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edicao_abril_2021

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DO NOSSO CANTINHO, PARA O VOSSO CANTÃO

Um cheirinho do meu

novo livro

V ARAGONEZ MARQUES

Por aqui, a pandemia acalmou e ando tão

farto de falar sobre esse assunto, que resolvi

este mês oferecer, como um cheirinho de

leitura, um capítulo do meu novo livro “A

Taberna de Avelino Camejo” a sair dentro

de dias, publicado obviamente por Filigrana

Editora.

Boas Leituras!

...

14. Cobarde de amor.

João sabia finalmente o que fazer. Fechou a porta

devagar para que não acordasse Beatriz e evitou,

entrar no quarto de Preciosa, que dormia com o

seu marido.

Falariam dele sim, mas não pelo real sucedido e o

tempo, tudo apagaria.

Foi o primeiro a entrar na taberna de Avelino Camejo:

- Bom dia!

- Por aqui tão cedo Senhor João? Que lhe ponho?

-Nada Avelino, tenho aqui um garrafão vazio

de água do Luso e gostava que mo enchesses de

aguardente, daquela tua, da boa, do alambique

que escondes no sótão e não podes vender ao

balcão.

-É uma chatice ter que servir aguardentes em garrafa

para os copos dos clientes, garrafas com marcas,

mas cujo líquido é como os melões. Coisas da

lei e a puta das multas vão até ao encerramento

da casa.

- Mas podes vender-me cinco litros? É para oferecer

a uma amiga que vou visitar.

- Amiga? E amiga de bom gosto, porque não há

como a minha aguardente. Porque pensa que sai

tanto “sol e sombra” aqui na casa?

Avelino não fez mais perguntas e com um funil,

encheu-lhe a garrafa, deixando-lhe a parte de

cima cheia de pequenas pérolas que lhe garantiam

a qualidade e referiu-o:

- Pérolas para uma amiga vejam que rico colar...

– e apontou com o dedo o cimo transparente do

garrafão de plástico, enquanto lhe enroscou a

tampa.

- Um colar de pérolas.

- Tenha cuidado Senhor João que amigas na sua

idade são um problema.

- Não a vejo há muitos anos, conheci-a em África,

ainda novo, no tempo da guerra, nunca mais pensei

ter contacto com ela, até porque é feia - riu-

-se - encontrei necessidade de a ver depois destes

anos todos e quis o destino que a encontrasse por

acaso.

Um dia disse que me encontraria e parece que o

adivinhou. Bem, para lhe dizer a verdade, fui eu

que lhe marquei o encontro.

- De África...é branca ou preta?

- Preta, amiga e fiel, daquelas que não nos esque-

cem nunca e são capazes de nos dar

conforto até à eternidade. Vivi com

ela dezoito meses em Angola, noite e

dia, na caserna e no mato.

Pagou e despediu-se.

- Até logo Avelino que lá mais pela

tarde nos veremos.

Deixou o garrafão no jipe e foi a pé

até à loja dos chineses.

-Bom dia, precisava de fazer um estendal

para a roupa, uma amiga que me

pediu, tem cordas e molas da roupa?

- Sim e ter estendal já feito, grande e

pequeno, desmancha e arruma, quer

ver?

- Não, quero ser eu a fazer.

- Tem rolo de três, cinco e dez metros.

- Quero um de dez metros que o

quintal é grande.

- Cor?

- Pode ser azul, que é a cor do céu, e

molas?

- Ter sacos com doze mas cores de

mistura, não pode “escoler”. Pode ser

“amalelo”, “vermelo”, Azul, misturado,

sacos de doze.

- São também dois sacos com molas...

- Eu não sair do balcão, há na segunda

fileira.

Foi assim que João foi buscar a corda

plástica e as molas, já meio aborrecido

com o chinês que nada fazia sem

ser indicar os caminhos, mas sem largar

a caixa registadora que guardava

o dinheiro e as poucas faturas que

fazia, aprendendo as manhas de fugir

ao fisco na mesma proporção e rapidez

com que aprendeu a língua lusa.

Olhava os espelhos redondos como o

dos cruzamentos das ruas que tinha

colocado, nos cantos superiores da

loja, tecnicamente e cirurgicamente,

de onde, vigiava todas as prateleiras.

João colocou a corda plástica e as molas

no balcão e pediu para pagar.

- Prego não quer?

- Não, tenho em casa.

- Quer saco?

- Sim.

- Tem que pagar saco à parte.

- Não, guarde a merda do saco, levo

na mão!

Raio de Chinês!

-Não precisa falta educação, não quer

não quer - e praguejou em chinês.

Levou as compras, meteu-se no jipe e

foi até à courela, arrendada a Avelino

e onde havia bastantes coisas já feitas

e muitas trazidas, entre elas, os porcos

com pocilgas feitas e o trator verde

com garagem das alfaias acabada.

Vigas de madeira e folhas de zinco.

Tirou o cadeado do portão, abriu-o

e meteu dentro também o jipe, junto

da palha e dos utensílios agrícolas.

Fechou depois ambas as portas e

meteu a tranca de pinho no interior,

encaixada nas albardas aparafusadas

às vigas onde estavam depositadas,

e muito mais seguras, apesar da fechadura

e do cadeado exterior que

trouxe para dentro, pendurado da

corrente e colocou sobre um banco

de três pernas feito de um sobreiro..

Uma tranca, sempre foi uma tranca.

Trancadas, as portas eram muito mais

seguras e invioláveis.

Ali, só poderia entrar quem ele autorizasse.

Sentou-se num fardo de palha, deitou

num copo de plástico a aguardente

do Avelino, bebeu um e dois e três e

ficou e ficou e foi ficando à espera da

amiga, talvez para ganhar força para

esse encontro que sabia ter que se

realizar.

Repassou-lhe a vida dos últimos anos

enquanto os sentidos lhe iam turvando

os pensamentos e as memórias.

LITERATURA

Deixou no jipe as molas da roupa

quando foi buscar a corda azul cor de

céu, o único que precisava mesmo do

chinês.

Subiu à roda traseira do trator verde

e passou-a por cima da trave onde foram

assentes as folhas de zinco.

Puxou ambas as partes, fez uma argola

numa delas por onde passou a outra

ponta. Cortou-a com um isqueiro

aceso, depois de lhe tirar as medidas

necessárias. Baixou do trator. Esticou-a

e atou-a ao gancho do reboque.

Subiu à roda grande novamente, primeiro

pelo degrau de subida, passou

o corpo pelo lado das mudanças e colocou

os dois pés sobre o banco onde

tantas vezes Preciosa esteve sentada.

Do banco um primeiro pé sobre o

grande guarda lama verde, depois

o outro. Alargou a argola grande e

meteu-a na cabeça. Olhou a trave, a

seguir, acompanhou com a vista a ligação

ao reboque e meteu o dedo no

pescoço experimentando com a outra

mão o fechar e abrir do colar.

Meteu a mão no bolso da camisa, tirou

um cigarro, acendeu-o e começou

a fumar.

Sabia que a amiga negra chegaria

quando o cigarro acabasse.

Assim foi, atirou a pirisca e deu um

passo em frente, dois ou três movimentos,

até que a amiga morte chegou.

Silêncio.

Deixou de baloiçar e ali ficou em linha

reta, os olhos curiosamente abertos,

os pés a trinta centímetros do

chão.

Para ele, tudo tinha terminado.

Já não ouviu o cão, alentejano de cabeça

enorme, que começou a ladrar

sem parar, da parte de fora do portão

fechado.

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