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DO NOSSO CANTINHO, PARA O VOSSO CANTÃO
Um cheirinho do meu
novo livro
V ARAGONEZ MARQUES
Por aqui, a pandemia acalmou e ando tão
farto de falar sobre esse assunto, que resolvi
este mês oferecer, como um cheirinho de
leitura, um capítulo do meu novo livro “A
Taberna de Avelino Camejo” a sair dentro
de dias, publicado obviamente por Filigrana
Editora.
Boas Leituras!
...
14. Cobarde de amor.
João sabia finalmente o que fazer. Fechou a porta
devagar para que não acordasse Beatriz e evitou,
entrar no quarto de Preciosa, que dormia com o
seu marido.
Falariam dele sim, mas não pelo real sucedido e o
tempo, tudo apagaria.
Foi o primeiro a entrar na taberna de Avelino Camejo:
- Bom dia!
- Por aqui tão cedo Senhor João? Que lhe ponho?
-Nada Avelino, tenho aqui um garrafão vazio
de água do Luso e gostava que mo enchesses de
aguardente, daquela tua, da boa, do alambique
que escondes no sótão e não podes vender ao
balcão.
-É uma chatice ter que servir aguardentes em garrafa
para os copos dos clientes, garrafas com marcas,
mas cujo líquido é como os melões. Coisas da
lei e a puta das multas vão até ao encerramento
da casa.
- Mas podes vender-me cinco litros? É para oferecer
a uma amiga que vou visitar.
- Amiga? E amiga de bom gosto, porque não há
como a minha aguardente. Porque pensa que sai
tanto “sol e sombra” aqui na casa?
Avelino não fez mais perguntas e com um funil,
encheu-lhe a garrafa, deixando-lhe a parte de
cima cheia de pequenas pérolas que lhe garantiam
a qualidade e referiu-o:
- Pérolas para uma amiga vejam que rico colar...
– e apontou com o dedo o cimo transparente do
garrafão de plástico, enquanto lhe enroscou a
tampa.
- Um colar de pérolas.
- Tenha cuidado Senhor João que amigas na sua
idade são um problema.
- Não a vejo há muitos anos, conheci-a em África,
ainda novo, no tempo da guerra, nunca mais pensei
ter contacto com ela, até porque é feia - riu-
-se - encontrei necessidade de a ver depois destes
anos todos e quis o destino que a encontrasse por
acaso.
Um dia disse que me encontraria e parece que o
adivinhou. Bem, para lhe dizer a verdade, fui eu
que lhe marquei o encontro.
- De África...é branca ou preta?
- Preta, amiga e fiel, daquelas que não nos esque-
cem nunca e são capazes de nos dar
conforto até à eternidade. Vivi com
ela dezoito meses em Angola, noite e
dia, na caserna e no mato.
Pagou e despediu-se.
- Até logo Avelino que lá mais pela
tarde nos veremos.
Deixou o garrafão no jipe e foi a pé
até à loja dos chineses.
-Bom dia, precisava de fazer um estendal
para a roupa, uma amiga que me
pediu, tem cordas e molas da roupa?
- Sim e ter estendal já feito, grande e
pequeno, desmancha e arruma, quer
ver?
- Não, quero ser eu a fazer.
- Tem rolo de três, cinco e dez metros.
- Quero um de dez metros que o
quintal é grande.
- Cor?
- Pode ser azul, que é a cor do céu, e
molas?
- Ter sacos com doze mas cores de
mistura, não pode “escoler”. Pode ser
“amalelo”, “vermelo”, Azul, misturado,
sacos de doze.
- São também dois sacos com molas...
- Eu não sair do balcão, há na segunda
fileira.
Foi assim que João foi buscar a corda
plástica e as molas, já meio aborrecido
com o chinês que nada fazia sem
ser indicar os caminhos, mas sem largar
a caixa registadora que guardava
o dinheiro e as poucas faturas que
fazia, aprendendo as manhas de fugir
ao fisco na mesma proporção e rapidez
com que aprendeu a língua lusa.
Olhava os espelhos redondos como o
dos cruzamentos das ruas que tinha
colocado, nos cantos superiores da
loja, tecnicamente e cirurgicamente,
de onde, vigiava todas as prateleiras.
João colocou a corda plástica e as molas
no balcão e pediu para pagar.
- Prego não quer?
- Não, tenho em casa.
- Quer saco?
- Sim.
- Tem que pagar saco à parte.
- Não, guarde a merda do saco, levo
na mão!
Raio de Chinês!
-Não precisa falta educação, não quer
não quer - e praguejou em chinês.
Levou as compras, meteu-se no jipe e
foi até à courela, arrendada a Avelino
e onde havia bastantes coisas já feitas
e muitas trazidas, entre elas, os porcos
com pocilgas feitas e o trator verde
com garagem das alfaias acabada.
Vigas de madeira e folhas de zinco.
Tirou o cadeado do portão, abriu-o
e meteu dentro também o jipe, junto
da palha e dos utensílios agrícolas.
Fechou depois ambas as portas e
meteu a tranca de pinho no interior,
encaixada nas albardas aparafusadas
às vigas onde estavam depositadas,
e muito mais seguras, apesar da fechadura
e do cadeado exterior que
trouxe para dentro, pendurado da
corrente e colocou sobre um banco
de três pernas feito de um sobreiro..
Uma tranca, sempre foi uma tranca.
Trancadas, as portas eram muito mais
seguras e invioláveis.
Ali, só poderia entrar quem ele autorizasse.
Sentou-se num fardo de palha, deitou
num copo de plástico a aguardente
do Avelino, bebeu um e dois e três e
ficou e ficou e foi ficando à espera da
amiga, talvez para ganhar força para
esse encontro que sabia ter que se
realizar.
Repassou-lhe a vida dos últimos anos
enquanto os sentidos lhe iam turvando
os pensamentos e as memórias.
LITERATURA
Deixou no jipe as molas da roupa
quando foi buscar a corda azul cor de
céu, o único que precisava mesmo do
chinês.
Subiu à roda traseira do trator verde
e passou-a por cima da trave onde foram
assentes as folhas de zinco.
Puxou ambas as partes, fez uma argola
numa delas por onde passou a outra
ponta. Cortou-a com um isqueiro
aceso, depois de lhe tirar as medidas
necessárias. Baixou do trator. Esticou-a
e atou-a ao gancho do reboque.
Subiu à roda grande novamente, primeiro
pelo degrau de subida, passou
o corpo pelo lado das mudanças e colocou
os dois pés sobre o banco onde
tantas vezes Preciosa esteve sentada.
Do banco um primeiro pé sobre o
grande guarda lama verde, depois
o outro. Alargou a argola grande e
meteu-a na cabeça. Olhou a trave, a
seguir, acompanhou com a vista a ligação
ao reboque e meteu o dedo no
pescoço experimentando com a outra
mão o fechar e abrir do colar.
Meteu a mão no bolso da camisa, tirou
um cigarro, acendeu-o e começou
a fumar.
Sabia que a amiga negra chegaria
quando o cigarro acabasse.
Assim foi, atirou a pirisca e deu um
passo em frente, dois ou três movimentos,
até que a amiga morte chegou.
Silêncio.
Deixou de baloiçar e ali ficou em linha
reta, os olhos curiosamente abertos,
os pés a trinta centímetros do
chão.
Para ele, tudo tinha terminado.
Já não ouviu o cão, alentejano de cabeça
enorme, que começou a ladrar
sem parar, da parte de fora do portão
fechado.
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