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Revista UnicaPhoto - Ed.16

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Na radicalização da fantasmagoria fetichista e da

repetição do mesmo, aquilo que é muito conhecido –

o mesmo – volta como o diferente, como inquietante

(Unheimliche). Benjamin nomeou esse fenômeno de choc

do longínquo com o atual. Agamben apresenta-o como

uma condição básica do próprio objeto transformado

em mercadoria na modernidade, ou seja, que deixou

de ter o seu valor de uso “natural” e tradicional, suas

qualidades próprias, para ensejar um processo de

fetiche. Através do valor quantitativo de troca que iguala,

pela abstração do dinheiro, o objeto a todos os outros

objetos existentes pelos quais poderia ser trocado, ele

suscita em quem o contempla (numa vitrine ou numa

propaganda publicitária por exemplo) uma relação com

algo de muito remoto: uma aura de possibilidades que

a mera relação utilitária nunca teria o poder de invocar.

Assim a mercadoria teria um “caráter místico” (AGAMBEN,

2007, p. 67). Esse caráter longínquo e inquietante não

estaria por trás das superfícies achatadas e fantasmáticas

da mercadoria; seria, pelo contrário, feita de sua mesma

natureza. Agamben confirma esse fenômeno através da

noção freudiana de Unheimliche:

Ele [Freud] vê no inquietante (Unheimliche) o

familiar (Heimliche) removido. “Esse inquietante

não é, de fato, nada de novo, de estranho, mas

sim algo que desde sempre é familiar à psique,

e que só o processo de remoção tornou outro”.

A recusa de tomar consciência da degradação

dos factícia mercadorizados expressa-se

criptograficamente na aura ameaçadora

que envolve as coisas mais familiares, com

as quais não é mais possível sentir-se seguro

(AGAMBEN, 2007, p. 88-89).

Porém, essa potência de deslocar um objeto familiar

para muito longe, possibilitada pela própria alienação

dos usos tradicionais que a modernidade capitalista

configurou e pelo fetiche que inconscientemente adora

algo invisível através de um objeto específico, é limitada

pelo próprio capitalismo para que o sistema possa

garantir a sua integridade e preservação. O capitalismo

é um sistema econômico apenas possível dentro da

lógica da fantasmagoria, mas desde que a fantasmagoria

escravize seus “consumidores” e os obrigue a enxergar

a eterna repetição do mesmo como progresso e como

possibilidade de acumulação e riqueza quantitativas.

Que os escravize através da ilusão segundo a qual a

felicidade vai ser alcançada, um dia, com o obedecimento

a determinadas regras de um modo de vida e de um

biopoder que garantem a preservação do sistema

econômico. A noção de progresso envolve a lógica da

fantasmagoria com limitações e regras que lhe dão um

sentido sagrado, mítico e incontestável.

Mas é sempre possível escapar à escravidão permanecendo

na própria fantasmagoria – radicalizando-a. A alienação

distraída e o fascínio onírico pela mercadoria ganham

dimensões que são improdutivas e até prejudiciais

para o capital em figuras como o flanêur, o dândi, o

colecionador benjaminiano ou o fumador de haxixe.

São figuras liminares que tiveram lugar na cultura do

século XIX e cujo o caso Benjamin já identifica no início do

século XX: o capital sempre marginalizará ou incorporará,

através de transformações do sistema, essas figuras que,

apesar de seu mergulho radical no lúdico, não seguem as

regras do jogo. É o caso do niilismo hedonista dos jovens

invasores de The bling ring. A questão do filme não é uma

questão de “Robin Hood”. Ao ignorarem as convenções

que tornam as propriedades do capital privadas, os

protagonistas do filme subtraem as mercadorias “à

tirania do econômico e à ideologia do progresso”

(AGAMBEN, 2007, p. 75). Há um desvio ou um ruído que

ultrapassa as regras segundo as quais todas aquelas

mercadorias de grife deveriam pertencer apenas a um

tipo específico e mínimo de casta social (os membros do

bling ring vêm de famílias californianas abastadas, mas

nunca a ponto de possuírem a abundância das roupas

de estilistas e acessórios de alta costura que eles roubam

das celebridades hollywoodianas). Tal desvio coloca

em cheque o que Agamben considera como a rígida

repressão das normas de uso dos objetos:

aquela que se exerce sobre os objetos, fixando

as normas do seu uso. Este sistema de regras

é, em nossa cultura, embora aparentemente

não sancionado, tão rígido que, tal como

mostra o ready-made, a simples transferência

de um objeto de uma esfera a outra basta

para torná-lo irreconhecível e inquietante

(AGAMBEN, 2007, p. 95).

Mas o esplendor e a beleza da alta moda, longe de serem

recusados pelos protagonistas do filme, são por eles

levados a outro patamar: um patamar mais longínquo,

inefável, inapreensível, fraco, frio e remoto mas, na

eterna repetição demoníaca do mesmo, um patamar

diferente, estranho, inquietante, ambíguo, cheio de

possibilidades infinitas. Esse novo patamar é sutil e

fugaz, delicado e frágil como uma fragrância. Coppola

consegue capturá-lo e fixá-lo no deslizar das imagens do

seu filme. A escolha de Coppola por construir a atmosfera

musical do filme sobretudo com peças do hip-hop

americano contemporâneo como Kanye West, Azealia

Banks e Rye Rye é significativa. Nesses sons barulhentos

e pouco harmoniosos há toda uma história de como a

sensibilidade dos guetos sonha e se relaciona com os

bens de consumo mais sofisticados e caros dos Estados

Unidos. E, de fato, Coppola não deixa de incorporar em

suas imagens o que há de Unheimliche na decadência de

um certo mal gosto daqueles jovens, um mal gosto típico

de um suburbano usando as roupas elegantes de uma

estrela. Nesse olhar sobre o “cafona”, Coppola continua

fiel à sensibilidade camp de seus filmes anteriores.

O fetiche que envolve os jovens da gangue, assim, é

quase patológico: eles entraram tanto na lógica do capital

que agora não conseguem mais se reajustar à “cultura

da saúde” que faz prosperar o biopoder contemporâneo.

São como sonâmbulos entrando nas enormes mansões

fantasmagóricas e vazias com suas piscinas e paredes de

vidro (um tipo de arquitetura cuja aura superficial mas

ao mesmo tempo inquietante fascina, desde os anos

60, representantes da pop art como David Hockney e Ed

Ruscha). As personagens do filme não querem acordar

do sonho, vão levá-lo o mais longe que conseguirem. De

certa forma, eles possuem a obstinação que Benjamin

enxergava nos colecionadores (uma designação que

está longe de caracterizar esses jovens, mas que não

obstante parece, aqui, mais apta do que “ladrões” ou

“consumidores” a transmitir a experiência que eles

empreendem, no filme, com a mercadoria):

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