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Revista UnicaPhoto - Ed.16

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relação originária e natural do homem com

os objetos, escapando-lhe por conseguinte a

possibilidade de uma relação com as coisas

que vá além tanto do gozo do valor de uso,

quanto daquele da acumulação do valor de

troca (AGAMBEN, 2007, p. 83).

Para Benjamin, uma volta a esse tipo de relação

supostamente mais simples e transparente entre pessoas

e objetos não está em questão; e também não é esse tipo

de relação o que precisa ser “revelado” pela arte. Um

certo ranço romântico que ainda havia em Baudelaire,

um dos artistas que para Benjamin mais levou longe a

radicalização da fantasmagoria, talvez dificultasse que

ele próprio percebesse que o “novo” (ou seja, o diferente

que estaria ausente da repetição do mesmo) não vai ser

revelado através de uma “quebra” da ilusão espectral que

escraviza os modernos, mas exatamente a partir dessa

ilusão:

o novo que ele espreitou durante toda sua

vida não é feito de outra matéria que não

dessa fantasmagoria do “sempre-igual” (...)

O novo é uma qualidade independente do

valor de uso da mercadoria. Está na origem

dessa ilusão cuja infatigável provedora é

a moda. Que a última linha de resistência

da arte coincidisse com a linha de ataque

mais avançada da mercadoria, isso deve ter

escapado a Baudelaire (BENJAMIN, 2009, p.

62-63). 1

Encontrar um modo de imaginar, sonhar e se fascinar,

de se perder nos labirintos da imagem como o flanêur se

perde nas ruas da cidade ou um distraído sonha em frente

a uma vitrine. A resposta que Benjamin procurava, ele

esperava achá-la não em qualquer espécie de “despertar”

político, mas no continuar radicalmente sonhando.

Conforme observa Olgária Matos, esta posição ousada

ficou mais clara apenas no segundo Exposé “Paris, capital

do século XIX” (de 1939, sendo o primeiro de 1935) no

qual Benjamin apresenta o andamento e as expectativas

para sua pesquisa das Passagens:

1 Gostaríamos de acrescentar estes comentários de

Agamben: “contudo, observando melhor, não haviam passado

desapercebidas à sua [de Baudelaire] prodigiosa sensibilidade

a novidade e a importância do desafio que a mercadoria estava

propondo para a obra de arte” (2007, p. 73) e “O que é certo é

que ele [Baudelaire] odiava demais a “repugnante utilidade”, para

pensar que o mundo da mercadoria pudesse ser abolido através

de um simples retorno ao valor de uso. Para Baudelaire, assim

como para o dandy, a fruição utilitária já é uma relação alienada

com o objeto, parecida com a mercadorização. A lição que deixou

em legado à poesia moderna é que o único modo de superar a

mercadoria consistia em levar ao extremo suas contradições”

(Idem, p. 84).

É preciso indicar a mudança, operada por

Benjamin, na compreensão da fantasmagoria,

do Exposé de 1935 e 1939. Em 1935, Benjamin

distingue produtos culturais ideológicos do

inconsciente coletivo – as imagens de desejo

e seu potencial de desfetichização – das puras

mistificações, que são as fantasmagorias.

A desmistificação das fantasmagorias era

uma experiência do despertar. Já em 1939, o

poder de desmistificação é atribuído à própria

fantasmagoria (MATOS, 2009, p. 1130).

A repetição superficial do mesmo que é a lei no reino das

mercadorias pode vir, assim, a ser ela própria a repetição

do diferente. Não se passaria de um domínio do falso e do

artificial para o do verdadeiro e do natural. A repetição

fantasmagórica continua, as máscaras e envoltórios

mantêm o redemoinho trivial em um movimento vão –

mas ainda assim algo novo e diferente pode surgir desse

contexto mesmo, ou melhor, de sua radicalização. Uma

forma de vida positiva a partir da própria artificialidade

de tudo trazida pela marcha capitalista. Mas como esse

processo de radicalização ocorreria?

Os jovens protagonistas do longa-metragem The bling ring

(Sofia Coppola, 2013) são presos pela polícia no último ato

do filme depois de vários roubos e invasões a mansões

de celebridades em Los Angeles. Mas a questão do filme

não está em saber em que medida as ações desses jovens

seriam ou não “revolucionárias”. The bling ring é o anti-

The Edukators (Hans Weingartner, 2003). As mercadorias

de luxo roubadas por eles não possuem qualquer

possibilidade de recuperar um uso mais “natural” e

“autêntico”; muito pelo contrário. Aqueles jovens estavam

absolutamente mergulhados na superficialidade da

cultura de consumo e dos reality shows, na fantasmagoria

da moda e no fetiche da mercadoria. Apesar disso, no

lugar mais inesperado, acabou sendo originada uma

dobra, um “desvio”, um ruído – que os levou à prisão.

Com as mercadorias que roubavam eles faziam

praticamente o mesmo que seus donos “legítimos”, mas

de maneira mais radical. Eles tiravam infinitas fotografias

que eram publicadas nas redes sociais e festejavam – com

álcool, maconha e cocaína – nos espaços privilegiados

das boates mais caras. Sem ter realizado qualquer feito

“importante” ou “relevante”, eles experimentavam algo

como uma longínqua e fugaz aura de fama. E é exatamente

essa aura remota o que Sofia Coppola tentou capturar com

o longa-metragem. Ela é um locus de beleza, experiência

e felicidade extremamente inefável e inapreensível, como

uma miragem cujas características velozmente escapam

à memória. Quase como um cheiro. É um aceno fugaz e

sutil de potencialidades e possibilidades, o único a que

aqueles jovens podem ter acesso, o único lugar em que

eles ainda conseguem sonhar, eles para quem a própria

cultura americana na qual estão mergulhados até os

ossos não faz mais sentido. Nenhum deles vê significado

na escola e nos valores morais de um conservadorismo

frágil que suas famílias lhes tentam transmitir – todos são

profundamente entediados e vivem de maneira intensa a

repetição demoníaca do mesmo, sem qualquer esperança

de que esta esteja relacionada a qualquer ideia positiva

de progresso.

Ora, o que estamos chamando aqui de uma inefável

aura da fama é radicalmente diferente da mera fama

que é vendida repetidamente pela cultura de consumo

contemporânea. No entanto ambas as coisas são bastante

parecidas e possuem quase os mesmos elementos, com

a diferença de que a primeira é uma radicalização – e não

uma destruição – da segunda; a primeira é o que Benjamin

chamou de “novo”: mas esse novo surgiu na própria

repetição do mesmo. Em meio a toda aquela cultura do

brilho, Coppola enxergou e percebeu um brilho que era

diferente, especial e mais interessante, sem que ele deixe

de ser, por isso, igualmente superficial e fantasmático.

Para acessar esse brilho qualitativamente mais rico,

Coppola precisou lançar mão de estratégias como a de

transformar os eventos do filme (baseados em fatos reais)

em um sítio de memória: Mark (Israel Broussard), um dos

membros da “gangue” que agora se dissolveu, relembra e

narra os acontecidos com certa nostalgia.

A memória, através da imaginação e da desaceleração

(que no filme se traduz nos slow motions de alguns planos),

que é sensível às possibilidades não concretizadas que

permeiam uma atmosfera que chegou ao fim, consegue

dar uma dimensão nova aos fatos. Aquilo que de outra

forma seria apresentado de uma maneira “banal” ganha

ares fantasmáticos e quase inquietantes de miragem. O

que causa uma espécie de estranhamento e faz um apelo

sensível diferente ao espectador. Coppola, com efeito,

já havia realizado uma operação similar em As virgens

suicidas (The virgin suicides, 1999) para suscitar uma

potência mágica de nostalgia: ela não quer quebrar o

encanto e revelar a “verdade” para que possamos por fim

agir; é o oposto – quer mergulhar o mais longe possível

no fantasma remoto e na contemplação indecisa de suas

ambiguidades infinitas, capturar sua riqueza inefável

e cheia de possibilidades. Tal riqueza não se distingue

mas ao mesmo tempo é radicalmente diferente do

artifício vazio da mercadoria. Exatamente por isso ela é

experimentada como algo de inquietante e estranho.

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