Revista UnicaPhoto - Ed.16
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2De novo, a leitura piorou tudo. Em 2009, mais ou menos, li a tradução
de Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Havia lido dois anos antes
um livrinho de nada, As paixões da alma, de Descartes, e desde lá
andava com meu bisturi estético, estésico, tentando encontrar
a raizinha do espírito, onde ela se inseria ou se extraía do corpo. E os dois
livros juntos me ofereceram um caminho ou formação empolgantes, porque
paradoxais. Minha tentativa cartesiana de dissecação, de encontrar os reinos
ou as partes – e, nisso, a Verdade –, se contrapunha à ideia de Hegel, de que
só há a verdade no todo.
Então guardei essa dúvida extática na sacola, à espera daquela longa
temporada no inferno, ou no céu, sei lá, onde houver boa conversa, que nesse
mundo não mais. E, enquanto não vinha o chamado, me matriculei no curso
de fotografia de Unicap.
Como escritor, precisava aceitar outras formações. Uma delas era a de
fotógrafo. Era preciso aprender a “olhar para as coisas”, como dizia o poeta
Caeiro, se referindo ao seu sonho-fotografia. Saber de “todas as coisas que há
nas flores”. Ver “como as pedras são engraçadas/ Quando a gente as tem na
mão/ E olha devagar para elas.”
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Então discutimos o tema, eu e Renata. E o tema não seria o objeto.
Mas a parte. Esqueça a ideia da gestalt, esses psicologismos não
servem aqui. É sobre determinada “aura”, Daimon. Do espírito
dessas coisas que há em tudo e que tenta sobreviver em busca de
uma singularidade ou autenticidade esquecidas. Um mundo todo feito de
linguagem. “Coisa”, aqui, são vapores ou plasmas, como no meu Aminioticus
mundi, que só existe enquanto se derrete no interior do vidro. Um espírito
vítreo em convulsão e falência. E o que não?
O velho romancista aprendia com o aprendiz de fotógrafo. Eu estava
disposto a criar o fluxo de consciência, agora na fotografia. Era sobre isso.
Sobre espiríticoisas irreprodutíveis. Nalguma hora copiados, contudo esses
coisespirítos não existem mais. Nunca existiram. Sua efemeridade é sua
eternidade. Fluxos mediados pela fotografia e sua capacidade de marcar o
passado-morto, de algo e romper aurasespíritos.
Nisso resta falar de uma intenção política, o direito à existência, de um
universo híbrido, deslocado, transviado, de personagenscoisasespíritos sem
lugar nesse mundo, como as criaturas literárias e reais pelas quais mais me
apaixono.
Estava na hora de encontrar nessas experiências uma individualidade, um lugar
no mundo. Sem isso, artista ou escritor, ninguém avança com honestidade.
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Quando a contemporânea Iluminati Renata Victor me deu a tarefa de
criar um catálogo, todas as ideias sobre as unidades e as partições,
as frações, o mundo cartesohegeliano, se confrontaram em mim. Eu
pensava nas Coisas, não somente como no poema pueril de Pessoa,
mas no Espírito das Coisas. De um mundo que pudesse partir da minha
própria experimentação, em busca de uma experiência estética pessoal e
intransferível, de um tempo proustiano, perdido. De todos os modos era um
exercício de Iluminação, no que a palavra tem a ver com Formação, assim,
com caixas altas e baixas.
Bom, não quero teorizar sobre isso. O Demônio bem diz ao Fausto, no Fausto,
ainda de Goethe: “toda teoria é cinzenta; e verde a dourada árvore da vida.” A
citação, hoje, me dá mais vontade de correr para a máquina de fotografar do
que a de escrever.
Sobre esses espíritos das Coisas devo responder como falam por aí ter
respondido Flaubert sobre sua Bovary: “Emma Bovary c’est moi”.
Portanto, Ovaginus? Sou eu. Aminioticus mundi? Sou eu. Calixananas & códix?
Também sou eu. Ou não há nenhum desses espíritos que há nas coisas que eu
não desejasse ser, enquanto os equilibrava em minhas mãos e os fotografava.
Esse catálogo tentaria expressar uma experiência maior, interior, de
aprendizagem, de auto-sedução e sedição do garoto de 55 anos que chegava
ao curso de fotografia.
Acesse:
https://issuu.com/unicaphoto/docs/catalogo_tecnico_final
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