Chicos 64 - 10.04.2021
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Lembranças do bairro violento
Chicos
*Ronaldo Brito Roque
Eu era muito jovem, não lembro com precisão.
As imagens apenas resvalam na minha
cabeça. Num domingo de tarde, o sol nos fustigava,
queríamos fazer alguma coisa, arranhar
algum carro, bater em algum menino bem vestido,
roubar um celular ou um par de tênis. Mas
não tinha ninguém na rua, a não ser os adultos,
que ficavam em bares e eram bem mais fortes
que nós.
Entramos no quintal de uma casa que parecia
abandonada. Pelo tanque, subimos na laje.
De lá vimos uma mulher, no quintal vizinho,
aguando flores com uma mangueira. Ela estava
com a camisa suspensa, presa pelos sovacos. Isso
nos dava a impressão de que seus seios eram
maiores. Decidimos que aquela seria nossa vítima.
Mas logo chegou um cara e começou a conversar
com ela. Então decidimos esperar, não
queríamos testemunhas. Descemos da laje e fomos
dar uma volta pelo bairro. Jogamos pedras
num cachorro grande, que latia brutalmente contra
uns cachorros menores. Ele fugiu. Nós vencemos.
Apareceu um mendigo, mancando de uma
perna, usando um pau torto como muleta. Mais
chuva de pedras, dessa vez no mendigo. Alguém
o acertou na cabeça. Ele caiu, imóvel, provavelmente
desmaiado. Mais vivas e glórias! Agora
éramos invencíveis, éramos a força inevitável
daquele sol massacrante.
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Resolvemos voltar à laje, mas dessa vez
não achamos o quintal que nos permitia a entrada.
Alguém deve ter simplesmente fechado o
portão. Então notamos uma dessas grades muradas
à meia parede. Subimos no meio-muro, segurando
nos ferros, e passamos para um muro
mais alto e mais grosso, onde podia-se ficar de
pé sem dificuldade. De lá avistamos outro quintal,
ou talvez o mesmo, apenas visto de outro
lado. A mulher tinha saído. Agora havia uma
jovem tomando sol. Ela tinha estendido uma cadeira
de praia. Estava de shortinho e sutiã, uma
coisa que nos fazia trincar por dentro. Íamos pular
no quintal e atacá-la, eu sentia que esse era o
pensamento de todos. Mas o cachorro grande
voltou com outros cachorros, que latiam e riscavam
o chapisco do muro, nos ameaçando. Nesse
momento os bravos mediram sua coragem. Os
garotos pularam do muro e enfrentaram os cachorros,
chutando seus pescoços, socando suas
cabeças, fazendo como podiam. Eu, o covarde,
pulei para dentro do quintal. Quando me viu, a
garota colocou os braços sobre o sutiã. Eu improvisei:
me desculpe. Tenho que passar por
aqui, uns cachorros estão atacando meus amigos.
Ela disse: quer que eu chame a polícia? Polícia
prende cachorro, eu perguntei. Ela riu, disse
para eu esperar e entrou dentro de casa. Depois
voltou, com um bustiê em vez do sutiã. Era apenas
alguns centímetros maior, mas de fato bem
menos erótico. Ela perguntou se eu era filho daquela
mulher, dona daquele restaurante. Fiquei
lisonjeado em ser confundido com o filho de
uma mulher rica. Menti, confirmando o mal entendido.
Ela disse: minha mãe fez café agora,
vamos entrar. Estou sem camisa, respondi, na
minha humildade total. Tudo que eu sabia da
vida era que não se entra na casa dos outros sem
camisa. Ela disse: o que é isso? Que bobagem,