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Revista Gávea 03

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GÁVEA

Revista de História da Arte e Arquitetura

LUIZ FERNANDO FRANCO

Warchavchik e a arquitetura

MARIA LUISA LUZ TAVORA

O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro

ENTREVISTA

Lúcio Costa sobre Aleijadinho

RODRIGO NAVES

O olhar difuso

KATIA MURICY

Tradição e barbárie em Walter Benjamim

HAROLD ROSENBERG |

Willem de Kooning

CLEMENT GREENBERG

Depois do expressionismo abstrato

EU GEN IO D ’ORS

O Paraíso Perdido


GÁVEA

Editor Responsável:

Carlos Zilio

Conselho Editorial:

Jorge Czajkovski (professor de Arquitetura no Brasil)

Margarida de Souza Neves (diretora do Departamento de História)

Reynaldo Roels Júnior

Ricardo Benzaquem de Araújo (professor no Departamento de História)

Ronaldo Brito (professor de Arte Moderna)

Vanda Mangia Klabin

Correspondência:

Editor responsável, revista Gávea

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Departamento de História

Rua Marquês de São Vicente, 225

Cep 22453, Rio de Janeiro, Brasil

Produção:

Apoio:

Revisão tipográfica: Cláudia Maria Brum Arruda

Reproduções fotográficas: Pedro Oswaldo Cruz

Programação visual: Newton Montenegro de Lima

Fotocomposição: Estúdio VM - Composições Gráficas

Arte final: Luiz C. R. Henriques

Produção gráfica: Gustavo Meyer

Fotolitos e impressão: Companhia Brasileira de Artes Gráficas

Instituto Nacional de Artes Plásticas, Funarte

Bittencourt, S.A.


GAVEA

3

Revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais

Departamento de História

Coordenação de Cursos de Extensão

Junho de 1986

2 Luis Fernando Franco

Warchavchik e a Arquitetura

14 Maria Luisa Luz Távora

O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro

32 Entrevista

Lucio Costa sobre Aleijadinho

60 Rodrigo Naves

O olhar difuso — Notas sobre a visualidade brasileira

69 Katia Muricy

Tradição e barbárie em Walter Benjamim

78 Haroldo Rosenberg

Willem de Kooning

86 Clement Greeberg

Depois do expressionismo abstrato

120 Eugênio D ’Ors

O Paraíso Perdido



LUIS FERNANDO FRANCO

Warchavchik e a Arquitetura

A posição da mônada absoluta na arte é uma coisa e outra: resistência à má

socialização em curso, mas, ao mesmo tempo, predisposição a uma socialização

ainda pior.

Quanto às convicções políticas dos autores, elas estão na relação mais

casual e inesperada com o conteúdo de suas obras.

T. W. Adomo — Filosofia da Música Moderna.

Em seu sentido enfático, a obra de arte não reflete imediatamente o ambiente

em que surge. Dele extrai o material que seleciona, incorpora e ordena segundo uma

realidade liberada de sua contingência. Não é, pois, de estranhar a perplexidade da crítiqa

conservadora contemporânea da irrupção da Casa Modernista: “Ora, isto quer dizer que é

permitida a construção em qualquer dos estilos arquitetônicos, mas, logicamente, quando

ela não obedece a nenhum estilo deve ser proibida. Logo, a casa (...) não tendo arte não

pode ter estilo” . Mas não basta ao provincianismo acadêmico o recurso ao poder de polícia

das posturas municipais: “Será inevitável a desvalorização desses terrenos” (1).

Singularmente, é a atualidade dos dois temas levantados pela crítica de então

que torna oportuna a reflexão sobre a arquitetura de Warchavchik. A relação entre

obra e estilo e a incidência da arquitetura moderna na realidade social em que se inscreve

são, ambas, problemas cujas soluções mereceríam, pela diversidade das experiências posteriores,

maior atenção. Primeiramente, cabe transcrevê-los tais como surgem nas obras

examinadas.

A indignação acadêmica quanto à posição da obra relativa a um estilo seria

fundada. Entende-se a dificuldade de associar a casa da Rua Itápolis à noção de estilo transmitida

pela história da arte. Em períodos estilísticos passados, a adoção preliminar e

voluntária das normas implícitas num sistema informava, na concreção singular da obra, a

busca de virtualidades inexploradas do próprio sistema. Contrariando a hipótese do talento,

o belo em arquitetura não nasce da eclosão expontânea de sensibilidade estocada, mas,

do mesmo modo que o riso, da percepção de uma articulação inusitada de um sistema

construído “ ad hoc” .

Casa Modernista

Rua Itápolis, São Paulo, 1930


4 GÁVEA

Na tradição clássica, em particular, sistema teórico de representação e singularidade

empírica da obra tiveram na visão prospética e nas ordens — repertório formal

limitado a priori — os instrumentos que informavam em modo unívoco a construção do

objeto arquitetônico. Mero respeito às normas ou vigorosa expansão do sistema, o valor

singular não pode ser atribuído à obra nem pela popularidade alcançada, nem pelo volun-

tarismo artístico do autor. O único critério idôneo é de ordem histórica. Apesar de não

garantir a objetividade de seus juízos — ou talvez até por sabê-los precários —, é o uso histórico

que atribui valor. É o tratamento mediante o qual a obra manifesta a capacidade

mais ou menos persistente de suscitar perguntas e, eventualmente, obter respostas: desdobramentos

que podem estar, como sugeriu Benjamin, separados por milênios da virtualidade

que lhes deu origem.

Simetricamente, obras cujas formas se incorporam com facilidade ao gosto

corrente demonstram-se estéreis a médio prazo. Refletindo imediatamente o ambiente em

que surgem, esgotam-se tão logo é superada a contingência que as gerou. Por volta de

1930, não é outro o horizonte paulistano da produção arquitetônica, nem o da crítica que

lhe era familiar. Ao contrário, a casa da Rua Itápolis inscreve-se internacionalmente e em

pé de igualdade no período heróico do movimento moderno. Nela a expressão nasce da abstenção

de qualquer esforço expressivo. Como a música para o personagem de M. Your-

cenar, a expressão é o trop-plein do silêncio. Na casa da Rua Santa Cruz, a representação

unitária é ainda sensível na simetria frontal que lembra a hesitação de A. Loos na casa

Steiner. De modo análogo à decomposição operada pelo cubismo com as formas naturais,

na casa Modernista o sistema unitário se dissolve e tornam-se múltiplas as possibilidades

de representação do objeto. As faces do volume sucedem-se eludindo qualquer antecipação

da lei de configuração das seguintes que viria a tolher o impulso à representação do observador.

Como na tradição clássica, essa lei existe como princípio gerador que norteia as

relações entre as partes e o todo, mas, contrariamente àquela, não é mais um princípio que

se pretende universal porque natural, inerente ao mecanismo da visão: com Panofsky,

soubemos que também a perspectiva é um sistema simbólico. Trata-se agora de um sistema

assumido como tal, um modelo teórico ao qual submeter a realidade, sem mais a

vocação de metáfora das leis de natureza. Estas já estão incorporadas na força produtiva

social, não são mais metáforas, mas domínio efetivo da natureza (2). A nova arquitetura

toma por base a própria organização funcional, tanto da execução material do projeto —

vertente produtiva —, quanto a da vida a ser conduzida em seu interior — atendimento e

aderência rigorosa ao valor de uso.

Vale contudo, para a nova arquitetura, como para as que a precederam com

dignidade de obra de arte, o mesmo princípio de obediência ao sistema e transgressão

necessária à exploração de outras virtualidades. A organização formal do invólucro da casa

da Rua Itápolis não reflete imediatamente nem a organização doméstica vigente, nem

Casa do arquiteto

Rua Santa Cruz, São Paulo, 1927, 1928

Foto: Arquivo Warchavchik, Biblioteca da Fau, USP


Warchavchik e a arquitetura 5


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GÁVEA

hábitos construtivos arraigados. Máquina de habitar: a formulação de Le Corbusier é infeliz

no contexto de seu discurso por não deixar claro um projeto crítico de comando da

máquina, e não, como quer a crítica reacionária, pela perda de uma dimensão natural.

Natural é a barbárie de um intercâmbio com a organização produtiva ditado pelo princípio

de adaptação, como se produtos e normas sociais de apropriação fossem dados de natureza.

Toda máquina interposta às exigências naturais garante o cumprimento de funções até então

“biológicas” , agora como expressão de uma liberdade e não como submissão supina a

um hipotético estado de humanidade original.

A hesitação assinalada na fachada da Rua Santa Cruz reflete o conflito

latente na transição entre dois sistemas de representação. O princípio de simetria frontal

não impede uma organização planimétrica do térreo bastante livre, embora implique a

adoção em fachada de uma abertura de canto cuja esquadria interposta á varanda, contrariamente

àquela simétrica da sala de jantar, assume o caráter forçado de um trompe-

1'oeil. A hesitação se resolve decididamente pela lei formal e torna hirta a planta do piso

superior. Sobreposta ao térreo, ela deve gerar a simetria central do volume externo às ex-

pensas da coerência funcional. O arbítrio de uma lei externa à concreção da obra expõe as

aberturas a uma insolação genérica, particularmente artificiosa nos dormitórios frontais

onde revelam-se inclusive inúteis à leitura da simetria.

Até então dolorosa, a transição de sistema de referência opera na casa da

Rua Itápolis um passo decisivo no rebatimento conceituai do procedimento acadêmico e

abandona aquilo que, na inércia eclética, se degradava no esforço vão de preservar. Na

produção corrente, o velho sistema já migrara havia muito para a superfície de seus objetos,

contraponto ou mero disfarce do sistema produtivo que doravante ordena a configuração

íntima do edifício. Ao gesto oco do “ artista” eclético que espera, da aposição

repetida de signos caducos, a afirmação original de uma identidade ameaçada, Warchav-

chik contrapõe o gesto viril com que cobra, das possibilidades da força produtiva do sistema,

a promessa negada continuamente pela interposição de valores formais extemporâneos.

O que ainda merece viver no conceito de arte não pode dobrar-se à corvée de

ataviar em modo diverso um mesmo valor de uso só para cobrir exigências de identidade

do artista, nem, tampouco, para justificar a reprodução do valor de troca. A modéstia

relativa do programa da Rua Itápolis facilita o papel de ruptura da obra. A parcimônia com

que os espaços se articulam, sensível no excessivo esquematismo da planta do andar superior,

garante o aspecto rude do volume e explica a leviandade, não necessariamente

nefasta, com que o termo “ cubismo” passa a ser usado.

Na casa da Rua Bahia, o mesmo procedimento não se inibe diante de um

programa quase suntuoso. Origem e destino sociais da arquitetura não se confirmam

mediante um decreto de espírito (3). Não autorizam a adesão mecânica ás figuras sociais

de seus destinatários definidas sociológica ou antropologicamente. Restringir-se eticamente

à concepção de casas proletárias, tanto quanto abandonar-se docemente aos caprichos da

demanda das classes dominantes, caracterizaria uma opção pela estrutura social vigente.

As duas atitudes não definem os pólos extremos de um desejável meio-termo. São os


Warchavchik e a arquitetura 7

corolários da preguiça do conceito arquitetônico — no caso, de morar — e do abandono à

tendência objetiva da história. A casa burguesa da Rua Bahia é a ocasião empírica para

desenvolver as articulações possíveis do conceito. Independentemente do programa estabelecido

pelo cliente ou da legenda com que o projetista atribui funções aos cômodos, é a

própria organização dos espaços que depura a noção burguesa de morar de reminiscências

regressivas: uma aparência qualitativa dos próprios privilégios — forma alegórica da

hierarquia social — e uma aparente obrigatoriedade de vínculos naturais. São ambos

parasitas ideológicos cuja identificação coube historicamente ao modernismo. Esmiuçado,

o conceito alude à possibilidade de um acesso generalizado à casa como um valor de novos

usos, cujos disfarces culturais limitavam de antemão, arquitetonicamente, as modalidades

tanto de fruição, quanto de distribuição.

O convívio familiar, ainda atado na Rua Itápolis por liames naturais que

ditam uma organização da planta parcialmente “doméstica” , torna-se, na Rua Bahia, a

expressão de uma liberdade. O invólucro quantitativo do programa o permite. Uma vez

reduzidas as funções de reprodução vital a trabalho genérico, toma-se tecnicamente possível

reduzir a parte necessária à sua mínima expressão. Em sentido amplo, a passagem é

de ordem econômica. Do ponto de vista espacial, a contração da área funcional necessária

redunda numa expansão do superávit de material arquitetônico, cuja configuração passa a

depender de suas características imanentes e pode abster-se de qualquer sobrecarga de significação

funcional (4). Conjugadas, as duas operações têm como reflexo figurativo o

caráter bifronte do edifício. O conceito enfático de funcionalismo transborda do conceito

restritivo de que é acusado.

O terreno, uma fatia da encosta entre a Rua Bahia e a paralela a juzante, in-

duz uma organização vertical do edifício. No nível da Rua Bahia, estão o acesso, salas,

cozinha e as escadas. Estas comunicam com dois pisos superiores e com o inferior, destinado

a serviços, cujo nível dá início à sucessão de patamares ajardinados até à rua oposta,

cerca de 11 metros abaixo. A concentração dos espaços técnicos não exige outras aberturas

para a Rua Bahia além da porta de ingresso e da fenda que rasga o volume frontal ao longo

da circulação vertical. À feição quase industrial dessa fachada contrapõe-se a livre organização

dos espaços voltados para o jardim. Do mesmo modo que, em planta, a repartição

de cada andar sugere usos múltiplos e relativamente autônomos, as longas aberturas

horizontais, terraços ou varandas, não aludem a qualquer função dos espaços que comunicam

com o exterior: simplesmente afirmam qualidades arquitetônicas passíveis de

uso específico e não contraditório com qualquer função.

Essas as promessas retrospectivamente decifradas. O problema da intencionalidade

do artista levaria a discussões inúteis sobre a noção envelhecida de kunstwollen.

A perenidade da obra depende menos do que nela se deposita como vontade do artista,

do que — diriamos com Valéry — “dos desenvolvimentos que ela recebe de outrem”

. A incidência da obra em seu contexto mede-se independentemente da intenção do

autor de modificá-lo, mas, por outro lado, do contexto dependem os desenvolvimentos

posteriores. Boa parte da obra de Warchavchik, e a arquitetura brasileira desde então,


8 GÁVEA


Warchavchik e a arquitetura 9

Residência Luiz da Silva Prado

Rua Bahia, São Paulo, 1930


10

g á vea

frustraram as promessas de 1930. São raras as exceções: Palácio da Cultura, o leprosário de

I. Nunes, o Pedregulho de A. Reidy, o conjunto de Paquetá de F. Bolonha e quem sabe

que outras mais. A carga revolucionária das três casas foi suficiente para operar rupturas

significativas no plano dos hábitos sociais e visivos. Tudo leva a crer, porém, que a renovação

daquelas promessas e o surgimento de outras dependiam de desdobramentos conceituais

que envolvessem a cidade.

A obra de Warchavchik inclui exemplares de qualidade que refletem aquela

exigência. Mas a ilusão de operar como produtor autônomo leva-o, como a outros pioneiros,

a atribuir à arquitetura uma autonomia expressiva que ela não tem. As opções

profissionais que decorrem revelam-se contraditórias com uma investida na dimensão urbana.

O edifício premiado da alameda Barão de Limeira, uma vez circunscrito ao âmbito

da encomenda, é resolvido com inegável elegância. Nele, no entanto, a prévia e arbitrária

delimitação do problema, imposta pela indústria da habitação, inibe a articulação de escalas

sem a qual mutila-se não só o desenvolvimento da temática urbana, como também o

próprio campo da pesquisa formal. O deslocamento do virtuosismo para a solução de

problemas de superfície do objeto parece ser acolhido pelo profissional, sobretudo nas

gerações seguintes, como conquista de um grau superior de liberdade formal. Mas o preço

da operação é a redução das novas formas a um repertório avulso e dependente, não da

lógica interna do objeto, mas do gosto. De fato, autoriza à modernidade a restauração do

ecletismo.

O que foi até agora uma analogia abusiva entre a organização do trabalho

industrial e a ordenação dos espaços de convívio — trabalho necessário/espaço funcional,

sobretrabalho/espaço excedente — torna-se identidade. índice historicamente determinado

do domínio humano sobre suas predeterminações naturais, o espaço excedente,

liberado da necessidade funcional, tende, miseravelmente, a assumir a veste de meio de

produção e de mercadoria. Ao identificar com argúcia a vocação destruidora de valor

da nova arquitetura, a crítica acadêmica mal escondia o vínculo entre seus parâmetros de

qualidade formal e valor imobiliário. O ponto de vista da crítica atual pareceria o antípoda

ao fazer o reproche pelo surgimento de “ regras, princípios, incompreensões inesperadas”

(5). Mas, para a crítica acadêmica de trinta, já não se tratava mais de defender a integridade

dos sistemas estilísticos passados; destes, a produção eclética não era mais capaz de

produzir senão paródias. Objeto de censura era a insubordinação modernista aos estilos

enquanto códigos corporativos, insubordinação possível mediante a assunção, não do sistema

do gosto corrente, imediatamente, mas de seu fundamento econômico e cultural.

Contradizendo a própria consciência, o ecletismo já expressava, objetivamente, uma liberdade

formal desvinculada da noção enfática de estilo. A crítica atual confirma a regressão

eclética, sua afinidade com questões de mercado e a obediência a códigos que garantam seu

controle. Ela lamenta que

aquele mundo de formas novas se transformou numa arquitetura

monótona e repetitiva, fácil de elaborar e construir — a arquitetura racionalista

, e, ainda, que as possibilidades do concreto armado foram então esquecidas e a arquitetura

se fez neutra e inexpressiva, um simples denominador comum” ; e reivindica,


Warchavchik e a arquitetura 11

enfim, como uma feira de amostras, a liberdade de expor “os requintes da técnica, o

protendido, as cascas, os grandes espaços livres e balanços extraordinários” (5).

Obediência a qualquer sistema estilístico ou rejeição de todo sistema, são

anseios que contêm uma mesma parte de verdade. Para o ecletismo do começo do século, o

direito à livre apropriação do material passado, e, para o eclético moderno, a dissolução de

qualquer sistema de invariantes, são aspirações de liberdade que sempre estiveram presentes

na arte. Toda obra notável aludiu ao esgotamento do próprio sistema e à abolição de

todo sistema. Mas esqueciam, os primeiros, que “só à humanidade redimida cabe inteiramente

seu passado” (6); os segundos ignoram que o material arquitetônico, como o

musical, é “espírito sedimentado, alguma coisa de socialmente pré-formado” (7). É na

relação deliberadamente assumida entre forma singular e disciplina inerente ao material

que a arte se revela como aparência, momento de sinceridade sem o qual regride a fetiche.

Escamoteado o sistema, a pretensão à autarquia da forma se resolve numa aparência

“natural” . Com a pretensão à liberdade formal absoluta, o que emerge sob aparência

natural é a forma coesa do sistema de produção erigido à dignidade de segunda natureza.

Essa natureza é o ambiente que a produção arquitetônica passa a refletir imediatamente.

Não é outra a origem da vocação celebrativa do ecletismo, de ontem como de hoje.

Para que aquela liberdade se demonstrasse efetiva, seria preciso que, em

qualquer momento sucessivo, fosse impossível detectar invariantes na produção de um

período. A unidade estilística constatada a posteriori demonstra que a arte tomou-se, ao

contrário e simplesmente, um fenômeno “ natural” , que perdeu a parte legítima de sua

autonomia e está subordinada a leis que lhe são exteriores. É nesse sentido que a produção

posterior renega o destino vislumbrado em 1930 e se insere no processo de valorização

fornecendo as formas sedutoras — “ a curva, a curva generosa” — e os significados adjetos

sem os quais a mercadoria não se realiza como valor de troca.

O aumento extraordinário da “ força produtiva” dos espaços funcionais,

que deveria redundar numa extrema liberdade de uso do habitat urbano, se perverte em

instrumento para submeter a totalidade dos espaços à mesma disciplina férrea a que é submetido

o sobretrabalho industrial. A máquina de habitar é agora a fábrica da cidade. A

ausência de indicações de outro comando na configuração da máquina autoriza o capital a

preencher todas as outras esferas do convívio social. A coletivização dos usos torna-se

pretexto' para a privatização do comando. A caricatura da vida familiar ressurge nas plantas

das imobiliárias para esconder, sob aparência natural, uma convivência forçada pela

contingência econômica. A cultura vira indústria e a infâmia do termo lazer carrega consigo

a melancolia do domingo que obriga a pensar com alívio a segunda-feira na fábrica da

cidade.

O grau de adaptação a esse quadro mede tanto o sucesso do arquiteto, quanto

o ócio do conceito arquitetônico. E, no entanto, mais do que nunca, a arquitetura teria

um modo específico de fazer política. Este, se não exclui uma militância partidária ou sindical,

não se deixa, contudo, substituir pelo proselitismo. O conceito arquitetônico radical,

sem o qual faltam critérios para avaliar politicamente os compromissos profissionais


12 gávea

de vez em vez possíveis, não tolera a transferência do próprio movimento para longe dos

objetos de seu trabalho: de nenhum deles. Sem o seu material concreto, o conceito se

degrada em ideologia, pouco importa qual delas. Sem explorá-lo na imanência do material,

o que é transferido para a militância é um protocolo de intenções, são slogans inócuos e

absolutamente semelhantes à torcida (8). Oportunismo e boa-fé se assemelham pela grosseria

do truque psicológico. Se a abolição das classes ameaça interesses imediatos do artista

áulico, nada melhor que confiá-la à tendência objetiva da história: a torcida é o álibi que

libera a subjetividade para consolidar o presente classista.

O medo dogmático da verdade que o material possa esconder obriga a construir

a militância mediante a fraude das ferramentas conceituais, seja para enfiar dialética

nas folhas de acanto dos capitéis coríntios, seja para extirpá-la dos pilotis. A quitanda

ideológica de Lysenko é tão funesta para o destino de uma sociedade liberada, quanto a

pretensa neutralidade da obra de arte. Aposição retórica de significados ideológicos estranhos

ao material e afirmação de sua autarquia como produto soberano da “atividade

criadora do espírito” , são os termos acadêmicos do falso dilema — adesão ou revolução —

com que a parcela aculturada de nossa oligarquia paralizou a crítica radical.

É urgente reativá-la mediante um cotejo entre as promessas de 1930 e o que

realmente se cumpriu. Este não deve levar a uma visão unitária da história de nòssa arquitetura.

Não seria sadio nem estatisticamente plausível que a massa de profissionais com

destino salarial partilhasse a mesma mística da profissão que o grupo que controla o mercado.

Fundado no notório saber, o privilégio dos segundos os obriga a empurrar o mesmo

horizonte de trabalho — o conceito acadêmico de arte — para cuja dissolução trabalham os

assalariados, objetivamente, nas lutas sindicais, ou subjetivamente, porque, fraudados da

propriedade artística , descobrem espaços inéditos para a exploração rigorosa do conceito

arquitetônico. Estes poderão, enfim, partir de material especificamente arquitetônico

para tentar o resgate do que sobra de nossas cidades atravancadas pelas “obras de arte”

que nos legam os artistas oficiais. Se o resultado que obtiverem será artístico ou não,

decidirá o livre juízo das gerações futuras, livres finalmente dos critérios de gabinete. Mas

serão, certamente, mais coerentes com a natureza do material arquitetônico e mais consequentes

com sua vocação social.


Warchavchik e a arquitetura 13

Notas

1. Christiano das Neves, “A máquina de habitar do Pacaembu” , in Geraldo Ferraz, Warchavchik,

1925-1930, Sào Paulo, 1965, página 90.

2. “E na imaginação e pela imaginação que a mitologia supera, domina e molda as forças da natureza:

ela desaparece tão logo essas forças são domadas na realidade.” Karl Marx, “Introdução geral,

etc.” , in Fundamentos da critica da economia política. Tradução francesa, edição Anthropos, 1968,

página 41.

3. “ ...o materialismo não é uma posição contraposta assumida mediante uma decisão, mas sim a essência

da crítica ao idealismo e à realidade pela qual opta o idealismo deformando-a. ” T. W. Adorno,

Dialética negativa. Tradução italiana, página 176.

4. “Não se trata mais agora de reduzir o tempo de trabalho necessário tendo em vista o desenvolvimento

do sobretrabalho, mas de reduzir em geral o trabalho necessário da sociedade ao mínimo.

Ora, essa redução pressupõe que os indivíduos recebem uma formação artística científica, etc.,

graças ao tempo liberado e aos meios criados em benefício de todos.” Marx, Grundrisse, op. cit.,

volume II, página 222.

5. Oscar Niemeyer, “Arquitetura” , Folha de São Paulo, 3.6.84. Note-se a estranha semelhança

com o pensamento restaurador de um heideggeriano: “ ... a dimensão artística da arquitetura parece

ter sido esquecida. A monotonia ambiental é um aspecto dessa situação; os nossos sítios tornam-se

sempre mais iguais...” C. Norberg-Schultz, “Verso un’architettura autentica”, in La presenza dei

passato, Veneza, 1980.

6. Walter Benjamim, “Teses de filosofia da história” , in Schriften, tradução italiana, edição Angelus

Novus, página 76.

7. Adorno, Filosofia da música moderna. Tradução italiana, página 41.

8. “Pesaroso, lembro como são pobres e desinformados nossos irmãos brasileiros, impacience ao

lembrar as palavras amargas de Guevara: povo desarmado não existe. ” Niemeyer, op. cit.

Luis Fernando Franco

Arquiteto. Trabalha na Fundação Pró-Memória.


R e n a s c e n ç a

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M ARIA LUISA LUZ TA V O RA

O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro

I. Um novo espaço como imagem do progresso

Na primeira década do século empreendeu-se no governo Rodrigues Alves

(1902-1906) a remodelação da cidade do Rio de Janeiro, promessa feita pelo então governante

e que deveria ser realizada num prazo curto de pouco mais de três anos. Era o sonho

e a necessidade de transformar a cidade colonial “ imunda e retrógrada” (1) em uma

metrópole moderna. Para tanto, o governo federal nomeara uma comissão de engenheiros

nacionais que, sob a chefia do eminente engenheiro Paulo de Frontin, seria responsável

pelos trabalhos de estudo, demolição, nivelamento, iluminação, canalização, arborização,

calçamento e até mesmo a entrega de terrenos demarcados e prontos para edificar. Não foi

sem problemas que foram feitas mais de 600 demolições de prédios para que se rasgasse

uma grande avenida, a Avenida Central.

É preciso destacar a dimensão do fato, pois tratava-se de uma longa avenida,

maior que a então famosa Avenida des Champs Elysées de Paris, a qual possuía 1.900

metros de extensão. Abandonando traçados tortuosos e ruas estreitas, a Avenida Central

teria uma extensão de 2.000 metros contando com as praças situadas em seus extremos.

Possuiría 33 metros de largura, sendo 22 de leito e 5,5 para cada passeio lateral. Pode-se

imaginar o que representou, por suas dimensões, a nova avenida, pois estabelecia um contraste

com as ruas antigas, que possuíam 7 metros de largura na sua totalidade.

Portanto, não é com surpresa que muitas crônicas da época enaltecem

sobremaneira uma obra deste vulto.

“ Há poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso, iniciavam os

trabalhos de construção da Avenida Central, pondo abaixo as primeiras casas condenadas.

Bem andou o governo dando um caráter solene e festivo à inauguração desses trabalhos.

Nem se compreendia que não fosse um dia de regozijo o dia em que começávamos a caminhar

para a reabilitação” (2). Diz ainda Olavo Bilac que no desmoronar dos edifícios

havia um “ longo gemido” (3) representando a lamentação do passado, do atraso e do

opróbio. Mas salienta que este gemido era abafado pelo “ hino claro das picaretas” (4).

Segundo ele, que certamente estava de acordo com as decisões oficiais, dando-lhes o mais

caloroso apoio, todos testemunhavam e celebravam entre outras vitórias a do bom gosto e

da arte!

Ainda sobre as obras da Avenida Central, João de Barro escreve: “ O mês

de março... viu o início das grandes obras que hão de transformar a colonial cidade do Rio

de Janeiro numa bela, arejada e arquitetônica metrópole moderna... ao passo que manifes­


16

GÁVEA

tamos evidente progresso intelectual, ao passo que as nossas instituições científicas ou técnicas

demonstram um certamente elevado grau de cultura, a nossa cidade mantinha o seu

desagradável aspecto colonial, casas sem arquitetura...” (5).

Observa-se que, para muitos, era uma questão de orgulho tornar o Rio de

Janeiro uma cidade com aspecto moderno, civilizado, onde abafar e renegar nossa tradição

seria uma demonstração de progresso. Explica-se a urgência da transformação do aspecto

da cidade, na medida em que ela era o Brasil que os estrangeiros, vindos em transatlântico,

conheciam. Era preciso não cair no descrédito deste estrangeiro de quem tanto precisá-

vamos. Modernizar a cidade era uma questão indeclinável e inadiável do nosso problema

econômico e para tanto dever-se-ia gastar não importava que montante, pois o resultado

seria altamente compensador. Esta era a posição de muitos, aliados ao poder de então, que

assim tentavam justificar as grandes despesas com as obras de remodelação da cidade, que

oneravam os cofres públicos.

Esta remodelação do Rio de Janeiro, incluindo as instalações do porto e a

Avenida Central, surgira de um plano urbanístico de envergadura lançado pelo prefeito

Francisco Pereira Passos, nos moldes das grandes obras de Hausmman que transformaram

o aspecto da capital francesa a partir da segunda metade do séc. X IX .

Neste clima de euforia pelo progresso, sob a orientação da mesma comissão

que encaminhava os trabalhos na Avenida Central, foi lançado um “Concurso de Fachadas”

. Não era novidade a instituição de um concurso desta natureza. Segundo Paulo

Santos, esta solução já fora empregada por Perder e Fontaine na época de Napoleão, para a

Rua de Rivoli em Paris, como, também, para a Praça Vendôme. Aqui no Brasil, Grand-

jean de Montigny já tentara reviver a situação em fins de 1820, no Campo de Santana, hoje

Praça da República. Partia-se dos desenhos das fachadas para, em seguida, desenvolver as

respectivas plantas.

Em 29 de janeiro de 1904, abriu-se a concorrência para “a apresentação de

fachadas que pudessem servir de guia ou modelo ás que deviam ser feitas pelos proprietários

e compradores daquela nova via pública” (6).

O concurso, muito liberal, aberto a arquitetos nacionais e estrangeiros, estabelecia

como condição para a aceitação dos projetos das casas que estas possuíssem 10,

15, 20 e 25 metros de largura de fachada, e, no mínimo, três pavimentos. O edital do concurso

foi modificado posteriormente quanto ao prazo de entrega dos trabalhos — prorrogado

de 29/2 para 15/3 daquele ano — e também passava a admitir fachadas com até 30

e 35 metros de largura. Assim, na data limite estipulada foram entregues 138 projetos, assinados

por 107 pseudônimos.

Sob a presidência de Lauro Müller, engenheiro e ministro da Viação, com a

assistência de Paulo de Frontin, engenheiro-chefe dos trabalhos da Avenida Central, assim

ficou composto o júri do concurso:

Dr. Pereira Passos, presidente municipal, engenheiro;

Saldanha da Gama, diretor da Escola Politécnica;

Jorge Lossio, engenheiro, representando o Instituto Politécnico;


0 concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro 17

Aarão Reis, engenheiro, representando o Clube de Engenharia;

Feijó Júnior, médico, diretor da Faculdade de Medicina;

Oswaldo Cruz, médico, diretor de Saúde Pública;

Dr. Ismail da Rocha, médico, representando a Academia de Medicina,

e, finalmente,

Rodolfo Bemadelli, escultor, diretor da Escola Nacional de Belas-Artes.

Com relação à composição do júri, não foram poucas as críticas à presença

de médicos num concurso “ puramente artístico” (7).

Merece destaque este trecho de um artigo de revista: “Se a instituição do

concurso visou despertar nos artistas a atividade pela emulação, promovendo, assim, o

gosto do público, então era preciso que a Justiça não fosse sacrificada pela precipitação, era

preciso que os juizes fossem verdadeiramente autoridades... O júri a que foram submetidos

138 projetos era de uma composição híbrida. Que entendem de arquitetura o erudito

diretor da Faculdade de Medicina, o ilustre diretor geral de Saúde Pública e o abalizado

presidente da Academia de Medicina e o diretor de um laboratório bacteriológico? Que

tinham a dizer esses ilustres profissionais de especialidade tão diversa sobre uma questão

de fachadas em que não pode haver desagravo dos princípios de higiene? Ao júri sobravam

estes elementos e faltavam outros que podiam ter sido invocados por sua ponderação e

competência no caso” (8).

Para alguns, teria sido imperdoável a não inclusão no júri de representantes

do Conselho Superior de Belas-Artes e da Sociedade Propagadora das Belas-Artes.

Este criticado júri reuniu-se em diferentes sessões, eliminando primeiramente

projetos que não tinham respeitado as dimensões estabelecidas e, posteriormente,

aqueles que consideraram deficientes, resultando, para uma análise mais apurada, 79

projetos. Deste último julgamento foram concedidas 18 menções honrosas e selecionados

seis projetos para os três primeiros lugares que receberam prêmios em dinheiro.

Foi este o resultado final do Concurso: 19 prêmio, projeto n? 97, do engenheiro

Dr. Rebecchi (Figura 1); 2? prêmio, projeto n? 102, recebido pelo engenheiro

arquiteto Adolfo Morales de los Rios, professor da Escola Nacional de Belas-Artes (Figura

2). Os terceiros prêmios foram recebidos por: M .E. Hehl, professor da Escola Politécnica

de S. Paulo com os projetos n? 41 e n? 18 (Figuras 4 e 7); Sr. Driendl, projetos n? 49 e n?

56 (Figuras 5 e 8); Sr. René Barba, arquiteto, projeto n? 44 (Figura 6) e Sr. Oberg, arquiteto,

projeto n? 78 (Figura 3) (9).

II. As influências da arquitetura eclética no concurso

O denominador comum para os projetos foi o ecletismo. O projeto vencedor,

de autoria do Dr. Rebecchi (Figura 1), é um bom exemplo de formas variadas de estilos

distintos. Trata-se de um prédio de cinco pavimentos, separados uns dos outros marcadamente

por balaustradas trabalhadas ou faixas repletas de decoração que acentuam uma


18

GÁVEA

dominância da horizontal. A composição da fachada permite perceber um corpo central

induzido pelo perfeito alinhamento de colunas desde o pavimento inferior até o último

coroado por uma cúpula baixa e dois corpos laterais encimados, também, por pequenas

cúpulas. Estes três corpos são ligados entre si por alas formadas por três vãos por andar.

Alternam-se nos diferentes pavimentos janelas com frontões retilíneos e de arco de meia

volta. Nos três primeiros pavimentos e no quinto, há a presença de colunas que ladeiam

as janelas e de pilastras, às vezes duplas, que limitam os corpos principais. No primeiro

pavimento, no corpo central, estão três vãos em arco pleno com tratamento estereotômico

rematados com chaves. Nas alas laterais também estão presentes vãos com tratamento

semelhante. Estes vãos térreos são marcados por colunas dóricas. No segundo pavimento,

as colunas apresentam-se com o terço inferior ornamentado. No terceiro pavimento,

localizam-se nas alas pilastras aparentemente caneladas. Ainda neste e no quinto pavimento

dispõem-se balaustradas. O quarto pavimento, nas alas, é composto de janelas de

sacada e a elas sobrepostos mezaninos. Neste andar encontra-se a cornija mais importante

da composição que possibilita perceber-se o quinto pavimento como uma composição de

remate. Neste último andar a grande cúpula central em escama é dotada de um óculo em

seu eixo central e encimada por uma grade decorativa (crête). Ainda no quinto pavimento

destaca-se o tratamento estereotômico, típico do Renascimento florentino. A fachada

apresenta um predomínio dos vazios sobre os cheios com uma sobrecarga de ornatos que

terminam por recobrir quase totalmente os elementos de alvenaria. Estão presentes a

2. Adolfo Morales de los Rios, segundo prêmio

Página 14:

1. Rafael Rebecchi, primeiro prêmio

Páginas seguintes:

3. John Õberg, terceiro prêmio

4. M. E. Hehl, terceiro prêmio

5. Thomaz Driendl, menção honrosa


O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro 19

simetria, a ordem, o equilíbrio a partir de um eixo central, porém, nos diferentes andares

os elementos recebem tratamentos distintos. Há predominância de elementos da Renascença

italiana e francesa, os quais imprimem ao projeto um caráter solene, majestoso.

O segundo lugar (Figura 2) é de autoria de Morales de los Rios, que entre

muitos projetos concebeu, posteriormente, o da Escola Nacional de Belas-Artes. Trata-se

de uma fachada com grandes espaços abertos por largas janelas modernas no segundo e

terceiro pavimentos, formando três grandes vãos em forma retangular que contrastam

com os vãos vizinhos de tratamento à Renascença sobrecarregados de ornatos inclusive em

seus coroamentos. Este prédio, como o anterior, apresenta a marcação horizontal com

elementos de moldura e ornatos. A fachada divide-se em cinco elementos no sentido vertical

e em quatro pavimentos horizontalmente. O quarto pavimento pode ser considerado

um remate do prédio. Nele destaca-se uma complexa cúpula aparentemente de ferro. Ainda

de ferro são as grades dos parapeitos deste e do terceiro pavimento. No primeiro pavimento

há três vãos em arcada circular e entre estes também arcadas menores de entrada,

todos em arco pleno. E dado destaque ao tratamento estereotômico nos diferentes pavimentos.

Reorganizam-se nesta fachada elementos da Renascença francesa e italiana.

Outro projèto* o do Sr. Oberg, terceiro prêmio (Figura 3), apresenta tratamento

do revestimento da parede em dois tons (influência francesa). Há um corpo central

rematado na cobertura por pequenos torreões aparentemente circulares e dois corpos

laterais. Quanto às aberturas, o primeiro pavimento apresenta-as de forma retangular


20 G Á V EA

ladeadas por outras duas de remate circular. No segundo pavimento há janelas duplas e no

terceiro janelas simples com remates semicirculares encimadas por óculos. No corpo central,

colunas sustentam um grande arco que traz imponência á fachada.

O projeto do Sr. Hehl (Figura 4) compõe-se de uma fachada plana com três

pavimentos. No primeiro pavimento, um vão central em arco abatido é ladeado por dois

vãos em arco pleno. É dado destaque ao tratamento estereotômico do andar térreo. O

segundo e terceiro pavimentos recebem tratamento de varanda ou loggia italiana. O segundo

andar caracteriza-se por uma verga reta onde pares de colunas a sustentam, e o terceiro,

por vãos semicirculares. Destaca-se na fachada o tratamento contemporâneo de

aparelhos de iluminação, no segundo andar em forma de candelabro e no terceiro suspensos

e ricamente trabalhados. As duplas colunas dóricas e jônicas apresentam decoração no

terço inferior. O remate do prédio é formado por uma grande cornija à italiana e platiban-

da.

Um dos projetos do Sr. Driendl (Figura 5) apresenta quatro fachadas com

três pavimentos absolutamente diferentes em seu repertório estilístico. Da direita para a

esquerda, numa primeira fachada estão presentes elementos dos góticos inglês e francês.

Há predominância de elementos verticais no prédio, que é rematado por ameias. Aparentemente

um prédio de esquina, para esta volta-se um corpo especial em balanço. Opondose

a este corpo encontra-se um pequeno corpo caracterizado por um único elemento por

andar com tratamento em ogiva nos primeiro e terceiro pavimentos e vão retangular no

segundo. O corpo central é formado por dois vãos de dominância vertical rematados por

profusa decoração.

Na segunda fachada, a divisão dos pavimentos é marcadamente horizontal,

t t . r . r t ■ t v r ?


O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro 21

quebrada pelo frontão retilíneo no segundo andar, onde se encontram janelas com sacadas.

No terceiro andar as janelas são conjugadas duas a duas e encimadas por um mezanino.

Na terceira fachada também há a dominância da horizontal. O primeiro e o

segundo pavimentos são caracterizados por três vãos retangulares. O segundo andar

apresenta balaustradas, sacada e peitoril e é rematado por palmetas. O terceiro pavimento

apresenta seus vãos separados por colunetas dóricas. Colunas dóricas são ainda encontradas

no primeiro pavimento. Remata o prédio pouco decorado uma platibanda simples.

A quarta fachada deste projeto é excêntrica, pois é formada por duas partes.

Na maior, no primeiro pavimento, três vãos retangulares são separados por colunas de ordem

dórica. No segundo andar, a parte central forma um conjunto com dois arcos plenos,

sacada e frontão aberto ricamente ornado, ladeados por duas janelas também encimadas

por frontões partidos. O terceiro andar caracteriza-se por um vão central e dois laterais.

Rematando o prédio observa-se uma cornija cortada na parte central por elemento ar-

6. René Barba, terceiro prêmio

Páginas seguintes:

7. M. E. Hehl, menção honrosa

8. Thomaz Driendl, menção honrosa


22 GÁVEA

I

quitetônico profusamente decorado de influências do barroco ibérico. Na segunda parte da

fachada, ou corpo de esquina, observa-se um vão em arco abatido no térreo, um conjunto

de sacada com tratamento de colunas e frontão aberto no segundo andar, e, no terceiro,

um elemento em balanço avarandado com duas faces. Este corpo recebe acabamento de

uma cornija encimada por rico tratamento arquitetônico de ordem barroca.

Neste conjunto, seu autor pretendeu mostrar influências dos estilos inglês,

italiano, grego e espanhol, dando a todos eles um tratamento muito livre.

O projeto do Sr. René Barba (Figura 6) é tipicamente francês. Quatro

pavimentos compõem a fachada, que a partir do terceiro pavimento recebe tratamento es-

tereotômico imitando pedra e alvenaria característica da Renascença francesa. O segundo

pavimento briga com o estilo francês ao apresentar um vão tripartido por um arco na linha

Tudor. À esquerda, um elemento em balanço abrange do segundo ao quarto andar rematado

por um telhado piramidal. Lucamas e telhados em ardósia com omatos de ferro

dão ao prédio aspecto de construção francesa.

Outro projeto do Sr. Hehl (Figura 7) é imponente e apresenta aspecto

solene. Compõe-se de dois corpos laterais em saliência sobre um plano de fachada em três

elementos, um central e dois laterais. Nestes corpos laterais observam-se no segundo andar

vãos rematados em arcos plenos encimados por óculos e volutas, e no terceiro andar

vãos tríplices rematados por frontões partidos e decorados. Encimam os corpos laterais

composições que no conjunto têm aspecto orientalizante. No andar térreo destaca-se a entrada

principal, que forma um conjunto interessante, aberta em arco pleno encimado por

um frontão triangular ladeado de pilastras sobre pedestais. Os segundo e terceiro pavimen-


O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro 23

tos lembram, a partir de alguns elementos, a arquitetura veneziana. A cimalha do prédio é

rematada por uma complexa grade de ferro.

Há, ainda, outro projeto do Sr. Driendl (Figura 8): um edifício de três

pavimentos com tratamento de vergas retas nos primeiro e segundo andares e em arco

pleno no terceiro. Há um corpo central ladeado de dois corpos laterais que recebem como

acabamento pináculos de decoração barroca. O corpo lateral de esquina apresenta uma

sacada em balanço. Nele os vãos são encimados por profusa ornamentação que estabelece

uma ligação entre os pavimentos. O corpo lateral da esquerda, menos decorado, apresenta

vãos retangulares encimados por frontões triangulares. Este conjunto, como os outros

analisados, não apresenta um estilo perfeitamente definido.

No conjunto, as fachadas rearticulam o repertório clássico com influências

marcadamente francesas, retomam o Renascimento italiano, fazem incursões nos góticos

inglês e francês, buscando salientar o aspecto decorativo. Há inspiração, quase sempre, em

construções bem-sucedidas das grandes cidades européias. Na verdade, de lá vinham os

manuais de arquitetura, ilustrados com variados detalhes das mais diferentes construções.

Espécie de álbuns, estes ascendiam à categoria de verdadeiras bíblias, dando todo o tipo de

orientação.

Ficava claro qual modelo se teria para seguir nas futuras construções. O júri

oficializava o apoio a construções que, como as selecionadas, não perdessem de vista o aspecto

das belas construções européias. Elas representavam o aspecto civilizado que se buscava

imprimir em nossa arquitetura. O colonial era o grande ausente.

Houve muitas críticas ao concurso que, no dizer de Olavo Bilac, fora o

“acontecimento capital da vida carioca” no mês de março. Por outro lado, num artigo as-


24

GÁVEA

sinado apenas pelas iniciais de seu autor, A .T .F ., lê-se: “ N o fim de contas, pareceu-nos

apenas uma ‘fachada de concurso’ ” . Vale a pena destacar suas palavras, justificando sua

posição:

“ Primeiramente, nunca se viu um concurso que não tivesse um fim

prático, uma utilidade real; nunca se reuniram em concurso os professores de uma língua,

de uma ciência ou de uma arte só para verificar qual deles sabia mais, mas sempre com o

fim de escolher um deles para lecionar a respectiva matéria ou exercer um cargo que

demande perícia nessa especialidade. O concurso de fachada foi inteiramente platônico.

Quem fez a melhor (?) fachada teve um prêmio e acabou-se” (10). O autor segue dizendo

quão platônico fora o concurso, pois gastara-se dinheiro e energias, e critica a seleção que,

em alguns casos, para ele fora injusta.

Tanto A .T .F . como Olavo Bilac, apologista do concurso, destacam a importância

do certame na medida em que este servira para se tomar conhecimento da existência

de um grande número de arquitetos nacionais e estrangeiros com os quais o país

poderia contar para seu progresso moral e material.

Olavo Bilac comenta o espanto de que foram tomados todos aqueles que

compareceram ao salão da Escola Nacional de Belas-A rtes, onde foram expostos os

projetos premiados, pois não se podia pressentir, pelo tipo de construção que era apresentado

até então, a existência entre nós de arquitetos com tanto talento, imaginação e

preparo. Para ele, o Rio de Janeiro não possuía o perfil de uma metrópole civilizada, e explica:

“ O meu medo, o meu grande medo, quando vi que se ia rasgar a Avenida,

foi que a nova e imensa área desapropriada fosse entregue ao mau gosto e á incompetência

dos mestres-de-obras. O receio não era infundado. Todos estão vendo que, em geral, as

casas mais novas do Rio de Janeiro são ainda mais feias do que as antigas” (11).

III. O mestre-de-obras e o novo fazer arquitetônico

A questão que se colocava com a abertura do concurso era, na verdade, o

apoio e destaque a ser dado à figura do arquiteto, homem cuja formação incluía conhecimentos

estéticos e arquitetônicos e que para dar prova de sua erudição circulava pelos

mais diferentes e antagônicos estilos. Em contrapartida, a desvalorização massacrante da

figura do mestre-de-obras estampada em comentários como: “ Era e ainda o é, por certo,

verdadeiramente lamentável esse estado de coisas, pleno domínio dos mestres-de-obras,

essa execrável instituição nacional” (12). “ Após a morte de Montigny, a arte arquitetônica

ficou entregue à incapacidade dos mestres-de-obras, que se esmeraram em conceber

e criar verdadeiras monstruosidades” (13).

A construção civil estava vivendo seu primeiro surto no pais, deflagrado a

partir da Abolição, da Proclamação da República e da própria industrialização, como con-

qüências da desagregação da sociedade agrária patriarcal e ascensão da burguesia urbana.


O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro 25

Era esta burguesia unida à estrutura do poder dominante que buscava para si ares de

progresso, renegando e desvalorizando tudo o que estivesse preso à sua tradição, a começar

pela arquitetura encomendada.

“Quanto ao caráter das novas edificações, o período se distingue pela competição

cada vez mais aguda entre o antigo mestre-de-obras, de origem lusitana, que faz

um esforço para adaptar-se aos novos tempos, e os arquitetos estrangeiros ou nacionais,

embebidos de rudimentos da cultura francesa, britânica ou italiana” (14).

Esta luta não era nova. Já houvera um período, na época da chegada de

D. João VI, em que no Brasil começara-se o culto arquitetônico na figura do grande arquiteto

Grandjean de Montigny. Para alguns como Olavo Bilac, após sua morte o mau gosto passara

a imperar nas construções entregues aos mestres-de-obras, considerados sumidades

pela classe rica ignorante. Eles eram acusados de absurdos tais como: a edificação indiscriminada

dos chalets, construção típica do campo e que no Rio estava presente no centro

da cidade; o uso de compoteiras na ornamentação das platibandas; o abuso da pedra de

cantaria, que não permitia o luxo de ornatos obtido em construções de tijolo; enfim, a tentativa

de baratear a construção fazendo adaptações superficiais do que estava em voga. Assim,

diz Olavo Bilac que “ quando um burguês queria construir um prédio, o seu primeiro

cuidado era procurar um mestre-de-obras pé-de-boi, nada amigo de novidades, aferrado às

tradições e desprovido de diploma” (15).

Ainda com relação ao problema levantado sobre o mestre-de-obras, Mo-

rales de los Rios, arquiteto espanhol brilhante do início do século e participante do certame

em questão, faz um pequeno histórico da categoria mestres-de-obras. O seu objetivo é

também mostrar a importância do Concurso de Fachadas, pois revelara a primeira falange

de arquitetos que existia entre nós. Diz ele que, com a Missão Francesa, a arte dos mestres

caíra nas mãos dos boçais. Aos poucos se dera a decadência deste grupo, comprovada pelos

livros paroquiais que testemunhavam pagamentos irrisórios feitos aos mestres para fingirem

de arquiteto, além de ainda serem tratados como escravos alugados por seus senhores.

Fora então desse grupo de homens que saíra a classe posteriormente chamada de

mestres-de-obras e que durante algum tempo alcunhava-se ou era alcunhada de “ Chico

Burro ou Chico Barbado” , daí não se poder esperar nenhum primor na sua arquitetura.

Moralez de los Rios, apesar de desprezar os mestres-de-obras, não descarta sua importância

na arquitetura domiciliar (16).

Desde a influência neoclássica começara-se a abandonar a tradição construtiva

colonial e seus verdadeiros agentes, os velhos mestres-de-obras. E claro que não se

chamaria à ação estes homens no momento em que o importante era rasgar avenidas,

cujos prédios precisavam ser construídos com materiais novos e pouco familiares a eles,

onde elegância e suntuosidade não poderíam sofrer deslizes domésticos e serem sacrificadas

pela ignorância.


26

G Á V EA

IV. A valorização do arquiteto e a formação acadêmica

O arquiteto é quem estava preparado para a “ bela construção” . O concurso

contribuía para o renascimento do gosto arquitetônico que este profissional revelava em

seus projetos. Um observador contemporâneo afirma, após dedicar algumas linhas elogiosas

ao Concurso de Fachadas, que naquele ano, 1904, aumentara a matrícula na Seção

de Arquitetura da Escola de Belas-Artes, destacando que até engenheiros formados pela

Escola Politécnica buscaram, também, a formação especializada em arquitetura.

Essa afirmação levou em consideração o total de alunos matriculados naquela

instituição, cujo regulamento, de 1901, estabelecia assim os cursos que a escola

oferecia: além do curso de arquitetura, um curso geral, dois preparatórios, um de pintura,

um de escultura, gravuras de medalhas e pedras preciosas, incluindo outros cursos práticos.

O candidato ao curso de arquitetura passava por três anos de curso geral,

mais dois anos de curso preparatório, após o que ingressava no curso preparatório que

compreendia a matéria “Composição e desenho de arquitetura” , incluindo trabalhos

práticos correspondentes (17).

Num levantamento feito junto aos livros de matrícula da Escola de Belas-

Artes, no período compreendido entre 1901 /1910, verifica-se que houve um aumento do

número de matriculados naquela instituição. No entanto, o mesmo não aconteceu com

relação ao curso de arquitetura, cujo número de matriculados oscila entre dois e três a partir

de 1904 contra uma ou nenhuma matrícula nos três anos anteriores. Não terá sido um

efeito imediato do Concurso no que diz respeito a um aumento significativo do quadro de

alunos de arquitetura. O fator determinante mais provável de um maior interesse pela

profissão de arquiteto foi a própria obra de remodelação da cidade, a construção das grandes

avenidas, que tornaram promissor o mercado de trabalho para aqueles profissionais.

Que profissional formava a Escola de Belas-Artes? Ao analisar os currículos

dos cursos pelos quais passava o futuro arquiteto, observa-se a presença de disciplinas

voltadas para o desenho ou seu estudo histórico. Nos anos de curso preparatório

preponderaram disciplinas de caráter teórico-técnico tais como topografia, estereotomia,

resistência de materiais, cálculo, mecânica, entre outras.

Para compreender melhor o pensamento que norteava o curso da Escola de

Belas-Artes, são importantes as palavras do arquiteto Morales de los Rios, emérito professor

da instituição. Em 1897, na sua tese apresentada para o lugar de lente de estereotomia,

embora não tratando especificamente de arquitetura, lança alguns conceitos admitidos e

professados pela arquitetura acadêmica:

“ A idéia de beleza é como uma luz interna do espírito que, iluminando-o,

lhe relembra um estado de perfeição passada...” (pode-se observar como sua concepção de

beleza está permeada de um ideal platônico). ‘‘Bastava copiar... E para criar mais tarde um

estilo próprio, é preciso saber bem copiar e copiar o que é belo... O desenho é a base


O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro 27

elementar em que o artista há de apoiar as suas criações” (18). A partir de suas palavras

entende-se como tantos arquitetos teriam mobilizado força e talento para, num Concurso

de Fachadas, apresentarem projetos que sabiam, de antemão, não seriam construídos mas

tão-somente apreciados como obras de virtuosismo de desenho, cujas incursões nos mais

diferentes estilos confirmavam a demonstração inequívoca de erudição.

Segundo o arquiteto, era função da Arquitetura “ relembrar os grandes espetáculos

da Natureza, as suas linhas majestosas, elevando-se nesta função ao sublime” .

A Arquitetura é simbólica e divina pela proteção que presta aos grandes ideais da humanidade.

Fala-nos da conseqílência do Romantismo de 1830 que, com a retomada do

estilo gótico, desencadeou os mais diferentes “ néos” que tomaram conta da arquitetura.

O arquiteto, a partir de então, deveria ser profundo conhecedor dos mais diferentes estilos,

aos quais recorrería a qualquer momento para projetar seus trabalhos. Esse estudo dos estilos,

tendo como base o das ordens clássicas, era ensinado nas aulas de desenho e composição

das escolas profissionais, recebendo, também, influências das artes fotográficas e

de um contato mais acentuado com o mundo europeu pela intensificação de viagens (19).

“ A arquitetura da época atual é essencialmente enciclopédica nas suas

manifestações de transição e se acha em vias de atingir seu modelo típico e definitivo pela

combinação predominante do ferro e do aço com outros materiais de construção e especialmente

com os vidros, os cristais e os produtos cerâmicos foscos ou esmaltados” (20).

Com as palavras de Morales de los Rios, observa-se a interpretação dada ao arquiteto confundido

com o desenhista de prancheta a buscar modelos nos manuais de arquitetura. Nas

três primeiras décadas do século, aqui no Brasil, a atuação do arquiteto limitava-se ao

trabalho de prancheta — ele dava provas de apuro no desenho e conhecimento histórico

dos mais diferentes e antagônicos estilos. “ Bom projetista era aquele que soubesse imitar

os estilos em voga” (21). Lúcio Costa, já comprometido com o funcionalismo que aqui

chegara, diz que na Escola de Belas-Artes os alunos de arquitetura recebiam uma bagagem

“técnico-decorativa” que não lhes permitia uma ação mais efetiva na vida real, pois não

recebiam as explicações indispensáveis do porquê dos elementos e sobre as razões profundas

que condicionaram a existência dos diferentes estilos (22). Contra esta situação, ele foi

líder de movimentos que geraram uma crise interna na EN BA, quando diretor nos anos

30.

Ainda Morales de los Rios explica a arquitetura eclética aproximando-a a

uma arquitetura de transição. Na verdade, tentava-se reestruturar a linguágem arquitetônica,

pressionada por todo o processo de industrialização do material de construção

que o Brasil acolhia de braços abertos por motivos políticos e econômicos. A questão de

uma paisagem urbana civilizada era prioritária naquele início do século. No Concurso de

Fachadas os arquitetos, buscando modelos do Velho Mundo, cumpriram o grande papel de

refletirem os interesses da classe dominante, da burguesia que buscava igualar-se em prestigio

à sociedade civilizada européia, erguendo prédios que testemunhassem seu ideal.


28 G Á VEA

V. Um concurso em busca de uma fachada

O Rio de Janeiro do início do século era o centro cultural, político e econômico

do país. Acumulavam-se na cidade os mais diferentes recursos, conseqüência do

privilégio de ser o núcleo da maior rede ferroviária, de abrigar a maior parte das grandes

casas bancárias polarizando as finanças sociais, de ser o décimo-quinto porto do mundo em

volume de comércio. Tomara-se o Rio o maior centro populacional do país na medida em

que atraía aventureiros nacionais e estrangeiros em busca de melhores condições de vida e

maior lucro.

A ordem republicana trouxera mudanças políticas, econômicas e sociais

desenvolvidas num tal ritmo que transformaram rapidamente a vida da sociedade carioca.

Os cargos de maior importância e influência iam sendo assumidos por grupos que buscavam

a distinção social. Em substituição à classe aristocrata do Império, a burguesia surgiu

como o novo grupo, perseguindo com obsessão o progresso. ktO resultado mais concreto

desse processo de aburguesamento intensivo da paisagem carioca foi a criação de um

espaço central na cidade, completamente remodelado, embelezado, ajardinado e europeizado...”

(23). Tentou-se sepultar a cidade colonial e com ela as formas de cultura e

religiosidades populares (serenatas, boêmia, nosso carnaval e o cordão de foliões, fantasia

de índio, jogo do bicho etc.). Para tanto, o Estado assumiu uma atuação destacada, manipulando

a opinião pública, impondo modelos cada vez mais divorciados do seio da sociedade

brasileira. Assim aconteceu na arquitetura. O episódio do Concurso de Fachadas

reflete, de forma exemplar, toda esta situação. A burguesia ascendente necessitava erguer

monumentos à sagração de seu triunfo e de seus ideais. Suas construções precisavam ostentar

a categoria social de seu possuidor. Nada mais natural que o próprio governo patrocinar

um concurso onde seriam apresentados modelos e formas a serem incorporados

pela sociedade em crescimento. Nesta ação governamental determinava-se um mecanismo

de discriminação e prestígio. Construir ou não as fachadas apresentadas tornava-se irrelevante

diante da distinção social de todo aquele repertório arquitetônico. Não havia a

valorização dos estilos em si. Na Europa, o movimento de arquitetura que culminara no

Ecletismo representara, entre outros aspectos, a valorização de um passado que nós não

tínhamos experimentado. Lá os estilos ressurgiram estimulados por estudos e conhecimento

dos edifícios do passado, a partir de publicações as mais variadas de histórias

universais de arquitetura. Lá, a tradição fora valorizada.

Aqui, conforme os resultados do concurso e posterior mente na construção

da Avenida Central, o nosso passado arquitetônico era plenamente esquecido. O concurso

revitalizou a figura do arquiteto e colocou na ordem do dia a Escola de Belas-Artes e todos

os seus valores, em detrimento do antigo e tradicional construtor, o mestre-de-obras. Os

projetos apresentados dispensariam a atuação deste agente pouco familiarizado com estilos

europeus e despreparado para a utilização de materiais que estes estilos exigiam. Toda a

arquitetura apresentada assumiu a função simbólica, a preocupação de ostentar uma

aparência alinhada ao aspecto das metrópoles do Velho Mundo.


O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro 29

Considerando que dos 24 arquitetos premiados 12 contribuíram com

projetos para a construção dos prédios da Avenida Central, o concurso estava em consonância

com a mentalidade vigente (24).

O júri, no processo de seleção, foi movido pela vontade de uma prestação

social. Ele era comprometido com toda esta busca de transformação de nossa imagem frente

ao mundo civilizado. Buscou a atualização de modelos cujas matrizes européias deslumbravam

o burguês, o comerciante rico que, afinal de contas, construiría nas grandes

avenidas.

Os resultados do concurso e sua própria realização responderam prontamente

aos anseios da sociedade, voltada para a urbanização e sedenta de modelos de prestígio.

Só fachadas, sim. Até nisto o concurso foi reflexo de nossa condição real de país

periférico com problemas sérios para resolver, buscando na ilusão da aparência o status de

país civilizado.

Saiu fortalecida essa imagem civilizada da classe dominante, na medida em

que ela própria articulou um “ Concurso de Fachadas’ ’ considerado por um cronista da

época “ fachada de concurso” , legitimando o seu gosto e seu desejo de identificação com a

culta sociedade européia.

Notas

1. Olavo Bilac, Revista Kosmos número 4, abril 1904.

2. Bilac, “Crônica”, Revista Kosmos número 3, março 1904.

3^ Bilac, op. cit.

4. Bilac, op. cit.

5. “Crônica”, Revista Renascença, ano 1, número 2, abril 1904.

6. “Concurso de Fachadas para a Avenida Central” , Renascença, abril 1904.

7. Ibidem.

8. “Fachada de Concurso” , Revista Commentario, série II, número 1, maio 1904.

9. Com relação aos resultados, são diferentes as informações dadas pelas revistas Renascença (abril

1904) e Kosmos (abril 1904), que não inclui o Sr. Driendl e dá o número 14 e não 41 a um dos

projetos do Sr. Hehl.


30

GÁVEA

10. “Fachada de Concurso” , Commentario, série II, número 1, maio 1904. Observação, os projetos

não se destinavam a construção, mas a Revista Renascença de abril 1904, na legenda do desenho que

apresenta o projeto número 56, do Sr. Driendl, informa que o prédio estava sendo construído na Rua

do Ouvidor.

11. Kosmos, número 4, abril 1904.

12. João de Barro, “Crônica” , Renascença, ano 1, número 2, abril 1904.

13. Bilac, Kosmos, número 4, abril 1904.

14. Maurício Vinhas de Queiroz, “Arquitetura e Desenvolvimento” , Revista Módulo, número 37,

agosto 1964.

15. Kosmos, abril 1904.

16. Morales de los Rios, “A Arquitetura dos Primeiros 100 anos da Nossa Independência”, Jornal

A Noite, Rio de Janeiro, 9/9/1922.

17. Ver regulamento da Enba, 1901, capítulo, artigos 2, 5 e 9.

18. Tese apresentada no concurso para lugar de lente de Estereotomia da Enba — Adolfo Morales de

los Rios, Rio de Janeiro, 1897.

19. Op. cit.

20. Op. cit.

21. Rino Levi. Oração aos formandos da Faculdade do Rio Grande do Sul, 1958. Depoimentos,

primeira edição, Grêmio da Faculdade de Urbanismo.

22. Lúcio Costa, “Documentação Necessária” , Revista do Sphan, número 1,1937.

\

23. Nicolau Sevcenko, A Literatura como Missão, Editora Brasiliense, São Paulo, 1983, página 33.

24. Ver lista de arquitetos, Anexo 1.

Bibliografia

Livros

Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1944.

Jean Baudrillard, Para uma Critica da Economia Política do Signo, Edições 70, Coleção Arte e

Comunicação, Porto, 1981.

Germain Bazin, Les Languages des Styles, Éditions Aimery Somogy, Paris, 1976.

Leonardo Benevolo, História da Arquitetura Moderna, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976.

Yves Bruand, A Arquitetura Contemporânea no Brasil, Editora Perspectiva, São Paulo, 1981.

Ferreira Rosa, Rio de Janeiro em 1922-24, Coleção Memória do Rio, 3, Prefeitura da Cidade do Rio

de Janeiro, 1924.

Marc Ferrez, O Álbum da Avenida Central, Editora Ex Libris/João Fortes Engenharia, São Paulo,

1983.

Adolfo Morales de los Rios Filho, Figura, Vida e Obra de Adolfo Morales de los Rios, Editor Borsoi,

Rio de Janeiro, 1959.

Paulo F. Santos, Quatro Séculos de Arquitetura, Iab, Rio de Janeiro, 1981.

Nicolau Sevcenko, A Literatura como Missão, Editora Brasiliense, São Paulo, 1983.


O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro 31

Artigos de periódicos

A.T.F., “Fachada de Concurso” , Commentario, série II, número 1, Rio de Janeiro, maio 1904.

João de Barro, “Crônica” , Renascença, ano 1, número 2, abril 1904.

Barro, “Crônica” , Renascença, ano 1, número 3, maio 1904.

Olavo Bilac, “Crônica” , Kosmos, número 3, março 1904.

Bilac, “Crônica”, Kosmos, número 4, abril 1904.

Lúcio Costa, “Documentação Necessária”, Revista do Sphan, número 1, Rio de Janeiro, 1937.

Adolfo Morales de los Rios, “A Arquitetura nos Primeiros 100 Anos de Nossa Independência”,

Jornal A Noite, Rio de Janeiro, 9/9/1922.

Maurício Vinhas de Queiroz, “ Arquitetura e Desenvolvimento” , Módulo, número 37, agosto

1964.

Autor não identificado, “Concurso de Fachadas para a Avenida Central”, Renascença, ano 1,

número 2, abril 1904.

Tese

Adolfo Morales de los Rios, Tese apresentada no concurso para lugar de lente de Estereotomia da Escola

Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro, 1897.

Documentos

Regulamento da Escola Nacional de Belas-Artes, aprovado em 13/4/1901.

Livro de matrículas da Escola Nacional de Belas-Artes, período de 1900 a 1910.

Anexo 3

Relação dos arquitetos participantes do Concurso de Fachadas

Rossi Batista

René Barba

Ludovico Berna

Thomaz Driendl

Arthur Fadini

Gatell y Solá

M.E. Hehl

Antonio Jannuzzi e irmão

Morales de los Rios

John Oberg

Rafael Rebecchi

Antonio Vanini

Projeto 27, menção honrosa

Projeto 44, terceiro prêmio

Projeto 45, menção honrosa

Projeto 62, menção honrosa

Projetos 49 e 56, menção honrosa

Projeto 21, menção honrosa

Projetos 18 e 21, terceiro prêmio e menção honrosa

Projetos 70 e 67, menção honrosa

Projetos 102 e 105, segundo prêmio e menção honrosa

Projetos 78 e 80, terceiro prêmio e menção honrosa

Projeto 97, primeiro prêmio

Projeto 32, menção honrosa

Os ferros e as reproduções são da revista Renascença, abril 1904.

Maria Luisa Luz Tavora

Formada em Belas-Artes, aluna do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no

Brasil, da Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.


Profeta Joel

Congonhas, Minas Gerais

Foto: M. Gautherot/Pró-Memória


E N T R E V IS T A

Lucio Costa sobre Aleijadinho

Jorge Czajkowski — Dr. Lucio, como o senhor situaria a obra do Aleijadinho

em relação ao gosto artístico vigente na época?

Lucio Costa — O Aleijadinho era, por temperamento, um sujeito apaixonado.

Impulsivo e apaixonado. Quando se lê sua biografia, sente-se essa paixão, e aconteceu

de ele nascer numa época em que o estilo era muito refinado, a fase final do barroco

— chamado rococó —, um estilo elegante, delicado, gracioso. A obra do Aleijadinho é o

casamento dessas duas coisas. A contradição entre o estilo da época, que era o que ele

manuseava, e seu temperamento mais “possuído” , mais “ miguelangelesco” , marca toda

a sua obra.

Aleijadinho foi um caso excepcional. Bazin tem razão quando diz que o

conjunto da obra dele foi a última manifestação válida de arte religiosa no mundo. Séculos

e séculos de evolução, desde o começo do cristianismo e essa coisa extraordinária que

aconteceu no interior do Brasil, em Minas, cercada de montanhas, naquele isolamento.

Acho a conclusão de Bazin acertadíssima.

Ronaldo Brito — Não deixa de ser curioso que ele tivesse uma vinculação

religiosa tão profunda, tão sincera... talvez tenha sido justamente essa situação de isolamento

do Brasil que tenha permitido a um eu já desenvolvido, já moderno, liberto do

princípio de autoridade, conservar uma vinculação religiosa tão forte.

LC — Até os 40 anos o Aleijadinho foi uma pessoa normal. Só depois,

quando ele estava trabalhando no belíssimo lavatório da sacristia de São Francisco de Ouro

Preto, é que começaram os sintomas da moléstia dele. Esse lavatório foi oferecido pelos

sacristãos de 1777, 78 e 79, como dádiva à irmandade. Daí em diante ele foi ficando cada

vez mais místico, mais apaixonado em sua obra, que era toda voltada para a religião. E

compreensível, naquele drama com que se viu confrontado. A descrição de sua figura,

feita pela nora Joana e reproduzida por Bretas, eu acho fundamental. Nunca vi uma descrição,

um retrato, tão perfeitos. O Rodrigo José Ferreira Bretas fez, no século passado, a

biografia do Aleijadinho, baseado especialmente nas declarações de Joana, que o acompanhou

naquela agonia final toda.

RB — Essa biografia de Bretas é muito romanceada?

LC — Não, não tem nada de romanceada. Bretas é impecável. Ele transcreve

o artigo que serve de base para toda a história da arquitetura religiosa mineira, de

Joaquim José da Silva, o chamado Vereador Segundo da Câmara de Mariana, que tinha

por obrigação, de tantos em tantos anos, fazer um relatório do “estado das artes” na

província. Esta descrição do Vereador fala dos trabalhos numa linguagem meio pomposa,


34

G Á V E A

meio barroca, daquela época, de uma precisão que parece pernóstica, mas não é. Você

analisando, é tudo muito correto, e põe o Aleijadinho no seu devido lugar, mostra que ele

de fato foi, já na época, um artista considerado excepcional. Mas voltando á descrição do

Aleijadinho feita pela nora Joana e transcrita por Bretas: “ Antonio Francisco era pardo

escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada e gênio agastado. A estatura era baixa, o corpo

cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumosa, o cabelo preto e

anelado, o da barba cerrado e basto, a testa larga, o nariz regular e algum tanto pontiagudo,

os beiços grossos, as orelhas grandes e o pescoço curto. (...) Até a idade de 40 anos,

em que tem um filho natural, ao qual deu o mesmo nome do pai, passou a vida no exercício

de sua arte, cuidando em ter boa mesa, e no gozo de perfeita saúde; e.tanto que era

visto muitas vezes tomando parte nas danças vulgares” . Um retrato não é? Parece que

você está vendo a figura na sua frente.

RB — Muitos sugerem que o Aleijadinho seria ainda um artista medieval.

LC — Ele tem uma carga medieval, principalmente pela paixão religiosa

que foi adquirindo com o tempo.

RB — É a questão do belo não ser mimético, renascentista, de representação,

mas ser um influxo da alma. Mas o barroco é desdobrado no sujeito, é o sujeito que

se problematiza, é uma problematização da representação, enquanto o medieval é uma

adesão imediata à construção do mundo, ao sistema do mundo, sem essa mediação da

representação do sujeito. Talvez a complexidade da obra do Aleijádinho resulte justamente

do fato de um sujeito como ele, um eu lírico moderno, carregar ao mesmo tempo um

lastro medieval muito forte. Eu não sou especialista, mas para nós, modernos, dá para perceber

isso na obra dele.

LC — Especialmente naqueles baixos-relevos, naqueles púlpitos.

•RB — Talvez o caso que se aproximasse mais fosse o de El Greco. Dele

também dizem que não chegou a entender o sistema renascentista. Como veio de Bizân-

cio, ainda estaria ligado à questão planar, não teria entendido a perspectiva. Existe muito

essa discussão em relação a ele.

Carlos Zilio — No caso do Aleijadinho, eu pergunto ao senhor se o próprio

sistema de produção da arquitetura no Brasil e em Portugal não seria ainda ambíguo, se o

estatuto do artista não estaria ainda ligado à formação medieval.

LC — Isso é muito interessante de ponderar porque era a tradição. O arquiteto

ou era oriundo do ofício de carpinteiro ou do ofício de pedreiro. Nas obras de pau-

a-pique ou taipa, quem dava o risco era o arquiteto formado na tradição do ofício de carpinteiro,

nas obras de alvenaria era o arquiteto formado na tradição do ofício de pedreiro

ou de canteiro. Isto prevaleceu durante toda a Idade Média, até o Renascimento. Os arquitetos

eram homens criados no chantier, no canteiro de obras. Não eram anônimos, mas

vinham dessa formação. O Renascimento é que começou com o arquiteto-artista. Entrou

em moda fazer pesquisa, descobrir ruínas e se encantar com elas. Todos passaram a se interessar

pelos elementos arquitetônicos, fazer levantamentos de colunas, entablamentos,

aquela coisa toda. Aí surgiu o arquiteto de atelier, o arquiteto formado no meio de artistas


Lucio Costa sobre Aleijadinho 35

plásticos, sem contato direto, sem ser oriundo da obra.

Com o negócio do ouro houve um enriquecimento em Minas, e afluíram

então mestres-construtores e artistas que vinham para cá porque havia muito mercado,

muita construção, quando na Metrópole já quase não havia. De modo que em Minas

houve um reaportuguesamento, o que explica que o nosso Aleijadinho, no confronto com

os outros mestres todos, locais, tenha sido exata mente isso: um arquiteto que teve uma

formação como os outros artistas do Renascimento. O que acontece, e é muito engraçado,

é que ele, com essa formação de artista, concebia formas, criava problemas, que iam dificultar

a tecnologia corrente, do construtor, inovações que atrapalhavam e engendravam

uma série de dificuldades para o construtor.

CZ — O Aleijadinho seria, então, o único artista brasileiro de expressão

universal, ligado a uma tradição renascentista? Não propriamente o primeiro artista

moderno no Brasil, mas o último artista renascentista universal?

LC — Exato. O que não se pode deixar de considerar é que a arte dita colonial

era uma arte portuguesa. O Brasil era Portugal, os portugueses aqui estavam em

casa. Isso é importante. Tudo era Portugal. Diferente, mas como as províncias portuguesas

são diferentes entre si. Norte e Sul de Portugal são completamente diferentes.

RB — Tenho uma pergunta assim... fantasiosa. Será que o Aleijadinho

poderia ter feito o que fez lá em Portugal? Ou só poderia fazer aqui?

LC — Acho que lá não daria pé... A própria biografia do homem...

CZ — Nós, de vez em quando, conversamos a propósito do problema da

visualidade brasileira e de sua relação com a tradição lusitana. Existem alguns fatos óbvios

— Camões, por exemplo — que dão à linguagem escrita uma dimensão que a visualidade

não tem, na cultura portuguesa. O senhor acha que a relação dos portugueses com a plasticidade

de um modo geral é uma coisa fraca, difusa, ou que ela tem uma expressão e essa

expressão é coroada pela obra do Aleijadinho?

LC — A visualidade plástica portuguesa não foi fraca. Pelo contrário, foi

muito forte. Sente-se isso muito bem, inclusive — ou principalmente — na arquitetura

popular. Acho que o Aleijadinho foi um aboutissement da evolução da arte arquitetônica,

das artes vinculadas à arquitetura no Brasil. Considerando as igrejas dele, foi uma espécie

de volta ao partido das igrejas iniciais brasileiras, daquelas primeiras igrejas lá do Nordeste,

que eram muito singelas e consistiam nisso: uma porta de entrada única, duas janelas no

coro e um óculo, aquele frontão reto, aqueles cunhais, um esquema muito singelo. Eram

igrejas claras porque não tinham corredores e as janelas eram vazadas:- claras, brancas,

alegres. Com o correr do tempo, esse partido foi evoluindo. Nas fachadas as portas começaram

a se multiplicar: três, cinco, até sete portas, e janelas também, muitas janelas.

Surgiram os corredores laterais, escurecendo a nave. Isso se vê tanto na Bahia como no

Rio de Janeiro. Em Minas voltou-se a esse partido primário.

JC — O senhor não acha que isso seria devido às condições locais, ao fato de

Minas...

LC — Estar começando...


36 GÁVEA

JC — Na verdade, no primeiro momento, era uma província muito pobre.

LC — Isso também. Era uma provincia nova e voltou àquela singeleza. Então

as igrejas do resto do país foram engordadndo plasticamente, perdendo a consistência

original, a simplicidade, aquela coisa bonita e simples. Em Minas retornaram ao partido

antigo. As primeiras igrejas de pau-a-pique são todas desse tipo: torres revestidas de telhas,

mais singelas, uma porta, duas ou no máximo três janelas e o óculo na empena. Esse

foi o partido que o Aleijadinho retomou, mas desenvolveu de uma maneira que criou uma

série de embaraços aos construtores da época. Uma igreja que serve de exemplo, porque

existem os dados, é a de São Francisco de São João dei Rei, que é uma espécie de segunda

versão da igreja de São Francisco de Ouro Preto, esta sim a obra-prima dele, sua obra

máxima, construída em 1766. Em 1774 os franciscanos de São João dei Rei resolveram

fazer uma igreja também e pediram um projeto ao Aleijadinho. Ele apresentou um risco

Igreja de São Francisco de Assis

São João dei Rei, Minas Gerais

Risco original aprovado a 8 de julho de 1774

Foto: Vosylius

Páginas seguintes:

Fachada e lateral da mesma igreja

Fotos: O. Braga/Pró-Memória


Lucio Costa sobre Aleijadinho 37

que felizmente sobreviveu em parte. Esta expressão — risco — era sistematicamente

usada na época e correspondia á expressão inglesa design. Nesse risco ou projeto ele

propõe uma série de coisas que o construtor, aquele que ficou encarregado das obras —

que era um mestre carpinteiro que fazia também acabamentos em escultura, cantaria, essa

coisa toda — começou, primeiro, a achar que a coisa era complicada, e, segundo, a querer

fazer inovações por conta própria, a querer mostrar que também podia inovar, e sempre

desastradamente. E engraçado esse confronto entre a concepção e o que resultou.

Verifica-se, por exemplo, uma coisa que é típica. As igrejas metropolitanas,

portuguesas, têm, como é natural, a nave mais alta que a capela-mor. O telhado da nave,

de duas águas, fica então entalado entre duas empenas: uma no arco cruzeiro e a outra na

fachada. Quando você olha dos fundos, vê um frontão, entre a capela-mor e a nave, e

outro, na fachada. Mas o Aleijadinho — a tendência dele era a graça, ele foi o Oscar da


■-----------------------------

38

GÁVEA

época — queria fazer a coisa com mais graça, mais elegância. Queria sempre adoçar certos

planos e então, nos fundos da igreja, na capela-mor, ele adotava sistematicamente uma

terceira água, a tacaniça, como nós chamamos. O telhado de quatro águas tem duas águas

triangulares e dois trapézios — duas águas maiores e dois triângulos. É o que o francês

chama de croupe, garupa do cavalo. Então o Aleijadinho, em todas as suas igrejas, inclusive

na de São Francisco de São João dei Rei, adota a tacaniça. Quer dizer: na parede

correspondente ao arco-cruzeiro, em vez de ter uma empena, ele tem um telhado triangular,

uma água. Com isso o português Cerqueira não se conformou e eliminou do projeto,

botou a empena com os coruchéus. E assim várias coisas, muitos desacertos ao longo

de 20 anos. Mexeu nas torres também. No Carmo de São João, por exemplo, ele quis

chanfrar as torres e botou as sineiras nas quinas. Ficou assim, uma coisa esquisita, que o

Aleijadinho jamais teria feito.

Igreja de São Francisco de Assis

São João dei Rei, Minas Gerais

Foto: O. Braga/Pró-Memória


Lucio Costa sobre Aleijadinho 39

Esse desencontro do arquiteto formado em atelier —o arquiteto-artista

propriamente — com o arquiteto formado no canteiro de obras, nessa tradição medieval,

como estávamos falando, ficou muito bem marcado nas obras do Aleijadinho. Ele se permitia

soluções inoyadoras e os construtores da época sempre reagiram e procuraram

evitar.

JC — O processo dele parece sempre ter sido o de modificar um determinado

modelo à sua maneira...

LC — Assim a fachada em planos, como a de São Francisco de Ouro Preto:

sentiu a necessidade de trazer o corpo principal à frente, criando então, em planta, dois

chanfros, com aquelas colunas marcando bem os pés direitos — avançou o frontispício

propriamente dito. Daí a ênfase com aquele entablamento partido, a presença daquela

massa forte, sempre para criar movimento. É o que também acontece no chafariz do Padre

Igreja de São Francisco de Assis

Ouro Preto, Minas Gerais

Foto: P. Lobo/Pró-Memória


40 GÁVEA

Faria, que foi a primeira coisa que documentadamente (por mim) ele fez. O chafariz normal

era aquele paramento com dois cunhais de pedra, coroados por dois coruchéus ou

pirâmides, tudo num plano só. O que fez ele, logo de saída, menino ainda, quando deu o

risco para o pai: achando aquilo muito sem graça, em vez de colocar os coruchéus nas

prumadas das pilastras, criou dois consolos laterais, recuados do plano da fachada, e botou

os coruchéus em cima desses consolos. Dinamizou a composição estática inicial, e isso foi

exatamente o que aconteceu na fachada de São Francisco. Eu fiz até um croqui para explicar

esse confronto fundamental.

JC — E o problema do espaço na obra do Aleijadinho? No volume e no

plano, nas fachadas, até mesmo no movimento do telhado, a articulação é barroca, dinâmica.

Mas e o espaço? Têm-se afirmado que no Brasil não existe espaço barroco, no estrito

senso.

Chafariz do Alto da Cruz do Padre Faria

Ouro Preto, Minas Gerais

Foto: Pró-Memória

Lucio Costa

Croqui


d

t

V


42

G Á V EA

LC — Inicialmente era um barroco muito contido, sem essa coisa de

movimento, do espaço que vai acontecendo... Porque a característica do barroco no espaço

é o espaço que vai acontecendo, que vai se abrindo;..

RB — Não faltava exatamente no Brasil um espaço renascentista, também

estrito senso, para que pudesse ocorrer um espaço barroco?

JC — A tradição portuguesa é a dos espaços estáticos...

RB — Mas conscientemente, articuladamente?

LC — Correto. O barroco “consciente” veio depois, com Borromini, mas

já é, na época, o aboutissement e não aquele barroco pesado, o barroco inicial. Os alemães,

no Sul da Alemanha, é que interpretaram isso muito bem, em Wies, Ottobeuren. E é

aquilo que Le Corbusier fez, sem querer — como o Bourgeois Gentilhomme — na capela

de Ronchamp, que é barroca sem querer, porque todo francês tem horror a barroco,


Lucio Costa sobre Aleijadinho 43

atribui sentido pejorativo à expressão. Mas no caso de Ronchamp ele fez exatamente isso.

O que caracteriza o espaço renascentista é que você o compreende imediatamente. A

Capela dei Pazzi, por exemplo, que é uma beleza, você entra e é uma geometria, um

negócio claro, limpo, você aprende tudo, aquela clareza. No caso de Ronchamp, não.

Aquilo vai acontecendo, os espaços vão surgindo, você entra e vai sendo levado. Há aquela

expressão do próprio Corbusier — ele tinha o dom da palavra exata — espace indicible, espaço

indizível. É uma obra-prima, o barroco está todo ali, nesse espaço indizível.

RB — Mas isto é uma polêmica? Saber se há um espaço barroco no Brasil?

LC — No Brasil foi sempre contido, sempre. O Aleijadinho, pòr exejnplo,

parede “ mole” , ele não fez. Ele fez aquela frontaria movimentada de São Francisco, mas a

nave é reta. Agora o Cerqueira, que estava fazendo a de São João dei Rei, quis introduzir

essa novidade e abaulou as paredes laterais, abarrocou além da conta.

JC — Sem a consistência do Rosário de Ouro Preto, que tem todo aquele

movimento...

LC — Essa referência ao Rosário, justamente, eu acho importante. Sempre

vi duas correntes distintas. Uma, de arquitetura mais erudita, mais vinculada ao barroco,

aobarrodo italiano, que pegou tanto na Alemanha e na Europa Central. Você tinha, aqui

no Rio, São Pedro dos Clérigos, em Minas também, São Pedro, em Mariana, Rosário em

Igreja de São Pedro dos Clérigos

Rio de Janeiro

Foto: Malta/Pró-Memória

Página anterior:

Igreja do Rosário dos Pretos

Ouro Preto, Minas Gerais

Foto: P. Lobo


44 GÁ VEA

Ouro Preto, elas formam uma linha que não tem nada a ver com a evolução que deu como

aboutissement São Francisco de Assis de Ouro Preto. A igrejinha da Glória está mais nessa

segunda linha, que é mais lusitana, tem raízes; ela é abaulada e tudo, mas tem uma força

bem portuguesa, é uma obra-prima. É essa outra linha que num desenvolvimento normal

do barroco teria tido como conseqüência, na mão de um arquiteto de gênio como foi o

Aleijadinho, aquilo que ele fez, independente da primeira corrente, mais acadêmica.

Isso eu acho muito claro. Inclusive até estava armando uma teoria — a gente

fica apaixonado, começa a querer explicar —, tudo estava se encaixando tão bem e eu

tinha como um dos exemplos-base a igrejinha de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, aquela

igrejinha muito bonita e riquíssima no interior, com a fachada chanfrada e uma torre singela.

Então você tem: Glória do Outeiro, N. Sra. do Ó, de 1701, portanto anterior, que

pegou moda em Minas — há várias capelas assim, torre central e fachada chanfrada — e

tudo isso se enquadrava bem no raciocínio que eu tinha montado. Mas, de repente, ve-

rifiquei o meu equívoco, em conversa com o Sylvio de Vasconcellos, que tinha feito obras

na Capela do Ó, e quando fui lá constatei, de fato, que a fachada inicial era aquela reta, de

capela normal mineira. Então, no interior, você vê que a capela acabava ali e só quando

prolongaram o coro foi que fizeram o chanfrado. Quer dizer: foi uma coisa a posteriori. Foi

esse gosto que o Aleijadinho lançou que estavam procurando adaptar inclusive às coisas

singelas.


Lucio Costa sobre Aleijadinho 45

Fiquei tão desanimado que larguei a papelada. Mas, no fundo, apesar desse

incidente “ lamentável” , voltando agora a pensar nisto, a frio, depois de mais de 20 anos,

acho que ainda é verdade. Quer dizer, o Aleijadinho — São Francisco de Ouro Preto —

teria ocorrido sem nada de Borromini. Foi tudo uma evolução natural de um partido singelo

que foi criado desde os primórdios do Renascimento, evoluiu no Maneirismo até o

Barroco e acabou no Rococó, nas mãos de um artista genial que teve uma formação privilegiada.

O pai era um arquiteto-carpinteiro, depois mestre-de-obras em geral. O tio também

era arquiteto-carpinteiro, que fez aquela coisa linda, o teto da Igreja do Pilar. Era

gente muito qualificada. E tinha o João Gomes Batista, que foi professor do Aleijadinho e

introduziu nele o tal gosto francês — “desenho irregular de gosto francês” — expressão

que Bretas transcreve lá do tal Vereador que assim descreve os novos entalhes. Ele está se

referindo ao Luiz X V , ao Rococó, ao Rocaille. Batista era um desenhista emérito. Era

Capela de Nossa Senhora do Ó

Sabará, Minas Gerais

Foto: R. Mor gado/ Pró- Memória

Página anterior:

Capela de Nossa Senhora da Glória

Rio de Janeiro

Foto: M. Gautherot/Pró-Memória


46

GÁVEA

ligado à corte, fazia medalhas, cunhava real. Tendo cometido qualquer irregularidade, foi

então mandado para o Brasil e ficou lá em Minas. Ele foi o verdadeiro mestre do Aleija-

dinho no sentido artístico, não só de desenho, mas nesse gosto novo que estava ocorrendo.

Tudo isso foi muito importante. O Aleijadinho foi muito bem servido de

todos os jeitos e com seu talento excepcional, ele aconteceu.

RB — Eu estava lendo dois artigos em Sobre Arquitetura, um sobre

Aleijadinho e outro onde o senhor compara o Aleijadinho e o Niemeyer. No primeiro artigo

o senhcjr diz que o Aleijadinho seria marginal a essa tradição do partido singelo.

LC — Exatamente. É um perigo essa coisa de fazer crítica, o sujeito tem que

estar informado porque senão só diz besteira, é um risco. Isso foi em 1929. Eu voltei da

Europa em 1927 e depois fui a Minas. Passei um mês no Caraça e depois estive muito tempo

em Ouro Preto. Já sendo formado em arquitetura, não me lembro de ter visto nessa

época aquela beleza que é o retábulo de São Francisco, um hino de glória, uma coisa fantástica

em matéria de talha. Até hoje fico pasmo diante disso. Naquela época arquitetura

colonial, para mim, era da fase anterior ao Rococó, esse negócio de Rococó eu achava uma

frescura. Arquitetura, dita colonial, que me apaixonava era até 1700 e poucos. São Bento,

por exemplo, eu achava uma beleza. Toda essa arquitetura mais severa, mais renascentista

e maneirista, ligada ao Barroco da fase inicial, essa eu achava séria, a outra muito rebuscada.

E o resultado foi que estive em Ouro Preto, olhei aquelas coisas todas e nada. Como

é que pode? Como então fui me meter a fazer crítica, a dizer o que é certo e errado? E

preciso estar informado. É como o caso do semi-analfabeto, se você não sabe o beabá, então

não adianta querer escrever uma página.

RB — Depois, no outro artigo, o senhor introduz o Aleijadinho na tradição,

e aí é muito interessante, quando o senhor fez a analogia da obra dele com a de Oscar

Niemeyer.

LC — É a inovação...

RB — É o mesmo raciocínio, antes ele não entrava porque rejeitava aquele

partido singelo, depois passa a ser um exemplo porque faz uma operação análoga à do Oscar

Niemeyer.

LC — Ele se instalou no partido singelo e floriu, desabrochou. O Oscar, no

caso dessa arquitetura moderna que era muito puritana, também introduziu a graça, o

charme, essa intenção não só de elegância, mas de graça. Porque a elegância já havia, o

Mies van der Rõhe já tinha entrado com a elegância.

RB — Seria essa a — palavra horrível — brasil idade? O senhor acredita que

essa seja uma constante nossa?

LC São circunstâncias, em épocas diferentes, que tiveram os dados um

tanto aproximados. Calhou de ter aquela pessoa. O segredo de todas essas coisas é a pessoa

que está lá no momento...

CZ O senhor não acha que a revelação que foi a arte colonial para a sua

geração tendeu a privilegiar uma visualidade baseada no Barroco e no Rococó como substrato

de uma visualidade brasileira?


Lucio Costa sobre Aleijadinho 47

LC A descoberta do colonial naquela época foi uma coisa completamente

errada, foi um movimento inteiramente falso.

CZ — O senhor fala do neo-colonial?

LC — Sim. O neo-colonial foi um equívoco e a verdadeira descoberta da arte

colonial se deu depois, com a criação do Patrimônio Histórico. Quer dizer, o Patrimônio

Histórico criado naquela época — 1936 — foi que abriu as perspectivas do que havia de

significativo de fato na arte, nessa nossa tradição colonial toda. Existe, perfeitamente,

muita coisa assimilável para a nossa arquitetura contemporânea. Mas esse movimento, o

neo-colonial, era uma salada que misturava arquitetura religiosa com arquitetura civil.

Só comecei a aprender a admirar Aleijadinho, essa fase de nossa arquitetura,

depois do Patrimônio, quando comecei a levar isto a sério, a estudar. Antes, naquele

artigo de 1929, eu tinha falado de uma forma leviana, coisa de rapaz. Por isso acho um

perigo certas coisas de gente moça que não tem conhecimento e fala com aquela suficiência,

como se entendesse de tudo. Todo estudantezinho tem uma atitude assim, de modo

que até você perceber o que é que ele sabe para poder ajudá-lo ou para conversar com ele,

precisa antes vencer essa atitude, que é assim como que uma característica da juventude

em geral. O fato é que são coisas tão passadas...

Mas comecei a estudar a sério e a perceber o que tinha de significativo na

arquitetura tradicional nossa, portuguesa, seja na época da Colônia, seja na do Império,

que seria um alimento ótimo para o arquiteto de hoje se ele soubesse tirar partido dela e

não pretendesse macaquear apenas por modismo, de forma inteiramente inadequada.

CZ — Mas essa retomada através do Patrimônio, aí já havia o movimento

moderno implantado na arquitetura também.

LC — Essa é que foi a grande qualidade do Rodrigo Mello Franco de Andrade:

ter botado no estudo das coisas antigas os mesmos elementos interessados nas

coisas do presente. No caso, era a minha presença, a do Reis, de todos. Era um grupo interessado

já nessa arquitetura contemporânea, nova, e ao mesmo tempo interessado no

passado. É impossível separar. Cada coisa na sua época e no seu lugar, mas sem esse antagonismo

entre passado e presente.

RB — Notei que o senhor dizia que entre essa tradição â qual pertence

Aleijadinho e o momento em que o artigo estava sendo escrito havia o período opaco de

nossa arquitetura, e aí o senhor inclui o “ modernoso” que já estava se implantando. No

século X IX não há uma inteligência específica da arquitetura brasileira?

LC — Foi aquela ruptura trazida pela Missão Francesa. Grandjean de Mon-

tigny introduziu o neo-classicismo numa época em que justamente esse barroquismo todo

estava nas últimas, já não tinha mais fôlego. Foi uma violência porque a pureza do desenho

de concepção acadêmica do Grandjean de Montigny é tão contraditória com os remanescentes

da tradição barroca. A Igreja do Carmo de São João dei Rei estava construída até o

entablamento, já tinha aquela portada do Aleijadinho, e eles estavam sem saber como arrematar

o frontão e as torres. Então escreveram ao arquiteto português anterior a Montigny

(Domingos?), pedindo opinião sobre como fazer, e para isso mandaram o risco da obra


48

G Á V EA

já feita. Esse risco, de fato, é muito bisonho, mas de uma graça excepcional e está no

Museu de Ouro Preto. É um risco mostrando a fachada, aliás muito bonita porque usaram

aguadas num tom rosado para a cantaria e azulado para a pedra-sabão, tudo com muita

candura, mas muito fiel, e está tudo lá, a porta, o óculo, a fita, desenhado como se fosse

por um menino de colégio, numa interpretação bisonha. Isso talvez tenha contribuído,

mas o fato é que em seu parecer o arquiteto erudito, o português neo-clássico não teve

dúvida e disse: só há uma solução, derrubar tudo e fazer de novo. E era a portada do

Aleijadinho!

Isso ocorreu com a introdução do neo-classicismo, mas depois houve uma

espécie de casamento entre essas duas tradições e começaram a surgir casas dentro do espírito

bem neo-clássico, com platibandas; em meados do século começaram a importar

azulejos e cerâmica do Porto, estatuetas, pinhas. Então as casas neo-clássicas começaram a

ser revestidas com panos de parede de azulejos. O risco era todo neo-clássico. Mas havia o

pano de azulejos, as estatuetas e aquelas coisas todas, de modo que com isso o neo-clássico

se adoçou. Paralelamente, os beirais, que eram de telhas de barro, passaram a ser feitos em

telhas de louça azul e branca do Porto. Quando estive no Porto, procurei casas com esses

telhões e só vi quatro ou cinco, era tudo para exportação, vinha tudo para cá. Aqui, quando

eu era moço, havia uma quantidade desses beirais... Então conviveram as duas soluções,

porque há, do mesmo período, com a mesma data, casas com telhado à vista com

beirais de louça e casas com telhados escondidos por platibandas. Uma tem louça azul no

beirai, a outra tem azulejo na fachada, os cunhais se arredondam também, de modo que se

criou uma simbiose muito interessante, ficou muito simpático. Até que foi morrendo.

Com a República veio a outra ruptura, a do ecletismo. Hoje, num erro de interpretação,

chamam qualquer porcaria de eclético. Não é nada disso, arquitetura eclética é uma coisa

muito séria. A arquitetura eclética é simplesmente arquitetura acadêmica, arquitetura de

estilo histórico aproveitado, conforme o programa em causa, para outra época. Se o

programa era igreja, o arquiteto fazia estilo gótico ou barroco. Se era uma coisa festiva,

recorria ao Luiz X V , ao Luiz X V I e assim por diante. Casa de campo, estilo inglês. Isso é

que é eclético e não essas coisas que chamam de eclético mas são um eclético bastardo.

Não interessa querer valorizar o bastardo só porque é engraçado. A Avenida Rio Branco

foi o exemplo da arquitetura eclética, com todas aquelas construções do Heitor de Mello e

de outros arquitetos. O Museu, o Teatro, a Biblioteca, o Derby, a arquitetura acadêmica é

que dava então a feição do Rio de Janeiro. Hoje pouca coisa sobrou.

Depois houve o neo-colonial e aquela arquitetura marajoara, que o Memória

fazia. Não só ele, mas também o Edgar Vianna, que se formou em Filadélfia e introduziu

aqui o estilo “Missões” — Mission Style —, que ele realizava com muito apuro.

Depois, também o Vianna embarcou no marajoara, uma coisa tão falsa!

RB — De qualquer forma, faltou à pintura brasileira a possibilidade de uma

releitura do passado, tão útil quanto esta que serviu para a nossa arquitetura moderna. De

fato, havia a tradição de uma arquitetura colonial que, bem ou mal, era uma referência.

Mas a pintura moderna tinha que se fazer diretamente contra a Academia, e não possuía


Lucio Costa sobre Aleijadinho 49

nenhum modelo. Na questão específica da escultura seria preciso investigar em que

medida o Aleijadinho poderia sofrer uma leitura modemizante. O Sérgio Camargo acha

que sim, mas na verdade é uma constatação a posteriori de uma afinidade, que no caso da

arquitetura a cultura brasileira teria tido mais condições de absorver.

LC — Na escultura acadêmica e na pintura também havia muita coisa

bonita, dentro daquele sistema todo.

RB — Talvez não tenha havido a leitura correta na hora...

LC — O próprio Bernardelli — outro dia o irmão do Carlos Leão me mostrou

uma cabeça feita pelo Bernardelli, que a deu à Dona Tita, mãe dele. Uma obra-prima!

Uma cabeça pequena de bronze, uma escultura cem por cento escultura, espantosa, bem

construída, densa. E o Cristo com a Adúltera, aquela coisa impressionante? Tudo isso

vocês menosprezam demais. Uma mania de menosprezar que eu acho uma coisa incrível!

RB — Não somos nós não, é histórico!

CZ — A culpa é da sua geração!

LC — Pois é, o negócio de desarrumar e não deixar nada em troca é a pior

coisa que há!

JC — Dr. Lúcio, o senhor costuma repetir que desarrumou a Escola e não

deixou nada em troca, e estamos exatamente discutindo o problema da pintura e da escultura

no Brasil, que não se valeram de uma releitura do passado, como aconteceu com a

nossa arquitetura, o que a tornou tão singular no panorama da arquitetura moderna mundial.

Isso foi uma contribuição fundamental sua, que eu reputo como a base efetiva de nossa

arquitetura moderna. Para mim é a pedra de toque de tudo o que aconteceu depois. Me

parece que o senhor, a partir da teoria corbusiana, do espaço de manobra que ela permite,

fez a releitura da arquitetura mineira a partir de sua lógica intrínseca, de sua construção,

da relação funcional de seus elementos. Foi por aí, pela idéia, que o senhor se apropriou

dessa arquitetura antiga, e não pela forma, pelo desenho, como tinha sido o caso do neo-

colonial.

LC — Daí a consistência...

JC — Então, longe de não deixar nada em troca, o senhor exatamente

retomou a tradição daquele partido singelo ao qual se referia antes. O senhor reviveu o

processo que deu o Aleijadinho. Em sua obra o senhor retoma isso, mostra o caminho.

LC — Exatamente, isto é fato... Há uma definição de arte muito boa, não

sei se você conhece, que me marcou muito. É daquele Clive Bell, casado com a irmã da

Virgínia Woolf, ou com a própria, ele tinha uma citação que achei muito verdadeira e

dizia: “Art is significant form ". Arte é forma com significação, com carga. Só isso. Porque

tem formas que não são nada e tem formas que têm carga. O que caracteriza a obra de

arte é essa significação, essa carga que é só você descobrir que ela explode. Está contida,

você sente que tem um troço ali que é como a energia atômica, se você bolir, pode explodir.

Esse livro do Clive Bell quem me deu foi uma das filhas da senhora Blank, que era

amiga do Manuel Bandeira. Eu o estava lendo quando fui preso na Revolução de 30, porque

não tinha me apresentado na mobilização geral decretada pelo Washington Luís.


50 GÁVEA

Como eu, teoricamente, tinha ficado doente em Roma, do pulmão — depois verificou-se

que não era nada — então aleguei esse negócio para não me apresentar. Nessa época eu já

estava casado — aliás, essa viagem demorada a Minas e ao Caraça, depois que voltei de

Roma, foi ainda nessa balda de ter estado com algum problema e eu queria me casar com

Leleta — então estava casado e morando em Correas, na casa do meu sogro. Levei muita

tralha, até móveis, e me instalei lá em Correas, numa parte da casa. Um belo dia, estava

almoçando com Leleta, com muito requinte, flores, rosas, o ambiente inteiramente

preparado, quando apareceu — em Correas! — uma junta de três médicos para constatar

se eu estava de fato com problemas pulmonares. Eles até ficaram sem jeito diante do ambiente

e por interromper o almoço, mas eu interrompí e fui para o quarto. Lá me pediram

para tirara camisa e começaram com aquele trinta e três, trinta e três, batendo e auscultan-

do, depois foram embora. Aí apareceu um sargento para me acompanhar até o Rio, ao

Quartel General, tudo ligado a essa história. Aqui o médico que estava de serviço era o irmão

de uma moça muito conhecida — Olga Praguer Coelho — que tocava violão e morava

em Laranjeiras, e ele até foi muito gentil, carimbou o que precisava. Então veio o Presidente

Vargas e me botou na Escola de Belas-Artes como diretor.

JC — Foi o prêmio por não ter se alistado!

LC — Nunca vi como dão uma importância danada ás coisas mais insignificantes,

aqui na administração. Imagine mandar três médicos a Correas, uma junta!

Que falta eu ia fazer? Como se a minha ausência fosse facilitar a tomada do Palácio

Guanabara...!


Lúcio Costa sobre Aleijadinho 51

CZ — Dr. Lúcio, e Congonhas? O que o senhor nos diz daquele espaço?

LC — Daquele conjunto todo. Porque mesmo um critico importante como

o Robert Smith, que estudou tão bem a arquitetura portuguesa, falando do adro de Congonhas,

trata das estátuas como ornamentos. Ele imaginou aquilo como se já houvesse o

adro e o Aleijadinho fosse chamado para botar aquelas figuras para valorizá-lo. Não percebeu

que o adro todo é uma composição. O José Reis escreveu um artigo, numa Revista

do Patrimônio antiga, mostrando isso, que o adro é um conjunto. A planta do adro é uma

composição estupenda, linda. O entrosamento daquelas escadas, aquelas curvas, é perfeito,

é um todo, e as figuras são um elemento desse todo. De fato, vendo a documentação

anterior, havia um arrimo provisório definindo o adro. Aquilo tudo foi acrescentado, e é

obra do Aleijadinho: o escadório, as figuras, aquele diálogo, aquela solidão lá em cima. E

uma coisa fantástica. E pensar que um sujeito estropiado, que tinha que ser carregado, fez

aquilo tudo com os auxiliares dele, tirando da pedra, isso eu acho fantástico, talhando a

pedra, não é como escultura de molde.

Igreja de Bom Jesus do Matosinho.

Congonhas, Minas Gerais

Foto: P. Lobo/Pró-Memória


GÁVEA

CZ — O senhor considera Congonhas e São Francisco como as obras

máximas dele?

IC — A obra máxima dele é exatamente a Igreja de São Francisco de Assis

de Ouro Preto. A de São João dei Rei é uma repetição fardée. parece que é uma senhora

que quer se embonecar, feita 20 anos depois, nas circunstâncias todas que já comentamos.

A obra-prima é São Francisco, a capela, o interior, o exterior, a igreja toda. Internamente

ela não foi de todo acabada, as balaustradas ainda são as provisórias, os altares laterais

foram feitos após a morte dele, de uma forma muito sumária. É uma igreja que não teve os

acabamentos finais. O coro que não existe está em Sabará, o de São Francisco é provisório.

O que é engraçado é que ela tem uns arcos, na fachada lateral, uma loggia, e essa loggia foi

uma coisa aposta, não é projeto dele. Era o seguinte: um simples terraço cobrindo o corredor

lateral. Existe não o risco, mas especificações minuciosas para a execução do guarda-

corpo do terraço em pedra-sabão. Ele descreve os pilaretes, os coruchéus, numa minúcia

extraordinária. Pois bem, ainda em vida dele, em 1808, acho que por infiltrações do terraço

para o corredor de baixo, resolveram cobrir o terraço, e você olhando agora aquela

loggia, vê a cobertura mordendo a pilastra interna e o capitel, aquilo que era o arremate,

Igreja de São Francisco de Assis

Ouro Preto, Minas Gerais

Foto: E. Hess/Pró-Memória


Lucio Costa sobre Aleijadinho 53

separando o corpo da sacristia e do consistório, do corpo da igreja, com um terraço, uma

galeria lateral descoberta.

CZ — O senhor dizia que o Aleijadinho foi um expoente máximo dessa...

LC — Dessa evolução da arquitetura portuguesa no Brasil.

CZ — E da própria arquitetura portuguesa, talvez?

LC — O ponto máximo da arquitetura portuguesa da época aconteceu

através da obra do Aleijadinho. Eles não têm nada lá, desse período, que se compare em

qualidade.

CZ — E como o senhor situa o trabalho do Aleijadinho? Como culminância

de todo o processo civilizatório do século XVIII brasileiro, em Salvador, Minas, Rio,

Olinda? Como o senhor o veria nesse conjunto em termos plásticos?

LC — Como exatamente o que estava faltando. Eu, na minha época, quando

moço, só olhava Bahia, Pernambuco e Minas na fase anterior. E isso que estava faltando,

esse aboutissement, foi uma coisa que felizmente ocorreu através do Aleijadinho, senão

ficaria sem conclusão, sem remate. E esse fim, voltando àquele partido original, aí fecha, é

a retomada daquela singeleza, das igrejas claras, igrejas alegres, dedicadas a Nossa Senhora,

àquela idéia de louvor. Todo mundo diz: o povo vivendo miseravelmente e as

igrejas gastando fortunas, tanto ouro, aquelas talhas, aquela coisa toda, sem compreender

o verdadeiro sentido daquilo — a idéia de louvor. O sujeito quando vai louvar quer fazer o

máximo, dar o máximo, o mais rico, o melhor, o mais apurado, para aquela idéia, que é

uma coisa tão pura, tão elevada, e que tem afinal, socialmente, uma função extraordinária

porque é a casa do povo. Cada igreja dessas no interior de Minas, Pernambuco, Bahia, era

a casa do povo e qualquer pessoa que está na ma entra e fica lá como se estivesse em casa,

se instala ali, fica conversando, aquilo lhe pertence. Eu até me lembro, quando estava no

Caraça, desci a serra de burro para ir até Catas Altas, que é bem embaixo do Caraça,

cheguei lá e lá estava aquela matriz, linda, e não tinha ninguém, só uma velhinha sentada,

naquela conversa dela, naquele diálogo dela com Nossa Senhora e o Senhor. Ela mora num

casebre e dispõe daquele Versailles para o seu uso pessoal, aquilo é dela\ Enquanto os

americanos, na colonização pragmática, estavam empenhados em enriquecer, faziam

igrejas bem singelas para não perder tempo e fabricar dinheiro, nos aqui fazíamos aquilo e

ficou esse acervo fabuloso. Eu, que não sou religioso, acho isso lindo, uma beleza, compreendo

bem essa dádiva de louvor.

RB — E o papel da Catedral de Niemeyer? A Catedral de Brasília, por um

lado, teria essa questão do Aleijadinho, da obra de arte, mas por outro...

LC — Embora ninguém vá lá para louvar, o gesto estrutural é de louvor.

CZ — Na introdução à biografia de Bretas, o senhor fala de uma possível

vinda do Aleijadinho ao Rio...

LC — Esse é um ponto que acho importantíssimo. Quando ele apresentou o

risco para São Francisco de São João dei Rei, já tinha a igreja dele de São Francisco de

Ouro Preto — que começou em 1766 — praticamente de pé. Já tinha as janelas do coro, a

portada de entrada, tudo pronto. Ai em 1774 ele vai a São João levar esse risco da igreja de


54

GÁVEA

São Francisco. Ora, nesse risco, a portada é uma portada que não tem ainda o coroamento

que ficou clássico nas portadas dele, aquele medalhão oval com a coroa em cima e os

querubins nos montantes laterais. A ordem carmelita — de N. Sra. do Carmo tem

como símbolo a coroa real com dois anjos. Uma coroa com dois anjos tem volume, um

volume sacado, que conta e arremata, como na Igreja do Carmo em Sabará, que foi a

primeira portada que ele fez. A porta é singela mas tem esse coroamento bonito, forte. No

Carmo de Ouro Preto também. Agora, quando se trata da Ordem dos Franciscanos, fica

um problema porque o símbolo são dois braços e duas pernas cruzadas e a coroa de espinhos.

O risco que ele apresenta em São João dei Rei, que é belíssimo, uma preciosidade

de delicadeza, de desenho, é meio frágil quando se considera as portadas dele posteriores.

Então, o que aconteceu: ele levou esse risco e quando estava em São João aproveita e vem

ao Rio de Janeiro porque estava com a idéia de conhecer a portada em pedra de lioz que

tinha vindo de Lisboa para a Igreja do Carmo da Rua 1? de Março. Vocês não têm lembrança

talvez, todo mundo vai à missa de fulano que morreu mas ninguém presta atenção

na portada. Essa portada é espetacular. Volta e meia, passando lá, fico parado olhando: ela

é imensa, em pedra calcária. Na época dele a igreja nem tinha torre, só aquela fachada e

aquela portada avultando na paisagem carioca. Foi um sucesso, o resto todo era relativamente

modesto, de outra escala. Isso avultava, era uma coisa famosa e ele como homem

do ofício — estava fazendo portadas continuamente — teve então essa idéia de vir ao Rio.

Portada, Igreja do Carmo

Ouro Preto, Minas Gerais

Foto: O. Braga/Pró-Memória


Lucio Cosfa sobre Aleijadinho 55

Sabe-se que esteve no Rio, o que é perfeitamente lógico, então tudo se enquadra, tudo se

encaixa. Ele chegou, olhou aquela portada e disse: “ Vou fazer o seguinte: tenho as armas

de São Francisco, agora eu acrescento o medalhão oval de Nossa Senhora e então ponho a

coroa dela em cima e arremato a minha composição” . O risco de São João é de 1774,

julho, e em outubro ele volta a Ouro Preto. Levou quatro meses. Se tivesse voltado de São

João dei Rei para Ouro Preto, já estaria lá, e ele levou quatro meses. Foi o período em que

esteve aqui. Ele chega a Ouro Preto e toma imediatamente a seguinte providência: a porta

dele. de São Francisco, já existia, mas era muito mais modesta. De tão apaixonado com a

idéia nova, consegue que os irmãos todos o apóiem e manda, primeiro, afastar as janelas

do coro que já estavam prontas, mas muito próximas, para dar campo ao desenvolvimento

da portada nova. Depois manda quebrar a ombreira da porta. No risco de São João ele fez

esse pormenor: chega a um certo ponto, dá uma quebra, toma impulso para compor o res-

Portada, São Francisco de Assis

São João dei Rei, Minas Gerais

Pormenor do risco aprovado

em 8 de julho de 1774

Foto: Vosylius


56

GÁVEA

to em vez de deixar a ombreira reta, como no Carmo, em Sabará, nas portadas primitivas.

Ele quis aplicar isso na portada que estava lá, essa contração. Em vez de ser reta ela faz

uma contração, como um cavalo quando vai pular um obstáculo — contraiu e saltou, saltou

e explodiu. Então ele conseguiu, na obra já feita — disso há documentos escritos —,

desmanchar as ombreiras e as janelas do coro para dar espaço para essa coisa que na volta

dessa viagem de quatro meses ele resolveu fazer e fez. Acrescentou a Nossa Senhora sobre

as armas de São Francisco e botou os dois querubins, um carregando a cruz, e a triangulação

ficou perfeita: um triângulo equilátero com os vértices sacados, fortes, de sombras

densas, já que a coroa real dá sombra boa também. Isso foi o que ele reproduziu nas outras

portadas. É fantástico. Você, vendo aquele retrato dele — descrito pela nora —, é aquele

artista inflamado, que consegue tudo. Quando quer, não há cristão que àgüente!

RB — Nem todos, El Greco queria repintar a Capela Sistina.

LC — Que animal, com tal pretensão...! Mas isso é histórico? Deve ser

conversa... Logo ele, o genial El Greco!

RB — Não, não. Houve uma proposta. É uma loucura!

LC — Porque inventam cada coisa... Numa exposição que fizeram recentemente,

puseram que eu tinha proposto colocar a Universidade na Lagoa Rodrigo de

Freitas, como se eu tivesse feito o projeto. Isso foi uma sugestão muito engraçada, baseada


Lúcio Costa sobre Aleijadinho 57

em que havia, na época, um propósito do Almeida Gama, que foi o que aterrou a enseada

da Urca, para fazer um loteamento, aterrando aquela parte rasa da Lagoa, perto do Corte

de Cantagalo. E foi na mesma época em que se estava fazendo o projeto da Cidade Universitária

e eu me lembro que sugeri: “ Em vez do loteamento vamos botar a Universidade na

Lagoa, sobre estacas, com passarelas ligando um prédio ao outro, e com pequenas ilhas de

estar\ Uma coisa bonita, mas foi tudo conversa. E agora, nessa exposição de projetos

não executados, citaram como se tivesse chegado a haver o projeto. Tolice.

JC — Dr. Lucio, e o Valentim aqui no Rio?

LC — O Valentim foi um grande artista também. Na Igreja do Carmo, tem

a pequena porta lateral, igualmente em pedra de lioz, que é muito mais graciosa que a

outra. E possível que seja do Mestre Valentim, mas os documentos, se não me engano,

não comprovam nada. Lembra um pouco a doçura do Mestre Valentim.

Detalhe do frontispício.

Igreja de São Francisco de Assis

Ouro Preto, Minas Gerais

Foto: P. Lcbo/Pró-Memória

Página 59:

Portada, São Francisco de Assis

Ouro Preto, Minas Gerais

Foto: Pró-Memória


58

GÁVEA

JC — Como o senhor compara os dois?

LC — Um não tem o gênio do outro. Valentim é também um grande artista,

mas não tem a força do Aleijadinho. O nosso Antonio Francisco é uma tigura excepcional,

fabulosa, e tudo isso, por mais que se queira esquecer, com aquele estado de miséria

física dele. É fantástico.

JC — Talvez Mestre Valentim fosse mais “ moderno".

LC — Mais moderno e mais português. Parece que ele esteve em Portugal e

manteve aquele costume típico lá em Portugal de combinar pedra do lioz com granito.

Como ele botou na Cruz dos Militares: o capitel e a base em pedra de lioz, o fuste em

granito. Fez o mesmo no portão do Passeio Público. F’m Portugal ocorre muito misturar

lioz com granito nesse período de D. Maria.

Enfim, tanta coisa! O passado a gente despreza. Olha-se o passado como se

fosse um troço qualquer, mas quanto trabalho! Em São Pedro de Roma é isso que me espanta:

eles queriam integrar a igreja com a praça, então o Bem ini, com aquela facilidade,

dá aquele risco, aquela praça oval— como o Oscar, que dá o risco com facilidade

então

façam assim: os chafarizes, o obelisco, aquelas colunas e resulta nesse salão a céu aberto.

Mas esse risco implicava fazer 324 colunas com um diâmetro, cada uma, de mais de

um metro, dispostas em grupo de oito: quatro e mais quatro. Agora você imagina que o

risco que ele deu com aquela facilidade implicava esse trabalho: tirar da pedreira de não sei

onde aquela pedra enorme e transportá-la; não só fazer os tambores, mas ainda levar em

conta o galbo, pois há um ligeiro galbo, subir aquelas 324 colunas, botar o entablamento

em cima, depois uma balaustrada, e, não satisfeitos ainda, em cada prumada da coluna que

dá para a praça, botar uma estátua de 5 ou 6 metros com um gesto grandiloquente para

marcar essa prumada! Isso, imagine, para o papa! Que homens esses papas e esses artistas!

Eram sobrenaturais. Fazendo coisas que eles provavelmente não chegariam a ver porque ia

demorar tanto... Mas o sujeito tinha a visão e resolvia — numa penada — ‘‘faça-se” , e

pronto, está lá. E nós todos nos beneficiamos disso, na televisão, com esse papa que fala

tão bem e acolhe aquela multidão ali. Nós, graças á tecnologia, também participamos, estamos

lá. E naquela igreja, naquela cúpula, naquela praça, naquele conjunto todo, há uma

perfeita integração da arquitetura com a idéia de Papado. Você não pode dissociar uma

coisa da outra — é uma coisa só. Isso é que acho de uma força....Laços de verdade, a integração

perfeita. Quando as pessoas ficam brincando de arte é tão pueril, tão bobo, diante

dessa coisa fantástica, de força, de capacidade, de poder. É preciso muito respeito.

A conclusão que eu tiro é que deveríam ser obrigatórios os cursos de História

da Arte nas Escolas, levados a sério, e o estudo da arquitetura, principalmente. Mas

que o professor saiba transmitir certas coisas...

Tem aquele caso da minha filha na Acrópole, lá no Partenon. Ela, de repente,

estava lá, no Partenon, subiu aqueles três degraus arquitetônicos e se encostou na

coluna. E percebeu que a canelura era como um encosto de cadeira, dava certo nas costas

dela. E aí ela sentiu a coluna, aquilo subiu, ela sentiu a arquitetura e sentiu o Partenon

todo, tudo adquiriu consistência. E então ela me disse: "M as papai, eu estava habituada a


Lucio Costa sobre Aleijadinho 59

desenhar essas caneluras nuns riscos, eram uns simples riscos. Agora é que estou vendo” .

De modo que o professor tem que transmitir essa coisa fundamental. Escolher

alguns exemplos, se concentrar naqueles exemplos de vários períodos e martelar até

aquilo encaixar na cabeça da rapaziada que vai para a Escola com um ar displicente de

quem já sabe tudo, e não sabe nada. Só assim eles vão começar a perceber e a se apaixonar,

a levar a sério essa coisa que é a arquitetura. Enfim.

Entrevista concedida à Revista Gávea em 15 de janeiro de 1986.



RODRIGO NAVES

O olhar difuso

Notas sobre a visualidade brasileira

Não é novidade a pouca predisposição lusitana para as coisas visuais. Vários

críticos a indicaram e ressaltaram a desproporção entre a produção literária e plástica de

Portugal. Já em 1563, Francisco de Holanda — o primeiro tratadista português, uma espécie

de Leon Battista Alberti ibérico — , no livro Da Pintura Antiga, lamentava “ ...que

nós outros, os Portugueses, inda que alguns naçamos de gentis engenhos e spiritos, como

nascem muitos, todavia temos por desprezo e galantaria fazer pouca conta das artes; e

quasi nos enjuriamos de saber muito d’ellas, onde sempre as deixamos imperfeitas e sem

acabar” .

De par com a desconsideração ética do trabalho, a longa permanência em

Portugal das artes plásticas como artes mecânicas — consideradas atividades artesanais,

com o mesmo estatuto da marcenaria, carpintaria etc. — , sem vínculo com as artes liberais,

que monopolizavam as operações do espírito, reforçou uma atitude desdenhosa já

com certa tradição. É só com o maneirismo, em fins do século X V I, que os artistas portugueses

deixam aos poucos de ser considerados artesãos para conquistar a condição de intelectuais.

Quase um século de atraso em relação à Itália... A defasagem no entanto nunca

foi superada e de pouco adiantaria esta explicação: a Espanha teve um processo artístico

muito semelhante e todavia, a partir do século X V I, produziu quase sem interrupções

uma linhagem de artistas das mais importantes para a história da arte.

Até hoje é difícil explicar com alguma objetividade estas e outras diferenças

entre Portugal e Espanha. A constatação do desinteresse ou mesmo incapacidade lusitana

em relação às artes plásticas raramente foi acompanhada de um estudo mais detalhado das

origens e particularidades deste fenômeno. E não sem razão. Afinal, é quase como analisar

um objeto inexistente. Houvesse realmente uma história da arte portuguesa — mesmo

frágil e de pouca importância — , tudo se tornaria mais simples. Seria ao menos possível

entender os problemas que entravam um seu maior alcance estético.

A tentativa de uma espécie de “ sociologia da (falta de) visualidade” portuguesa,

por seu lado, talvez se mostrasse mais exeqüível. E igualmente inútil. Porque

tudo leva a crer que existe uma visualidade difusa na cultura portuguesa a emperrar,

paradoxalmente, o desenvolvimento de uma cultura propriamente visual. De certo modo,

é necessário praticamente inventariar, na dispersão das manifestações culturais, uma

quase lógica que unifique este olhar vago e envergonhado. E preciso analisar um emaranhado

de fenômenos — metáforas, mitos, organização do espaço, a pouca arte existente

etc. —, na tentativa de identificar esta visualidade que rechaça a sua concretização plena,

para possibilitar, por seu turno, um pensamento pouco afeito às abstrações conceituais,


62

GÁVEA

excessivamente apegado a um materialismo lírico pedestre e sempre ás voltas com imagens

que tentam remediar dificuldades teóricas.

Nô Brasil, a situação não é muito diferente. Ao contrário, parece que herdamos

boa parte da resistência portuguesa às artes plásticas. Neste artigo — na verdade

esboço de um projeto de contornos ainda pouco claros — procuro delinear rapidamente algumas

características desta visualidade difusa. Mas resolvi, aqui, para facilitar, inverter o

procedimento, ou seja, partir diretamente de um trabalho artístico — a pintura de Guignarcj

— com as conclusões obtidas na análise de sua obra, reter alguns elementos que

ajudem a caracterizar melhor o que seria, grosso modo, a visualidade brasileira.

Não desconheço os riscos que acompanham um projeto tão metido a

abraços como este. E, embora não tenha a mínima intenção de produzir mais uma escatologia

nacional, sem dúvida será preciso conviver com essa generalidade, que funcionará,

mais ou menos à maneira kantiana, como uma idéia reguladora. Porque o modo de

funcionamento do objeto a perseguir obriga a esse desenvolvimento, sem no entanto ceder

a ele. Me explico: há um excesso de visualidade dispersa verdadeiramente infiltrada no

cotidiano e na tradição do país, ao mesmo tempo em que o Brasil, até hoje, se mostrou incapaz

de criar um solo plástico minimamente sólido. Basta pensar no caráter visivo de

fenômenos tão díspares e arraigados como o messianismo ou o populismo político, a fundação

de Brasília ( “ no coração do Planalto Central” ) ou o cristianismo tão tátil do pais

para constatarmos isso. A generalidade parece ser, entre nós. a própria essência do fenômeno

visual. E como não se produz com generalidades...

A tentativa de delinear com um pouco mais de precisão este fenômeno é a

maneira que me parece mais viável para revertê-lo. Mas qualquer transformação neste

processo, não tenhamos ilusões, só será possível por meio da própria produção artística.

Guignard é um dos maiores, se não o maior, entre os pintores brasileiros

modernos. Somente a obra de Eduardo Sued, ainda longe de uma definição tranqüila e

sempre surpreendente, é capaz de fazer-lhe sombra. Não sei mesmo se o trabalho de Pan-

cetti, Segall, Volpi, Milton Dacosta e Iberê Camargo ombreia com o dele. Anita Malfatti e

Tarsila talvez tenham telas que, individualmente, não encontrem rivais entre as de Guignard,

mas não produziram, a rigor, uma obra. Em cada uma delas é possível separar,

quando muito, dez grandes pinturas, que, por mais que queiramos, apontam antes as

carências dos respectivos projetos do que etapas de sua realização. Já Guignard, além de

uma poética e uma singularidade que permeiam toda a obra — e que, se excessivamente

privilegiadas, como acontece com freqüência, acabam fazendo dele um caso excêntrico, à

margem da história da arte moderna e, portanto, mais ou menos avesso a suas demandas

, conseguiu como poucos criar uma unidade original entre espaço, superfície, tema e

textura.

E no entanto um dos nossos maiores artistas modernos é quase um primitivo...

A dissolução do espaço tradicional, em vez de conduzi-lo à superfície do suporte

por meio da substantivação da cor, faz com que sua obra fique a meio caminho, habitando

literalmente um campo pictórico em ruínas. Numa carta a Mário Manés de 1952 — trans-


O olhar difuso

63

crita no livro A Modernidade em Guignard — o pintor diz que “ na paisagem tudo que está

mais perto será mais escuro e a profundidade mais clara". Ora, essa inversão consciente

da clássica perspectiva aérea (que torna mais escuro o que está mais ao fundo), tantas vezes

praticada por Guignard, traz a clara intenção de evitar a ilusão de profundidade. Mas ao

mesmo tempo produz um efeito muito peculiar. Embora em boa parte planas, suas paisagens

formam um espaço que não se entrega imediatamente e que, ao contrário, volta-se

sobre si mesmo, criando uma impressão de amplidão. Por mais repletos que estejam de objetos,

estes quadros de Guignard não conseguem esconder uma sensação de vazio, numa

quase figuração da noção abstrata (e não-perspectiva) de espaço, tão oposta à provocada

pelas superfícies compactas da maioria da produção moderna.

Com o cubismo, cessara a relação estanque entre um espaço concebido

como mera virtualidade e objetos compactos, ilhados em sua incomunicabilidade. Convertido

num continuum, o campo pictórico submetia-se a uma reversibilidade entre espaço e

objeto, uma impregnação recíproca que dava àquele resistência e, a este, maleabilidade.

Os recursos clássicos da representação tridimensional — sombreado, perspectiva, modelado

etc. — tornavam-se desnecessários, e superfície pictórica e superfície real (suporte)

quase coincidem.

O modo como Guignard resolverá esse dilema — praticamente à margem

da solução cubista — é que conferirá em larga escala a originalidade e a estranheza de seu

trabalho. Em lugar de proporcionar-lhes comunicação, Guignard estabelece uma dissolução

dos objetos através da desproporcionalidade de sua situação no espaço. Não há aí

nem a anteposição de um espaço que organiza os quadros — como na perspectiva linear —

nem tampouco a vigência da noção aristotélica de lugar, mas sim a concepção de espaço

como poder dissolvente que, por sua monumentalidade, corrói a estrutura dos objetos.

Mas é impossível fazer simultaneamente uma pintura plana e fiel à dualidade

espaço-objeto. A partir do cubismo, encontraram-se várias soluções para esta questão.

Todas porém estreitamente ligadas à materialidade imediata dos meios envolvidos

pela pintura. Para Matisse, por exemplo, a resposta está na construção com a cor; para

Morandi, na expressividade contida das diferentes direções do pincel e no sutilíssimo contraste

de tons; para Pollock, no verdadeiro estilhaçamento da superfície pictórica. Diante

deste mesmo impasse, Guignard depara com um espaço descontínuo e sem unidade possível,

e também não se satisfaz com a fragmentação, que seria uma saída. Sua resposta,

genial mas de compromisso, será criar um espaço-envoltório que suspenda a solidez dos

objetos pelo seu apequenamento. Em lugar de somente delinear o mundo das coisas, o espaço

de Guignard se infiltra nelas por tomá-las insignificantes. E quase as desmaterializa.

Daí também a impressão de precariedade que domina todo o seu mundo. É que a união

dessa atmosfera nebulosa á fatura aguada dos trabalhos — e que, como se vê, não tem nada

de casual — cria um processamento contínuo em que o tempo nunca conclui sua obra.

A aparência de inacabamento tão típica das pinturas de Guignard decorre da

luta para não recair no ilusionismo. A unidade de seus trabalhos, tão dificilmente conquistada

por um espaço todo-poderoso, estaria comprometida, paradoxalmente, se as super-


64

GÁVEA

fícies de cor alcançassem uma presença forte, pois não havería como integrá-las sem lançar

mão de um esquema a priori. Não podendo trazer à tona a materialidade envolvida na

elaboração das obras, o pintor, para não iludir, tem de optar por deixar à mostra o processo

de criação dos quadros. Tudo é transparente nos trabalhos: a construção da cor, a tela (ou

madeira), os pincéis, a gestualidade tímida. Mas este fazer contido, na medida em que não

se esgota no ato de realização — porque tem de manter um recato enquanto presença —,

acaba revelando também uma recusa do artista de abandonar a obra a seus limites: ela continua

presa à subjetividade do artista, em uma relação com o mundo que resiste em

alienar-se na tela. A carga afetiva dos quadros é o resultado imediato do apego ás reminis-

cências do devir da obra. E da natureza.

Para Edward Hopper — um outro artista que corre mais ou menos por fora

da tradição moderna, e para quem o tema tem grande importância —, por exemplo, a

solidão advém de um isolamento pictoricamente atual; decorre da falta de solidariedade das

áreas de cor, dos verdadeiros campos de luz que imobilizam em seu interior pessoas absortas

e sem interioridade, apenas amargas. Em Guignard o mesmo sentimento é fruto de um

eu lírico que se apequena diante da imensidão do universo que escorre entre os dedos,

precário e de uma intimidade fugaz, somente atuante na lembrança. Na sua obra, ao contrário

da de Hopper, a solidão é memória da solidão. E por mais planos que sejam os

quadros, sempre fica, e talvez até predomine, uma concavidade a habitá-los: mais que

profundidade, uma interioridade.

Contraditoriamente, quanto maiores os formatos mais esse efeito é de se observar

na arte de Guignard. Clement Greenberg, comentando o desenvolvimento do

trabalho de Arshile Gorky — observação de resto extensiva a toda Escola de Nova York —,

mostra como o aumento das dimensões das telas servia para contornar as limitações impostas

por estas balizas imemoriais, as margens do quadro, na medida em que elas ficavam

fora do campo de visão do artista, possibilitando que se chegasse ao quadro como um

resultado, ao invés de tomá-lo como algo dado de antemão. A superfície pictórica deixava

de ser o campo de projeção da tridimensionalidade e o lugar tramado por verticais e horizontais,

e adquiria uma corporeidade favorável ao antiilusionismo.

A bem dizer, é só com a retomada da bidimensionalidade que se pode falar

apropriadamente em dimensão das pinturas, porque elas deixam de ser janelas maiores ou

menores — com sua força voltada para “dentro” — para se tornarem extensões. Para

Guignard, contrariamente, quanto maiores mais íntimas e singelas se tornam suas pinturas.

E isto sem se socorrer, como já vimos, de um espaço clássico. Acontece que seu sistema

de claros e vazios e a necessidade de anular os objetos, à medida que crescem, fazem

aumentar o abandono dominante nos trabalhos. Como um claustrófobo que insiste em enfrentar

seu terror na própria arena, Guignard amplia os espaços para melhor temê-los.

Mas vacila na realização. Ele não parte do quadro nem chega a ele. Guignard o pressente e

quer evitar sua materialização. Faz da vastidão um abrigo contra a anulação perante a

natureza.

Para o pintor de Nova Friburgo a concretização na superfície é verdadei-


O olhar difuso

65

ramente um trauma. Em outro artigo (Folhetim, 23.9.1984), já procurei mostrar como

Guignard, pela superposição de velaturas, ao mesmo tempo que sugere uma origem, impede

o seu reconhecimento. É esse processo crescente de ocultamento que instiga o olhar a

buscar o “ fundo" da tela. A o fim, a superfície é um obstáculo para a visão. A imagem que

se apresenta ao cabo do processo é quase uma reprodução esmaecida da que a gerou. O que

é original não se mostra — lateja ao fundo, sem se entregar ao olhar. O ideal de pintura

que se depreende de sua obra é, em última análise, o gesto de superpor transparências e,

por meio delas, sugerir uma densidade ambígua: uma profundidade rasa e indecisa.

Por conta deste procedimento, Guignard obtém um efeito final muito interessante:

suas obras — sobretudo as paisagens — são extremamente homogêneas, sem

focos de interesse privilegiados ou qualquer hierarquização pictórica do tema. As pequenas

estradas que serpenteiam pelos morros, árvores e casinhas espalhados nos montes

servem como a intromissão de um ritmo que impede a monotonia. Funcionam como

arabescos, ajudando a trazer o quadro mais para a tona e pontilhando-o de marcações insignificantes.

Em outros casos — como no grupo A Família do Fuzileiro Naval — , ao contrário,

o emprego de motivos decorativos ajuda a enfraquecer o centro do trabalho, desfazendo

formas e dispersando a atenção. De todo modo, no entanto, fica muito difícil

aproximar o uso de arabescos e motivos decorativos de Guignard e o de Matisse. Para

Matisse, o decorativo é estruturante; em Guignard é rítmico. O que para o autor do Ateliê

Vermelho é só pintura — os trabalhos com papel cortado demonstram isto à exaustão: a

aparência é uma membrana de cor — , para Guignard é, até certo ponto, uma alegoria da

brejeirice nacional.

Tudo me leva a crer que é uma certa concepção de natureza que dá sustentação

à visualidade difusa e generalizante a que me referi anteriormente e que também

confere peculiaridade a uma porção generosa da produção propriamente visual brasileira.

Mas esta noção, contrariamente, por exemplo, à que predomina em boa parte da cultura

americana — penso em Walt Whitman, Melville, Hemingway, Pollock, Walter de Maria

etc. —, não remete a uma natureza em expansão, pura liberação de energia. A que vigora

por estas paragens é mais substancializada e rarefeita e uma frase de Mário de Andrade a

condensa à perfeição: “ No fundo da mata-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente.

Era preto retinto e filho do medo da noite” . Há aí todos os elementos dessa natureza

mais ou menos hipostasiada, rala e íntima ( “ no fundo da mata-virgem ’), e avessa a in-

dividuações ( “ preto retinto/filho da noite” ). Ao mesmo tempo que é insondável em sua

interioridade, tem contudo uma face doméstica, brejeira, em seu intimismo: Há nada

mais encantador, do que trazer o campo para dentro da cidade e até da casa; do que entrelaçar

com as magnificências do luxo as galas inimitáveis da natureza?

(Senhora, de

José de Alencar).

Paradoxalmente, este conceito, tão visual em sua representação — basta

imaginar uma prosaica varanda sombreada para poder vislumbrá-lo

diriculta a criação

de uma visualidade real, na medida em que diz respeito a uma natureza que não se manifesta

e que resiste à diferenciação.



O olhar difuso 67

Creio que pela análise sumária de Guignard muitos destes aspectos se destacaram.

Em sua obra, a recusa da presença, o espaço envolvente e a dissolução da materialidade

dos objetos, uma certa intimidade faceira com o mundo e a homogeneidade das

superfícies — traços com que a noção de natureza que mencionei coincidem grandemente

— criam uma obra artística respeitável quase que apesar deles mesmos. Como já disse, isto

é o esboço de um projeto cujas teses precisam ser testadas e enriquecidas por meio de uma

análise adequada de porção significativa da cultura luso-brasileira, sem se limitar exclusivamente

às manifestações predominantemente visuais.

Restaria ainda descobrir a gênese social deste conceito de natureza; a trama

de relações que propiciaria um imaginário tão paradoxal, a frustrar o rigor teórico por

meio da diluição de conceitos em metáforas e impossibilitando uma produção plástica

vigorosa pelo caráter genérico — diria mesmo abstrato — de um olhar que não se concentra.

Um caminho para a explicação deste traço cultural do país talvez se encontre

na pobreza de mediações da sociedade brasileira. Os legados portugueses da depreciação

do trabalho e da relativa falta de hierarquização social, a escravidão, o patriarcalismo

agrário, o atraso industrial, cultural e educacional, a tutela política das elites e a desorganização

das grandes massas contribuíram em larga escala para aquilo que Sérgio Buar-

que de Holanda, no seu Raízes do Brasil, chamou de “ horror ás distâncias que parece constituir,

ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro” ; um comportamento

que não suporta os trâmites e abstrações sociais, desconhecendo “qualquer forma

de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo” . E nessa coexistência

amorfa tampouco o indivíduo chega a constituir-se como tal, pois, “no ‘homem cordial’, a

vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em

viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência”

. A argumentação de que havería excesso de bonomia neste homem cordial “ inventado”

por Sérgio Buarque — embora a expressão seja de Ribeiro Couto —, escamoteando

conflitos e divisões de classe, demonstra tão-somente uma profunda incompreensão do seu

raciocínio, tão esclarecedor da estrutura frouxa que costura a sociedade brasileira. Mesmo

porque a violência é meramente a forma conflagrada deste mesmo procedimento social. É

Guignard

Os Noivos

Óleo sobre tela, 58x48cm. 1937

Fundação Raymundo O. de Castro Maya

Primeira página:

Guignard

Paisagem de Minas Gerais

Óleo sobre tela, 150xl00cm, 1941


68

GÁVEA

o que lembra Maria Sylvia Carvalho Franco, no livro H om ens Livres na Ordem Escravocrata,

ao demonstrar que tanto o rico fazendeiro quanto o mísero caipira viveram

mundo eminentemente feito de pessoas e não de abstrações, concebendo as situações tensas

em que se envolviam como lutas mortais e radicalizando o conflito até a supressão

do adversário” .

Esta imediaticidade das relações sociais, ao impedir que os indivíduos re

presentem e anteponham (na verdade o sentido alemão para representação, ou seja, vors-

tellen, pôr antes), minimamente que seja, sua situação e dinâmica no interior da sociedade,

realmente toma quase impossível uma atitude intelectual mais aguda, pois irá implicar

uma mentalidade rasteira que chafurda num presente sem rupturas. Assim, a sociedade

tende a figurar-se — mais do que representar-se — como pura interioridade, sem

conseguir pensar seus movimentos de exteriorização e devir. E o olhar envergonha-se das

próprias distâncias que cobre.

num

Rodrigo Naves

Formado em Comunicação, ex-editor do Folhetim, Folha de Sdo Paulo, autor de um livro sobre El

Greco, Editora Brasiliense.


KATIA MURICY

Tradição e barbárie em Walter Benjamim

Thomas Mann, em Doutor Fausto, este grande romance que é também

uma suma das discussões estéticas da modernidade, narra a repercussão da conferência de

Kretzschmar, o organista da catedral de Kaisersaschern, nos adolescentes Adrian e Se-

renus. Ainda embriagados pelo periclitante discurso do gago professor, refletem acerca de

uma anedotada narrada, sobre os embates de Beethoven, ao compor a sua Missa, com as

banalidades do cotidiano. Pressionado pelo prazo da encomenda, o mestre se entregara ao

trabalho com tal afinco que acabou por ocasionar um caos doméstico. Apavoradas com o

frenesi do artista, as criadas abandonam a casa daquele patrão surdo que, ao compor, cantava

e uivava batendo os pés e só pedia o jantar, aos berros, no meio da noite, quando os

pratos estavam queimados e todos já haviam sucumbido ao sono. A figura, descrita por

Kretzschmar, de Beethoven reclamando do abandono dos que o deixavam sem comida —

as roupas em desalinho, o rosto conturbado como se tivesse saído de “uma luta de vida e

morte com todos os espíritos avessos ao contraponto” — fascinara os dois rapazes. Sem

ainda conhecerem a Missa, aproximavam-se de uma “desconhecida grandeza” : o artista

torturado, na sublime grandeza da criação, pela prosaica necessidade de aplacar a sua fome

em um bom jantar, afinal frustrado. Instigado por esta imagem, Adrian disserta, no pátio

do liceu, sobre a secularização da Arte e de como este evento, que determinou a sua

autonomia, a lançara em uma outra gravidade: a sacralização do artista e de seu sofrimento

criador, pateticamente ironizada pela anedota, na aparição desse Beethoven insone e

faminto. As “ palavras prematuras” do jovem Leverkühn ecoam em um mesmo espaço de

possibilidades para as quais se abre a crítica da cultura de Walter Benjamim. Adrian prevê

um outro destino para a Arte, uma função menos solene, “mais modesta e mais feliz” ,

um pôr-se a serviço, não mais da Igreja, não mais do pathos solitário do artista, mas de

quê? — Adrian desconhece e divaga: talvez a idéia de Cultura seja um fenômeno datado,

transitório, algo que irá se dissipar. Serenus, seu sensato companheiro, objeta que fora da

Cultura só resta a barbárie. O herói, diante da observação, avança um argumento que

amadurecerá ao longo do livro e que construirá a base de sua radical experiência artística e

existencial. Para o jovem, a oposição barbárie e cultura está nos limites do pensamento estabelecido

pela própria cultura. Iluminâncias ressonantes nas Teses de Benjamim: “ Nunca

houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” .

Mas a esta barbárie, sombra e ruína da cultura, o personagem de Mann sobrepõe uma

outra, que dissiparia a oposição desses termos. As épocas realmente cultas dispensaram a

teorização dessa dicotomia, foram antes bárbaras — a saudável barbárie das culturas

elevadas. Em outras palavras, avançando as premissas do personagem, uma teoria da cul-


70 GÁVEA

tura só se faz necessária nos períodos de sua crise, de seu declínio. Na nossa civilização da

técnica e do conforto, tanto mais se fala de cultura quanto ela está ausente de nossa experiência.

A conclusão dessas reflexões está na afirmação de Adrian, perfeitamente benjaminiana,

de que o “ nosso nível é o da Civilização, certamente um estado bem louvável,

mas, indubitavelmente, deveriamos nos tornar muito mais bárbaros, para outra vez

podermos ser cultos” .

Mais do que um encontro de Thomas M ann com Benjamim no tema da

barbárie positiva, Doutor Fausto é a vida evocativa que permitirá uma leitura de Benjamim

entrelinhada pelas pistas da crítica à cultura de Nietzsche. A presença de Nietzsche

nesse romance estende-se de forma persistente, em termos menos diretos que a explícita

alusão a sua doença e ao famoso incidente do bordel de Colônia, transpostos para a biografia

de Adrian Leverkühn. Se, no horizonte da civilização moderna, a barbárie se define

pela oposição ao que aí se propõe como Cultura, uma nova barbárie não estaria longe do

que Nietzsche vislumbra, com esperança, como a morte do homem, o retomo à saúde, a

cura do niilismo, última e fatal inoculação de uma civilização erigida pela morbidez ascética.

Esta esperança, diversamente formulada, está presente em Benjamim. Pensamos

que a coincidência ocorra pela confluência de alguns temas em Nietzsche e em Benjamim.

Guardadas as diferenças e a contextualização específica de cada autor, é possível, em especial

no que concerne à concepção de História, estabelecer-se algumas convergências.

Sem explicitá-las, nossa leitura apenas as indica e, quase sempre, as toma como inspiração.

É em Experiência e Pobreza, um pequeno artigo de 1933, que Benjamim

saúda a ruptura com o passado cultural como única saída para a contemporaneidade e

anuncia, com euforia iconoclasta, o advento de uma nova barbárie. Ruptura que não é corte

em matéria viva, mas despojamento de um fardo morto: desvinculado da tradição, entendida

como experiência comunicável entre os homens, o patrimônio cultural não passa

de uma pantomina do mesmo, condenada à repetição mítica, a celebração da história dos

vencedores. Um “carnaval do grande estilo” , como escreveu Nietzsche, referindo-se ao

artificialismo da efeminada cultura européia, uma sucessão de mascaradas estilísticas,

sempre pronta a recorrer à História como a um guarda-roupa de trapos.

Benjamim constata como a segunda década de nosso século assistiu, estupefata

e impotente, à queima geral da tradição. Sua liquidação derradeira — a guerra mundial —

deixou como herança uma extrema miséria de experiências comunicáveis. Os homens que

haviam ido “ à escola num bonde puxado por cavalos” viveram nos campos de batalha o

aniquilamento de experiências acumuladas ao longo das gerações. Na paisagem destruída

da guerra de 1914 não sucumbe apenas o “frágil e minúsculo corpo humano” , exposto a

uma tecnologia inesperada: morre também a já declinante capacidade comunicativa da experiência.

Estes homens que voltam “ mais silenciosos” das trincheiras, incapazes de

narrar a horrível experiência, são os homens da modernidade. Destituídos da sabedoria —

o lado épico da verdade que lhes foi arrancada pela ruptura abrupta com um passado

de

experiências transmissíveis de boca em boca” , resta-lhes a assunção de sua pobreza.

O entediado do fim do século, o hypocrite lecteur a que se dirigiu o poeta,



GÁVEA

I

I

flanando a sua impotência pela profusão de signos culturais subitamente esvaziados das

grandes cidades industriais, ainda procurava “ olhares familiares” nessa “ floresta de símbolos”

. Mas, se em Baudelaire, pé na modernidade, é possível sonhar com o país onde

tudoé “ordre, beauté, luxe, calme et volupté” , o homem moderno não pode mais voltarse

nostalgicamente para “ces époques nues, dont Phoebus se plaisait à dorer les statues” .

Sua saída é, antes, quebrar as estátuas da nostalgia. Cada vez mais pobre de experiência e

de tradição, que lhe foram roubadas pelo desenvolvimento tecnológico acelerado do

capitalismo, o homem moderno está dilacerado por uma subjetividade que não se reconhece

mais na cultura e por uma cultura que já não mais o integra ao social. Há meio

século deste artigo, Nietzsche aponta este divórcio: “ O homem moderno carrega consigo

a massa enorme e indigesta de pedras para construir o saber, borborigmos de pedras que

murmuram, traindo o estranho contraste entre o seu ser íntimo ao qual não corresponde

nada do exterior, e seu ser exterior ao qual não corresponde nada do interior, contradição

que os povos antigos não conheceram” . Resta-lhe romper com o passado que o ameaça

com o peso estéril do que Benjamim chama aqui de a sua “ angustiante riqueza de idéias” .

À pungência do tédio moderno do verso de Baudelaire — “ j ’ai plus de souvenir que si

j ’avais mille ans” — se impõe a urgência de Brecht, na palavra de ordem da Cartilha para

os Citadinos-. “ Apaguem os rastros” .

Livrar-se do “ homem tradicional, solene, nobre, adornado com as oferendas

do passado” , para tomar nos braços o “contemporâneo nu, deitado como um recém-

nascido nas fraldas sujas de nossa época” , é a tarefa da atualidade. Essa pobreza assumida é

a barbárie saudada por Benjamim; ela poderá fazer frente à tartufaria de estilos na qual,

lastima Nietzsche no final do século, mergulhara a cultura européia.

O que chama de “ conceito novo e positivo de barbárie” supõe, por um

lado, como impulso de ruptura com o passado cultural, “ uma desilusão radical com o

século” ; por outro, uma “ total fidelidade a esse século” , que compromete definitivamente

o homem moderno com a sua precária atualidade. Estar despossuído dò passado será então

não só o encontro do presente em sua pobreza mas, principalmente, em sua urgência,

como o que há para ser inventado, construído. Destituído da tradição, a miséria será a

honestidade e a esperança do homem moderno. Seus arautos: a “ cultura de vidro” — a

matéria inimiga do mistério, desprovida de aura, sem marcas do tempo — dos romances

de Paul Scheebart. Nestes livros, os personagens, que habitam casas de vidro e convivem

com aviões e foguetes, falam uma linguagem desumanizada, como os nomes que, na observação

de Benjamim, os russos deram aos seus filhos depois da Revolução: Outubro,

Aviachim, aludindo à companhia aérea, ou Pjatiletka, ao Plano Quinqüenal. Constatação

da morte do homem solene da tradição no aço da Bauhaus, nos projetos de Loos e de Le

Corbusier, na arte de engenheiro de Klee: ausência do cultivo burguês da interioridade,

barbárie. Para que se possa construir um santuário, é preciso que um santuário seja destruído

, escrevera Nietzsche, sonhando com o fim da cultura histórica e com o advento de

uma outra cultura, pós-histórica, redenção da exterioridade oprimida pelos ideais metafísicos

da nossa civilização da interioridade.


Tradição e barbárie em Walter Benjamim

73

O elogio à ruptura com a tradição, explícita no artigo de Benjamim, a postulação

de uma barbárie como saída para a atualidade empobrecida pela perda do valor

comunicativo de suas experiências é um tema no mínimo melindroso. Para esclarecê-lo, é

preciso que se leve em conta todas as nuances que ganha em uma obra propositalmente

nuançada em suas definições, como é a de Benjamim. A ênfase no caráter novo, positivo,

da barbárie evocada no artigo serve de advertência contra a sua compreensão dentro dos

quadros da cultura tradicional, da qual seria o termo antitético: o conceito é novo, a barbárie

é positiva. Não esclarece, no entanto, todas as suas implicações e só implicitamente

aponta para o seu lucro maior: a de arma na luta contra a possibilidade de uma barbárie

negativa, inscrita na continuidade da cultura burguesa. Possibilidade que Benjamim

viveu, em toda a sua tragicidade, na ascenção do fascismo. Poucos anos mais tarde, concluindo

A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica, Benjamim circunscreve

o que seria esta barbárie negativa, inscrita no desenvolvimento da cultura burguesa,

ao se referir à guerra como convergência de uma estatização da política. O fascismo permite

às massas proletárias o acesso à expressão de sua natureza: nos desfiles, comícios, espetáculos

esportivos, “ todos captados pelos aparelhos de filmagem e gravação, a massa vê

o seu próprio rosto” . Barra-lhes, no entanto, a expressão de seus direitos, a transformação

das relações de produção. É aí que o esteticismo conduz à barbárie — à dissolução da cultura

em um grande espetáculo, a guerra, única saída que implica uma mobilização de

todos os recursos técnicos disponíveis, sem a alteração das relações de produção.

Nas Teses sobre a Filosofia da História, o termo barbárie é correlato ao de

cultura — o seu negativo permanente e necessário — ambos circunscritos pelos limites da

cultura do ponto de vista dos vencedores. Mais do que isto, a barbárie é a verdade da cultura

que o marxista, escovando a História a contrapelo, revelará. A riqueza da proposta de

1933, de se pensar um conceito positivo de barbárie, só se esclarece pela compreensão de

História desenvolvida nas T eses, que permite lançar uma luz nova sobre as relações da

atualidade com o passado e com a tradição.

Para situar melhor as relações do conceito de barbárie com o de tradição e,

vinculando-se á compreensão benjaminiana de História, esclarecer a positividade da noção

iconoclasta, convém, contudo, estendermos mais a análise do tema, fundamental, do

declínio da experiência nas sociedades modernas.

A guerra é o exemplo extremo da quebra da continuidade da experiência.

No entanto, este não é um acontecimento abrupto. E, justamente, um declínio, um longo

processo que se estende do surgimento da burguesia ao florescimento das sociedades industrializadas

modernas. A ruptura com a tradição, a assunção da pobreza da atualidade, é

antes, um dar-se conta, certamente melancólico em Benjamim, da lenta perda da experiência

comunicável. A arte de narrar, cujo ocaso é um efeito deste processo, tivera seus

representantes no camponês sedentário — o que transmite a sabedoria de outros tempos

— e no navegador — o que traz a sabedoria de outras terras. Figuras desvanecidas no

horizonte da modernidade, sua ausência relembra-nos que “ uma faculdade, que nos

parecia inalienável, a mais garantida, entre as coisas seguras, nos fora retirada. Ou seja: a


74

GÁVEA

de trocar experiências” .

Esta perda da experiência comunicável acarreta o divórcio entre os interesses

interiores do homem e os da sua vida coletiva. Sua realidade histórica é a figura do burguês

citadino, dotado de uma privacidade, de uma cultivada e solitária interioridade. Sua

expressão literária, o romance, cujo aparecimento, no início da era moderna, marca o

início do fim da narrativa. Desvinculado da tradição oral, o romance depende essencial -

mente do livro. O romancista está exilado da experiência coletiva em uma singularidade

irredutível cuja expressão é o romance. O lugar de nascimento do romance, escreve Benjamim,

é“o indivíduo na sua solidão” , e ele se endereça para a solidão do leitor, que solitariamente

o lerá. No romance, o tempo, tomado em seus matizes psicológicos, é constitutivo.

Este tempo é fragmentado, tempo industrial, descontínuo. Rompe com a memória

— “ a capacidade épica por excelência” — vinculada a um tempo artesanal ou orgânico,

aquele em que, trabalhando em seus teares, os homens podiam, junto ao fogo,

ouvir e contar histórias nas quais reconheciam a sua experiência.

O fim da experiência é o surgimento da vivência, a experiência desvinculada

da vida coletiva, da tradição. Uma leitura muito particular de Para além do Princípio do

Prazer permitiu a Benjamim a elaboração destas duas noções capitais na sua teoria da cultura:

a de experiência {Erfahrung) , relacionada à memória, ao inconsciente, e a de vivência

(Erlebnis), ligada à vivência privada, individual, à percepção e à experiência do choque.

Da afirmação de Freud — “ a consciência nasce onde acaba o traço mnêmico” — Benjamim

constrói a sua interpretação: as impressões mnêmicas serão tanto mais fortes quanto

menos conscientes. O funcionamento do aparelho psíquico serve-se do sistema percepção-consciência

como de um protetor contra as excitações externas. Este dispositivo de

defesa funcionaria como um bloqueio para o excesso de excitações: aquela que o ultrapassasse

transformar-se-ia em choque traumático. Assim, quanto maior a possibilidade de

choque, mais alerta estará a consciência, o que significa também que armazenará menos

traços mnêmicos.

Embora um tanto reducionista, esta leitura de Freud produzirá ricas e

definitivas formulações na análise da cultura de Benjamim. Para ele, a experiência, que

consiste “ não tanto em acontecimentos isolados, fixados exatamente na lembrança, quanto

em dados acumulados, não raro inconscientes, que confluem na memória” , está ligada

aos traços mnêmicos. Sua atrofia no mundo moderno decorre de um estado de alerta da

percepção às constantes possibilidades de choque aí existentes. Exemplos da realidade do

choque: a vida cotidiana nas grandes cidades, o transeunte esgueirando-se nas ruas repletas

de massas anônimas, esbarrando, levando trancos, agudamente aterito à sinalização,

aos movimentos de outros homens que não podem ser individualizados pelo seu olhar.

Também o operário, submetendo seus movimentos musculares ao automatismo da

máquina, numa eloqüente submissão do tempo orgânico ao tempo industrial. Esta percepção

do choque, incorporada ao inventário da lembrança consciente, tranforma-se em

vivência e é, escreve Benjamim, ‘‘esterilizada para a experiência poética” . O que há de

fascinante em Baudelaire é ter conseguido construir sua lírica numa experiência em que a


Tradição e barbárie em Walter Benjamim

75

recepção do choque é a regra. Como também, radicalmente, o cinema, que faz da percepção

intermitente o seu princípio formal.

Este declínio da experiência equivale ao processo de perda da aura, entendida justamente

como o conteúdo de experiência da obra de arte. Quando Benjamim saúda uma

nova barbárie ou a quebra aurática da obra de arte, não é, portanto, com vistas a uma dissolução

da cultura. É, antes, a constatação de que, já tendo ocorrido essas rupturas, impõe-se

fazer explodir uma tradição que só existe enquanto um “fardo de tesouros” ,

atrelado às costas da humanidade.que, imobilizada pelo seu peso, não pode utilizá-los ou,

como escreve Benjamim, “ apanhá-los com as mãos” .

A tarefa da crítica, do historiador, será a de permitir, por um lado, que os homens

livrem-se do fardo — tarefa iconoclasta do bárbaro — e, por outro, fazer com que se possa

construir uma nova relação com este passado — tarefa salvadora que permitirá a apropriação

dos bens culturais pela atualidade. É nesta dupla função que se pode discernir as

relações entre barbárie e tradição, à luz da concepção benjaminiana de História, desenvolvida

em suas Teses.

Nas Teses, o belo e complexo trabalho de 1940, Benjamim estabelece os

princípios do que fundamenta a sua História da Cultura. Nelas, uma urgência: como

construir um conceito de História que corresponda à verdade de que, na tradição dos

oprimidos, o estado de exceção é a regra geral; um inimigo nomeado: o conformismo da

social-democracia; um alvo filosoficamente mais amplo: a crítica ao historicismo, presente

em Benjamim desde A Origem do Drama Barroco Alemão.

Essencialmente anti-historicista, a concepção de História das Teses afasta-

se de qualquer linearidade evolutiva. Dela estão ausentes as idéias de uma ordem, de um

telos, de qualquer processo dialético que, apaziguando seu caráter de luta, de confronto

permanente, faz da História a canonização do ponto de vista dos vencedores. Na perspectiva

dos vencidos, só há caos, catástrofes, rupturas. O historiador deve fazer explodir a

continuidade homogênea de um tempo vazio, a linearidade do processo, e trabalhar com os

fragmentos, com as ruínas do passado, cristalizados pelo olhar da atualidade, pela premên-

cia do perigo. Contra a quietude desmobilizante do historicismo, anestesiado pelo mito da

marcha inexorável do progresso, Benjamim propõe um estado de exceção permanente. A

História é superfície de luta e não o “ jardim da ciência para passeios dos ociosos” da

epígrafe, não por acaso de Nietzsche, aposta à 12? Tese. Ora, esta concepção vai ao encontro

da compreensão genealógica de História — a Wirkliche Historie — de Nietzsche,

ao menos em alguns pontos fundamentais. Primeiramente, no que concerne à questão da

origem. Descontínua, anti-linear, a História em Benjamim não estabelece uma origem

enquanto fundamento originário, essência, identidade ou forma imóvel a partir da qual se

desenrolaria o processo. Como na genealogia, ela não unifica, não totaliza, não fundamenta

uma “ História Universal” de procedimento aditivo. A epígrafe à tese 14, de Karl Kraus

— “ A origem é o alvo” — revela uma estratégia e não uma destinação teleológica. Objeto

de construção, a História é a perspectiva da atualidade, fixada por uma urgência guerreira.

Como em Nietzsche, não há fidelidade aos fatos, o faitalisme de que fala a Genealogia da


76

GÁVEA

Moral. Objeto de construção, a História, na perspectiva da atualidade, será certamente

valorativa. Assim, se a diversidade do tempo não é recolhida, em Benjamim, na síntese de

um processo progressivo em direção a uma destinação que recuperaria a origem, se não há

finalismo em sua marcha, há apropriações estratégicas de descontinuidades. a

imobi-

lização messiânica” é o corte do linear. Sua proposta de apropriar-se do passado aproximase

do uso paródico ou burlesco da Wirkliche H istorie: não há uma recuperação de identidades,

mas construções de sentidos que entrecruzam-se com as urgências do presente.

Como a história genealógica, a História em Benjamim, na quebra do tempo homogêneo,

faz emergir a diferença.

O historicista, em empa tia com o vencedor, faz da História um “cortejo

triunfal” e dos bens culturais os despojos dessa vitória. A figura de Klee, o Angelus

Novus, é a expressão da tarefa do historiador para Benjamim. Olhos no passado, vê ruínas

onde o historicista veria acontecimentos, vê catástrofes onde o historicista conta vitórias.

Não pode recolher os destroços porque é impelido para o futuro, isto a que o •historicista

chama progresso. Seu olhar é iconoclasta, mas nesta história bárbara, que quebra a dialética

do progresso, está a única possibilidade de um resgate do passado e da tradição que

escape à apologia dos vencedorés. A sobrevivência da atualidade depende deste resgate do

que Habermas chama de “ conteúdos semânticos” soterrados pela história dos vencedores.

O passado dirige um apelo ao presente, recorre a essa “ frágil força messiânica que cada

geração possui” , solicita esse “ encontro secreto” com o presente. Mas o presente não é

uma transição que ligaria o passado ao futuro. É tempo imobilizado, momento “agora”

(jetztzeit) em que o historiador constrói a História, um pouco como Proust na sua Recherche.

Na perspectiva de uma atualidade “ em estado de exceção” , o historiador arranca o

seu objeto do continuum do tempo, para construí-lo a serviço da atualidade, para roubar a

tradição das mãos do conformismo.

A História é uma tarefa salvadora, messiânica em relação ao passado e não

ao futuro: o que há para ser libertado é justamente o passado. O proletariado não tem a

função teleológica de libertar as classes futuras, mas de salvar o passado, imobilizando o

tempo da história burguesa como os revolucionários de 1789 que atiravam nos relógios

públicos de Paris para “ arrêter le jour” , como cantam versos da época. A ousada afirmação

de Benjamim de que a revolução é um salto para o passado não poderia fazer eco

com o ruído inquietante da teoria de Nietzche sobre o Eterno Retorno? Entendendo este

retorno como um devir-ativo, o tempo retomado em uma construção pela humanidade

redimida, única que poderá, segundo as Teses, “ apropriar-se totalmente do seu passado”.

Mas este messianismo de Benjamim não é aquele tradicional, teológico, que

se poderia reconhecer na fé do historicista no progresso. É antes um messianismo que nega

o processo histórico e que pode ser compreendido melhor se relacionado à mística judaica.

No apêndice às Teses, ele escreveu: “ Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro.

Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a re-

memoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos .

A destruição do finalismo da História, progressista ou historicista, é a con-


Tradição e barbárie em Walter Benjamim

77

dição para a construção de uma outra maneira de se pensar a Cultura, onde presente e passado

se aliam, onde a barbárie resgata a tradição. Este é o sentido mais amplo do conceito

novo, positivo, saudável de barbárie, reivindicado no artigo de 1933.

O retrato de Walter Benjamim é de Cássio Loredano

Bibliografia

Walter Benjamim, “Erfahrung und Armut” , Gesammelte Schrifteti, Frankfurt, Suhrkamp, volume

II, 1,1933. Traduções: Jesus Aguirre, “ Experiência y Pobreza”, Discursos Interrumpidos, volume

I, Taurus Ediciones, Madrid, 1982; Sérgio Paulo Rouanet, Experiência e Pobreza, Obras Escolhidas,

volume I, Brasiliense, 1985.

Benjamim, “Ueber den Begriff der Geschichte”, op. cit., volume I, 2, 1940. Traduções: Aguirre,

“Tesis de Filosofia de la Historia” , op. cit., Rouanet, Sobre o Conceito da História, op. cit.

Benjamim, “Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit” , op. cit., volume

I, 2, 1936. Traduções: Aguirre, “La Obra de Arte en la Epoca de su Reproductibilidad Técnica” ,

op. cit.; Rouanet, “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”.

Benjamim, “Ueber einige Motive ber Baudelaire” , op. cit., volume I, 2, 1939. Tradução: Aguirre,

“Sobre Algunos Temas en Baudelaire” , op. cit.

Benjamim, “Der Erzaehler” , op. cit., volume II, 1936. Tradução: Rouanet, “O Narrador.’ Considerações

sobre a obra de Nikolai Leskov” , op. cit.

Friedrich Nietzsche, La Gènéalogie de la Morale, Idées/Gallimard, 1887.

Nietzsche, Par delà Bien et Mal, Idées/Gallimard, 1886.

Nietzsche, “Humain trop Humain” , Oeuvres Complètes, volume III, Gallimard.

Nietzsche, “Considerations Inactuelles” , op. cit., volume II.

Thomas Mann, Doutor Fausto. Tradução: Herbert Caro, Nova Fronteira, 1984.



HAROLD ROSENBERG

Tradução: Elizabeth Carbone Baez

Willem de Kooning

Willem de Kooning é o principal pintor da era ideológica da arte americana,

período que teve início nos anos 30, quando pintura e escultura se defrontavam com

sucessivas doutrinas, políticas e/ou estéticas. A supremacia de de Kooning se deve à forma

sagaz com que conseguiu manipular a si próprio e a seus talentos frente às idéias

predominantes. Apesar de suas telas estarem sempre impregnadas de conteúdo intelectual,

nunca ilustram um conceito. Possuem a força, a surpresa, a amplitude emocional e,

ocasional mente, a arbitrariedade de um temperamento. Em um ambiente marcado por incessantes

apropriações interligadas, a fatura de de Kooning é única. Enquanto a arte vem

sofrendo uma retração constante da imaginação sob a pressão de fórmulas preconcebidas,

as criações de de Kooning ganharam firmamento em inventividade formal e em reverberação

simbólica. Em oposição àquilo que pode ser chamado de uma tendência para o

minguante da arte contemporânea — esforço de produzir obras-primas com o mínimo essencial,

como, por exemplo, cor e formas — uma tela de de Kooning é tão devassada quanto

a Union Square (1). Suas composições devoram vistas quotidianas, pensamentos bizarros,

estados de espírito, velhas e novas teorias, pinturas e esculturas dç passado. Ele

possui a fome pela diversidade dos humanistas do Renascimento e a “vulgaridade” de

Rabelais e Cervantes. Suas abstrações e figuras femininas são tão acumulativas quanto

montagens com papel de jornal, farrapos e lixo (alguns de Kooning incorporaram tiras de

tablóides, recortes de anúncios de revistas, partes de quadros inutilizados). Materiais

prontos são, no entanto, meios canhestros para lançar os dardos luminosos dos insights de

de Kooning. O constante intercâmbio de imagem e símbolo, impressão direta e generalização

analítica, só pode ser apreendido através da ação do pincel. Uma criação como Excavation

ou Woman, não podia ser o resultado de mera combinação de elementos deslocados,

como na colagem ou na arte Pop. A transformação tinha que ser total, isto é,

tinha que se realizar simultaneamente na psique do artista e na tela.

A recusa obstinada de de Kooning em se submeter a qualquer disciplina externa,

ou adotar uma identidade artificial, é a subestrutura filosófica de sua arte. Em 1949

ele escreveu: “ A única certeza, hoje, é a necessidade de ser consciente de si mesmo. A

idéia de ordem só pode vir de cima. Para mim, ordem tem que ser organizada e isto é uma

limitação” . Durante 35 anos ele continuou a encontrar meios para manter sua arte em

contato com o fluxo do seu “eu” e com as mudanças no seu meio intelectual e físico. Cada

fase de seu trabalho é dominada por símbolos de metamorfoses e instabilidade — a mulher

e o mar são os mais constantes. Pará ele, a figura feminina e a superfície do mar são ao

mesmo tempo realidades concretas e metáforas para as “ manifestações” da natureza e do


80

GÁVEA

eu que há muito tempo ele discerniu como sendo o leitrnotiv da arte Ocidental, desde o

Renascimento. No trabalho maduro de de Kooning, paisagens e figura humana se tornam,

como na frase de Shakespeare, “ dissolvidas e indistintas, assim como água na água". Ao

rejeitar qualquer definição de si mesmo ou de seu ambiente, ele concebe a pintura como

um ato através do qual o “ eu” contacta as coisas com sutileza cada vez maior. “ Torno-me

mais livre” , observou de Kooning alguns anos atrás, indicando o que poderia ser coasi

derada a finalidade da arte em nossa era. “ Sinto que estou conseguindo mais para mim, no

sentido de ter todas as minhas forças. Creio que você pode fazer maravilhas com as suas

forças, se aceitá-las... Estou mais convicto sobre o pintar.

De Kooning acredita que o artista deve iniciar-se na arte tal como ele a encontra;

ao criar ele é livre, mas cria dentro de um determinado contexto. No século X X ,

este contexto são os movimentos de vanguarda. Com relação a eles, a opinião de de Kon-

ning evoluiu lentamente em direção a uma conclusão decisiva. Dos anos 30 até meados

dos 40, absorveu Cubismo, Realismo Social, Neoplasticismo, Surrealismo. Mas, ao absorvê-los,

ele se perturbou. Por exemplo, em face das pinturas sociais conscientes do patético

(e potencialmente heróico) Little M an, popular durante a Depressão, ele produziu as estranhas

figuras masculinas de olhar fixo de Two Men Standing, e as figuras solitárias,

sorumbáticas, vagamente “ proletárias” , aristocráticas e hermafroditas de Man, Glazier e

SeatedFigure (Classic Malé) — imagens que são quase auto-retratos executados como experiências

recônditas em perspectiva. No mesmo período, ele participou da tendência

neoplasticista da pintura americana abstrata com Abstract Still Life e Pink ÍMndscape, na

qual o espaço pictórico é dividido simetricamente e as formas geométricas são balanceadas

— só que, no neoplasticismo de de Kooning, a faixa divisória de Abstract Still Life não

chega à parte inferior da tela e o equilíbrio de Pink ÍMndscape se desestabiliza com suas

formas de botas, enquanto seus retângulos e círculos não são nem retangulares nem circulares.

Em resumo, ao absorver práticas modernas, de Kooning recusou-se a aderir

às suas normas ou ás idéias nas quais se baseavam. No final dos anos 40, estava preparado

para denunciar as ideologias dos movimentos artísticos do século X X , exceto na medida

em que elas serviam como estímulo criativo para artistas individuais. “Na arte” , dizia ele,

“uma idéia é tão boa quanto outra” . Logo depois, num discurso memorável que fez no

The Museum of Modern Art, em 1951, prestou contas à estética modernista e ao Futurismo,

ao Neoplasticismo e ao Construtivismo. “ Aprendi muito com todos eles” , disse, “e

eles também me confundiram bastante. (...) A única maneira como ainda encaro essas

idéias é em termos dos artistas que vieram delas ou que as inventaram. Ainda penso que

Boccioni foi um grande artista e um homem impetuoso. Gosto de Lissitzky, Rodchenko,

Tatlin e Gabo” , e assim por diante.

De Kooning sabia que as teorias da vanguarda são as nascentes dos estilos

modernos e que, ao atacá-las, estava minando as bases de quaisquer formas compartilhadas •

na arte. Seu ataque foi completo. ‘O estilo é uma fraude” , assegurava esse veterano que

estudou oito anos na Rotterdam Academy of Fine Arts and Techniques. “ Foi péssima a


Willem de Kooning

81

idéia de Van Doesburg e Mondrian de tentar forçar um estilo. A força reacionária do

poder é que mantém o estilo e as coisas funcionando.” De fato, confirmando o que todo

observador atento já sabe há um século, de Kooning declarou que “ não há um estilo de

pintura atualmente . A tentativa de gerar artificialmente um estilo através da análise formal

e derivações da arte do passado — como, por exemplo, através da transformação de

Cézanne em Cubismo

distorce a verdadeira situação da arte atual. “Desejar fazer um

estilo , de Kooning acusou, “é fazer a apologia da própria ansiedade” . Chegou a hora de

acabar com o jogo fútil da procura de equivalentes contemporâneos para formas culturais

que há muito se desintegraram. Por sua vez, de Kooning iria chegar ao seu conceito de

“sem estilo” depois de uma experiência sofrida.

A rejeição ao estilo é uma forma de afirmar a existência de um vazio entre o

artista e a sociedade contemporânea — não possuem formas em comum, nem mesmo com

as formas da vanguarda de ontem. (A alienação social foi reafirmada sistematicamente

pelos artistas da “ anti-forma" dos anos 60.) Em seu discurso de 1951, de Kooning declarou,

aparentemente com demasiado otimismo, que artistas de nosso tempo “ não

querem se amoldar; querem apenas estar inspirados” , uma proposta semelhante a uma luz

vermelha assinalando a distância entre os artistas americanos do pós-guerra e seus pre-

decessores voltados para o público. Para o artista que deseja apenas estar inspirado, todos

os valores dependem do seu estado de ser: o interesse por qualquer coisa externa é auto-

traição, incluindo a produção de objetos feitos com a intenção de satisfazer o gosto do

público, ou a divulgação de uma idéia tendo em vista modificar este gosto, tal como a

“preparação para uma concepção universal de beleza” , de Mondrian, através de uma arte

de linhas retas e “ ângulo reto imutável” . De Kooning verificou que o artista atual não

sente um impulso profundo de se enquadrar nas normas da sociedade, sejam estéticas ou

morais. Entretanto, de Kooning não era nem um místico nem um anarquista. A inspiração

que procurava não podia ser uma dádiva da passividade, como em Rothko, por

exemplo, ou do caos, como no automatismo surrealista ou na arte feita sob a influência de

drogas. Do seu ponto de vista, a inspiração só poderia chegar ao pintor através do ato de

pintar.

Enquanto o pintor almejava um estado mais elevado no ato de pintar, a pintura

propriamente dita, liberta da tradição, receberia suas formas através da dignificação

da atividade do pintor. “ Pintar” , de Kooning escreveu, qualquer tipo de pintura... é

hoje em dia um meio de vida, ou, melhor dizendo, um estilo de vida. É ai que reside a forma

(grifo do autor). Transitório e imperfeito como um episódio do dia-a-dia, o ato de pintar

consegue sua forma fora dos padrões de estilo. Transcende os modelos da história da

arte e incorpora à pintura quaisquer imagens que sejam atraídas para a sua órbita. Pintura

“sem estilo” não é nem dependente de formas do passado nem a elas indiferente. E trans-

formante.

Começando com qualquer coisa — uma mancha de cor feita ao acaso, letras

do alfabeto (como, por exemplo, em Orestes), o esboço de um nu o artista vive na

tela aberta às possibilidades de uma nova coerência. À medida em que sua ação se desen-


82

GÁVEA

rolã, seu gesto original se dissolve num acúmulo de acontecimentos que tomam forma

através dos movimentos do pincel. Uma única pintura pode ser prolongada durante meses

ou mesmo anos (Excavütion, Woman, í) ou a ação pode espoucar como um clarão, de

superfície para superfície, como algumas pinturas e desenhos de de Kooning dos anos 60.

(Mais adiante tratarei das pinturas “ longas” e “ breves

de de Kooning e de algumas de

suas técnicas para fazer ressaltar uma imagem numa sucessão de metamorfoses.) A pintura,

na abordagem de de Kooning, cessou de existir como um continuum histórico-ob-

jetivo que se prolonga em direção ao futuro. Cada pintor deve fazer a pintura renascer de

dentro de sua própria vida e dos resíduos móveis das memórias da arte embutidas na sua

sensibilidade (e na do espectador). O artista se projeta da história da arte e, em última

análise, compõe o perfil de seu passado e mesmo de sua própria cultura.

Ao negar que o artista deva seguir a lógica do desenvolvimento histórico —

como, por exemplo, de Cézanne ao Cubismo, do Cubismo a Mondrian — de Kooning possibilitou

um olhar novo e livre para a arte do passado. Ele não podia voltar atrás no tempo e

explorar os caminhos secundários da arte, onde quer que parecessem relevantes. A atitude

de de Kooning sugeria que a história da arte estava repleta de planícies abertas que foram

transpostas pelas carroças (2) da vanguarda, territórios ainda adequados ao cultivo. Assim,

já em Glazier e Seated Figure, ambos executados por volta de 1940, de Kooning

aplica o artifício cubista da anatomia deslocada em figuras modeladas em profundidade. O

Cubismo não é colocado na frente mas recua até Ingres, e de Kooning deixa uma pista

para sua mistura de tempo ao colocar quadrados coloridos no fundo de suas retratações do

patético. Nesses primeiros momentos de acumulação evidente de diferentes períodos da

história da arte, de Kooning desafia as chamadas “ leis de desenvolvimentos históricos” ao

colocar contra elas a vontade de um artista com a consciência da história. Nas pinturas de

figuras masculinas e em outros trabalhos, como Seated Woman, Woman Sitting e Pink

Lady, de Kooning coloca a escolha formal oferecida ao pintor contemporâneo: aceitar o

conceito de profundidade espacial da pintura tradicional, ou trabalhar dentro das superfícies

em camadas, da pintura depois de Cézanne — e se recusa a encolher. Para de

Kooning o tradicional perdeu o poder de comando, e o novo, que não é mais novo, tornou-

se lugar-comum. Tanto a perspectiva como a bidimensionalidade são artifícios à disposição

do pintor; considerá-los como ideal de pintura é um despropósito.

O artista de hoje recebe a arte existente no contexto de suas próprias possibilidades.

Como potencialidades, as obras de toda as épocas possuem o mesmo status: as

pinturas do antigo Egito ou da Europa medieval, ou de um expressionista num sótão de

Manhattan, ocupam posições semelhantes em relação à arte do futuro. No que diz respeito

a idéias herdadas, aquelas da vanguarda de ontem não são mais compelidoras em relação à

pintura de hoje do que a filosofia de Michelangelo ou a religião de Rembrandt. Mondrian é

um pintor importante. Mas, indagava de Kooning, o que tem o pensamento neo-plástico

de tão extraordinário, principalmente depois que foi estabelecido? Em uma mesa-redonda

no Artists Club 10 anos atrás, ele disse: “ Estamos todos embasando nossos trabalhos em

pinturas em cujas idéias não mais acreditamos” . Ao retornar aos trabalhos propriamente


Willem de Kooning

Excavation

Óleo sobre tela, 203x254cm, 1950

Coleção The Art Institute, Chicago

Página 78:

Woman V

Óleo sobre tela, 155xll4cm, 1952-53

Coleção National Gallery, Canberra, Austrália

Página 94:

Merrit Parkway

Óleo sobre tela, 229x206cm, 1959

Coleção Ira Haupt, Nova Jersey


84

GÁVEA

ditos, deixando de lado as idéias que os originaram e sua necessidade histórica, o artista

pode desvendar o que eles têm de criativo e, por isso mesmo, de novo.

Retirar a pintura dos valores sociais, estéticos ou filosóficos de um determinado

tempo ou lugar é basicamente redefinir a profissão. Não mais procurando satisfazer

as necessidades de um público, incluindo seu desejo por aquilo que Nietzsche

chamava “consolação metafísica” , a pintura tem como única finalidade estimular mais

criação: O Juízo Final tem valor não pelos sentimentos que provocou em pessoas agora

mortas mas pelos atos criativos que pode provocar nos vivos. Trabalhos de outros tempos

estão carregados de potencialidades para o futuro, unem o passado com o presente e repelem

a noção de que o novo deve ser procurado em fenômenos que pertencem exclusivamente

a este século — por exemplo, filmes, velocidade, eletrônica, arte abstrata. A arte

se realiza através de uma cadeia de inspirações que não tem começo nem fim

e a inspiração

é seu elemento básico. Brancusi disse: “ Não é difícil fazer as coisas; difícil é co

locarmo-nos em condições apropriadas para fazê-las” . A obra de arte é um memento desse

intervalo de potência.

A arte existe hoje porque os artistas continuam a criá-la, e o artista existe

porque a arte faz com que a criação seja possível para eles (esta é a razão pela qual algumas

pessoas que se intitulam artistas, porém ficam distantes de qualquer arte, caem no ridículo).

Tanto a arte como o artista carecem de identidade e se definem somente através do

encontro um com o outro. Dependem um do outro e se mantêm somente através dessa interação.

Este esforço de equilibrista é o modelo do esforço das pessoas para darem forma às

suas experiências em uma condição de desordem social e cultural contínua. Uma das

críticas de de Kooning às escolas modernistas é que “ naquela famosa virada do século, algumas

pessoas pensavam que podiam pegar o touro a unha e inventar uma estética por antecipação”

. Dadas as dificuldades de se extrair a forma do “ modo de vida” do pintor, era

de se esperar que esse touro fosse domado inúmeras vezes por todo o século. A cada vez,

porém, a potencialidade liberadora da arte era sacrificada. Quando, seguindo o pensamento

de de Kooning, a arte descobre sua forma na realidade da vida do artista (incluindo “a

vulgaridade e seu lado carnal” , que de Kooning enfatizou como sendo uma herança do

Renascimento, ela não impõe valores àqueles que a praticam como ocorre em outras

profissões. A arte se torna um meio para evitar um meio. De Kooning se descarta da

imagem tradicional do artista a fim de começar com ele mesmo, como ele é, e descarta-se

de todas as definições de arte a fim de começar com a arte que poss sair dele. Arte e artista,

por suas indeterminações mútuas, apóiam a predisposição de cada um à multiplicidade de

experiências. Ambos resistem à estilização e absorção de uma ordem induzida. O “Sem

estilo é uma proclamação de independência do pintor que pressupõe uma filosofia liberacionista

do eu.

Criar arte a partir da trivialidade, dos lugares-comuns e do caos que a vida

moderna não pode excluir, é uma força contra a dissolução. Para de Kooning, a pintura é

uma vocação total, na medida em que pintar faz dele o que ele é. Ele sabe que atos de

criação não irradiam luz ininterrupta e que os problemas do homem moderno não serão


Willem de Kooning

85

resolvidos pela arte. E também está consciente que a transição entre o alto e o baixo naquilo

que chamou “ o drama da vulgaridade'’ é próprio da condição humana. Sem a

mínima afetação, ele gosta de música sentimentalóide e cinema, histórias em quadrinhos,

programas e comerciais de televisão. Aceitando sem restrições as experiências resultantes

da instabilidade psíquica do homem contemporâneo, e com a total compreensão de suas

implicações na criação de artes herdadas do passado, de Kooning tomou-se o pintor mais

importante do pós-guerra. Através da sua síntese de análise crítica e auto-afirmação

apaixonada, a pintura vê restituída sua antiga relação com o homem tal como ele é, com

sua “ própria estatura” . Tensões que variam da pressão quase insuportável de Woman, I

aos arrojos de Door to the River ou Two Figures in a Landscape (1967) elevam sua arte à

grandeza da pintura de outros tempos. A arte como uma concentração de energia única,

capaz de ser remanifestada a partir de criações que vão das pinturas das cavernas até os dias

de hoje, se apodera do artista e engrandece sua atuação: pintor e pintura se fundem na tela

durante o ato de pintar. No trabalho de de Kooning, desde os anos 30 até hoje, muitas

vezes aparece um tremor inexplicável e uma luminosidade intensa, como de uma presença

metafísica — que perpassa por Excavation e Pastorale (1963). Esta presença, origem do

que de Kooning chamou de “ a parte do ‘nada’ de uma pintura” , isto é, “ beleza, forma,

equilíbrio” , se dissolve, e ambos, artista e arte, naufragam em confusão. Durante anos era

comum de Kooning se referir ao artista de hoje como “ desesperado” .

Em meados dos anos 40, de Kooning joga com ambigüidades do novo e do

velho, profundidade e achatamento, à medida em que sua inteligência relativista tenta

combinações de técnicas, atitudes e sentimentos sugeridos por diferentes escolas e períodos.

Pink Angels (1945) culmina uma seqüência de desenhos e pinturas de aparições,

partes do corpo separadas, formas abstratas, caligrafia feita ao acaso; evocando Duchamp e

comparando-se aos organismos laminados de Matta e Gorky, esta pintura situa-se na interseção

entre Cubismo e Dada. Com seus tons pálidos de rosa e amarelo, oscilações lineares

superpostas, formas ambíguas flutuantes e vigorosas que não chegam à abstração, é

um trabalho de transição do maior significado. Focaliza uma invenção de de Kooning que

ainda sobrevive à sua obra: formas sugestivas porém indefinidas traçadas pelo desenho inspirado

de impressões da figura humana, mas e interiores, lembranças de antigos mestres e

movimentos espontâneos da mão. Os contornos extremamente lúcidos de Pink Angels

resumem as excursões experimentais de de Kooning de um modo para o outro, num alfabeto

único de formas. Nesta fase de Kooning revela já uma fatura inconfundível.

Em 1946, ano prodigioso para a pintura americana de um modo geral, uma

busca única de de Kooning entre as abordagens de seus predecessores levou-o a descobrir

uma nova relação entre a abstração pós-cubista e os últimos trabalhos de Cézanne através

dos quais a pintura podia ser reciclada com traços carregados de emoção, comparáveis aos

símbolos autotransformadores da poesia de Mallarmé. Visualidade simbolista e metáfora

verbal estão na raiz da psicanálise que ergue, na pintura americana do pós-guerra, uma

ponte entre desenho automático surrealista e signos abstratos, como nos “ totens” de

Pollock. A tenacidade de Cézanne e Mallarmé em estabelecer uma entidade formalmente


86

GÁVEA

coerente a partir de um complexo de associações se encaixava perfeitamente na paixão de

de Kooning por uma arte totalmente aberta a quaisquer experiências recriadas. Ao buscar

a forma através da ativação da psique, de Kooning concretizou uma nova etapa em seu

trabalho; desligado de fontes identificáveis, descobriu de repente um caminho aberto entre

a sensibilidade do artista e a pintura do passado. No contexto do Simbolismo, os contornos

residuais dos membros, dos seios, de alfinetes de fralda e caixas de fósforos das pinturas

denominadas Untitled, de 1941 a 1945, evoluem para uma linguagem de metáforas visuais

(comparáveis à toalha pregueada que, com Cézanne, poderia passar por uma montanha),

da qual o hieróglifo de um sentimento único pode ser criado. Com de Kooning, em contraste

com Cézanne, meio século de arte abstrata tornou possível liberar a metáfora de ob

jetos específicos, propiciando-a estimular campos mais extensos de ressonância emocional.

Formas que emergem espontaneamente da ação do pincel podem esclarecer áreas da psique

nas quais os sentimentos ainda não tenham se cristalizado numa imagem identificada.

Porém — e isto é crucial para distinguir a composição elaborada de de Kooning do au-

tomatismo derivado do Surrealismo no expressionismo abstrato americano — em de

Kooning a evocação do desconhecido se realiza sob o controle da sensibilidade total do artista,

como em Mallarmé ou Joyce, resultando não na fragmentação que no máximo apela

para o gosto, como, por exemplo, em M otherwell, mas num “ statement” com vários

planos de significado.

Formalmente, a configuração metafórica abstrata, que é ao mesmo tempo

um signo, como um número ou letra do alfabeto, e uma representação de uma coisa, como

o esboço de um torso, pode contornar o conflito entre a ilusão de uma terceira dimensão e

a superficialidade da pintura: uma forma oval com um ponto dentro é simultaneamente a

imagem de um olho que parece possuir volume e um desenho sem profundidade, üght in

August, feito em branco sobre preto, por volta de 1946-47, é a primeira obra-prima das

abstrações simbolistas de de Kooning que se originaram da ação na tela, e parece-me esclarecedor

o fato de seu título derivar de Faulkner, um herdeiro dos simbolistas.

As formas orgânicas, dissociadas de suas fontes na natureza, encerram cargas

emotivas em potencial; assim também os triângulos, quadrados ou séries de linhas

paralelas: cinco faixas irregulares podem parecer mãos e despertar lembranças, um

quadrado significar ordem ou o sentimento de estar cercado e uma linha curva representar

uma postura erótica. Nas pinturas de de Kooning do período de Light in August, a forma

de uma cabeça se torna um “ O ” (ou vice-versa), um quadrado se torna uma janela ou a

moldura de uma cômoda, o contorno de um tórax um círculo numa configuração abstrata

ou um aspecto de uma paisagem. O extenso vocabulário de temas de de Kooning e seu uso

múltiplo tem sido bastante significativo. A ambigüidade das formas como artifício da pintura

não é novidade; foi redescoberto pelos surrealistas em Leonardo, e Fernando Léger,

com quem de Kooning trabalhou num mural feito sob encomenda nos anos 30, proferiu

uma conferência sobre seu filme Ballet M écanique, na qual discorreu sobre um planeta

representado pelo close de uma unha.

A metáfora visual não é significativa em si mesma (como pensavam alguns


Willem de Kooning 87

pintores da segunda geração da Action Painting), mas através do uso do artista. De

Kooning, fiel aos valores pictóricos, empregou seu repertório de signos para organizar sua

imaginação em termos visuais significativos. Os surrealistas se contentaram em tratar

seus sonhos criativos como se fossem objetos naturais: os pianos com muletas de Dali e os

bricabraques com penas de Emst não se diferenciavam de pianos ou pássaros comuns e

podiam ser incorporados às estruturas pictóricas convencionais. Por outro lado, sempre

consciente de que ‘‘a idéia do espaço é dada a um artista para mudá-la se puder” , de

Kooning libera a forma que é tanto um signo abstrato como o símbolo de uma experiência

concreta da imobilização de objetos colocados na profundidade do espaço a fim de que funcionem

em uma espécie nova de composição psicodinâmica. Produzidas por um gesto,

como na escrita, diferenciando-se, porém, da caligrafia na preservação do senso de solidez

característico da arte Ocidental, cada uma de suas formas é utilizada como um elemento

distinto de sugestão, numa interação complexa, ao mesmo tempo formal e subjetiva. Enquanto

as figurações dos surrealistas e de Gorky permanecem imóveis como representações

colocadas contra um fundo convencional, as de de Kooning, formando-se a partir de

manobras inspiradas do pincel, induzem a mente a passar de uma para a outra com o efeito

contínuo de captar e perder o significado — esta realidade que o artista chamou de “ relances

passageiros” . Ao se desequilibrar, a consciência vê-se compelida a reafirmar sua

unidade na ação de readquirir o equilíbrio. O mesmo acontece com o artista e o espectador:

ao induzir tais afirmações intelectuais, de Kooning atrai o espectador para o ato da

criação. Sem abolir os elementos de desordem, cada uma das pinturas de de Kooning alcança

coerência de energias.

A abstração metafórica permite ao pintor agir livremente na tela ao descobrir,

de forma análoga à escrita automática, novas articulações de sentidos nos signos

que vão surgindo. É uma característica da atitude de de Kooning com relação a sistemas

intelectuais que a livre associação tenha entrado na sua pintura através da ação de pintar

propriamente dita e não através de uma ideologia ou terapia do inconsciente como as que

inspiraram Gorky e Pollock. Logo, como notamos acima, as composições espontâneas de

de Kooning nunca permitem que a última palavra seja dada pelo automatismo ou por

rabiscos. Suas formas, apesar de poderem começar com um rabisco ou marca, são acionadas

por intuições conscientes nas quais as idéias sobre pintura têm grande participação.

As telas de de Kooning são produzidas sem premeditação, sob a pressão, contudo, de uma

fidelidade inflexível a um sentimento de precisão — e por isto algumas foram trabalhadas

durante anos.

Excavation, terminada em 1950, depois de meses de um exaustivo fazer e

desfazer, revela uma densidade de referência muito mais comum na poesia do que na pintura

moderna. Medindo aproximadamente 2,15 x 2,45 m (tamanho modesto para os

padrões atuais mas perfeitamente de acordo com o conceito de estética espacial de de

Kooning, que o limita ao alcance do artista), o trabalho não tem, internamente, limite de

escala. Suas formas, criações que se acumulam sobre criações (nenhum artista vivo pode

se igualar a de Kooning na capacidade de fazer jorrar formas interessantes), nem se con-


88

GÁVEA

finam à superfície do quadro nem desaparecem por detrás dele, mas continuam a fazer uma

sondagem contínua, ou “excavação” , do mesmo modo que os planos se interpenetram.

Pensamos nos versos de Yeats

Those images that yet

Fresh images beget,

That dolphin-tom, that gong-tormented sea;

exceto que o amarelo monocromático de Excavation, iluminado por brilhantes clarões

vermelho e azul, parece.um mar de pedras ásperas. Esta tela gloriosa, uma obra-prima de

transformação, na qual a pintura como meio “ estático’ zomba da necessidade de materiais

que se movimentam de fato, era um fim e um início para de Kooning.

Excavation é uma pintura clássica, majestosa e distante, como a fórmula

produzida ao se testar explosivos. Se, como de Kooning gostava de dizer, o artista funciona

“ penetrando na tela” e saindo dela outra vez, esta obra-prima não apenas o viu sair mas

também fechar a porta atrás de si (a pintura foi literalmente terminada com a imagem de

uma porta no centro inferior). Reagindo contra a serenidade comum a Excavation e a Cé-

zanneeossimbolistas, de Kooning resolveu,em seguida, aliar-se à tradição de Van Gogh e

Soutine. Não havia saída possível depois de Woman, /, que sucedeu a Excavation; o artista

continua a habitar a pintura como tema emocional. Era como se ele, passando por Cézan-

ne em direção a Van Gogh, também tivesse sido levado para trás, do simbolismo de

Mallarmé para sua origem primitiva no laboratório do “ noivo infernal” de Rimbaud. Em

Woman, /, de Kooning levou a ação da pintura à beira da magia, da mágica moderna que

se esforça para criar seres reais através da ativação dos meios de comunicação. Rimbaud

acreditava que podia evocar novas flores, novas estrelas, nova carne, com sua feitiçaria de

vogais e consoantes. Partindo de uma mágica análoga, de Kooning desejava a manifestação

espontânea de uma deusa através de descargas de energia na pintura.

As pinturas em preto e branco exibidas na sua primeira mostra individual,

em 1948, e Excavation, exposta na Bienal de Veneza em 1950 e ganhadora do primeiro

prêmio do Chicago Art Institute, em 1951, fizeram de de Kooning o líder da arte abstrata

americana. Precisamente neste ponto ele estava pronto para se desligar da abstração e formular

sua convicção de que a glória da arte ocidental estava na sua condição física — “ foi

devido à carne que a pintura a óleo foi inventada” , declarou em 1950. Agora, em vez dos

signos da figura feminina, sua preocupação volta-se para a própria imagem da mulher.

“ Formas” , explicou mais tarde, “ devem ter a emoção de uma experiência concreta” .

No mesmo ano (1950) que começou a trabalhar em Woman, /, de Kooning

anunciou a posição de que a pintura é inseparável do tema. Argumentou que o fato de o

tema ter se tomado um impasse na arte moderna resultava de uma aberração histórica: a

oposição entre forma e tema era, em sua opinião, concebida pela classe média que havia

perdido contato com o significado do gesto humano. Na pintura Renascentista, explicou,

na realidade não havia tema . O que agora denominamos tema era então a própria pintura.

O tema veio mais tarde... quando os burgueses tomaram conta da arte e também

tomaram conta do homem no que diz respeito a este assunto” . Particularmente repug-


Willem de Kooning

89

nantes, para de Kooning, são as teorias modernistas que reduzem a pintura a “essenciais”

(não é de estranhar que nos anos 60 a critica lhe tenha sido venenosamente hostil). De

Kooning detectou, no esforço de puristas para liberar a pintura daquilo que teoricamente

ela pode dispensar, uma semente de tirania — para ele, Mondrian era “ aquele grande artista

impiedoso... sem excessos” . Apesar de de Kooning evitar a política, reconhecia no

impulso de expurgar a pintura da questão real da existência do artista, uma tendência à

disciplina totalitária que modela a vida para se ajustar a fins dogmáticos. “ A questão,

como eles a viam , escreveu com relação aos neoplasticistas e aos construtivistas, ancestrais

dos minimalistas e coloristas dos anos 60, “ não era tanto o que você podia pintar mas

antes o que você não podia pintar. Você não podia pintar uma casa, uma árvore ou uma

montanha '. E concluía, ironicamente, que “ o tema surgiu como algo que você não

deveria ter” . (Grifos de de Kooning)

De Kooning sustentou que a abstração está presente em todas as formas de

pintura, mas não existe isoladamente de outros aspectos do trabalho. Abstração é aquela

“sensação indefinida, a parte estética” . Para chegar à abstração, disse de Kooning, o pintor,

no passado, “ precisava de muitas coisas: um cavalo, uma flor, uma camponesa” . No

entanto, o artista não-objetivo concebe abstração — “ a parte ‘nada’ de uma pintura” —

como alguma coisa que existe em si e para si mesmo, conseguindo talvez sua perfeição no

círculo, no quadrado ou no cubo. Assim a abstração torna-se uma realidade ideal em cujas

bases uma estética pode ser formulada antes das próprias pinturas. O resultado é a subordinação

da criação à teoria. Seguindo esta linha de pensamento, de Kooning denunciou

tanto a matemática como a “ teosofia” na arte, e se comprometeu com a natureza e o concreto.

Sustentou que a fascinação peculiar à arte Ocidental, desde seus primeiros animais e

ídolos até Picasso e Giacometti, está precisamente no respeito pelo corpóreo “como ele

é” , devido ao fato de um ser humano ter atributos tais como um rosto, um corpo. “ Quando

penso em pintar hoje” , de Kooning declarou, “ sempre me surpreendo pensando

naquela parte que tem relação com o Renascimento. Parece-me que é a parte vulgar e carnal

que faz isso particularmente Ocidental” . E associou a abstração ao Oriente, com a

“circunstância de não estar aqui ” . “ É ausente” , declarou, acrescentando: “ Por isso é tão

bom” .

O significado desta polêmica vigorosa passou desapercebido, de uma maneira

geral, aos contemporâneos de de Kooning que depois foram envolvidos pelo entusiasmo

da “ nova pintura abstrata americana” . Eles continuavam a classificar de Kooning

como “ artista abstrato” e as discussões em torno de seu trabalho tendiam a ignorar o seu

conteúdo, favorecendo o ensino da história da arte no que se refere à influência do cubismo

e aos problemas da “ abstração sem lar” (plagiada do termo pintura sem lar , de Berenson).

Entretanto, na determinação de concretizar suas metáforas através da reaproximação

das formas á carne, embarcou numa nova relação com seu símbolo original, a Mulher,

com o objetivo de pesquisar novas possibilidades de experiências esclarecedoras através da

pintura. A seriedade da mudança é indicada pelo fato de Wonzan, I ter levado quase dois

anos para “ acabar” (nunca foi terminada) e de que muitos anos se passaram antes que os


90

GÁVEA

admiradores das abstrações em preto e branco de de Kooning pudessem aceitar sua

Mulher. “Se eu tivesse caráter, pintaria abstrações” , queixava-se paradoxalmente de

Kooning, pensando no código do artesão de fazer obras que agradem a seu público.

De 1940 até o presente, a Mulher tem se manifestado nas pinturas e desenhos

de de Kooning simultaneamente como foco de desejo, frustração, conflito interno,

prazer, desdém, humor e ironia, e colocando problemas de concepção e de execução semelhantes

aos de um engenheiro. Em Seated Woman, Woman Sitting, Queen o/Hearts.

Pink Lady, Woman — todas executadas entre 1940 e 1944 — uma mulher sentada com as

pernas cruzadas ou cortadas abaixo dos joelhos aparece numa variedade de formas, algumas

próximas da caricatura. O esboço a lápis de Reclining Nude transforma a figura

numa boneca núbil, e o quadro Woman (1944), em verde e amarelo, dá a ela uma máscara

cômica. O fragmento de corpo Untitled (1945), a pastel e lápis, é uma peça sobressalente

que reaparece em Still L ife, do mesmo ano; trata-se de um dos primeiros exemplos da

maneira como de Kooning converte uma forma natural em uma abstração. Nestas primeiras

Mulheres, o cubismo é invocado constantemente, porém posto de lado pelo esforço

do artista em encontrar algo que se encaixe de forma precisa em seus sentimentos com

relação ao tema. Em Pink Lady, a figura se desfaz em movimentos; em Woman Sit/iny,

braço, ombro, pescoço e uma cabeça desproporcional são amalgamados num único movimento,

antecipando as figuras posteriores de de Kooning que vão surgir da ação.

Woman (1949) é uma magnifica dança de formas criadas durante o ato de pintar: o fato

dessas formas constituírem uma figura feminina e não uma composição abstrata, como

Attic, executada no mesmo ano e cuja forma complexa que arremata a massa central é

uma cabeça alongada e retorcida em êxtase, confere á pintura uma dimensão de realidade

emocional, assim como o golpe do centro inferior para a esquerda é um pontapé bem-

humorado da perna direita da mulher. Deslocamentos anatômicos, comparáveis àqueles

feitos por de Kooning em Men (1938-40), transpõem a anomalia da estrutura estética fundida

com a experiência direta. A Mulher, constantemente presente e constantemente em

mutação, às vezes fragmentada, complementa o “ E u ” instável do artista. “ Eu poderia

manter isto sempre , disse de Kooning sobre a pintura da Mulher, “porque isto poderia

se transformar sempre; ela poderia (...) não estar lá ou voltar novamente, ela poderia ser

de qualquer tamanho. Porque esse tema poderia se responsabilizar por quase tudo o que

pudesse ocorrer” .

Com a dissolução das formas e contornos da figura feminina em Pink Angels

e Still Life (1945), formas que continham uma sugestão erótica são transformadas em

signo emocional da linguagem, susceptível de uma organização livre e rítmica. Nas Action

Paintings do final dos anos 40 - Light in August, Black Fridays, Orestes - em que

as primeiras hesitações estilísticas e tratamentos complexos precipitam-se na direção de

uma nova afirmação, firme e auto-consistente, a Mulher transforma-se em paisagens

rurais estranhamente humanóides contendo passagens de calor e frio vibrantes. Sinais

evidentes são o busto gracioso no centro superior direito de Light in August, o esboço de

um tórax que contorna um ombro no canto inferior esquerdo de Mailbox, o seio na parte


Willem de Kooning

91

central inferior esquerda de hlxcavation. Na mesma época, de Kooning executou a Mulher

(1949) heróico-cômica acima referida, Two Women on a Wharf (1949), além de outros

trabalhos significativamente rotulados de “ abstrações” como Boudoir\ Warehouse

Manikins\ Woman, Wind and Window, nos quais o torso feminino é inconfundível —

Thomas Hess descobriu até a imagem esmaecida de um nu em Attic.

Um aspecto básico da arte de de Kooning é a rejeição de clichês radicais.

Para o artista de vanguarda a mulher é um tema “ proibido” . Em notável entrevista para o

critico inglês Davis Sylvester, de Kooning revela como se materializavam suas pinturas da

Mulher por detrás do muro intelectual que ergueu contra idéias aceitas. A figura feminina

tem sido “ pintada através dos tempos” , reconheceu ele, e é um absurdo um artista, nos

dias de hoje, pintá-la novamente. Mas igualmente absurdo é recusar-se a pintá-la — nem

que seja apenas porque, a essa altura, as ordens e proibições do vanguardismo tenham se

anulado mutuamente. O que importava para de Kooning era que a Mulher, como tema,

estava Id como um interesse tradicional da arte e “ era isto que eu queria apreender” . Em

resumo, a disponibilidade do tema coincidia com a disponibilidade da personalidade do artista

— porém, sempre em transformação. Pensar a Mulher era o mesmo que enfrentar

“encontros relâmpagos” . Mas seu próprio evanescimento era uma garantia de que ela

nunca seria exaurida como tema, e que a tentativa de apreender sua realidade através do

ato de pintar poderia se prolongar indefinidamente ( “ Eu poderia manter isto o tempo todo,

uma vez que poderia ser mudado sempre” ). O desempenho era o objetivo para alcançar e

manter ativo o processo de criação e descoberta (“ Eles querem apçnas ser inspirados” ). A

Mulher como tema da ação do pintor não tem limites. Quando a mente trabalha, faz uso

de tudo aquilo que esteja a seu alcance, intemamente e no mundo exterior. Durante uma

curta fase, Woman, I era uma menina com vestido amarelo que de Kooning reparou na

Fourteenth Street. A pintura também passou a conter mães sentadas em bancos do East

SidePark; uma madona estudada de uma reprodução; E. — ou M. — amando. Todas essas

mulheres, e muitas outras, apareceram no decorrer da pintura e desapareceram na máquina

de consolidação do processo de de Kooning. As feições que sobreviviam, disse de

Kooning a Sylvester, se tornavam o “sorriso... de ídolos da Mesopotâmia, espantados

com a força da natureza” .

Para de Kooning, problemas técnicos (como desenhar os joelhos da Mulher,

como conseguir que a tinta não seque depressa) não existem isoladamente, eles surgem

dentro do amálgama cambiante da experiência do pintor. Não existe uma meta formal

que a pintura deva alcançar ( “ Nunca estive interessado em saber como fazer uma boa pintura”

), assim como não existe um fato básico do qual ela possa ser equivalente. Um acontecimento

possibilita outro, em qualquer nível de ocorrência. Ao projetar seu atelier, de

Kooning realiza um conjunto de planos que satisfazem a seus desejos naquele determinado

momento. Porém, tão logo termina os planos, começa a fazer um novo conjunto. A

primeira concepção levantou novos problemas, novas possibilidades. Qualquer solução é

apenas um ponto a ser percorrido no caminho para outra abordagem. O próximo gesto

levará talvez o artista para mais perto do seu verdadeiro eu, isto é, de alguma coisa no seu


92 g á v e a

interior que ele ignorava existir. “ Mais próximo” , entretanto, é apenas uma figura de

retórica, pois, se o trabalho ficou mais ou menos próximo de um suposto eu do artista, foi

vivenciado e é portanto a própria substância de sua existência. “ No fim” , disse de

Kooning a Sylvester sobre suas pinturas de M ulher, “ fracassei. Mas não fiquei aborrecido...

senti que foi, de fato, uma realização” . Fracasso ou sucesso, ele poderia reivin

dicar com Jacques, de Aj You U ke It: “ Ganhei experiência” . Pintar a Mulher foi um

“ ato” na arena da história da arte, uma demonstração de habilidade e imaginação frente a

uma galeria imaginária de grandes mestres. “ Eu não trabalhei nesse quadro” , disse de

Kooning, “com a idéia de realmente fazê-lo. Com ansiedade... talvez medo, ou êxtase...

para parecer um ator: para verificar quanto tempo pode-se ficar no palco frente a uma

platéia imaginária” . O que o salvava da presunção era não esperar que Michelangelo ou

Rubens ficassem até o final do espetáculo.

A profunda familiaridade de de Kooning com os gênios da pintura Ociden

tal é o segredo da ambição muitas vezes a ele atribuída. Em suas telas, a pintura do século

X X recupera a concentração metafísica no ser, na aparência c na ação dos momentos mais

elevados da arte. A fidelidade ao que chamou de “ problemas de vida e morte” coloca as

pinturas de de Kooning em posição antagônica aos maiores esforços de conscientização da

criatividade Ocidental. Ele evitou essa comparação recorrendo à própria pretensão da vanguarda

no sentido de que as comparações têm sido viciadas através da descoberta de novos

caminhos para a arte. E resumiu para Sylvester: “ Não sou amante do novo — é uma coisa

pessoal” ,

A Mulher, símbolo de mutabilidade inesgotável, fundiu-se com outros

temas que ele “ podia manter sempre porque elas podiam mudar sempre” . Seu conceito

de ‘não-ambiente” com o qual resolveu, nos anos 50, o problema de localização para

suas mulheres gigantes, iguala as variações de M ulher à perpétua troca de pessoas, coisas,

eventos e impressões nas ruas de Manhattan. Nas séries que começam com Woman, /, de

Kooning vai desde as indicações de interiores ou paredes em segundo plano, encontradas

nos primeiros estudos de figuras masculinas até Woman (1949), à rejeição tanto do tradicional

espaço ilusório como da composição moderna em planos. Estas convenções, tanto

a nova como a velha, perderam a razão de ser em meados do século X X . Na realidade, a

mulher não é percebida nem como uma imagem estática com uma mesa atrás de si e um

cachorro a seus pés, nem como uma figura num padrão de formas coloridas. Ela e seu ambiente

são percebidos simultaneamente como um complexo de sensações evanescentes,

paixões e humores passageiros

e esta mistura de elementos só poderá renascer durante o

ato de pintar. O tratamento formal das séries de de Kooning no inicio dos anos 50 consistiu,

portanto, na destruição da fronteira entre figura e fundo através da representação na

tela da interação de atos equivalentes a um fluxo de encontros visuais. Na época em que

Woman, IV foi terminada, os contornos internos e externos foram todos fragmentados

pelos golpes e contragolpes dos gestos do pintor, como uma figura identificada através do

emaranhado de um tráfego veloz. Restos de “ olhos” e “ braços” identificam o tema como

o congelamento de forças físicas e psíquicas (a mulher-ambiente) numa manifestação

irônica. Fazendo um exame rigoroso, Woman, IV se reconstitui como uma cariátide


Willem de Kooning

93

monumental, de braços cruzados e olhar fixo e clássico. Ela é uma deusa do Lugar Nenhum

erguida do mar de acontecimentos desconexos.

O desenho a carvão, Monumental Woman (1953), esboça uma idéia complementar

que de Kooning iria desenvolver plenamente nas pinturas dos anos 60, a idéia

de a mulher ser ela mesma um “ lugar" através da absorção das formas da paisagem.

Monumental Woman é Washington, D .C.: o nariz é o Washington Monument e, sob a

curva do busto direito, o movimento circular das colunas deriva provavelmente do Jeffer-

son Memorial. Woman in Bicycle resolve o problema do meio ambiente de maneira diferente.

Ao se perguntar “ o que e onde" colocar junto dela, o artista encerrou suas ruminações

com o uso divertido do artificio de justapor um cavalo ou uma árvore ao tema

humano. A bicicleta é o oval localizado no canto inferior esquerdo, que repete no mesmo

plano pictórico os ovais dos seios da mulher.

As formas das paisagens urbanas abarrotadas de pessoas, de meados dos

anos 50 — Gotham News, Saturday Night, Police Gazette —, estão relacionadas, como

indicam seus titulos, às notícias e ao calendário, ao fluxo dos acontecimentos no tempo, e

não a objetos situados no espaço. São formas em transposição: ângulos partidos, círculos,

quadrados abertos, seios desconectados e virilhas colidem com o Lugar Nenhum de de

Kooning e explodem em estrias e partículas de tinta. Melhor dizendo, as formas constituem

um ambiente onde nem indivíduo nem objeto podem reivindicar uma identidade.

A composição comprimida, sólida, com extremidades desiguais, superfícies ásperas e cores

indetermináveis e indescritíveis de Gotham News e Easter Monday, foi extraída da

pressão que o pintor sofreu durante o período difícil que passou nos sótãos de Fourth

Avenue e East Tenth Street, das portas deterioradas dos prédios, do lixo amontoado nas

passagens entre os edifícios, das lanchonetes da Bowery, dos bêbados nas sacadas. Quando,

em 1957, começa a pintar em Springs, Long Island, suas composições se liberam, num

suspiro de alivio, em panoramas líricos como que ajustados aos passeios no campo. O novo

símbolo da metamorfose é a auto-estrada. Pare Rosemberg, Suburb in Havana (lembranças

de uma visita), Door to the River, são paisagens não localizadas, originadas do novo

ambiente que cerca o artista.

Na obra de de Kooning existem pinturas grandes e pinturas pequenas, não

em termos de tamanho mas em termos do tempo que levou para pintá-las. Seus principais

trabalhos tendiam a se alongar: Excavation, “ terminado na primavera de 1950; Woman,

I, iniciada quase que logo após, na qual de Kooning trabalhou durante quase dois anos. Essas

ações prolongadas, assim como o grande número de outras executadas rapidamente em

carvão, em 1957, se deram num ponto crítico do desenvolvimento de de Kooning e

produziram drásticas alterações em seu trabalho. É extraordinário como a tenacidade de de

Kooning iguala-se à perícia do gesto executado rapidamente, quase que instantaneamente.

Em muitas das abstrações com paisagem e figura de alguns anos atrás, ele conseguiu,

através da velocidade, uma claridade luminosa e uma vivacidade não alcançadas em suas

composições mais densas. Uma das principais qualidades de de Kooning (se comparado,

por exemplo, a Pollock ou Kline) é a variedade do ritmo que ele conseguiu introduzir na



Willem de Kooning 95

sua ação, sem destruir a continuidade.

Nenhuma arte de nosso tempo está mais comprometida com a vida orgânica

de seu criador que a de de Kooning. Cada fase do trabalho contém a substância de sua condição

psicológica, da sua atividade intelectual e do seu ambiente físico. As pinturas de

Mulher como paisagem só poderíam vir de alguém que é, pelo menos em parte, um

paisagista. As composições de de Kooning nos últimos 12 anos são uma mistura de mar,

céu, folhagens, praias e banhistas, absorvida durante passeios de bicicletas nas estradas de

Springs, ou a observação atenta do litoral no inverno e quando as praias estão cheias. Boa

parte da consciência de de Kooning consiste num puro reflexo sensorial aos fenômenos,

comum aos animais.

A água é o elemento mais utilizado nos trabalhos recentes: água corrente,

água esguichando, pingando e refletindo a luz. Ele encontrou uma nova metáfora na

superfície do mar para “ colocar” coisas e o próprio eu ( “ Aqui estou, Antony;/no entanto,

não consigo conter esta forma visível” ). A figura reclinada em Woman in a Rowboat

(1965) mergulha num sonho ensolarado sob as ondas de tinta que formam seu torso e seu

entorno — uma obra-prima da utilização do objeto como acontecimento.

O mar, como os outros símbolos de metamorfose, tem para de Kooning um

significado autobiográfico, fazendo a ligação entre sua cidade natal e da infância na Holanda

e New York, para onde veio como clandestino, em 1926, aos 22 anos de idade. A

travessia do Atlântico é o Grande Acontecimento ao qual sempre retorna, em anedotas e

recordações íntimas — “ não ligo a mínima para o Pacífico” , declarou recentemente de

modo agressivo. Untitled, a mais antiga pintura exposta na retrospectiva de 1968-69, foi

executada em 1934, oito anos após sua chegada aos Estados Unidos; ela consiste em formas

que sugerem vigas e convés de navio, tendo ao fundo o mar e o céu e, no primeiro

plano à direita, uma cabeça coberta com uma máscara olhando para a terra. A arquitetura

de navios, as juntas perfeitas e as superfícies polidas dos trabalhos náuticos em madeira, os

àlojamentos impecáveis dos marinheiros escandinavos são, para de Kooning, símbolos de

uma ordem e de um bem-estar intrínsecos. Trinta anos depois, quando trocou Manhattan

pela ponta leste de Long Island, projetou um atelier com vigas e escoras, escadas em espiral

e mirantes. E, ao pintar quadros com títulos como Ciam Diggers, W oman, Sag Har

bor, Woman Acabonic, W oman in a R ow boat, ele combina a fábula marinha ao seu outro

tema fabuloso: a Mulher.

As Mulheres dos anos 60 não são mais aqueles ícones sólidos do “ não-ambiente”

; são as jovens atraentes de hoje na praia. Mas essas moças delgadas e fisicamente

difusas cumprem uma função experimental na auto-investigação de de Kooning: são

produtos de seus últimos artifícios para enganar a mente obstinada e a mão treinada que

estão prontas para se defender do mesmo processo que as enganou. Ele treinou o desenho

da figura com ambas as mãos, com a mão esquerda, com dois ou mais lápis simultaneamente.

de olhos fechados, enquanto assistia televisão. Em 1971, esculpiu com barro de

forma semelhante. Para extrair figurações imprevistas de suas telas, de Kooning cria suas

imagens uma a partir da outra ( “ Eu poderia pegar qualquer coisa que pudesse ser acidental


96 gávea

num quadro anterior” ); por exemplo, colando folha de jornal numa pintura com tinta

fresca ele produz, ao retirá-la, duas composições descontroladas que podem permanecer

desta forma ou ser trabalhadas. Comparadas às telas anteriores, as pinturas dos anos 60

ganham novamente ritmo, luminosidade e vibraçao na superfície, através de sua linha

trêmula e do cromatismo dos vermelhos, rosas, verdes e brancos. Assim como no passado,

de Kooning continua jogando com a possibilidade da destruição de cada trabalho em andamento,

na medida em que o deixa aberto a associações que brotam no decorrer da

criação. Algumas das pinturas, como, por exemplo, Untitled (1967), estão entre as

criações mais líricas do século, mas de Kooning não excluiu delas imagens que surgem de

torrentes de rancor, desgosto e vingança. Como sempre, suas pinturas tomaram forma à

beira da dissolução. Para existir precisavam de uma persistência heróica diante de incertezas,

assim como um grau razoável de boa sorte ou da proteção do desconhecido. Consistente

com o princípio de renovação constante, a qualidade estética fundamental de de

Kooning é o frescor, o frescor das coisas como elas aparecem num sonho — sua admiração

pelos papéis recortados dos últimos anos de M atisse e suas experiências com mistura de

tintas e secantes estão relacionadas com a procura do frescor. Comparadas com suas

Mulheres de Long Island, a maioria das pinturas e esculturas da geração mais jovem

originadas da estética racionalista dos anos 60 já parecem velhas ao nascerem.

De Kooning nunca tentou dar um sentido político ao seu trabalho. A ação

da arte se dá na tela, não na comunidade. Ele era o único entre os pintores da Action Pain-

ting a introduzir na sua pintura elementos da cultura popular, tais como notícias e recortes

de anúncios, porém esses materiais não continham implicações sobre a sociedade nas quais

originavam-se. Contudo, sob a pressão ideológica característica dos últimos 40 anos, fidelidade

inflexível à espontaneidade e independência são em si mesmas um posicionamento

quase político — posicionamento condenado por Lenin, proscrito nos países totalitários,

repugnante para burocratas, conformistas, homens de empresa e programadores. Unidades

improvisadas como as de de Kooning são as únicas alternativas para as filosofias

modernas de salvação social que, usando como atrativo a possibilidade de maior riqueza

material para o indivíduo, na prática sempre o coloca de lado. A arte de de Kooning atesta

a recusa de ser recrutado ou posto de lado. A expansão dos recursos da pintura como meio

de permitir a interação da sensibilidade com o acaso, o impulso, com o que é dado e o desconhecido,

pressupõe que o indivíduo, tal como é, continuará a se opor a todos os sistemas.

Se a ideologia é o fantasma que assombra a pintura do pós-guerra, de Kooning assombra

o fantasma. Ele é o incômodo do ‘‘Eu Sou” individual numa era de credos e estilos

coletivos.

Text° publicado como introdução a Willem de Kooning, de Harold Rosenberg (New York: Abrams,

n 73 ’ ^ P °stenormente incluído em A n & Other Serious Matters (The University of Chicago

Press, 1985), que reúne vários ensaios de Rosenberg sobre arte


Willem de Kooning 97

Notas

1. Metáfora usada pelo autor para comparar a obra ‘descompromissada’ com quaisquer elementos,

temas ou teorias de Kooning, a uma das praças mais populares e movimentadas de Nova York que,

além de ser terminal de metrô, se ramifica em várias ruas de comércio intenso e extremamente

popular. (N.T.)

2. No original, covered wagons, as grandes carroças ou prairie schooners que transportavam os desbravadores

do Oeste norte-americano. (N.T.)

Por muitos anos Harold Rosenberg foi crítico para a revista The New Yorker e

professor no Committee on Social Thought do Departamento de Arte da Universidade de Chicago.

Sua abordagem imaginativa da estética e da situação cultural dos artistas contemporâneos influenc iou

não apenas o campo da crítica, como também a prática da arte e o processo de seleção que proclamou

a importância de figuras de proa do pós-guerra, tais como Bamett Newman, Arshile Gorky, Jackson

Pollock, Franz Kline, Mark Rothkoe Willem de Kooning.


1. Burgoyne Diller

First Theme

Óleo sobre tela, 86x86cm, 1939-40

Coleção Diller


CLEMENT GREENBERG

Tradução: Angela Loureiro, Antonio Guimarães

Depois do expressionismo abstrato

Há pouco mais de vinte anos, todos os pintores jovens e ambiciosos que eu

conhecia em Nova York consideravam a arte abstrata a única saída possível, o único

caminho para dizer algo de pessoal e, portanto, de novo; enfim, algo que valesse a pena

dizer. No terreno da arte figurativa, sua ambição se via confrontada com muitas posições

já ocupadas. Não era tanto a figuração per se que os incomodava; era antes a ilusão, ou

melhor, a ilusão da tridimensionalidade. Sem dúvida continuava existindo uma figuração

esquemática na arte de Matisse, Picasso, Léger, Braque, Klee e Miró (como hoje na de

Dubuffet), mas o trabalho de todos eles era percebido como virtual mente abstrato. Foi

destes artistas, e também de Mondrian, que os jovens pintores a que me refiro tiraram os

ensinamentos mais importantes em matéria de abstração.

Nessa época, a arte abstrata digna desse nome parecia inseparável dos

cânones do cubismo sintético, mantendo-se fiel aos contornos nitidamente marcados, às

formas fechadas e mais ou menos regulares e às cores planas. Talvez não fosse preciso

seguir esses cânones literalmente, mas parecia necessário respeitar a orientação geral que

deles resultava. No final dos anos 30, essa orientação começou a significar limitação. A

despeito da crescente importância do trabalho de Klee (cuja influência teve um efeito

liberador pelo menos sobre Tobey, Ralph Rosenborg e mesmo Loren Mclver) e se bem que

em Nova York se começasse a admirar as primeiras pinturas abstratas de Kandinsky, a

maior parte dos jovens artistas a que me refiro continuava a acreditar que, para adquirir

um estilo realmente abstrato, era preciso recorrer a formas ajustadas e nítidas, delimitadas

e achatadas. Qualquer outra solução parecia uma escapatória ou, no mínimo, excessivamente

idiossincrática, invalidando-se assim sua adoção como caminho a seguir.

Esse era mais ou menos o estado, palavra que emprego propositalmente, em

que se encontrava a arte abstrata em Nova York até o início dos anos 40. Nessa época;

fazia-se boa pintura abstrata em Nova York: não apenas Stuart Davis, mas igualmente

Bolotowsky, Cavallon, Diller (Figura 1), Ferren, Glamer, Balcomb e Gertrud Green,

George L.K. Morris e alguns outros, todos adeptos de um cubismo “fechado” . Algumas

das obras de Gorki desse período parecem hoje mais independentes do que pareciam então,

e de Kooning realizou nessa fase aqueles que considero seus melhores trabalhos, embora

não os tenha exposto na época. E, contudo, a sensação de que o cubismo fechado tinha se

tornado limitador transparecia na idéia de que era preciso ultrapassar Stuart Davis, e não

apenas igualá-lo. Isso era bastante injusto, mas, passado algum tempo, posso entender por

que era necessário. Por melhor que ele fosse — e continue sendo — Davis permanecia um

artista provinciano,.e havia no ar o sentimento, embora ainda vago, de que era preciso


l

100

GÁVEA

dominar o provincianismo. Ao mesmo tempo, parecia mais difícil do que nunca para um

pintor escapar ao provincianismo, à tutela de Paris.

A ascendência sufocante do cubismo sintético, no início dos anos 40, ajuda

a compreender por que os quadros de influência surrealista de Baziotes funcionaram, em

1942, como uma corrente de ar fresco. Baziotes saiu-se muito bem ao sugerir um espaço

ilusionista, ao contrário do Matta desta mesma época. A o fazer esta opção, não me parece

que Baziotes tenha apenas escolhido a saída mais fácil.

O verdadeiro rompimento se produziu, contudo, com as primeiras exposições

individuais de Pollock e de Hofmann em Nova York, respectivamente, em outubro

de 1943 e em março de 1944. Nestas exposições, vi quadros abstratos que eram “ pictóricos’’

(malerisch), causando-me, pela primeira vez, a impressão de uma abertura total.

Comparados à arte de Pollock e Hofmann, os quadros abstratos de Kandinsky, pintados

entre 1910 e 1918, pareciam quase preciosos, e os de Klee, dignos de um miniaturista

meticuloso: nenhum dos dois havia sido tão solto, aberto ou extravagante no emprego

brutal da tinta. Só se encontra precedente para este trabalho na pintura figurativa, e é sig-

2. Jackson Pollock

The Sea- Wolf

Óleo e guache sobre tela, 107xl70cm, 1943

Coleção Museu de Arte Moderna. Nova York


Depois do expressionismo abstrato 101

nificativo que nem Pollock (Figura 2), nem Hofmann fossem completamente abstratos

nessas primeiras exposições.

A partir daí, foi um degelo geral. Em 1943 e 1944, Gorky também se tornou

mais pictórico , sob a influência das paisagens e das primeiras pinturas abstratas de

Kandinsky. Muitos discípulos e ex-discípulos de Hofmann começaram a pintar quadros

abstratos, influenciados por Bonnard ou por Rouault. Em 1946, de Kooning abandonou o

cubismo “fechado” , se não propriamente o cubismo sintético, passando a sofrer a influência

de Soutine. Em 1947 e 1948, a passagem mais deliberada para o expressionismo abstrato

de artistas como Tworkov, Guston, Brooks e mesmo Tomlin traduziu-se na adoção

de um tratamento mais solto e “ pictórico” .

Painterly não foi o termo empregado, mas, a meu ver, era exatamente isto

que Robert Coates queria dizer quando denominou a nova arte abstrata aberta de Nova

York de “expressionismo abstrato” . Embora fosse uma reação contra o rigor do cubismo

sintético, inicialmente esta nova arte empregava o mesmo vocabulário.

Um tratamento mais solto da matéria pictural e um sentido ainda essencialmente

cubista de composição e desenho era o que havia de comum nos trabalhos de artistas

tão diferentes como Gorky e Pollock em meados da década de 1940. Se o termo “expressionismo

abstrato” designa alguma coisa, na verdade significa a afirmação do pictórico:

um tratamento solto, rápido, ou a aparência disso; massas que fazem manchas e se

confundem, em lugar de formas que permanecem separadas, distintas; ritmos largos e bem

aparentes; tons que se acentuam ou se degradam; cores de saturação ou de densidade

desiguais; marcas visíveis de pincel, espátula, dedo ou trapo; em suma, uma constelação

de características físicas análogas ás definidas por Wõlfflin quando este construiu sua

noção de Malerische a partir da arte barroca (1). Como facilmente podemos perceber hoje

em dia, a evicção do “ linear” e do quase-geométrico enquanto estilo dominante na arte

abstrata nova-iorquina (e parisiense) depois de 1943 oferece mais um exemplo daquela alternância

cíclica entre o não-pictórico, ou linear, e o “ pictórico” , que marcou a evolução

da arte ocidental desde o século XVI.

A abstração pictórica tendeu a ser menos plana, ou menos rigorosa em sua

planeza, do que a abstração “ fechada” ou linear que a precedeu, desta diferenciando-se

sobretudo por comportar muito mais veleidades de ilusão. Quero dizer com ilusão algo de

distinto da representação ou da ilustração: a ilusão de um espaço tridimensional pode-se

produzir com ou sem a formação de entidades tridimensionais. Os quadros de Kandinsky

pintados entre 1910 e 1918, tão semelhantes a paisagens, já nos haviam revelado esse

efeito; o expressionismo abstrato revelou-o de novo, e de maneira persistente. Isso não

deveria ter causado surpresa. O “ pictórico” ingressou na arte ocidental há quase quatrocentos

anos, e desde então sempre foi sobretudo um meio de aumentar a ilusão de um

espaço tridimensional. Ao longo do tempo e da evolução da pintura, saturações desiguais

de tinta e de cor, contornos quebrados ou esmaecidos puderam evocar um sentido físico de

espaço em profundidade quase tão imediata e automaticamente quanto um efeito de sombra,

e mais facilmente do que jamais o fizeram as linhas de perspectiva. O espaço tridi­


\

mensional na pintura abstrata e quase-abstrata das décadas de 1920 e 1930 tinha sido, no

essencial, uma questão de “ diagrama” e de associação. No “ pictórico” dos anos 40 e 50,

reaproximou-se novamente da ilusão em trompe l'oeil, da ilusão atmosférica. Não que se

tenha tornado mais profundo; tornou-se mais tangível, mais uma questão de percepção

imediata do que resultado de uma “ leitura” .

Em junho de 1948, a Partisan Review publicou um artigo de George L.K.

Morris no qual ele me recriminava por preferir a pintura denominada por ele de behindthe-frame

(pintura por-trás-da-moldura). Em minha resposta, eu disse que Morris havia

sucumbido a um certo tipo de dogmatismo segundo o qual, em um dado periodo, uma forma

de arte deve ser superior a todas as outras. Seu dogmatismo, porém, em nada diminuía

a acuidade dessa designação — pintura-por-trás-da-moldura — em todas as suas implicações,

que só mais tarde vim a admitir. Os trabalhos de Hofmann (Figura 3), Gorky e

Pollock (Figura 4) situavam-se mais por-trás-da-moldura que os de‘Mondrian ou do Picas-

so posterior a 1913. É certo que isso, por si só, nada diz a respeito de seu valor estético


1

Depois do expressionismo abstrato 103

relativo, e Morris estava errado ao fazer tal inferência. Mas tinha absoluta razão ao sugerir

que a abstração pictórica ia para trás em termos de evolução de estilo (2), mesmo se “ ir

para trás" no sentido literal fosse então praticamente a única maneira de ir para frente em

termos de qualidade: melhor dizendo, a única maneira de manter uma alta qualidade, em

bora ndo necessariamente de melhorá-la.

Mais tarde, no decorrer dos anos 50, uma boa parte da pintura expressionis-

ta abstrata passou de fato a pedir uma ilusão de espaço tridimensional mais coerente. E, na

medida em que fazia isto, pedia a figuração, uma vez que tal coerência só se pode obter, de

um modo ou de outro, pela representação tangível de objetos tridimensionais. Era, portanto,

inteiramente lógico que, quando a abstração pictórica de Nova York acabou por se

cristalizar em uma maneira estabelecida, ela o tenha feito com uma série de obras expressamente

figurativas, as Women (Figura 5) de Willem de Kooning, de 1952-1955. Denominei

esta maneira próxima à abstração, característica de de Kooning e dos inúmeros

artista que ele influenciou, de “ figuração não-representativa” (homeless representation),

4. Jackson Pollock

Enchanted Forest

Ôleo sobre tela, 213x116cm, 1947

Coleção Peggy Guggenheim, Veneza



Depois do expressionismo abstrato

105

expressão pela qual entendo uma utilização do pictórico de maneira plástica e descritiva

que se aplica a finalidades abstratas, sem contudo deixar de sugerir finalidades figurativas.

A figuração não-representativa não é, nela mesma, nem boa nem má, e é

possível que alguns dos melhores resultados do expressionismo abstrato tenham sido obtidos

no início, quando flertava com a figuração. A mediocridade só viceja com constância

em uma maneira quando esta se esclerosa em maneirismo. E isso aconteceu com a figuração

não-representativa em meados da década de 50, na arte de Guston e de Kooning,

e, depois de 1953, na de Kline e de muitos de seus imitadores. É com base nesses resultados

concretos, e não devido a um parti pris, que se pode encontrar o que censurar na

figuração não-representativa: na verdade, o que só envolvia contradições de ordem lógica

passou a comportar contradições de ordem artística.

Algo Semelhante aconteceu com as duas principais tendências da versão

européia do abstracionismo pictórico (que surgiu igualmente durante a guerra). Também

na Europa, a abstração pictórica tende para o tridimensional. Há uma tendência, como a

de nossa figuração não-representativa, para uma tridimensionalidade da ilusão, assim

como há uma tridimensionalidade literal e bem real, resultante da acumulação de matéria

pictórica, e que poderia muito bem ser chamada de “ baixo-relevo furtivo” . Esta última

está mais próxima da figuração do que a outra, mesmo em se tratando de uma figuração

em grande medida esquemática, uma vez que teve início com Dubuffet e Fautrier e chegou

ao seu desenvolvimento pleno — embora não tenha atingido seu ponto máximo — com o

trabalho dos últimos anos de de Staêl. (Por figuração “ esquemática” entendo uma figuração

que depende principalmente de um tratamento linear ou de uma colocação, sem

que aquilo que é representado seja necessariamente resultado de uma modelatura ou de

efeitos atmosféricos, isto é, sem ilusão.) É bastante curioso constatar que a outra tendência

da abstração pictórica européia, a que está mais próxima da nossa figuração não-representativa,

começou com as obras abstratas de Hartung, Mathieu e Wols, todos os três, acima

de tudo, lineares. (Não. pretendo ser capaz de explicar a lógica pictórica acionada neste

caso, mas creio que se poderia encontrar um início de explicação no fato de que o baixo-

relevo furtivo” , ao empregar o linear articulando-o com o uso de uma espessa matéria pictórica

em relevos e reentrâncias com vistas à figuração, pode valer-se da coerência que lhe

é conferida automaticamente por uma tridimensionalidade literal, física, real, para obter a

unidade do quadro. De outro lado, existe uma modalidade de coerência mais estritamente

pictórica que é automaticamente produzida pela ilusão de um espaço em profundidade —

pelo menos por enquanto. Digo “ por enquanto” porque, após mais de quatrocentos anos

de arte ilusionista, os recursos de ilusão tendem a possuir unidade interna e coerência.)

Também na Europa a abstração pictórica degenerou em maneirismos, tanto

da figuração não-representativa como do “baixo-relevo furtivo” . Lá também uma grande

5. Willem de Kooning

Woman II

Óleo sobre tela, 150xl09cm

Coleção Museu de Arte Moderna, Nova York


106

GÁVEA

quantidade de má pintura abstrata só é realçada, na órbita dos maneirismos, por uma arte

menor de circunstância. Enfim, a Europa tem seus Tapies e seus Sugai para fazer face aos

nossos Johns e Diebenkorn. Talvez seja injusta esta apreciação de Diebenkom, cujo caso é

tão exemplar que vale a pena examiná-lo um pouco mais detidamente.

A trajetória de Diebenkorn foi aquela que — pode-se dizer — deveria ter

sido a do expressionismo abstrato. No inicio, ele foi o único pintor abstrato, que eu saiba,

a fazer alguma coisa de realmente independente com o toque de de Kooning (o fato de que

ele tenha chegado a isso inspirando-se um pouco na composição de Rothko não muda

nada). Mais recentemente, Diebenkom deixou que esse toque o trouxesse de volta, com a

influência de Matisse, para uma arte figurativa; é possível que esta coerência lógica explique

em parte por que ele se tornou um pintor figurativo tão bom quanto o pintor abstrato

que era. O fato de que o toque de de Kooning permaneça tão evidente quanto

antes na arte de Diebenkorn em nada prejudica os méritos de sua nova maneira. Densidades

desiguais de pintura, obtidas por ações como manchar, escovar, esfregar, criaram,

no trabalho de de Kooning, gradações de luz e sombra semelhantes aos efeitos de sombra

tradicionais. Apesar destas gradações não terem levado a uma volta à modelatura em

profundidade, devido à brutalidade de sua justaposição, a profundidade é cada vez mais

sugerida nas obras mais recentes de de Kooning. Deixando aparecer claramente o que este

apenas sugerira, Diebenkorn (assim como um outro californiano, Elmer Bischoff) encontrou

uma estrutura em que o toque de de Kooning pode se realizar com mais autenticidade

e, portanto, com menos pretensão, do que na própria arte de de Kooning até o momento.

Existem outros pintores, principalmente em Nova York, que começaram a

aplicar a maneira de de Kooning a serviço de uma arte claramente figurativa, mas até

agora os resultados têm sido ou menos sólidos ou menos significativos. Não podemos incluir

Jasper Johns (3) entre eles, apesar da influência de de Kooning poder ser detectada

em seu trabalho, e de sua arte ser figurativa. Trata-se de um outro caso exemplar: Johns

leva a influência de de Kooning até uma espécie de ponto crítico, mantendo-a brilhantemente

em suspenso entre a abstração e a figuração. William Rubin observou há alguns

anos, em Art International, que os motivos das pinturas e dos baixos-relevos de Johns,

sempre bidimensionais no começo, são tomados de um repertório de signos e imagens

fabricados pelo homen, não muito diferente daquele em que Picasso e Braque foram buscar

os elementos feitos au pochoir e as colagens de seu cubismo de 1911-1913. Diferentemente

dos cubistas, Johns se interessa pela ironia literária que resulta da representação de configurações

planas e artificiais suscetíveis de serem realmente reproduzidas; mas a importância

essencial de sua arte, que se deve distinguir de sua importância jornalística, situa-se

sobretudo no domínio formal ou plástico. Assim como a evocação de um espaço profundo

nas fotografias de emblemas ou de fachadas e nas pinturas de letreiros de Harnett e Peto

acentua a planeza intrínseca dos objetos mostrados, o “ pictórico” por finalizar de um

quadro de Johns acentua a planeza indiscutível de suas imagens, seus números, suas

letras, seus alvos, suas bandeiras e mapas, sendo ao mesmo tempo realçado por ela.

Através desta

dialética” , a passagem do expressionismo abstrato para a


f

Depois do expressionismo abstrato 107

figuração, representativa ou não, é afirmada e explicitada. Pode-se dizer que a planeza

inicial da superfície do quadro, tendo por baixo alguns traços realizados com pochoir, basta

para representar tudo que realmente representa um quadro de Johns. Pode-se também

dizer que as pinceladas, com seu jogo de luzes e sombras à maneira de de Kooning, são

completamente supérfluas sob este ponto de vista. Tudo aquilo que habitualmente é usado

pela figuração e pela ilusão está apenas a serviço de si mesmo, isto é, da abstração; e tudo

aquilo que habitualmente diz respeito à abstração ou à decoração — planeza, contornos

despojados, composiçãoall-over ou simétrica — é colocado a serviço da figuração. Quanto

mais esta contradição é explicitada, mais o quadro tende a tornar-se eficaz. Se a imagem

for muito ocultada, o caráter supérfluo das camadas de tinta corre o risco de se tornar

menos manifesto; inversamente, se a imagem é muito evidenciada, todo o quadro corre o

risco de se reduzir a uma simples imagem — uma imagem que, no caso das esculturas de

Johns, mesmo se suas superfícies em bronze permanecem sem pintura, nada são além do

que realmente são, isto é, moldagens de objetos fabricados que, no contexto de uma arte

6. Jackson Pollock

Number 28

Óleo sobre tela, 173x267cm, 1950

Coleção Albert H. Newman, Chicago


108

GÁVEA

tridimensional, não poderíam ser mais do que simplesmente reprodutiveis. O efeito de

uma pintura de Johns freqüentemente é enfraquecido quando ele utiliza cores brilhantes, o

que não acontece quando se trata de cores neutras como o negro e o cinza. Como estas são

cores de efeitos de sombra puv exccllcncB, são as que se tornam mais manifesta e \iolen-

tamente inúteis quando aplicadas sobre imagens planas.

Não quero dizer com isto que a eficácia das pinturas de Johns baseia-se em

um simples procedimento. Há muito mais que isto; caso contrário, sua arte não produziría

em mim o efeito que causa. Mas se é possível explicar grande parte de sua arte, como

acabo de rapidamente fazer aqui, isto talvez também indique seus limites. Johns entoa o

canto do cisne da “ figuração não-representativa

e, como a maior parte dos cantos de cisne,

este não leva muito longe.

Johns não é o único entre os expressionistas abstratos, antigos e recentes,

em que se encontram ecos do cubismo analítico e de sua transição para o cubismo sintético

(e Johns continua sendo um expressionista abstrato, mesmo se abre caminho para a Pop

Art). Na verdade, poder-se-ia descrever toda a evolução do expressionismo abstrato como

a Evolução de um gênero de cubismo sintético abstrato em um tipo de cubismo analítico

abstrato. Em 1911, o cubismo analítico original chegara à “ figuração não-representativa”

: uma maneira de pintar os objetos em segmentos planos mantidos paralelos ao plano

do quadro que acabava por fazer os próprios objetos desaparecerem, deixando apenas a

ilusão do tipo de espaço erri que sua existência era possível e, ao mesmo tempo, uma ilusão

reduzida das superfícies — os segmentos planos — que antes os vestiam. Nos Pollock allover

(Figura 6) e nos de Kooning dos sete ou oito últimos anos, segmentos planos análogos

se desenrolam de forma análoga (menores em Pollock, maiores em de Kooning), com a

diferença básica, em relação ao cubismo analítico, de que a articulação ou a junção dos

segmentos não depende mais, como continuava acontecendo em Braque ou Picasso, de um

modelo existente na natureza. Entretanto, como já assinalei, os amplos planos facetados de

de Kooning parecem se aproximar às cegas deste modelo e, vez por outra, acabam por en-

contrá-lo. O espaço indeterminado criado pelos entremeios e salpicos de Pollock nem sempre

funciona como um espaço “ abstrato

pode também funcionar como uma ilusão. Enquanto

o cubismo analítico chegava às margens da abstração integral perseguindo ao mesmo

tempo a arte e a natureza, o expressionismo abstrato voltava ás fronteiras da natureza

perseguindo, aparentemente, apenas a arte. Muitos dos quadros em branco e preto de

Pollock anunciaram este retorno [higura 7); a série Wotnen de de Kooning, que assinalou

a passagem efetiva do artista do cubismo sintético para o cubismo analítico, fez mais do

que anunciá-lo.

Enquanto isso, um outro tipo de retorno se processava, fora dos limites do

expressionismo abstrato tal como este foi definido até agora. O expressionismo abstrato

não era, e não é, apenas uma abstração pictórica. Como todas as tendências importantes na

arte, ele ultrapassa qualquer definição verbal ou fenomenológica, dando margem a uma

grande variedade de desvios e de contradições” . O cubismo analítico, além de ser um

caso de “ figuração não-representativa” , realizou uma síntese do “ pictórico” e do “ não-


7. Jackson Pollock

licho (Number 23)

Esmalte sobre tela, 233x218cm, 1951

Coleção Museu de Arte Moderna, Nova York

pictórico” . O cubismo sintético e Mondrian a desfizeram em favor do “não-pictórico” , e

o expressionismo abstrato, como acabamos de ver, reagiu violentamente no sentido oposto.

Mas, pouco antes de 1950, algo que se assemelhava a uma nova síntese do “ pictórico”

edo “ não-pictórico” despontou na arte abstrata nova-iorquina, retomando uma tendência

que contrariava a evolução original do cubismo.

Na realidade, a maior parte dos pintores nova-iorquinos que primeiro foram

denominados de expressionistas abstratos não foi ‘ ‘pictórica

de uma maneira coerente e

profunda. Isto pode ser dito mesmo em relação a Hofmann: o que ele fez de melhor nos últimos

anos — e provavelmente em toda a sua carreira tende para uma síntese pessoal

onde o “pictórico” se une ao linear ao mesmo tempo em que o fauvismo se une ao cubismo.

Só depois de 1953 Kline aderiu ao “ pictórico” , em detrimento da qualidade

de seu trabalho, como, aliás, fica provado, a contrario, pelo fato de sua arte ter melhorado


j

I

8. Franz Kline

New York

Óleo sobre tela, 201xl28cm. 1953

Nova York

todas as vezes que ele retornou, como fez inúmeras vezes nos dois ou três últimos anos de

sua vida, à sua maneira anterior de utilizar contornos nítidos (Figura 8) Motherwell foi

“pictórico” esporadicamente, e muitas de suas obras-primas do final dos anos 40 o eram

completamente, mas grande parte de seus melhores quadros tende para o “ não-pictórico'

(Figura 9) Gottlieb também hesitou entre o “ pictórico” e o “ não-pictórico” , tendo

realizado obras soberbas de uma e de outra maneira. Entretanto, parece-me que

suas hesitações acabam por torná-lo infiel ao seu principal dote, o uso da cor. Gottlieb

bem poderia ter se inspirado nos três pintores nova-iorquinos que se situam um pouco à

parte no expressionismo abstrato. Refiro-me a Newman, Rothko e Still, que renunciaram

ao pictórico ou, ao menos, àquele associado ao expressionismo abstrato, em prol de uma

visão orientada pela primazia da cor.

Como muitas tendências “ pictóricas” fizeram antes dele, o expressionismo

abstrato empenhou-se em reduzir o papel da cor. Densidades desiguais de matéria pictórica

tomam-se, como eu já disse, diferenças equivalentes de luz e de sombra que privam

a cor tanto de sua pureza quanto de sua plenitude. E apesar da busca da abertura ser tida


9. Robert Motherwell

Flegy to the Spanish Republic

Óleo sobre tela, 203x254cm, 1953-54

Nova York

como um fim essencial do “ pictórico” , a aplicação apressada e desordenada da tinta

acabou por cumular a superfície do quadro de um tumulto compacto que não é, como

podemos ver em trabalhos de de Kooning e de seus êmulos, senão uma outra versão do

elemento compacto academicamente cubista. Still, Newman e Rothko afastam-se do pictórico

do expressionismo abstrato como para salvar seu objeto: a cor e a abertura. Na verdade,

poder-se-ia dizer que, mais do que uma síntese entre o “pictórico” e o “ não-pictórico”

, a obra desses artistas transcende a oposição entre um e outro. Trata-se de uma

transcendência e não de uma reconciliação, que é característica do cubismo analítico,

como agora o é de Hofmann. Estes três pintores inspiram-se tanto no impressionismo

quanto no cubismo; e o fato de o impressionismo ter sido um caso exemplar de tratamento

“pictórico” parece ter facilitado a um artista como Newman apreender toda a questão do

“pictórico” contra o “ não-pictórico” , tal como ela se colocava para a arte abstrata.

Clyfford Still {Figura 10), um dos grandes inovadores da arte modernista, é

o pioneiro deste grupo no que concerne à ênfase conferida à cor. Tomando posição contra

a importância tradicionalmente conferida aos contrastes de luz e sombra, Still mostrou que


I j

I

8. Franz Kline

New York

Óleo sobre tela, 201xl28cm. 1953

Nova York

todas as vezes que ele retornou, como fez inúmeras vezes nos dois ou três últimos anos de

sua vida, à sua maneira anterior de utilizar contornos nítidos (Figura 8) Motherwell foi

“pictórico” esporadicamente, e muitas de suas obras-primas do final dos anos 40 o eram

completamente, mas grande parte de seus melhores quadros tende para o “ não-pictórico'

(Figura 9) Gottlieb também hesitou entre o “ pictórico” e o “ não-pictórico” , tendo

realizado obras soberbas de uma e de outra maneira. Entretanto, parece-me que

suas hesitações acabam por torná-lo infiel ao seu principal dote, o uso da cor. Gottlieb

bem poderia ter se inspirado nos três pintores nova-iorquinos que se situam um pouco à

parte no expressionismo abstrato. Refiro-me a Newman, Rothko e Still, que renunciaram

ao pictórico ou, ao menos, àquele associado ao expressionismo abstrato, em prol de uma

visão orientada pela primazia da cor.

Como muitas tendências “ pictóricas” fizeram antes dele, o expressionismo

abstrato empenhou-se em reduzir o papel da cor. Densidades desiguais de matéria pictórica

tomam-se, como eu já disse, diferenças equivalentes de luz e de sombra que privam

a cor tanto de sua pureza quanto de sua plenitude. E apesar da busca da abertura ser tida


9. Robert Motherwell

Flegy to the Spanish Republic

Óleo sobre tela, 203x254cm, 1953-54

Nova York

como um fim essencial do “ pictórico” , a aplicação apressada e desordenada da tinta

acabou por cumular a superfície do quadro de um tumulto compacto que não é, como

podemos ver em trabalhos de de Kooning e de seus êmulos, senão uma outra versão do

elemento compacto academicamente cubista. Still, Newman e Rothko afastam-se do pictórico

do expressionismo abstrato como para salvar seu objeto: a cor e a abertura. Na verdade,

poder-se-ia dizer que, mais do que uma síntese entre o “pictórico” e o “ não-pictórico”

, a obra desses artistas transcende a oposição entre um e outro. Trata-se de uma

transcendência e não de uma reconciliação, que é característica do cubismo analítico,

como agora o é de Hofmann. Estes três pintores inspiram-se tanto no impressionismo

quanto no cubismo; e o fato de o impressionismo ter sido um caso exemplar de tratamento

“pictórico” parece ter facilitado a um artista como Newman apreender toda a questão do

“pictórico” contra o “ não-pictórico” , tal como ela se colocava para a arte abstrata.

Clyfford Still {Figura 10), um dos grandes inovadores da arte modernista, é

o pioneiro deste grupo no que concerne à ênfase conferida à cor. Tomando posição contra

a importância tradicionalmente conferida aos contrastes de luz e sombra, Still mostrou que


10. Clyfford Still

Painting

Óleo sobre tela, 236xl90cm, 1951

Coleção Institute of Art, Detroit

a cor é capaz de agir por contrastes de tonalidades puras, mais ou menos independentemente

das diferenças de valor.

O impressionismo, em suas últimas manifestações, oferecia um precedente

e, como no Monet do último período, a supressão dos contrastes de luz e sombra proporcionava

um novo tipo de abertura (4), uma nova expansividade. Dali em diante o quadro

não se dividia mais em formas, mas em zonas, áreas e campos de cor. Era o essencial. Mas

coube a Newman e a Rothko a tarefa de levar o navio ao porto. Se as maiores obras de Still,

principalmente aquelas mais largas que altas, não chegam a atingir a ampla abertura que

prometem, não é somente porque ele escolhe uma superfície muito grande para o que tem

a dizer — é também porque suas menores áreas de cor não chegam a funcionar como áreas

e permanecem sendo simples manchas cujos contornos complicados, góticos, rústicos,

travam e detêm o fluxo do espaço-cor.

Com Newman e Rothko, temperamentos artísticos que poderiam parecer

muito mais “ pictóricos” que Still, administram-se inúmeros antídotos sob a forma do


Depois do expressionismo abstrato

113

retilíneo. Subsiste, no entanto, uma ambigüidade: Rothko (Figura 11) dilui todos os limites

de separação; Newman (Figura 12) incorpora um limite fiou , como que para servir

de sustentação para suas margens traçadas a régua. Assim como Still, um e outro explicitam

sua opção, talvez para melhor manifestarem sua recusa dos maneirismos que, a

essa altura, já se haviam tornado indissociáveis do manejo rápido do pincel ou da espátula.

Os limites às vezes indecisos de Newman e os limites atormentados mas nítidos criados

pela espátula de Still são testemunhos de que estes dois artistas têm consciência dos efeitos

especiosos da espontaneidade (irreflexão talvez fosse o termo conveniente) e, ao mesmo

tempo, de que eles os recusam. Still continua a investir nas texturas. As irregularidades

tácteis de suas superfícies com sua oposição de fosco e de brilhante, de camada de matéria

pictórica e de impressão, contribuem para a força de sua arte. Mas, evitando o táctil e o

detalhe no desenho, Newman e Rothko conseguem obter uma abertura mais positiva e

efeitos de cor mais surpreendentes. O retilíneo é “ aberto” por definição: ele atrai o menos

possível a atenção sobre o desenho e a composição, prejudica o menos possível o desdo-

11. Mark Rothko

Red, Brown and Black

Óleo sobre tela, 271x298cm, 1958

Coleção Museu de Arte Moderna, Nova York


12. Barnett Newman

Vir Heroicus Sublimis

Óleo sobre tela, 85xl82cm, 1950-51

Coleção Museu de Arte Moderna, Nova York

bramento do espaço-cor. Do mesmo modo, uma camada fina de matéria pictórica interfere

o menos possível no desdobramento do espaço-cor pelo simples fato de excluir qualquer

referência táctil. (Neste sentido, Rothko e Newman parecem retomar o caminho de Milton

Avery, que por sua vez retomara o de Matisse.) Ao mesmo tempo que a cor se liberta

de suas funções localizadoras e denotadoras, adquire maior autonomia. Não tendo mais

por função particularizar ou preencher uma área ou um plano, ela fala dela mesma e

trabalha no sentido da dissolução da nitidez das formas e das distâncias. Para que isto

aconteça — e Still foi o primeiro a mostrá-lo — é preciso que sejam usadas tonalidades

quentes ou tonalidades frias impregnadas de calor. É preciso também que seja uma cor

uniforme, utilizando-se apenas, quando isto acontece, sutis variações de valor; além disso,

é preciso que se espalhe por uma superfície que pareça de uma grandeza absoluta e não

relativa. A dimensão garante a pureza assim como a intensidade da tonalidade, necessárias

para sugerir um espaço indeterminado: maior quantidade de azul é simplesmente mais

azul do que uma menor quantidade de azul. É também por este motivo que o quadro deve

ser executado com um número limitado de cores. Neste aspecto, foi novamente Still

quem mostrou o caminho; a visão de uma pintura bi ou tricolor (segundo os termos de

E.C. Goossen) foi primeiramente sua (seja qual for a dívida que ele possa ter em relação ao

Miró dos anos 1925-1930).

E certo, no entanto, que o sucesso ou o fracasso de Newman e Rothko

dependem mais manifestamente da cor que no caso de Still. A cor certa em seu lugar certo

pode mais facilmente resgatar — ao menos aparentemente — erros de proporção ou de

configuração em sua arte. Do mesmo modo, nos grandes quadros de Nenúfares de Monet,

a relação específica de cores parece tudo governar. Mas o inverso é igualmente verdadeiro:


Depois do expressionismo abstrato 115

uma proporção correta entre a extensão respectiva das formas pode predominar sobre as

cores ou as relações de cores as mais ingratas. (Nunca é demais reafirmar que arte é questão

de relatividade e de ajustamento.)

Existe no efeito obtido pela arte destes três pintores algo mais que um efeito

de intensidade cromática. Trata-se quase literalmente de um efeito de abertura que abrange

e absorve a cor no próprio momento em que ela o cria. A abertura — e não somente em

pintura parece ser a qualidade que estimula mais o olho de nossos contemporâneos.

Deixo ao leitor o cuidado de descobrir as razões disto. Mas arriscaria dizer que a nova

abertura da pintura de Newman, Rothko e Still indica a única saída possível para a arte

pictórica num futuro próximo.

Esta via também é indicada por seu repúdio ao virtuosismo na execução ou

na feitura. Em outro texto referi-me ao processo de autocrítica que, a meu ver, subjaz à

lógica da arte modernista ( “ Modernist Painting” , in Arts Yearbook 4, 1961). Esta autocrítica

inteiramente empírica e que não se volta para a teoria tem como objetivo determinar

a essência irredutível da arte e de cada arte tomada separadamente. Fortalecendo este

processo, começou a ficar claro que era possível abandonar um número crescente de

convenções da pintura que não são essenciais. Ficou estabelecido, ao que tudo indica, que

a irredutibilidade da arte da pintura consiste apenas em duas normas ou duas convenções

que lhe são pertinentes: a planeza e a delimitação da planeza (5). Em outras palavras, a

simples observação destas duas normas é suficiente para criar um objeto que pode ser percebido

como um quadro: sendo assim, uma tela esticada ou pendurada já existe enquanto

quadro, sem que necessariamente seja um quadro bem resolvido. (Paradoxalmente, esta

redução não tem como resultado reduzir, mas ampliar as possibilidades da pintura. Muito

mais coisas prestam-se a uma percepção pictórica ou têm relação significativa com a arte

da pintura: passam a ser englobados muitos tipos de detalhes ou de incidentes visuais

pequenos e grandes que antes eram esteticamente considerados como desprovidos de sentido.)

A meu ver, Newman, Rothko e Still dirigiram a autocrítica da pintura

modqrnista em uma nova direção, afastando-a de sua direção inicial. Agora a questão que

se coloca através de sua arte não é mais saber de que a arte, ou a arte da pintura, se constitui,

mas de que a boa arte em si é constituída. E a resposta dada parece ser: nem a habilidade,

nem o métier, nada que se relacione com a execução ou a performance, mas

unicamente a concepção (6). A cultura ou o gosto podem ser condições necessárias à concepção,

mas só esta é decisiva. Pode ser chamada de invenção, inspiração ou mesmo de intuição,

termo adotado por Croce (7), que colocava como anterior ao plano teórico aquilo

que a prática acaba de descobrir e de validar por si mesma. Por outro lado, é verdade que a

habilidade era um instrumento de inspiração e contribuía também para a concepção, mas

isto aconteceu em uma época em que a melhor pintura artística era, sob todos os aspectos,

a mais naturalista. Atualmente, nem a habilidade nem a destreza são capazes de gerar

qualidade, porque estão muito difundidas e muito acessíveis e, portanto, muito estereotipadas.


116

GÁVEA

Só a inspiração e a concepção pertencem ao domínio do individual; hoje,

todo o resto pode ser adquirido por qualquer pessoa. A inspiração, ou a concepção, permanece

sendo o único fator na criação de uma obra que não pode ser copiado ou imitado.

Artistas como Mondrian e Newman demonstraram isto (e este é seu único ponto em

comum). Os quadros de Newman parecem fáceis de serem copiados e talvez o sejam. Mas

não são nada fáceis de conceber ou imaginar, e sua qualidade reside quase que totalmente

na concepção. Isto deveria ser evidente, mas os esforços vãos dos seus imitadores provam

que não o é tanto assim. O espectador que diz que seu filho poderia pintar um Newman

talvez tenha razão, mas haveria necessidade absoluta que Newman estivesse lá para dizer

exatamente à criança o que fazer. As escolhas exatas de meio, de cor, de dimensões, de

forma e de proporção — incluindo as dimensões e a forma do suporte

são os fatores que

determinam o sucesso do resultado, e estas escolhas dependem apenas da inspiração (como

foi o caso de Mondrian, apesar das bobagens afirmando o contrário). Como Rothko e Still,

Newman é um artista dotado no sentido tradicional da palavra. Mas ele utiliza sua habilidade,

na verdade, para eliminar as provas desta mesma habilidade. E esta eliminação

contribui para assegurar o triunfo de sua arte, ao lado da qual a maior parte das pinturas

contemporâneas acaba por parecer fabricada.

Por este motivo, Newman, em especial, é objeto da admiração de alguns

dos melhores jovens artistas norte-americanos. Sua recusa da virtuosidade (de um grafismo

bem-sucedido à maneira de de Kooning, por exemplo) encoraja nesses jovens artistas o

seu próprio desejo de renunciar a ela, fortalece-os para que cometam suas próprias ousadias.

Encoraja ainda mais pintores como Louis e Noland (Figura 13), que não foram

diretamente influenciados por Newman (e nem por Rothko e Still). Talvez Louis e Noland

procurem uma visão da cor e da abertura próxima da desses três artistas, mas esta procura

é ainda mais resoluta pelo fato de não ser derivada da busca empreendida por Newman. Em

primeiro lugar, Louis e Noland não fazem quadros bi ou tricolores; além disso, tanto um

quanto outro sofreram mais a influência de Pollock nos fins e nos meios do que de qualquer

outro pintor. Isto não depõe contra Newman, Rothko ou Still, e estou assinalando este

ponto apenas para acabar com idéias falsas espalhdas por jornalistas e conservadores de

museu. O fato de que a influência destes três artistas tenha sido esmagadora — afinal, Sam

Francis foi o único jovem artista que, até agora, se realizou de todos os que sofreram esta

influência — atesta a força real de sua arte.

Em relação ao pós-expressionismo abstrato, o cerne do problema tem pouco

a ver com a questão das influências. Em última instância, os artistas se separam onde pára

o gosto seguro. Sempre foi assim, e está sendo com os desdobramentos do expressionismo

abstrato. Os que seguem Newman, Rothko ou Still, individual ou coletivamente, adquiriram

tanta segurança em matéria de gosto quanto se tivessem seguido de Kooning,

Gorky ou Kline (tenho a impressão de que alguns pintores escolheram seguir os primeiros

ao invés dos segundos principalmente por frustração e não tanto por insatisfação ou impaciência

em relação às vefsões do expressionismo abstrato praticadas na Tenth Street).

Os outros artistas norte-americanos que se dedicam a um “ neo-dadaísmo” ,


Depois do expressionismo abstrato 117

à colagem-construção ou a comentários irônicos sobre a banalidade de nosso ambiente industrial

também não escapam à jurisdição do gosto convencional — eles, aliás, menos que

todos (Johns é a única exceção). Apesar de todos os objetos novos que representam ou incorporam

em suas obras, nenhum destes artistas arriscou-se, em matéria de cor ou de

composição, mais que os cubistas ou os expressionistas (podemos ver o que acontece se alguém

realmente se arrisca com a cor quando a pintura “ pura” de Olistki choca os próprios

pintores nova-iorquinos). Nenhum deles ainda se arriscou, ao colocar baleias empalhadas

em uma superfície plana ou ao encher privadas de diamantes, a dispor estas coisas fora das

linhas direcionais da malha cubista all-over. O resultado disto é uma aparência cubista

convencional que dificilmente dá margem a discussão em um ensaio intitulado Após o

Expressionismo Abstrato. Isto também podería ser dito em relação aos pintores cuja

contribuição restringe-se ao fato de pintarem galinhas depenadas ao invés de faisões mortos,

pacotes de café e fatias de tortas ao invés de flores em um vaso. Não que eu não considere

a execução acadêmica clara e sem disfarces de seus quadros refrescante e mesmo

surpreendente, depois das ênfases do expressionismo abstrato; mas o efeito é momentâneo,

porque a novidade, que é preciso distinguir da originalidade, não tem a força de

durar.

13. Kenneth Noland

That

Acrílico sobre tela, 209x209cm, 1958-59

Coleção David Nirvish, Toronto


118

GÁVEA

Notas:

1 H. Wõlfflin — Renaissance undBarock, 1888 (Edição francesa, Renaissance et Haroque, Le Livre

de Poche, Paris, 1967).

2. Mais adiante, Greenberg explica extensamente por que, segundo ele. a abstração pictórica era

uma maneira de voltar atrás. Greenberg considera que o cubismo sintético ck sfizi ra a sintc se entre o

“linear” e o “pictórico” realizada pelo cubismo analítico em favor do linear e que, por sua vez. o ex

pressionismo abstrato (ou a abstração pictórica) reagira contra a linearidade do cubismo sintético

através de um retorno ao pictórico (de Kooning). Daí o trocadilho: mesmo se o fato de ir para trás

(o efeito de profundidade behind-the-frame do estilo pictórico ou a regressão no sentido histórico)

“fosse a única maneira de ir para frente” . (Nota do tradutor francês)

3. Ver estudo de Leo Steinberg Ja sp er Johns: les Sept Premières A nnées de son Art

3a. William Harnett e John F. Peto foram pintores norte-americanos do século passado, especialistas

em trompe-1'oeil. (Nota do tradutor francês)

4. Em Príncipes Fondamentaux de PHistoire de l'Art (1915), Wülfflin procurou definir sistematicamente

a oposição entre clássico e barroco, oposição que Bernard Teyssèdre resume da seguinte

forma em sua Présentation de Renaissance et Haroque:

“a) o clássico è linear eplástico, o barroco é pictórico-, a figura, aprisionada em seus

contornos de uma vez por todas, dissolve-se em imagem mé>vel (...);

b) a visão clássica projeta o espetáculo na superfície (...). A visão barroca penetra

no espaço em profundidade (...);

c) a composição clássica é fechada: cada elemento, necessário em seu lugar, relaciona-se

a cada um dos outros e ao conjunto de acordo com proporções definidas.

A composição barroca é aberta-, cada elemento parece esboçado, ligado aos outros

por laços muito frouxos; a forma espalha-se a um só tempo em todas as direções

(•••);

d) o clássico procede por análise: o conjunto artic.ula-.se em uma pluralidade de par

tes, cada uma das quais é válida por si mesma. O barroco parte da síntese-, só importa

o efeito global, que deve causar impacto ao primeiro olhar;

e) o clássico exige clareza absoluta; o barroco preserva uma relativa obscuridade:

torções arrebatadas, movimentos impetuosos, encurtamentos destruidores das

proporções, dissolução dos contornos e dos fundos na penumbra e no indefinivel

(...)” .

Pensando nestas definições de Wõlfflin, Greenberg fala de uma nova espécie de abertura, uma abertura

que não c* mais obtida, como no pictórico, pela interpenetração ou pela dissolução das formas

umas nas outras, mas por uma divisão em “campos de cor” . (Nota do tradutor francês)

5. Sobre a concepção de Greenberg do modernismo, ver a critica que lhe é feita por Leo Steinberg em

Other ( riteria e por Rosalind Krauss em Points de vue sur le Modemisme. (Nota do tradutor francês)

6. Esta noção opõe-se, ao mesmo tempo em que a condena, à gestualidade do expressionismo abstrato

de um de Kooning. Em seguida, será aplicada ao trabalho da maior parte dos artistas “minimalistas”

. (Nota do tradutor francês)

7. Benedetto Croce (1886-1952) escreveu 1'Esthétique comme Science de 1’Expression (1902), onde

acentua a unidade intuitiva da forma e do conteúdo da obra de arte. (Nota do tradutor francês)

Texto publicado no livro Regards sur 1Art Américain des Années Soixante, Éditions Territoires,

9 9, tradução de Claude Gintz. Original publicado na revista Art International, outubro 1962.


Depois do expressionismo abstrato 119

Clement Greenberg marcou profundamente a vida artística norte-americana do pósguerra.

A orientação marxista de seu pensamento, que lhe tomou possível reconhecer, na arte abstrata,

uma espécie de revolução contra o provincianismo estético da América do Norte, bem como as

aulas de Hans Hofmann, que ensinava pintura em Nova York desde 1934, prepararam-no para tornar-se

o porta-voz de uma nova vanguarda. Certo de que a imigração dos artistas europeus durante a

guerra faria de Nova York a nova capital internacional da arte. Greenberg contribuiu significativamente

para tornar conhecidos e reconhecidos, a partir de meados dos anos 40, jovens artistas como

ArshileGorky, Willem de Kooning, Robert Motherwell, o escultor David Smith e, principalmente,

Jackson Pollock. Ao longo dos anos 50, quando a “primeira geração” de expressionistas abstratos

estava em vias de adquirir reputação internacional, começou a ser solicitado para organizar exposições

e escrever apresentações. Artistas mais jovens, ou ainda desconhecidos, como Morris Louis e

Kenneth Noland, sempre procuravam conhecer suas opiniões. O tom didático de sua prosa, suas

referências constantes à história da arte moderna e sua abordagem formalista intelectualmente acessível

fizeram de Greenberg uma espécie de oráculo do mundo das artes plásticas nova-iorquino.

Neste ensaio, escrito em 1962, ele considera o expressionismo abstrato — denominado

por Harold Rosenberg de Action Painting e por Greenberg de abstração pictórica — apenas

um novo episódio da alternância cíclica entre o linear e o pictórico, conceitos estes inicialmente

propostos pelo historiador da arte Heinrich Wõlfflin. Segundo Greenberg, a abstração pictórica

chegou a um impasse que se manifesta pela “figuração não representativa ’. Afastando-se da abstração

pictórica, alguns pintores da geração dos expressionistas abstratos, como Clyfford Still, Mark

Rothko e Bamett Newman, encontraram uma saída transcendendo a oposição linear/pictórico e

realizando uma “nova forma de abertura” que dá primazia à cor. As teorias em que Greenberg se

baseia serão contestadas. Mas neste artigo ele descreve com muita perspicácia o espirito e o procedimento

daqueles pintores dos anos 50 que influenciariam toda uma geração de artistas na década de

60: unidade da obra, abandono do virtuosismo, primado da concepção que antecede a execução.



EUGENIO D ’ORS

Tradução: Jorge Czajkowski

O Paraíso Perdido

Um jardim em Coimbra

Trago sempre comigo a lembrança daquela hora meridiana de um dia de

maio, no Jardim Botânico de Coimbra. Hora modorrenta e perturbadora, de odores vegetais,

de arrulhos voluptuosos. As palmeiras esbeltas, ávidas de sol, se lançavam ao céu,

dominando do alto de seu palácio de luz a mata esquecida cá embaixo. Esquecida como a

mulher que se fita nua no espelho esquece, no brilho inteligente do olhar, o sombreado

caminho da luxúria. Sim, as palmeiras dominavam as tílias, mas o som marcial da corneta

de um quartel vizinho não chegava a abafar o cálido queixume modulado dos pombos.

Marulho de pombos, toque de corneta ouvido em um horto... não há impressão

sonora, não há emoção mais caracteristicamente barroca.

Nessa hora primaveril e meridiana em Coimbra, na indolência e no recolhimento,

aconteceu-me descobrir uma verdade fecunda: a de que o barroco é secretamente

animado pela nostalgia do paraíso perdido.

Alfa e ômega

Paraíso, começo e fim da História, alfa e ômega no espírito da humanidade.

Por causa da árvore da ciência — quer dizer, pelo exercício da curiosidade e

da razão — o paraíso foi perdido um dia. Pelo calvário do progresso — ou seja, também

pelo exercício da curiosidade e da razão — avançamos sobre o caminho que a ele retorna.

Toda a história humana pode ser concebida como o itinerário penoso entre a inocência que

ignora e a inocência que sabe.

Mas, enquanto nos encaminhamos para o novo paraíso, para a Jerusalém

Celeste, passamos por pequenos paraísos intermediários, onde o começo é evocado e o fim

previsto, onde o Éden reaparece ao homem através da reminiscência ou da profecia.

Toda arte que recorda ou profetiza é sempre mais ou menos barroca. E

vamos perceber um dia que a literatura universal assinalou o acesso à floresta barroca

erigindo duas altas pilastras que levam os nomes do poeta Milton e do Evangelista São

João: O Paraíso Perdido e Apocalipse.

(Ainda há pouco estava absorto contemplando o abanar dengosamente

feminino de uma folha no topo de uma palmeira quando me pareceu — ilusão? — que a

palmeira se espreguiçava, que esticava de repente o tronco numa espécie de espasmo. Eu a

interrogo em meu espanto, mas ela me responde — obstinada e sorridente — que não, que

não...)


122

GÁVEA

O barroco como recompensa

Paul Valéry, poeta que se situa na fronteira oposta ao barroco, intelectual

puro, que elimina a questão do começo e do fim, de alfa e ômega artista mais que poeta

— escreveu um poema admirável, Palme (Palmeira). Eu gostaria de o ir ler uma manha

nesse mesmo jardim, ou talvez no jardim de Lisboa, onde as palmeiras, ainda mais nu*

merosas, se enfileiram em uma avenida prodigiosa, a um passo do gradil que termina e

fecha uma mela estreita de casas com muros decrépitos...

Patience, patience

Patience dans l'azur!

Chaque atom e de silence

Est la chance d'un fruit m ür!...

Paciência, paciência

Paciência no azul

Cada átomo de silêncio

É o acaso de um fruto maduro...

Pois bem, Valéry, sempre lúcido, conta que escreveu este poema espontaneamente,

como que para descansar, em recompensa pelas longas horas de continuada

aplicação exigidas por seu longo poema La Jeu n e Parque (A Jovem Parca). Descanso

dominical após seis dias de labuta...

Compreendí então como o século X V III, meu querido século XVIII dos

grandes empreendimentos filantrópicos e utilitários, da ciência e da razão, foi também

aquele em que se criaram os jardins botânicos. Em outras palavras: como o século racionalista

por excelência pôde também ser o século barroco por definição.

Compreendi que, a exemplo do poeta, esse século, quando cansado de compor

sua Jeune Parque, permitia-se a distração de uma Palme como prenda. Os iardins

botânicos representam o domingo de um século exaurido por seis dias de trabalho: manufaturas,

arsenais, fortalezas, pontes, academias, salinas... Pombal, por exemplo, tendo

traçado os planos de todo um bairro para a Lisboa destruída pelo terremoto, ou tendo

aprovado a regulamentação para a Fábrica de Pólvora, ia plantar um cinamomo ou uma

palmeira. E na manhã radiosa sentava-se simplesmente ao pé de uma de suas árvores já

crescidas, tal como ia ouvir uma ópera italiana na noite cheia de intrigas.

Ele se sentia como eu, diarista do tabalho intelectual, me sinto neste instante:

dominicalmente tomado pelo barroco.

Le Paradis Perdu. (Du Baroçue, Editora Gallimard, Paris, 1968.)


Bergl

Pintura em trompe-ioeil

Palácio de Schoenbrunn


124

GÁVEA

Eminente pensador catalão, fundador do movimento “Noucentista , ocupou, desde muito

cedo, postos de importância na direção da Instrução Pública da Mancotnunitat da Catalunia. Em

1919, mudou-se para Madri e passou a escrever em castelhano. Durante a guerra civil optou pelos

nacionalistas, ao contrário da maioria dos intelectuais espanhóis. Depois da guerra dedicou-se ã

recuperação dos quadros do Museu cio Prado, que estavam depositados em Genebra, e criou a

Academia Breve de Critica de Arte e os Salões dos Onze, reconhecidamente os únicos redutos de

atividade artistica inteligente e criativa na Espanha do pós-guerra. Publicou vários livros, entre eles,

Lo Barroco, Tres Horas nel Museo dei Prado, Cupola e Monarquia, Im Bien Plantada e um glossário

em 30 volumes.


O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nivel de pós-graduação latu-sensu, foi formado há

cinco anos. O curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura

como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global

da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a

arquitetura brasileiras apreendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão

ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e a pesquisa de arte são encaminhados

juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar.

Coordenador Acadêmico:

Carlos Zilio

Professores: Berenice Cavalcante

Eduardo Jardim de Moraes

Fernando Cocchiarale

Jorge Czajkowski

Katia Muricy

Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

Ricardo Benzaquem de Araújo

Ronaldo Brito

Washington Dias Lessa


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