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Edição digital da revista do Centro Lusitano de Zurique
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Saúde
Infarmed licenciou 18 empresas
de canábis medicinal.
Como Garcia de Orta distinguiu
cânhamo de canábis em 1563
Laura Ramos
O Infarmed confirmou hoje ao Cannareporter
que já recebeu 97 pedidos de licenciamento
para as actividades de cultivo, fabrico,
importação e exportação de canábis
para fins medicinais, tendo já licenciado 18
empresas. No entanto, a Autoridade Nacional
do Medicamento encontra-se a aguardar
o pedido de vistoria às instalações de
mais 80, estando ainda a analisar mais sete,
o que pode fazer subir o número de empresas
licenciadas em Portugal para mais de
100.
Apesar do elevado número de empresas a tentar obter
uma licença do Infarmed, existem apenas dois pedidos
de ACM (Autorização de Colocação no Mercado)
de preparações e substâncias à base da planta da
canábis em Portugal.
Em resposta às questões do Cannareporter, via e-mail,
o Infarmed, diz que “relativamente aos pedidos de licenciamento
para as actividades de cultivo, fabrico,
importação e exportação da planta da canábis, informamos
que na totalidade, para o território nacional
foram recepcionados 97 pedidos, dos quais:
– 7 pedidos encontram-se em análise;
– 10 pedidos o INFARMED encontra-se a aguardar resposta
a pedidos de elementos por parte das entidades
requerentes;
– 80 pedidos o INFARMED encontra-se a aguardar o
pedido de vistoria às instalações por parte das entidades
requerentes”.
Isto significa que pelo menos 80 empresas já receberam
uma pré-licença do Infarmed e estão agora na
fase de construção das suas unidades de fabrico.
Há apenas dois pedidos de ACM a decorrer no Infarmed
As empresas já licenciadas em Portugal têm optado,
quase exclusivamente, pela exportação. Segundo
o Infarmed “actualmente encontram-se em curso 2
(dois) pedidos de autorização de colocação no mer-
Leia estes e outros artigos em
WWW.CANNAREPORTER.EU
cado (ACM) de preparações e substâncias à base da planta
da canábis, um relativo a flor seca para inalação por vaporização
e outro relativo a uma solução oral. Ambos os pedidos
aguardam respostas por parte das entidades requerentes”,
esclarece, não especificando se são de CBD, THC ou ambos.
Actualmente, apenas uma empresa (a Tilray) obteve uma
ACM do Infarmed para um derivado da canábis, nomeadamente
flor seca com 18% de THC. O Sativex (da GW Pharmaceuticals)
já se encontrava disponível em Portugal desde
2012.
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© Infografia: João Xabregas
Luís Torres Fontes / João Carvalho
Por improvável que pareça, os europeus
lidaram com a canábis durante
séculos, sem se darem conta dos seus
poderes psicoactivos — aliás, até ao
século XVI era-lhes completamente
estranho o conceito de droga, entendida
como agente alterador da consciência.
Mas as coisas começaram a
mudar devido à curiosidade e livre espírito
de Garcia de Orta, que em 1534
viajou até Goa, então a capital do império
português na Índia.
Garcia de Orta (1499-1568) foi um
médico judeu português
que viveu na Índia, autor
pioneiro sobre botânica,
farmacologia, medicina
tropical e antropologia.
O livro que publicou em
1563 inclui referências ao
cânhamo e à canábis, na
altura conhecida como
“bangue”.
Nas três décadas seguintes
à sua chegada ao
Oriente, Garcia de Orta,
nascido em Castelo de
Vide cerca de 1499 e falecido em Goa
em 1568, compilou uma exaustiva relação
das plantas “medicinais e úteis”
indianas, publicada em Goa em 1563
sob o título Colóquios dos Simples e
Drogas e Cousas Medicinais da Índia.
Considerada uma das primeiras manifestações
da ciência experimental
moderna, esta obra foi aclamada na
Europa renascentista como a mais
importante sobre a flora medicinal
desde o compêndio de botânica de
Dioscórides, que fazia escola há 1500
anos — por esta razão, hoje os Colóquios
de Garcia de Orta são talvez a
única obra portuguesa a haver alcançado
estatuto universal.
Mas o que torna os Colóquios um marco
fundador da ciência moderna é o
facto de a obra espelhar a crença, então
pioneira, de que a verificação e a
experiência são as fontes verdadeiras
da aprendizagem e do conhecimento.
Diz Orta: “Eu não tenho ódio senão
aos errores; nem tenho amor senão à
verdade”.
E, em parte, este espírito científico de
observação desapaixonada é mais notável
do que quando Garcia de Orta
se debruça sobre as drogas visionárias
usadas na Índia, como o ópio, a datura
e o bangue, um preparado psicoactivo
de canábis — as considerações que o
naturalista português faz sobre estas
substâncias e os seus efeitos revelam
tal ausência de preconceito que, hoje
em dia, mais do que notáveis, elas
dificilmente encontrariam paralelo.
Quanto ao bangue, Orta dedica-lhe
um capítulo, o Colóquio Oitavo do
Bangue, no qual explica “que cousa
he (…) e pera que se toma, e como se
faz” esta droga cujo uso, informa, era
generalizado na Índia: “E crede que
pois isto [o bangue] he tanto usado e
de tanto numero de gente, que nam
he sem mysterio e proveito” (fica-se
mesmo a saber que o bangue se vendia
“na botica feito”).
Como Garcia de Orta distinguiu cânhamo
de canábis
Apesar de ter notado as semelhanças
da planta do bangue com o cânhamo,
Orta considerou “nam ser isto linho
alcanave”, não só porque “a semente
he mais pequena e mais não he alva
como a outra”, mas principalmente
devido ao facto da planta do bangue
não ser usada na Índia para produzir
o linho “de que fazemos as nossas camizas”.
Orta não podia saber que estava
a comparar as duas variedades
de canábis, a sativa, o familiar cânhamo,
e a indica, que descobrira na Índia
— essa classificação só seria feita
no século XVIII, precisamente a partir
de dados compilados pelos primeiros
cientistas da natureza, como Orta.
Estátua de Garcia de Orta em frente
ao Instituto de Higiene e Medicina
Tropical, em Lisboa, Portugal
Para nossa desgraça (de Portugal), o
posfácio da história de Garcia de Orta
é tristemente familiar. Segundo as
crónicas, após a morte do naturalista,
a sua mulher confessou à Inquisição
que, apesar de ser católico confesso,
Orta sempre praticara em segredo a
religião judaica. (Os pais de Orta eram
cristãos-novos, tendo renegado a fé
judaica para escapar ao exílio
quando D. Manuel I expulsou
os judeus de Portugal.) E, fazendo
jus aos seus sinistros
pergaminhos, a Inquisição
ordenou não só que o cadáver
de Orta fosse exumado e
queimado na praça pública,
mas que todos os exemplares
dos Colóquios fossem destruídos
pelo fogo.
Afortunadamente para o património
da humanidade, porém,
o obscurantismo vigente
em Portugal não conseguiu reduzir a
cinzas “o fruto daquela Orta” (na expressão
de Camões). Dado que para lá
dos Pirinéus o conhecimento deixara
de ser considerado obra do Demónio,
logo no ano da morte do naturalista,
os Colóquios haviam sido traduzidos
para latim por um botânico francês.
Nas décadas seguintes, surgiram edições
em italiano, francês e inglês e, no
século XVII, o tratado de Orta tornara-se
já obra de referência obrigatória
da jovem comunidade científica europeia.
Em Portugal, os Colóquios só
seriam reeditados em 1895.
_____________________________
__________________
Este texto, da autoria de Luís Torres
Fontes e João Carvalho, foi originalmente
publicado na edição portuguesa
do livro “O Rei vai nú”, de Jack
Herer, e reproduzido no #3 da Cannadouro
Magazine.
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