu inicio, é marcado por acontecimentos históricos importantes.
Para o nosso estudo são a vinda da M issão A rtística Francesa e a inauguração da
Academia Imperial de Belas A rtes os mais relevantes. A escola traçou os parâmetros para
o novo gosto estilístico da arquitetura francesa da época: o neo-clássico. A Corte Imperial
assumiu o estilo, de construção mais refinada, com o arquitetura oficial.
Centro econôm ico da época, o Vale do Paraíba não ficou alheio às mudanças ocorridas
na Corte. Na medida em que os senhores do café entravam em contato com o poder
central e, principalm ente, na medida que o “ barão representava este mesmo poder, a
tendência foi de absorção e transposição dos com portam entos adotados no Rio de Janeiro.
Esta transposição, feita na maioria das vezes simplificadamente, vai se deparar com com
portamentos arquitetônicos anteriores, já enraizados de origem mineira de característica
urbana. Se por um lado o corredor “ adotado nas plantas das habitações rurais é dispositivo
tipicamente urbano e de sentido claram ente discriminatório e a sua introdução
“ evidencia um ‘aburgeusam enteo’ (N .O . Reis Filho), por outro lado é significativa a
presença da planta urbana oitocentista nas casas de fazendas. A sala fronteiriça que se liga
a uma outra posterior por meio de um corredor ladeado de quartos é encontrada nas fazendas
de Ubá (Vassouras), Prosperidade (Barra do Pirai) e Feliz Remanso (Barra do Pirai).
É neste sentido que supomos a presença de, pelo menos, um discípulo da Missão
Francesa na construção da Fazenda do Secretário. A erudição do vocabulário desse edifício
é em muito superior a de seus vizinhos. Os princípios de simetria do neo-clássico são ai tão
64
GÁVEA
rígidos que para não com prom eter a m odinatura existente na fachada posterior, a escada
principal tem seu guarda-corpo tão deslocado que quase atinge a om breira da janela.
O utras fazendas apresentam aspectos formais classizantes, porém só se tem notícias
de um caso com o uso do arco pleno, tão em voga no Rio de Janeiro, e a verga reta predomina
na maioria absoluta. A s fazendas de Ipiabas (B arra do Firai), Santa Justa (R .F.) e
Ribeirão Frio (Barra do Piraí) usam arco abatido, herança e persistência formal de um
m om ento arquitetônico anterior. A da Bela A liança (B arra do Piraí) já introduz um gosto
neogótico em suas esquadrias, encontradas também em V assouras e Conservatória.
A s fazendas M onte Alegre (V assouras) e Esteves (V alença) se aproximam do partido
arquitetônico da do Secretário, porém são mais simples no vocabulário. Já as Fazendas São
Fidelis (R .F.), São Sebastião (Barra do Piraí) e Ribeirão (R .F .) são assobradadas, extre
m am ente simples, sem nenhum rebuscam ento, a não ser a presença eventual de vidro e de
um destaque à porta principal.
A São Luiz da Boa Sorte (V assouras) destaca-se de suas congêneres pela utilização de
janelas geminadas que no tram o central vedam e disfarçam um a varanda em butida no cor
po da casa. além de um avarandado que protege a escada principal da fazenda. Seu vocabulário
é classicizante e revelador de um neoclássico provinciano.
A da Forquilha (R.F.) já denuncia um rom antism o de fim de século que se apresenta
em forma de “ chalet” como variante da proposta clássica. T em com posição sim étrica, as
sobradada no tram o central e um prim oroso acabam ento na fachada em estuque branco
sobre a parede azul. Os beirais que arrem atam os pequenos e graciosos frontões são con
cluídos com delicado lam brequim .
A influência mineira nas casas de fazendas são nítidas e a mais relevante é a técnica
construtiva. N a maioria absoluta das vezes são de pau-a-pique, sobre baldram e de madeira
ou pedra, dando à construção um ritm o bem m arcado pelos pilares que fazem as vezes de
cunhais nas construções mais elaboradas. A madeira, quando aparente, seja nos pilares
seja no enquadram ento das esquadrias, ou nelas próprias, é pintada de cores fortes contrapostas
às paredes, salvo raras exceções brancas. Os telhados com suas grandes tesouras,
assentam-se majestosamente sobre as paredes form ando acentuados beirais. As platibandas
são raríssim as. Os tetos, norm alm ente planos, com encaixe de saia e camisa, são pintados
de branco, alguns casos de m arrom . A Fazenda Ipiabas (B arra do Pirai) tem , na sala
principal, um teto de gamela pintado, com o as esquadrias internas, nesta cor. As cozinhas
invariavelm ente não tinham forro, ficando o m adeiram ento do telhado aparente. Este
revestim ento de qualquer forma não fazia m uito sentido devido á fuligem que saia dos
fogões à lenha.
Foi utilizado para a elaboração deste trabalho o acervo do A rquivo do Departam ento
de H istória e Teoria da Faculdade de A rquitetura de Barra do Pirai — FERP — que desen
volve pesquisa, junto com os alunos, sobre a arquitetura rural do Vale do Paraíba Fluminense
nos M unicípios de Barra do Piraí, Barra M aasa, Piraí, Volta Redonda, Resende,
Vassouras, Valença e Rio das Flores. Os desenhos aqui apresentados são do aluno Luiz
Cláudio Ribeiro.
BIBLIOGRAFIA
ALCANTARA, Dora — Anotações Sobre a Arquitetura Rural Fluminense, in Artefato, Jornal de Cul-
Arquitetura rural do Vale do Paratba Flum inense no século X I X
65
tura. Ano II, N ? 13, Rio de Janeiro.
CARDOSO. M Viannade — A Aristocracia Rural Fluminense, Gráfica Laemmert, Ltda. Editora, Rio de
Janeiro, 1961.
LAMEGO, Alberto Ribeiro — O HOM EM E A SERRA, IBGEvConselho Nacional de Geografia, Rio de
Janeiro, 2? Ediçio, 1%3.
LACERDA WERNECK. Francisco Peixoto, (Barão de Pati de Alferes, 2?) MEMÓRIA SOBRE A FUN
DAÇÃO DE UMA FA ZEN DA NA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, in De Vassouras, His
tôria. Fatos e Gente, compilação de G/eenhalg, H. Faria Braga, Rio de Janeiro, Ultra-sed Ed., 1978.
MUNIZ, Célia Maria Loureiro, OS DONOS DA TERRA, Um estudo sobre a estrutura fundiária do Vale
do Paraíba Fluminense no Séc. XIX — Dissertação de Mestrado — UFF — Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia — Niterói, 1979 (não publicado).
PRADO JÚNIOR, Caio - HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL, Editora Brasiliense São Paulo, 24?
Ediçio. 1980.
REIS FILHO, Nestor Goular, QUADRO DA ARQUITETURA NO BRASIL, Editora Perspectiva.
Coleção Debates N? 18, São Paulo, 1970.
RIBEYROLLES. Charles. BRASIL PITORESCO, Ed. M artins, MEC e INL, São Paulo. Brásilia, 2 vo
lumes. 1976.
SAINT HILAIRE. Auguste de. VIAGEM PELAS PROVÍNCIAS DO RIO DE JANEIRO E SÃO
PAULO, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1938.
ST1EN. J. Stanley. GRANDEZA E DECADÊNCIA DO CAFÉ NO VALE DO PARAÍBA. Um estudo
sobre Vassouras, São Paulo. Ed. Brasiliense, 1961.
A espacialidade do Passeio
Público de Mestre Valentim
A N N A M A R IA M O N T E IR O DE C A R V A L H O
Na segunda metade do século XVIII, uma notável obra urbana destaca-se como um
documento visual dos mais representativos da história e da arte do Rio de Janeiro.
Trata-se do Passeio Público de Valentim da Fonseca e Silva, Mestre Valentim, expressão
plástica da realidade cultural do Brasil-Colônia que se afirma como Capital do
Vice-Reino. E, no amálgama dos modelos europeus importados, a obra mostra os indícios
de uma singularidade artística e de uma consciência nacional.
De sua fundação em 1565 a meados do setecentos, a cidade do Rio de Janeiro se
desenvolve em torno do binômio Igreja/Estado, manifestando uma ideologia políticoreligiosa
marcada pela Contra-Reforma que, em Portugal, funda-se na divulgação da cultura
luso-católica e na defesa territorial, garantindo-lhe a manutenção da Colônia. Do
ponto de vista de uma expressividade plástica e urbana, manifesta-se essa ideologia na arte
monumental das Igrejas e Conventos das Ordens Primeiras e nas construções fortificadas,
contrastando com a modéstia das casas urbanas, as ruas estreitas e tortuosas e a insalubridade
da cidade.
Já no início do século XVIII, o Rio se afirma como principal porto da Colônia, por ser
o escoadouro natural dos minérios da Gerais (descobertos no século anterior). Seus gover
nantes, embora ainda privilegiem os interesses defensivos, começam a voltar-se para os
urbanos, diante da expressão que a cidade vai adquirindo aos olhos da Coroa. Um exemplo
é a construção do seu primeiro chafariz — o da Carioca em 1723.
Em 1763, o Rio de Janeiro é elevado a sede de Governo e a Capital do Vice-Reino,
obedecendo às mudanças político-administrativas introduzidas, no Brasil, por Marquês de
Pombal, o Ministro todo-poderoso do Rei D. José. Razões de ordem estratégica determinam
a escolha: seu porto oferece maior segurança e fiscalização do que o de Salvador e
está mais perto da região sul do país.
Torna-se também cada vez mais evidente a aproximação do modelo lisboeta de capital
como imagem de um poder absoluto, esclarecido e iluminado, iniciado com D. João V e
que a política centralizadora pombalina enfatiza na reconstrução da cidade arrasada pelo
terremoto de 1755.
Assim, Lisboa e Rio de Janeiro apresentam a incorporação do estilo barroco monumental,
expressão do poder do Estado — das principais capitais européias do momento:
Roma e Paris; e, também, do rococó, arte refinada e galante, desenvolvida sobretudo na
Corte de Versailles. Essas duas formas chegam, a essas cidades, conciliadas, sem a oposição
do pensamento que as geraram inicialmente.
68 GÁVEA
N o Rio de Janeiro, o m onum ental e o requintado passam a ser as obras dos poderes
civil e m ilitar como, por exem plo, o Palácio do G overnador (1743), Arco do Teles (1750),
os A rcos da Lapa (1750), a Casa do T rem (1762). As manifestações artísticas religiosas das
Igrejas das Ordens Terceiras e Irmandades. expressão são tam bém do poder dos leigos,
com o declínio das O rdens Prim eiras, quando da expulsão dos jesuítas do Brasil em 1755,
durante a reforma pombalina. Com o exemplo, as Igrejas das poderosas Ordens Terceiras
do Carm o e de São Francisco, pertencentes aos brancos e notáveis. A parte urbana da
cidade já apresentava ruas retilineas. com traçado em xadrez e abertura de largos, o que
propiciava maior aeração e luz à cidade. Isso evidencia um a estrutura plástica e urbana
racionalizante, em que está presente a proposta ilum inista com os conceitos de civilidade,
higienização. bem-estar social, progresso cientifico e crença nas realizações hum anas, incorporada
à solenidade da proposta barroca.
Cabe ao quarto Vice-Rei, D. Luís de Vasconcelos, tornar mais evidente esse processo.
quando opta em sua gestão (1779-1790) por atacar os ainda graves problemas de in
salubridade e abastecimento d'água da cidade. Decide-o por esse trabalho m onum ental,
que é o Passeio Público — o prim eiro local de lazer do carioca — num desejo de integração
do espaço da natureza ao da urbe. com expressão artística. O m onum ental desce do altar á
rua. consagrando o “ povo" na figura do seu benfeitor. O artista fica. assim, anônim o e es
quecido. reconhecido, apenas, pela tradição popular. N as cartas de D. Luís de Vasconcelos
dirigidas ao Sr. M artinho de M elo e Castro esse refere-se á obra do Passeio Público (e
outras), mas não ao M estre (R evista do IH G B .T o m o 4. pp. 34, 35). Sua primeira biografia
data de meados do século X IX , feita por Manuel de A raújo Porto Alegre (publicada em
artigo “ V alentim da Fonseca e Silva". R evista do IH G B . vol. 19, pp. 369/375, RJ, 1856)
a partir de um relato de Simão José de Nazaré, discípulo de V alentim . O utros biógrafos
acrescentaram novos dados: M oreira de Azevedo (O R io de Janeiro, sua H istória, M o
n u m e n to s, H o m ens N o táveis, Usos e C uriosidades, Vol. I, p. 569, RJ, 1877) descobre
nos Livros de Óbitos da Igreja do Rosário a data de sua m orte: 1? de m arço de 1813: Nair
Batista ( “ Valentim da Fonseca e Silva", R evista do S P H A N , n? 4. pp. 272/282, RJ,
1940) confirma a informação, ainda esclarece o term o de entrada de Valentim na mesma
Irmandade em 1799 (fls. 39 Lvs. 1752/1829) e reconhece a autoria de seus retábulos nas
Igrejas das Ordens 3?s do C arm o e de São Francisco; Á lvaro M achado reconhece a au
toria de Valentim no retábulo da Igreja da Conceição e Boa M orte ( “ Igreja da Conceição e
Boa M orte , in M undo C atólico. Rio. 1956); A nna M aria M onteiro de C arvalho, nos da
Igreja da Cruz dos M ilitares (livrode Receita e Despesa, M aço I. 12 de dezem bro de 1812,
Doc. n? 28; 14 de abril de 1812, Doc. n? 82, inform ação doada ao Arquivo do S P H A N em
1984).
M ulato, filho de um contratador de diam antes e de um a negra africana, o seu cam
inho está traçado a A rte; aqui cabe a observação de Sérgio Buarque de Hollanda (in
“ Letras, A rtes Ciências” , Cap. III, H istória G eral da C ivilização B rasileira, pp. 108 a
109. SP, 1982): A vocação e a destreza artística passam a constituir um a inspirada possibilidade
de movimento ascensional na rígida estru tu ra escravista. Por essa via, forma-se
um novo grupo, que não é cativo nem senhor, cuja cor de tez é ignorada e cuja presença é
indispensável” .
Conta Porto Alegre “ que fora aqui que aprendera a arte torêutica como entalhador
que fez as primeiras obras da O rdem Terceira do C arm o” .
10/n? /U/ o ? ^ di-SCOrdam‘. G °1nZaga Duque Estrada ( ‘‘M estre V alentim ” , in O P aiz,
i. /U 3/1213) diz que tena adquirido algum conhecim ento de sua profissão em Portugal.
A espacialidade do Passeio Público de M estre Valentim
69
para onde foi pequeno e voltou jovem ainda, aproximadamente em 1765 e ficando aqui até
a morte.
Eximio toreuta e artista do “ risco” , seu nome já figura como M estre em 1773 (19
Livro de Receita e Despesa da Ordem 3? do Carmo). Logo se destaca dentre outros Mestres
entalhadores contemporâneos, executando magníficas obras de talha e imaginária em
algumas das mais im portantes igrejas da cidade e, ainda, moldes de lampadários, mobiliário
e objetos sacros. Engenhoso urbanista, “ arquiteto” e escultor, no período de um
Alpoim e de um Funk, constrói além do Passeio Público os mais famosos chafarizes da
época — o das M arrecas (1785), Pirâmide (1789), Lagarto (1786) e Saracuras (1795),
dotando todas essas obras de belas esculturas. É ainda responsável pela reedificação do
prédio do Recolhimento do Parto (1789), que se incendiara.
Nào podemos ainda saber como Luís de Vasconcelos, fidalgo instruído, de larga experiência
administrativa, encarregou Mestre Valentim para o estudo e direção das obras
públicas urgentes preterindo a escolha de militares diplomados engenheiros com o; por
exemplo, o sueco Funk. O fato é que, encomendados o projeto e a construção do Passeio
Público á competência e á lavra de Valentim, ele se torna a mais importante expressão artística
do Rio de Janeiro dos Vice-Reis.
Analisemos alguns itens que, a nosso ver, definem a obra:
1. O conceito iluminista de saúde pública, liberando “ ar puro” e luz à população,
presente na escolha do local.
Iniciado em 1779 e concluído em 1783, o Passeio Público surge em local acertado,
que a consulta de mapas e iconografia da época permite avaliar: como podemos depreender
de cópia da planta de Roscio, projeto de fortificação de 1769 (Gilberto Ferrez, in A s
( idades de Salvador e do Rio de Janeiro, no Século X V I I I , RJ, 1963, pp. 32 e 33) a cidade
compunha-se de um quadrilátero que tinha como limites a leste, as águas da baia e a oeste,
pouco mais que a rua da Vala (hoje Uruguaiana), com um a saída para o Largo de São Francisco
e outra para os terrenos e o Convento da Ajuda. Daí partia o Caminho dos Barbonos
a que seguia o de M ata-Porcos, fazendo ligação com o interior, de onde algumas granjas e
chácaras forneciam o abastecimento. Um terreno na urbe ou mais para o interior apresentaria
condições idênticas de insalubridade, calor e falta de conforto que castigavam a
população; a brisa m arítim a da tarde, vinda do Sudeste, encontrava uma barreira nos mor
ros do Castelo e de Santo A ntônio, unidos nas suas bases; as áreas internas nào tinham o
menor encanto. Eram alagadiças e sem morros próximos obrigatórios aos necessários aterros.
Buscando a praia, ainda que um pouco distante, Valentim alcança zona bela e fresca,
nào obstante a insalubridade do local alagadiço, e obtém solução ideal, com o desmonte do
morrote das M angueiras e aterro da Lagoa do Boqueirão da Ajuda e circunvizinhanças. Is
to porque o m orro era baixo e de terra, um contraforte do Morro de Santa Teresa e a
chamada lagoa não passava de um raso espelho d ’água. como podemos ver num quadro da
época, o óleo do pintor Leandro Joaquim, atualm ente no Museu Histórico Nacional (fig.
D.
2. A crença no progresso e nas realizações humanas, de um governante iluminista
está evidenciada no preparo e proteção da área; a maior obra de engenharia feita no Vice
Reinado.
É de se compreender o enorme esforço para levar a cabo um empreendimento dessa
natureza, dada a precariedade de recursos, de instrum entos e equipamentos disponíveis e
da qualidade da mão-de-obra. Somente o sentido de autoridade e de independência de Luís
de Vasconcelos e a confiança depositada no talento e capacidade do mulato Valentim explicam-lhe
o êxito. Vimos que Luís de Vasconcelos dispensou autoridades no ramo da en-
70 GÁVEA
genharia da época. . . . . .
Conform e verificamos na carta do Vice-Rei dirigida ao Sr. M artinho de M elo e Castro
( “ opus cit. ” , pp. 34/35). datada de 1781, faz-se referência “ a um trabalho iniciado com
aqueles aterros de 1779 — o Passeio Público” e que dá a entender que Vasconcelos agira
com urgência, diante dos problem as de insalubridade e abastecim ento d água da população.
sem se utilizar dos clássicos pedidos de autorização e de recursos. Segue o texto,
“ ...segui o meio term o de m andar para a fortaleza da Ilha das Cobras todos esses vadios,
que se encontram em algum com m isso, fazendo-os trabalhar nos seus officios; e passando
o rendim ento e producto das obras que se vendem para um cofre, que mandei estabelecer
no calabouço, para se applicarem as importâncias que alli se vão ajuntando ás obras publicas
d esta cidade. N o mesm o cofre se guardam as que respeitam aos açoutes dos escravos
que os seus senhores m andam castigar, afim de se im pedir por este modo não só a
excessiva paixão com que são punidos, mas ainda de se providenciar a precisão de o serem
quando fazem desordens, e se disfarçam por um a indiscreta affeição. Todos estes rendimentos.
que se tem apurado por um methodo e escripturação abraviada, se tem consumido
nas obras do Passeio Público, a que as pequenas rendas da C am ara, e as poucas forças da
Fazenda Real não podiam acudir, tendo-se conseguido ultim am ente dim inuírem , com o
medo d aquella suave correcção, as perturbações d e s te s indivíduos, dos quaes se vem a
tirar um a correspondente satisfação na parte que pôde respeitar ao mesmo publico” .
A ssim , escolhido o local e definido o projeto, V alentim dá inicio, em 1779, ao tra
balho de desmonte do M orro das M angueiras e o aterro da Á rea destinada ao jardim e
também das imediações. Sem serm os precisos por falta de m aiores dados, podemos admitir
que o tipo de equipamento usado pela turm a de desm onte seriam os clássicos instrum en
tos: picareta, enxada e pá. Para o transporte do m aterial desagregado, empregava car
rocinhas e animais de tração, com o são vistos, em gravuras da época, serviços sem elhantes.
U m processo rudim entar que nos leva a reconhecer o alto valor do seu trabalho. Outra
engenhosa solução foi o recurso utilizado pelo M estre no que se refere á proteção da área:
um Dique. Os alagados junto ao litoral e a assim cham ada Lagoa do Boqueirão da Ajuda
formavam-se, em parte, pelas enchurradas de escoam ento dificil e também pela invasão
das ondas nas cheias de ventania. Com os aterros realizados, os efeitos das chuvas estariam
resolvidos apenas por adequado declive para a praia, m as o baixo nivel não impedia, de
quando em vez, os maus efeitos do mar.
Com o material do desm onte, V alentim constrói um a m uralha elevada “ cerca de dez
pés acima do nível natural do terren o ” (segundo relato do com erciante inglês, John Luç
cock, em N o ta s sobre o Rio de Janeiro e Partes M erid io n a is do Brasil 1808/1818, p.
59). Revestida por parede de pedra do lado do jardim e, externam ente, por um cais quase
vertical de grandes blocos de granito aparelhado, conform e gravura de C. Linde (A lb u m do
Rio de Janeiro de 1860). Essa verdadeira barragem representava um meio de proteção ao
Passeio Público contra os efeitos da natureza. Com um ou o u tro reparo, tal trabalho resis
tiu às ressacas e só foi abandonado pela necessidade de alargam ento da faixa litorânea, já no
século X X .
3. A s raízes árabe e medieval de Portugal ainda presentes na composição formal do
Passeio Público: à idéia de fusão do espaço da natureza ao urbano (espaço barroco) se opõe
a idéia de natureza “ revelada ” por de trás de um m uro e de um portão.
A exemplo de Lisboa, o Passeio Público de V alentim é protegido por um M uro, “ que
de espaço a espaço tem janelas com grades de ferro” (Luiz Gonçalves dos Santos, em
M em órias para Servir à H istória do R eino do B ra sil, p. 29) ou “ janelas com balaústres de
m adeira” (J. M anuel de M acedo, U m Passeio pela C idade do Rio de Ja n e iro , V. I, RJ,
A espacialidade do Passeio Público de Mestre Valentim
71
1877, p. 80). Divergências á parte, o fato é que o m uro apresenta aberturas, visíveis em
litografia do Barão de Planitz (12 Vistas do Rio de Janeiro, 1840, Col. Biblioteca Nacional)
e, partindo de cada lado da entrada (à rua do Passeio), circunda o parque, ficando-lhe á
direita o Largo da Lapa, à esquerda o da Ajuda. O m uro termina ao fundo, num terraço,
para o qual dão acesso quatro escadas. Assim, a fruição da beleza do Jardim e do Panorama
da Baia da Guanabara torna-se privilégio de um público selecionado que transpõe o portão.
Cercado pelo muro, o Passeio Público do Rio de Janeiro não se abre publicamente para a
cidade. Persiste ainda um a visão de mundo fechado, particular, a dos conventos e das
quintas portuguesas. Em Versailles, cujo modelo de jardim é formalmente retomado no
Palácio Real de Q ueluz e no Passeio Público de Lisboa, a visão de mundo é oposta — de
dentro para fora. N o centro do poder monárquico da França a natureza se abre, em artérias,
em direção à cidade. Em Roma, as praças, com fontes e chafarizes, servem de
mediação entre o espaço da natureza e o urbano.
4. A composição formal barroca é suporte de um a decoração barroca e rococó de tendência
classicizante; o sentim ento nativista de Valentim se instaura na poética da obra.
Valentim concebe o Passeio Público no form ato de hexágono regular. Dão-lhe entrada
um imponente conjunto de Portal/Portão, com vista direta para o fundo por uma ala
principal, reta, e outras secundárias também retilineas, num traçado especial de paralelas,
perpendiculares e diagonais, perceptível na planta do Rio de Janeiro de 1808 de J.C. Rivara
(Coleção Biblioteca Nacional) e ampliada em Manuel de Macedo ( “ opus cit.” ,
il. 3).
Esse traçado geom étrico evidencia também aproximação do modelo do Passeio
Público de Lisboa e dos Jardins do Palácio Real de Queluz, por sua vez inspirados na
aparência formal dos jardins barrocos franceses e dos italianos do fim do renascimento, que
contrapunham a construção ordenada da naturez^à movimentação dramática dos elementos
plásticos e arquitetônicos. A um simples exame desse traçado em relação ao atual
(projeto de Glaziou, na remodelação do Passeio Público em 1864, lápis e aquarela, col.
Biblioteca Nacional) (fig. 2) constatamos nova concepção espacial, neoclássica, que opõe â
racionalidade arquitetural e plástica das construções uma manifestação mais espontânea
da imitação da natureza. H á também maior interação do jardim com o seu entorno, uma
vez que o m uro foi substituído por grades de ferro, deixando, assim, aparecer o seu interior.
Segundo litografia de Karl W. von Therem in (em Saudades do Rio de Janeiro, 1935)
o Portal apresenta decoração clássica: pilastras jônicas em granito, encaixadas em abas de
alvenaria e encimado de urna clássica; completam-no duas guaritas em nicho e arremate
em curva e pinha. Dai segue o muro, deixando ver as aberturas com rexas e ornatos de
compoteira. Hoje só podemos apreciar o portal até as abas, uma vez que um gradil
substituiu as guaritas e o muro.
O Portão é todo trabalhado em ferro. A arte do metal — uma arte industrial desen
volvida principalmente na França, a partir de Luís XIV — é muito utilizada por Valentim,
com notável domínio da técnica. Apresenta o portão decoração rococó — volutas, curvas,
contra-curvas, estilização de plumas e folhagem, arrem ate em frontão curvilíneo trabalhado,
rocailles e medalhão de bronze. O medalhão ostenta, na face da rua as Armas Reais
e na interior, as efígies da Rainha D. Maria I e do Rei D. Pedro III (fig j 3).
Nas aléas, “ ruas bordadas de arvoredo...” (Gonçalves dos Santos, in “ opus cit.” p.
29) são plantadas várias árvores e plantas brasileiras “ sustentadas por treliças de madeira,
onde sob o abrigo da flor de maracujá, os tisnados brasileiros gozam o luxo de uma atmosfera
fresca” (Luccock, in “ opus c it.” , p. 59). É im portante aqui ressaltar a catalogação
cientifica das árvores e plantas das m atas cariocas feita por Balthazar da Silva Lisboa (A n -
naes do Rio de Janeiro. T. 1, cap. V, pp. 204 a 289, 1834), m uitas delas empregadas no
Passeio Público (segundo detalhada descrição botânica de José M ariano Filho, in O Passeio
P ú b lico. RJ, 1943), o que dem onstra ter havido um a deliberada preocupação em m ostrar
a flora local, seja por parte do sentim ento nativista de V alentim , seja pelo espírito de
investigação científica da natureza, próprio do ilum inism o, que o Vice-Rei e a Corte interessavam
documentar. Essas árvores, mais tarde frondosas, formaram um bosque, que
podemos ver reproduzido num a litografia do Barão de Planitz ( “ O Rio de Janeiro em
1840” , Col. Biblioteca Nacional) e mais tarde destruído quando da modificação do jardim.
N o que diz respeito a utilização de elem entos escultóricos, arquitetônicos e ornam entais,
o estilo de Valentim caracteriza-se por uma m istura do gosto barroco e rococó, mas
sempre de forma contida e sóbria. Podemos dizer, classicizante. H á também um evidente
sentim ento nativista. Estão presentes nessa obra urbana, e em outras que executou posteriorm
ente, esculturas da nossa fauna e flora aliadas ás de inspiração mitológica.
Q uase ao fim da aléa principal, de cada lado, erguem -se duas pirâmides de base triangular,
“ esguias” ... “ de boa proporçãoe bem lavradas” (John Luccock, in “ opus c it.” , p.
59) construídas em blocos de granito carioca, onde dois medalhões de márm ore branco,
colocados pouco acima da base, formam contraste. T razem as seguintes inscrições: “ Ao
Am or do Público" e “ À Saudade do R io" (fig. 4), o que pode com provar a necessidade de
Valentim em apresentar sua terra e sua gente (ou do Vice-Rei á sua própria), da mesma
forma que exaltara a presença real no medalhão do portão. As pirâmides funcionam como
marco divisório entre o jardim propriam ente dito e o conjunto arquitetônico que se distingue
ao fundo da aléa principal: um a Cascata artificial a que segue um Terraço com Pavilhões.
L ml j ■
Figura 7
A espacialidade do Passeio Público de Mestre Valentim
75
A cascata é formada por uma espécie de outeiro de pedras e vegetação, como uma
toca, onde se vê um magnífico conjunto escultórico, em bronze, de dois jacarés entrelaçados
e três garças (essas, hoje, inexistentes). H á ainda “ um coqueiro de 20, ou mais
palmos de altura, todo de ferro, e pintado ao natural, que, apesar da rija matéria de que era
formado, em poucos anos o vento o despedaçou” (Gonçalves dos Santos, em “ opus cit.” ,
p. 29) sendo substituído por um busto de Diana, no Governo do Conde dos Arcos.
Os jacarés têm representação naturalista, estão dispostos em oposição, num harmonioso
jogo de sim etria e movimento (barroco classicizante). Podemos ter idéia da cascata
com todas as esculturas, em desenho de M agalhães Corrêa (fig. 5), concebido segundo
a descrição de Luís Gonçalves dos Santos ( “ Fontes e Chafarizes” , vol. 170, p. 22,
Revista IH G B , 1939). A propósito das esculturas conta-nos o seu prim eiro biógrafo,
Araújo Porto Alegre: “ Valentim modelou aquelle grupo de jacarés; e porque falhasse a
primeira fundição, foi elle em pessoa executar a segunda, que é o resultado que admiramos
hoje. É também d ’elle o m enino que vôa e sustenta um Kagado, que vomita agua em barril
de granito, assim com o o eram várias estátuas que desappareceram” (In Rev. IH G B , vol.
X IX , p. 373, 1856).
A água da cascata jorra das mandibulas dos répteis e dos bicos das aves num tanque de
granito com planta m ovimentada barroca. A cascata é encimada por um frontão de perfil
interrompido e carteia em m árm ore de liós, rococó, com as armas do Vice-Rei.
Quatro escadas em oposição simétricas dão acesso ao lado oposto do conjunto de onde
segue o Terraço. V alentim constrói ali outra fonte: a chamada “ Bica do M enino" de que
fala Araújo Porto Alegre. Acrescentamos, com outros autores, a sua descrição, que na
outra mão o m enino segura uma faixa com o dístico “ sou útil ainda brincando” . No mesmo
artigo Porto Alegre conta que “ o menino que hoje lá se encontra é cópia do primeiro
(que desaparecera) feita executar, em concurso pela administração pública” (fig. 6).
Valentim dá ao T erraço dimensões adequadas a uma boa “ prom enade” pavimentando-o
com fios e lajotas de márm ore colorido; proteje-o com muretas tipo parapeito, intercaladas
por pilastras e vasos de mármore. As m uretas têm, como encosto, bancos de alvenaria
e revestim ento fronteiro em azulejos bicolores e tampos em m ármore que servem
para o descanso e contem plação do panorama (fig. 7 ). Constrói, também, dois Pavilhões,
um em cada extrem o do passeio do terraço.
Dos dois pavilhões, que não mais existem , fizemos um esboço e descrição calcados
principalmente nas observações de Luccock (in “ opus c it.” , pgs. 59/60) e em parte nas de
Gonçalves dos Santos (in “ opus cit.” , p. 29). São eles estruturalm ente semelhantes,
quadrangulares, com o prova a descrição de Gonçalves dos Santos e a gravura de Richard
Bate, “ T he publics gardens. Convento da Ajuda, H illo f S. Sebastião, Sta. Luzia, Ponta do
Calabouço as seen from the church of N.S. da G lória” (aquar. color., cópia, Coleção
Biblioteca Nacional) lem brando capelinhas simples, por fora, mas internam ente de forma
octogonal e m uito ornam entadas (fig. 8). Essa característica de interior octogonal pode
ser vista, por exemplo, na Igreja N.Sra. Mãe dos H om ens, de 1752, á Rua da Alfândega,
nas proximidades da oficina-residência do M estre, á Rua do Sabão. Nos beirais do telhado
vêm-se vasos com ananases em ambos os Pavilhões que ostentam, ao centro, estátuas de
mármore; à direita Apoio e á esquerda M ercúrio. A decoração dos interiores foi entregue
aos conhecidos artistas da época: Xavier dos Pássaros que se incumbe do Pavilhão da
direita, em cujo teto aplicou penas e plumas coloridas; Xavier das Conchas se incumbiu do
outro, empregando nos adornos dos tetos esse variado material. Os Pavilhões guardam
homogeneidade de estilo; nas suas divisórias figuram quadros a óleo de Leandro Joaquim
em molduras ovais, douradas. O de Apoio apresenta belos cenários do Rio de Janeiro e o
GÁVEA
ra 8
de M ercúrio, motivos da sua vida econômica. H á rem anescentes dessa coleção de quadros
no M useu Histórico N acional.
Finalm ente, Valentim atinge na construção do Passeio Público, no todo e no detalhe,
níveis elevados de refinam ento e criatividade no campo da arte. Seja na composição formal
ou no sentim ento do m undo, tudo se articula em to m o de um a estrutura hierarquizada
que subordina o espaço arquitetural (representado pelo m uro) ao da natureza construída
(representado pelos jardins, fontes, esculturas, pavilhões e terraço) e este, ao da natureza
propriam ente dita.
N o traçado interno, as partes se ordenam ao efeito geral do conjunto e induzem a um
climax: a composição é voltada para um eixo central, a aléa principal, que, partindo da entrada,
leva o olhar do espectador em direção ao centro da sua criação artística, o imponente
conjunto arquitetônico e escultórico formado pela fonte dos jacarés, a bica do menino e o
terraço. Do centro, o olhar dirige-se ao alto, na contem plação do panorama da natureza —
finita da baía e infinita do céu. As pirâmides têm , a nosso ver, a carga simbólica de passagem
dessas duas dimensões.
Como vimos, Valentim criou da abstração das formas im portadas, uma composição
m agistral, a um tempo grandiosa e equilibrada, num deliberado propósito de m ostrar uma
visão de m undo. Um m undo português da Colônia, subjugado, que ele, artista brasileiro,
pretendeu transcender, inserindo essas formas na singularidade da nossa natureza.
O nascimento do prazer da arte
GEORGES DUBY
Tradução: IHey Franco
A primeira m etade do século XIII fo i um a grande época para a teologia. Esta, de inspiração
franciscana e dom inicana, luta contra as heresias. Qual é a ligação entre essa
teologia e a evolução da arte que lhe é contem porânea?
Quais são igualm ente, no século seguinte, as consequências dentro do dom ínio artístico
da nova teologia que D u n s Scot e G uilherm e de O ckham ensinam ?
O que costumamos cham ar de arte gótica, isto é, uma concepção arquitetônica que
tenta fazer com que o m onum ento seja translúcido, que deixa penetrar a luz até o santuário.
encontra-se em relação direta com o florescimento, no inicio do século XII, de uma
teologia da luz. Na abadia de Saint Denis, Suger foi o promotor desta nova estética.
Venerava-se na abadia a memória daquele a quem chamamos o Pseudo Denys, um representante
do pensam ento bizantino que m ostra a criação como emanação de um foco
luminoso, a luz que transform a em Ser todas as criaturas. Animados por este pensamento
e fiéis a um texto da Biblia, “ Deus é luz” , os construtores que trabalharam no projeto de
Suger, que o seguiram e foram em seguida para Chartres e para todas as oficinas de trabalho
das catedrais da França, desejavam de fato dar forma a esse pensamento teológico.
De modo que. ao meu ver, a catedral gótica é a expressão visual mais convincente desta
concepção.
O pensamento teológico formalizou-se em seguida, especialmente na Universidade de
Paris; tornou-se bem mais racionalizante, devido á boa recepção da lógica de Aristóteles,
e. no decorrer dos séculos XII e XIII, a catedral também se torna mais racional. Ela se
desenvolve numa justaposição de seqüências extrem am ente ordenadas, quase idênticas, o
que ocasiona uma relativa secura; secura que vemos nitidamente afirmar-se no decorrer do
século XIII.
No final do século XIII e no inicio do século X IV , produz-se uma profunda discórdia
entre os homens da Escola, isto é, entre os que trabalhavam naquelas oficinas extraordinárias
das universidades, onde a principal disciplina era a teologia. De fato, uma descoberta
bem mais profunda do pensamento de A ristóteles e de seus comentadores muçulmanos
chegava a questionar determinados elem entos do próprio dogma. Esta discórdia
que suscitou consideráveis transtornos determ ina um a espécie de separação entre a ciência
de Deus, a teologia e a ciência do Universo. Esse movimento, que insinuava-se no pensamento
de Duns Scot e manifestava-se no pensam ento de Guilherme de Ockham, tra-
Perguntas formuladas por C.atherine Millet e Guy Scarpetta da revista “A rí Press
78 GÁVEA
duziu-se igualmente na evolução da criação artística. M as não creio que este tenha sido o
único fator.
Separação entre a ciência de D eu s e a ciência do universo
H ouve também o progresso geral da civilização, a necessidade de lucidez, o contato
com o m undo real, a reabilitação da natureza que se opera no decorrer do século XIII,
notoriam ente sob a influência de São Francisco de Assis. São Francisco de Assis não era
um teólogo, mas ele “ salvou” o carnal, o natural, o m undo da condenação que lhes pesou
por tanto tempo.
Estas transformações dentro do pensam ento e na produção da própria teologia favoreceram
o surgim ento do que cham am os de realism o, isto é, de uma atenção voltada
para a figura das coisas visíveis.
A cho que o esforço dos pintores no século X IV em aperfeiçoar o ilusionismo recorrendo
principalm ente à perspectiva tem uma relação evidente com estas novas atitudes do
pensamento.
N o que d iz respeito à arte do século XIII, eu n otei que você fala de u m “realismo do
g lo b a l". Q ual é a diferença entre esse realism o do glo b a l e o realism o que aparece no
século X IV ?
Enquanto a criação da G rande A rte está inteiram ente sob o domínio dos intelectuais,
isto é, dos padres e teólogos, o refinam ento do pensam ento teológico conduz a uma expressão
mais conveniente e mais satisfatória da coerência do universo. Dai a busca do
“ global” ; a catedral tom a-se um a espécie de enciclopédia onde todos os elementos do
conhecim ento se reúnem num todo. É difícil, portanto, falar de realismo, no sentido que a
história da arte dá habitualm ente a esta palavra, porque o que os artistas guiados pelos
teólogos procuram é reencontrar o que há de ideal nas criaturas, isto é, as intenções di
vinas. É um a espécie de busca de tipos exemplares. Por exem plo, a escultura da metade do
século XIII não procura absolutam ente individualizar seus personagens, tampouco situá
los dentro de sua verdadeira idade ou particularidade física; ela tenta reconhecer sob os
traços dos homens e das m ulheres que se trata de representar aquilo que há de mais perfeito,
a perfeição do próprio program a, o modelo prim itivo tal com o existiu no pensamento
do Deus criador. Entretanto, quando a teologia, após a grande reviravolta de que falei há
pouco, descarta a ciência do universo criado, ciência que se funda na experiência e na observação.
inventário do que percebem os sentidos, abre-se aos artistas o campo para uma
busca que eu chamaria de fenomenológica. É o acidente que deve ser traduzido, dai o
desenvolvim ento do retrato e a irrupção da paisagem.
U m a Piedade M ais Individual
Você disse a propósito desta teologia que ela fo i um a reação ao pantelsm o. C om o então se
reencontrar entre o p a n telsm o e p o r exem plo a natureza seg u n d o São Francisco?
Isso de fato se deu num a aresta. H ouve por parte daqueles que eram m uito sensíveis
ao averroísm o, e a tudo o que as traduções árabes puderam descobrir de um pensam ento
que não era cristão e de uma interpretação de A ristóteles e da filosofia grega, uma grande
tentação em ver Deus por toda parte e portanto de colocar em questão a autoridade da
igreja. O panteísmo conduzia ao sentim ento de que finalm ente a ligação entre o indivíduo
e as forças imanentes podia ser direta, sem o interm ediário sacerdotal. Evidentem ente a
0 nascimento do prazer da arte
79
igreja combateu tudo isso. A Grande A rte que era a arte oficial tentava descartar tudo o
que nela podia haver de panteista. Mas com o desenvolvim ento da filosofia de Ockham e
com a evolução da sociedade — pois eu não dissocio a evolução do pensam ento do que o
sustenta, as relações entre os homens — pouco a pouco, no decorrer do século X IV , há
uma inclinação para as formas de piedade que são cada vez mais individuais (este movimento
conduz aos místicos renanos, ao mestre Eckart e à Imitação de Jesus Cristo) onde
aquilo que as pessoas da época chamavam a devoção moderna se estabelece dentro de uma
relação bem mais distanciada no que concerne aos quadros eclesiásticos e onde o diálogo se
instaura entre o fiel e Deus. Isso se reflete diretam ente sobre a criação artística, menos nas
formas do que nos lugares em que surge a G rande A rte, o oratório privado, o livro de
orações, o relicário pessoal (passou-se a usar as relíquias sobre o próprio corpo como se
fossem jóias). E é isso que faz com que passemos de um a arte que, no século XIII, é uma
arte do monumento, um a arte coletiva, uma arte para o povo inteiro, ao objeto de arte de
que se apropria pessoalmente o indivíduo.
A leitura do tem po das catedrais nos ensina que a Itália perm aneceu bastante perm eável à
nova teologia E ntretanto poderiam os pensar que a arte de G iotto corresponde a ela, porque
se essa teologia é um a teologia do indivíduo, a arte de G iotto é ta m b ém considerada
como uma arte do indivíduo.
Giotto trabalhava sob as ordens pontificiais e cardinalicias que representavam a cultura
global do cristianismo. N a minha opinião, as inovações de Giotto têm menos relação
com o itinerário teológico do que com as formas de transm issão da crença. A arte de Giotto
só se explica quando a consideramos contem porânea de uma organização extremamente
voltada para a prédica, para aquilo que hoje nós cham aríam os de mass media. Trata-se de
tom ara imagem o mais convincente possível. G iotto transpõe as técnicas do teatro para a
pintura; põe em cena os personagens, isto é, indivíduos que têm um papel definido, atores
que traduzem o dogma, a revelação, através de um a gesticulaçào e através das posições que
uns ocupam em relação aos outros.
O T eatro de Giotto
O que poderia ser dito sobre a arte do teatro e da prédica? Você escreveu que pouco a
pouco entre os teólogos a *‘d isp u ta '' substituiu a lição.
Isso se passa no interior da universidade. N o m om ento em que a teologia se funda no
ocidente, isto é, na época de Abelardo (eu falei ainda há pouco de Denys o Aeropagita,
mas ele veio da Grécia e o Ocidente era ainda m uito bárbaro para criar sua própria teologia
antes do século XII). É dentro das escolas eclesiásticas, por causa da adoção da lógica aristotélica.
que o trabalho sobre a Escritura pouco a pouco muda de forma. D urante muito
tempo isto foi apenas um a meditação individual, confinada a uma leitura comentada por
um único homem, o m estre, que ensinava o seu ponto de vista. Mas pouco a pouco os
métodos da dialética, isto é, a contradição, foram sendo colocados em prática. Abelardo
em seu Sic et N o n confrontando opiniões contraditórias retiradas da Sagrada Escritura,
convida á discussão. É efetivamente dentro da universidade, e principal m ente dentro da
universidade parisiense que o curso magistral, a lectio foi sendo progressivamente substituída
pela d isputado, isto é, pela controvérsia. E é através do diálogo que se procura uma
aproximação da verdade.
Entre as ordens m enores, entretanto, não se trata de refinar o pensamento teológico
mas de difundi lo. Os m étodos são métodos extrem am ente amplos de transm issão, e se
dirigem aos leigos, a quem proibe-se além disso as discussões. A verdade lhes é revelada
80 GÁVEA
através de um interm ediário que é a cena, através da eloqüência e do sermão, mas apoiados
pela cenografia. Recorre-se ao quadro vivo, ao teatro. E a arte de Giotto é a arte do teatro
imobilizado, com cenas sucessivas. N ão a cena de teatro á italiana, como se poderia
im aginar, mas “ as casas” , as decorações justapostas do teatro medieval, que era um teatro
circular. A s cenas sucessivas das capela alta de Assis ou de Pádua são cenas do Teatro de
Feira colocadas umas ao lado das outras, e é diante delas que desfilamos.
O que significa dizer que a arte de G iotto não é tão contraditória com relação ao pensam
e n to de São Francisco...
A pesar disso, o program a realizado por G iotto neutralizava o que podia haver de
revolucionário na prédica de São Francisco de Assis pois tratava-se de um programa estabelecido
pela igreja oficial que tentava restabelecer a ordem .
N ão é u m a idéia m u ito agradável essa da arte co n trib u in d o para neutralizar um a revolução...
N o entanto é bastante evidente. A grande em presa artística de Assis consistia em estabelecer
dentro do próprio e sta b lish m en t tudo o que havia de contestador no franciscanismo.
M anifestar a Encarnação
V ocê falava ainda há pouco de m ediação entre os h o m e n s e D eus. Isso ten a alguma relação
com a fig u ra da V irgem , e n q u a n to precisam ente m ediadora?
Não. Talvez seja m elhor voltarm os um pouco mais atrás. Você me perguntava, na
prim eira pergunta, a respeito das relações entre a arte e as lutas contra a heresia. É preciso
observar que em contrapartida á doutrina oficial havia um a prodigiosa e vigorosa corrente
de contestação herética, inicialm ente anticlerical, m as igualm ente negadora do que po
deria haver de encarnação no cristianism o. Essa corrente contesta o fato de que a pessoa
divina tenha tomado a forma carnal, que Cristo tenha sido um homem e que seu corpo
tenha nascido do ventre de um a m ulher. Tudo isso repugna àqueles que a igreja declara
heréticos, isto é, a partir do século X II, os cátaros, cujo m ovim ento havia sido durante
m uito tem po precedido por tendências comparáveis. A arte figurativa, a grande escultura,
a partir do século X I, tem por função essencial esculpir a prédica herética. Dai o lugar que
é dado ao corpo, ao corpo de Jesus vivo e, para m anifestar a encarnação, uma exaltação da
mãe de Deus. A mãe de D eus, cuja figura foi pela prim eira vez instalada ao ar livre no por
tal de C hartre, como elem ento essencial da decoração. Pouco a pouco explode o desenvol
vim ento iconográfico da figura de M aria. Os teólogos estabelecem um a espécie de me
táfora entre Cristo e sua mãe, e entre Cristo e a igreja. A virgem se torna a imagem da
igreja e quando é mostrada, com o nos tímpanos de Senlis e da N otre Dame de Paris,
coroada pòr seu filho, é para proclam ar que Cristo delegou seu poder real á igreja.
F lorescim ento da A r te Cortesã
V oltando à noção de realismo. V o cê escreveu que o realism o no século X IVse deve mais a
um a m udança da teologia do que ao progresso da burguesia. Isso vai contra toda u m a con
cepção sociológica da história.
Sem dúvida, tradicionalm ente, o realismo é a arte burguesa. Por um lado, estou convencido
de que existem correlações necessárias entre o pensam ento e a evolução material
O nascimento do prazer da arte
81
das coisas. Mas por outro, estou também convencido de que não se pode falar de uma arte
burguesa, porque á medida em que a dominação da G rande A rte foi sendo pouco a pouco
retirada das mãos do clero, o foi para passar às mãos dos príncipes e não dos burgueses. Os
grandes projetos, a direção dos artistas, os meios financeiros colocados á sua disposição,
nada disso vinha de fortunas burguesas, antes do século XIV italiano. H á um a ‘desclerizaçào’
e portanto um refluxo do teológico; há um a profanação, no sentido etmológico do
termo, mas esta arte é principesca. É dado um lugar dentro desta arte, cujos alicerces são
teológicos uma vez que para a maioria continua a ser sagrada, a preocupações hedonistas,
ao gosto pelo prazer físico, e finalmente ao florescim ento de uma cultura que não é burguesa
mas cortesã. E quando os burgueses tom am -se mecenas ficam fascinados com a
Cortesia. Tudo o que vemos modificar-se, ao m esm o tem po na iconografia, nos temas, nos
recursos a materiais mais luminosos e apetitosos, não deve ser atribuído a um a emergência
real daquilo que chamamos burguesia, mas ao florescim ento de uma civilização da corte.
Uma A r te M ais Livre
Isso quer dizer, ainda e m fu n ç ã o da nova teologia, que houve um a m aior liberdade da arte
com relação ao dogm a?
Sim, isso é evidente. A partir do século X IV há um a espécie de separação entre o
domínio da fé e o dom ínio da experiência hum ana. Há todo um domínio que permanece,
que é o da teologia pura, mas outro lado há tam bém a reflexão autorizada e a aplicação da
lógica sobre tudo o que é terrestre, especialm ente o poder. Paralelam ente à teologia,
desenvolve-se o que podemos chamar de uma filosofia, um a filosofia que se tom a muito
livre porque não é mais obrigada a estar a serviço da teologia. Creio que é isso que produz
uma grande ruptura. E porque de um modo absolutam ente contem porâneo, os meios concedidos
á criação artística não mais se concentram exclusivamente dentro dos programas
teológicos, mas se voltam , na maioria, para as decorações da festa terrestre, essa liberdade
torna-se ainda maior. O artista é levado a lançar um olhar liberado sobre o corpo, sobre a
mulher, sobre o m undo.
Você vê uma relação direta entre a pintura de Van E yck e a teologia de G uilherm e de
Ockham
Sim. A filosofia existente na obra de G uilherm e de Ockham é uma filosofia diretamente
naturalista á medida em que tem um curso próprio em relação ao curso da teologia.
A partir de 1400, na sociedade de Jean de Berry, os artistas que, como os de antigamente,
eram chamados para ilustrar principalm ente os livros de oração são autorizados a traduzir
o verdadeiro espetáculo do m undo. Essa corrente, nascida na corte parisiense, desemboca
na grande pintura de Van Eyck, que é um a análise extrem am ente minuciosa da natureza.
A natureza é em si suscetível a um a interpretação.
A té aqui falamos das fo rm a s artísticas, será que poderiam os agora evocar os artistas? Você
costuma ligar os teólogos aos arquitetos, e às ve zes fala de arquitetura em term os de
teologia. Você acha de fa to que o arquiteto se considerava u m teólogo?
Tudo isso é m uito obscuro, porque não tem os informações suficientes sobre as condições
de trabalho. Os hom ens que eram chamados para executar o trabalho cum priam um
programa que lhes era fornecido pelos pensadores, sábios e teólogos. Além disso, há um
momento, mais ou menos na metade do século X III, em que a condição dos artistas en
82 GÁVEA
contra-se suficientemente com prom etida, para que eles tenham qualquer independência.
Vemos claram ente na evolução das decorações esculpidas da catedral de Reims, que um
prim eiro projeto, realizado parcialm ente, respondia, pela distribuição prevista das figuras,
a um propósito estritam ente teológico. M ais tarde, com a vinda de um segundo artista, as
estátuas são redistribuídas com um propósito puram ente estético. Essa des teologização da
criação artística faz com que a satisfação pelo gosto estético se tom e pouco a pouco predom
inante.
Um homem como São Bernardo não conhecia o sentido do que nós chamamos de arte,
isto é, do belo. Para ele, tratava-se de encontrar, no interior da pedra, a perfeição. Enquanto
que as obras atualm ente expostas no G rand Palais pertencem a um outro registro,
o do prazer estético.
Isso significa que a arte m u d a de fu n ç ã o ?
Estou persuadido disto e foi o que tentei m ostrar m odesta e imperfeitamente, porque
é m uito difícil. Em que m om ento no interior de um a cultura a arte se libera de uma função
mágica, de uma função religiosa? U m outro fator que intervém diretamente e que, apesar
de não ser teológico, devo m encionar, é que desde o século XII na Itália havia um interesse
pelas antiguidades e pelas formas que nada tinham a ver com a teologia cristã.
O que você disse sobre São B ernardo m e fe z p e n sa r no que E tienne Gilson lembra a
propósito de São T om ás de A q u in o , a saber, que ele não tin h a um a estética Ele tinha uma
idéia do Belo puram ente tra n scen d en ta l que não lhe p erm itia construir um a estética no
sentido e m que a en ten d em o s hoje, isto é, correspondendo às regras de fabricação
É justo que ele não tivesse um a estética. N osso conceito de Belas Artes é absolutam
ente estranho ao pensam ento dos homens dos séculos XII e XIII, enquanto que no
século X IV vemos grandes príncipes colecionadores colecionar objetos para o prazer dos
olhos. Eles esperavam dos artistas que estes respondessem ao desejo de gozar a obra dentro
de suas formas.
A nefasta influência dos arquitetos neoclássicos
Boullée e Durand sobre a arquitetura moderna*
JOSEPH R Y K W E R K
Tradução Candace Lessa
As construções m odernas repousam em grande parte sobre a utilização intensiva de
formas geométricas elem entares. Algum as destas formas, como o quadrado, são fáceis de
desenhar O utras, com o o circulo e o triângulo, ou os sólidos deles derivados, como o
cilindro, são mais difíceis de serem trabalhadas. N o entanto, verifica-se um uso insistente
destas formas por parte dos nossos piores arquitetos e projetistas contemporâneos. Difundiu
se a idéia de que as formas geométricas elem entares são, por algum motivo, melhores
q* e outras mais com plexas. Devemos esta idéia aos arquitetos neoclássicos, e também a
fatores que os antecederam . N o século V a.C ., Platão havia formulado a idéia de que corpos
regulares, tais com o o cubo e o tetraedro, correspondiam aos elementos constituintes
do Universo, e a esfera, a forma mais perfeita, continha e unia todas as outras. Estas idéias
foram reformadas pelos filósofos medievais e adquiriram um novo ímpeto durante o renascimento.
época na qual filósofos e astrônom os acreditavam ser o Universo redondo, e suspeitavam
que a T erra tam bém o fosse. Q uando Rafael pintou os filósofos da Antigüidade
em um mural intitulado A Escola de A te n a s, retratou Ptolomeu, astrônom o e geógrafo,
segurando um globo terrestre; e Zoroastro, astrônom o mítico, segurando um globo celeste.
Essas noções platônicas e seu posterior desenvolvimento tiveram reflexos sobre a arquitetura.
Ao favorecerem o uso da abóbada em suas igrejas, os arquitetos renascentistas
erguiam m iniaturas do arco celeste.
Para muitos filósofos, a esfera era a imagem da perfeição de Deus, assim como também
o era o corpo hum ano. A Bíblia dizia que Deus criara o homem à sua imagem; e, assim
como os antigos, os filósofos cristãos queriam reconciliar a idéia da perfeição do corpo
com a descrição geom étrica do Universo. A rtistas estudavam as proporções da figura
humana para nelas encontrar os segredos da harm onia universal, e buscavam um método
que exprimisse essa harm onia através de fórmulas matemáticas simples. Os arquitetos
renascentistas acreditavam que a arquitetura poderia transm itir tanto a idéia de harmonia
matemática quanto a idéia do homem como microcosmo.
Já em meados do século XVII, cientistas procuravam, cada qual dentro de sua área
especifica, aquele aspecto irredutível do conhecim ento a partir do qual seria possível construir
um sistema novo e especializado. A experim entação tomou o lugar da especulação
sobre a harmonia universal. E, na teoria da arquitetura, as ordens antigas deixam de ser
84 GÁVEA
sacralizadas. Contudo, a casca de ornam entação clássica continuou sendo usada pelos
arquitetos, se bem que m uitos não acreditavam nesta ornam entação como suporte ou base
para um a abordagem racional dos problemas de construção. A lguns arquitetos do século
X V II quefescreveram sobre problem as teóricos justificavam o uso da ornam entação clássica
a título de convenção. Passaram a considerá-la com o um método de desenho familiar e
governado por regras; regras estas que, tendo sido estabelecidas por autoridades antigas,
eram a garantia do bom-gosto. Surgiu então um a pequena disputa entre os “ antigos” , que
de algum a forma defendiam as idéias platônicas, e os “ m odernos” , que buscavam uma
prática empírica. Porém , m esm o aqueles que seguiam o ensino clássico não o aceitavam
com o universalm ente válido. N icholas H aw ksm oor, por exemplo, que trabalhara com
C hristopher W ren na Catedral de São Paulo, quando solicitado a ampliar o AU SouPs
College. um a construção medieval em Oxford, em pregou um desenho que considerava
medieval. A maioria dos seus predecessores e até alguns de seus contem porâneos achariam
sua construção por dem ais deselegante e bárbara para um prédio novo.
À m esm a época, viajantes traziam da China e da índia histórias sobre construções
maravilhosas jamais vistas na Europa. Descreviam enorm es palácios e torres de porcelana
e alabastro, telhados dourados e ornam entações fantásticas. A inda, narravam a China de
um déspota benevolente, adm inistrada por m andarins, hom ens sábios e cultos, que
chegavam a seus postos pelo sistem a do mérito. Este tipo de sociedade seduziu os franceses
e ingleses do século XVIII. Reformadores sociais, viam os chineses como rivais, e sua
civilização como superior às civilizações antigas da G récia e de Roma. Imitavam com en
tusiasm o. às vezes com m uita elaboração, construções e objetos exóticos. A arquitetura
greco-rom ana passou a com por em um quadro de diversos estilos alternativos, se bem que
mais destacada. Para alguns projetistas, a seqüência lógica desse m ovimento levaria a uma
ornam entação derivada das formas naturais, pedras, conchas e plantas, e não mais dos
modelos chineses, góticos, egípcios ou clássicos. Este tipo de ornam entação se afirma
com o estilo, chamando-se a principio Rocaille e, posteriorm ente, Rococó. Nele, a liber
dade inventiva estava a serviço de um ideal, o do prazer natural. Os artistas do Rococó,
com o M eissonier, desenhavam qualquer coisa; chegavam a redesenhar a própria natureza.
Foi o estilo de um a geração que se libertava do rígido despotism o de Luís XIV. Da França,
o estilo espalhou-se por toda a Europa e, durante trinta anos, dominou a moda. M as foi
um a moda sem espinha. Apelava para o capricho das pessoas: torcia-se, retorcia-se e, ao
final, saturou-se.
N a segunda metade do século XVIII uma nova e poderosa classe média começava a
tom ar conta da Europa. Ela rejeitava a aparente frivolidade do Rococó. A França não mais
liderava a moda, e a burguesia voltava-se para a liderança de um a Inglaterra mais sóbria. A
volta à m aneira austera e clássica foi uma reação inevitável e afetou tanto a aristocracia
quanto o patrono burguês que liderava a nação. Desta vez, os padrõs ornam entais e formas
clássicas foram cuidadosamente estudados e classificados conform e modelos já existentes.
Esta talvez seja a maior diferença entre o classicismo do Renascim ento e a visão neoclássica
da Antiguidade. A té os arquitetos e projetistas mais fervorosam ente neoclássicos
questionavam este sistema; disputavam em torno da harm onia universal e da racionalidade
do estilo. A questão reduzia-se agora á imaginação e ao bom -gosto.
A meu ver, o arquiteto que m elhor exemplifica este conflito entre o exemplo sóbrio e
edificante dos antigos, e o desafio do método racional e em pírico, é o parisiense Etienne-
Louis Boullée. É revelador que tivesse dedicado seu mais im portante projeto ao m aior
filósofo e cientista do seu tempo: Isaac Newton. Boullée nasceu em 1728, um ano após a
m orte de New ton. Queria ser pintor mas, frente á insistência de seu pai, decidiu estudar
A nefasta influência sobre a arquitetura moderna 85
arquitetura. Teve um a longa carreira como professor, de nício como membro da Academia
Real de A rquitetura de Paris; com a abolição da Academia pelo Governo Revolucionário,
Boullée tom ou-se membro do novo Instituto de França, e foi um dos mais influentes
mestres do país até sua morte, em 1799. Boullée construiu pouco, e a maioria de
seus projetos concluídos eram residências para a nobreza, em Paris e nos arredores. Reservava
suas energias para grandes projetos que não passavam do estágio de aquarelas. Um
manuscrito com suas idéias foi legado à nação em seu testamento, tendo sido publicado
apenas há alguns anos atrás.
Grande parte do m anuscrito é dedicado à tentativa de fundamentação de seu trabalho
a partir de princípios básicos, e à tentativa de estabelecer regras universal mente válidas de
desenho, e que tivessem a solidez das teorias de Newton. Boullée preocupava-se com as
propriedades dos sólidos. Como escreveu no auge do Rococó, abordou primeiramente as
propriedades de corpos irregulares. A complexidade e o grande núm ero destes o confundiam:
“ Cansado da esterilidade surda dos corpos irregulares, passei para os regulares” .
Nestes, achou as qualidades fundamentais que, em conjunto, produziam a imagem de ordem
que procurava; ou seja, á regularidade, a sim etria e a variedade. Segundo Boullée, a
esfera reuniría todas as propriedades dos corpos regulares. Cada ponto de sua superfície é
eqüidistante do centro. Isso quer dizer que ao olhar uma esfera, de qualquer um de seus
pontos, a beleza e a perfeição de sua forma não serão alteradas por ilusões óticas. A esfera
apresenta ainda outras vantagens. A sua grandiosidade é aumentada pelo fato de revelar a
maior área de sua superfície ao nosso olhar. É a forma mais simples, pois não há qualquer
descontinuidade em sua superfície. É também a mais graciosa, já que todos os seus perfis
são perfeitamente regulares. Em outras palavras, Boullée considerava a esfera o espelho da
perfeição: perfeição por si mesma, não como símbolo da harmonia universal.
A esfera foi o elem ento dominante em m uitos de seus projetos, por exemplo, a ópera
projetada para o espaço entre as Tulherias e o Louvre. Boullée acreditava que a ópera
deveria ser um tem plo do bom-gosto, um templo do prazer, um templo de Vênus, um
lugar em que o charm e da mulher parisiense fosse apreciado. Boullée também considerava
o aspecto prático. Os teatros do século XVIII eram comumente destruídos por incêndios.
A ópera projetada por Boullée seria construída em pedra e tijolo. O grande peristilo que
circundaria o prédio o isolaria e, ao mesmo tempo, fornecería um abrigo para os em
pregados que estivessem aguardando o térm ino do espetáculo.
Alguns anos mais tarde Boullée desenhou um cenotáfio para Newton, de forma perfeitamente
esférica e em dimensões m onumentais que estivessem á altura de seu herói. À
noite, a esfera seria iluminada por uma esfera subsidiária, representando o sistema solar,
com uma série de lâmpadas em constante revolução: “ Utilizando teu divino sistema, ó
Newton, para erguer a lâmpada fúnebre que irá indicar teu túmulo, parece que me elevei
ao sublime” . À noite, o sistema solar do cenotáfio representaria o dia; e, durante o dia, a
noite. As estrelas seriam representadas por aberturas na abóbada, em forma de funil e que
canalizariam pequenos feixes da luz diurna. A enorme esfera não teria ornamentação:
Boullée apenas a circundou com ciprestes e flores. Como a enorme cabeça calva de algum
herói grego adornada por um laurel, o hemisfério, circundado pelas árvores e flores, reduzia
a dimensões insignificantes o visitante ou “ fiel” . A entrada era um túnel subterrâneo
em arco que conduzia ao sarcófago. O espectador seria literalmente detido no interior.
Isolado, só poderia olhar a imensão do céu. O túm ulo seria o único objeto concreto.
A imaginação do visitante estaria impossibilitada de se desviar através de associações ou
alusões, pasmo com a imensidão do espaço e com o contraste criado pela estreita passagem.
Boullée criou intencionalmente esse contraste brutal, pois acreditava que o objetivo
86 GÁVEA
do arquiteto não era o de criar ilusão ou fantasia, com o os arquitetos do Rococó, mas o de
projetar as leis inflexíveis da razão através da geom etria elem entar, enfatizada por violentos
contrastes.
Boullée construiu pouco. Seu aluno e discípulo predileto, Jacques Nicolas Louis
D urand, construiu menos ainda, mas foi mais influente do que o m estre. Viveu durante
um a outra crise na tendência intelectual, quando a energia neoclássica inicial começava a
declinar. A obsessão com a A ntigüidade greco-rom ana havia sido reduzida a um a fórmula
útil, porém vazia. D urante a m ^ior parte de sua vida, D urand ensinou arquitetura para engenheiros.
Suas palestras foram publicadas, e sua fama se espalhou. A rquitetos de toda a
Europa vinham ouvi-lo. Suas idéias passaram a ser a base de ensino da chamada A rquitetura
Acadêmica no m undo inteiro. Sua influência, agora despida das virtudes originais,
ainda chega até nós. Os fundam entos do ensino de D urand são poucos. A disciplina da arquitetura
consiste em duas partes: um a, o conhecim ento dos elem entos; a segunda, o
conhecim ento de composição. A parte analítica dos elem entos é simples: os diversos
m ateriais, seu uso e suas com binações nas formas com plexas de paredes, abóbadas e colunas.
Estas últimas, para D urand, representavam a ordem clássica, forneciam ao arquiteto
um a variedade útil de suportes de diversas dim ensões. N ão há mais a idéia de perfeição
presente nas formas gregas: m elhor não utilizá-las se não estão á vista, ou se estão
encobertas por decorações. M as o ponto principal das teorias de D urand se refere ao
conhecim ento de composição. Para ele, a com posição teria que seguir regras estritas. Em
prim eiro lugar, evidencia o objetivo de seus m étodos de composição, que são óbvios e do
dom ínio de todos, rem etendo à preocupação em erguer edifícios sólidos, estáveis e confortáveis.
M as teriam tam bém que ser econômicos. Q uase todos que escreveram sobre ar
quitetura dizem algo sem elhante. M as D urand não se refere apenas a construções baratas.
Q uando fala em economia, refere-se tam bém á sim etria, á regularidade e á simplicidade, o
que é fácil de entender e difícil de executar. Os elem entos de que trata na prim eira parte do
seu livro devem ser com postos de maneira a criar as form as m ais simples. O quadrado e o
círculo eram suas formas preferidas. O edifício deveria ser sim étrico, baseado num sistema
de eixos principal e secundário. O s elem entos de m enor im portância seria ordenados dentro
daquele sistema com a ajuda de um a grade. Este m étodo de planejam ento é ainda observado
pela maioria dos arquitetos. A lguns dos m elhores arquitetos contem porâneos
recorrem a princípios sim ilares aos.de D urand, m esm o que não explicitam ente. Para alguns,
a preferência por corpos geom étricos elem entares é um a espécie de estenografia
rápida e vazia; para outros é quase um a busca histérica de ordem nas nossas caóticas cidades.
Q ualquer que seja a razão, chegam os agora ao paroxism o da arquitetura racional de
D urand. A sua crença no prazer proporcionado pela com posição econômica de um edifício
é com partilhada pela maioria dos arquitetos, se não tam bém pela totalidade de seus clientes.
D iriam eles, assim com o diria D urand, que “ a decoração” e ‘‘a personalidade” são
sim plesm ente palavras para fazer o cliente gastar mais dinheiro.
Não era isso o que os grandes m estres neoclássicos pretendiam . Eles não podiam
prever as m onstruosidades que a arquitetura racional, que pretendia ser apenas e com
pletam ente racional, chegaria a produzir. Tem os agora um a arquitetura baseada na
geom etria simples e que acredita ser o prazer um luxo perigoso que hom ens sérios e razoáveis
devem evitar. M as, com o disse Goya, contem porâneo de D urand, quando a razão
dorm e, ela cria m onstros.
Este texto é uma versão editada de uma transmissão de televisão da BBC, durante a exposição neoclássica
em Londres, originalmente publicada em The Listener, em 9 de novembro de 1982. Se fosse escrever este
artigo agora eu talvez colocasse mais ênfase na diferença entre meus dois heróis.
A escultura no campo ampliado*
ROSALIND KRAUSS
Tradução: Elizabeth Carbone Baez
O único sinal que indica a presença da obra é uma suave colina, um a inchação na terra
em direção ao centro do terreno. Mais de perto pode-se ver a superfície grande e
quadrada do buraco e a extremidade da escada que se usa para penetrar nele. A obra
propriamente dita fica portanto abaixo do nível do solo: espécie de pátio, de túnel, fronteira
entre interior e exterior, estrutura delicada de estacas e vigas. P erim eters/P avillions/
Decoys de M ary Miss (1978) é certam ente uma escultura, ou mais precisamente, um
trabalho telúrico.
Nos últimos dez anos coisas realmente surpreendentes têm recebido a denominação
de escultura: corredores estreitos com m onitores de TV ao fundo; grandes fotografias
documentando cam inhadas campestres; espelhos dispostos em ângulos inusitados em
quartos comuns; linhas provisórias traçadas no deserto. Parece que nenhum a dessas tentativas,
bastante heterogêneas, poderia reivindicar o direito de explicar a categoria escul
tura. Isto é, a não ser que o conceito dessa categoria possa se tornar infinitamente maleável.
O processo critico que acompanhou a arte americana de pós-guerra colaborou para
com esse tipo de manipulação. Categorias com o escultura e pintura foram moldadas, esticadas
e torcidas por essa crítica, num a demonstração extraordinária de elasticidade,
evidenciando com o o significado de um term o cultural pode ser ampliado a ponto de incluir
quase tudo. Apesar do uso elástico de um term o como escultura ser abertamente
usado em nome da vanguarda estética — da ideologia do novo — sua mensagem latente é
aquela do historicismo. O novo é mais fácil de ser entendido quando visto como uma
evolução de formas do passado. O historicismo atua sobre o novo e o diferente para diminuir
a novidade e mitigar a diferença. A evocação do modelo da evolução permite uma
"modificação em nossa experiência, de modo que o homem de agora pode ser aceito como
diferente da criança que foi por ser visto sim ultaneam ente como sendo o mesmo, através
da ação imperceptível do telos. Ademais, nos confortamos com essa percepção de similitude,
com essa estratégia para reduzir tudo que nos é estranho, tanto no tempo como no
espaço, àquilo que já conhecemos e somos.
* Publicado em The Anti-Aesthetic — Essays on PostModern Culture , Washington, Bay Press, 1984
Titulo original: Sculpture in the Expanded Field.
88 GÁVEA
A critica perfilhou a escultura m inim alista logo que esta apareceu no horizonte da ex
periência estética nos anos 60 — um conjunto de pais co n stfu tív ísu s que podiam le y -
tim ãr. e portanto autenticar, o insólito dessés objetos Plástico? geometrfas iru-rtc*sx
produção industrial? — os fantasm as de Gabo. T atlin e Lissitzlcy poderíam ser convocados
- para atésTãr q üe nada disso erá reatm ente estranho. N ão im portava que o conteúdo de um
não tivesse nada a*ver com o conteúdo do outro e"fosse dtr Tato o seu oposto; ou que o
celulóide de GãbõTõsse sinal de lucidez e inteligência en q u anto que os plásticos coloridos
'de Judd falassem da gíria da Califórnia. N ão im portava que as formas construtivistas
pretendessem ser prova visual da lógica finuíável e da coerência de geometrias universais
è!TqtiaTTTõ''qüê õs m inim alistas, aparentem ente seus sim ilares, dem onstrassem ser algo
eventual, iiidican d õ llffn jn iv erso sustentado por cordas de aram e, cola, ou pelas contin
gênciás da força da gravidade e não pela M ente. Essas diferenças foram postas de lado pelo
furor historicista.
Com o correr do tem po ficou um pouco mais difícil m anter esta radicalização. A
medida em que os anos 60 se prolongavam pelos 70 e que se começou a considerar como
“ escultu ra": pilhas de lixo enfileiradas no chão, toras de sequóia serradas e jogadas na
galeria, toneladas de terra escavada do deserto ou cercas rodeadas de valas a palavra escultura
tornou-se cada vez mais difícil de ser pronunciada, mas nem tanto assim. O crítico/historiador.
através de um a prestidigitação mais abrangente, passou a construir suas
genealogias em termos de m ilênios e não de décadas. Stonehenge, as fileiras de N azca, as
quadras de esporte toltecas, os cem itérios de índios qualquer prova poderia ser arrolada
no tribunal para servir com o testem unha da conexão deste trabalho com a história, legi
tim ando. desta forma, seu status com o escultura. Por não serem exatam ente esculturas,
Stonehenge e as quadras de esporte toltecas são, neste caso, exemplos suspeitos de pre
cedente historicista. M as não im porta. O artificio pode tam bém ser usado em vários
trabalhos do inicio do século inspirados no prim itivism o C oluna Sem Fim de Brancusi
serve com o exemplo para se fazer a mediação entre o passado longínquo e o presente.
A o assim agirmos, contudo, o term o escultura, que pensávamos estar resguardando,
com eçorrT sê tornar obscuro. H avíam os pensado em utilizar um a categoria universal para
autenticar um grupo de singularidades; mas esta categoria, ao ser forçada a abranger cam
po tão heterogêneo, corre perigo de entrar em colapso. Logo, ao olharm os para o buraco
feito no solo, pensamos que sabem os e não sabemos o que seja escultura.
Entretanto, eu diria que sabem os m uito bem Q que é um a escultura. Uma das coisas
aliás que sabemos é que escultura n ã ó é um a categoria universal mas um a categoria ligada
^Thistórla. A categoria escultufa, assim com o qualquer o u tro ti|x>de convenção» tem su *
própria lógica interna, seu conjunto de regras, as quais, ainda que possam ser aplicadas a
uma variedade de situações, não estão em si próprias abertas a um a modificação extensa.
Parece que a lógica da escultura é inseparável da lógica do m onum ento. Graças a esta
Iogicã. um a escultura é um a representação com em orativa se situa em determ inado
local e fala de forma simbólica sobre o significado ou uso deste local. Um bom exem plo é a
estátua equestre de M arco A urélio: foi colocada no centro do Campidoglio para simbolizar
com sua presença a relação en tre a Roma antiga e im perial e a sede do governo da Roma
m oderna. Renascentista. O utro m onum ento utilizado com o m arco num lugar onde devem
ocorrer eventos específicos e significativos é a estátua C onversão de C onsta n tin o, de Ber
nini, colocada no sopé das escadas do Vaticano que ligam a Basílica de São Pedro ao coração
do governo papal. As esculturas funcionam portanto em relação á lógica de sua
representação e de seu papel com o marco; dai serem norm alm ente figurativas e verticais e
seus pedestais importantes por fazerem a mediação en tre o local onde se situam e o signo
A escultura no campo ampliado
89
que representam . Nada existe de muito misterioso sobre esta lógica; compreendida e
'utilizada, íoi fonte dé énõrme produção escultórica durante séculos de arte Ocidental.
A convenção, no entanto, não é imutável e houve um m om ento quando a lógica
começou a se esgarçar, N o final do século X IX presenciamos o desvanecimento da lógica
<3cT monumento. Aconteceu gradativamente. N este sentido, ocorre-nos dois casos que
trazem, ambos, a marca da transitoriedade. T anto Portas do Inferno como a estátua de
BatZâr, de Rodin, foram concebidas como m onum entos. As portas foram encomendadas
em 1880 para serem instaladas num museu de artes decorativas; a estátua foi encomendada
em 1891 para hom enagear o gênio literário francês e deveria ser colocada em determinado
local em Paris. O indício do fracasso dessas duas obras como m onum ento — cujas en
comendas eventualm ente falharam — não é apenas o fato de existirem inúmeras versões
em vários museus de diversos países, mas tam bém a inexistência de um a versão nos locais
originalmente planejados para recebê-las. Seus fracassos também estão entalhados nas
próprias superfícies: as portas foram desbastadas excessivamente e recobertas a ponto de se
tornarem inoperantes; Balzac foi executado com tal grau de subjetividade que o próprio
Rodin, conforme suas cartas atestam, não acreditava que fosse aceito.
Eu diria que com esses dois projetos escultóricos cruzamos o limiar da lógica do
monumento e entramos no espaço daquilo que pode ria ser chamado de sua condição
negativa — ausência do local fixo ou de abrigo, perda absoluta de lugar. Ou seja, entramos
ncTmodernismo porque é a produção escultórica do período modernista que vai operar em
relação a essa perda de local, produzindo o m onum ento como uma abstração, como um
TnarctTou base. funcionalmente sem lugar e extrem am ente auto-referencialT
Essas duas características da escultura m odernista nos revelam seu status e, portanto,
a condição essonciálmente mutável ele seu significado e função. A o transformar a base
num fetiche, a escultura absorve o pedestal para si e retira-o do seu lugar; e através da
representação de seus próprios materiais ou do processo de sua construção^ expõé sua
própria autonomia. A arte de Brancusi é urna demonstração extraordinária de- como isto
' ãcòTiteceTNum trabalho como o G alo, a base se" torna ò gerador morfolôgico da parte
figurativa do objeto; nas Caridtides e Coluna Sem F im , a escultura é a base, enquanto que
cm Adão e Fva a escultura está numa relação de reciprocidade com sua base. Logo, a base
pode ser definida com o essencialmente móvel, marco de um trabalho sem lugar fixo, integrado
erri cada fibra da escultura. Outró testem unho da perda de local é a intenção de
Brancusi em representar partes do corpo com o fragmentos que tendem a uma abstração
radical; neste caso, local é compreendido com o o resto do corpo, o suporte do esqueleto
que abrigaria uma das cabeças de bronze ou de mármore.
Ao se tornar condição negativa do m onum ento, a escultura modernista conseguiu
uma espécie de espaçoldéál para explorar, espaço este excluído do projeto de répresentaçãõ
temporal eêspacial, filão rico e novo que poderia ser explorado com sucesso. O filão era
porém lim itad o ^ ^ ab erto no início déste século, esgotou-se por volta de 1950, quando
começou a ser sentido; cada vez mais^ como puro negativismo. Neste ponto a escultura
modernista surgiu com o uma espécie de buraco negro no espaço da consciência, algo cujo
conteúdo positivo tornou-se progressivamente mais difícil de ser definido e que só poderia
ser localizado em term os daquilo que não era. Nos anos 50. Barnett Newman disse: “ Escultura
é aquilo com que você se depara quando se afasta para ver uma pintura. " A res
peito dos trabalhos encontrados no início dos anos 60, seria mais apropriado dizer que a escultura
estava na categoria de terra-de-ninguém: era tudo aquilo que estava sobre ou em
frente a um prédio que não era prédio, ou estava na paisagem que não era paisagem.
Os exemplos mais cristalinos do inicio dos anos 60 que nos ocorrem , são ambos de
90 GÁVEA
Robert M orris. Um deles foi exposto em 1964 na G reen Gallery: dígitos quase-arquiteturais
cuja condição como escultura sê reduz sim plesm ente a ser aquilo que está no quarto
que não é realmente quarto; o outro trabalho são caixas espelhadas expostas ao ar livre —
caixas cujas formas diferem do cenário onde se encontram som ente porque, apesar da im
pressão visual de continuidade com relação á gram a e ás árvores, não fazem parte da
paisagem.
Neste sentido, a escultura assum iu sua total condição de lógica inversa para se tornar
purá“nêgãfiví3ãdê7 ou seja. a combinação de exclusões. Poderia-se dizer que a escultura
deixou de ser algo “positivo para se transform ar na categoria resultante da soma da nãopaisagem
com a ndo-arquitetura O limite da escultura m odernista, a soma do nem /ne-
TtfTüm podem ser representados em forma de diagram a:
não-paisagem não-arquitetura
“ /
/
/
\ /
/
escultura
O fato de ter a escultura se tornado uma espécie de ausência ontológica, a combinação
de exclusões. a soma do n em /n en h u m , não significa que os term os que a construiram —
não-paisagem e ndo-arquitetura — deixassem de possuir certo interesse. Isto ocorre em
função desses termos expressarem um a oposição rigorosa entre o construído e o não-cons
truído. o cultural e o natural. entre os quais a produção escultórica parecia estar suspensa.
A partir do final dos anos 60 a produção dos escultores com eçou, gradativam ente, a focalizar
sua atenção nos limites externos desses term os de exclusão. O ra, se esses termos são
a expressão de uma oposição lógica colocada com o um par de negativos, podem ser trans
formados, através de uma simples inversão, nos m esm os pólos antagônicos expressos de
forma positiva. Ou seja, de acordo com a lógica de um certo tipo de expansão, a ndo-arquitetura
é simplesmente um a outra maneira de expressar o term o paisagem , e nãopaisagem
é simplesmente arquitetura. A expansão â qual me refiro é chamada grupo
Klein quando empregada m atem aticam ente e tem várias outras denominações, entre elas
grupo Piaget, quando usada por estruturalistas envolvidos nas operações de mapeamento
na área das ciências hum anas. A través dessa expansão lógica, um conjunto de binários é
transform ado num campo quaternário que sim ultaneam ente tanto espelha com o abre a
oposição original. Torna-se um cam po logicamente am pliado, que se assemelha ao dia
grama abaixo:
paisagem
/
/ \
/
/ \
\
/ \
• •
• • • •
arquitetura...........complexo
f « s
\ *
\
• /
não-paisagem ♦- \ ✓ não-arquitetura .......... neutro
\
\ /
/
escultura
A escultura no campo ampliado
91
As dimensões dessa estrutura podem ser analisadas da seguinte maneira: 1) existem
dois tipos de relações de pura contradição que são denominados eixos (posteriormente
diferenciados em eixo complexo e eixo neutro), indicados pelas setas continuas (ver o
diagrama); 2) existem duas relações de contradição expressas como involução, chamados
de esquemas, indicadas pelas setas duplas; e 3) existem duas relações de envolvimento,
denominadas deixes, indicadas pelas setas partidas. (1)
Apesar de a escultura poder ser reduzida àquilo que no grupo Klein é o termo neutro
da não-paisagem mais a não-arquitetura, não existem motivos para não se imaginar um
termo oposto — que tanto poderia ser paisagem como arquitetura — denominado com
plexo dentro deste esquema. Mas pensar o com plexo é admitir no campo da arte dois termos
anteriormente a ele vetados: paisagem e arquitetura — termos estes que poderíam
servir para definir o escultórico (como começaram a fazer no modernismo) somente na sua
condição negativa ou neutra. Por motivos ideológicos o complexo permaneceu excluído
daquilo que poderia ser denominado a closura* da arte pós-Renascentista. Nossa cultura
não podia pensar anteriorm ente sobre o complexo, apesar de outras culturas terem podido
fazê-lo com maior facilidade. Labirintos e trilhas são ao m esm o tem po paisagem e arquitetura;
jardins japoneses são ao m esm o tem po paisagem e arquitetura; os campos destinados
aos rituais e às procissões das antigas civilizações eram, indiscutivelmente, neste
sentido, os ocupantes do complexo. Isto não quer dizer que eram uma forma prematura ou
degenerada, ou um a variante da escultura. Faziam sim parte de um universo ou espaço
cultural, do qual a escultura era simplesmente uma outra parte e não a mesma coisa, como
desejaria a nossa mentalidade historicista. Suas finalidade e deleite residem justamente em
serem opostos e diferentes.
O campo ampliado é portanto gerado pela problematização do conjunto de oposições,
entre as quais está suspensa a categoríam odérnista escultura. Quando isto acontece e
'quando conseguimos nos situar dentro dessa expansão, surgem, logicamente, três outras
categorias facilmente previstas, todas elas um a condição do campo propriamente dito e
liinfium ã delas assimilável pela escultura. Pois, como vemos, escultura não é mais apenas
um único termo na periferia de um campo que inclui outras possibilidades estruturadas de
formas diferentes. Ganha-se, assim, “ permissão” para pensar essas outras formas. Nosso
diagrama é, por conseguinte, feito da seguinte maneira:
local-construção
✓ N
/ \
paisagem «_£.
-X arquitetura..................... complexo
4 \
locais demarcados (
\ estruturas axiomáticas
não-paisagem ~T* não-arquitetura neutro
\ ✓
escultura
* closure — termo utilizado pela psicologia da Gestalt para descrever os processos através dos quais os objetos
da percepção, lembranças, ações, conseguem estabilidade, isto ó, o fechamento subjetivo de brechas,
ou acabamento de formas incompletas para se constituírem em um todo. (N. T .)
92 GÁVEA
Parece bastante claro que a permissão (ou pressão) para pensar a ampliação desse
campo foi sentida por vários artistas mais ou m enos ao m esm o tem po, entre os anos de
1968 e 1970. Robert M orris, Robert SmitKson, M ichael H eizer, Richard Serra, W alter de
M aria. Robert Irwin. Sol LeW itt. Bruce N aum an, um depois do outro, assum iram uma
posição cujas condições lógicas já não podem ser descritas com o m odernistas. Precisamos
recorrer a um outro term o para denom inar essa ru p tu ra histórica e a transformação no
campo cultural que ela caracteriza. Pós-m odernism o é o term o já em uso em outras áreas
da critica. Parece não haver m otivos para não usá-lo.
Q ualquer que seja o term o usado, a evidência já existe. Por volta de 1970, Robert
Sm ithson. com Partially B u rie d W oodshed, na K ent State U niversity, em O hio, começou
a ocupar o eixo do complexo que, para facilitar a referência, cham o de local de construção.
Em 1971. com seu observatório construído em m adeira e gram a, na H olanda, Robert
M orris se uniu a Smithson. Desde então m uitos outros artistas, como Robert Irwin. Alice
Aycock. John M ason. M ichael H eizer, M ary M iss e C harles Simonds, têm trabalhado
dentro deste novo conjunto de possibilidades.
A combinação de paisagem e ndo-paisagem com eçou igualm ente a ser explorada no
final dos anos 60. O term o locais dem arcados é usado tan to para identificar trabalhos como
Spiral Jetty (1970), de Sm ithson, e D ouble N e g a tiv e (1969), de H eizer, com o para des
crever alguns trabalhos dos anos 70 feitos por Serra, M orris, Carl A ndre, IX*nis Oppen
heim . N ancy H olt, G eorge T rakis e m uitos outros. A lém da m anipulação fisica dos
locais, este term o tam bém se aplica a outras formas de dem arcação. Essas formas podem
operar através da aplicação de marcas não p e rm a n e n te s com o, por exemplo, D epressions.
de H eizer, T im e L in es. de O ppenheim . M ile L o n g D ra w in g , de IX* M aria, ou através da
fotografia. M irror D isplacem ents in the Y u c a ta n , de Sm ithson, foram provavelm ente os
prim eiros exemplos conhecidos, mas desde essa época o trabalho de Richard Long e
H am ish Fulton tem focalizado a experiência fotográfica de dem arcar. R u n in g Fence, de
C hristo. pode ser considerada um a forma não perm anente, fotográfica c política de demar
car um local.
Os primeiros artistas que exploraram as possibilidades da arquitetura mais não ar
quitetu ra foram Robert Irw in, Sol LeW itt, Bruce N aum an, Richard Serra e C hristo. Em
todas essas estruturas axiom dticas existe um a espécie de intervenção no espaço real dajir
'g lh ie iu i'3 7 ás "vezes através do déSêntiõ~Oü. c o m o n ó strab a lh o s recentes de M orris, através
dcTuso do espelho. Da m esm a forma que a categoria do local dem arcado’ a fotografia pode
‘ seí Utilizada-para esta finalidade; penso aqui nos corredores de videos de N aum an. No entanto.
qualquer que seja o meio de expressão em pregado, a possibilidade explorada nesta
categoria é um processo de m apeam ento das características axiomáticas da experiência ar
quitetural — as condições abstratas de abertura e closura — na realidade de um espaço
dado.
A ampliação do campo que caracteriza este territó rio do pós m odernism o possui dois
aspecTõs já implícitos na descrição acima. Um deles diz respeito á prática dos próprios ar
11st as. o outro, a questão tio m eio de expressãc>. Em am bos, as ligações tias condições do
m odernism o sofreram um a ruptura logicam ente determ inada.
Com relação a prática individual, é fácil perceber que m uitos dos artistas em questão
se viram ocupando, sucessivam ente, diferentes lugares den tro do campo ampliado. Apesar
de a experiência desse cam po sugerir que a recolocação contínua de energia é totalmente
lógica, a crítica de arte, ainda servil ao sistem a m odernista, tem duvidado desse movimento,
chamando-o de eclético. A suspeita de um a trajetória artística que se move continua e
esordenadam ente além da área da escultura deriva obviam ente da demanda modernista de
A escultura no campo ampliado
93
pureza e separação dos vários meios de expressão (e portanto a especialização necessária de
um artista dentro de um determinado meio). Entretanto, o que parece ser eclético sob um
ponto de vista, pode ser concebido como rigorosãmériíé lógico de outro. Isto porque, no
pós-modernismo, a praxis não é definida em relação a um determinado meio de expressão
— escultura — mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos
culturais para o qual vários meios fotografia, livros, linhas em paredes, espelhos ou escultura
propriam ente dita — possam ser usados.
Portanto, o campo estabelece tanto um conjunto ampliado, porém finito, de posições
relacionadas para determ inado artista ocupar e explorar, como um a organização de trabalho
que não é ditada pelas condições de determ inado meio de expressão. Fica óbvio, a
partir da estrutura acima exposta, que a lógica do espaço da praxis pós-modernista já não é
organizada em torno da definição de um determ inado meio de expressão, tomando-se por
base o material ou a percepção deste material, mas sim através do universo de termos sentidos
como estando em oposição no âmbito cultural. (O espaço pós-modernista da pintura
envolvería, obviam ente, uma expansão sim ilar em torno de um conjunto diferente de termos
do binômio arquitetura/paisagem — um conjunto que provavelmente faria oposição
ao binômio unicidade/reprodutibilidade.) Conseqüentem ente, dentro de qualquer uma das
posições geradas por um determinado espaço lógico, vários meios diferentes de expressão
poderão ser utilizados. Ocorre também que qualquer artista pode vir a ocupar, sucessivamente,
qualquer um a das posições. Da mesma forma, na posição limitada da própria escultura,
a organização e conteúdo de um trabalho marcante irá refletir a condição do. espaço
lógico. Refiro-me à escultura de Joel Shapiro a qual, apesar de se inserir no termo
neutro, está envolvida no estabelecimento de imagens de arquitetura dentro de campos
(paisagens) relativam ente vastos de espaço. (Estas considerações também se aplicam,
evidentemente, a outros trabalhos — por exemplo de Charles Simonds ou Ann e Patrick
Poirier.)
Tenho insistido que o campo ampliado do pós-modernismo acontece num momento
específico da história recente da arte. É um evento histórico com um a estrutura determinante.
Parece-me extrem am ente im portante mapear esta estrutura e é isto o que comecei
a fazer aqui. M as por se tratar de um assunto de história, é também importante explorar
um conjunto mais profundo de questões que abrangem algo mais que o mapeamento
e que envolvem o problema da explicação. Estas questões se referem à causa seminal: as
condições de possibilidades que proporcionaram a mudança para o pós-modernismo, bem
como as determ inantes culturais da oposição através da qual um determinado campo é estruturado.
C ertam ente esta abordagem parapensar a história da forma difere das elaboradas
árvores genealógicas construídas pela crítica historicista. Pressupõe a aceitação de rupturas
definitivas e a possibilidade de olhar para o processo histórico de um ponto de vista da
estrutura lógica.
R E F E R Ê N C IA
1) Para uma discussão do grupo Klein, ver “On the Meaning of the Word ‘Structure’ in Mathematics” ,
de Marc Barbut, editado por Michael Lane em Introduction to Structuralism (New York, Basic Books,
1970); para uma utilização do grupo Piaget, ver “ The Interaction of Semiotic Constraints” , de A.J.
Greimas e F. Rastier, YaJe French Studies, n? 41 (1968), pp. 86-105.
Oito teses a favor (ou contra?)
uma semiologia da pintura*
Hubert Damisch
Tradução: Anamaria Skinner
Existe uma verdade da pintura ou, conforme o enunciado voluntariam ente ambíguo
de Cézanne “ Devo-lhes um a verdade em pintura e a d ire i" (1), existe uma verdade em
pintura? E essa verdade, verdade da pintura, verdade em p in tu ra, cabe ao semiólogo, se
não dizê-la (talvez ela não possa ser dita fora da pintura?), pelo menos inscrevê-la no registro
teórico, indicar seu local de em ergência, definir suas condições de enunciação com
referência ao objeto “ P in tu ra” , comparável ao modo com o ele trabalha, particularm ente,
e conform e suas possibilidades, para constituí-lo en quanto dom ínio, campo ou modo específico
de produção de um sentido, ele próprio especifico? A lém de não dissociável de
uma interrogação mais fundam ental sobre a “ necessidade” da arte (necessidade que Iouri
Lotman dem onstrou estar ligada á estrutura m esma do texto artístico, à sua organização
interna (2); a questão procede quando se trata de apresentar algumas observações, de
caráter bem geral, a respeito de um a semiologia da p in tu ra, considerada possível, em bora
uma parte significativa do trabalho, da reflexão, da análise, da critica semiológica aplicada
às produções das artes visuais, contrariam ente a isso, possa parecer propensa a im pedir o
seu avanço. O que levaria o sem iólogo, na m elhor das hipóteses, a reconduzir a suas determinações
ideológicas profundas, a exigência de verdade que aparece, de tempos a tempos,
no campo pictural, sob determ inadas formas e em níveis variados (sob a forma, por exem
plo, dentre os iniciadores do R enascim ento, da adesão ao m odelo óptico da visão; mas
tam bém , a um outro nível, o da sensação colorida e colora n te, signifiafcfo e significante,
por dotar a pintura, a do próprio C ézanne, de um valor de denotação no sentido de Frege).
E im portante ver (ver e não som ente com preender) que esta questão da verdade em pintura
(que é, ao mesmo tem po, questão da verdade na p intura e questão da verdade da
efígie, da verdade em efígie) está no centro do debate que o projeto enseja hoje em dia, excetuando
alguns, e m uito raros, desenvolvim entos de um a sem iologia das artes visuais, e,
em prim eiro lugar (essa ordem de prioridade, em sua dupla determ inação lógica e ideológica,
causa, ela própria, problem a) de um a sem iologia da pin tu ra, e do modo com o essa
confere a este debate um alcance que excede largam ente os lim ites do campo especializado
em cuja m arca se anuncia.
1
Conferência apresentada no 1? Congresso Internacional de Semiótica, M ilâo, 2/6 de junho 1974
Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura
95
O projeto de estudar a pintura como um sistema de signos há de responder, primeiramente,
á preocupação em alcançar, pela definição simultânea do objeto de uma
semiologia e dos procedim entos de análise que a constituíram , uma verdade de ordem
cientifica que diga respeito á produção pictural. N um a perspectiva saussuriana, e tomando
como modelo o “ molde linguístico” , esse projeto leva, em sua formulação inicial, a introduzir
no todo heterogêneo dos fatos de “ p in tu ra” (heterogêno no sentido que esses
fatos pertencem aos mais diversos domínios de pesquisa: cosmetologia, química das cores,
óptica geométrica e /o u fisiológica, teoria das proporções, psicologia da percepção, mas
também mitologia com parada, simbólica geral, iconografias particulares etc...) um
primeiro recorte, a partir do qual esse conjunto heteróclito se deixaria pensar em sua
coerência: assim com o a linguagem, uma vez feita a separação entre a massa dos fatos de
fala, e o registro da língua, do sistema ao qual esses fatos deveriam estar reportados como
norma. Qualquer form a de que se revista a oposição assim marcada entre os dois registros,
e por mais sofisticado que possa ser o enunciado — “ a arte” pensada como um desvio consequente
em relação à norm a, tida na conta de categoria semiótica (D. Uspenskij); a “ língua”
da pintura fragm entada, disseminada num a multiplicidade de sistemas parciais, de
códigos de “ invenção e de leitura (P. Francastel); o sistema do quadro distinto das estruturas
da figuração e o objeto “ P intura” vislumbrado através, e a partir do texto por ele
responsável e que o articula (J. L. Schefer); tratar-se-á sempre de traçar uma superfície de
divagem , entre a perfonutnce que a obra representa ( “ a obra-prima” ), e a rede, ou o sistema
de competência que implica seu deciframento, sua interpretação; e isso no momento
exato em que se postula que a “ arte” não se dá jamais separadamente das obras singulares,
que sua significância não rem ete a código algum , nem às convenções recebidas, e que as
relações significantes da “ linguagem artística” ficam por ser descobertas no interior de
uma composição dada (Benveniste, e no mesm o sentido Shefer: “ Só há sistema do quadro”
). A questão não m uda de feição: permanece a da natureza, do estatuto, da articulação
dos “ signos” nos quais se informa e de que se orienta a leitura, quer esta tente, ou
não, constitui-los, na ordem declarativa, em sistema.
No enundado deste projeto — estudar a pintura, as obras da pintura (segundo a forma,
ela também am bigua, de Francastel) com o um sistema de signos — o grifo recai
sucessivamente em sistem a e signos, para deixar bem claro (a) que se a pintura se deixa
analisar em term os de sistem a (s), sistema não deve ser entendido necessariamente como
sistema de signos e, (b) que se a problemática do signo pode revelar-se pertinente na
matéria, em nível e lim ites próprios, é talvez na mediada que a noção de signo se deixa
isolar da de sistema (e reciprocamente). A não ser, talvez, que trabalhemos para infundir
uma outra noção do signo, uma outra noção do sistema, diferentes daquelas que toda a
tradição do O cidente terá regularm ente associado á possibilidade de decompor um conjunto,
uma estrutura articulada, em alementos discretos, em unidades identificáveis como
tais.
2
Em um registro que não apresenta, dessa vez, nada de teórico, mas que não deixa de
corresponder á prática de fato do historiador ou do “ connaisseur” ; admitir-se-á que não
existe uma leitura, nem mesmo um a primeira apreensão, de um afresco, de um conjunto
3
96 GÁVEA
decorativo etc... que não se apóie em um determ inado núm ero de traços, m arcas ou
elem entos discretos, que se apresentam com o unidades perceptivas (ou im agentes ’),
eventualm ente combinadas em sintagm as, im ediatam ente dados com o tais, e dentre os
quais, alguns, por sua recorrência em uma série de obras dada, ordenam -se em forma de
repertório, mais ou menos rico, o qual será tom ado com o característico de um artista, de
um a escola, de uma época, ou mesm o de um a cultura. Todos traços ou elem entos, ou
mesm o sintagm as, que não são certam ente da m esm a ordem ou do mesmo nível, como
tam bém não são em núm ero finito: sem elhante ás figuras, representativas ou não, que se
dão a conhecer no campo pictural, os motivos, atributos ou marcas (atitudes, gestos, expressões,
até mesmo cores, tratam ento etc.) de que o discurso iconográfico se alim enta,
assim com o os índices que requerem a atenção do cortnaisseur, em busca de atribuições
exatas (e lembrar-se-á aqui da analogia, estabelecida por Freud, entre o método do connoisseurship
tal como o havia definido Giovanni M orelli, e o do analista que, com o o con
naiseu r. está fadado a trabalhar com dados irrisórios, m arginais; algo, dizia Freud, como a
recusa da observação (3), incluindo os traçados, pinceladas, impressões que parecem guardar
a titulo de índice algum a coisa do trabalho de que a obra é o produto. Sem contar as
letras, núm eros, inscrições, filactérios, legendas, títulos, assinaturas etc, que a obra exibe,
dada a circunstância, nos seus lim ites próprios ou na sua periferia, e que produzem no
contexto mesmo de uma apreensão, que se queria estritam en te sensível, “ estética” , um
efeito especifico de leitura, ou parafraseando Paul Klee, um a prim eira “ aquiescência para
com o signo": a coexistência nos limites de um a m esm a com posição, ou em sua proximidade
imediata, de elem entos de natureza icônica ou indiciai, e de dados propriam ente
simbólicos (quando a imagem não se apresenta ligada explicitam ente ao texto, dada ou não
in presentia que ela ilustra: ver a esse respeito o trabalho recente de M eyer Schapiro sobre
a imagem ligada à palavra, th e w o rd -b o u n d im a g e (4) deixa bastante claro que, se podemos
de acordo com Benveniste considerar que é a língua — entenda-se a língua “ n atu ral” —
que confere ao conjunto “ p in tu ra ” (ou “ quadro” ), inform ando-o sobre a relação de sig
no. a qualidade de sistema significante (5); essa relação se dá anteriorm ente a toda leitura,
a toda interpretação, no interior m esm o desse conjunto, ou, pelo m enos, em seu espaço de
definição. Resta saber se os elem entos propriam ente perceptivos, formas e /o u figuras,
podem a rigor ser qualificados com o unidades, no sentido sem iótico, fora, ou feita a abstração.
da operação que os declara; ou ainda nos term os de Peirce, se o representam en tem
ou não a qualidade de signo, independentem ente do interpretante verbal que ele determina.
Q ualquer sistema significante deve definir-se pelo m odo que lhe é próprio de
significar. Tam bém é verdade que ao presum ir, com o faz Benveniste, que seria preciso
por força desse sistema definir as unidades que ele m obiliza para produzir o “ sentido” e
especificar a natureza do sentido produzido “ (6), precipita-se a conclusão de que a língua
deve ser reconhecida com o a interpretante de todos os sistem as semióticos (e, logo, do
próprio sistem a “ P intura” , que será desde entào caracterizado na term inologia dos
semióticos soviéticos como sistem a modelizante secundário” ), supondo-se que nenhum
sistem a dispõe de uma língua na qual possa classificar e interpretar segundo as distinções
sem ióticas, e que som ente a língua pode, em principio, classificar e interpretar tudo,
inclusive ela própria (7). N o que diz respeito ás unidades mobilizadas para produzir o
sentido, o sistema P in tu ra” não dispõe, sem dúvida, de um a língua que lhe permitiría
4
Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura
97
definir aquelas a que recorre. JEsse sistema só pode produzi-las, designá-las, mostrá-las,
exibi-las por meio dos artifícios e procedimentos de espaçamento, posicionamento, enquadramento,
iluminação, tratam ento, deformação etc, que o caracterizam. Todos esses
artifícios não copiam a ordem discursiva e nem necessariamente a ordem icônica, em sentido
restrito, na medida em que esta última se basearia na m im esis. E não existe, desde a forma
de apresentação, a própria forma im ageante (sem que forçosamente o term o imagem
seja tomado em sua conotação estritam ente m im é tic a ), na medida em que esta se regularia,
por exemplo, pelo modelo perspectivo ou que ela concentraria, como em M ondrian
ou na m inim al a rt, um conjunto finito de princípios ou de elementos a partir dos quais
seríamos levados a afirm ar com W ittgenstein que esta só pode ser, se não reproduzida,
descrita, representada, pelo menos produzida, m ostrada, exibida, pelos meios que são os
da "imagem mesma (8). Para não extrapolar a questão das unidades (pois a da Farm der
Abbildung demandaria desenvolvimentos que não caberíam aqui), observa-se-á ainda que,
se uma pintura se deixa decifrar a partir de um a multiplicidade de códigos, se ela comporta
também vários níveis de leitura, a possibilidade de que ela apresente desvios e também
remissões para um código, ou de um nível para outro, a capacidade decorrente daí para
uma unidade dada, de assum ir, segundo os níveis, funções heterogêneas, ou até contraditórias,
introduzem no “ sistem a" (no sentido mais vago, por enquanto) a possibilidade
de um jogo de interpretância, se não declarativa, m onsírativa (no sentido que Lacan
pôde dizer que, no sonho, “ isso m ostra"), de um nível ou de um código a outro, como se
observam pelas variações que suscita um m esm o motivo formal ou iconográfico, e que
levam a estabelecer alternativam ente, ou até sim ultaneam ente para um mesmo elemento
(ex: a “ nuvem " na tradição figurativa do Ocidente, a coluna de tantas Anunciações e
Natividades, mas tam bém as toalhas estendidas de Cézanne ou os “ quadrados" de M ondrian)
as funções (plásticas, construtivas, sem ânticas, sintáticas, simbólicas, decorativas,
estilísticas etc) de nível diferente (o problema sendo, então, de saber se é razoável pretender
produzir o sistem a dessas funções, e isso sem prejulgar a coerência dos níveis, o seu
grau de sistematicidade). Seria conveniente ainda reservar-lhes um lugar, de acordo com
Meyer Schapiro, ao lado das unidades im ediatamente identificáveis como tais, dos elementos
não m im éticos, não diretamente signaléticos, e poder-se-ia dizer, nào-discretos da
mensagem icônica, todos elem entos — a forma do suporte, sua moldura, as propriedades
do fundo como campo, as relações de escala e orientação, de posicionamento, de espaçamento,
os com ponentes da substância icônica enquanto tal, pontos, linhas, superfícies,
manchas etc (9), e principalm ente a cor que, na afirmação de Benveniste (esta afirmação,
que traz a marca de um logocentrismo disfarçado, deixa de ser aceitável para um pensamento
que trabalha para infundir uma outra noção de signo, que não a estritam ente linguística),
considerada em si mesma, não se apresentaria, de forma alguma, na qualidade de
signo, nem mesmo na de unidade. Todos elem entos que desempenham na pintura representativa
um papel decisivo, um papel integrante (no sentido linguístico do termo),
mas que a pintura m oderna a partir de Cézanne e Seurat esforça-se, pelo contrário, para
dissociar de sua função im a geante, para exibi-las, produzi-las em seu valor de expressão,
de significância própria, autônoma: a ponto de que a “ não-figuração" — longe de aparecer
como um caso particular, como um m om ento limite na história da pintura, e que não
poderia ser pensada senão a partir da estrutura representativa, conforme esta se constituiu
partindo da posição fixada para o sujeito no dispositivo perspectivo levaria, pelo contrário,
se a tom arm os como se deve, i.e., a sério, a submeter, pela “ descoberta" do
“ procedim ento" (com o queriam os Formalistas), e pela substituição do voltar-se para a
Natureza pela própria expressão pictural, o sistem a “ P intura" a um deslocamento radical
98 GÁVEA
na ordem da significância, até subtrai-lo, pelo menos em parte, á relação de interpretância,
em que o discurso semiológico — talvez seja essa um a de suas funções ideológicas mais
im portantes — pretende, pelo contrário, fechá-lo.
À questão: o sistem a “ P in tu ra ” se deixa red u zir a unidades? responder-se-á, pois,
pela negativa. Ficando por determ inar se as unidades que esse sistema m obiliza, de forma
bem visível, e que representam talvez a recaída, ou a escapada (como se vê quando uma
organização perspectiva se deixa ler a partir de algum índice ou “ flexão” figurativa: um
fragm ento arquitetônico apresentado de forma reduzida, a dim inuição a que são submetidas
as figuras etc), se essas unidades são signos, e se a noção mesma de signo, em sua
acepção tradicional, é pertinente no contexto de um sistem a que não se deixa — salvo exceções
sem pre significantes, quando não polêmicas, táticas e até mesmo estratégicas, e
cujo exemplo a arte m oderna não é a única a utilizar — reconduzir a um código digital;
tanto mais que este torna obrigatório abrir espaço ao lado dos elementos im ediatam ente
identificáveis no plano perceptivo, para processos figurativos irredutíveis a um corpus de
regras que deveríam presidir a associação e a com binação das unidades em núm ero finito e
de m esm o nível. Se a noção de signo pode revelar-se cabível no dom ínio “ P in tu ra ” , será a
partir de um corte diferente deste até aqui referido. N o “ m olde” estritam ente saussuriano,
que impõe distinguir en tre a ordem do sistem a (a com petência) e a das produções (a
p erfo m a n ce), uma articulação deve ser substituída; esta obterá sua pertinência da distinção
entre os níveis de análise (a questão vem a ser, talvez, a da relação entre duas “ perfomances”
, a da obra e a da interpretação — da maneira com o esta relação se inscreve em um espaço
com um , mas não idêntico, de “ com petência” ). Deixando de lado provisoriam ente o
problem a da articulação propriam ente figurativa ou plástica, suporemos que se o conceito
de signo pode ganhar valor operatório no dom ínio “ P in tu ra ” , é prim eiram ente (e talvez
exclusivam ente) com referência a um nível, a um m odo de significância que não é aquele
— sem iótico — em que as unidades perceptivas formas e /o u figuras, são reconhecidas
com o tais (e isso se dá m esm o se esse reconhecim ento passa pelo desvio de um a “ declaração”
, de um interpretante explicito), mas àquele sem ântico — em que a im agem , por
requerer um a leitura, term ina por assum ir um estatuto propriam ente discursivo, um a vez
que, para falar como os iconólogos, ela é “ feita para significar um a coisa diferente daquela
que o olho vê” . A teoria dos níveis desenvolvida por Panofsky, ao mesmo tem po que
reitera o corte dado em seu tem po por Cesare Ripa, en tre a ordem do visível e a do lisível,
conduz também a opor o universo dos m o tiv o s, dos objetos ou dos acontecim entos figurados
por linhas, cores e volum es, ao universo das im a g e n s, dos motivos reconhecidos
com o portadores de um a significação secundária ou convencional, distante de sua significação
prim ária, “ natu ral” , e que se prestam â com binação â maneira da “ histó ria” , da
fábula ou da alegoria, ao m esm o tem po que a toda espécie de desdobramentos figurativos
(a im agem de Isaac sendo tom ada por “ figura” da im agem do Cristo que ela pré-tigura
etc): seja um universo de um discurso cuja imagem no sentido que definimos constituiría
a unidade mínima, m esm o quando se articula declarativam ente como um enunciado
( “ um a personagem feminina segurando um pêssego com a m ão direita” , devendo ser lida,
de acordo com o exemplo citado por Panofsky, com o um a personificação da “ verdade” ).
Unidade no registro sem ântico onde opera a iconologia, que provavelm ente deve ser
recebida com o signo, já que se lhe pode associar um “ significante” (o m otivo que se
5
Oito Uses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura
99
“ vê”) e um “ significado” (o conceito ou enunciado que se com preende), e que ela se
deixa identificar na qualidade de componente e eventual mente de integrante (no sentido
em que Meyer Schapiro mostrou em um famoso estudo (10), que a imagem de São José estendendo
uma armadilha á serpente “integrava ” a Anunciação do S en h o r de Flemalle, na
sua diferença com referência às representações tradicionais desse acontecimento) de uma
unidade de nível superior, aquela que constitui o quadro. Unidade, signo m in im u m de um
“ discurso de im agens” (ragionamenti d 'im a g in i, como diziam ainda os iconólogos)
através da qual a pintura se posiciona para representar, encenar, significar, com a ajuda de
meios estritamente representativos, um certo núm ero de noções, de relações e até mesmo
de proposições abstratas. E se os trabalhos de Panofsky sobre o simbolismo na pintura
flamenga ratificam de maneira impressionante as análises de Freud sobre o trabalho do
sonho (essas também referidas, da forma mais explícita possível, ao trabalho da pintura), o
encontro nada tem de fortuito: basta aceitar que a simbólica dos Van Eyck, como a do
sonho, segundo Benveniste (11), demonstram um a verdadeira lógica do discurso, e que
suas figuras são, antes de tudo, figuras de retórica, tropos. Na Interpretação dos sonhos, o
próprio Freud havia proposto a seguinte análise da Escola de A ten a s de Rafael: o fato de
reunir num espaço cênico dado como unitário, filósofos pertencendo a épocas e culturas
diferentes, até mesmo antagônicas, aparece com o um meio, para o pintor, de estabelecer,
pelo modo estritam ente figurativo de uma m onstração, uma noção de filosofia como reino
transhistórico, e como sociedade de espíritos, em que Platão, São Tom ás e talvez o próprio
Averróis se encontrariam dialogando para além das contingências de espaço e de tempo,
de língua e de crenças (12). Ora, os procedimentos utilizados pelos Van Eyck ou por Roger
van der Weydar são exatamente da mesma natureza. Assim como, para não citar mais de
um, entre todos aqueles colhidos por Panofsky, o procedimento que, na unidade de um
mesmo cenário ou moldura arquitetônica, p. ex. uma igreja, em cuja fachada (ou interior)
se desenrola uma cena, faz com que o pintor associe dois “ estilos” definidos: o estilo
romano e o estilo gótico, para representar a sucessão temporal, a oposição do antes e do
depois, e até mesmo esta, completamente nocional, do Antigo e do Novo Testamento
(13).
6
Se tivéssemos de admitir, sempre segundo Benveniste, que o sistema “ Pintura” se
caracteriza pelo fato de que, diferentemente da língua, ele só apresenta uma significância
unidimensional (a signifcânia semântica, correspondendo ao universo do “ discurso” , excluindo
toda significânia propriamente semiótica), forçoso seria então reconhecer que
uma boa parte do programa de uma semiologia da pintura teria sido desde então realizada
sob o título da Iconologia, ou da Iconologia entendida, segundo o term o empregado por
Panofsky, como um a “ Ciência da interpretação” (14). Mas, se a Iconologia pode pretender
recuperar, em última instância, sob a forma não mais de signos, mas de “ sintomas” de
uma visão do m undo ou de uma consciência de classe, os traços ditos “ estilísticos” da
obra e até a sua fatura, ela não supera a incapacidade, e juntam ente com ela, toda a disciplina
estritam ente interpretativa de conhecer a pintura em sua substância sensível, em
sua articulação propriam ente estética, no sentido kantiano do termo. Está ai uma questão
que o semiólogo não pode ignorar, que ele chega mesmo a colocar: a de saber se a obra de
arte se reduz ou não a um sistema de significação (15). Pergunta decisiva com referência
ao questionamento a partir do qual essas “ T eses” nasceram, e que tem por objeto a verdade
da pintura, a.verdade em pintura, o estatuto (ideológico, critico, teórico) do discurso
semiológico em sua relação com essa verdade. Tratando-se do “ sentido” que produziría a
100 GÁVEA
pintura é certo que a especificação não seria do campo da própria pintura, mas do da língua
que “ sozinha pode interpretar tudo” . Mas a obra, a obra de arte, a obra de pintura não
conheceríam outro destino (no sentido em que Freud fala de um destino das pulsões),
senão a interpretação, outra transformação previsível, para retom ar um term o de Lotm an
que abre uma perspectiva m uito nova (16), do que a sem a n tiza çã o ? N ão era essa parecenos
a opinião de Freud, pelo menos no que concerne a obra em sua relação com o produtor:
“ A significação não representa grande coisa para essas pessoas (os artistas). Eles só
se interessam pelas linhas, as formas, o acordo dos contornos. São os defensores do princípio
de prazer” (17). Isso quer dizer que o universo das linhas, das formas, do contorno
— excluindo significativamente o dar cor — não autoriza diretam ente um a análise em te r
mos de significação, e sim um a abordagem formal, se não ‘‘estilística” , a questão permanecendo
a mesma, a de saber como a forma, assim distinta do conteúdo, encontra
meios para assimilar-se a um a economia, seja esta a do ‘‘prazer” ?
O problema volta ao da existência, ou não, de um nível sem iôtico da pintura. O ra, a
questão está geralmente mal colocada, uma vez que vem ao encontro da questão do “ estilo”
(noção cujo papel nefasto aos estudos de arte seria preciso m ostrar, e de com o a proporção
que vem tomando visa im pedir a colocação do problem a que nos ocupa, proibir o
seu enunciado) e dispõe de meios para interferir com a da im a g e m , sendo colocada com o
questão da natureza, sem iótica ou não-semiótica da im agem .
Vim os que, para Panofsky, a imagem se revelaria ao nível do simbólico. M as que não
existe a imagem, para o Iconólogo, senão a partir do m om ento em que à significação
“ n atu ral” , dada ao registro da percepção, se superpõe um a significação convencional. Se
retiverm os a imagem não mais pelo que ela significa, m as pelo que ela nos deixa ver (sem
prejulgara natureza da articulação do legível sobre o visível),tratar-se-á de determ inar se a
im agem , o “ fazer a im agem ” (a síntese im ageante dos fenomenólogos) pode ser pensada e
analisada em termos de articulação significante. Donde, independentem ente da determ
inação lógica que levará a pensar a construção da imagem com prioridade, na rubrica do
espaço — noção, em m atéria de pintura, das mais equivocas — , impõe-se a referência, a
partir daí obrigatória, às tentativas feitas para estudar o processo im ageante (e o próprio
processo perceptivo) na qualidade de processo de com unicação, e nos term os da Teoria da
Informação; todas tentativas que correspondem a um retorno a uma posição pré-fenomenológica
do problema, já que se limitam a estabelecer a imagem tomada por analogon
do real, em uma relação de denotação quanto ao percebido, ou, o que vem a dar no m esmo,
em um a relação de reprodução ou de equivalência quanto á percepção. C om o a
imagem não teria estatuto de m ensagem, quando a própria percepção está assim ilada a
uma operação de deciframento, de “ reconhecim ento” , quando um a e outra são recuadas
até suas raízes comuns convencionais (18)? Seria ainda conveniente, antecipando toda e
qualquer discussão sobre esse ponto, questionar desde o princípio a determ inação (teórica,
ideológica, linguística) que leva a pensar a pintura na qualidade, ou na categoria da
imagem, mas de uma imagem de tipo particular, se não específica: uma im agem que se
caracterizaria por um acréscim o de substância, de onde lhe viria seu peso, seu titulo de
pintura, e que produziría, por essa razão, um efeito de prazer específico. É, no entan to ,
possível que a pintura apontada seja dada como um a variedade de imagem en tre outras,
variedade privilegiada, se não dom inante, em uma cu ltu ra onde o term o m esm o “ pin
7
Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura
101
tura” (que se tenha em mente as dificuldades que coloca a esse respeito a tradução de Wittgenstein)
pode ser tomado como sinônimo de imagem, de representação, de retrato, ou
até mesmo de reprodução ou de imitaçdò (por onde se introduz, através do tema da m i
mes is, a questão da verdade da efígie, da verdade em efígie). Quanto ao programa de uma
semiologia geral, a semiologia da pintura inscrever-se-ia, todavia, em seu lugar, na rubrica
de uma semiologia da imagem, e como um ram o particular desta.
Parodiando M erleau-Ponty, dir-se-ia que a se fazer pintura com o percebido, se
deixaria de lado o nível semiótico, logo, a própria pintura, na medida em que uma verdade
ai trabalha para aparecer, e que essa verdade não é do campo imediato da ordem do discurso,
mas que tem relação em alto grau com a percepção. Pois existe, certam ente, algo
como um nível semiótico da pintura, mas que não se deixa reconduzir à instância do signo,
como também não á da imagem, cuja noção funciona, sem dúvida, como um verdadeiro
obstáculo epistemológico: o nível, por exemplo, em que trabalhava Cézanne quando,
numa intenção ainda de denotação, dizia querer substituir o problema da luz pelo da cor e
da representação, das sensações coloridas pelas sensações colorantes (19). Este trabalho,o
mais próximo da percepção sobre o significante, esta colocação do trabalho do significante
na pintura, de que a arte de Cézanne, como tam bém a de seu contemporâneo Seurat,
oferecem o exemplo, testem unha, com uma eloqüência que não toma emprestados senão
os recursos da pintura, que a superfície de separação entre o semântico e o semiótico não
deve ser procurada entre o nível da figura (dada a ver) e o da significação (dada a compreender),
mas em algum lugar no encontro entre o legível e o visível, entre o domínio do
simbólico e o do semiótico, com a condição de se pensar o semiótico, tal como Julia Kristeva,
como uma modalidade do processo da significância, que se poderia dizer na verdade
psicossomática, em ligação direta com o corpo, e com o um momento logicamente, geneticamente,
produtivam ente anterior ao simbólico, mas que neste se faz objeto de uma revelação
pela qual ele se integra (20). M omento de uma articulação — o de um continum anterior
ao do signo lingüístico e ao próprio signo icônico (na medida em que este só se constituirá
se determinar um interpretante). M om ento pré-tético, anterior à posição do sujeito
na sua referência à experiência da imagem especular, cuja articulação1do campo cromático,
estritamente contemporânea, como mostrou Jakobson em relação ao campo fonemático
(21), oferece a m elhor ilustração: tanto mais que a história da pintura deixa-nos ver como
o semiótico, sob a espécie precisamente da cor, pode deixar-se recuperar e funcionar, a título
de suplemento, no interior do simbólico, mas tam bém como ele pode voltar, sob o simbólico
e fora dele, a um a posição de exterioridade com relação ao signo e a toda significação
constituída na ordem da linguagem, assim como na da imagem, na da representação (só se
levar a sério isto que Peirce trabalhou tardiamente, e enunciou sob o titulo do hipo-icone,
do ícone que não se deixa ainda pensar sob nenhum título, e de uma representatividade,
que antecede qualquer relação de interpretância (22), apesar da idéia que ele tinha de que
tomando a noção em sentido mais amplo, um signo poderia admitir outros interpretantes
do que um conceito: uma ação, uma experiência, mesmo um efeito sensível, uma pura
qualidade de “ feeling” (23)). Nesse sentido somos levados a sustentar que a semiologia,
em sua ordem de dependência linguística, encontra-se como que trabalhada pela questão
da pintura, como ela ainda o é, pela da escritura, sendo os operários o pintor e o escritor,
ambos associados por Filebo á mesma tarefa, não inteiramente dupla. Mas quanto â
economia do processo significante, do qual a pintura é o teatro (onde define e redefine a
8
102 GÁVEA
sem cessar cena), esta economia é para ser pensada até nos seus lim ites, e talvez até no seu
“ além ” , dentro do registro freudiano e a partir do conceito que continua a ser, na leitura
de Freud, objeto de um a verdadeira censura, i.e ., o da regressão, tal com o a Interpretação
dos sonhos o introduz. A regressão formal que está no princípio, ao m esm o tem po que é a
mola, do trabalho do sonho — um trabalho pensado em si mesm o no texto freudiano —
dentro da referência explícita ao trabalho do pintor e que só produz seus efeitos, fora de
toda relação de interpretação, ao se servir da distância — e da tensão que engendra — en
tre o registro do visível (do que pode ser m ostrado, figurado, representado, encenado) e o
do legível (o registro do que pode ser dito, enunciado, declarado). Separação que é a do
trabalho produtorde um a mais-valia icônica, por enquanto, e isso deve ser salientado, que o
ícone tem por propriedade distintiva fundam ental o fato de que por sua observação direta,
outras verdades relativas ao objeto podem ser descobertas, além daquelas suficientes para
determ inar sua construção (24); mas tam bém , no caso da pintura, um a m ais-valia especialmente
pictural, que a define em sua diferença da im agem que lhe confere o privilégio
de que falamos. Separação que será marcada com o o lugar de um a oposição (de um a contradição)
ou de uma troca, e sem dúvida como o dos dois ao mesm o tem po, com o o quer a
tomada em condiração da “ figurabilidade” que preenche a condição para toda regressão.
Separação ainda constituidora da textualidade p ictó rica enquanto tecida de legível e visível,
e a partir da qual é conveniente colocar, em relação ao sistem a “ P in tu ra ” , a questão
do significante; o significante do qual Freud ensina, se o lem brarm os bem , que não seria
possível produzi-lo, e nem m esm o reconhecê-lo, a p artir de um a posição de exterioridade,
pois ele só se apresenta se formos por ele capturados.
N O T A S
(1) Paul Cézanne, “ A Emile Bernard” , 23 de outubro 1905; Correspondência, Paris, 1937, p. 277
(2) Iouri Lotman, A estruturado texto artístico, trad. fr. Paris, p. 26 sq.
(3) cf. Hubert Damisch, “ A parte e o todo” , Revista de estética, 1970, e "O guardiio da interpretação” ,
T elquel, n? 44 e 45 (inverno e primavera 1971)
(4) MeyerSchapiro, Words and Pictures, Paris, La Haye, 1973
(5) Emile Benveniste, “ Semiologia da lingua” . Problemas de linguística geral. t. II, 1974, p. 63
(6) ibid, p. 57
(7) ibid, p. 61-62
(8) cf. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico philosophicus, 4.121 sq.
(9) cf. MeyerSchapiro, “ Some Problems in the Semioticsof visual A rt: Field and Vehicle in Image Signs"
Semiótica, vol. I, n? 30 (1969); trad. fr. in Critique, n? 315-316 (agosto setembro 1973)
(10) Id., “ Muscipula Diaboli: The Symbolism of the Merode A ltarpiece” , A rt Bu/letin, 27. 1945, 182 7
(11) Benveniste, Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana” . Problemas de lin
gülstica geral, t. 1, Paris, -1966, p. 75-87.
(12) Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos, trad. fr. Paris. 1967. p. 271
(13) cf. Erwin Panofsky, Early Netherlandish Painting, Cambridge (M ass.) 1957
(14) Id.. Ensaios de iconologia, trad. fr.. Paris. 1967, Prefácio, p. 5
(15) Roland Barthes, “ A mensagem fotográfica", Communications, n? 1 (1961). p. 128
(16) Lotman, op. cit., p. 47
(17) Freud, A Ernest Jones, 8 de fevereiro 1914; citado por Jones. A vida e a obra de Sigmund Freud trad
fr.. Paris, 1969, t. III, p. 465
^ÍÍP Um exempl° ^essa tàtica epistemológica, cf. Umberto Eco, A estrutura ausente Miláo 1968
(19) Cézanne. “ A Emile Bernard” , 23de dezembro 1904. Correspondência, p. 269
(20) Jnlia K risteva, A revolução da linguagem poética. Paris, 1974. "Semiótica e simbólico"
(21) Koman Jakobson, “ Linguagem infantile afasia” 1969. p. 87 sq
7% 5&pe ?57 d ‘ L Ó g ' “ ' Cap' 3- 276'277 (C' 1902>' in C o ,W * * * "• ">'• Ml.
(23) Id. Cartas a Sra. Welby (1904) C.P. vol. VIII, p. 220-230
(24) I á.. Elements o f Logic, C .P ., vol. MI, p. 158
O Curso de Especialização em
História da Arte e Arquitetura
no Brasil da PUC/RJ, em nível
de pós-graduação latu-sensu, foi
formado há quaro anos. O curso
se inscreve numa visão da
História da Arte e da arquitetura
como um processo de rupturas,
o que implica numa relação
entre a produção da arte e a
trama global da cultura
brasileira. A proposta do curso
objetiva não apenas desenvolver
um saber sobre a arte e a
arquitetura brasileiras,
apreendidas em seu contexto
universal, mas insiste na
formação de uma visão ampla do
campo cultural. Dentro desta
orientação, o estudo e a pesquisa
de arte são encaminhados
juntamente com outras áreas de
conhecimento, favorecendo uma
formação interdisciplinar.
Coordenador acadêmico:
Carlos Zilio
Professores:
Dora Alcântara
Eduardo Jardim
Fernando Cocchiarale
José Reginaldo S. Gonçalves
Jorge Czajkowski
Miriam Ribeiro de Oliveira
Pedro Alcântara
Ricardo Benzaquem de Araújo
Ronaldo Brito
Washington Dias Lessa
Wilson Coutinho