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Chicos 64 - 10.04.2021

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições.
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Nº 64

10 de abril de 2021

Literatura e ideias em

Cataguases – MG

Um dedo de prosa

Esta é a nossa edição 64

Quarentena 2021

Chicos é uma publicação que circula apenas pelos meios

digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te

enviar nossas edições ou visite-nos nos links listados

nesta página.

A linha editorial é fundamentalmente voltada para a

literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno

e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,

uma diversidade temática.

Neste número de início do outono, em meio a quarentena,

sofrendo muito mais com a Covid 19. Nesse inacreditável

e desgovernado país, em que a morte, capitaneada

pelo descaso e indiferença dos negacionistas, caminha

contando cadáveres de mortos sem nomes. Perdemos

para essa pandemia o músico e compositor Agenor

Ladeira.

Mesmo assim, seguimos em frente na luta pela vida.

Marcelo Benini é o poeta da primeira página.

Desejamos uma boa leitura para todos! E até o início

do inverno.

Os Chicos

Capa: Foto - Vicente Costa

Pinturas - Ibou Diouf artista senegalês 1941-2017

Editores:

Emerson Teixeira Cardoso

José Antonio Pereira

Colaboradores:

Gabriel Franco

Vicente Costa

José Vecchi de Carvalho

Esta edição é dedicada a Agenor Ladeira de Andrade

Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com

Visite-nos em:

https://independent.academia.edu/ChicosCataletras

https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras

01


Chicos

ÍNDICE

03 Poeta da primeira página - Marcelo Benini

1 5 a morte chama a morte Inez Andrade Paes

1 6 Máscara no varal + 2 Leonardo Campos

1 9 1 poema Flausina Márcia

2 1 Negacionismo + 1 Helen Massote

23 Versos roubados do túmulo de Poe Emerson Teixeira Cardoso

24 Memento mori + 1 Ronaldo Cagiano

26 A árvore do esquecimento (continuação) Fernando Abritta

32 Poemas visuais Regina Pouchain

33 Pie caliente para saludar el amanecer + 1 José Pérez

36 Christus Pantokrator Hector Viel Temperley

37 La vara de almeandro + 1 Leonardo Garet

39 O caleidoscópio do Taumaturgo José Antonio Pereira

41 Olhos de turmalina Fernando Cesário

43 Lembranças do bairro violento Ronaldo Brito Roque

45 Para sempre José Vecchi de Carvalho

48 O dia em que meu pai foi meu filho Antônio Jaime Soares

49 Quarentena Leonardo Campos

50 Refugo Jeová Santana

53 Um conto aluado, meio Tonto, meio Atinado Maria do Céu Nogueira

59 Anna Maria Martins: Mulher admirável Raquel Naveira

6 1 Fotografia Enzo Menta

63 No Albamar, outrora Danilo Gomes

66 Os 125 anos do cinema - Dos irmãos Lumière.. Emerson Teixeira Cardoso

68 Mitologia das raízes endossa rara poesia Ronaldo Cagiano

71 Comunicar-te Hugo Pontes

72 Lusofonia, literatura e mercado João Melo

74 Lendo os clássicos Luiz Ruffato

76 Cataguases na Belle Époque

79 Clips

02


Chicos

Poeta da primeira página - Marcelo Benini

vros nasceu dessa intimidade física. Todos os

dias eu acordava e, ao abrir os olhos, encontrava

Voltaire, Dostoievski, Flaubert, Balzac".

Marcelo Benini, nasceu em Cataguases, no

ano de 1970. Ainda menino foi para Brasília

e hoje vive em um núcleo rural próximo à

Capital. Trabalhou como redator, principalmente

em agências de publicidade e hoje

atua na área de comunicação socioambiental.

A literatura sempre esteve presente em sua

vida, escrevendo, lendo e convivendo com

os livros, como ele mesmo conta: "Lá em

Cataguases, meus pais formaram uma respeitável

biblioteca com os grandes clássicos

da literatura e da filosofia. Quando mudamos

para Brasília, meu quarto passou a ser a

biblioteca da casa. Isso durante toda a infância

e a juventude. A proximidade com os li-

Como suas influências literárias, Benini destaca

os franceses e russos da segunda metade

do século XIX, além de Proust, Kafka,

Mann e Joyce. Entre os brasileiros, Manuel

Bandeira, João Cabral, Vinícius, Drummond

e Manoel de Barros na poesia, e Machado

de Assis e Guimarães Rosa na prosa. Mesmo

começando a publicar somente aos quarenta

anos, o autor manteve-se sempre em atividade.

O Capim Sobre o Coleiro é o resultado

primeiro dessa produção. A maioria dos poemas

começou a ser escrita por volta dos vinte

anos e foi sendo modificada desde então,

em um trabalho incessante de busca pela

forma ideal.

03


Chicos

tem asas para voar sozinho."

Antonio Miranda

A poesia de Benini fala de suas experiências

em contato com o Cerrado e de seus encontros

com os passarinhos, as abelhas, a literatura

e a filosofia.

“O poeta, de certa forma, afere ao mundo e

suas atmosferas e apreende o que não está à

mostra (como “o rosto da felicidade nas galinhas

ciscando a terra”) para esboçar, com

seu verbo aguçado, os diversos territórios

que habitam nosso inconsciente, além de

configurar outros espaços indecifráveis, filtrando

na melancolia do existir, a vitalidade

da natureza, os roteiros da alma, a difusa

ambiência dos acontecimentos de que somos

testemunhas em nosso percurso e nos torn

a m c ú m p l i c e s o u c u l p a d o s

(“Desaparecidos” , “Minha culpa").

Ronaldo Cagiano

Publicou quatro livros, um de crônicas O

Homem Interdito - Intermeios (2012) e três

de poesia O Capim Sobre o Coleiro - Ed. do

autor (2010); Fazenda de Cacos - Intermeios

(2014); Currais Concretos - Intermeios

(2018). Foi publicado na Alemanha pela fundação

Lettrétage (2012) em uma antologia

de autores brasileiros.

"Entre as influências na poesia de Marcelo

Benini poderíamos invocar o minimalista

Mario Quintana e um outro passarinho — o

Manoel de Barros. Está em boa companhia e

04


Chicos

Quando um menino bebe a água do rio

O rio corre para dentro do menino.

O menino discursa o rio

Até que mije o rio outra vez.

*

Quem tem olho de passarinho

Está a um passo de voar.

*

Um trem atravessou de ferro a infância

Deixou ferrugem na alma

*

Primeiro susto: uma goiaba grávida de bicho.

*

Minas é um lugar

Em bordas de montanha

Onde o tempo é pano

E a alma é linha.

05


Chicos

Há no amor insistência

Esses planos de galinha voar

Cachorros passando cercas.

*

E eu rindo, rindo, riacho

Diacho de amor mais findo.

*

A tarde estava presa

Por um jirau de maracujás.

Para que serve um jirau de maracujás

Senão para erguer a tarde?

*

As andorinhas justificam a existência das telhas.

Os pardais, dos fios.

*

Embrulho de pão é depositário fiel

da poesia,

Principalmente com barbante.

De: O capim sobre o coleiro (2010)

06


Chicos

Desistencialismo

Não posso te ouvir nas flores,

Faz tantos anos que no tronco da árvore

Coreografadas por um perverso

As abelhas voam em círculos

Nada podem contra o sol graciliano

Esse lastimável estado de validez

Essa indelével mandíbula fraturando delicadezas

As asas cortadas nos quedaram mansos passarinhos

Acedemos em cair

Em passar longamente caindo pela vida

No peito, trago rubra caliandra

Gesto sanguíneo contra o azul

Só eu sei os passarinhos que me habitam.

07


Funcionária pública

Chicos

Ninguém entendeu quando a moça da seção

Começou o concerto para piano número 3, de Prokofiev

No meio da tarde só ela ouvia clarinetes e violinos

Batia os dedos violentamente no teclado

Tremulando a melodia nos lábios

E jogando os cabelos no ar

As cortinas esvoaçavam na janela

Não houve pausa para o café

No dia seguinte os processos publicados no D.O.U.

Estavam todos em russo

E a moça digitava feliz uma carta de amor.

08


Criado-mudo

Chicos

Se ao amor nomeasse coisa

E faca já foi

Seria o amor das xícaras vazias

No exato instante em que os restos de açúcar

Atestam que amar é uma forma doce de esfriar e esquecer

Mas é também atrair delicadezas de abelha

E se o amor fosse apenas empilhar cadeiras no fim da noite

Se ao corpo assim o nomeasse

Seria o amor escarranchado das cadeiras de palhinha amarela

Mas se o amor ouvisse vozes

A esquizofrenia dos covardes rumores

Maior seria o silêncio e a deselegância do amor.

09


Rio Pomba

Chicos

O canto da pomba do rio de águas barrentas

Chamaram assim a essa caudalosa água

Triste pio no meio da mata

Os galhos desvalidos amontoam-se na margem

E o menino índio observa a pomba rio

Sem entender por que correm as águas se podem voar.

Meia Pataca

Chega de tuas recordações de infância

As minhas, matei-as

Bateias vazias

Entreguei-me a essa alquimia

De misturar o vão e transmutar desvario

Chega de esquadrinhar o vento

E crescer andorinha.

De: Fazenda de cacos (2010)

10


Desaparecidos

Chicos

Não estamos entre os desaparecidos de nenhuma ditadura

Não tivemos nossos rostos estampados em contas de água e luz

Não estávamos no genocídio armênio

Nem fomos enviados a campos de concentração

Não lutamos ao lado de Solano López

Não somos vítimas da política liberal para os povos originários

Nem mesmo tivemos nossos nomes anunciados

Pelos alto-falantes dos parques de diversão

Simplesmente desaparecemos.

11


Minha culpa

Chicos

Sou o homem que explodiu a bomba no metrô de Paris

O assassino judeu em Tel Aviv

Sou o jovem muçulmano que invadiu o café

O terrorista turco, o traficante norte-americano

Sou o general alemão

A polícia secreta de Stalin

Aquele que viajou com Olga até Berlim

Condenado por mortes, estupros,

Roubos, agressões e poemas.

12


Ossos

Chicos

Ficam os cães porque querem

Por inteira vontade

De ao teu lado estarem

Mesmo com a intragável solidão

Teus estragados humores

Teus dias de câncer e tomografia

Tuas teorias existenciais

Ontologias não desanimam os cães

Ficam por tua carne ainda

Pelos dias em que exporá tua beleza

Pelo que podem ser de companhia

Nessa transitória feira de razões.

13


Nanquim

Chicos

Aprendi com as árvores

A escolher um dia de chuva para tombar

E pôr a culpa no vento

Para que ninguém desconfie

Da minha imensa vontade de cair.

Bambuzais em chamas

Desabam catedrais secas

Por bruxaria e sombra condenadas

E cadáveres de saruê

Estralam os ossos

A inquisição das varas

Em bailarinas chamas que transpõem aceros

Por injúria e volume agrestes

Queimam os bambuzais.

De: Currais Concretos (2010)

14


Chicos

a morte chama a morte

*Inez Andrade Paes

a morte chama a morte

conselheira

como uma faca escorrendo numa língua de fora

lambendo a escora e o prego

aonde o tecido se pendura

esvoaçando na noite tenebrosa

só o anjo a salvará de inumano

caminho

à língua

porque a morta ela acha-se conselheira

* Inez Andrade Paes

Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de O Mar que Toca em Ti

(Crônica de viagem - 2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011); Libreto

em três atos, constituindo a Cantoriana Marítima - Acto I Mar falante, Acto

II Transparente Luva de Água, Acto III Flores de Acanto em Marfileno Lençol

; D Estrada Vermelha (Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia 2015) : À

Margem de Todos os Rostos (2017). Coordena desde 2012 o Prêmio Literário

Glória de Sant”Anna.

15


Máscaras no varal

Chicos

*Leonardo Campos

Esse tecido que abafa

nossas vozes

e esconde o meu sorriso do teu

traz uma leve estampa

de desejo visceral.

O que meu semblante clama

incendiado com as

máscaras no varal.

16


Entropia

Chicos

A morte é

um trote

de passagem

em que o corpo padece

a dor da carne

e enfrenta o colapso do

último hálito.

17


Chicos

Deixar fluir...

A função da lágrima

é minguar com o tempo

e brotar nas lembranças

de momento.

Toda lágrima tem seu intento:

ganhar a liberdade do rosto.

* Leonardo Campos

Leonardo de Paula Campos, nasceu em Cataguases MG é poeta e professor.

Além de participar várias publicações literárias. Publicou o livro Alma de brinquedo

(poesia) em 2010

18


Chicos

*Flausina Márcia

Meus verdes anos

Toparam pedra

No caminho

Sessenta e quatro

Pedras

Mas é rosa vermelha

O sorvete e a rosa é

Vermelha

Mais quatro e

Foi chuva de pedra

Nada mais daquela

Pressa

Só lentidão verde ainda

Banana madurece

Em cacho cortado

Mas e nós que nus

Amávamos tanto

19


Chicos

Essa terra em transe

A querer transgressões

E não é que chamamos

Golpe de movimento

Até mesmo de eleições

E não é que a fé

Move montanhas

Pra desabar barragem

E não é que o cavalo

Branco do Napoleao

Era azul de tão preto

O Brasil é destransado

Tem transgressores no

Poder

Porque basta jogar pedra na Geni.

Inacreditável 2021

* Flausina Márcia

Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo Horizonte (MG) onde trabalhou

na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou, entre outros, Vagalume

(2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives (2014).

20


Chicos

Negacionismo

*Helen Massote

Não precisamos de vírus

temos nós mesmos

a nos consumir

faz tempo

E não nos demos

conta da asfixia

que nos governa

Os monstros são

filhos do silêncio

mas falta oxigênio

na matrix

Não se preocupem

Manaus não ficará

em Manaus

A vida nua

se espalhará

patente e crua

Na ira selvagem

que nos espera

na próxima esquina

Ironia do destino

agora dois e dois

serão muito mais

do que quatro

mortos

21


Chicos

Hoje, ontem e amanhã

Estamos morrendo

feito moscas e

na delicadeza

das circunstâncias

ainda temos de

nos acolher

Haja versos

fadados

ao fracasso

Quero de volta

o meu outubro

o meu abril

E que as

tardes de maio

me acompanhem

nos escombros

* Helen Massote

Nasceu em Belo Horizonte (MG) e mora no Rio de Janeiro (RJ). Redatora, poeta

e cronista trabalha no Portal Fiocruz.

22


Chicos

Versos roubados do túmulo de Poe

*Emerson Teixeira Cardoso

Minha alma no nada mergulhada.

Oh, como deve ser maravilhosa a paz do túmulo!

Meu universo reduzido ao silêncio...

à quietude... à noite...

ao mais profundo sono,

e à esperança na imortalidade.

Será como ouvir uma melodia estranha

ou perceber visões antes nunca vislumbradas...

Até na morte restará alguma coisa.

Perfume... flor desconhecida...

minha alma no nada mergulhada

e nessa inebriante inconsciência

para baixo! para baixo! para baixo!

no sonho, no frio, na vertigem.

E numa pausa todo o ser desaparece

Mole, leve, lânguido, como num desmaio.

* Emerson Teixeira Cardoso

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa

da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas

Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete

(1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem

Azul (1997).

23


Chicos

Memento mori

*Ronaldo Cagiano

Os anos e as estações

tatuados na epiderme

revezando intrigas com a saúde

com sua melopeia movediça

a nos sugar

O tempo,

esse morcego cego

a nos predar

em cuja engrenagem

a ampulheta

e os ponteiros

nunca se fatigam

A morte,

sócia de Chronos

sósia do Senhor dos Infernos,

com seus alvarás de demolição,

já não é aquele nome

distante e impronunciável.

24


Chicos

Adeus, amigo

Naquela madrugada

– país povoado de murmúrios –

a Sinistra Foice visitou

a casa vizinha

Ao amanhecer,

senti a magnética

sensação do vazio,

quando o carro da funerária

desembarcava

aquele baú sem retórica nem avisos

que marcou para sempre

minhas retinas

ainda não fatigadas.

* Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Publicou, entre

outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária

2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012) e

Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016).

25


Chicos

*Fernando Abritta

Talvez não entenda

a lenda silenciosa em mim

(Em mim, Luiz Ruffato)

6 – O motivo

No mar calmo, navio negreiro desliza rápido movido por forte e constante vento.

Dentro leva muitos escravizados e uma rainha esposa do poderoso rei Agonglô que morreu

deixando dois sucessores: Adandozan, o regente, para reinar até quando Guezo, o rei bebê

filho de Nã Agotimé, estivesse pronto. Do alto de seu trono Adandozan determinou e entregou

aos brancos negreiros mãe de rei infante para que nunca ninguém mais a visse e nem

lembrasse da ordem dada por Guezo. Fez Nã Agotimé rodar tronco da árvore que rouba memórias,

a árvore do esquecimento. Fez dela escrava de brancos que a levaram para que sumisse

no outro lado das águas em terras desconhecidas.

O veleiro segue águas agora azuis ou de um verde muito escuro.

Orixás se perguntam continuam a conversa iniciada em cenas anteriores já publicadas

na Chicos. Cheios de dúvidas se questionam. Como se lembrarão dos oráculos de Ifá? Quem

fará as ofertas e manterá o vínculo entre os mundos de Orum e de Aiyá? Como as pontes entre

os humanos e os deuses se restabelecerão?

26


Chicos

O navio toma seu rumo, Exu é questionado por Iemanjá, Oyá, Xangô, Oxum. Ele, Exu,

muito agitado, responde de muito má vontade.

IEMANJÁ (sem nenhuma paciência) ─ Diga, Exu, o que você faz aqui em meu oceano?

EXU (evasivo, responde) ─ Nada. Nado, nado. Que nem peixe, nado.

IEMANJÁ ─ Diga, Exu, o que Olodum te mandou fazer?

Exu faz muxoxo.

XANGÔ insiste ─ Diga, Exu.

EXU ─ Mandou cuidar da rainha velha.

IEMANJÁ ─ Da rainha? Olodum se preocupando com uma rainha? O que tem essa rainha?

EXU ─ Anca larga, peito farto, formosura.

IEMANJÁ ─ Hein? O quê?

EXU ─ Tem, mas Exu não pode. Não pode.

IEMANJÁ ─ Como assim, abestado?

EXU ─ Rainha velha tem memória de tudo.

IEMANJÁ ─ Memória?

EXU ─ Rainha velha não se lembra, mas ela sabe tudo. Rainha velha sabe tudo de griot, de

contar história.

IEMANJÁ ─ O quê? E desde quando mulher é griot?

27


Chicos

EXU ─ Rainha foi criada em família de griot, aprendeu escutar e observar tudo.

IEMANJÁ ─ E daí?

EXU ─ Aprendeu separar o mais importante do resto. Aprendeu a guardar tudo na memória.

IEMANJÁ ─ E ela tem cabeça para guardar isso?

EXU ─ Aprendeu a contar de forma bela e agradável a história de toda gente ao som de tambores.

Aprendeu os toques de tambor de cada orixá, cada divindade. Rainha velha sabe.

IEMANJÁ ─ Então ela sabe tocar a cabaça e o ferro. Duvido.

EXU ─ Rainha leva memória de tudo pra esse povo.

OXUM ─ Mas isso não é tudo. Quem vai ensinar os orikis de cada orixá? As cantorias, rezas,

as ladainhas com as louvações e a história de cada orixá, quem vai ensinar?

EXU ­─ Rainha velha sabe Orikis desde hoje até os ancestrais. Rainha velha sabe das comidas

de santo, das oferendas. Rainha sabe de oriki orilé com todas as linhagens.

IEMANJÁ ─ Sabe mesmo?

EXU ─ Sabe, sabe sim. Sabe Oriki Borokini, de todos os bambambãs do reino, dos bacanas,

de todos os bonitinhos. Rainha velha sabe.

IEMANJÁ ─ Sabe isso também?

EXU ─ Sabe, mas, não lembra.

IEMANJÁ ─ Que mais ela sabe e não se lembra?

EXU ─ Sabe Oriki Ilu das cidades do reino.

IEMANJÁ ─ Sabe?

28


Chicos

EXU ─ Sabe. Rainha velha é muito sabida. Sabe até Oriki Amutorunwa de muita gente.

IEMANJÁ ─ Então, ela é griot?

EXU ─ Ela é a Rainha Velha.

IEMANJÁ ─ Ela é griot, Exu?

EXU ─ Sei não, não sei. Só sei que ela sabe. E sabe até Akijá para sustar Oriki quando quer.

Rainha velha é gostosa, muito poderosa.

IEMANJÁ ─ Mais respeito, capeta, mais respeito.

EXU─ Ah! Mas ela sabe, sabe mesmo sem lembrar. Sabe muito Oriki Orisá. Só que não lembra.

Rainha velha rodou em torno da Árvore do Esquecimento. Rodou junto com os mortos

em pé. Não sabe que sabe.

Aí, Xangô, Oxum e Oyá se assustam.

XANGÔ (preocupado) diz ─ Ela sabe Oriki dos Orixás. Ora, ora, ora, mas, ela rodou a Árvore

do Esquecimento. Lembra mais nada.

EXU ─ Rainha é muito poderosa e gostosa, tem muito Ori nas belas ancas. Conhece Ori dos

bichos, das árvores, das plantas. Sabe mas não sabe. Sabia, sabia. Agora não sabe, não lembra.

XANGÔ ─ Se ela não se lembrar, como meus filhos que seguem lá dentro desse barco saberão

de minha existência?

OXUM ─ Ela tem que lembrar. Exu vai fazer o quê, pra isso?

EXU ─ Exu quer dançar, quer mamar, quer pular. Exu quer fazer mais nada. Rainha velha

nem é tão velha. Rainha é nova na idade, velha na sabedoria, criança na memória. Rainha velha

não é tão velha nada. É bela em seu porte de rainha.

29


Chicos

OYÁ ─ Mais respeito, diabo. Mais respeito com Nã Agotimé.

IEMANJÁ ─ Diga, coisa ruim, como faremos para não sermos todos esquecidos.

EXU ─ Exu colocou dois com memória ao lado da rainha gostosa. Colocou dois que não perderam

sua memória. Dois que não sabem, mas se lembram. Sabem, mas não têm memória.

Memória vai na rainha.

OXUM ─ E se o tirano descobre essa artimanha?

OYÁ ─ Adandozan, sucessor de Agonglô, colocou nesse navio negreiro a Rainha, mãe de

Guezo, o verdadeiro herdeiro de Agonglô, para que seu reinado não pudesse ser questionado.

OXUM ─ Imaginou que a rainha, viúva de Agonglô, teria poder para derrubar o seu trono.

Por isso colocou ela na fila dos mortos em pé, passou ela pela Árvore do Esquecimento. Se

ele descobrir a artimanha de Exu, vai mandar seus assassinos atrás dela.

IEMANJÁ ─ Na certa, irão procurar em Belém, no Rio de Janeiro e em Salvador, na Bahia,

portos mais movimentados.

XANGÔ ─ Ora, ora, ora, se rainha velha voltar não haverá nesse novo mundo, do lado de lá

do oceano, quem nos conheça. E esses meus que aí vão, jamais saberão a quem pertencem.

OYÁ ─ Agora entendo a preocupação de pai Olorum. Não havendo lá quem cante Orikis para

esses que aí estão acorrentados, nunca saberão eles quem são.

IEMANJÁ ─ Se a Rainha morrer, então, não haverá ninguém nem para fazer os Orikis desses

que aí vão. Como eles saberão quem foi o seu pai, sua mãe, e o pai de seu pai, a mãe de sua

mãe? Menos ainda da avó de suas mães.

OYÁ ─ Onde se pode esconder a rainha, mãe do sucessor de Agonglô? Onde achar um lugar

que o tirano Adandozan não a alcance? Qual o lugar de Nã Agotimé?

IEMANJÁ ─ Há um porto mais escondido. Uma cidade numa colina, numa grande ilha formada

por dois rios. Uma cidade com casarões revestidos de azulejos. Uma cidade chamada São

Luiz.

30


Chicos

OYÁ ─ Então, vamos levar esse barco para São Luiz, no Maranhão. Lá quase ninguém vai.

Por lá não a encontrarão.

OXUM ─ Mas como levar esse barco para São Luiz, no Maranhão? Já estamos no meio da

viagem e a rota segue para Salvador, na Bahia.

XANGÔ ─ Não com esse ventinho de Oyá. Mas vamos agitar esse mar, soltar um vento mais

forte, uma bela tempestade iluminada de raios e ribombando trovões.

OXUM ─ Assim mudamos a rota desse destino.

Continua...

* Fernando Abritta

Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino, distrito de Cataguases (MG). Mora em

Juiz de Fora (MG) Publicou, entre outros, umÁrvore, O Caso da Menina Que

Perdeu a Voz, e, em parceria com Joaquim branco, Uma Verde História, além

de um ebook, Relâmpago.

31


Chicos

Poemas visuais

*Regina Pouchain

* Regina Pouchain

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É poeta, designer gráfica, artista intermídia,

programadora e diagramadora visual, engajada no poema contemporâneo

experimental, poesia sonora, poesia discursiva; pesquisadora em artes

visuais. Pós-graduada em Artes e Filosofia, realiza projetos próprios de criação,

exposições como curadora e artista, livros e obras tais como fotopoemas,

poema visual gráfico, poemas matemáticos, eletrônicos, poemas-objetos

e de manuseio, colagens, trabalhos com mídia mista, livros de artista, com

diversos trabalhos em meio digital.

32


Chicos

Pie caliente para saludar el amanecer

*José Pérez

Tres letras dentro de mis pantuflas

(dos vocales una consonante)

salen andando hacia la nada La temporal secuencia

Cómplice despunta el sol El satélite envía la hora

China amanece cuadrada Nueva York ovalada

París es un ángulo obtuso Madrid una cuadrícula

Sao Paolo musgos y plumas

Montreal hierve en hielo

La casa tiembla en la llama de la estufa

cae alguna hoja arrepentida del árbol

los perros ponen su excrecencia en la plaza del héroe

los niños corren hacia sí mismos

La diversión empieza

se ha dado en girar el mundo en su hora

Es real

alguien apaga en su alcoba su último suspiro

los amantes terminan su mentira fugaz

los transportes se mueven

juegan a la guerra las luces del semáforo

la pista está disponible para el próximo avión

crucemos la línea La delgada línea roja

Llegó el amanecer

Cuando llegue la noche

seguimos de regreso

33


Chicos

Historial de Caracas com perro muerto

Es la hora del peligro y el crimen bajo un cerro de cartón

los ángeles de fiesta

y la policía tomando café frente a los bares

Hora del callejón oscuro y los cuchillos

y una damisela que se divierte con poesía y alcohol

que danza sexi la piel sin telas y los pechos inflados

al fondo un cajero automático desvalijado

el dinero con óxido y aceite de autos sobre el asfalto

y la bella luna desposándose con el Ávila

la bruma de la montaña

al compás violento de las discoteques

los bardos ebrios de Sabana Grande

dos enamorados inocentes y una dama feliz

las sirena de bomberos y un guitarrista

cuatro drogos consumiendo crak o éxtasis

clientes fijos de carteles colombo-mexicanos

hijos del desastre de la vida loca

Caracas como un caracol

Caracas como una vaca muerta

con jardines y gentes pobres

muchachas de hermosura incomparable

el metro parisino y ruso y chino como serpientes

y sus valles cercanos como libros muertos

su río pestoso y penumbroso su Güaire

sus tulipanes de otra época su gloria

34


Chicos

alguna voz en el aire de la cuna de Simón Bolívar

su espada clavada en un árbol

en medio de la plaza

una página en algún lugar escrita por José Martí

otra página periodística escrita por García Márquez

y otras letras invisibles bajos los puentes

revueltas con grafitis con autos tuneados

con imitadores del hip hop con salseros y boleristas

guitarristas trasnochados bateristas zumbados

gente temerosa y risueña que ama la ciudad

la sufre la vive la niega la maldice y la calla

junto a su perro muerto de un certero disparo

en el hocico o la sien

Al final una duda urbana

¿Murió el perro asesinado

o el dueño del perro mordido de bala?

* José Pérez

Os poetas Gustavo Pereira, José Pérez e

Ramón Palomares

Nasceu em El Tigre - Anzoátegui, reside em Pariaguán, Mesa de Guanipa - Anzoátegui,

Venezuela. Licenciado em Letras. Doutor en Filología Hispánica pela Universidad

de Oviedo, España (2011). Professor da Universidad de Oriente Núcleo de Nueva Esparta

em Lingüística. Pertence a Red Nacional de Escritores de Venezuela. Publicou:

Jardín del tiempo (1991), Callejón con Salida (1994), Por la Mar de Luís Castro

(1995), De par en par (1998), No Lysis, No Listesis (2000), Pájaro de mar por terra

(2003) Como ojo de pez (2006), Fombona, rugido de tigre (2007), En canto de

Guanipa (2007), Páginas de abordo (2008) e Cosmovisión del somari (2011 e 2013). E-

books: Gustavo Pereira, Antología sin somaris (2017), A palo mayor (2018), La casa

de los poetas (2018). Vários prêmios literários em poesia, contos e romances

dentro e fora da Venezuela.

35


Chicos

“CHRISTUS PANTOKRATOR”

*Hector Viel Temperley

La postal viene de marineros, de pugilistas viejos

en ese bar estrecho que parece un submarino — de

maderas y latas — hundiéndose en el sol de la ribera.

La postal viene de un Christus Pantokrator que

cuando bajo las persianas, apago la luz y cierro

los ojos, me pide que filme Su Silencio dentro

de una botella varada en un banco infinito.

* Hector Viel Temperley

Héctor Viel Temperley poeta argentino nasceu em Buenos Aires, Argentina,

em 1933 e morreu em 1987. Sua biografia é confusa e mal documentada, já que

ele deu apenas uma entrevista na vida no mesmo ano de sua morte. Aos 23

anos publica seu primeiro e premiado livro Poemas de cavalos (1956). Seu último

livro é British Hospital (1986) refere-se à instituição de saúde onde fez o

tratamento para a doença que o afligia.

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LA VARA DE ALMENDRO

Chicos

*Leonardo Garet

.

Apareció un cartel blanco, cuadrado y con las letras

rojas “Aquí cae el que no sabe salvarse”. En pocos

días cayeron caminantes, motos y autos. Algunos

alcanzaron a retroceder, espantados. Una niña de

nueve años arrimó unas maderitas adelante del cartel

y les prendió fuego. Cuando le preguntaron por qué

lo hacía, contestó: “Para proteger la vara de almendro

que está atrás del cartel”.

37


Chicos

VASOS COMUNICANTES

Un libro de poesía es un inmejorable lugar para

escribir un cuento. El personaje queda apretado

entre las palabras “agua” y “sueño” y

marcha fortalecido porque los versos son como

caracoles que envuelven el argumento con

una cinta blanca. En los versos finales de la

página, cuando el personaje concreta um hallazgo,

o alcanza su muerte, sorpresiva o preparada,

puede el narrador encontrarse con algo

que no sabe de dónde viene, pero que luce

brillante.

*Leonardo Garet

Nasceu em Salto, Uruguai. Foi professor, é poeta, narrador, crítico literário e

gestor cultural. É autor de diversos livros publicados no Uruguai e no exterior.

Ele é Membro Correspondente da Academia Nacional do Uruguai desde

2008. Em 2002 recebeu o Prêmio Fraternidade de literatura.

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O caleidoscópio do Taumaturgo

Chicos

*José Antonio Pereira

O velho ônibus encosta ao lado da estação

ferroviária. Seu motorista desce, atravessa o largo

calçamento onde outrora mercadorias e passageiros

se misturavam para o embarque e para

na recepção do antigo hotel. – E aí Xisto, tudo

em riba? – Oi, Sô Carlos, tudo em cima! Retruca

Xisto o faz-tudo do hotel. – Vou usar o banheiro.

Posso? – Claro! E aí, o baile, é onde hoje?

O motorista, a caminho do banheiro responde,

Xisto nem ouviu. Sua atenção desviara com

a chegada do amigo Taumaturgo. Falastrão,

chega se metendo nas conversas de Xisto. – Sabe

se a Meuri Hardtail vai cantar no baile hoje?

– Vai. Hoje vão homenagear uma velha banda

em que ela cantava. – Eu ainda vou filmar esses

bailes. Desde a saída daqui, até a volta. Você

vai ver meu amigo. Xisto rindo, – Vai ser uma

loucura total. Pelas cores e personagens, que

parecem brotar lá dos anos 60, será uma psicodélica

mistura que viajou no tempo, que tal chamá-lo

de Baile do Chacrinha, em homenagem a

um ícone da época. Taumaturgo retruca prontamente,

– Já tenho nome.

Depois de uma pigarreada, a voz do candidato

a diretor soa empolgada, – Imagine tudo

escuro. Aquele silêncio total e acende no meio

da tela em um neon vermelho o título Kaleidoscope

Dance. Entra a voz da Meuri Hardtail cantando,

– Será que eu sou feia? No vozeirão do

trompetista, – Não. Você é um amor. Então, explode

na tela as cenas gravadas em algum salão

qualquer como se fossem aqueles bailes lá do

Pele e Osso. E Meuri continua, – Então, por que

razão eu vivo só sem ter um bem. Enquanto rola

o dueto e o bate-coxa dos pés-de-valsa, vão subindo

os letreiros, tudo sobreposto ao neon. E

39

tudo termina com meu nome enchendo a tela

Taumaturgo da Silva e Silva. É a glória, né não?

Empostando a voz, como um neo temente, Xisto

debocha, – Ô glória! – Você tá com inveja.

Mas aí, depois do meu nome, o filme corta pra

cá, em frente da estação. Os preparativos dos

ônibus que levam os músicos e os frequentadores

dos bailes para tudo quanto é canto. Na sequência,

a câmera acompanha a trupe pelas estradas

nos ônibus. Tenho que tomar cuidado

para não acharem que copiei a Caravana Rolidei

do Cacá Diegues. Xisto interrompendo o falastrão,

– Alguns ônibus velhos, um pessoal simples

que rala a semana inteira e que gosta de

dançar, cheios de animação, capazes de encarar

estradas ruins, locais sem estrutura para se divertirem.

Vem você com esta maluquice de fazer

um filme sobre eles. Deixa de maldade.

– Boa noite Xisto! – Boa noite, Dona Jaci.

Jaciara, aposentada que conserva hábitos de

seus tempos de tecelã, leva delicadamente os

dedos à camisa de Xisto e alisa o tecido. – Bela

cambraia, meu filho. Enquanto Xisto conversa

com Jaciara, Taumaturgo presta atenção nela. E

puxa um bloco de papel e vai anotando, “Com

um vestido verde, uma sobrepeliz rosa com um

grande laço à esquerda junto à cintura, tudo folgado

no corpo. Na cabeça um chapéu clochê

preto e na mão uma bolsa metalizada dourada e

o cítrico aroma do perfume”. Ela se afasta jogando

beijos para os dois desacostumada ao salto

alto, não faz parte do seu dia a dia, caminha

com dificuldade em se equilibrar. Xisto observa

e comenta, – Tenho medo de que aquele salto

fino agarre entre os paralelepípedos e ela se machuque.


Chicos

Enquanto Xisto escuta pacientemente as

elucubrações cinematográficas do fanático por

Hollywood, surge, vindo pela calçada já escura

do hotel Léia. Chega e já se dirige ao Taumaturgo.

– Oi paixão! E aí vai dançar comigo hoje?

Sem uma resposta, debochadamente continua, –

Meu bem, se você quiser, a gente se aninha

aqui mesmo, num dos quartinhos desse cafofo

do Xisto. Eu e você, meu Tatazinho, numa noite

de amor. Já pensou? Xisto percebe o embaraço

do amigo, estranha aquilo. Nada, em tempo algum,

o inibia ou constrangia. – Take it easy Doriléia!

Estou noutra. Xisto, vou usar seu banheiro.

A voz insegura dá certeza ao Xisto que ali

tem coisa. Depois de alguns segundos de silêncio,

Léia de mãos na cintura materializando sua

indignação. – Ô Tatá, Teiquinisi uma ova. Ele

deu de ombros e se dirigiu ao interior do hotel.

Léia, puta com o descaso de Taumaturgo, virase

para o Xisto. – Sabe como conheci esse porcaria?

Eu trabalhava na noite de Juiz de Fora,

quando a rodoviária era na Rio Branco e ele estudava

no Colégio Técnico Universitário. Era

assim que ele falava, todo orgulhoso, enchia a

boca. Eu no meu auge, com trinta anos. Trinta

não, vinte e tantos anos e ele nos seus dezoito.

Por causa dele, tive problemas com meu cafifa e

fugi para o Rio. Muito tempo depois soube da

morte dele, aposentei, resolvi voltar para Minas

e vim parar aqui. Taumaturgo volta do banheiro,

– Está mais calma, Doriléia? Léia não dá a mínima

e, sorrindo para Xisto, – Noutra hora te conto

o resto. E o senhor sabe muito bem, que não

gosto que me chamem de Doriléia. Estrupício!

Rubão, um velho pé-de-valsa chega vestido

na sua clássica calça de linho branco e camisa

vermelha, e já vai se assanhando com Léia. –

Minha flor! Hoje vou dançar contigo até a canela

ficar doce. – Rubão, quando você virou a esquina,

já sabia que era você, o único homem

que conheço que toma banho de madeira do

oriente. Dançar contigo a noite inteira é dor de

cabeça na certa com esse seu cheiro forte. Rubão

segura e beija a mão de Léia cheio de mal

ensaiadas mesuras. Léia pisca o olho para Xisto

e, apertando a mão de Rubão, – Ainda existem

cavalheiros que valorizam uma dama, né Xisto?

Bem diferente desse seu amigo grosseiro metido

a saber tudo de cinema. Vamos, Rubão, a noite

é uma criança. Ela abraça a gorda cintura do

Rubão e saem. O corpo já maduro, parece não

se conter num brilhante vestido verde abacate,

caminha e rebola provocativamente rumo ao

ônibus. Da plataforma assovios formam uma

trilha sonora. Xisto rindo, – Parece uma cobrinha.

– O que ela te contou? Indaga meio ressabiado

Taumaturgo ao amigo. – Não muita coisa.

Agora, eu não tinha a menor ideia de que ela

era seu caso nos tempos de CTU.

A algazarra do embarque chega aos dois

amigos que em pé observam todo aquele movimento.

Os dois ônibus partem, contornam a estação

conduzindo o conjunto musical e aquele

grupo de gente simples em busca de um baile

para fugir da realidade dura e pesada do dia a

dia. Do interior do ônibus, de luzes ainda acesas,

dona Jaciara acena para os dois. O ronco

dos motores some na noite e o silêncio toma

conta da porta do hotel.

* José Antonio Pereira

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras

crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).

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Olhos de turmalina

Chicos

*Fernando Cesário

Ela tão perturbadoramente insensível e

glacial, pétrea e impossível, enquanto eu,

num estupor das adegas, jamais acertava como

me portar, jamais tinha poder sobre a

atitude a ser tomada; tão estranha e incompreensível,

ela me parecia. Implorava por

adivinhar seus cálculos, seus desejos e até

suas cismas, para abranger o que se passava

dentro daquela cabecinha, mas em vão.

Nunca conseguia me preparar, ter plena

conta de mim, precaver-me de pôr pés em

ramos verdes de espinhos. Muda, totalmente

muda, pálpebras ermas no chão. Um suspiro.

E os mais vastos segredos.

Quem era ela? Afigurava vivenciar um

transe perlongado, as mãos inertes por entre

as coxas, estremecendo, em circunstâncias

acidentais, como se imprevisíveis arrepios de

frio lhe percorressem o corpo.

Confrontar de novo estes lençóis é restaurar

mais uma vez o torpor, é sobrepairar

nesta escuridão infinda e que parece ter peso.

Procuro entreter-me com o que vem lá

de fora, com os ruídos e bulícios; contudo,

algo sempre me traz de volta. Digo que minha

têmpera se desfigurava e a realidade

aparentava até assustadora. Ainda não conhecia

as verdadeiras ausências, as inexistências

definitivas, aquelas para as quais não

existem saídas e se delineiam quase como

inaudita realidade. Hoje sei delas, claro, é

trilha batida, mas, àquela altura, não podia

nem mesmo suspeitar de sua existência; a

vida acabou me mostrando, sem que o esperasse,

o destino abriu esta porta. E tudo é

tão extraordinário e tão desmedido que chego

a interrogar o que existiu, as coisas doces

e as tristes, o que foi bom e o que não foi,

pois, afinal, a magnitude dos acontecimentos

felizes depende, em certo modo, de que

os vícios não sejam de todo sepultados, visto

serem eles o diapasão da fortuna e da ventura,

do mesmo modo que o branco só se justifica

pelo negro, o calor, pelo frio, o dia,

pela escuridão.

A noite vem vindo, acenderam-se as luzes

dos postes, soporífera cerração sobre a

cidade. Não sinto frio; ao contrário, meu

rosto parece arder e a blusa do pijama me

traz desconforto. Dispo-me da cintura para

41


Chicos

cima, deito-me novamente, as pupilas agitadas

saltando pela obscuridade do teto, mas

não me conservo sobre a cama. Gritos de

um louco que passou do outro lado da rua e

que se insurgia em resmungos e impropérios.

Meu coração aturdiu-se.

O louco, estancado nas imediações, espaçou

mais duas ou três pragas e depois

mergulhou no mais profundo silêncio. Sei

que ele ainda está por perto, arrasta consigo

o que parecem ser latas dependuradas no

corpo, que chocalham e repenicam ao acaso.

Posso senti-lo muito perto. De vez em quando

me chegam tinidos de panelas e de trempes,

de alguma casa da vizinhança.

feitos de matizes inventados, de cores inexistentes

e que jamais retive. Que cores

mesmo tinham aqueles olhos? Pepitas miúdas

de turmalinas verdes, em cálice de vinho

rosé...

Do romance: Olhos vesgos de Maquiavel

É estranho, mas o perfume de Cristine

parece se conservar por aqui. Está pelos espaços,

nos tecidos, nas minhas mãos ancoradas

nas aberturas das narinas, que tratam de

sorver as voláteis e viciosas partículas de

uvas que escapavam de seu corpo, de resgatar

até a última molécula. Consigo desvendá

-lo nesta inefável e insistente alucinação.

Quem era ela? Quem estava diante de

mim, metida naquele vestido rubro, que cingia

as formas de um corpo cálido e misterioso?

Quem? A cabeça ligeiramente pendida,

dedos inquietos enroscando-se uns nos outros

numa lenta e mórbida dança. Tão perturbadoramente

ausente e entorpecida, pálpebras

tímidas cravadas no chão, os olhos

* Fernando Cesário

Nasceu no Rio de Janeiro RJ mora em Cataguases MG, é autor, entre outros,

dos romances Os algozes do sono (2000), Alma de violino Prêmio Lima Barreto

(2004) e Olhos vesgos de Maquiavel (2011).

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Lembranças do bairro violento

Chicos

*Ronaldo Brito Roque

Eu era muito jovem, não lembro com precisão.

As imagens apenas resvalam na minha

cabeça. Num domingo de tarde, o sol nos fustigava,

queríamos fazer alguma coisa, arranhar

algum carro, bater em algum menino bem vestido,

roubar um celular ou um par de tênis. Mas

não tinha ninguém na rua, a não ser os adultos,

que ficavam em bares e eram bem mais fortes

que nós.

Entramos no quintal de uma casa que parecia

abandonada. Pelo tanque, subimos na laje.

De lá vimos uma mulher, no quintal vizinho,

aguando flores com uma mangueira. Ela estava

com a camisa suspensa, presa pelos sovacos. Isso

nos dava a impressão de que seus seios eram

maiores. Decidimos que aquela seria nossa vítima.

Mas logo chegou um cara e começou a conversar

com ela. Então decidimos esperar, não

queríamos testemunhas. Descemos da laje e fomos

dar uma volta pelo bairro. Jogamos pedras

num cachorro grande, que latia brutalmente contra

uns cachorros menores. Ele fugiu. Nós vencemos.

Apareceu um mendigo, mancando de uma

perna, usando um pau torto como muleta. Mais

chuva de pedras, dessa vez no mendigo. Alguém

o acertou na cabeça. Ele caiu, imóvel, provavelmente

desmaiado. Mais vivas e glórias! Agora

éramos invencíveis, éramos a força inevitável

daquele sol massacrante.

43

Resolvemos voltar à laje, mas dessa vez

não achamos o quintal que nos permitia a entrada.

Alguém deve ter simplesmente fechado o

portão. Então notamos uma dessas grades muradas

à meia parede. Subimos no meio-muro, segurando

nos ferros, e passamos para um muro

mais alto e mais grosso, onde podia-se ficar de

pé sem dificuldade. De lá avistamos outro quintal,

ou talvez o mesmo, apenas visto de outro

lado. A mulher tinha saído. Agora havia uma

jovem tomando sol. Ela tinha estendido uma cadeira

de praia. Estava de shortinho e sutiã, uma

coisa que nos fazia trincar por dentro. Íamos pular

no quintal e atacá-la, eu sentia que esse era o

pensamento de todos. Mas o cachorro grande

voltou com outros cachorros, que latiam e riscavam

o chapisco do muro, nos ameaçando. Nesse

momento os bravos mediram sua coragem. Os

garotos pularam do muro e enfrentaram os cachorros,

chutando seus pescoços, socando suas

cabeças, fazendo como podiam. Eu, o covarde,

pulei para dentro do quintal. Quando me viu, a

garota colocou os braços sobre o sutiã. Eu improvisei:

me desculpe. Tenho que passar por

aqui, uns cachorros estão atacando meus amigos.

Ela disse: quer que eu chame a polícia? Polícia

prende cachorro, eu perguntei. Ela riu, disse

para eu esperar e entrou dentro de casa. Depois

voltou, com um bustiê em vez do sutiã. Era apenas

alguns centímetros maior, mas de fato bem

menos erótico. Ela perguntou se eu era filho daquela

mulher, dona daquele restaurante. Fiquei

lisonjeado em ser confundido com o filho de

uma mulher rica. Menti, confirmando o mal entendido.

Ela disse: minha mãe fez café agora,

vamos entrar. Estou sem camisa, respondi, na

minha humildade total. Tudo que eu sabia da

vida era que não se entra na casa dos outros sem

camisa. Ela disse: o que é isso? Que bobagem,


Chicos

vem logo. Então entrei, mesmo me sentindo em

território estranho. A mãe dela apareceu na cena,

me deu café, bolo, depois perguntou: os cachorros

te atacaram? Eu disse que não, eu tinha

subido no muro para fugir. Meus amigos não

foram tão rápidos e acabaram sendo atacados. A

mulher falou que esses cachorros estavam um

perigo. Era preciso conversar com alguém da

prefeitura. Depois perguntou se eu queria que

ela ligasse para minha mãe, para ela vir me buscar.

Eu disse que não. Se eu saísse pela porta da

frente, não passaria pelos cachorros, não havia

perigo. Ela disse que tudo bem, e saiu da cozinha.

Fiquei olhando para a garota sem saber o

que dizer. Isso fazia o café parecer mais quente

e o bolo parecer mais doce. A garota também

não dizia nada. Secretamente, tínhamos vergonha

de nossas cabeças vazias. De repente me

ocorreu uma ideia, algo que podia ser dito sem

medo, pois tinha um fundo de verdade. Se souber

que eu lanchei aqui, minha mãe vai querer

que você lanche lá em casa também, arrisquei.

Tudo bem, ela disse. Você liga para mim, e a

minha mãe me leva lá. Vocês moram em cima

do restaurante, não é? Minha alegria durou dois

segundos. Me dá sua mão, ela falou de repente.

Pegou minha mão e anotou uns números na minha

palma. Me liga, e eu falo com minha mãe.

Ela parecia contente em dizer isso. Era uma atividade

complexa. Envolvia telefonemas, deslocamentos,

bolos. Uma casa nova para ver, uma

coisa para se contar às amigas. Eu disse: tudo

bem, agora vou indo. Passei pela sala, tchau,

dona. Ela disse: fala para a sua mãe que eu

mandei um abraço.

Quando pisei a calçada olhei para a minha palma

com uma tristeza muda e opressiva. O suor

já começava a dissolver os números. Não tentei

memorizá-los. Não valia o esforço. Em pouco

tempo eu estaria na minha casinha de dois cômodos

e um banheiro. As paredes sem reboco.

O piso sem cerâmica. Um lugar onde eu nunca

levaria nem um dos moleques que andava comigo,

quanto menos uma garota.

No entanto, quando relembro essa história, não

consigo deixar de pensar que o bravo fui eu. Enfrentar

uma garota, enfrentar o desconhecido,

pelo menos naquele dia, exigia mais coragem.

* Ronaldo Brito Roque

Nasceu em Cataguases MG, cursou as faculdades de arquitetura e letras,

sem concluir nenhuma. Trabalho como tradutor e professor de inglês.

Publicou entre outros: Meias palavras e A menina dos cabelos de fogos

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Para sempre

Chicos

*José Vecchi de Carvalho

Pode parecer doidice, mas não é. Porque

tem coisa que está em lugar que muita gente

não vai, aí fica como se não existisse. Mas o caso,

só em sendo contado, já existe. Quem anda

na quietude dos silêncios desses lugares ermos,

onde quase ninguém é de chegar, bem sabe,

porque sempre traz de lá, para a rudeza do real,

umas histórias para acalmar a pressa, secar o

choro, desfranzir o cenho, serenar a vida. Lá, de

onde falo, é como uma casa abandonada, um

sótão, um porão, só que é o recôndito da cabeça,

onde lascas de lembranças, segredos e ideias

vão se amontoando. Até que um vasculhamento

dá de mostrar pistas de casos escondidos no

tempo. O que vou contar não é para gargalhada

nem arrepio, mas para melhormente se tirar os

pés do chão e ir seguindo a linha trespassando e

mesmeando o diverso da gente, costurando retalhos

de tudo que é cor e tamanho e jeito, arrematando

uma peça ajuntada, bonita, uma colcha

de retalhos, um tapete enfeitando o chão da casa.

Então, me acompanhem, conto sem rodeio,

no traçado direto da agulha puxando a linha, no

alinhavo de costuras e cerzimentos.

Foi no tempo que a cidade sucumbiu de

repente, num pulo-pulinho, no zás do ponteiro,

coisa de minuto, e gente morta pra todo lado.

No meio de tanto corpo sem vida, dois não gozavam

de reconhecimento nem reclamação de

perda. E lá se foram os defuntos anônimos, sem

exéquias, para as suas covas indistintas, lado a

lado. Um não devia nunca ter tomado sol de tão

pálido, ia até azulado em roxo. E carrancudo,

parecia morto mesmo antes de morrer. O outro,

castanho amorenado no café com leite, levava

um meio sorriso no canto torto da boca, nem

parecia defunto. Chegando no subterrâneo das

covas, sem gaveta nem nada, bem pertinho um

do outro, desandaram numa estranheza de conversação.

Eu sei, vão me dizer, defuntos falando!

Onde já se viu? Pois, então, não me atalhem.

Explico sem colocar reforço de ênfase ou volteando

no repetir do já dito em antes: é que as

gentes comuns precisam só de existir pra ver a

morte; mas tem uns que deslizam no azeite da

soberba e precisam de ver a morte para existir.

O existir, mesmo, que falo, é o em cheio, com-

45


Chicos

pleto, no duelo da vida sem escamoteio nem esgueiramento

pelos cantos do vazio. E o defuntinho

azulado era daquele tipo que viveu sem

aceitar um nãozinho só, que fosse, do tipo que

pensa que tudo no mundo volteia e caminha

convergido para si mesmo.

E foi assim que se deu, o defunto branco, roxinho

de morto, apavorado na estranheza do caixão

enterrado em cova simples, com um monte

de gente ao redor, deu de contestar a morte,

achou melhor ficar vivo para escapar da vala comum,

do entorno lotado. Não queria se misturar

no igual de todos. Gritava e esmurrava o caixão

com as mãos duras, e ouvia risadas de todo lado.

— Que desordem é essa de risos? Por que

a algazarra?

— Ora, veja quem reclama!

— Preciso sair daqui urgentemente.

— Não tem como, não, vamos ficar pra

sempre, até não sobrar mais nada.

— O que está dizendo? Não vou ficar aqui.

— Ah, não me faça cócegas.

— Não me conhece, não posso viver ao

lado de gente tão pobre, feia e sem modos.

— Viver, é? Onde pensa que está, ô, leite

azedo?

— Não importa, vou sair daqui.

— Espere deitado. Não demora nada os

vermes vão abrir buracos em nós, comer toda a

carne, sem pudor, distinção ou frescura.

O branco-azulado pegou a gritar de novo,

esmurrava e chutava o caixão, assustando a vizinhança

que não podia fazer nada. A comunidade

de defuntos ficou abobada com o palavrório desaforado,

e o danado ali, se achando o centro de

tudo. E de tanto esforço de discórdia, conseguiu

sair, só com visão e pensamento, — a alma —,

vagando meio doido, vendo a vida que não viu

quando era gente viva, ladinagem, mentira, tristeza

de dor, medo, dureza, gente se moendo em

troca de migalha. Havia até uma nesguinha de

alegria de vez em quando, um amigo, um parente,

um encontro, coisa pequena, passageira. Tudo

estranheza para o tal que viveu no desdenhar.

E quando ele voltava pro seu buraco, vinha num

resmungar exaltado, os vizinhos já nem punham

atenção na sua ladainha empafiada.

E assim foi sendo, um voo de urubu. Três

anos ou mais, girando em volta, sem enxergar

erro no seu espelho, sem expiar. A sete palmos,

a ladainha seguiu como se tudo fosse outro dia

mesmo. Em cima das campas, o silêncio, mas o

azul-roxeado-renitente deu de ouvir o zunzunzum

de gente que vinha salvar sua dignidade,

trazer sua redenção. Falava pro vizinho do lado,

um zumbido de vozes vinha de cima, era certo,

aconteceu de ser reconhecido, vinham tirar ele

dali.

Os defuntos todos quietos, ninguém dava

corda pra sua conversa, até que começou a cavucação.

O barulho vinha bem de cima deles e o

roxeado-renitente não aguentava de tanta alegria.

O vizinho do lado riu um risinho de deboche

no canto torto da boca.

— Eia, estão requerendo a nossa vala.

— Não se meta. Vou para um lugar melhor,

lápide, fotografia, epitáfio, flores, velas!

46


Chicos

— Mesmo?

— Claro, eu mereço!

— Hum, nem em vida! Agora, então...

O defunto já sem carne nem cor, tentou

tampar o ouvido com as falanges secas, pra não

ouvir o vizinho, depois, mirou pro lado esquerdo,

com os buracos que antes eram os olhos.

Passava longe daquela cabeça, oca como sempre,

que tinha virado um monte de ossos. Não

valeu de nada vagar pela terra como alma penada.

Em vez de aprender e descansar para todo o

sempre, gastava o tempo sem sossego, tentando

E o barulho vinha no batido surdo, chegou

aproximado, rompendo o oco em cima da ossaria

imprestável. Lá embaixo a conversa cessou

na hora. O inconformado renitente, se tivesse

ainda os olhos, haveria de arregalar. Um monte

de gente com estranhice de roupas e caras vendadas,

juntando em sacos as sobras de cada um,

removendo toda a comunidade de restos sei lá

pra onde, outro ossuário, talvez. O carrancudo

não ria nem com a arcada toda de fora. Mas o

vizinho amorenado, ah, esse exibia o risinho no

canto torto da boca.

ser o que nunca houvera de. Daí, as almas atormentadas

que vivem de assombrar a gente.

* José Vecchi de Carvalho

Nasceu em Cataguases, após morar por muito tempo em Viçosa vive

hoje em Paula Candido todas cidades mineiras. Coautor de A casa da

Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de Duas Cruzes (contos

2018) e Contradança (contos 2020)

47


Chicos

O dia em que meu pai foi meu filho

*Antônio Jaime Soares

Dia desses perguntei ao João, ex-dono do

Depósito de Pães Nossa Senhora do Rosário

(coisas da Vila), como estão seus filhos. Já põem

comida na boca sozinhos, disse, acrescentando

que o “menino” trabalha na Brookfield e a

“menina” no Santander, em São Paulo. Pois bem,

quando eu já levava comida à boca sozinho, dividindo

apartamento com um colega de trabalho,

outro colega voltou pra mulher e cedeu-me o que

ocupava, em Ipanema. O lugar, excelente, o cafofo,

nem tanto.

Confortável, mas quente, não obstante a

ventania marinha. Imobiliárias não se tocam de

que vento não faz curva, custava nada, por

exemplo, uma abertura pro corredor. Arcondicionado

e ventilador resolviam, mas eu prefiro

ao natural. O que mais preocupava eram ruídos

no telefone e a correspondência chegar com

atraso. Motivo: o ex era jornalista linha

“esquerda festiva”, preso cinco vezes pela ditadura,

poderiam achar que eu era da turma e me

trancarem para averiguações. Sartei fora.

Duas lembranças marcantes do período estão

ligadas às minhas origens. Primeiro, mamãe,

que me visitaria mais vezes, até por ter outros

parentes no Rio, que lhe proporcio­naram passeios

mais ao seu gosto um tanto aventureiro.

Um deles, andar de barco com um sobrinho pescador

pela Baía de Guanabara, até as obras da

ponte Rio-Niterói. Outro sobri­nho a levou ao

Corcovado, que já conhecia e agradeceu ao Cristo

pela graça de estar lá de novo. Aos 70 anos,

subiu com sua irmã os 382 degraus que conduzem

à Igreja da Penha. Quisera eu ter tanto fôlego.

Mas eu a levei à praia, que adorava e ficou

sentada no frigir das ondas, ali onde “o mar sorri,

com den­tes de espuma” (verso de Pedro Kilkerry),

junto à meninada, tão menina quanto.

Passou um fotógrafo do Jornal do Brasil e ajoelhou-se

na areia para obter o melhor ângulo e

procurei a foto nas edições seguintes do jornal,

sem sucesso. Na volta, perto de casa, na Barão

da Torre, veio correndo um cabeludo de tanga à

Fernando Gabeira e entrou no Restaurante Natural.

A mãe o achou estranho, não sabendo quem

era, ao contrário de um menino, que gritou:

– Gilberto Gil, canta o Sítio do Pica-pau

Amarelo pra mim.

Já o pai me visitou só uma vez. Esperei-o

na Rodoviária, tomamos um táxi e, à saí­da, na

mesma Barão da Torre, entrou Lucélia Santos.

Falei quem era e ele se encantou, lembrando a

escrava Isaura. Era magro e não sabia nadar, motivo

para eu segurá-lo contra as ondas, como se

tivesse um filho em meus braços. Depois, fomos

ao Posto 6, de onde se vê Copacabana do melhor

ângulo e tomamos chope com peixe frito. O peixe

daquela área é sempre confiável, por ser entreposto

de pesca e uma freguesa antiga é Elza

Soares, que não dispensa ostra, pela fama de

afrodisíaco.

Começou a escurecer e a avenida Atlântica,

iluminada, ganhou aquele aspecto de "colar de

pérolas”, como se dizia nos cartões postais de

mil novecentos e guaraná de rolha. O pai, inebriado,

só tendo visto mar em Guarapari, sem aquela

efervescência da cidade grande. Em casa, arrumei

sua cama e dormiu feliz da vida.

* Antônio Jaime Soares

Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Participou de um dos movimentos culturais

mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC. Depois de morar um

longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.

Retornou a Cataguases direto para a Vila. Poeta e cronista publicou Pedra que

não quebra (2011)

48


Chicos

Quarentena

*Leonardo Campos

– Saiam da rua! O corre-corre acabou.

Gritou a mãe na porta de casa. As crianças

avançaram se atropelando e rindo, pois até

na recolhida havia modos de brincar. O trabalho

da mãe também se encerrara quando a

loja do shopping fechou as portas devido ao

novo vírus ameaçador. O pai ainda trabalhava

de frentista no posto de combustível e

trazia as novidades da rua.

Dias diferentes, de recolhimento e prevenção

frente à ameaça invisível. Situações

concretas que desencadeavam outros episódios:

o descanso mental frente à vida de sacrifício

de muitos ao tédio dos idosos de não

possuírem mais o livre caminhar de outrora.

A possibilidade das boas conversas familiares

de alguns à confrontação, de outros, com

a convivência integral com os entes. A incerteza

do salário em dia à frustração daqueles

que geram renda através de seus negócios.

Os pormenores da vida foram se amontoando

como detalhes em uma partida de

quebra-cabeças e as peças que se encaixavam

se mostravam cada vez mais desafiantes,

complexas para só depois revelarem outras

facetas do jogo. A reclusão nas casas e

apartamentos implicou um olhar de enfrentamento,

não somente ao vírus, visto que as

ações de prevenção deste eram todas de ordem

didática.

Nos lares, a ordem eletrônica da internet

e TV disseminava o vírus e seu trajeto de

medo e perdas. Enquanto conceitos de estruturas

mais profundas como religião, cultura

e partidarismos se acirravam dividindo o

consciente coletivo; a economia, volátil, adoecia

ou se recuperava a uma ligeira mudança

do avanço virótico.

Decerto, havia outros patógenos a enfrentar,

tanto sociais quanto particulares. Havia

outras quarentenas a se praticar, além

daquela que leva somente o corpo para a

casa. Seria hora de não nos paralisarmos

frente à mão invisível do medo e refletirmos

amiúde sobre a vida, o outro, o planeta.

– Entrem! O corre-corre acabou.

* Leonardo Campos

Leonardo de Paula Campos, nasceu em Cataguases MG é poeta e professor.

Além de participar várias publicações literárias. Publicou o livro Alma de brinquedo

(poesia) em 2010

49


Chicos

Refugo

*Jeová Santana

A onda que se ergueu do mar atingiu

uma altura descomunal e foi bater na varanda,

desfeita em pequenos cubos de gelo.

Nem vou me dar ao trabalho de contar

mais essa para ninguém. Não tenho mais

com quem conversar. Nem pela internet.

Todo mundo migrou para um aplicativo

que privilegia a imagem. Essa opção já vinha

se delineando há um bom tempo, com

aquela famigerada mãozinha jogada a torto

e a direito. Só para testar o grau da indiferença,

às vezes metia um absurdo no meio

da mensagem e não acontecia absolutamente

nada. Lasquei-me. Assim, pobre

das minhas palavras, mesmo que venham

acompanhadas de imagens fortíssimas como

essa, da onda, ou a do cara, sem braços,

que andava de bicicleta, a cavalo, batia

na mulher, na mãe, e ainda roubava

frutas na feira, ou a dos quatro urubus em

cima de um tronco, a descerem o rio Mundaú

abaixo, em feliz confabulância. Doido

ou poeta, diziam-me.

Agora, nem isso. E olha que ironia:

são justamente os urubus que se multiplicaram,

caindo em cima de tudo, inclusive

nos hospitais. Se derem bobeira, não deixam

nem esfriar. Pelo menos, para passar

o tempo, resolvi dar uma geral nas estantes.

Três dias somente na primeira. Camadas

de pó milenar. Há muito tempo sem

diarista e nunca mais um aspirador. Trabalho

lento, com máscara, luva, pano úmido.

A renite alérgica agradece. Só assim posso

enfrentar os ácaros que se ostentam estrelados.

Fico a imaginar quantos repousam

entre os mais velhinhos. Sabemos que estes

requerem o maior cuidado. O peso dos

anos, porém, não significa perda de cintilância,

mesmo que deva tocá-los com a

maior delicadeza. Posso até colocá-los

num grupinho. Jogar fora, nunca. Ainda

bem que alguns têm costura, tão valorizada

pelo escritor mais famoso de minha terra.

Sem costura, editora nenhuma publicava

seus escritos. O bicho era brabo. Batia

na mesa e tudo.

O primeiro da lista, à beira de chegar

ao centenário, As primaveras, Casimiro de

Abreu, numa edição de 1921, ano em que

meu pai nasceu. Dois anos depois, A oração

dos apóstolos, Rui Barbosa. Em seguida,

Yayá Garcia, Machado de Assis, 1953;

Uniforme de gala, M. Cavalcante Proença,

também de 1953; Prima Belinha, Ribeiro

Couto, 1957; Na força da idade, Simone

de Beauvoir, 1961; A fonte, Charles Morgan,

tradução de Mário Quintana, 1963.

Por fim, Mar morto, Jorge Amado, 1965.

Um deles, salvei numa cena surreal. Passeava

com um colega de curso pelas ruas da

Liberdade quando vimos o monturo impressionante

na calçada. Um homem atirava-os

com pazadas precisas para uma carroça

desconjuntada, presa à indiferença de

um Rocinante pretíssimo e lefo de fome. O

dono do sebo, para aumentar nosso queixo,

passou a jogá-los, um a um, lá de dentro.

Até meu pai está entre as surpresas:

encontrei sua assinatura, datada de 26 de

fevereiro de 1956, num tal Hipnotismo, da

50


Chicos

coleção Ciências Herméticas e Psicologia Experimental,

sem autor, nona edição, publicado

pela “O pensamento”, São Paulo, em

1954. Minha mãe acha que ele usou este livro

para conquistá-la. Camisa vermelhona,

oclões escuros na cara, falando com o chiado

carioca depois de uma temporada na Maravilhosa.

Ela, nem chite! Só rua abaixo, rua

acima com as amigas. Mas meu avô, duro

na queda, depois de preterir tantos pretendentes,

baixou a guarda. Afinal, não era todo

dia que aparecia um mecânico de usina

ganhando nada menos que cinco contos.

Na página 16, leio, como proposta de exercício:

“Fixar durante um quarto de hora um

ponto qualquer, por exemplo um ponto negro

feito numa folha de papel, esforçando-se

para olhar o mais tempo possível sem pestanejar.”

Sei não, viu!

Essa é a parte boa da arte de futucar o

passado, ainda mais em meio aos livros.

Dentro deles um mundo paralelo: notas de

compra, senhas, recibos, bilhetes, prospectos,

restinhos de inseto, poemas manuscritos.

Nestes, alguns furores românticos movidos

a coração magoado & presença da

agonia & voar das ilusões. Restam ainda três

estantes, todas abarrotadas, com duas fileiras.

Aproveito para colocar alguma ordem: a

literatura, prosa ou poesia, na primeira; teorias,

filosofias e afins na segunda. Ainda faltam

o monte Everest das revistas e o batalhão

das caixas de papel. Numa, cartas de

amigos e desamores idos. Noutra, até provas

do primário. Imagine! A severa dona Iolanda,

se viva, talvez ficasse feliz se soubesse

disso. A hora é agora, já que não se sabe

quando aquilo que um dia chamamos de

normalidade voltará ao normal. O trocadilho

é infame, mas vale.

Ainda bem que a nova síndica pôs ordem

nessa joça e enquadrou a turma do

“escuto essa porra na altura que quiser”. Assim,

enquanto mergulho na papelada posso

ouvir, em paz, o “Réquiem in D minor”, do

velho Mozart. Não há música mais apropriada

para esses dias. Mas nem só de deprê vi-

51

ve meu coração tropical. Às vezes, boto na

agulha o lendário e esquecido trio baiano,

Os Tincoãs, cantando “Cordeiro de Nanã”

ou “Acará”. Nesta, o trecho falado cai como

uma uva: “os tempos mudaram, senhor, tudo

está confuso. Já não se entende o tempo.

(...) O mais puro dos homens ainda é pura

vaidade. Fala-se em peste e rumores de

guerra. O mundo tornou-se abafado. Dai-nos

a resignação do samba que perfuma o machado

que o corta”.

De vez em quando, dou uma sacada

em algumas sacadas e vejo, qual Macunaíma,

coisas de sarapantar, tais como fortões

e fortonas, agora confinados em seus cubículos.

Deve estar sendo barra sem ninguém

para contemplar seus volumes feitos à base

de bombas e silicones, a não ser meu olhar

anônimo, parceiro deste corpo que não é

nem adiposo nem musculoso, e se basta com

algumas pernadas semanais. Não é preciso

dizer que estou com saudade delas. É minha

forma predileta para criar textos, tirar (e botar)

caraminholas no quengo.

No quesito alimentação até que estou

indo bem, aceitando as regras do jogo, só

botando a cara lá fora quando é para sacar

uns trocados da pindaíba ou quando a geladeira

vira uma igreja vazia. Falar nisso, foi

difícil, mas a turma do dízimo também dançou

e vai ter que se contentar em enviá-lo

on-line aos seus abastados, rotundos e pastosos

pastores. Sobrou para todo mundo.

Vamos ver o que sairá de tudo isso. Quem

sabe, lembrando o bardo português, esse bicho

da terra tão pequeno toma jeito e percebe

que pode ser mais que uma pecinha de

reposição, um mero bípede, sem plumas,

acumulador de tranqueiras. Sem querer ser

otimista e já sendo.

Há muito tempo faço biscates sem precisar

que levante a bunda desta cadeira. Felizmente,

ainda há demanda para revisão,

copidescagem, diagramação etc. Contudo,

ver tanto neguinho e branquinho trabalhando

em casa é a maior revelação. Tomara

que, quando serenar, os tubarões das empre-


Chicos

sas levem isso em conta. Afinal, o trabalho

faz mal à saúde, como constataram os ingleses

em uma pesquisa. E aquele papo do

quem cedo madruga só beneficia o dono da

mão de obra.

A atmosfera desses dias nos induz a

esse comportamento: “Sempre permanece

no mesmo lugar sem nada mover, e não lhe

convém ir ora para lá, ora para cá.” Essa

reflexão parece ter sido escrita agora, mas é

do filósofo grego Xenófanes de Colofão,

quatrocentos e uns quebradinhos a.C., sobre

outro grego, o matemático Simplício. Olho

para a rua sem um pé de pessoa. Descubro

uma coloração intensa, dantes nunca vista,

na nesga de sol que toca no ipê roxo, o que

se apaixona uma vez por ano.

Tinha tudo para estar macambúzio, a

destilar a tinta da melancolia neste meu cafofo,

até porque ainda há muita resistência

e, de vez em quando, as sirenes da polícia

misturam-se com as das ambulâncias. As autoridades

ainda batem cabeças entre planilhas,

prescrições e proscrições. Os noticiários,

descontada a batalha pela audiência,

têm tido sua serventia. O clima é cada vez

mais próximo daquilo que a literatura, sempre

ela, já nos antecipou. Basta lembrar Camus

e sua dolorosa crônica sobre Oran. Entre

nós, os fatos não são ficção, mas têm tudo

para virar, um dia, matéria para outras

narrativas. Quem sabe, se estiver vivo, e não

perder a tramontana, poderei dar meu testemunho,

pelo viés da memória ou da fabulação,

sobre as alegrias e misérias desse mundo.

Aqui está um ínfimo esboço.

* Jeová Santana

Nasceu em Maruim, Sergipe, em 1961. É graduado em Letras pela Universidade

Federal de Sergipe, mestre em Teoria Literária pela Universidade Estadual de

Campinas, doutor em Educação: História, Política, Sociedade: Educação e Ciências

Sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicou Dentro

da casca (1993), A ossatura (2002), Inventário de ranhuras (2006) e Poemas passageiros

(2011))

52


Chicos

Um Conto aluado, meio Tonto, meio Atinado

*Maria do Céu Nogueira

Um dia, julgo que no mês de janeiro (e

digo julgo, porque não tenho a certeza, fio-me

apenas nos falares do povo da minha aldeia que

afirmam que “ luar de janeiro não tem parceiro”),

sete habitantes da Lua decidiram visitar a

Terra. Foi decisão difícil e demorada, pois, desde

aquele dia em que os terráqueos lhes invadiram

o planeta, começou a discussão entre eles.

Se uns eram adeptos de que deviam retribuir a

visita, muitos outros, talvez a maioria, achavam

que de modo nenhum. E explicavam porquê.

Tinham, os habitantes da Terra combinado esta

visita com alguns deles? Não, não tinham. Então,

o que eles fizeram não foi uma visita, mas

uma invasão. Logo, não havia nada a retribuir, a

não ser que...façamos como eles, isto é, uma

invasão – rematava o porta-voz desta opinião.

Os outros abanavam a cabeça recalcitrantes:

-Sois loucos ou quê? Eles são tantos e todos

tão esquisitos! Há brancos, amarelos, alguns

morenos e muitos negros, negros como o

carvão. E sempre discutindo, sempre armando

quezílias, muitas delas terminando em protestos,

manifestações porque sim e contra manifestações

porque não, marchas gritando e marchas

silenciosas, e, muitas vezes, tudo terminando

em guerras onde muitos deles perdem a vida.

Esta gente estranha, se nos vêem lá, dão cabo

de nós, podem ter a certeza.

- Não, se formos espertos – dizia um do

primeiro grupo. Aparecemos de noite, escondemo-nos,

disfarçamo-nos, espreitamos e ouvimos

53

tudo quanto dizem e fazem. Até descobriremos,

talvez, que motivos tiveram para nos visitar…

Que acham?

Do outro lado contra argumentavam com

mil razões que consideravam válidas. E assim

por diante… Dias, meses, anos de discussões!

Até que um dia, o grupo que se opunha à visita

à terra, desistiu, por inanição. Estavam todos

esgotados, com os nervos em frangalhos, com

depressões e outras doenças mentais.

Um deles, aquele a quem sobrava uma

réstia de lucidez, levantou-se e disse:

- Quem diz que da discussão nasce a luz,

quem é? Um louco, é o que vos digo. Da discussão

nasce apenas o cansaço, o esgotamento,

a confusão! Da discussão não nasce nada, a não

ser mais discussão. Daqui a pouco chegámos

onde os da terra já estão: ao insulto grosseiro,

ao uso de mentiras, de artimanhas, de fingimentos,

de afirmações falsas que pretendem fazer

passar por verdades incontestáveis, etc, etc, etc.

Paremos por aqui. Querem ir à Terra? Pois vão.

Não entendi ainda o vosso pretexto, o vosso

móbil, mas desisto de entender. Vão!

E depois desta fala, conta o conto meio

tonto que o falante caiu no chão da Lua, onde

já estavam caídos muito outros e ali ficou, em

profundo descanso durante muito tempo. Os

antagonistas ficaram contentes pelo fim, agradável

para eles, desta discussão, mas tristes pela

forma inusitada como terminou. E, claro, mais


Chicos

tempo passou porque eles eram boas e conscientes

almas, apesar de aluados e não poderiam

viajar sem que no seu planeta ficassem todos

bem.

E um dia partiram. Um dia do mês de janeiro,

como atrás se disse. Ou seria Fevereiro?

Acho que sim, acho que foi mesmo fevereiro.

Como deste Mundo Terrestre, que é o único

que temos, embora quase sempre nos esqueçamos

disso, os aluados não percebiam nada, vieram

ao calha e, assim mesmo, ao calha, foram

parar à China.

- Que horror! Mas o que se passa aqui?

Na rua, que espreitavam à socapa, viam

pessoas mascaradas e sempre apressadas, sem

falarem umas com as outras. Espreitaram as lojas,

os cafés, os restaurantes, as escolas. Tudo

vazio. Pensaram que as pessoas tinham enlouquecido

e talvez estivessem nos hospitais. Visitaram-nos.

Aí ficaram muito mais horrorizados.

Viram pessoas, muitas pessoas deitadas em camas

ou estendidas pelo chão, com ar moribundo,

gemendo e chorando e – muito maior o espanto

– imensos astronautas, pegando em agulhas,

tubos, sacos e mangueiras, parecendo que

cuidavam ou maltratavam toda aquela gente.

Era uma parafernália de movimentos que não

entendiam, mas dos quais não auguravam nada

de bom ou positivo.

Quando tiveram oportunidade de se reunir,

sem que fossem vistos e puderam conversar,

as suas opiniões eram unânimes: os terráqueos

preparavam uma nova invasão. Iriam, de

novo, ao seu planeta? As vestes eram idênticas,

portanto…

E ficaram muito aflitos. Não propriamente

pela possível nova visita, mas pelo resto que ali

viram. Tanta gente doente! Tantos mortos! Estariam

estes astronautas a fazer uma limpeza

étnica, matando toda a gente antes de partir? Se

assim fosse, a ideia deles seria ficar na Lua para

sempre, instalarem-se lá, tomarem conta de toda

a Lua. Nesse caso… eles? Como ficariam os

aluados? Como viveriam se os terráqueos, agora

tinham quase a certeza, se apoderassem do

seu planeta?

Um dos sete era o mais antigo e mais sábio

habitante da Lua. Conhecia todas as línguas,

mesmo as mais estranhas e antigas. Uma

das vezes em que viu um gabinete vazio e fechado,

decidiu investigar. Viu secretárias e mais

secretárias repletas de resmas de papelada e

concluiu que o segredo estava ali. Ali encontraria

ele a explicação para todas aquelas atitudes

que tanto os intrigaram. Conclusão encasquetada

na mente, surge agora uma dificuldade:

quanto tempo gastaria para ler tudo aquilo?

Sim, porque ele não poderia tirar conclusões

pela rama, isto é, precipitadamente. Teria que

ser meticuloso, atento e agir com precaução,

pois não poderia ser visto pelos terráqueos a

fazer tal investigação, até porque, enquanto

pensava tudo isto que atrás foi dito, ele teve

que esconder-se muitas vezes, pois vários terráqueos,

muitas vezes com vestes de astronautas,

visitavam o gabinete, mexiam na papelada, suspiravam

e ali ficavam algum tempo, a ler e meditar

e quanto mais liam mais suspiravam. Tudo

isto levou o nosso aluado a ter a certeza que era

ali, naquele gabinete carregado de papéis que

estava a resposta para todas as suas interrogações.

Esperto, prático e sábio como era, não

perdeu tempo com mais cogitações e deitou

mãos à obra. Aproveitando bem todos os momentos

em que ficava sozinho, depressa concluiu

que os terráqueos estavam a ser atacados por

um vírus terrível, vindo não sabiam de onde,

mas altamente contagioso e mortífero.

- Pronto - pensou lá consigo o nosso aluado

– está explicada a razão daquilo que mais

temíamos: os habitantes da terra, para fugir à

matança deste dito cujo vírus, preparam-se novamente

para nos importunar e, desta vez, com

54


Chicos

carácter definitivo. Vamos tê-los à perna para

sempre! E nós? Como ficamos nós, habituados

ao sossego lunar, com toda esta gente complicada

e barulhenta, sempre em quezílias uns

com os outros, discutindo por tudo e por nada?

Decidiu então sair do gabinete e procurar

os seus companheiros para partilhar com eles

todas estas novidades. Encontrou-os a dormir,

regaladamente, num qualquer espaço daquele

edifício. Depois de os acordar, perguntou-lhes o

que tinham feito e visto, enfim, o que tinham

apurado, já que ele trazia grandes e importantes

novidades. Ainda um pouco ensonados, os seis

companheiros, como eram aluados menores e

tinham ficado sem directivas do chefe, olharamno

pasmados e confessaram que...apenas tinham

dormido.

Estariam tramados estes aluados se o seu

chefe fosse terráqueo. Dali nasceriam insultos,

ralhos de toda a espécie e só não haveria demissões

porque...demiti-los do quê, se eles não tinham

nenhum cargo? Eram aluados completamente

rasos, sem qualquer graduação e com

poucos conhecimentos. Vieram só fazer companhia

e número e logo o sete, número com enorme

significado para todos os terráqueos. Assim,

este chefe que veio da Lua, não lhes ralhou,

antes lhes contou tudo que tinha descoberto.

Admiraram-se, tanto quanto a sua mente lhes

tinha permitido e ficaram à espera das decisões

a tomar.

- Pois bem. Agora que sabemos que os

habitantes da terra estão contaminados com perigoso

vírus e se preparam para nos invadir e,

talvez, apoderarem-se do nosso planeta, não

podemos ficar calados e aceitar esta decisão.

Que acham vocês?

Todos acenaram que sim, o que o satisfez,

porque era dado à boa paz, embora já tivesse

tudo decidido sem precisar da aprovação

deles. Contou-lhes então o seguinte:

- Vamos ficar por cá mais algum tempo. Vamos

percorrer outros espaços do planeta Terra. Vamos

assegurar-nos do que, efectivamente, se

passa. Depois, de acordo com tudo que averiguarmos,

decidiremos o que fazer.

Um dos aluados do grupo dos seis ignorantes,

interrompeu para indagar:

- E nós?

- Vós continuai atentos e contar-me-eis

tudo quanto averiguardes.

Cinco dedinhos interrogativos se ergueram

e o dono de um deles balbuciou:

- Atentos a quê? Até agora só dormimos…

Cheio de paciência, o chefe aluado explicou:

- Pois, porque já estais repousados, podeis

e deveis, agora, vigiar…

- O quê? - perguntaram agora, em simultâneo,

os donos de seis dedos.

Se fosse terráqueo, o sétimo aluado teria

explodido, como o leitor, que os conhece bem,

o sabe. Mas este, com muita calma, explicou:

- Vigiai, atentamente, o comportamento

dos terráqueos. O que fazem, o que dizem, enfim,

como se comportam. E isto em todos os

espaços que visitarmos. Vamos.

E dali partiram para outras partes do planeta

Terra. E por lá e por cá andaram largo

tempo. Sempre juntos, sempre atentos às orientações

do mais sábio, lá foram tomando as suas

notas, depois de apurada atenção.

Tempos, largos tempos passaram, dia

após dia, noite após noite.

Chegou, finalmente, a altura em que deveriam

reunir para a esperada decisão. Tinham

percorrido todos os cantos da Terra e todos os

dias tomavam posições e assentavam em idéias

55


Chicos

que no outro dia tinham que alterar. Gente estranha,

estes terráqueos! E, como é óbvio, não

tinham chegado a nenhuma conclusão sobre o

assalto ou não ao seu planeta. Até o sétimo aluado,

o tal mais inteligente e, por isso mesmo,

nomeado chefe dos outros, mudava de opinião

quase todos os dias. E isso porquê? Ora porquê!

Então não se está mesmo a ver? Ora encontravam

povos comandados por broncos e analfabetos

(enquanto na lua mandavam apenas os que

tinham categoria para mandar) que, apesar das

pessoas morrerem aos milhares, não aceitavam

que o vírus era mortal e alguns até diziam que

não passava de uma gripezinha que em instantes

passaria, ora por outros menos estúpidos,

mas orientados apenas para o capital, para os

postos de trabalho e rendimentos que prejudicavam

a economia e não se davam conta dos milhares

que iam morrendo. E assim o planeta

Terra ia ficando sem gente...

56

Mas esta vigilância dos aluados tinha que

acabar, não poderia tornar-se indefinida e, um

dia, esse dia, quer dizer, essa noite, pois foi de

noite que decidiram encontrar-se, chegou. O

chefe começou a averiguar as opiniões de cada

um. E, desnorteado, começou a achar que os

seus companheiros estavam a ser contagiados

por opiniões completamente díspares. Um até

aprendeu a mentir, coisa que na lua era impensável,

mas o pobre coitado também não teve

muita culpa, pois tinha sido mandado para uma

zona do Globo terrestre onde o seu chefe dizia,

todos os dias, dezenas de mentiras. Hoje uma

coisa era branca e dali a meia hora era verde,

azul ou preta e, no dia seguinte, a mesmíssima

coisa até deixava de ter cor ou de existir. Outro

foi parar a um local estranho, pois ninguém sabia

onde estava, ou melhor, estavam todos no

mesmo local, mas uns queriam lá permanecer e

outros queriam ir embora, não conseguiram os

aluados saber para onde e porquê. Enfim, encontraram

todos coisas estranhíssimas. Aqui fechavam

as portas aos forasteiros de determinada

zona, mas abriam-nas a outros de outras, ali

encontravam as ruas cheias de gente, noutro

ponto tudo vazio, como se todos os terráqueos

já tivessem sido abatidos pelo tal vírus.

O tempo ia passando, o planeta Terra estava

a ser percorrido meticulosamente pelos sete

aluados que, diga-se em abono da verdade, não

por culpa deles, não atavam nem desatavam nas

suas opiniões. Num ponto, o pensamento dos

sete era unânime: os terráqueos eram gente estranhíssima,

de atitudes contraditórias, o que

hoje era sim, no dia seguinte era não, viviam

em constante desarmonia, porque, como cada

um pensava apenas em si próprio, cada um

considerava-se com direitos que prejudicavam o

seu semelhante que, por sua vez, barafustava,

barafustava...até conseguir inverter a situação a

seu favor. Porém, quando o conseguia, tinha

comportamento semelhante aos outros que tanto

criticou e, deste modo, voltavam as discussões,

as represálias, os insultos… Isso mesmo!

Insultos! Nunca a tal tinham assistido estes pobres

habitantes da Lua! E onde a sua surpresa

atingiu o auge foi na visita a um ponto do planeta,

terra linda e cheia de sol e mar, mas onde

os seus habitantes estavam todos completamente

loucos, de uma loucura estranha e incompreensível,

porque, quem os olhasse, acharia que

pareciam todos irmãos, falando a mesma língua,

usando roupas semelhantes, vivendo em

cidades ou espaços campesinos em casas feitas

com materiais idênticos… Que se passaria ali,

para que uns e outros, apesar de irmãos, se tratarem

tão mal entre si?

O chefe reuniu todos numa noite e disselhes:

-Eu sei que vocês estão cansados, traumatizados

e não param de se interrogar sobre comportamentos

tão anómalos desta gente. Algo se

passa aqui e não iremos embora sem descobrirmos.

Mãos à obra e ouvidos à escuta. Reunire-


Chicos

mos novamente daqui a sete noites. Atentos!

Temos que descobrir!

Separaram-se os sete aluados e caminharam

pelas praças públicas, pelos centros comerciais

e pequenas salas de comes e bebes, chegaram

a entrar em casas particulares onde, sem

serem vistos, escutavam conversas (quase sempre

ralhos e discussões), mas demorou até que

fossem percebendo alguma coisinha. Ali, onde

também o vírus era mortífero, onde, particularmente

os idosos iam desaparecendo vitimados

por ele, poucos eram aqueles para quem o vírus

era importante e de temer. Um deles, observando

bem e logo registando no manuscrito para

que não esquecesse, achou que eles se temiam

uns aos outros. Faltava o porquê. Era preciso

continuar a investigar…

O chefe deles, com mais conhecimentos e,

particularmente, mais atento, não só teve a certeza

de que se temiam uns aos outros, mas que

eram suficientemente espertos para atirar o insulto,

a invenção, a mentira e esconderem-se,

depois, dentro de uma placa, por trás da qual e

escondidos por ela, falavam, sem ouvirem resposta

de ninguém.

-Manhosos! Hipócritas! Aldrabões de

meia tigela (este último epíteto, desconhecido

na Lua, tinham-no aprendido na Terra, proferido

por um deles). Isso mesmo! E também covardes,

porque se o que diziam fosse verdade,

enfrentavam o outro, falavam cara-a-cara sem

precisarem de se esconder por trás de coisa nenhuma.

Pois meus caros leitores, foi precisamente

aqui, nesta terra linda à beira-mar plantada que

os aluados reuniram pela última vez. Nesta reunião

veio a lume toda a investigação que cada

um tinha feito, bem como as conclusões daí extraídas.

Ora vejámo-las então e atentemos nelas.

Pasmemos, pois os aluados também pasmaram

e as conclusões a que chegaram levaram-nos de

volta à Lua, o mais depressa possível, pois estavam

esgotados e necessitados do seu pequeno e

sossegado planeta.

Primeira conclusão: aquele que mais gritava

e insultava, queria que morressem muitos

mais porque, desse modo, imporia as suas opiniões

aos que ficassem e auto se guindaria a

chefe supremo deles. Não o fazia propriamente

pelo dinheiro, já que esse não lhe faltava, vindo

de outros pontos do planeta, de organizações

secretas e mafiosas. Fazia-o apenas pelo poder

e importância que o cargo de chefe lhe traria. E

também para se vingar… Sim, ele, depois de

eleito, vingar-se-ia de todos os que lhe fizessem

frente…

Segunda conclusão: Todos, sem excepção,

depois de chegarem a chefes, alterariam as leis

existentes e fabricariam outras de acordo com

os seus desejos.

Terceira conclusão: Um deles, que raramente

aparecia, talvez por ter vergonha de pertencer

àquele clã, pareceu, aos aluados, o único

com juízo e educação. Nunca insultou ninguém,

embora tivesse ouvido, mais da parte de uma

mulher, acusações mentirosas.

Quarta conclusão (esta tirada por um dos

mais desfavorecidos, mas que quis também dar

a sua achega): Os terráqueos estavam a eleger

um chefe!

Quinta conclusão: Tratando-se de uma

eleição, pelo menos assim o achou o dono desta

opinião, devia tratar-se de coisa importante, dada

a quantidade de gente que pretendia ganhar,

comprometendo a sua consciência, mentindo,

insultando…

Sexta conclusão: Este local devia ser importante

e grande e rico, já que tantos havia

para nele mandar, sem terem medo ao tal vírus

que continuava a ceifar vidas.

57


Chicos

Sétima conclusão (a do chefe daquele pequeno

grupo de aluados): Meus amigos, agradeçamos

ao Grande Ser que nos criou e protege

todas as criaturas, por vivermos na Lua, nosso

pequeno, mas saudável espaço. Não, os terráqueos

não vão invadir-nos nem tão pouco pretendem

desalojar-nos do nosso lugar e ir viver

para lá. Foi aqui na Terra que construíram o seu

espaço que podemos chamar à medida dos seus

interesses mesquinhos. É aqui que gostam de

viver, cada um à sua maneira sem quererem saber

como estão os outros, digo mesmo o seu

vizinho do lado. Quando foram à Lua, fiquei

com boa impressão deles. Foi preciso vê-los no

seu espaço, conhecer as suas atitudes e ambições,

as suas manhas e mentiras (mentiras, sim!

Os terráqueos mentem, vendem a alma ao diabo

por dinheiro e poder). Deixêmo-los. Está na

hora de partirmos. Limpem bem os pés antes de

nos pormos a caminho. Não queremos levar para

o nosso espaço nenhum dos tristes exemplos

a que aqui assistimos.

Nota: Por não concordar com acordos que não

são senão desacordos, escrevo como aprendi.

* Maria do Céu Nogueira

Nasceu em São Martinho de Escariz, Vila Verde, Portugal. Licenciada na Faculdade

de Filosofia de Braga. Como escritora, colabora em várias publicações

com crítica literária, contos, crónicas e poemas. Publicou, entre outros, Histórias

Doces de Missangas (1992), Duas mãos. Um Conto. Dois olhos (1998), Um

Ponto, Artifícios de Fogo Preso (2001), Contos na Diferença (2003), Histórias,

Memórias e Contos Tontos (2009), A ilha da promissão (2015) e Um conto policial

(2018).

58


Chicos

Anna Maria Martins: Mulher admirável

*Raquel Naveira

Na estante de livros, um porta-retrato especial:

a escritora Anna Maria Martins e eu, sorridentes,

numa noite de festa, na Academia

Paulista de Letras.

Gostava de observar Anna Maria: a discrição

elegante; a firmeza nos atos e palavras contidas,

mas certeiras; a dedicação à Literatura, fosse

naquela Casa de Letras, nos lançamentos de

livros (acompanhava de perto a cena literária,

descobrindo autores novos de todos os quadrantes

do Brasil, que ela incentivava); o seu papel

fundamental em nosso Clube Leitura, onde ela

abria e fechava os trabalhos, pontuando cada

fala com solenidade e, ao mesmo tempo, com o

jeito simples de quem conversa numa sala de

visitas. Já passando dos inacreditáveis noventa

anos, não aparentava essa idade, tal sua energia

e brilho nos olhos. Uma mulher para se admirar,

para se ter como modelo e inspiração de

vida. Depois de tantos anos de convivência e

trabalho conjunto, pois, participamos de projetos

como as palestras nas escolas de São Paulo

e o ciclo de Memória da Literatura Paulista na

Academia, ocasião em que ela me convidou para

discorrer sobre as romancistas Maria de Lourdes

Teixeira (1907-1989) e Stella Carr (1932-

2008). Quando lhe disse um dia que voltaria à

minha terra natal, Mato Grosso do Sul, ela me

olhou fixamente e disse: “_ Só desejo que você

seja feliz, aonde estiver.” Continuamos a nos

telefonar, trocar cartas e ainda nos encontramos

virtualmente, em reuniões pelo recurso zoom,

do nosso Clube. Ela assessorada por sua neta

Clara. Notei sua voz entrecortada e os cabelos

brancos. Seus cabelos que eram sempre tratados

e impecáveis de dama paulistana.

Na mesma estante, está o seu livro de narrativas

curtas, Katmandu, reeditado na Coleção

Melhores Contos, da Global, de 2011, um clássico

de nossa literatura. O crítico Nilo Scalzo

comentou que “um dos papéis da arte é ir além

da camada aparente das coisas e buscar exprimir

a verdade que se esconde atrás dela” e que

“Anna Maria é contista de nosso tempo”, cheia

de um “sentimento de inquietação”, em contos

que causam espanto e estranheza. Anna expõe

as limitações do ser humano com senso de humor,

ironia, sem nunca esbarrar na grosseria ou

no panfletarismo. Os temas são fortes: em “A

Herança”, o mundo sombrio e absurdo do carrasco

com mania de perseguição, preso ao torturado

para sempre, simbolizado por uma massa

sangrenta surreal; em “Contra-Ataque”, a

necessidade de um manual de guerrilha urbana,

acuados que estamos pela violência; em “Fundo

da Gaveta”, uma crítica afiada ao mundo do

livro, das pressões no relacionamento com o

editor; o martírio da personagem Jó na fila do

correio, no supermercado, suas agruras na cidade

que o esmaga, que o leva à exaustão; “O

Piloto” sobre o extermínio de duzentas mil pessoas

pela bomba atômica, o drama de consciência

do piloto que apertou o fatídico botão. “;

“Velhice” sobre o cansaço, a prostração, o malestar,

a viuvez; em “Jantar em Fazenda”, a escritora

deslocada numa fazenda, entre gente

fútil. Cenários que refletem sua experiência nas

fazendas e casarões coloniais de Santos, ela que

era descendente de famílias tradicionais como a

dos Coelho (do seu pai), dos Andrada (do patriarca

da Independência, José Bonifácio de Andrada

e Silva) e Amaral (da maior pintora brasileira

do século XX, Tarsila do Amaral). Anna

Maria declara que sua preocupação como contista,

seu compromisso, era com o ser humano.

O homem, suas angústias, sua capacidade, suas

limitações. O homem prensado por forças sociais,

econômicas, morais e psicológicas. O homem

e seu estar no mundo.”

Katmandu é dedicado à memória de seu marido

Luís Martins (1907-1981), o jornalista, cronista

e crítico de arte que publicou durante mais

de 30 anos no jornal “O Estado de São Paulo”.

Escreveu sobre a recepção da arte moderna em

São Paulo. Foi defensor pioneiro da criação do

Museu de Arte Moderna, o MAM, de São Paulo.

59


Chicos

Luís Martins, antes de casar-se com Anna

Maria (1924-2020), viveu uma longa e tumultuada

relação amorosa com Tarsila Amaral (1886-

1973). Ele tinha 26 anos quando chegou do Rio

de Janeiro a São Paulo, logo depois de seu livro

Lapa (1936), sobre aquele famoso bairro boêmio,

ter sido apreendido pela polícia de Getúlio

Vargas. Tarsila, exótica, deslumbrante, inteligente

e culta, estava com 47 anos. Havia se separado

de Oswald de Andrade, com o qual levara

uma vida frenética, de viagens e eventos artísticos,

até a traição dele com Patrícia Galvão, a

Pagu. Luís e Tarsila ficaram juntos por quase

vinte anos. Foi na fazenda Santa Teresa do Alto,

administrada por Tarsila, onde ela pintava seus

quadros, que Luís conheceu Anna Maria, filha

de uma prima de Tarsila. Anna Maria assinava

na época Anna Maria Coelho de Freitas, Coelho

do pai e Freitas do marido, morto em 1944. Anna

estava com 27 anos, viúva, com um filho de

sete anos. Luís e Anna Maria se apaixonam o

que provocou celeuma no clã Amaral. Um escândalo

com tons de tragédia. Verdadeiro rompimento

na família. Luís, consumido pela culpa,

não sabia como terminar com Tarsila e cogitou

em suicídio. Enfim, Anna Maria e Luís venceram

os obstáculos e preconceitos e se casaram. Ela

passa a assinar simplesmente Anna Maria Martins.

Uma história digna de novela, que foi contada

na minissérie da TV Globo, “Um Só Coração”

(2004), escrita por Maria Adelaide Amaral

e Alcides Nogueira. A minissérie, rica em reconstituições,

foi uma homenagem aos 450 anos

de São Paulo. A protagonista era Yolanda Penteado,

princesinha do café, bela e determinada.

A minissérie reuniu personagens reais e fictícios,

entre eles, Alberto Dummont, o Pai da Aviação;

Assis Chateaubriand e seu império de comunicação;

os poetas Mário de Andrade, Oswald de

Andrade, Menotti del Picchia; as pintoras Anita

Malfatti e Tarsila do Amaral. Numa das tramas

paralelas, aparece o romance entre Luís Martins

e Anna Maria.

Ana Luísa Martins (1953), redatora, editora e

tradutora, filha do casal, escreveu o livro Aí vai

meu coração. Conta como nos anos 50, ela,

uma menina, remexendo as gavetas do escritório,

descobriu um segredo de família: que seu

pai, antes de casar com sua mãe, vivera com

outra mulher e que essa mulher era a parente

Tarsila do Amaral. Muitos anos depois, Ana

Luísa convenceu a mãe a permitir que ela publicasse

um livro de cartas de Tarsila e Anna Maria

a Luís. Preencheu lacunas com depoimentos

pessoais, com crônicas e poemas que Luís Martins

escrevera nessa época. Mais tarde, Ana

Luísa, juntamente com José Armando Pereira da

Silva, organizou também o livro Luís Martins:

um cronista de Arte em São Paulo nos anos 40,

reunindo o melhor da produção de seu pai.

Aí vai meu coração é um livro corajoso, com

páginas coloridas por palavras, sentimentos e

perfumes de um tempo de sofrida paixão. A escritora

Lygia Fagundes Telles (1923) parabenizou

Anna Maria e Ana Luísa pela decisão difícil

de publicar essas cartas íntimas, verdadeiro tesouro

para futuras gerações.

Numa das paredes do apartamento da rua Oscar

Freire, onde Anna Maria viveu até seus últimos

dias, um perfil exato de Luís Martins traçado por

Tarsila, é outra relíquia guardada daquele tempo

de arte e amores.

Da gaveta de minha escrivaninha, retiro um envelope

com o selo da Academia Paulista de Letras,

a vetusta sede do Largo do Arouche. É de

2018. Anna me respondeu, com sua letra firme,

após a leitura de livros que lhe enviei: “Leio

com prazer intelectual e emotivo suas palavras,

sempre bem escolhidas e estruturadas com pertinência.

Nós, seus amigos paulistas, sentimos sua

falta em nossos encontros culturais ou não. Saudade

e um abraço afetuoso, de Anna Maria.”

Sim, saudade e gratidão eternas, Anna Maria.

* Raquel Naveira

Nasceu em Campo Grande MS, formada em Direito e Letras, doutoranda em

Literatura Portuguesa na USP, é escritora e publicou, entre outros, Abadia

(1996), Casa de tecla (1999) indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia

60


Fotografia

Chicos

*Enzo Menta

No início do século XIX, surgiram as primeiras

imagens reconhecidas como fotografia.

Até então, as imagens de paisagens, pessoas e

objetos eram obras de pintores, que quanto mais

se aproximassem do real, melhor seriam. Com

seu surgimento, começaram as especulações sobre

o fim da pintura, inspirando movimentos onde

as imagens passaram a ser modificadas, distorcidas,

pois o papel de ser fiel à realidade seria

das câmeras.

Como todo novo invento, era coisa cara e

para poucos. A figura do fotógrafo ou retratista

era comum em grandes eventos e seus serviços

eram um luxo. Na minha casa tinha uma caixa

de sapatos, guardada em um armário na copa,

cheia de fotografias em preto e branco e algumas

coloridas. A maioria de gente que nunca vi.

Avós, tios, primos, amigos da família e algumas

dos pais e de nossa infância. Fascinavam-me as

feitas pelo Comello. Seu estúdio era na Rua Marechal

Deodoro, onde nasci. As fotografias eram

de uma perfeição impressionante e levavam a

sua assinatura. Às vezes, íamos a casa onde eles

moravam e realizavam seu trabalho. Eu observava

tudo, impressionado.

Posteriormente, me lembro do Sr. Rúbens

Furforo, responsável pelo registro de alguns aniversários

e eventos em nossa casa. A molecada

em volta, pentelhando, pedindo fotografias, coisas

que os pais não autorizariam e nem pagariam,

pois era artigo caro. Ele sempre simpático,

disparava o flash em nossa direção e assim nos

enganava, fingindo que havia feito a foto.

Segundo Carrara Neto, minha fonte fidedigna,

alguns italianos registraram imagens históricas

de Cataguases. Landoes, em 1910, foi um

deles e depois se tornou correspondente de

guerra. Seu ateliê era onde se situa a loja Nacional,

ao lado do Banco do Brasil. As fotografias

de 1890 a 1920 são dele. Depois, veio Yannini,

mestre do Rúbens Furforo. Suas fotos foram doadas

para o arquivo público municipal há quatro

61


Chicos

anos. O acervo de Pedro Dutra também se encontra

no arquivo. O de Landoes está com a família

do Galba. E o acervo de Pedro Comello foi

perdido na demolição da casa.

Na década de 70, começou a popularização da

fotografia. Câmeras portáteis, com foco fixo e

preços acessíveis começaram a fazer parte do

cotidiano da classe média. As fotos com distância

padrão (nem muito longe, nem muito perto),

com luz solar em ambientes abertos conseguiam

ficar razoáveis. As outras eram um desastre. Hoje,

vejo fotos dessa época postadas nas redes

sociais, com muito esforço conseguimos reconhecer

alguém. As Polaroids eram mágicas e

coisa para poucos. O filme era caríssimo. Mas

era impressionante ver, logo após o disparo, a

fotografia saindo de dentro da câmera, como um

parto assistido e esperado por todos.

Há quem diga que com a popularização, a

arte de fotografar perdeu o seu glamour. No início,

surgiram as câmeras portáteis de foco fixo,

depois, as de foco automático. Em seguida, apareceram

as câmeras digitais, onde a longa espera

pela revelação e, muitas vezes, a decepção foram

suprimidas. Hoje, há os smartphones, com

câmeras bastante sofisticadas dependendo do

seu preço. Há até um jargão que diz que com as

câmeras de filme, fazíamos doze fotografias e se

salvavam três. Com um filme de vinte e quatro

ou trinta e seis, salvavam de três a quatro. E hoje

com as câmeras nos celulares, fazemos mil

fotografias e se salvam de três a quatro do mesmo

jeito.

Essa fugacidade vem desde o advento do

filme colorido. Mesmo uma excelente fotografia,

após vinte anos as cores começavam a desbotar.

A fotografia em preto e branco, impressa em um

bom papel era eterna. Lembro-me de meu pai

falando de sua negociação com seu fotógrafo de

casamento. Reclamou do preço, para seu orçamento

curto. O fotógrafo lhe respondeu: tudo do

seu casamento passará. O momento, o vestido

da noiva, seu terno, as bebidas e comidas da festa.

Até mesmo os convidados. A única coisa que

permanecerá do seu casamento serão suas fotografias.

* Enzo Menta

Nasceu em Cataguases MG, pós-graduado em estudos literários - UFJF,

odontólogo, músico, compositor, contista e cronista. Mantem uma página

no Facebook Crônicas & Agudas

62


Chicos

No Albamar, outrora

*Danilo Gomes

“A maior fascinação das ilhas sedutoras é

serem desabitadas. Lá só moram as gaivotas, os

trinta-réis, as aves limpas do mar. E quem ali

aportar respira com a liberdade aliviada de um

Robinson, prova a bem-aventurança da solidão.

(…) Céu azul, brisa mansa, o mar está chamando.”

(Vivaldo Coaracy, na crônica “Jurubahybas”.)

Numa de minhas inúmeras viagens à cidade

de São Sebastião do Rio de Janeiro fui duas

ou três vezes almoçar no velho restaurante Albamar,

bastante conhecido e até famoso. Mas

isso foi há muito tempo, quando eu fazia pesquisas

para meus livros “Uma rua chamada Ouvidor”

(1980) e “Antigos cafés do Rio de Janeiro”

( 1989).

Situado na Praça Marechal Âncora, 184,

no Centro histórico, próximo à Praça XV, o Albamar

parece uma larga torre, com sua cúpula

abobadada. O restaurante propriamente dito é

quase centenário, pois funciona desde 1933. Na

verdade, é a última construção que sobrou do

antigo Mercado Municipal do Rio de Janeiro.

A torre em que está instalado o Albamar é

uma das quatro que guardavam o imponente

Mercado. Com a central, mais alta, eram cinco

torres. Mais de 20 mil metros quadrados davam

guarida a 16 ruas internas e centenas de lojas,

sob uma estrutura de ferro importada da Europa

e demolida na década de 1950. A torre do Albamar

escapou à fúria da demolição ( para dar

lugar ao Viaduto da Perimetral). E só escapou

graças à influência política do proprietário e

fundador do restaurante, o poderoso empresário

Rodolfo Souza Dantas. É o tal negócio: quem

tem padrinho não morre pagão; nem paga o pato…

Pois bem, pois muito que bem. Devo

acrescentar que o salão do restaurante ganhou

uma repaginada nos últimos anos. No “meu

tempo” o restaurante era um tanto rústico, posto

que distinto. Estava atravessando uma temporada

de baixa. Mas o torreão continuava firme,

como na época áurea, em que alguns fregueses

da casa eram Getúlio Vargas, Carmen Miranda,

Carlos Lacerda, Mário Lago, Juscelino Kubitschek,

o poeta e memorialista Augusto Frederico

Schmidt, o cronista e compositor Antônio Maria,

o poeta Vinicius de Moraes, o professor e escritor

Arnaldo Niskier, o maestro soberano Tom

Jobim, o romancista José Lins do Rego e o escritor

Rui Lima do Nascimento ( amigos e ambos

ligados à cúpula dirigente do Flamengo; Rui,

primo de Jorge Amado, mora há anos em Brasília,

no Lago Norte).

Naqueles áureos tempos, o ambiente do

Albamar era um tanto sofisticado e, ao mesmo

tempo, informal, como o de alguns restaurantes

e grutas de peixes e frutos do mar do Arco do

Teles, perto dali.

Desde 2010 o Albamar é comandado pelo

chef Luiz Incao, que, com sócios e muita dificuldade,

reergueu a casa, dando-lhe condições

de maior conforto, sem perda do antigo charme.

Ele trabalhou por 18 anos na cozinha do icônico

63


Chicos

hotel Copacabana Palace. Por certo fez ali seu

“Cordon Bleu”, seu doutorado em culinária de

primeira linha.

Outra figura ilustre da casa é o garçom José

Sousa Nóvoa, conhecido por Pepe. Ele ali

trabalha há mais de meio século. Galego, com

um resquício de sotaque espanhol, Pepe tornouse

um carioca de coração e é fervoroso torcedor

do Fluminense. Ele anota os pedidos dos fregueses

com uma caneta tricolor ( ele exclama, risonho:

“Veja que linda!”).

O Albamar é conhecido pelos pratos à base

de peixes e por um menu de receitas antigas,

como a rã à provençal e o haddock ao leite de

coco, bem como o Arroz Maru ( arroz, brócolis,

lula picada, polvo picado, cherne, camarões, mexilhões,

queijo ralado, alho, cebola, tomate,

azeite). Esse Arroz Maru é uma ancestral receita

japonesa de muito sucesso.

No “meu tempo” (como dizem os velhotes)

, quase 50 anos atrás, o Albamar era mais

simples e frugal, posto que elegante, distinto,

como eu disse. Eu gostava de pedir uma mariscada,

como aquelas dos restaurantes e grutas

lusitanos do Arco do Teles, do Largo do Machado

ou da Rua da Conceição.

Em 1967 a Editora do Autor publicou o

livro “Guanabara”, na sua série “Brasil, Terra &

Alma”. Os textos de vários autores foram selecionados

por Marques Rebêlo, da Academia Brasileira

de Letras. No livro estão o Rio, sua História

e suas histórias. No Apêndice, encontramos

“Seis roteiros turísticos”. Há indicações preciosas,

mas não se menciona explicitamente o nome

de nenhum estabelecimento comercial, para

evitar maledicências e disse-que-disse.

Assim, na pág. 206 vamos encontrar

o seguinte:

“Almoçar nos restaurantes portugueses da

Rua da Conceição ou nos restaurantes árabes

das ruas da Alfândega e Senhor dos Passos.

Após o almoço, encaminhar-se para o Largo da

Carioca e visitar a Igreja e o Convento de Santo

Antônio, a Igreja de São Francisco da Penitência

e, perto, na Avenida Rio Branco, o Museu Nacional

de Belas Artes.”

E, na pág. 208, o ponto que aqui nos interessa:

“Almoçar nas proximidades do Museu da

Imagem e do Som, onde há um restaurante especializado

em peixes e frutos do mar e que

funciona em edificação remanescente do antigo

Mercado Municipal, à beira do cais. Depois do

almoço, visitar o Museu Histórico Nacional.”

Qualquer Sherlock Holmes de botequim

desvenda esse “mistério da beira do cais”: o

“restaurante especializado” não é outro senão o

célebre Albamar. Charada fácil, para iniciantes

e novatos…

Para encerrar esta breve viagem turísticogastronômica,

um trecho que colho na pág. 78

do livro “Guia de Roteiros do Rio Antigo”, de

Berenice Seara ( assim mesmo: Seara), de O

Globo, 2004, 2ª ed., 208 págs.:

“ Depois da caminhada, uma pausa para

descanso no restaurante Albamar, no centro da

Praça Marechal Âncora. O Albamar é o único

remanescente do antigo Mercado da Praça

Quinze,construído em 1908 em estrutura metálica

fabricada na Inglaterra e na Bélgica, com 22,5

mil metros quadrados e 24 metros de altura,

que foi demolido para a construção do Elevado

da Perimetral. O restaurante, que ocupava um

dos cinco torreões do mercado desde 1933, foi

o único que sobreviveu ao desmonte. De lá tem

-se uma admirável vista da Baía de Guanabara.”

De fato, uma linda, esplendorosa vista.

Enquanto almoçava, eu podia contemplar a beleza

do mar, com as históricas e heróicas barcas

da Cantareira indo para Niterói ou para a Ilha de

64


Chicos

Paquetá ou de lá regressando, lentamente, como

“velhas tartarugas”, no dizer brincalhão de Vivaldo

Coaracy. As barcas pertencem à

C.C.V.F., ou seja, Companhia Cantareira de

Viação Fluminense. Freguês constante daquelas

barcas era o cronista e historiador carioca Vivaldo

Coaracy (1882- 1967 ) , que, desde

1945, morava em Paquetá, seu refúgio e paraíso.

Lá, ele era quase vizinho e muito amigo de

Rachel de Queiroz e seu segundo marido, o

médico Dr. Oyama Macedo. O casal então morava

na Ilha do Governador. Em Paquetá morreu

Vivaldo Coaracy, que foi pai de Dagmar e Ada

Maria. É ele um de meus cronistas e memorialistas

preferidos e hoje repousa no limbo da

memória nacional, lamentavelmente. Está tão

no ostracismo que uma pesquisa no Google nos

fornece alguns dados sobre ele, mas em lugar

de seu retrato está o retrato de…Dostoiévski.

Poderiam divulgar ao menos o magnífico retrato

dele em bico-de-pena, feito pelo talentoso

Luís Jardim e que está no pórtico de alguns de

seus livros.

Voltemos ao restaurante Albamar, que

hoje mudou de nome, mantendo a alta qualidade

de seu cardápio. Agora ele se denomina Âncoramar.

Volto ao passado. Regresso ao “meu tempo”

de Rio de Janeiro.

Uma brisa marinha suave e boa entrava

pelas amplas janelas do Albamar, com vista para

a maravilhosa Baía de Guanabara…

* Danilo Gomes

Nasceu em Mariana MG, mora em Brasília DF. É jornalista e escritor. Autor,

dentre outros, de Uma Rua Chamada Ouvidor; Água do Catete; Antigos Cafés

do Rio de Janeiro e Em Torno de Rubem Braga.

65


Chicos

Os 125 anos do cinema - Dos irmãos Lumière

aos dias de hoje.

*Emerson Teixeira Cardoso

Quando pisei pela primeira vez numa sala

de cinema (Cataguases tinha duas) aos dez anos

de idade não sabia ainda que a primeira exibição

pública de imagens em movimento tinha acontecido

há 57 anos passados por obra e graça de

dois irmãos, os franceses, Louis e Auguste e que

tinham a duração de sessenta incríveis segundos

de projeção.

Talvez até mais que a invenção do aeroplano

que tantas disputas pelo título provocou, o

advento do cinematografo, como foi chamado

na ocasião, provocou um impacto que por si só,

justificaria as grandes comemorações que estão

acontecendo em todo o mundo pelos seus 123

anos, completados no último 28 de dezembro.

Mas, mesmo bem antes desta aventura aos 10

anos, em conversas apanhadas ao acaso entre

pessoas mais velhas e mais esclarecidas do que

poderia ser um menino naquele início dos anos

60 quando o rádio representava sozinho e regiamente

um sistema de comunicações (jornais e

livros não eram tão acessíveis à maioria da população)

eu já sabia da existência de uma engenhoca

ou qualquer coisa parecida que era chamada

de cinematógrafo.

A impressão mais forte dessa invenção fabulosa

ficou por conta de uma inusitada cena de

uma locomotiva avançando célere para cima de

uma desavisada e apavorada plateia. Teria certamente

o mesmo efeito em mim, não fora, no

meu caso, o filme exibido uma gostosa comédia

do então mais popular comediante brasileiro,

Amácio Mazzaropi, "Tristeza do Jeca" que diferente

da cena emblemática da locomotiva ou do

tumulto de operários trabalhando numa mina de

carvão, mostrava o nosso brasileiríssimo herói

caipira levando lenta e calmamente o seu humilde

carro de boi. Saí dali naquele dia certo de

que havia vivido uma experiência que iria guardar

por toda vida.

José Antonio Pereira, meu companheiro

aqui da "Chicos" foi quem, numa ótima crônica

do seu "Fantasias de Meia Pataca”, melhor definiu

a forte influência que o cinema exerceu em

nossa geração. "Somos de uma geração que viveu

a era da metáfora dentro dos anos cinzentos.

Cinema era nosso cordão umbilical com o

mundo. ... Somos todos cinematográficos. ”

"... Terminada a sessão sentávamos nos bancos

da praça numa coletiva ruminação do filme que

66


Chicos

acabara de ser visto." ..."Uma lembrança de um

detalhe, outro da trilha sonora, adiante surgia

uma frase, seguido de um diálogo inteiro. Depois

de algum tempo, o filme em questão, de

maneira fragmentada havia sido reeditado por

entusiasmados narradores. De forma oral levávamos

a discussão para as manhãs no colégio.

Aquele era o nosso cineclube mambembe. Por

isso, nas minhas lembranças o chamo de

"Grêmio Cinematográfico Paradiso."

De 1928 a 1948 o Brasil passou, no campo

da política por grandes transformações. Era o

auge do governo Vargas e da ditadura do Estado

Novo. Período turbulento de grandes tensões

entre a esquerda e a direita e do advento do

maior conflito bélico envolvendo a maior parte

dos países do mundo, a Segunda Guerra Mundial.

Lembro me também da letra de um samba

enredo que bolei e que outro amigo, o Adilson

Zoim musicou. A ideia era fazer uma homenagem

ao cinema, desta vez personalizado no seu

prédio, o Cine Teatro Cataguases de outros tempos

mais antigos e que ainda está lá, mas com o

novo nome de Cine Teatro Edgard. A letra do

samba que deveria ser destinada a Escola de

Samba Portela do bairro Leonardo, por causa

das chuvas que caíram aquele ano foi adiada,

dizia: "Às vezes eu vejo passar numa tela do infinito

/ Cenas que me fazem pensar / Num tempo

perdido. E o refrão: "Heróis, bandidos, mocinhas,

mosqueteiros e rainhas / Troca troca de

revistas, plásticos e figurinhas." E terminava por

chamar exatamente como na crônica do Zé Antonio,

o Cine Edgard de meu "Cinema Paradiso."

Para marcar a efeméride está sendo exibido

por um canal de assinaturas um lote de mais

de trezentos filmes. Especialistas apontam uma

concorrência em relação ao critério de exibição

dos filmes que se complicam ainda mais com o

aparecimento do VHS, dos DVDs e quejandos.

A mostra que também homenageiam as mulheres

cineastas ao longo da história, tem nomes

que vão de Alice Guy Blaché, a primeira mulher

cineasta que se conhece, (ela esteve na sessão

histórica dos irmãos Lumière, a americana Lois

Weber.

* Emerson Teixeira Cardoso

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa

da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas

Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967),

mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul

(1997).

67


Mitologia das raízes endossa rara poesia

Chicos

Esta é a utilidade da memória: libertação.

T. S. Eliot

*Ronaldo Cagiano

É pelo gatilho da memória que o poeta

Tiago D. Oliveira (Salvador, 1984) nos oferece a

chave para a compreensão do polifônico território

de suas vivências e percorrer o seu processo

criativo, pois ao enunciar em seu mais recente

livro que “é pelos pés do meu avô que entendo

a vida” (pg. 23), eis a senha para um profundo

mergulho em seu labirinto existencial, povoado

de mitologias, ancestralidades e um imaginário

que endossam sua peculiaríssima dicção. O caminho

poético e a cartografia de três gerações –

avô, pai e neto – são aqui dimensionados em

instância de mergulho e reflexão.

As solas dos pés do meu avô (Ed. Patuá,

SP, 2019), finalista do Prêmio Oceanos 2020

consolida uma trajetória iniciada com Distraído

(Ed. Pinaúna, 2014), seguindo-se Debaixo do

vazio (Ede. Córrego, 2016) e Contações (Ed. Patuá,

2018).

A metáfora dos pés que ganham o mundo

e se esfolam na vertigem dos dias é a trilha para

percorrer o intrincado espaço onírico em que

cabem os passos (e tropeços) de tantas vidas. O

pai, o avô, o caminho das migrações, o passado

e o presente se interpenetram numa alegoria de

vozes e ritos, radiografando tempos difusos, reverberando

os “ecos em silêncio vindos de outra

existência” para recompor um percurso em que

o autor realizou “naquelas solas duras de pés

juntos” o inventário de tantos desassossegos.

A voz do avô se espraia ao longo da narrativa,

infiltrada por meio de uma certa onisciência

presumida, em que a consciência do avô abre

uma picada no meio do cipoal de lembrança. Por

meio de uma sequência de vinhetas em colchetes

deflagra-se uma espécie de mantra – como

em [canta de novo, filho, canta,/ nunca escrevi

um poema – como se tomado pelas mãos do neto,

fosse aquele quem realmente des(a)fia um

imenso e catártico novelo, onde desenrolam todos

os tempos de uma vida. Essa interação simbiótica

de vozes interiores, dá ritmo, harmonia,

fluência e amálgama aos versos desse livro seccionado

em oito partes, composto pela riqueza

estilística e afiançado por um diálogo com T. S.

68


Chicos

Eliot, cujas epígrafes reforçam uma inequívoca

familiaridade semântica e um flerte temático.

Na singularidade de seu narrar poético,

Tiago percorre o inconsciente e as mitologias de

uma existência povoada de signos e referenciais,

tanto históricos, sociais e domésticos, como da

própria construção da linguagem. A leitura desses

poemas impõe-se sensivelmente ao leitor como

uma hidrografia sentimental, por onde escoa

um fluxo contínuo e simbiótico do imaginário

e uma torrente de miradas e reflexões emulados

por uma cuidadosa oficina verbal . O poema

é o próprio leito por onde (es)corre a água multifacética

e hieraclitiana das experiências vivenciais

do autor como nos sugere em “vejo uma corrente/

nos olhos do meu pai/ vinda do mesmo

rio (...) e tantos outros rios, um elo/ sem fim

com que o curso leva, / com que o curso traz”.

O corpo do poema é também trilha onde

estão tatuados os pés de uma longa travessia,

em que os registros geracionais autopsiam dilemas

e a jornada conduz a essa sensação de fadiga

diante da certeza de imperenidade que nos

deixa como único espólio os vincos por dentro e

por fora: “veja o que nos resta, / um único escalda

pés”.

Imagens fortes, símbolos evidentes de uma

perplexidade imanente do autor, além da carga

metafísica que reverbera aqui e ali e que nos sinalizam

um espectro onde expõe uma visão impressionista

das geografias exterior e psicológica

que o cercam: “o corpo morto é afeto e fuga”

(pg. 74); “nesses trinta e quatro/ colhi sandálias

de couro/ nas diversas primaveras/ em que

Itatim, Castro Alves/ Salvador ou Lisboa/ descalçaram

meus pés” (pg. 79); “a memória é um tamarindal/

em movimento e harmonia/ na imagem

que não cessa” (pg. 80); “a memória é um

archote/ a insistir enquanto a noite/cresce nas

pálpebras sobre/ cavalos em disparada selvagem”

(pg. 89).

E num sucedâneo de exponenciais revisitas

ao seu passado recente e a um presente-futuro

de indagações, um encontro de contas com uma

realidade nem sempre passível de controlar, com

a desolação frente ao intangível, ou diante da

força indomável do destino, o poeta premido

pela distância e pela insularidade que o aparta

da despedida do avô, recompõe cenários para

declarar que “quando meu avô morreu eu não

pude entrar/ naquele avião naquele cemitério

naquele caixão/ caminhar em seus pés era a única

forma de abraçá-lo” (pg. 83/84) e sua profissão

de fé na poesia dá-lhe guarida para seguir

com seus pés e exorcizar a dor e o vazio: “creio

nas palavras. de não despencar/ em escombros a

memória das cinzas/ que a própria memória carrega./

que a letra gera o que grafa em nós,/ no

silêncio mais desconhecido possível.”

E ao fechar com chave de ouro esse sensível

e sentido percurso, Tiago dá voz a um apelo

interior, a chave para entender o arcabouço de

“As solas dos pés do meu avô”: “[ canta de novo,

filho, canta,/nunca escrevi um poema”. O

disparo da memória instaura uma contundente e

apaziguadora força libertadora que faz crer que

69


Chicos

envolvendo o adobe.

“no final somos todos/ de um mesmo lugar.”

(pg. 92). As solas dos pés do meu avô reafirma

uma voz potente e segura de um autor

cuja dicção inigualável o particulariza no panorama

atual da poesia brasileira.

Dois poemas do livro:

antes de retirarem-se da terra

os pés são sujos de barro,

banham-se nas águas do rio:

exemplum dedi vobis

é pelos pés de meu avô que entendo a vida.

morto de cima de nove décadas esculpidas

nas rachaduras das solas duras, naquele

mesmo quarto de estreitos e sonhos.

caminho nos cascos a figurar seu povo,

na herança do sangue no olho

que o eco de sua voz ainda vive.

é pelos pés do morto, numa cama de pau,

que vejo a luz do dia chegar.

o choro, a reza, a morrinha de paz que fica.

***

puxando os bois pelo berrante

anuncia a natureza da viagem.

entoa e inscreve nos olhos

As solas dos pés de meu avô

Tiago D. Oliveira

www.editorapatua.com.br

de barro dos bois a lama nossa,

enquanto se alinham no grito errante

a tomar a vida, a sangrar a realidade.

mas há o belo de ser boi

e a imagem da trepadeira

* Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Publicou, entre

outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária

2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012) e

Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016).

70


Chicos

Comunicar-te

*Hugo Pontes

Numa entrevista a José Nunes, de 23 de

maio de 2018, Eltânia André responde à seguinte

pergunta: Como você lida com as travas da

escrita, como a procrastinação, o medo de não

corresponder às expectativas e a ansiedade de

trabalhar em projetos longos?

Não me preocupo com essas coisas, com

imposições ou limites, gosto de projetos longos

e sou boa para cumprir prazos.

O que me atormenta é a angústia pessoal

com aquilo que surge no papel, escrever é um

ato intenso, embora sutil. A linguagem é fundamental;

uma sacola de plástico bailando com o

vento que anuncia a tempestade pode ser a história,

mas as palavras que vão anunciar essa valsa

são a minha busca enquanto escritora. Com

que palavras e com qual silêncio o narrador sustentará

o seu dizer? Por isso, a fase mais exaustiva

é a lapidação, revisar, revisar, revisar.

Aí sim, depois de ir até o fim na construção

dos textos é que começo a pensar: por que

motivo escrevo? Essa pergunta sempre retorna e

não encontro uma resposta que me acalme e não

consigo parar de escrever. Mas poucos são os

estímulos externos, tão difícil sermos lidos. Hora

de apresentar o trabalho para as editoras e a angústia

emerge: irão nos responder? (porque é

comum o silêncio como “não” ou como sinônimo

de acúmulo de atividades, descaso ou desprezo,

não sei bem. Acho estranha a forma que

somos tratados pelo mercado editorial. Não me

acostumo). Haverá um bom diálogo sobre a

obra, uma parceria justa em que os dois lados

possam se compreender e se comunicar? (E não

estou tocando na temática financeira).

Eltânia André nasceu em Cataguases, terra

de grandes nomes que estão inseridos no melhor

da literatura brasileira, seja no conto, romance,

no poema experimental ou na poesia. Sua obra é

composta dos livros de contos: Meu nome agora

é Jaque, Manhãs adiadas e Duelos; Para fugir

dos vivos (romance) e Diolindas (romance em

parceria com Ronaldo Cagiano).

Terra dividida

Eltânia André

Editora Laranja Original

www.laranjaoriginal.com.br

* Hugo Pontes

Nasceu em Três Corações MG e mora em Poços de Caldas (MG). Poeta e professor, fundou o Grupo

VIX de poesia de vanguarda junto com Márcio Almeida, Márcio Vicente Silveira Santos e Waldemar

de Oliveira. Fez parte do movimento de Poema/ Processo com o grupo de poetas de Cataguases.

Sua produção está ligada à poesia, ao poema visual, à arte postal e arte-xerox. Nos anos

1990, participa de exposições no Canadá, Hungria, Rússia e Austrália com a temática do poema

visual. Desde 1996, mantém o site Poema Visual, que divulga poemas visuais e arte postal.

71


Lusofonia, literatura e mercado

Chicos

*João Melo

Os portugueses precisam de despir-se do

complexo de superioridade derivado da convicção

de que, supostamente, são os “donos” da

nossa língua comum

João Melo

“Lusofonia” é um conceito ambíguo e gelatinoso,

que urge “descomplexificar”, para que

possa de facto ser operacionalizado de acordo e

no sentido de materializar as intenções mais generosas

que levaram a colocá-lo no centro da

construção da chamada comunidade de países

de língua portuguesa. Se isso não for feito, dificilmente

tal comunidade se converterá numa

verdadeira comunidade de povos.

Assim, os portugueses precisam de despirse

do complexo de superioridade derivado da

convicção de muitos deles de que, supostamente,

são os “donos” da nossa língua comum. Talvez

careçam, também, de rever as suas múltiplas

origens e reconfigurar a sua identidade, assumindo-se

mais como “portugueses” (euro-árabeafricanos)

e menos como “lusitanos”.

Os brasileiros, por seu turno, precisam de

libertar-se de uma contradição que tem tolhido a

sua vocação para se afirmarem como uma autêntica

potência global: a sua tendência natural para

olhar apenas para dentro, como país-continente

que é, e, simultaneamente, o complexo de inferioridade

das suas classes dominantes e da sua

classe média, que “quer ser americana”, tal como

no passado queria ser “francesa”.

Arrisco-me a dizer que o Brasil precisa de

pensar um projeto de afirmação internacional

72

que passe, sem se esgotar, pela afirmação de

uma lusofonia abrangente. Afinal, o país, além

de ser o maior usuário da língua portuguesa, é

também, por exemplo, o que mais tem contribuído

para a expansão da mesma na Internet ou na

elaboração de artigos científicos, o que é fundamental

para aumentar o seu peso geopolítico.

Quanto aos africanos que adotaram o português

como língua oficial nos seus países, precisam

de assumir plenamente todas as consequências

dessa decisão política, que foi e continua

a ser fundamental não só para a sua unidade,

mas também para a sua identidade nacional.

Hoje, o português é a língua materna de milhões

de africanos (em Angola, já é a principal línguamãe).

Além da sua única língua de comunicação

entre todos os grupos internos, é a sua primeira

língua de comunicação internacional.

Desde que os portugueses contactaram

(não “descobriram”) pela primeira vez os africanos,

a sua língua foi e continua a ser influenciada,

transformada e enriquecida por certas línguas

africanas, tornando-se, por conseguinte, na

língua de todos os seus falantes. Os complexos

que alguns africanos ainda alimentam relativamente

ao português não tem, pois, o menor sentido.

O facto é que a língua portuguesa possui

hoje uma comprovada natureza pluricêntrica.

Espanta, pois, que, no dia a dia, muitos não o

reconheçam. A professora portuguesa Margarita

Correia escreveu no passado dia 28 de novembro

um artigo no Diário de Notícias, publicado


Chicos

em Lisboa, no qual denuncia a discriminação

por razões linguísticas de que são vítimas cidadãos

brasileiros em Portugal. Ela cita, entre outros,

os casos de dissertações e teses de alunos

brasileiros que são discriminados apesar de possuírem,

sublinha ela, “competências e currículos

inatacáveis”.

Na verdade – diga-se – a maka [problema]

é geral: as incompreensões são mútuas e ocorrem

em todos os contextos onde a nossa língua

comum é falada.

Não espero grande coisa dos nossos governos

para encontrar soluções para esse e outros

problemas e, de facto, materializar a ideia de

lusofonia, entendida esta última simplesmente

como cooperação ampla e multiforme entre os

povos dos países e outras comunidades de língua

portuguesa existentes no mundo. Acredito

mais nas iniciativas dos cidadãos, agentes culturais,

empresas e outros atores da sociedade civil.

Se os governos apoiarem essas iniciativas, já será

de bom tamanho.

A literatura pode ajudar. Para isso, ela precisa

de circular. É verdade que as relações

(intertextuais?) entre certos autores de língua

portuguesa, no passado ou no presente, são conhecidas,

sobretudo dos especialistas, mas talvez

tenha havido uma diminuição da circulação de

livros, bem como de jornais e revistas, entre os

nossos países, relativamente a períodos anteriores

(até meados do século 20).

A verdade é que, atualmente, poucos são

os autores portugueses publicados no Brasil e

menos ainda brasileiros editados em Portugal.

“Os leitores portugueses não conseguem ler os

escritores brasileiros!”, juram certos editores lusitanos.

Por outro lado, os autores portugueses e

brasileiros simplesmente não chegam aos países

africanos de língua portuguesa. Mais grave ainda,

os autores destes últimos países também não

circulam entre eles. De igual modo, não são comummente

publicados quer em Portugal quer

no Brasil.

“Não há mercado!”, dizem todos. Verdade?

Ou será apenas consequência do preconceito

cultural e, principalmente, da falta de visão

profissional? Qualquer aprendiz de marketing

sabe o que isso significa: “fazer mercados”, ou

seja, criar necessidades novas, atrair consumidores,

ir ao encontro deles e outras estratégias.

No caso da publicação de autores africanos

no Brasil, parece que começa agora a haver um

maior interesse nesse sentido. Eu não tenho dúvidas:

num país com a realidade histórica, étnica,

antropológica, sociológica e política do Brasil,

há inevitavelmente um grande número de

potenciais leitores das literaturas africanas contemporâneas.

O assunto, como todos, deverá ser

tratado sob vários ângulos. Prometo fazê-lo em

próximo texto.

* O autor escreve de acordo com o novo

acordo ortográfico e a variante angolana da língua

portuguesa.

* João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil

de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados,

entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil,

onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008).

73


Chicos

Lendo os Clássicos

*Luiz Ruffato

Gargalhada no escuro (1933)

Este romance é um exemplo radical de que na

literatura não interessa o "que", mas o

"como". No primeiro parágrafo, o Autor resume

o "que" da história, ou seja, sua trama:

"Era uma vez um homem chamado Albinus

que vivia em Berlim, na Alemanha. Era rico,

respeitável, feliz; um dia abandonou a mulher

por causa de uma amante jovem; amava; não

era amado; e sua vida acabou em desastre" (p.

5). Ou seja, o leitor já sabe, de antemão, tudo

que precisa saber - um prato cheio para aqueles

que acreditam que a literatura pode ser resumida

numa sinopse... No entanto... No entanto,

é o "como" o Autor conduz a narrativa,

ao longo das próximas duzentas páginas que

interessa... A parte do homem "respeitável e

feliz" ocupa dez páginas do livro - o restante é

empregado à parte da "amante jovem; amava;

não era amado; e sua vida acabou em desastre".

Albinus, um sujeito rico e desinteressante,

mora num enorme apartamento com sua

mulher, Elisabeth, e sua filha, Irma, num bairro

burguês de Berlim. Nada lhes faltam. Ele

ocupa o tempo ocioso de quem vive de renda

inventando projetos mirabolantes e dedicandose

de forma vaga à Arte. Ele ama a mulher a

filha, mas com aquele amor distante e frio - e

tem uma ótima relação com o cunhado. Mas,

ele acha que algo lhe falta. Uma aventura

amorosa, por exemplo, algo que nunca lhe

havia ocorrido antes. E, de tanto procurar, ele

se depara com Margot Peters, que, embora

sendo uma adolescente de 16 anos, conhece

mais do mundo que Albinus. Ela percebe nele

uma forma de subir na vida sem esforço. Então,

fingindo-se casta e pura, deixa-se seduzir,

e a partir do momento em que tem Albinus na

mão, passa a criar inúmeras armadilhas para

que sua família descubra seu caso e ele tenha

que romper o casamento. Quando consegue,

cria outras inúmeras armadilhas até conseguir

morar no antigo apartamento de Albinus. E,

assim, pouco a pouco, Margot vai conquistando

tudo o que deseja, comportando-se ora como

uma menina mimada, ora como uma adulta

maquiavélica. Neste meio tempo, Irma

morre, vítima de pneumonia, e Albinus sequer

vai ao enterro... Entra em cena, então, um antigo

amante, Alex Rex, conhecido de Albinus

74


Chicos

de outras situações, e, juntos, eles passam a explorar

Albinus, estabelecendo um triângulo amoroso,

sem que uma das pontas, Albinus, ingênuo,

crédulo e profundamente apaixonado por

Margot, perceba. Até que, numa viagem, Albinus

é alertado para o fato de ele estar sendo traído,

mas, mesmo bastante abalado, aceita a palavra

de Margot, que alega que Alex seria homossexual...

Enfim, Albinus e Margot sofrem um

acidente automobilístico, no qual ela sai ilesa,

mas ele fica cego, e, em busca de solução, vão

morar na Suíça, para onde Margot carrega Rex,

sem que Albinus saiba. Eles vivem assim, Rex e

Margot como marido e mulher, torturando e humilhando

Albinus, sem que ele compreenda o

que está se passando à sua volta. Como os

amantes estão esgotando a conta bancária de

Albinus, o cunhando resolve investigar o que

está acontecendo e flagra Rex vivendo no chalé

de Albinus com Margot. Albinus volta para casa

de Elisabeth, e só pensa em vingança. Até aqui o

livro é primoroso. O desfecho, entretanto, achoo

melodramático e inverossímil. Um dia, Albinus

descobre que Margot está no antigo apartamento

recolhendo objetos - na verdade, saqueando a

casa - e, mesmo cego, enfrenta-a com o objetivo

de matá-la. Ele, claro, não consegue acertar o

tiro e é, por sua vez, alvejado por ela, e morre.

Impressionante história de uma queda moral irreversível...

Gargalhada no escuro (1933)

Vladimir Nabokov (1899-1977) - RÚSSIA/EUA

Tradução: Oscar Mendes

Rio de Janeiro: Labor, 1976, 214 páginas

Avaliação: Muito bom

* Luiz Ruffato

Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria

destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu

APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de

Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no

país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do romance

Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto

por cinco livros sobre o operariado brasileiro.

75


Cataguases na Belle Époque

Chicos

Do jornal A Chimera, 1908

Extraído do livro Cataguases Século XX,

antes e depois, de Ronaldo Werneck, a sair em

breve. O livro é uma coletânea de textos sobre

nossa cidade, desde Guido Marlière, aí vai um

trecho.

Tivemos um domingo lindo, claro e alegre.

O firmamento permaneceu o dia todo coberto de

um manto graciosamente azul, apenas maculado

de suavíssimos punhados de nuvens alvas como

flócos de neve. Veio por fim o crepusculo, e um

pôr de sól bellissimo. A noite foi de um luar

meigo, romantico e sugestionador de sonhos e

desvaneios aos espiritos inclinados ao idealismo.

A concorrência ao excellente jardim do

Largo de Santa Rita foi extraordinaria e escolhidissima

até pouco depois de 7 horas. Desse momento

em diante despovoou-se muito... Vimos

passeando, vestidas graciosamente de branco:

Mlles. Honorina e Tita Ventania; de branco com

elegante sombra azul claro: Carminha e Annita

Santos, Néné Rocha; de branco com vistosas

sombras cor de rosa: Dudú Ventania, Flor Cardoso,

Flora Mares Guia; de azul claro: Theonilla

Dutra, Leonor e Annita Carneiro; de cor de rosa:

Cecilia Coelho, Estella e Nair Guimarães, Dedelia

Drummond; de branco com salpicos encarnados:

Mariquinhas Coelho; de amarelo claro, Luizinha

Taveira; de vermelho, Mariquinhas de Barros;

de saia rubra com blusa clara, Leonorsinha

Carneiro; de creme escuro, Gironda Guimarães;

e muitissimas outras.

Vimos também diversas familias distinctissimas

e notámos que lá estava toda a rapaziada

elegante e smart, inclusive o sympathico pessoal

da Usina. Excusado é referir a presença, sempre

apreciada, da popular e querida Sete de Setembro,

que primou com o fulgor de sempre, executando

magníficas peças de seu esplendido e

apreciado repertorio. Honraram o jardim com

sua presença os exmos. Srs. Drs. Norberto Custódio

Ferreira, João Pedro dos Santos, Octavio

Carneiro, Alfredo Paço e Astolpho Dutra, srs.

Taveira Junior, Antonio Henriques Felippe e João

Duarte.

Está sendo esperada com anciedade a

grande festa que organisam para o dia da inauguração

da luz electrica. Vae pelos ateliers das

modistas da terra uma tremenda azáfama! Todas

as moças assistirão as bellas festas do dia 14

com ricas toilettes novas. As moças elegantes de

nossa elevada e distincta élite estão se preparando

para darem uma nota chic e up to date no

que se refere a toilettes. Quasi toda tem mandado

fazer vestidos brancos para o acto da inauguração

e toilettes de cores vivas para a batalha de

flores que talvez se realize.

Comparecemos domingo último ao grandioso

baile oferecido pelos amáveis e sympathicos

moços da Força e Luz à culta sociedade cataguazense.

O salão na ocasião que percorremol-o estava

scintillantemente iluminado e lindamente

repleto das mais gentis senhoritas e dos mais

distinctos rapazes da élite cataguazense. Às 9

horas foi iniciada a animada soirée, cujas danças

correram animadíssimas até alta madrugada.

Houve também delicioso intermédio em que se

fez ouvir com sua bela voz a formosa normalista

Mlle. Honorina Ventania. Muitas meninas galantes

cantaram esplendidas cançonetas, recebendo

muitas palmas ao terminar.

76


Chicos

Dia delicioso e sublime o de 14 de julho...

festas a valer, música em quantidade, luz a granel

e povo em profusão... eis simplesmente o

que houve. Extraordinária, pomposa e soberba a

festa da inauguração da luz electrica nesta cidade.

O programma de antemão confeccionado foi

cumprido a risca. Às 4 horas da madrugada foi a

população despertada por estrondosa salva de 21

tiros, seguindo-se a alvorada feita pelas bandas

de música Euterpe e Sete de Setembro. Ao meio

dia, procedeu-se a inauguração do motor da Fábrica

de Tecidos. A Euterpe fez depois no Largo

do Commercio* uma esplendida retreta.

* Largo do Commercio era a praça Rui Barbosa,

onde ficava o referido salão, situado no andar superior do

Cine-Theatro Recreio, scintillantemente iluminado em suas

paredes forradas de espelhos de crystal vindos da Europa,

como ainda se vê na Confeitaria Colombo, Rio de Janeiro.

Às 6 horas teve então logar a inauguração

official da luz electrica, finda a qual realizou-se

o grande concerto da Harpa de David auxiliada

por alguns musicistas da Sete. O hymno cataguazense

cantado pela senhorita Honorina Ventania

e por muitas meninas causou immenso sucesso,

sendo bisado enthusiasticamente pela

enorme multidão que se acotovelava nas proximidades

da Força e Luz. Os amigos e admiradores

do prestigioso e eminente político Dr. Norberto

Custódio Ferreira aproveitando o ensejo

offereceram-lhe então como prova da verdadeira

estima que lhe tributavam, um rico apparelho

para toilette. Orou o illustre tribuno deputado

Dr. Heitor de Souza, respondendo extremamente

commovido o Dr. Norberto, que pronunciou um

discurso despido de flôres de rethorica e cheio

de idéas proficuas. Poz termo as festas publicas

uma grandiosa marche aux flambeaux composta

unicamente da infancia de nossas escholas publicas.

HISTÓRIA

Belle Époque

A Belle Époque, do francês “bela época”,

foi um período de grande otimismo e paz, desfrutado

pelas potências ocidentais, sobretudo as

europeias, de 1871 a 1914, quando eclode

a Primeira Guerra Mundial. Esta “época áurea”

foi possibilitada em grande parte pelos avanços

científicos e tecnológicos, os quais tornaram a

vida cotidiana mais fácil, bem como firmaram a

crença de prosperidade e esperança no futuro.

Principais Causas

Com o fim da guerra Franco-Prussiana,

surge na Europa uma política de estabilidade,

apesar da insatisfação francesa em perder os territórios

de Alsácia-Lorena para a Alemanha em

1871, o que acabou gerando também uma tensão

militar entre aquelas potências. A despeito

da corrida armamentista que se desenrolava, o

clima de progresso da Segunda Revolução Industrial

provocou um forte êxodo rural e favoreceu

o desenvolvimento de uma cultura urbana cosmopolita

e divertida, fomentada pelos avanços

nos meios de comunicação e transporte.

Principais Características

O ponto marcante desta época foi o estilo

de vida boêmio e otimista, com destaque para a

França, a qual se tornou o centro global de toda

influência educacional, científica, médica e artística

após a instauração da Terceira República

Francesa, em 1870. Ademais, se a nação francesa

era o polo difusor, Paris era o núcleo da Belle

Époque Mundial. Ora, foram criações francesas

(parisienses) notáveis deste período: as políticas

de saneamento público e urbanização do prefeito

Haussmann – que renovaram Paris

(drasticamente) sob os preceitos dos saberes médicos-higienistas

e reduziram as taxas de mortalidade,

tornando-a um modelo para o mundo; os

cabarés, como o Moulin Rouge; a Torre Eiffel

77


Chicos

(1889); o Casino de Paris (1890); o Metrô etc.

Ainda na França surgiram o pneumático de

borracha removível de Edouard Michelin (1890),

o Peugeot Tipo 3 (1891), a primeira força aérea

nacional (1910), a indústria cinematográfica de

Auguste e Louis Lumière, dentre outras. Paralelamente,

a Belle Époque se desenvolvia nos Estados

Unidos após a recuperação da crise econômica

de 1873; no Reino Unido pós era vitoriana;

na Alemanha do Kaiser Wilhelm I & II; e na

Rússia de Alexandre III e Nicolas II. No Brasil,

este período ficou marcado nas cidades de Fortaleza,

Manaus e Rio de Janeiro, sobretudo após a

Proclamação da República, em 1889.

De toda forma, pudemos vislumbrar em

todo Ocidente, as revoluções provocadas com a

melhoria nos transportes públicos de massa

(trens e navios a vapor) ou individuais (o automóvel

Ford T e a bicicleta), pelas tecnologias de

telecomunicações (telefone e telégrafo sem fio),

ou pela substituição da iluminação a gás pela

elétrica. Do ponto de vista cultural, assistimos à

multiplicação das livrarias, salas de concertos,

boulevards, atêliers, cafés e galerias de arte,

principalmente as parisienses, de onde saíam

quase todas as tendências estéticas e artísticas

globais produzidas durante o período.

Vale destacar enquanto movimento artístico

da Belle Époque, o estilo Art Nouveau, um

fazer ornamental de cores vibrantes e formas

sinuosas, presente desde as fachadas dos edifícios

até nos objetos decorativos, como joias e

mobiliários. No âmbito da pintura, também se

destacou o Impressionismo de Claude Monet.

Outros artistas de renome foram Odilon Redon,

Paul Gauguin, Henri Rousseau, Pierre Bonnard,

Émile Zola, dentre outros. Também vimos nesse

período a organização dos sindicatos trabalhistas

e partidos políticos, bem como a ascensão

do Socialismo.

Dilili em Paris de Michel Ocelot - Copyright Nord-Ouest Films

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Chicos

Clips

Terra dividida

Eltânia André

Editora Alfarroba

ano de edição: 2021

www.laranjaoriginal.com.br

Óbvio, claro, indubitável que o texto de Eltânia

André fala por si só sobre o talento inegável da

autora. Mas custa nada palpitar aqui nesta página

externa deste inquietante-criativo Terra Dividida.

Eltânia é mestra em frustrar o inacessível,

o acaso, decodificando o insondável, desbastando

os limites da imaginação; consegue descoser

laços intrincados do cotidiano tirando proveito

das miúdas existências de Naira e Eneida e Basílio

e Nena e Almeidinha, assim por diante; há

inevitável camaradagem entre ela, escritora, e a

palavra: ambas se enrodilham em afagos mútuos;

sensação de que Eltânia André vai montando

suas histórias à semelhança de restaurador

ceramista que junta os cacos de botija até que

ela fique pronta-prontinha para acolher a mais

b o r b u l h a n t e e c r i s t a l i n a d e

todas as águas do rio-rítmico — sim: com Eltânia

cântaro canta. Sua voz literária única, arado

que procura sempre rasgar chão ainda não cultivado,

vai aqui, neste encantador livro, aos poucos,

soltando lascas de certa encantatória árvore

genealógica do encanto absoluto

.

Evandro Affonso Ferreira

O coração pensa constantemente

Rosângela Vieira Rocha

Editora Arribaçã

ano de edição: 2020

www.arribacaeditora.com.br

Novo romance da escritora Rosângela Vieira Rocha.

Desta feita, a premiada autora fala de sororidade

entre irmãs. Com os afetos e desafetos que

possam existir nessa relação, de forma lírica, nostálgica,

mas também crua, quando o enredo pede,

verdadeira. O título da obra vem do I Ching, mostrando

que o pensar além do momento faz sofrer o

coração. Mas também busca a quietude, a serenidade

do coração. A capa é de Luiz Prates.

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Chicos

Todos os desertos: e depois?

Ronaldo Cagiano

Editora: Patuá

ano de edição: 2021

www.editorapatua.com.br

Esconder-se na greta da madeira dos próprios pecados;

viver na dependência dos acontecimentos hepáticos;

medir tudo com os olhos, numa procura

inquieta. Ronaldo Cagiano sabe, à semelhança de

Nietzsche, que escrever bem também significa pensar

bem. Ronaldo é desses raros escritores que vivem

tempo todo excitado diante da imaginação,

sempre incitado pela reflexão. Suas frases, seus parágrafos

são frases-trincheiras preparadas para se

defender dos obuses-do-lugar-comum; suas personagens

sabem piratear a verdade, e ministrar a

morte homeopaticamente – além de fazer costumeiras

revisões das próprias falhas individuais.

Todos os desertos: e depois? É um livro de contos,

pequenos-magistrais contos nos quais os clangores

não imploram silêncios: são altissonantes; onde as

sutilezas verbais não carecem de apalpamentos;

onde a sintaxe consegue escalar degrau a degrau os

caminhos alvissareiros. Ronaldo Cagiano sabe, como

poucos, da necessidade de o escritor refugiar-se

no inalcançável, no imperceptível – sem deixar que

a realidade se descambe de vez para a obliquidade.

Mesmo assim, consegue, imaginoso, surpreender a

todo instante o leitor lançando mão da arte de desvendar

os meandros esperançosos que se camuflam

no subsolo da Utopia. Resumo da ópera: estamos

diante de belíssimo escritor, cujas palavras sabem

angariar Plenitudes.

Evandro Affonso Ferreira

Cada gota de silencio

José Vecchi de Carvalho

Editora Ipêamarelo

ano de edição: 2021

www.editoraipeamarelo.com.br/

O escritor mineiro Jose Vecchi de Carvalho lançou,

no início de abril, o livro de contos “Cada

gota de silêncio”, pela Editora Ipêamarelo, de

Santa Catarina.

Nos dezenove contos que compõem este que é o

terceiro livro de contos do autor, o silêncio surge

como indício da comunicação que falha por

omissão, por comodismo, por covardia ou por

medo. As personagens esbarram-se nos becos de

suas misérias e, alijadas do diálogo, são incapazes

de encontrar a saída.

Assim, o mendigo morre clamando pela ajuda

que não vem, um jovem trabalhador se mata sem

causar alarde, um casal se desfaz, um grevista

desaparece, a sede de justiça se transmuta em

vingança e após desfechos surpreendentes – pelo

que têm de inédito ou de óbvio – intuímos que

há algo de familiar em cada história: na prosa

limpa e direta de José Vecchi de Carvalho quem

cala está matando ou morrendo.

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