Chicos 64 - 10.04.2021
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Chicos
coleção Ciências Herméticas e Psicologia Experimental,
sem autor, nona edição, publicado
pela “O pensamento”, São Paulo, em
1954. Minha mãe acha que ele usou este livro
para conquistá-la. Camisa vermelhona,
oclões escuros na cara, falando com o chiado
carioca depois de uma temporada na Maravilhosa.
Ela, nem chite! Só rua abaixo, rua
acima com as amigas. Mas meu avô, duro
na queda, depois de preterir tantos pretendentes,
baixou a guarda. Afinal, não era todo
dia que aparecia um mecânico de usina
ganhando nada menos que cinco contos.
Na página 16, leio, como proposta de exercício:
“Fixar durante um quarto de hora um
ponto qualquer, por exemplo um ponto negro
feito numa folha de papel, esforçando-se
para olhar o mais tempo possível sem pestanejar.”
Sei não, viu!
Essa é a parte boa da arte de futucar o
passado, ainda mais em meio aos livros.
Dentro deles um mundo paralelo: notas de
compra, senhas, recibos, bilhetes, prospectos,
restinhos de inseto, poemas manuscritos.
Nestes, alguns furores românticos movidos
a coração magoado & presença da
agonia & voar das ilusões. Restam ainda três
estantes, todas abarrotadas, com duas fileiras.
Aproveito para colocar alguma ordem: a
literatura, prosa ou poesia, na primeira; teorias,
filosofias e afins na segunda. Ainda faltam
o monte Everest das revistas e o batalhão
das caixas de papel. Numa, cartas de
amigos e desamores idos. Noutra, até provas
do primário. Imagine! A severa dona Iolanda,
se viva, talvez ficasse feliz se soubesse
disso. A hora é agora, já que não se sabe
quando aquilo que um dia chamamos de
normalidade voltará ao normal. O trocadilho
é infame, mas vale.
Ainda bem que a nova síndica pôs ordem
nessa joça e enquadrou a turma do
“escuto essa porra na altura que quiser”. Assim,
enquanto mergulho na papelada posso
ouvir, em paz, o “Réquiem in D minor”, do
velho Mozart. Não há música mais apropriada
para esses dias. Mas nem só de deprê vi-
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ve meu coração tropical. Às vezes, boto na
agulha o lendário e esquecido trio baiano,
Os Tincoãs, cantando “Cordeiro de Nanã”
ou “Acará”. Nesta, o trecho falado cai como
uma uva: “os tempos mudaram, senhor, tudo
está confuso. Já não se entende o tempo.
(...) O mais puro dos homens ainda é pura
vaidade. Fala-se em peste e rumores de
guerra. O mundo tornou-se abafado. Dai-nos
a resignação do samba que perfuma o machado
que o corta”.
De vez em quando, dou uma sacada
em algumas sacadas e vejo, qual Macunaíma,
coisas de sarapantar, tais como fortões
e fortonas, agora confinados em seus cubículos.
Deve estar sendo barra sem ninguém
para contemplar seus volumes feitos à base
de bombas e silicones, a não ser meu olhar
anônimo, parceiro deste corpo que não é
nem adiposo nem musculoso, e se basta com
algumas pernadas semanais. Não é preciso
dizer que estou com saudade delas. É minha
forma predileta para criar textos, tirar (e botar)
caraminholas no quengo.
No quesito alimentação até que estou
indo bem, aceitando as regras do jogo, só
botando a cara lá fora quando é para sacar
uns trocados da pindaíba ou quando a geladeira
vira uma igreja vazia. Falar nisso, foi
difícil, mas a turma do dízimo também dançou
e vai ter que se contentar em enviá-lo
on-line aos seus abastados, rotundos e pastosos
pastores. Sobrou para todo mundo.
Vamos ver o que sairá de tudo isso. Quem
sabe, lembrando o bardo português, esse bicho
da terra tão pequeno toma jeito e percebe
que pode ser mais que uma pecinha de
reposição, um mero bípede, sem plumas,
acumulador de tranqueiras. Sem querer ser
otimista e já sendo.
Há muito tempo faço biscates sem precisar
que levante a bunda desta cadeira. Felizmente,
ainda há demanda para revisão,
copidescagem, diagramação etc. Contudo,
ver tanto neguinho e branquinho trabalhando
em casa é a maior revelação. Tomara
que, quando serenar, os tubarões das empre-