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28 GÁVEA
modelo, trata-se na verdade de uma operação do imaginário. Na sua produção, ali onde
muitos identificam uma figura, outros vêem uma mancha; não é este instrumento o
parâmetro definidor da abstração do pintor e sim a relação entre a pulsào e a estrutura, a
organização dos limites, e até os não-limites da tela. Compreendemos essa relação como a
disposição entre os micro elementos e o todo; a pulsào e sua lógica interna são uma construção
organizada, e o pintor detém o controle das correspondências entre o micro e o
macro da pintura. A pulsào é simultaneamente pincelada e forma, agindo como uma só
substância. Ao conjunto, ao macro, chamamos estrutura — não estaremos mais diante do
que inicialmente nomeamos “desorganização” mas perante a coesão do cosmos pictórico.
As obras produzidas segundo o impacto do inédito levam tempo para serem captadas
pela percepção vigente. A positividade de Iberê extrapola o grande domínio técnico que
sua obra exige e revela: ela não pretende o “belo” , porém contém o belo, ou melhor,
guarda em si "o belo e a fera". Fera inevitável, ineludivel, que lhe dá a compulsão do pintar
e produz o outro do belo.
Em sua produção estão presentes todas as cores, aplicadas em multi-direções, criando
algumas vezes dificuldades para se encontrar a cor pura pois não há uniformidade no fundo
— uma cor se derrama, se emaranha por outra e, não raro, não vemos a passagem. O
preto, sempre muito atuante, contradiz o princípio físico e se apresenta como a presença
de todas as cores. Existem “ pontos luminosos” em todos seus trabalhos de linha abstrata.
Correspondem a segmentos localizáveis no conjunto e são os que ao primeiro olhar se destacam
por sua fulguração — são os “ graus” mais claros da pintura que se sobressaem no
preto agindo no equilíbrio cromático. Em alguns quadros esses pontos luminosos alcançam
seu limite fora da tela: as formas completam-se na mente do espectador. Fora, e não
dentro daquele espaço.
Nos últimos trabalhos, além da presença dos signos, constatamos a introdução
freqüente da sua auto-imagem. Essa manobra, que a tradição denominou “auto-retrato” ,
com Iberê assume a forma de pensamento; para pensar a pintura não é mais possível estar à
margem dela; deve-se estar dentro dela, atestando uma visão total e absoluta. Por isto, o
artista se coloca de frente, de perfil, como duas silhuetas que se entreolham, no branco e
no preto, no positivo e no negativo, como ícones autobiográficos. O pintor se vê como o
redimido que sofre, transfigurado pelo trágico, mas que tem como tarefa inesgotável a pintura.
Daí, em tantas telas, a presença da mão, o agente da pintura, o instrumento do seu
pensar. Em alguns quadros ele ainda segura o pincel — a mão como o condutor do imaginário.
Cabe a nós perceber que, depois da fotografia, não há sentido o auto-retrato descritivo;
ser fiel a si mesmo não é uma questão de reproduzir a própria imagem enquanto
mimese. A contemporaneidade impõe ao artista essa “ representação” como um problema
a ser resolvido. Os significantes estão lá, dependerá de nós captar seu “ego pictórico”
através de uma leitura que nos permita absorver a colocação do pintor consigo mesmo na
tela.
Poeticamente ficam do seu corpo na tela o movimento, o gesto, a presença da paixão,
os limites, a garra do traço, a luz no ponto certo, a força do inquieto... e não haveria outra
colocação senão aquela, outras formas senão aquelas, outra tensão senão aquela.
Trechos dos Depoimentos de ICem 23/08/83 e 20/09/83 (RJ)
LV: A década de 40 foi marcada na Europa e nos EUA pela abstração. Em 1951 a
Bienal de SP apresenta parte da visão plástica internacional. Que influências estes eventos
tiveram para você chegar na década de 60 aos “ Carretéis” ? Se é que tiveram.