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Chicos 64 - 10.04.2021

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

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Chicos

O dia em que meu pai foi meu filho

*Antônio Jaime Soares

Dia desses perguntei ao João, ex-dono do

Depósito de Pães Nossa Senhora do Rosário

(coisas da Vila), como estão seus filhos. Já põem

comida na boca sozinhos, disse, acrescentando

que o “menino” trabalha na Brookfield e a

“menina” no Santander, em São Paulo. Pois bem,

quando eu já levava comida à boca sozinho, dividindo

apartamento com um colega de trabalho,

outro colega voltou pra mulher e cedeu-me o que

ocupava, em Ipanema. O lugar, excelente, o cafofo,

nem tanto.

Confortável, mas quente, não obstante a

ventania marinha. Imobiliárias não se tocam de

que vento não faz curva, custava nada, por

exemplo, uma abertura pro corredor. Arcondicionado

e ventilador resolviam, mas eu prefiro

ao natural. O que mais preocupava eram ruídos

no telefone e a correspondência chegar com

atraso. Motivo: o ex era jornalista linha

“esquerda festiva”, preso cinco vezes pela ditadura,

poderiam achar que eu era da turma e me

trancarem para averiguações. Sartei fora.

Duas lembranças marcantes do período estão

ligadas às minhas origens. Primeiro, mamãe,

que me visitaria mais vezes, até por ter outros

parentes no Rio, que lhe proporcio­naram passeios

mais ao seu gosto um tanto aventureiro.

Um deles, andar de barco com um sobrinho pescador

pela Baía de Guanabara, até as obras da

ponte Rio-Niterói. Outro sobri­nho a levou ao

Corcovado, que já conhecia e agradeceu ao Cristo

pela graça de estar lá de novo. Aos 70 anos,

subiu com sua irmã os 382 degraus que conduzem

à Igreja da Penha. Quisera eu ter tanto fôlego.

Mas eu a levei à praia, que adorava e ficou

sentada no frigir das ondas, ali onde “o mar sorri,

com den­tes de espuma” (verso de Pedro Kilkerry),

junto à meninada, tão menina quanto.

Passou um fotógrafo do Jornal do Brasil e ajoelhou-se

na areia para obter o melhor ângulo e

procurei a foto nas edições seguintes do jornal,

sem sucesso. Na volta, perto de casa, na Barão

da Torre, veio correndo um cabeludo de tanga à

Fernando Gabeira e entrou no Restaurante Natural.

A mãe o achou estranho, não sabendo quem

era, ao contrário de um menino, que gritou:

– Gilberto Gil, canta o Sítio do Pica-pau

Amarelo pra mim.

Já o pai me visitou só uma vez. Esperei-o

na Rodoviária, tomamos um táxi e, à saí­da, na

mesma Barão da Torre, entrou Lucélia Santos.

Falei quem era e ele se encantou, lembrando a

escrava Isaura. Era magro e não sabia nadar, motivo

para eu segurá-lo contra as ondas, como se

tivesse um filho em meus braços. Depois, fomos

ao Posto 6, de onde se vê Copacabana do melhor

ângulo e tomamos chope com peixe frito. O peixe

daquela área é sempre confiável, por ser entreposto

de pesca e uma freguesa antiga é Elza

Soares, que não dispensa ostra, pela fama de

afrodisíaco.

Começou a escurecer e a avenida Atlântica,

iluminada, ganhou aquele aspecto de "colar de

pérolas”, como se dizia nos cartões postais de

mil novecentos e guaraná de rolha. O pai, inebriado,

só tendo visto mar em Guarapari, sem aquela

efervescência da cidade grande. Em casa, arrumei

sua cama e dormiu feliz da vida.

* Antônio Jaime Soares

Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Participou de um dos movimentos culturais

mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC. Depois de morar um

longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.

Retornou a Cataguases direto para a Vila. Poeta e cronista publicou Pedra que

não quebra (2011)

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